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INTRODUÇÃO
Ampliou-se a utilização desse instituto na Idade Média com o surgimento dos títulos de
crédito, documento hábil a permitir a circulação do crédito nele representado. Desde então, os títulos de
crédito são extremamente utilizados por facilitarem a circulação das riquezas, bem como por serem regidos
por princípios constantes da legislação cambiária que amplamente protegem seus adquirentes.
Como bem conceituado pelo doutrinador César Vivante 1, “título de crédito é o documento
necessário para o exercício do direito literal e autônomo, nele mencionado”. Daí podem-se extrair os
princípios caracterizadores desse instituto, quais sejam, a cartularidade, a literalidade e a autonomia,
acrescentando, ainda, alguns estudiosos sobre o tema, a abstração, a independência, e a inoponibilidade das
exceções pessoais.
Conforme referido, há autores que consideram a abstração como um quarto princípio dos
títulos de crédito, que faz com que a cártula se desvincule do negócio jurídico a ela subjacente, tornando-se
abstrata em relação à causa de sua emissão.
Por fim, tem-se a inoponibilidade das exceções pessoais que proíbe o devedor de alegar
contra o beneficiário do título, visando o não pagamento, exceções que possui com antigos portadores da
cártula. Assim, em embargos à execução, pode-se arguir, além de vícios formais do título, apenas matérias
pertinentes à relação pessoal com o exeqüente.
1
Apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.
6
Desse modo, é fundamental a existência dos títulos de crédito para a economia mundial,
vez que eles permitem a circulação do crédito de maneira segura. No mesmo sentido, é incontroversa a
importância do estudo dos princípios dos títulos de crédito para a caracterização desse instituto jurídico.
Para tanto, o trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro aborda questões gerais
sobre o título de crédito como sua origem, sua evolução histórica, as legislações aplicáveis ao instituto, suas
possíveis formas de circulação, e suas classificações.
O segundo capítulo traz, de forma detalhada, cada um dos princípios dos títulos de
crédito, bem como exemplos jurisprudenciais de suas aplicações. Finalmente, o terceiro capítulo discute a
possibilidade de mitigação dos princípios dos títulos de crédito, trazendo entendimentos doutrinários e
jurisprudências de diversos Tribunais pátrios a respeito do tema.
1 OS TÍTULOS DE CRÉDITO
César Vivante2 definiu os títulos de crédito como sendo “o documento necessário para o
exercício do direito literal e autônomo, nele mencionado”. Essa definição é normalmente considerada
perfeita e adotada pela unanimidade dos comercialistas. Porém, antes de analisá-la, cumpre tecer alguns
esclarecimentos, iniciando-se com o que vem a ser o crédito.
A palavra “crédito” deriva do latim creditum, que por sua vez, decorre de credere, cujo
significado é crer, confiar, ter fé. Ela pode ser definida como “a confiança que uma pessoa inspira a outra de
cumprir, no futuro, obrigação atualmente assumida” 3. Desse modo, pode-se dizer que o crédito é a troca de
um valor atual por uma contraprestação futura, antecipando as relações de comércio e acelerando a
circulação da riqueza. Por meio dele, aqueles que não possuem dinheiro no momento podem suprir suas
necessidades presentes, assumindo a obrigação de pagarem futuramente. Nesse diapasão, para se ter crédito,
seus dois elementos fundamentais devem estar presentes: a confiança e o tempo.
Importante ressaltar ainda que o crédito não cria capitais, apenas os transfere,
possibilitando a imediata circulação das riquezas. Assim, ele não é um agente de produção vez que,
conforme Stuart Mill4, “o crédito não é mais do que a permissão para usar do capital alheio. O crédito não
cria capitais como a troca não cria mercadorias”. Tem-se a ilusão de que o crédito multiplica o capital
porque, por meio dos títulos de crédito, ele pode ser negociado, circulando. Desse modo, quem o possui pode
transformá-lo novamente em dinheiro.
antes do vencimento. Assim, dentre suas principais características, os diferenciando dos demais títulos
representativos de obrigações, segundo ensinamento de Fábio Ulhoa Coelho 6, cita-se os fatos de inserirem
em seu bojo apenas relações creditícias; de serem considerados pela lei processual civil títulos executivos
extrajudiciais, o que facilita a cobrança em juízo; e, por fim, de terem o citado atributo da negociabilidade,
adquirido pela facilidade que tem a circulação do crédito representado no título, devido à segurança dada ao
adquirente pela legislação cambiária.
Segundo Rubens Requião7, a história dos títulos de crédito foi dividida em três períodos:
o período italiano, que durou até 1650; o período francês, de 1650 a 1848 e o período germânico, de 1848 até
os dias atuais. Rosa Júnior8 considera que o período germânico durou até 1930, quando se iniciou o período
do direito uniforme, que vigora desde então.
O primeiro período se desenvolveu nas cidades marítimas italianas, então centro das
operações mercantis, onde se localizavam feiras que atraiam mercadores de diversos lugares. Como cada
cidade cunhava sua própria moeda, para a viabilização do comércio, surgiram as operações de câmbio, nas
quais se trocavam a moeda trazida, pela da cidade em que se realizava o negócio.
Destaca-se que na operação havia três posições pessoais em relação à letra de câmbio: o
sacador, que recebia o dinheiro e entregava a promessa; o tomador, que entregava o dinheiro e recebia a letra
e o sacado, mandatário do sacador que deveria pagar. Poderia também existir o mandatário do tomador,
encarregado de receber a quantia.
Com o tempo, a littera cambii passou a ser entregue diretamente ao tomador que, na
abertura das feiras, a apresentava ao sacado para a aceitação, momento em que este se obrigava ao
pagamento da letra, reconhecendo como seu, o débito do sacador. Essa obrigação tinha caráter autônomo à
anterior e não desobrigava o sacador, já que, se não cumprida, o credor poderia atestar a mora do sacado ao
notário perante uma testemunha, o que lhe dava direito de regresso contra o sacador. Daí o surgimento dos
institutos aceite e protesto.
Foi no período germânico, a partir do século XIX, que a letra de câmbio se transformou
no título de crédito que hoje é conhecido, ou seja, passou a representar obrigações independentes de contrato
preliminar, bastando a simples declaração da vontade do sacado, e o preenchimento dos requisitos legais,
7
In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 378.
8
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 40.
9
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 381.
8
para valer o escrito do título. E, por se tratar de um direito autônomo e abstrato, independente da relação que
o originou, as exceções oponíveis a antigos possuidores não atingiam os novos. Isto porque, como ensina
Wille Duarte Costa10, “o seu possuidor adquire um direito próprio, autônomo, abstrato e independente da
relação fundamental, que é o negócio que pode ter dado origem ao título.”
Para Rosa Júnior11, ainda existe uma quarta fase na evolução dos títulos de crédito, que
vigora até o presente momento. Denomina-se período uniforme, cujo inicio foi em 1930 com a aprovação da
Lei Uniforme de Genebra (LUG), momento em que se uniformizou a legislação cambiária sobre letras de
câmbio e notas promissórias, seguindo com a uniformização da legislação sobre cheques, em 1931.
Porém, a LUG sobre letra de câmbio e nota promissória não revogou integralmente o
Decreto n° 2.044 de 31/12/190813, que regula estes títulos, já que ela não disciplina toda a matéria pertinentes
a eles. Assim, quando a LUG disciplinar determinada questão, ela será a legislação aplicável, mesmo que o
Decreto n° 2.044/08 a trate de modo diverso. No entanto, se a LUG silenciar sobre determinado assunto, ou
ele for objeto de reserva adotada pelo Estado brasileiro, aplicar-se-á o Decreto n° 2.044/08.
Cumpre ressaltar ainda que a LUG é aplicada de forma subsidiária, no que couber, às
duplicatas, conforme estabelece o artigo 25 da Lei n° 5.474 de 18/07/68, que regula tais títulos.
Fábio Ulhoa Coelho14 critica citada regulamentação dizendo que “temos hoje, na
codificação civil, um conjunto de preceitos de direito cambiário de importância nenhuma”. Isto porque,
entende ele, a teor do artigo 903, essas normas só serão aplicadas se posteriormente uma lei criar, sem
regulamentação, um novo título de crédito, o que é improvável, já que os futuros títulos adotarão a “forma
10
In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 13.
11
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 46.
12
Rubens Requião, in Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 385, ao explicar o
significado de reserva, cita o artigo 2°, n° 1, d, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que
dispõe: “reserva significa uma declaração unilateral, qualquer que seja sua redação ou denominação, feita por um
Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar os
efeitos jurídicos de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado”. Assim, a LUG dispõe, em seu
anexo II, as reservas que podem ser adotadas pelos países aderentes.
13
Inteligência do artigo 2º, caput e § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, que assim dispõe: art. 2º “Não se
destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.” § 1º “A lei posterior revoga
a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a
matéria de que tratava a lei anterior.”
14
In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 478.
9
despapelizada”15, necessitando, assim, de novas regras, diversas das tratadas no diploma civil, que contempla
o princípio da cartularidade ao conceituar título de crédito em seu artigo 887, como se verá posteriormente.
Divergindo das posições acima explanadas, e ao que parece com maior razão, Rosa
Júnior21 entende que o Código Civil de 2002 inseriu no ordenamento jurídico brasileiro, com a redação de
seu artigo 903, a figura do título atípico ou inominado, título de crédito criado pelos costumes, sem lei
específica, que se subordina aos princípios gerais instituídos no Código Civil. Mencionado autor, citando
Paulo Armínio Tavares Buechele, afirma22:
Tal entendimento deve prevalecer na medida em que a prática comercial tende à criação
de novos títulos de crédito ainda não sistematizados. Conforme Fábio Ulhoa Coelho 23, não se pode dizer que
os títulos inominados “sejam irregulares, ou que não possam ser criados”. A exemplo cita o “FICA ou vaca-
papel”, título de crédito amplamente utilizado em negócios pecuários na região Centro-Oeste, e válido como
tal, porém, produto exclusivo de costumes.
15
Ibidem, p. 479.
16
Penteado 1995: 33, apud COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2004, p. 481.
17
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 483.
18
In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 26.
19
Apud COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 24.
20
Ibidem, p. 24.
21
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 35.
22
ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 35.
23
In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 483.
10
legislação especial de cada título, o que “aumenta-se a barafunda legislativa que graça o país” 24, criticando ao
concluir:
Como dito anteriormente, uma das funções primordiais dos títulos de crédito é facilitar a
circulação dos direitos creditórios neles inseridos, maximizando, assim, as relações econômicas, ao permitir
à grande número de pessoas o acesso ao crédito.
Fran Martins27 bem explica tal objetivo ao afirmar que “nos títulos de crédito, as ordens
ou promessas de pagamento não são feitas exclusivamente para benefício de uma pessoa certa, mas de
quaisquer outras que, legitimamente, se tornem proprietárias dos títulos”.
Nesse diapasão surgiu o endosso, meio próprio de transferência dos direitos nos títulos de
crédito incorporados, cuja finalidade é facilitar a circulação destes, uma vez que se dá com a simples
assinatura do legítimo possuidor (endossante) no verso ou anverso do título, transferindo a outem
(endossatário) sua titularidade.
Ressalte-se que o endosso só pode ser feito no próprio título, sendo vedada a utilização de
documento à parte. Dessa forma, em casos de eventual falta de espaço, poderá ser anexada uma folha para a
continuação da cadeia de endossos, como possibilita o artigo 13 da LUG, dando-se a esta o nome de alongue,
alongamento ou extensão.
24
In Direito civil: contratos em espécie, vol. 1. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 454.
25
In Direito civil: contratos em espécie, vol. 1. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 447.
26
In Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: F. Bastos s/a, 1957, p. 311.
27
In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 14.
11
Ao transferir o título, salvo disposição expressa em contrário, o endossante se vincula a
seu adimplemento, assumindo uma obrigação solidária28 aos demais coobrigados.
Tendo-se em vista que não há sucessão jurídica entre endossante e endossatário, cada
obrigação constante da cadeia de endossos é autônoma. Assim, ao endossatário de boa-fé não podem ser
opostas exceções pessoais que eventualmente existirem entre as partes das relações jurídicas ocorridas em
dita cadeia.
Muito embora o Código Civil, no artigo 914, estabeleça que “ressalvada cláusula
expressa em contrário, constante de endosso, não responde o endossante pelo cumprimento da prestação
constante do título”, tal regra não deve ser observada em relação aos títulos hoje existentes, haja vista a
expressa regulamentação em contrário nas leis especiais que regem a matéria. Assim, para se isentar de
responsabilidade no cumprimento da obrigação incorporada à cártula, o endossante deve utilizar-se do
endosso com a cláusula “sem garantia”, conforme lhe faculta o artigo 15 da LUG. Pode também proibir novo
endosso, oportunidade em que não garantirá “o pagamento às pessoas a quem a letra for posteriormente
endossada” (art. 15 da LUG).
Destaca-se o fato de todos os títulos de crédito poderem circular por meio do endosso,
excetuando-se somente os que possuem expressamente a cláusula não à ordem, que, no entanto, não proíbe a
circulação da cártula, mas apenas altera o regime jurídico a ser aplicado, que será o de cessão civil, e não o
mencionado acima, próprio do direito cambiário. Deste modo, faz-se importante colacionar as diferenças
desses dois institutos.
Inicialmente, tem-se o fato do endosso ser ato unilateral e formal, enquanto a cessão é
contrato bilateral e pode-se revestir de qualquer forma, inclusive em documento apartado do título.
Por fim, tem-se que, em regra, o endossante responde não só pela existência da obrigação,
mas também por sua solvabilidade; enquanto na cessão, o cedente responde apenas pela existência do crédito
ao tempo de sua transferência, não se obrigando ao adimplemento deste.
28
A solidariedade cambial significa dizer que todos que lançarem sua assinatura no título (sacador, aceitante, avalistas
e endossantes) são obrigados solidariamente por seu adimplemento. Assim, o beneficiário poderá acionar qualquer
dos coobrigados existentes na cadeia de endossos. Do mesmo modo, aquele que pagar a obrigação poderá exigir sua
totalidade de seus obrigados anteriores, exercendo o chamado direito regressivo, o que desonerará os obrigados
posteriores.
Note-se que a solidariedade cambial difere-se da civil, vez que nesta, o direito de regresso daquele que pagou
integralmente a dívida se dá somente em relação à quota parte a que não era obrigado. Maria Helena Diniz, in Curso
de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações, vol. 2. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 172, explica que
“o co-devedor que satisfez espontânea ou compulsoriamente a dívida, por inteiro, terá o direito de exigir de cada um
dos coobrigados a sua quota [...]. Tem o direito de regresso, pois cumpriu além de sua parte (RF, 90:761), e por isso
poderá reclamar dos outros a quota correspondente, os quais deverão reembolsá-lo da importância que pagou para
extinguir a obrigação solidária passiva.”
12
Rosa Júnior29 lembra ainda que quanto mais endossos existir no título de crédito, maior
será a garantia de seu portador, na medida em que cada endossante é responsável por seu pagamento.
Diferentemente, a multiplicidade de cessões diminui a segurança do título, pois o beneficiário ficará sempre
sujeito a todas as exceções que poderão ser opostas pelo devedor e por todos os cedentes.
1.4 Classificação
Tem-se por títulos abstratos, aqueles que podem ser emitidos livremente, já que a lei não
predetermina as causas de sua emissão. Uma vez criados, tais títulos se distanciam de sua causa debendi, ou
seja, da relação fundamental que embasou sua origem. Assim, posto em circulação, o direito inserido no
título vale por si só, o que impede o emitente de opor exceções pessoais que tinha contra o credor originário
a terceiro de boa-fé. Exemplos destes títulos são a letra de câmbio, a nota promissória e o cheque.
Já os títulos causais só podem ser emitidos com base em uma causa fixada em lei. Eles
“só existem em função de um determinado negócio fundamental” 31. Assim, neles deve constar referências
sobre o negócio inicial. Nas palavras de Rubens Requião 32, “títulos causais são aqueles que estão vinculados,
como um cordão umbilical, à sua origem”.
O exemplo típico de título causal é a duplicata, que só pode ser emitida se existir uma
compra e venda ou uma prestação de serviços a prazo, nos moldes dos artigos 1º e 20 da Lei das Duplicatas
(Lei nº 5.474/68).
Destaca ainda Rosa Júnior33 que, uma vez aceita, a duplicata se libera de sua causa
debendi, tornando-se um título abstrato e podendo circular como tal, o que impede o devedor de alegar em
embargos, vícios da relação jurídica fundamental.
Por fim, na classificação posta por Fábio Ulhoa Coelho 34, tem-se ainda os títulos
limitados, que “são os que não podem ser emitidos em algumas hipóteses circunscritas pela lei”. O
doutrinador cita como exemplo a impossibilidade de emissão da letra de câmbio para documentar o crédito
do vendedor pela importância faturada ao comprador (artigo 2º da Lei das Duplicatas).
Títulos nominativos, conforme disposto no artigo 921 do Código Civil, são aqueles
emitidos em favor de pessoa cujo nome conste do registro do emitente, sendo que sua circulação se faz
mediante termo nesse registro, assinado pelo titular e pelo adquirente (art. 922 do CC). Assim, a
transferência ocorrerá apenas por endosso em preto ou por cessão, e o devedor não reconhecerá como credor
pessoa diversa da especificada em seus registros.
Wille Duarte Costa36 critica tal classificação ao dizer que os autores que a aceita, apenas
cita como exemplo de títulos nominativos as ações de companhia que, para ele, não podem ser consideradas
títulos de crédito por não representarem operações de crédito 37. Assim, explica que “seu possuidor só adquire
os direitos de acionista. O acionista pode votar, ser votado, participar dos lucros sociais, mas não pode
acionar a companhia para receber o valor de suas ações. Quando muito, poderá alienar suas ações a terceiros
ou em Bolsa”.
Deste modo, tal doutrinador considera ser um “absurdo flagrante” a inserção dessa
classificação dentre os títulos de crédito, entendimento esse bastante plausível, por não serem as ações de
companhia verdadeiros títulos de crédito. Isso porque a elas não se aplicam seus princípios norteadores:
Passando-se à segunda espécie da classificação, têm-se como títulos à ordem, aqueles que
trazem o nome do beneficiário juntamente com uma cláusula indicando que seus direitos inerentes podem ser
transmitidos a outrem “(‘Pague ao sr. F. ou à sua ordem...’)” 39. Assim, sua transferência se dá por meio de
endosso.
Há títulos que possuem essa cláusula implicitamente, como a letra de câmbio e a nota
promissória, por dispor o artigo 11 da Lei Uniforme de Genebra que “toda letra de câmbio, mesmo que não
envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso”, disposição também aplicável
à nota promissória por força do artigo 77 da mesma lei. Do mesmo modo, a Lei do Cheque, em seu artigo 17,
reza que “o cheque pagável a pessoa nomeada, com ou sem cláusula expressa ‘à ordem’, é transmissível por
via de endosso”. Assim, independentemente de cláusula expressa, tais títulos podem circular por meio de
endosso.
36
In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 76.
37
Entendimento também partilhado por Rosa Júnior in Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 83,
ao afirmar que “não nos referimos nesta classificação aos títulos nominativos porque não se confundem com os
verdadeiros títulos de crédito, vez que sua propriedade prova-se pelo registro do nome do seu titular no livro de
registro do emitente, como, por exemplo, a sociedade anônima, quanto às ações nominativas (LSA, art. 100, I). Além
do mais, a sua transferência não se dá por endosso mas por termo de cessão, lavrado também no livro próprio da
companhia (LSA, art. 100, II).”
No mesmo sentido, Fábio Ulhoa Coelho in Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
383, ao comentar mencionada classificação coloca que “a solução de Vivante é aplicável ao direito italiano, tendo em
vista que o Codice Civile a adota de forma expressa. Para o direito brasileiro, entretanto, não faz sentido”. [grifo do
autor]
38
Tavares Borba apud ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
77.
39
MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 15.
14
primeiro beneficiário, mas com todos aqueles que vierem a adquiri-la, já que os títulos de crédito são
destinados à circulação.
Por fim, têm-se os títulos não à ordem, que são aqueles cuja circulação se dá apenas por
meio de cessão civil de crédito, já que proíbe o endosso. Assim, apesar de prejudicar um dos escopos dos
títulos de crédito, que é a livre circulação por meio do endosso, esta cláusula não o descaracteriza, já que a
operação de crédito continuará existindo.
O vocábulo título tem sua origem no latim titulus, cujo significado é inscrição. Conforme
explica Mamede40, em seu sentido estrito, tal palavra traduz a idéia de representação física de um sinal
identificador. Um texto que adere à coisa ou à pessoa.
Além dos mencionados no conceito de Vivante, há autores que elencam outros princípios
inerentes aos títulos de crédito, como a abstração, a independência e a inoponibilidade das exceções pessoais.
40
In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 23.
41
Ibidem, p. 24.
42
Segundo lição de Celso Marcelo de Oliveira, in Tratado de direito empresarial brasileiro. Campinas: LZN, 2004,
p. 130, o Direito Cambial ou Direito Cambiário, que regula os títulos de crédito, pode ser considerado um dos ramos
do Direito Empresarial (antigo Direito Comercial), vez que o crédito, muito embora amplamente utilizado nas
relações civis, tem natureza mercantil, haja vista que “a princípio, o crédito destinava-se a financiar o consumo e
depois, além do consumo, a produção. Financiando as atividades de produção e venda de mercadorias e serviços,
tornou-se o crédito um incentivador da economia, assumindo um aspecto mercantil, como ainda de natureza
mercantil será o direito que dele se ocupar.”
43
César Vivante apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.
15
Fábio Ulhoa Coelho44, ao comentar a importância desses princípios, fundamenta dizendo
que:
Desse modo, passa-se agora ao estudo desses princípios, cuja importância é fundamental
para a caracterização dos títulos de crédito, na medida em que visam proteger o adquirente dos direitos neles
representados, viabilizando a circulação dos direitos creditórios, fim precípuo desses títulos.
2.1 Cartularidade
Isto porque é essa materialização do crédito, por meio de sua representação gráfica, que
permite a identificação de sua existência e de sua titularidade, viabilizando a negociação e, portanto, sua
circulação.
De acordo com Amador Paes de Almeida47, “em razão da cartularidade, título e direito se
confundem, tornando imprescindível o documento para o exercício do direito que nele se contém”.
Tamanha é a importância desse princípio que não é admitida nem mesmo a cópia
autenticada do documento para o exercício dos direitos nele mencionados, já que não haverá certeza quanto à
titularidade do crédito, haja vista que o título pode ter sido endossado após a extração de sua cópia. Deste
modo, sem a exibição material do título de crédito, não pode o credor exigir o direito nele incorporado.
Assim, a cópia do título não serve para embasar execução forçada, conforme se extrai do
artigo 614, inciso I, do Código de Processo Civil que assim reza: “cumpre ao credor, ao requerer a execução,
pedir a citação do devedor e instruir a petição inicial: I – com o título executivo, salvo se ela se fundar em
sentença (artigo 584)”.
44
In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 372.
45
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 372.
46
In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.
47
In Teoria e prática dos títulos de crédito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4.
48
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 337822/RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Brasília, DF, 20
nov. 2001. DJ 18/02/2002, p. 424.
49
In MARCATO, Antônio Carlos (coord.). Código de processo civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2004, p. 1822.
16
Na execução de título extrajudicial, o título deve acompanhar a petição inicial, sob
pena de indeferimento. [...] Pelo aspecto formal do dispositivo em análise, o
exeqüente deve juntar o original do título. Sobretudo nas cambiais, a jurisprudência
rejeita execução instruída com cópia reprográfica do título, porque ‘restando em
poder do credor, pode ensejar a circulação’ (STJ, 3ª T. REsp 33530-2-PR,
26.4.1993, rel. Min. Dias Trindade, DJU 24.3.1993, p. 10008). A circulação da
cambial permite a alteração da legitimidade ativa da execução.
Desse modo, para o exercício do direito creditório, seu titular deve comprovar que se
encontra na posse do documento apresentando-o ao devedor, ou em juízo, no caso de execução forçada. Por
tal motivo, o título de crédito é considerado um título de apresentação. Vale dizer que o beneficiário só pode
exigir o cumprimento da obrigação mediante a apresentação do título para que o devedor verifique:
a) se o documento reveste-se dos requisitos essenciais para que valha como título
de crédito; b) se o valor cobrado pelo portador é aquele contido no título; c) se a
pessoa que apresenta o título é ‘portadora legítima’, isto é, se justifica o seu direito
por uma cadeia regular de endossos (LUG, art. 16, al. 1ª, e LC, art. 22). 50
Assim, ao pagar o título, o devedor deve exigir que esse lhe seja entregue, tanto para
possibilitar o exercício de eventuais direitos de regressos existentes; bem como para evitar que haja
circulação da cártula após seu adimplemento, o que o obrigaria a pagar novamente, já que, em conformidade
com os princípios de regência dos títulos de crédito, considera-se inaplicável aos títulos de crédito o disposto
no artigo 309 do Código Civil, que tem por teor: “o pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido,
ainda provado depois que não era credor”.
Messineo, citado por Fábio Ulhoa Coelho 57 explica que “o direito decorrente do título é
literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo
exclusivamente o teor do título”.
Deste modo, quem adquire a cártula possui extrema segurança quanto a seu valor e a seus
devedores, podendo cobrar de todos, e somente dos que apuseram sua assinatura na mesma. O direito é
limitado pelo o que na cártula se contém. “Assim, só existe para o mundo cambiário o que está expresso no
título”58.
se a titularidade do direito não repousa sobre uma relação jurídica estabelecida com
o devedor, nem sobre a sucessão dessa relação, mas sobre a propriedade do título, é
natural que os limites do direito sejam expressos pela letra do documento, tendo em
vista a incorporação do crédito ao documento.
No presente julgado, o Ministro relator salientou o fato de que eventual quitação parcial
do débito representado pelo título deveria estar anotada na cártula e, como tal não ocorreu, não há
57
Apud Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 374.
58
ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 60.
59
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 61.
60
MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol.1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 7.
61
In Tratado de direito empresarial brasileiro. Campinas: LZN, 2004, p. 142.
62
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. AgRg no Ag 436603/SP. Relator: Antônio de Pádua Ribeiro.
Brasília, DF, 05 set. 2002. DJ 28/10/2002, p. 313.
18
necessidade de oitiva de testemunhas na tentativa de provar alegada quitação, uma vez que se conclui pela
inocorrência dessa, haja vista o princípio da literalidade que informa o direito cambial.
2.3 Autonomia
Ainda segundo o conceito de Vivante dantes transcrito, os títulos de crédito têm como
característica a autonomia das obrigações cambiais, o que significa dizer que o cumprimento de uma
obrigação assumida no título não está vinculado a qualquer outra nele existente. Desse modo, não pode o
devedor alegar contra terceiro de boa-fé, visando se esquivar do pagamento, vício em relação constituída
antes da sua, tampouco na relação fundamental que embasou a emissão do título.
Assim tem-se que “cada obrigação que deriva do título é autônoma em relação às
demais”63, o que permite a segurança na circulação da cártula.
Importante ressaltar que muitos doutrinadores, bem como a jurisprudência, considera que
tal princípio traduz, além da autonomia das diversas obrigações assumidas no título, a autonomia do próprio
título em relação à sua causa debendi, ou seja, ao negócio jurídico que o originou 66. Essa segunda
interpretação é chamada, por alguns autores, de abstração dos títulos de crédito, e por outros, de princípio da
independência, como a seguir se demonstrará.
Nesse sentido, a autonomia dos títulos de crédito é explicada por serem esses
constitutivos de nova obrigação, diversa do negócio jurídico que fundamentou sua criação. Rosa Júnior 67
explica dizendo que “as relações causal e cartular não se confundem, embora coexistam harmonicamente
porque a criação do título de crédito não implica em novação no que toca à relação causal, vez que esta não
se extingue”. [grifo do autor]
Ademais, tem-se que quem se obriga, o faz por ato unilateral de vontade, o que impede
que posteriormente venha alegar, na tentativa de se eximir do adimplemento da obrigação, matéria diversa da
estipulada no artigo 51 do Decreto 2.044/1908 que assim dispõe: “na ação cambial, somente é admissível
defesa fundada no direito pessoal do réu contra o autor, em defeito de forma do título e na falta de requisito
necessário ao exercício da ação”.
Deste modo, o devedor só pode opor as exceções pessoais que possui com quem se
relaciona diretamente no título. E, segundo ensinamento de Rosa Júnior 70, essa autorização se explica por
evitar que o devedor cambiário pague o constante do título e em seguida intente ação extracambial para
reaver o valor pago, no caso do credor cambiário ter descumprido a obrigação assumida na relação causal.
Referido autor conclui dizendo que “a possibilidade legal do devedor poder opor exceção
pessoal ao credor, com quem se relaciona diretamente no título, não implica em negação da autonomia
cambiária”, mas prestígio ao princípio da economia processual.
69
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 57169/RS. Relator: Carlos Alberto Menezes Direito.
Brasília, DF, 10 mar. 1997. DJ 22/04/1997, p. 14422.
70
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 67.
20
contra o vendedor, não tem efeito contra o exeqüente, portador dos cheques, que
não integrou a lide. III. Recurso especial conhecido e provido, para julgar
improcedentes os embargos à arrematação, ressalvado o direito de regresso do
recorrido contra o vendedor do imóvel, que endossou os cheques ao terceiro de
boa-fé.71
O fato trazido à colação trata da emissão de cheques para pagamento de imóvel, que
foram posteriormente sustados, por descobrir o emitente que o vendedor não era legítimo proprietário do
imóvel objeto do contrato de compra e venda. Ocorre que os títulos já haviam sido endossados e, como as
obrigações assumidas perante a cártula são autônomas entre si, negou o colendo Superior Tribunal de Justiça
a possibilidade do emitente se esquivar do pagamento ao portador de boa-fé, alegando o não cumprimento do
contrato da relação fundamental.
Deste modo, não obstante o juízo de primeira instância ter declarado a nulidade dos
títulos cambiais emitidos pelo autor para cumprimento de contrato que foi rescindido judicialmente,
entendeu o STJ que tal nulidade aplica-se somente às partes do negócio jurídico anulado, não atingindo, por
conseguinte, o terceiro portador de boa-fé dos cheques.
Acontece, porém, que a relação que se põe nos presentes autos, que cuidam de
embargos à arrematação, se dá entre o comprador-emitente das cártulas, Manoel
Cândido Ferreira, e o portador dos cheques, Walter de Mello. O acórdão do STJ
discutiu exatamente esta relação litigiosa, e validou os cheques como títulos
autônomos. O mesmo não ocorreu, todavia, com a decisão singular que apreciou a
ação de rescisão do compromisso. Ela, como frisado, desconstituiu a avença e
declarou nulos os cheques, mas isso apenas com referência às partes então
contratantes, José Ferreira da Silva (vendedor) e Manoel Cândido Ferreira
(comprador). [grifo do autor]
2.4 Abstração
Há autores que elencam ainda, dentre os princípios caracterizadores dos títulos de crédito,
a abstração, que deve ser entendida como a desvinculação do título ao negócio jurídico a ele subjacente.
Whitaker, citado por Amador Paes de Almeida 72, ao explicar a eficácia cambiária que
possui o título, independentemente de sua causa debendi, o que ocorre devido ao princípio da abstração,
coloca que “a obrigação cambial não é, certamente, uma obrigação sem causa, mas é uma obrigação cuja
causa é a letra, e sobre a causa da letra nenhuma influência direta pode exercer.”
Pelo presente princípio tem-se que os títulos de crédito originam direitos abstratos dos
existentes na relação fundamental, o que leva à conclusão de que esta não poderá ser alegada na tentativa de
71
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 50607/MT. Relator: Aldir Passarinho Júnior. Brasília,
DF, 04 nov. 1999. DJ 06/12/1999, p. 93.
72
Apud Teoria e prática dos títulos de crédito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 6.
73
In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 376.
21
invalidar a prestação constante da cártula, tendo em vista que para exigi-la, não é necessário o cumprimento
de qualquer contraprestação.
Deste modo, não interessa para o portador de boa-fé a ocorrência de vícios ou eventuais
nulidades na relação fundamental que embasou a emissão do título, já que, uma vez posto em circulação, tais
defeitos não poderão ser opostos para o não cumprimento da obrigação nele materializada. Assim, se protege
a circulação do crédito, que, como anteriormente dito, é o escopo dos títulos de crédito. Este é o ensinamento
de Ascarelli74, verbis:
A cambial visa tornar possível a circulação desse crédito. É essa a sua função
econômica e é esse o interesse que tipicamente preside a sua criação. Ela, portanto,
deve ser disciplinada de modo a poder ligar-se a operações diversas e a poder,
preenchendo sempre aquela função, satisfazer os vários fins exigidos pelas
diversidades das situações concretas; isso equivale justamente a afirmar a sua
abstração.
Esclarece Bulgarelli76 que “a causa do título causal só poderá ser oposta aos que foram
parte na relação fundamental, e ao terceiro ciente do vício do negócio fundamental”, ajudando a proteger a
circulação também desses títulos. No entanto, admitindo tal teoria, não haveria diferença significativa entre a
aplicação do princípio da abstração nos títulos abstratos e nos títulos causais, uma vez que em ambos ela se
revelaria após a circulação.
Assim, melhor entendimento é o defendido por Rosa Júnior 77 que considera o título
causal vinculado à causa de sua criação predeterminada em lei, sendo que, no caso da duplicata, ela se torna
um título abstrato com a aceitação do sacado, que a libera de sua causa debendi.
74
Apud BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 61.
75
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 377.
76
In Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 65.
77
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 80.
78
In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 551.
79
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 43849/RS. Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira.
Brasília, DF, 28 mar. 1994. DJ 09/05/1994, p. 10880.
22
mercantil subjacente. [...] O aceite [...] constitui requisito sem o qual a duplicata
não se reveste de abstração.
Assim, há de se entender que, apesar da duplicata ser um título causal, ela pode se
desvincular da causa de sua emissão revestindo-se do princípio da abstração, porém, para que tal ocorra não
basta sua circulação, mas sua aceitação pelo sacado, que participou do negócio fundamental.
2.5 Independência
No entanto, a característica ora em comento não é comum a todos os títulos, eis que
alguns dependem de documentos complementares, a exemplo da cédula de crédito rural.
Cumpre esclarecer que nem todos os autores adota tal princípio como mais um atributo
dos títulos de crédito, já que inserem sua conceituação nos princípios da autonomia, ou da abstração, como
também o faz a jurisprudência pátria, em conformidade com os acórdãos anteriormente citados. No entanto,
80
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 1ª Turma Cível. Acórdão nº 179455.
Relator: José Divino de Oliveira. Brasília, DF, 04 ago. 2003. DJ 15/10/2003, p. 30.
81
In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 44.
82
In Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 59.
23
há aqueles que preferem diferenciá-lo, a exemplo de Rubens Requião 83, Rosa Júnior84, Bulgarelli85 e
Mamede86, entendendo serem conceitos complementares.
Devido a tal atributo, é defeso ao executado alegar, em embargos, matérias que não
constem de sua relação pessoal com o exeqüente. Destarte, circulada a cártula, o devedor não pode se escusar
de seu pagamento argumentando exceções que possui com o sacador ou com outro obrigado do título. Assim
determina o artigo 17 da LUG, verbis:
Entretanto, ressalte-se, tal regra não será observada se o beneficiário do título estiver
imbuído de má-fé, oportunidade em que, além das exceções advindas da própria cártula, como defeito de
forma, o devedor poderá opor as que possuía contra o anterior portador.
O professor Fábio Ulhoa Coelho89 entende que, para a caracterização da má-fé, basta que
o adquirente do título tenha ciência da existência de exceções que poderão ser opostas ao endossante. Assim,
não se exige a comprovação de conluio entre endossante e endossatário para que o devedor afaste a
inoponibilidade e alegue contra o último as defesas que possui contra o primeiro. Importante é a conclusão
de referido autor ao ensinar:
Ademais, como é cediço, a má-fé não se presume. Não basta a simples alegação de que
havia prévio conhecimento pelo adquirente do descumprimento da relação fundamental, necessário se faz a
efetiva demonstração da finalidade de prejudicar o devedor.
Aliás, a tendência do direito moderno é priorizar a intenção e a boa-fé das partes em suas
relações privadas, buscando, assim, a justiça, com o escopo de se atingir os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil traçados no artigo 3º da Constituição Federal, como a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades
sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação. Outrossim, deve-se priorizar
também a dignidade da pessoa humana, fundamento elencado no artigo 1º da Carta Constitucional.
Mamede91 explica a relativização pela jurisprudência dos princípios dos títulos de crédito
expondo:
90
In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 13.
91
In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 46.
25
guardando todos os envolvidos os princípios da probidade e boa-fé (arts. 421 e 422
do Código Civil).
Assim, os rígidos princípios dos títulos de crédito vêm sendo observados com
temperamentos pela jurisprudência pátria, a fim de se evitar que eles encubram certas injustiças sob o rótulo
da observância à forma.
Desse modo, em situações excepcionais mitiga-se alguns dos princípios dos títulos de
crédito, como a abstração e a independência, para se buscar na origem da cártula a causa de sua emissão, a
fim de se constatar a conduta dos contratantes, é dizer, se agiram imbuídos da necessária boa-fé objetiva, e
dentro dos limites traçados pela função social do contrato.
Contudo, mister ressaltar também a ocorrência de exceções de alguns dos princípios dos
títulos de crédito pela própria legislação, o que ressalta a natureza não absoluta de mencionados princípios.
O advento do Código Civil de 2002 fez aumentar antiga discussão doutrinária sobre a
possibilidade de emissão de títulos de crédito virtuais, ou seja, sem materialização física em cártula.
Isso ocorreu por dispor o artigo 889 sobre os requisitos mínimos que devem estar
presentes nos títulos, quais sejam, a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a
assinatura do emitente; estabelecendo seu parágrafo terceiro que “o título poderá ser emitido a partir dos
caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente,
observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”.
92
In Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil, vol. 7. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 513-516.
26
Assim, autores que já defendiam a executividade de títulos virtuais – em especial da
duplicata virtual, por ter se tornado praxe mercantil sua utilização – fundamentaram seu entendimento no
artigo 889, § 3º do Código Civil, como o fez Rosa Júnior93:
Ademais, o artigo 15, inciso II da Lei das Duplicatas, faculta ao credor a realização da
cobrança judicial da duplicata ou triplicata não aceita, desde que acompanhada do protesto, de documento
que comprove a entrega das mercadorias e, desde que o sacado não tenha recusado legitimamente a aceitar o
título, ou seja, não esteja amparado por um dos motivos previstos nos artigos 7º e 8º da mesma lei 94. Tais
regras também valem para as duplicatas enviadas para aceite e não devolvidas, protestadas por indicações
(art. 15, § 2º, LD), oportunidade em que o título não será juntado na execução por impossibilidade fática, vez
que estará retido pelo devedor.
93
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 37.
94
Art. 7º A duplicata, quando não for à vista, deverá ser devolvida pelo comprador ao apresentante dentro do prazo de
10 (dez) dias,contador da data de sua apresentação, devidamente assinada ou acompanhada de declaração, por
escrito, contendo as razões da falta do aceite.
Art. 8º O comprador só poderá deixar de aceitar a duplicata por motivo de:
I – avaria ou não-recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não entregues por sua conta e risco;
II – vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias, devidamente comprovados;
III – divergência nos prazos ou nos preço ajustados.
27
3.1.1Entendimento doutrinário
Wille Duarte Costa95 tem posicionamento contrário à prática aqui referida, por entender
que, ao não enviar a duplicata para aceite, o sacador impede a aplicação dos artigos 6º, 7º e principalmente
do artigo 8º da Lei das Duplicatas, pois não oportuniza ao sacado a possibilidade de impugnar o título,
deixando de aceitá-lo por avaria, não-recebimento, vícios ou defeitos nas mercadorias, o que poderia
“impedir uma execução infundada ou uma cobrança que mereça melhor exame por via de uma ação de
conhecimento”. O autor ressalta ainda:
Se a duplicata não foi emitida, nem foi remetida, como manda a lei, ao devedor
para que aceite ou, sendo o caso, a recuse motivadamente, não há falar em
execução de triplicata ou de indicações feitas ao cartório de protestos, pois não se
atenderam aos requisitos legais elementares dos títulos de crédito.
Não obstante a lei em momento algum permitir a execução judicial sem a duplicata por
ausência de sua extração, os institutos do protesto por indicações e da execução da duplicata não aceita são
amplamente utilizados para esse fim, vez que o envio dos dados pode ser feito por meio magnético. Assim,
torna-se mais fácil para o empresário a não emissão da duplicata materializada, passando-se apenas os dados
a ela referentes (ao banco para fins de desconto, cobrança etc, e ao cartório para protesto).
Por fim, importante citar a constatação de Amadeu José Ferreira 101 sobre a tendência
mundial de desmaterialização dos títulos de crédito:
No que respeita à letra de câmbio é hoje cada vez mais limitada a tendência para a
sua circulação, em particular através da utilização do chamado sistema de
truncagem, isto é, da imobilização do documento original numa instituição de
crédito, apenas passando a circular um sinal em fita magnética. Esse sistema é já
praticado em vários países e está consagrado legislativamente. (...) Também desde
há muito se enveredou pela truncagem dos cheques. Trata-se da desmaterialização
de uma das suas fases de circulação: o título é transformado numa mensagem
electrónica, enquanto o documento original fica retido junto do sujeito que envia a
mensagem, o banco que recebe o cheque.
Assim, não é extraído o título, mas sim apenas enviados por meio eletrônico os
dados do mesmo à instituição bancária que imprime o boleto e depois manda este a
cartório para protesto.
Embora seja uma prática muito difundida, é certo que nunca, nem nos mais áureos
tempos do direito comercial, quando este era julgado por tribunais de comércio,
exclusivo de comerciantes, onde o costume chegava a revelar a lei, foi o costume
suficiente para a criação de título executivo.
O título executivo tem seu fundamento na lei e só nela, não existindo previsão legal
para a criação de títulos por meio eletrônico.
103
Os acórdãos aqui colacionados referem-se a julgados sob a vigência do Decreto-Lei 7.661/45, antiga Lei de
Falências, a qual determinava em seu artigo 1º: “considera-se falido o comerciante que, sem relevante razão de
direito, não paga no vencimento obrigação líquida, constante de título que legitime a ação executiva”. No entanto, a
existência do título executivo continua sendo requisito para um dos fundamentos da decretação da quebra sob a égide
da lei atual, nos dizeres do artigo 94, inciso I da Lei 11.101/05, a nova Lei de Falências: “será decretada a falência do
devedor que: I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título
ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do
pedido de falência”.
104
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 2ª Turma Cível. Acórdão nº 205574.
Relator: Carmelita Brasil. Brasília, DF, 25 out. 2004. DJ 03/02/2005, p. 44.
30
mercado, duplicata escritural, nome aliás inadequado uma vez que refere-se à
inscrição do título em livro, o que não acontece na prática.
Várias são as decisões nesse sentido, entendendo o TJDFT que o boleto bancário não é
título executivo, não podendo, portanto, ser protestado em substituição à duplicata. Do mesmo modo, exige-
se, para que o protesto por indicações seja considerado válido, a juntada da duplicata sem o aceite, ou a
comprovação do envio e de sua retenção pelo sacado. Assim, o simples comprovante de entrega das
mercadorias com o instrumento de protesto por indicações não basta para lastrear ação executiva se não
devidamente justificada a falta da duplicata.
Consoante se sabe, a simples compra e venda mercantil não é capaz de gerar direito
líquido, certo e exigível capaz de instruir pedido de falência.
Dessa forma, o envio da duplicata ao sacado para o aceite é medida que se impõe
como uma forma de garantia para o devedor, face ao caráter unilateral da emissão
do título.
O Superior Tribunal de Justiça, nas poucas vezes que se manifestou sobre o tema,
demonstrou inclinação também para esse entendimento, ou seja, diverso do sustentado pelo TJDFT. Assim
exemplifica o voto dado pelo Ministro Barros Monteiro, relator do Recurso Especial 228637 108 que, à
unanimidade, reformou o acórdão que confirmara sentença de indeferimento da inicial em pedido de falência
105
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 2ª Turma Cível. Acórdão nº 182157.
Relator: Adelith de Carvalho Lopes. Brasília, DF, 20 out. 2003. DJ 26/11/2003, p. 37.
106
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 1ª Câmara de Direito Privado. APC nº 81.500-4/0.
Relator: Gildo dos Santos. São Paulo, SP, 02 jun. 1998.
107
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. 5ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento
nº 70005233812. Relator: Leo Lima. Porto Alegre, RS, 15 mai. 2003.
31
por não ter comprovado o requerente o envio da duplicata para aceite, o que legitimaria o protesto por
indicações.
Esta Corte, de modo reiterado, tem entendido que a lei permite a execução e,
conseqüentemente o pedido de falência (art. 1º, § 3º, do Decreto-Lei nº 7.661, de
21.6.1945), sem a apresentação da duplicata ou triplicata, desde que a petição
venha acompanhada do comprovante do protesto e de documento hábil a
demonstrar a entrega da mercadoria (art. 15, §2º, da Lei nº 5.474, de 18.7.1968).
Nessa linha os REsp’s nºs 309.829-CE, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar;
40.078-RS, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp nº 119.263-SP,
de minha relatoria; e REsp nº 46.261-4/MG, Relator Ministro Costa Leite (in
RSTJ, vol. 62, pág. 441).
Apesar de haver vários posicionamentos nesse sentido, como ressaltado pelo Ministro
Barros Monteiro em seu voto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ainda não se encontra
pacificado, como comprova o aresto a seguir:
108
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 228637/SP. Relator: Barros Monteiro. Brasília, DF, 18
mar. 2004. DJ 07/06/2004, p. 229.
109
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 369808/DF. Relator: Castro Filho. Brasília, DF, 21
mai. 2002. DJ 24/06/2002, p. 229.
32
Aliás, pensamento diverso, seria negar a efetiva prestação jurisdicional em execuções de
duplicatas, na medida em que a evolução tecnológica permite maior praticidade na mobilização do crédito
por elas documentadas eletronicamente, além de simplificar a cobrança e reduzir os custos. Assim, o uso da
duplicata virtual tornou-se praxe dentre os empresários, razão suficiente para a flexibilização do formalismo
extremado, tendo-se em vista que não se podem fechar os olhos para a evolução social, eis que,
hodiernamente, com o estado atual da técnica, o argumento da vida (real), por vezes, supera o argumento
legal (formalismo). Ademais, o Direito deve servir à sociedade, e não o contrário.
Viu-se anteriormente que o princípio da literalidade faz com que valha apenas o escrito
no título de crédito. Dessa maneira, “atos documentados em instrumentos apartados, ainda que válidos e
eficazes entre os sujeitos diretamente envolvidos, não produzirão efeitos perante o portador do título.” 110
Ocorre que também há exceções ao princípio da literalidade, desta feita, postas pela
própria legislação cambiária.
Assim, a lei autoriza a quitação da duplicata em documento diverso, desde que esse
contenha referência expressa àquela. No entanto, conforme ressalta Eunápio Borges 111, a quitação dada em
separado não vale de prova bastante da extinção da obrigação em todas as circunstâncias. Isso porque, o
devedor somente deve pagar o título se lhe restituído. Dessa maneira, ao dispensar tal prerrogativa, corre o
risco de ver a cártula transmitida a adquirente de boa fé, oportunidade em que deverá novamente cumprir a
obrigação, em consonância com o princípio da autonomia das obrigações cambiais.
Como bem salientado por Fran Martins, o artigo 10 da Lei das Duplicatas permite, no
pagamento da duplicata, a dedução de créditos a favor do devedor resultantes de “devolução de mercadorias,
diferenças de preço, enganos verificados, pagamentos por conta e outros motivos assemelhados, desde que
devidamente autorizados”. Assim, ao não se observar literalmente o disposto na cártula, tem-se mais uma
exceção ao princípio da literalidade, pelo que coloca dito doutrinador:
110
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 374.
111
In Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 219-220.
112
BORGES, João Eunápio. Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 220.
33
que está escrito e nada mais ou menos do que está escrito (princípio de
literalidade)”. [grifo do autor]
Mais uma vez o princípio ora em comento é excepcionado no artigo 15, inciso II da Lei
das Duplicatas, já que consagra o aceite tácito, ou seja, permite a execução judicial da duplicata ou triplicata
não aceita, acompanhada do instrumento de protesto e do comprovante de entrega das mercadorias, desde
que a recusa não tenha se dado justificadamente.
Por fim, pode-se encontrar nova exceção ao princípio da literalidade na Lei Uniforme de
Genebra, por dispor seu artigo 29, última alínea, que o aceite dado em uma letra de câmbio, e riscado antes
de sua devolução, continuará produzindo efeitos, nos termos postos na cártula, em relação àqueles que o
sacado tiver informado por escrito a colocação de sua assinatura 113.
Rosa Júnior114 explica esse fenômeno aduzindo que “tal ocorre porque quem tomou
ciência do aceite já contava com a assunção da obrigação cambiária pelo sacado e o cancelamento pode lhe
acarretar prejuízos”. Assim, entende o doutrinador que a fonte da obrigação do aceitante para com aqueles
que tomaram por ele ciência do aceite, é uma convenção extracartular.
Explica-se: alguns autores, a exemplo de Fran Martins 115, Rubens Requião116 e Fábio
Ulhoa Coelho , entendem serem as obrigações cartulares autônomas não em relação ao título de crédito,
117
mas entre si. Assim, por serem independentes, o vício em uma delas não atinge as demais. No entanto, parte
da doutrina e a jurisprudência entendem que o princípio da autonomia traduz a separação do título com sua
origem, não podendo, devido à sua incidência, buscar na relação subjacente defesas para embargar eventual
execução forçada, tendo em vista as relações causais e cartulares não se confundirem.
Essa última interpretação é chamada por alguns de princípio da abstração 118, e por outros
de princípio da independência119, já que o título torna-se abstrato e independente do negócio jurídico que o
originou. Assim, as exceções relativas ao negócio fundamental, como inadimplência da obrigação ou
negócio ilícito, não poderão ser opostas perante o portador de boa-fé da cártula, visando o seu não
pagamento. Tem-se, então, que dos princípios anteriores – autonomia, abstração e independência – origina o
princípio da inoponibilidade das exceções pessoais.
Independentemente das diversas interpretações, não há como negar que esses quatro
princípios estão invariavelmente interligados, motivo pelo qual suas mitigações serão aqui analisadas
conjuntamente.
113
Conforme ensinamento de Rubens Requião, in Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 414, o disposto no art. 29, última alínea, da LUG, consagra a única exceção ao princípio formal de
inexistência de aceite em documento diverso da letra.
114
In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 201.
115
In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 09-10.
116
In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 360.
117
In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 375-376.
118
REQUIÃO, Rubens. Op. cit., p. 360; BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998,
p. 59; ALMEIDA, Amador Paes de. Teoria e prática dos títulos de crédito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4.
119
ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 71.
120
Apud BORGES, João Eunápio. Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 17.
34
3.3.1 Ausência de circulação
Dessa forma, dentre as partes do negócio jurídico que originou a cártula não há se falar
em abstração, o que permite a discussão do contrato antes do pagamento do débito.
No entanto, para que essa mitigação ocorra, há de estar o adquirente do título imbuído de
boa-fé, pois, se tiver conhecimento sobre fato na relação fundamental que ensejaria o não pagamento do
título e, no intuito de prejudicar o devedor, adquirir a cártula, a abstração não ocorrerá, e o devedor poderá
opor em desfavor do endossatário as exceções que possuía contra o endossante, a teor do artigo 17 da LUG.
Isso porque entendeu que, não obstante o artigo 32 da LUG estabelecer que a obrigação
do avalista “mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não
seja um vício de forma”, no presente caso o título não circulou, não incidindo, conseqüentemente, o princípio
da abstração cambiária.
Assim, suspensos os efeitos da relação fundamental, o credor não tem direito ao valor
representado na cártula e, o rigorismo extremado de se admitir, nesse caso, a autonomia da obrigação do
avalista, causaria dano reversível apenas após o exercício do direito de regresso por duas vezes, ou geraria o
locupletamento indevido do credor.
Destarte, não tendo circulado o título, o avalista da obrigação nele representada poderá
opor exceções referentes ao não cumprimento do contrato que o originou. Assim, o princípio da autonomia
das obrigações cambiárias é amenizado na tentativa de se alcançar uma decisão mais justa, tendo-se em vista
os inconvenientes que a sua observância causaria.
Assim, não basta o credor apresentar o título de crédito para ver reconhecida sua dívida,
outrossim, deve declinar sua origem, no intuito de se “impedir a fraude, o conluio e a primazia da má-fé,
assegurando o império da legalidade e o tratamento proporcional dos créditos” 124.
124
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2005.
36
Não há divergência jurisprudencial quanto à existência da mitigação ora relatada. Veja-se
o exemplo125:
O princípio da abstração é mitigado, mais uma vez, quando o título de crédito traz
expressa vinculação ao contrato que o originou, oportunidade em que eventual endossatário adquirirá direito
derivado, ou seja, sujeito às exceções advindas do negócio jurídico fundamental, mesmo que dele não tenha
participado.
Tem-se, então, que, consignada na cártula vinculação ao negócio subjacente, seu emitente
expressa vontade em retirar da mesma a abstração que lhe seria peculiar. Desse modo, caso endossada, os
direitos transmitidos não serão novos, mas sim derivados, como houvesse cessão civil.
Por fim, os princípios ora em comento também deverão ser relativizados quando há sérios
indícios de que a relação fundamental se constituiu em flagrante desrespeito à ordem jurídica, já que nesses
casos, a proteção do título de crédito por meio dos princípios cambiários serviria apenas para encobrir casos
de fraude e má-fé, solução que seria teratológica.
129
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 14012/RJ. Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira.
Brasília, DF, 10 ago. 1993. DJ 06/09/1993, p. 18034.
130
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 264850/SP. Relator: Nancy Andrighi. Brasília, DF, 15
dez. 2000. DJ 05/03/2001, p. 159.
38
esvaziamento do título pré-datado em poder de empresa de ‘factoring’, que o
recebeu por endosso. II. Honorários advocatícios já fixado em valor módico, não
cabendo ainda maior redução. III. Recurso especial não conhecido. 131
O precedente trazido julgou um caso em que chequem haviam sido emitidos para o
cumprimento de um contrato de compra e venda cujas mercadorias não foram entregues. Porém, um desses
cheques foi transmitido, via endosso, para empresa de factoring que, como terceira de boa-fé, pretendeu
executar o título.
Como a contraprestação do negócio jurídico inicial não foi solvida, tendo, inclusive,
caracterizado fraude pelo fechamento da empresa vendedora, não poderia o emitente das cártulas arcar com o
prejuízo, ou seja, quitar a dívida representada no cheque apenas por ele ter circulado.
O Ministro-Relator Aldir Passarinho Júnior citou parte do voto do aresto recorrido, o qual
transcreve-se agora:
Uma vez provado, como nos autos, o não cumprimento do contrato ao qual se acha
vinculado o título cobrado, entendo ser indevida a execução. Penso que, neste caso
em especial, deve o cheque pré-datado ter o mesmo tratamento que se dá à nota
promissória ligada a um contrato, podendo assim, o devedor opor-se ao pagamento
pelo não cumprimento do contrato.
Vê-se, no caso em tela, que, não obstante circulada a cártula, todos os julgadores
permitiram a mitigação dos princípios informadores dos títulos de crédito para possibilitar a discussão da
causa debendi e, conseqüentemente, permitir ao devedor opor as exceções pessoais que possuía com o
primeiro beneficiário, mesmo sendo o atual portador terceiro de boa-fé.
131
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 434433/MG. Relator: Aldir Passarinho Júnior. Brasília,
DF, 25 mar. 2003. DJ 23/06/2003, p. 378.
39
Assim ocorreu por ter sido o cheque emitido com base em negócio jurídico fraudulento,
violador da ordem jurídica, pelo que se entendeu que seu vício contaminou o título. Para tanto, utilizou-se
como justificativa, a analogia da vinculação da nota promissória a contrato de abertura de crédito, em que a
iliquidez desse é transmitida àquela; para vincular o cheque emitido à sua causa subjacente, sendo a ilicitude
dessa estendida àquele.
CONCLUSÃO
No entanto, esses princípios não são absolutos, sendo certo que ora a própria legislação os
excepciona e, por vezes, a jurisprudência também o faz.
Alia-se também a previsão constante do artigo 15, inciso II, da Lei das Duplicatas, que
admite a possibilidade de execução de duplicata ou triplicata não aceita acompanhada do instrumento de
protesto e de documento comprobatório da entrega das mercadorias. Assim, não obstante esses dispositivos
legais tratar de matérias específicas como a retenção da duplicata pelo devedor, ou sua não aceitação
injustificadamente, o que freqüentemente ocorre é a utilização deles nos casos em que a duplicata não foi
materialmente emitida.
Tem-se também o fato de, segundo o posicionamento de alguns estudiosos sobre o tema,
o artigo 903 do Código Civil de 2002 ter inserido no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de criação
de títulos de crédito atípicos, ou seja, exclusivos da praxe mercantil, sem legislação própria, que seriam
regidos pelas disposições gerais nesse Código fixadas.
Assim, poder-se-ia aplicar o disposto no artigo 889 do diploma civil, que possibilita a
emissão de títulos de crédito a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente.
132
Apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.
41
O princípio da literalidade também sofre algumas mitigações, dessa feita, pela própria
legislação cambiária. Ocorre, por exemplo, quando o artigo 9º da Lei nº 5.474/68 permite a quitação da
duplicata em documento dela apartado. Também, quando o artigo 10 dessa mesma Lei prevê a possibilidade
de dedução de créditos a favor do devedor da cártula quando se seu pagamento, se autorizado pelo credor.
O aceite tácito contemplado pelo artigo 15, inciso II da Lei das Duplicatas também é tido
como exceção ao princípio da literalidade. Por fim, mais uma exceção é trazida pelo artigo 29 da LUG, que
considera válido o aceite riscado, em relação aos que receberam anterior comunicado de que a assinatura
seria colocada no título.
A legislação falimentar (art. 9º, inciso II, Lei nº 11.101/05) também excepciona esses
princípios ao exigir, para a habilitação do crédito no processo de falência, a comprovação da origem da
dívida, a fim de se evitar conluio e má-fé, proporcionando tratamento justo aos credores.
Outra forma de se mitigar os princípios ora em comento dá-se quando o título de crédito é
vinculado expressamente ao contrato que o originou, oportunidade em que, segundo posicionamento
unânime doutrinário e jurisprudencial, o endossatário adquirirá direito derivado como se cessão civil fosse.
No entanto, essa mitigação só poderá ocorrer se, circulado o título, o endossatário tinha
condições de verificar a licitude do seu negócio fundamental. Esse é o caso das empresas de factoring, que
têm amplo poder para escolher as pessoas jurídicas com quem contratarão.
Porém, há de se ter extrema cautela na mitigação ora tratada, sob pena de se causar
insegurança jurídica ao se desproteger o instituto do título de crédito retirando-lhe seus princípios
caracterizadores, ou ver a injustiça reinar ao proteger título advindo de relação jurídica ilícita.
Assim, posta a controvérsia, deve-se prevalecer a solução que mais se aproxime com a
justiça, tendo-se sempre em vista a probidade, a boa-fé, a função social dos contratos, os bons costumes e a
intenção normativa, princípios básicos a serem seguidos para se alcançar os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil constantes do artigo 3º da Constituição Federal.
42
REFERÊNCIAS
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BORGES. João Eunápio. Títulos de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria geral das obrigações. 18. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. vol. 2.
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FERREIRA. Amadeu José. Valores mobiliários escriturais. Um novo modelo de representação e circulação
de direitos. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.
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São Paulo: Atlas, 2003.
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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: F. Bastos s/a, 1957.
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REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. II.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. direito civil: contratos em espécie. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. vol. III.