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O NECESSÁRIO PRECEDENTE ARBITRAL

O NECESSÁRIO PRECEDENTE ARBITRAL


Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 36/2013 | p. 295 - 315 | Jan - Mar / 2013
Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação | vol. 1/2014 | p. 1015 - 1037 | Set / 2014
DTR\2013\2511

Luiz Fernando Martins Kuyven


Doutor pela UFRGS. Doutor pela Universidade de Estrasburgo. Professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Advogado.

Área do Direito: Arbitragem


Resumo: Este estudo demonstra que o mecanismo do precedente é o único capaz de
garantir eficazmente que a arbitragem continue a se estabelecer como uma via
privilegiada para a resolução de disputas comerciais, propiciando segurança jurídica e
previsibilidade, sem jamais prejudicar a liberdade e a discricionariedade inerente à
função de árbitro. Para tanto, é necessário que as partes e os árbitros se conscientizem
da necessidade de maior transparência das decisões arbitrais e adotem técnicas que
permitam amplo acesso às sentenças.

Palavras-chave: Precedente arbitral - Confidencialidade - Segurança jurídica.


Abstract: The precedent mechanism is the only one able to effectively ensure that
arbitration continues to establish itself as a privileged way to resolve commercial
disputes, providing legal certainty and predictability, without sacrificing the freedom and
discretion inherent to the role of arbitrator. For this purpose, it is necessary that the
parties and the arbitrators are aware of the need for greater transparency of the
decisions and adopt techniques that allow abroad access to the arbitration awards.

Keywords: Arbitral precedent - Confidentiality - Legal certainty.


Sumário:

1. A PREMÊNCIA DO PRECEDENTE ARBITRAL - 2. REQUISITOS PARA A CRIAÇÃO DE UM


SISTEMA DE PRECEDENTES ARBITRAIS - 3. NOTAS FINAIS SOBRE A NECESSIDADE DE
UM SISTEMA DE PRECEDENTES ARBITRAIS

1. A PREMÊNCIA DO PRECEDENTE ARBITRAL

A esperada consolidação da arbitragem como o meio primordial de solução de


controvérsias envolvendo interesses meramente privados, e não mais como um mero
meio “alternativo” ao Poder Judiciário, só será possível se criarmos uma tradição de
respeito aos precedentes e de valorização da segurança jurídica na arbitragem,
satisfazendo as legítimas expectativas das partes de que seu caso seja julgado em
conformidade com o direito escolhido e de forma coerente pelos árbitros.

Atualmente, se os árbitros, por vezes, citam e seguem alguns precedentes, eles o fazem
sem qualquer orientação clara quanto ao seu valor e sua importância na construção dos
fundamentos das decisões.

No entanto, com o constante crescimento da arbitragem no Brasil, se os tribunais


arbitrais continuarem a julgar os litígios de forma simplesmente casuística, conforme as
particularidades de cada causa e as convicções pessoais dos árbitros, criaremos um
gigante de pés de argila que não suportará seu próprio crescimento, principalmente
diante da multiplicação de centros ou câmaras de arbitragem, com políticas próprias
sobre o valor dos precedentes.

Essa aplicação puramente ad hoc das normas jurídicas pelos árbitros, mesmo em
matérias já amplamente discutidas por tribunais estatais e arbitrais, além de produzir
decisões conflitantes em casos envolvendo, muitas vezes, a mesma matéria, a mesma
câmara arbitral e as mesmas partes, nos conduz à incerteza da aplicação do Direito, o
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que só favorece a parcialidade e a arbitrariedade.

A propósito, a crescente transferência da solução de controvérsias do Judiciário para a


“justiça privada”, gera na opinião pública uma insegurança relacionada com a ideia de
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que os árbitros não seguem nem criam precedentes e que eles, diante das limitadas
hipóteses de intervenção judicial, estão livres para aplicar incorretamente ou até mesmo
ignorar certas normas jurídicas que não sejam de ordem pública. Obviamente, esta visão
não corresponde completamente à verdade, mas podemos nos perguntar o que
realmente sabemos do comportamento dos árbitros e dos elementos que influenciam a
construção de suas decisões.

Nesse ponto, não podemos descartar que, no futuro, a arbitragem deixe de ser um meio
atrativo de solução de controvérsias, podendo, ainda, comprometer o ordenamento
jurídico pátrio. Com efeito, na medida em que ela passar a ser o meio preferencial de
solução de controvérsias em determinadas matérias, deixaremos, gradativamente, de
ter a jurisprudência estatal e, ausente também um sistema de precedentes arbitrais, não
teremos nenhuma orientação sobre a correta interpretação das normas jurídicas sobre
estas matérias. Essa incerteza quanto às regras aplicáveis trará um sentimento universal
de insegurança e de involução do Direito brasileiro.

Esse fenômeno já ocorre em relação a determinados acordos de acionistas, contratos de


infraestrutura e valores mobiliários. Lembre-se, por exemplo, que no Novo Mercado da
Bovespa a arbitragem já é a regra e toda a interpretação das normas aplicáveis a este
setor é realizada, exclusivamente, pelos árbitros.

A determinação do conceito do precedente arbitral (1.2), do seu funcionamento (1.3) e


das razões que justificam sua adoção (1.4), será possível em razão da grande
flexibilidade de forma e de procedimento que caracteriza a arbitragem e que permitirá a
absorção de elementos tanto do mecanismo do precedente da common law, quanto da
jurisprudence constante ou staendige Rechtsprechung, da civil law (1.1).

1.1 O precedente no Direito Comparado

É sabido que a common law se baseia na regra do stare rationibus decisis, ou


simplesmente, stare decisis, que significa literalmente “ficar com o que for decidido”.
Segundo ela, os tribunais estão vinculados aos argumentos que fundamentaram
julgamentos anteriores e formaram a ratio decidendi do precedente.

Seria absurdo afirmar, por outro lado, que os ordenamentos de tradição civilista não
levam em consideração as decisões anteriores. Aqui também, superado o temor de
excessiva ingerência do Judiciário no Legislativo, a observância de julgados proferidos
pelos tribunais superiores é um elemento essencial para a segurança jurídica,
notadamente quando estas decisões constituem jurisprudência constante ou dominante.

Claro está, no entanto, que estas noções, essencialmente civilistas, diferem do


precedente estabelecido pela regra do stare decisis, já que não possuem a mesma
autoridade e sistematicidade presentes na common law. Nesta última, o precedente se
refere a uma decisão relativa a um caso concreto particular, enquanto a jurisprudência
se cria através de reiterados casos julgados no mesmo sentido. Enquanto esta
jurisprudência cria proposições normativas que não se fundam na analogia dos fatos,
mas na submissão do caso concreto sucessivo à regra geral, aquele precedente tem
como objetivo proporcionar ao próximo julgador a capacidade de verificar se seus fatos
se assemelham aos da atual controvérsia, tornando-se vinculante ou não.

Importante, portanto, frisar que, ao contrário da jurisprudência, o precedente se


distingue da norma nele contida e só pode ser estabelecido pelo julgador que verificar a
analogia dos fatos, garantido a justiça no caso concreto e a flexibilidade do sistema pela
possibilidade constante de superação dos precedentes. É a necessária submissão da
regra aos fatos que permite aos advogados da common law buscarem distinguir os fatos
da atual lide daqueles tratados em decisões anteriores, a fim de afastar aquelas menos
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favoráveis.

Essa técnica chamada distinguishing explica porque na hipótese dos fatos fundamentais
do precedente – material facts – não coincidirem, deve-se considerar inaplicável o
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precedente ao novo caso. Dessa forma, não basta a invocação de uma súmula
formulada através de um enunciado genérico, sendo necessário comparar os casos
concretos, porque somente diante de situações fáticas similares pode-se aplicar a
mesma regra jurídica. Claro está que dificilmente haverá absoluta identidade entre as
circunstâncias de fato, mas, ainda assim, é possível que a ratio decidendi extraída do
precedente seja aplicada ao novo caso.

1.2 Noção de precedente aplicada à arbitragem

Preferimos adotar neste estudo a denominação “precedente arbitral” para que este
conceito não seja confundido com a noção de “jurisprudência”, bem estabelecida no
Brasil e que remete ao conjunto de decisões emanadas pelos tribunais estatais.
Ademais, a denominação precedente reforça a importância na arbitragem da submissão
da regra jurídica aos fatos concretos, pois somente a partir do conhecimento dos fatos
que levaram à adoção de determinada solução jurídica, os árbitros poderão verificar se
esta solução se aplica à nova lide.

Não obstante isso, deve-se frisar que a noção de precedente arbitral se distingue,
substancialmente, tanto da noção de jurisprudência da civil law, quanto da noção de
precedente da common law, ambas inseridas em sistemas jurisdicionais caracterizados
pela homogeneidade e pela hierarquia entre suas cortes, que os tribunais arbitrais não
têm e não podem ter, uma vez que suas decisões são autônomas.

Outra distinção fundamental entre o precedente arbitral, por um lado, e o precedente da


common law ou a súmula vinculante da civil law, por outro, decorre do fato do primeiro
nunca vincular os árbitros em suas decisões, servindo apenas como elemento de
orientação.

Assim, em que pese a necessidade de se adotar uma nomenclatura clara para este
conceito inovador e autônomo de precedente arbitral, não se deve atribuir maior
relevância à palavra escolhida para denominá-lo, mas sim ao seu conteúdo. Além disso,
constatamos atualmente uma nítida aproximação entre os conceitos de precedente e de
jurisprudência, e entre as duas famílias common law e civil law, com o franco aumento
da atividade legislativa na primeira e a crescente valorização da jurisprudência na
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segunda.

Na verdade, o presente estudo visa a analisar apenas os julgados anteriores que


possam, claramente, ser conhecidos pelas partes e servir de argumento aos advogados e
aos árbitros na identificação do direito material aplicável a um novo litígio. Este tipo de
precedente sugere que as partes e os advogados atribuam a determinadas decisões
anteriores força normativa e aos árbitros a função de criadores de regras de direito
material, extraídas de suas sentenças.

Não trataremos aqui do direito processual que, naturalmente, é harmonizado pela


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jurisprudência estatal ou pelas determinações dos diferentes centros de arbitragem.
Não interessa, assim, à noção de precedente arbitral o que muitos no Brasil chamam de
“jurisprudência arbitral”, referindo-se à jurisprudência dos tribunais estatais sobre
interpretação de matérias processuais relativas à Lei brasileira de arbitragem.

Cumpre ressaltar que alguns autores, dentre os quais merece destaque Kassis,
sustentam a incapacidade da arbitragem em criar precedentes, pois lhe faltaria a
homogeneidade e a hierarquia próprias do Judiciário. Além disso, Kassis afirma que em
razão do árbitro exercer uma função que não é pública, institucional e permanente, ele
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não teria autoridade para criar precedentes.

Esses argumentos foram refutados quando se cristalizou o caráter jurisdicional da


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arbitragem. Hoje, eles já estão definitivamente afastados, não cabendo mais discutirmos
se a jurisdição é uma prerrogativa exclusiva do Estado ou se apenas o Judiciário pode
criar jurisprudência, pois somente ele seria o juízo natural dotado de inevitabilidade. A
propósito, o art. 18 da Lei Brasileira de Arbitragem reconhece, expressamente, que “o
árbitro é juiz de fato e de direito”, e a jurisprudência brasileira é pacífica em aceitar o
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pleno caráter jurisdicional da arbitragem.

Nesse sentido, veremos que mesmo sem uma doutrina do stare decisis, a mera
existência de um sistema bem estabelecido e acessível de precedentes arbitrais pode
fornecer uma razão para alcançar um resultado semelhante, sem, necessariamente,
implicar qualquer valor vinculativo formal.

No que concerne o poder de persuasão das decisões arbitrais anteriores, Thomas Walde
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define o precedente arbitral em três níveis. No nível mais brando, que poderíamos
qualificar como “precedente indutor”, este serve apenas como exemplo de solução dada
por outros especialistas que já trataram de questões semelhantes, cuja experiência e
sabedoria podem servir à construção da solução mais justa para a controvérsia atual.

Em seguida, temos a noção anglo-saxã de persuasive precedent, que poderíamos


traduzir para nossa realidade jurídica como “precedente preponderante”. Segundo ela,
por analogia aos tribunais estatais, deve-se conferir especial importância e
reconhecimento a uma opinião jurídica emitida por especialistas que tem o poder de
proferir decisões adjudicatórias, como é o caso dos árbitros.

Como afirmamos antes, é este conceito autônomo de precedente preponderante que


deve ser aplicado à arbitragem, e não aquele próprio da doutrina do stare decisis. Alexis
Mourre o define como a “tendência de facto de um árbitro aceitar o que tem sido
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constantemente decidido em um número significativo de decisões arbitrais anteriores”.

Podemos imaginar que a noção autônoma de precedente aplicada à arbitragem brasileira


poderá receber influência do elemento quantitativo próprio da jurisprudência estatal.
Dessa forma, enquanto um tribunal arbitral poderá se referir a uma determinada solução
adotada em uma sentença anterior, como uma mera ilustração de seu raciocínio, a
mesma solução adotada em termos similares em diversos casos, poderá ter um efeito
persuasivo.

Como na arbitragem brasileira as sentenças serão analisadas por advogados e árbitros


que não são familiarizados com a cultura do stare decisis e que tendem a dar menor
importância aos fatos que contribuíram para a criação do precedente; acreditamos que
não teremos aqui o problema do excessivo e abusivo uso do distinguishing feito por
advogados americanos e ingleses. Nesses países, notadamente na Inglaterra, muitas
vezes a maior parte do processo é consagrada à tentativa de estabelecer ou afastar a
semelhança entre os fatos descritos no precedente e aqueles da atual controvérsia.

No terceiro e mais elevado nível, os precedentes poderiam cristalizar-se em


“jurisprudência consolidada” ou “precedente vinculante”. Walde considera que,
atualmente, o terceiro nível aplica-se apenas à arbitragem de investimento, onde as
sentenças já são publicadas em quantidade suficiente para formar um corpo de
precedentes que influenciam futuras decisões, a ponto de já serem considerados, na
prática, como vinculantes.

1.3 O precedente nos diferentes tipos de arbitragem

Antes de analisarmos a inserção da noção de precedentes na realidade arbitral, é


fundamental estabelecer a premissa de que a arbitragem não é um fenômeno
monolítico. Regulamentos e leis de arbitragem, adaptados ou não pela vontade das
partes, podem ser diferentes em uma variedade de maneiras, incluindo regras sobre
práticas de redação e de publicação de sentenças, atuação das partes, advogados e
árbitros, direito material aplicável, legitimidade dos árbitros para elaborar regras e
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inúmeras outras diferenças que impactam sobre o mecanismo operacional e a


capacidade de criar precedentes.

Atualmente, o exemplo mais contundente da importância do uso do precedente na


arbitragem é verificado em matéria de litígios sobre investimento, onde existe uma forte
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tendência à consideração de precedentes na construção dos julgados.

Neste tipo de arbitragem, não raras vezes, os precedentes são expressamente


mencionados como regras de segurança jurídica promovida por uma jurisprudência
constante do Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos
(Ciadi), de modo a demonstrar a necessidade de previsibilidade para proteger os
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interesses de investidores e de Estados beneficiados, a exemplo da célebre decisão
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Saipem v. Bangladesh.

Nesse julgado, o Ciadi deixa claro sua posição de respeito aos precedentes proferidos
por tribunais internacionais e a importância da segurança jurídica na arbitragem: “O
Tribunal considera que não está vinculado às decisões anteriores dos tribunais
internacionais. Ao mesmo tempo, é de opinião que deve levá-las em consideração. Ele
acredita que, salvo razões imperiosas em contrário, tem o dever de adotar soluções
estabelecidas em uma série de casos consistentes”. Na mesma decisão ele afirma que,
sem prejuízo das especificidades de um tratado e das circunstâncias do caso concreto,
“tem o dever de procurar contribuir para o desenvolvimento harmonioso do Direito do
Investimento e, assim, satisfazer as legítimas expectativas da comunidade de Estados e
investidores em relação à previsibilidade da regra de direito aplicável”.

É inegável que o método do precedente se desenvolveu mais rapidamente na arbitragem


de investimento, em razão dos interesses públicos envolvidos neste tipo misto de
arbitragem que envolve particulares e Estados. Contudo, estamos convencidos de que
não há razão para este modelo não ser seguido por todos os demais tipos de arbitragem,
desde que eles adotem, também, uma política de ampla divulgação de suas decisões.

Como referimos, a arbitragem já é concebida como o método primordial de resolução de


litígios em outras matérias. Na arbitragem interna brasileira, como em certas questões
envolvendo direito societário, mercado de capitais e contratos complexos, exigindo-se
maior coerência das câmaras arbitrais.

Nessa linha, cumpre destacar o art. 7.10 do Novo Regulamento da Câmara de


Arbitragem do Mercado da Bovespa (CAM), que trouxe grande inovação ao Direito
brasileiro da arbitragem ao permitir a publicação das sentenças pela própria Câmara e
prever, de forma expressa, que elas “poderão ser levadas em conta pelos árbitros, a fim
de orientar suas decisões”, criando, assim, o permissivo normativo necessário para que
a prática dos árbitros e dos advogados crie um sistema de precedentes.

No mesmo sentido, vale ressaltar o art. 16 da Convenção Arbitral da Câmara de


Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) que reconhece o efeito orientativo dos
precedentes, ao estabelecer que “A Câmara disponibilizará aos árbitros do Tribunal
Arbitral os extratos de sentenças já proferidas decorrentes desta Convenção, que
poderão ser consideradas para efeito meramente orientativo”.

Antes de propormos as ferramentas que permitirão a criação de um sistema de


precedentes amplamente conhecidos pelos árbitros e advogados, precisamos ressaltar as
funções e os benefícios que justificam seu desenvolvimento.

1.4 O precedente como propulsor de uma nova arbitragem

A ideia de que a arbitragem é um sistema confidencial e incompatível com a noção de


precedentes é absolutamente incorreta, e representa uma visão caricatural que não
corresponde à realidade. Não resta dúvida que a arbitragem, mesmo de forma
imperfeita – em razão da falta de estudo sistemático e de regulamentação clara nos
regulamentos e nas leis de arbitragem –, tem a capacidade de gerar precedentes e de
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garantir relativa segurança jurídica aos litigantes.

Nessa linha, as decisões anteriores têm sim impacto sobre o pensamento de árbitros
para solucionar casos futuros, mesmo que eles não façam sempre referência a elas. Este
mecanismo do precedente é fundamental tanto para a arbitragem interna quanto para a
internacional. Nesta última, ele se reveste de uma importância ainda maior em razão da
ausência de uma jurisprudência organizada que permita a interpretação harmonizada
dos tratados internacionais, aplicados por juristas oriundos de diferentes tradições
jurídicas.

No entanto, o sistema de precedentes só se desenvolverá plenamente quando houver


orientações claras sobre seu uso e os árbitros se conscientizarem de que, ao exercerem
uma jurisdição, têm obrigação de assegurar a coerência e a previsibilidade de suas
decisões. Nesse momento, tal sistema cumprirá uma função benéfica para as partes –
que são seus destinatários e financiadores –, ao incentivar a autocomposição e, em caso
de litígio, ajudar na escolha do centro de arbitragem e dos árbitros mais capacitado para
apreciar sua controvérsia. Ele terá papel fundamental também na identificação das
normas jurídicas aplicáveis.

• Autonomia da vontade das partes

A noção de precedente vem reforçar o papel da arbitragem como o fórum privilegiado da


autonomia da vontade das partes, tanto na escolha do direito material aplicável, quanto
na escolha dos árbitros e das regras que irão disciplinar o procedimento arbitral.

Cada vez mais as partes buscam utilizar as sentenças como documentos convincentes do
resultado adequado de sua disputa. Elas podem convencionar que suas arbitragens
produzam decisões bem fundamentadas e capazes de influenciar os árbitros em futuros
processos, propiciando maior segurança às futuras transações e facilitando a resolução
de eventuais litígios. Para atingir essas metas, a convenção de arbitragem deve exigir
que os árbitros se utilizem de precedentes arbitrais e exponham, de forma clara e
abrangente, os fundamentos de sua decisão. O respeito destes precedentes implicará,
necessariamente, no respeito às legítimas expectativas das partes.

• Autocomposição e aceitação das sentenças arbitrais

O sistema de precedentes é, ainda, determinante para propiciar a sensação de igualdade


de tratamento e de justiça, fundamentais para evitar um litígio ou, se este já instalado,
para facilitar a aceitação e execução de sua sentença.

O conhecimento prévio da aplicação do Direito feita em casos semelhantes e a provável


solução que será adotada incentiva, naturalmente, as partes a buscar uma solução
negociada ou a instaurar um processo de autocomposição, evitando processos
heterocompositvos desnecessários.

Por outro lado, uma vez instaurada a arbitragem, a parte sucumbente irá aceitar e
executar mais facilmente a solução que seja conforme às decisões anteriormente
proferidas por respeitados tribunais arbitrais. Em sentido contrário, e ressalvadas as
peculiaridades fáticas de cada caso, se a decisão for contrária à corrente dominante, a
parte sucumbente terá maior resistência em aceitá-la e buscará, mais frequentemente,
sua anulação. Enfim, o sistema de precedentes ajudará as partes a gerir seus negócios,
controlar os possíveis riscos e evitar disputas.

• Escolha do centro de arbitragem

A maior disponibilidade de sentenças é benéfica, também, para os centros ou câmaras


de arbitragem que poderão demonstrar a excelência de seus árbitros em determinadas
matérias e acumular credibilidade e reputação junto ao público. Para tanto, faz-se
necessário alterar os regulamentos de arbitragem a fim de fortalecer o papel do centro
na deliberação sobre a publicação.
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A transparência resultante da publicação dos julgados vai incentivar os árbitros a tomar


decisões suficientemente detalhadas e abrangentes, e o público a criticar o fundamento
destas sentenças, contribuindo para a evolução da arbitragem e do direito material em
geral.

Um ponto bastante controverso é a divulgação dos nomes dos árbitros responsáveis


pelos julgados. Divulgados os nomes, o sistema de precedentes ajudaria os litigantes na
escolha do árbitro mais qualificado para apreciar sua controvérsia, a partir do
conhecimento de suas ideias expressas em decisões anteriores e em trabalhos
acadêmicos.

É certo que a posição de um árbitro sobre determinada matéria possa ser alterada, a
qualquer momento, diante de um novo argumento apresentado pelas partes ou pelos
demais árbitros, pela superação do precedente e pelas especificidades dos fatos
concretos de cada caso. No entanto, não se deve ignorar que as partes poderão escolher
um árbitro por sua posição sobre a matéria controversa, já manifestada em caso anterior
ou em trabalhos acadêmicos, o que poderia criar uma reserva de mercado para estes
julgadores ou até torná-los impedidos de apreciar determinadas controvérsias.

• Consistência e coerência das decisões

Acreditamos que a divulgação das correntes dominantes de precedentes dos principais


centros de arbitragem, associada aos estudos acadêmicos publicados sobre elas, criará
um conjunto relativamente uniforme de regras e princípios que poderão enquadrar e
orientar os árbitros e diminuir o risco de sentenças contraditórias.

O conflito entre decisões é, infelizmente, uma realidade na arbitragem. Um bom


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exemplo disso são as sentenças proferidas pelo Ciadi envolvendo a sociedade SGS e as
decisões subsequentes que se referiram a elas como precedentes. Nessas arbitragens
sobre investimento, a aplicação de uma cláusula guarda-chuva a fatos quase idênticos
foi utilizada, ora para considerar determinados descumprimentos contratuais como
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violações de tratados, ora para negar tal efeito. Elas são também absolutamente
contraditórias sobre a possibilidade do Estado adotar certas condutas em tempo de crise,
sob o fundamento do estado de necessidade.

A situação parece mais grave quando no âmbito de um mesmo centro de arbitragem


uma sentença é conflitante com a corrente dominante de decisões publicadas pelo
mesmo centro, como ocorreu no caso dos referidos casos SGS. Nessa linha, é
fundamental que o centro de arbitragem que não possua um sistema de precedentes,
crie, ao menos, um ementário de decisões que permita orientar seus árbitros sobre
questões anteriormente decididas.

• Instrumento fundamental da arbitragem por equidade

O precedente exerce, igualmente, funções essenciais na identificação, interpretação e


complementação da lei aplicável ao mérito da arbitragem. Para tanto, ele vai servir de
fundamento para o julgamento por equidade, quando as partes desejarem evitar a lei
estatal e atribuir aos árbitros o poder de desenvolver um conjunto alternativo de normas
jurídicas.

A propósito, os litigantes podem pactuar cláusulas contratuais que exijam dos árbitros a
observância de precedentes arbitrais, permitindo, ainda, que estes preencham eventuais
lacunas deixadas pelas partes na escolha das regras aplicáveis. Nesta dinâmica, é
plausível supor que os árbitros irão atribuir valor de precedente preponderante a
sentenças anteriores e, por consequência, se sentirão autorizados a criar regras
específicas mais adequadas ao caso concreto.

O precedente – enquanto manifestação da correta interpretação das normas jurídicas –


vai instrumentalizar e incentivar a arbitragem por equidade em todas as funções listadas
na obra de Selma Lemes, quais sejam: interpretativa, quantificadora, supletiva, corretiva
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e substitutiva do direito normalmente aplicável ao litígio.

No que concerne à arbitragem internacional, a referência a precedentes arbitrais será


também importante quando o tribunal arbitral decida aplicar os princípios transnacionais,
os usos e os costumes comerciais.

Se as regras de Direito transnacional devem desempenhar qualquer papel na


adjudicação de disputas comerciais internacionais, os precedentes arbitrais não podem
deixar de ser uma fonte importante, embora não exclusiva, destas regras. Como a lex
mercatoria não está ligada a qualquer direito nacional, não há códigos escritos
referindo-se a ela. Dessa forma, com a identificação da lex mercatoria propiciada pelos
precedentes arbitrais, aumentará a previsibilidade e o uso desta forma de lei
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espontânea.

Nesse ponto, as convenções internacionais que preveem normas jurídicas materiais são
o terreno natural para a aplicação dos precedentes arbitrais, posto que elas podem ser
interpretadas separadamente das legislações nacionais, como é o caso da Convenção de
Viena sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias de 1980.

Claro está que dentro de cada tipo de arbitragem, seja ela interna ou internacional,
haverá matérias mais propensas a criar precedentes. Disputas relacionadas,
essencialmente, a fatos e dispositivos contratuais atípicos sentirão uma necessidade
menor de precedentes para disciplinar seus conflitos. Nesses casos, o resultado gira em
torno de um único conjunto de fatos e na interpretação de um contrato único que foi
negociado entre os atores privados para atender as suas necessidades específicas.

Já nas lides envolvendo textos legais, contratos-padrão ou princípios bem estabelecidos,


o papel do precedente arbitral se torna fundamental, mas depende, ainda, de ampla
divulgação para consolidar seu papel preponderante na construção das novas decisões.

2. REQUISITOS PARA A CRIAÇÃO DE UM SISTEMA DE PRECEDENTES ARBITRAIS

Onde as sentenças não são disponibilizadas ao público, o precedente ou a jurisprudência


não podem prosperar. Por esta razão o precedente tem desempenhado, até hoje, um
papel relativamente menor na arbitragem, que muitas vezes permanece confidencial,
mesmo após o seu término.

Nesse ponto, acreditamos que deva ser dado aos centros de arbitragem maior
autonomia para decidir sobre a utilidade e a oportunidade de publicar as decisões,
independentemente da vontade das partes, protegendo-se a identidade destas e os
dados confidenciais que não causem dano aos interesses públicos ou aos interesses da
parte adversa.

Ao lado da publicação das sentenças (b), outro requisito fundamental para a criação dos
precedentes arbitrais é a conscientização pelos árbitros de seu papel de intérprete do
Direito e de principal ator de um sistema jurisdicional capaz de criar normas e de
garantir a coerência esperada pelos litigantes (a).

2.1 O papel do árbitro

A segurança jurídica aliada à coerência dos julgados é inerente ao próprio conceito de


jurisdição. Dessa forma, os árbitros devem se reconhecer como verdadeiros intérpretes
do Direito e capazes de criar regras jurídicas dentro de um sistema autônomo de justiça.
Ao aceitar a existência de tal sistema, é natural que os árbitros se preocupem em ser tão
consistentes quanto possível em relação a decisões anteriores de outros tribunais.

Se, por um lado, os árbitros não têm a obrigação legal de seguir precedentes, parece
bem estabelecido, por outro, que eles têm a obrigação moral de segui-los sempre que
possível, de modo a promover um ambiente normativo previsível que permita o
desenvolvimento da arbitragem.
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Isso não quer dizer que os árbitros deveriam ser privados de seu poder discricionário na
resolução de cada caso, pois essa discricionariedade na avaliação dos fatos e na
determinação das regras jurídicas adequadas não é, de forma alguma, incompatível com
a disponibilidade de um conjunto de precedentes arbitrais em que os tribunais possam
se basear.

Se, por um lado, os árbitros não têm a obrigação legal de seguir precedentes, parece
bem estabelecido, por outro, que eles têm a obrigação moral de segui-los sempre que
possível, de modo a promover um ambiente normativo previsível que permita o
desenvolvimento da arbitragem como meio primordial de solução de litígios que
envolvem interesses eminentemente privados.

A propósito, cumpre enfatizar que a arbitragem é o meio de solução de controvérsias


mais propício à adoção de um mecanismo de precedentes e o que dele mais precisa. É
sabido que ela proporciona aos julgadores maior liberdade na determinação das regras
aplicáveis e na utilização de meios para encontrar a solução mais justa, se comparada ao
Judiciário. O contraponto dessa maior flexibilidade e discricionariedade dos árbitros é a
necessidade de coerência e segurança jurídica que, num sistema pulverizado e
heterogêneo, como o arbitral, só poderá ser garantida pela noção de precedentes.

Tal esforço de coerência não é movido por uma homogeneidade estrutural da arbitragem
como sistema de resolução de controvérsias, ou por uma situação hierárquica entre os
árbitros. A força motriz do precedente arbitral é a vontade de satisfazer a expectativa
legítima das partes de que sua controvérsia seja resolvida por árbitros imparciais e de
acordo com as regras procedimentais e materiais aceitas pelo ordenamento jurídico
aplicável.

Acreditamos que a criação de um sistema de precedentes arbitrais possa, ainda,


estabelecer um construtivo diálogo entre os árbitros e os juízes estatais, ampliando o
contato para além das hipóteses legais de intervenção judicial. Juízes poderão citar,
como fonte doutrinal de suas decisões, a autoridade de precedentes arbitrais criados
pelos maiores especialistas na matéria. Dessa forma, os juízes estatais poderiam
continuar a apoiar a arbitragem e a colaborar na difusão e na atribuição de autoridade
aos precedentes arbitrais.

2.2 O equilíbrio entre confidencialidade e publicidade

O conceito de precedente levanta, naturalmente, a questão da disponibilidade das


decisões arbitrais. A importância fundamental desta publicação deriva do fato de que, na
ausência de uma doutrina do stare decisis na arbitragem, o precedente só vai operar em
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presença de uma repetição de soluções similares em diversos casos.

Em outras palavras, para que sentenças anteriores sejam percebidas como


preponderantes, devem configurar algo próximo ao que tem sido definido como path
dependency pelos tribunais estatais, ou seja, o acúmulo de soluções idênticas ou
similares capazes de influenciar o convencimento dos árbitros.

No entanto, durante muito tempo se considerou que a confidencialidade era traço


característico da arbitragem, em oposição ao sistema aberto de livre acesso às decisões
judiciais. Não só no Brasil, mas em todos os países em que a arbitragem foi adotada, se
afirmou, inicialmente, que a confidencialidade era uma das principais vantagens
comparativas da arbitragem face ao Poder Judiciário.

A doutrina e a jurisprudência têm, felizmente, relativizado o dogma da existência de um


dever geral de confidencialidade inerente ao procedimento arbitral e algumas instituições
de arbitragem brasileiras e estrangeiras já permitem a publicação das decisões por elas
proferidas.

Nesse contexto, entendemos que o art. 164, IV, do PLS 166/2010 (Projeto do Código de
Processo Civil (LGL\1973\5) brasileiro na versão Emenda 1 – CTRCPC – Substitutivo), ao
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O NECESSÁRIO PRECEDENTE ARBITRAL

dispor que o processo de cumprimento da “carta arbitral” corre em segredo de justiça,


desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o
juízo, estabelece apenas que confidencialidade do procedimento arbitral pode ser
reconhecida se as partes assim convencionarem, mas não há qualquer limite à
publicação das sentenças.

Deve ficar claro que uma sentença arbitral não é apenas o produto final do acordo entre
as partes na arbitragem, nem é simplesmente um documento privado, ela é, sim, uma
decisão jurisdicional que pode afetar terceiros e impactar sobre interesses da
comunidade empresarial em geral.

Tanto é assim, que a legislação brasileira impõe a divulgação de fatos relevantes que
possam afetar os resultados e o desempenho das companhias abertas. A CVM já decidiu
que há violação às regras de transparência e fiscalização previstas na Lei 6.404/1976 e
na IN 358/2002 da CVM, quando um regulamento de arbitragem impeça, no caso
concreto, a prestação de informações obrigatórias ao mercado. Dessa forma, a obrigação
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de comunicar qualquer ato ou fato se sobrepôs ao dever de sigilo.

Ademais, as próprias companhias – seja pela adesão às regras do Novo Mercado, seja
pela adoção voluntária de políticas de comunicação de fatos relevantes –, têm adotado a
prática de informar ao público a instauração de arbitragens, as sentenças e outros fatos
ocorridos durante o procedimento arbitral que possam influenciar o mercado.

Uma parte pode, ainda, encontrar-se obrigada a apresentar a sentença arbitral em


processo de execução, pedido de anulação ou quando necessário para preservar os
interesses da justiça ou da outra parte. Esse interesse público no desenvolvimento do
precedente arbitral, na melhoria da qualidade da arbitragem e na criação de um sistema
arbitral coerente e confiável, impede que exista um princípio geral da confidencialidade.

Portanto, não se deve confundir a privacidade do procedimento arbitral – que restringe o


conhecimento de seus atos, documentos e informações às partes, procuradores, árbitros
e terceiros que venham a ser chamados a dele participar –; com a confidencialidade que
obriga os participantes a não divulgar ou publicar quaisquer dados que tenham tomado
conhecimento no curso do procedimento.

Se a privacidade é justificada pelo desejo dos litigantes de proteger a serenidade dos


debates e pela necessidade de preservar segredos comerciais, não há justificativa para
impor a confidencialidade da sentença arbitral. Não há, nesse sentido, qualquer
imposição na Lei brasileira ou nos regulamentos dos principais centros de arbitragem.

Claro está que, embora a sentença deva, em princípio, ser publicada em seu inteiro teor,
alguns cuidados devem ser tomados antes de sua publicação. Devem, assim, ser
expurgadas todas as informações potencialmente confidenciais ou secretas, cuja inclusão
não é necessária para a compreensão da razão de decidir. Isso certamente inclui os
nomes das partes envolvidas na arbitragem, os nomes de terceiros, bem como a maioria
das informações econômicas e financeiras, a menos que sejam necessárias para o
entendimento da decisão, tais como os dados relativos às quotas de mercado e volume
de negócios em casos de antitruste. Naturalmente, as partes que desejarem poderão
sempre convencionar a publicação integral da sentença, contendo, inclusive, seus nomes
e demais dados que identifiquem o litígio.

2.2.1 A confidencialidade nos regulamentos e nas leis

Da análise do Direito Comparado, podemos constatar que não há uma uniformidade de


tratamento da confidencialidade nas legislações nacionais, sendo quase todas silentes
sobre a matéria. Elas preveem regras aplicáveis à proteção de segredos comerciais e à
privacidade do procedimento arbitral, mas não incorporam qualquer dever de
confidencialidade que impediria a publicação das decisões.

Nessa linha, a Lei de Arbitragem brasileira não disciplina o sigilo a ser observado pelos
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O NECESSÁRIO PRECEDENTE ARBITRAL

litigantes em procedimentos arbitrais. Ela exige apenas que os árbitros, no desempenho


de suas funções, ajam com “discrição”, o que implica a proteção da privacidade do
procedimento e não uma obrigação de confidencialidade da sentença arbitral.

No que concerne os principais centros internacionais de arbitragem, cumpre destacar


que o novo Regulamento de Arbitragem da CCI não prevê o sigilo da sentença arbitral,
mas defere ao tribunal arbitral, nos termos do art. 22, § 3.°, o poder de “tomar
quaisquer medidas com a finalidade de proteger segredos comerciais e informações
confidenciais”. Portanto, embora o Regulamento da CCI incentive e publicação das
sentenças, ele concede aos árbitros a faculdade de tornar confidencial sua decisão,
principalmente se assim convencionarem as partes.

Mais conservadores são os arts. 30, § 3.°, do Regulamento da LCIA e 27, § 4.°, do
Regulamento da AAA, que proíbem a publicação de qualquer parte de uma sentença sem
o consentimento de ambas as partes. Na presença de tal disposição, está fora de dúvida
que a exigência de consentimento tem de ser cumprida antes da publicação, mas isso
não significa que, necessariamente, esse consentimento precise ser dado em forma
escrita, podendo ele ser implícito através do silêncio das partes que foram previamente
notificadas da publicação.

Outras instituições internacionais adotam regras que incentivam a publicação das


sentenças arbitrais e o desenvolvimento de um sistema de precedentes. Assim é o art.
48 do Regulamento do Ciadi que convida as partes ao procedimento arbitral a consentir
à publicação e, na ausência desse consentimento, autoriza o Ciadi a publicar trechos da
sentença. Já no Acordo de Livre Comércio Norte Americano – Nafta, o art. 1.137-4
dispõe que o inteiro teor das decisões arbitrais envolvendo Estados Unidos e Canadá
devem ser publicadas.

No que tange aos regulamentos dos centros brasileiros de arbitragem, alguns permitem
a publicação das sentenças se as partes assim consentirem. É o caso do art. 15.1 do
Regulamento do Centro de Arbitragem da Câmara Americana de Comércio de São Paulo,
do art. 12.1 do Regulamento da Câmara de Arbitragem Empresarial (Camarb) de Minas
Gerais e do art. 62 do Regulamento da Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem.

Outros adotam uma postura mais avançada que permite a publicação de extratos das
sentenças pelos próprios centros. Nesse sentido, é o art. 14.1.1 do novo Regulamento
da Câmara de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá: “Para fins de pesquisa
e levantamentos estatísticos, o CAM/CCBC se reserva o direito de publicar excertos da
sentença, sem mencionar as partes ou permitir sua identificação”. Na mesma linha, o
art. 15.2 do Regulamento do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA-RJ)
dispõe que: “O Centro poderá dar publicidade à sentença arbitral, caso previamente
autorizada pelas partes ou, em caso negativo, poderá o Centro, de qualquer modo,
divulgar excertos de sentença arbitral, desde que preservada a identidade das partes”.
Outro importante dispositivo foi inserido no art. 12.4 do Regulamento Modelo do
Conselho Nacional de Instituições de Mediação e Arbitragem (Conima), estabelecendo
que: “Desde que preservada a identidade das partes, poderá a Câmara publicar, em
ementário, excertos da sentença arbitral”. Por fim, o art. 19 da Convenção Arbitral da
CCEE dispõe que a Câmara “divulgará a seus associados extratos de todas as sentenças
arbitrais, no prazo de 5 dias contados da data em que foi proferida”.

Vale destacar o art. 7.10 do novo Regulamento da CAM que, logo após prever a
publicação periódica de um ementário, permite a publicação do inteiro teor das
sentenças proferidas sob seus auspícios, embora não especifique as circunstâncias em
que ela deva ocorrer: “A publicação das sentenças suprimirá qualquer elemento que
possibilite a identificação do procedimento”.

Não obstante, a simples previsão da possibilidade de publicação pelo centro de


arbitragem não basta para a ampla divulgação das decisões. É fundamental que esse
dispositivo seja acompanhado da aplicação de métodos de divulgação que garantam a
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O NECESSÁRIO PRECEDENTE ARBITRAL

efetiva acessibilidade pelo público.

2.2.2 A necessária acessibilidade

Nenhum sistema de precedente é provável que surja a menos que os árbitros tomem
conhecimento de sentenças anteriores, seja através de suas próprias pesquisas em
publicações jurídicas ou, mais comumente, pela citação feita pelas partes na
fundamentação de seus pedidos.

Vimos que um grande número de centros de arbitragem brasileiros prevê em seus


regulamentos a publicação de extratos, de forma a compor um ementário. Trata-se, sem
dúvida, de um sistema interessante para evitar decisões conflitantes no âmbito de um
mesmo centro de arbitragem.

Porém, os ementários não tem vocação a criar precedentes. Por serem extremamente
reduzidas e abstratas, as ementas são, na maioria das vezes, insuficientes para orientar
os árbitros no julgamento de um caso concreto. Este sistema é próprio da noção de
jurisprudência de países de tradição civilista, onde a regra jurídica, por si só, pode servir
de orientação. Nestes países a jurisprudência apresenta características de um sistema
homogêneo e verticalmente hierarquizado, que o tribunal arbitral não tem e não pode
ter, uma vez que suas decisões são autônomas.

Em matéria de arbitragem, embora o precedente não seja vinculante como na common


law, é essencial a submissão da regra aos fatos. É, portanto, necessária a mais ampla
divulgação dos fatos concretos não confidenciais, por mais irrelevantes que eles possam
parecer à primeira vista, pois somente a partir do conhecimento dos fatos que compõem
a ratio decidendi da solução jurídica adotada, os árbitros poderão verificar se tal solução
se aplica à nova lide.

Por outro lado, é óbvio que a postura de alguns centros de arbitragem de publicar
decisões apenas com o consentimento das partes não incentiva a criação de um sistema
de precedentes. Da mesma forma, uma política de publicação submetida a uma
determinada linha editorial ou que publique as sentenças muito tempo após elas serem
proferidas, pouco contribui para a criação de precedentes. Este é o caso da CCI que
publica decisões proferidas há pelo menos três anos e prioriza a publicação de julgados
sobre matéria processual, a fim de harmonizar a aplicação de seu regulamento.

Nesse sentido, acreditamos que o primeiro passo rumo à ampla divulgação dos
precedentes é conceder aos centros de arbitragem plena autonomia para publicar as
sentenças, independente da vontade das partes, extraindo-se todas as informações
potencialmente confidenciais. Dessa forma, os árbitros ou o centro de arbitragem
preparariam duas diferentes versões de uma mesma decisão.

A primeira conteria todas as informações relevantes e confidenciais e seria entregue,


exclusivamente, às partes. Da segunda versão – que podemos denominar de “não
confidencial” ou para publicação – seriam removidas todas as informações
potencialmente confidenciais, salvo aquelas informações que devem ser mantidas para
proteger um interesse público ou um interesse relevante de uma das partes.

O processo de publicação da versão não confidencial começaria logo após a sentença ser
proferida. Num primeiro momento, as partes poderiam se manifestar em relação aos
elementos que considerem confidenciais, justificando a existência de um genuíno
interesse em mantê-los em sigilo. A partir das ponderações das partes, os árbitros iriam
preparar a nova versão não confidencial, decidindo, soberanamente, quais dados devem
ser excluídos antes da publicação.

Esta publicação deve ser realizada em formatos eletrônicos ou impressos de fácil acesso
a advogados e árbitros. A simples publicação não garante, contudo, que as sentenças
sejam acessíveis a todos os usuários da arbitragem. Elas poderão, por exemplo, ser
publicadas em revistas e bancos de dados dispersos e muito especializados ou, ainda
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mais grave, serem selecionadas de acordo com a linha editorial de cada um destes
veículos.

A divulgação em massa das sentenças arbitrais seria alcançada com maior facilidade se
os centros de arbitragem, além de as publicarem, alimentassem um banco de dados,
que poderia ser administrado por um órgão governamental, como o Ministério da Justiça,
ou por uma associação, como o CBAr. Este mecanismo permitirá a criação de um
repertório necessário à elaboração de um verdadeiro sistema de precedentes arbitrais,
pressupondo que um index abrangente e uma ferramenta de busca eficiente serão
disponibilizados.

3. NOTAS FINAIS SOBRE A NECESSIDADE DE UM SISTEMA DE PRECEDENTES


ARBITRAIS

Através do presente estudo podemos demonstrar que um sistema de arbitragem que


apresenta decisões bem fundamentadas e acessíveis pode gerar precedentes capazes de
orientar os árbitros nas suas futuras sentenças. Este é o único mecanismo capaz de
garantir eficazmente que a arbitragem continue a seestabelecer como uma via
privilegiada para a resolução de disputas comerciais, fornecendo aos seus usuários
coerência e previsibilidade de soluções, sem jamais prejudicar a liberdade e a
discricionariedade dos árbitros na resolução de cada caso.

O precedente permitirá que a arbitragem se desenvolva dentro de um contexto de


segurança jurídica, onde as partes poderão contratar advogados para pesquisar e
construir argumentos em torno de julgados anteriores e indicar árbitros que tenham
conhecimento comprovado da Lei e da forma como ela é interpretada pelos demais
tribunais arbitrais.

Vimos que o interesse público no desenvolvimento do precedente arbitral e na melhoria


da qualidade da arbitragem impede que exista um dever geral de confidencialidade, o
que, aliás, tem sido reconhecido pelos mais modernos regulamentos e leis de
arbitragem, os quais incentivam a publicação de sentenças, ao mesmo tempo em que
protegem as informações confidenciais.

Restou demonstrado, ainda, que algumas técnicas permitem, independentemente da


vontade das partes, o amplo acesso e a criação de um efetivo sistema de precedentes
arbitrais que preserva os interesses das partes e propicia a elas maior segurança
jurídica. No entanto, este sistema somente será implementado quando as partes e os
árbitros se conscientizarem da necessidade de uma maior transparência das decisões
arbitrais.

1 DRAHOZAL Christopher R. Is Arbitration Lawless? Loyola of Los Angeles Law Review,


vol. 40, p. 187, 190, 207-214. Los Angeles: Loyola Law Review, 2006-2007; HYLTON
Keith N. Agreements To Waive or To Arbitrate Legal Claims: An Economic Analysis.
Supreme Court Economic Review, vol. 8, p. 209, 243-247. Chicago: University of
Chicago Press, 2000.

2 Sobre o tema ver: LANDES William M.; POSNER Richard A. Legal Precedent: a
Theoretical and Empirical Analysis. Journal of Law e Economics, vol. 19, p. 249. Chicago:
University of Chicago Press, 1976; SEPPALA Ch. The development of case law in
construction disputes relating to Fidic contracts. In: Precedent in international
arbitration. IAI. p. 67; GERHARDT, Michael J. The Limited Path Dependency of
Precedent. University of Pennsylvania Journal of Constitutional Law, vol. 7, p. 903.
Pennsylvania: University of Pennsylvania Law Review, 2005.

3 ZERBINI, Eugênia. Sentenças arbitrais formam jurisprudência. In: LEMES, Selma


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O NECESSÁRIO PRECEDENTE ARBITRAL

Ferreira; CARMONA, Carlos Alberto; MARTINS; Pedro Batista (orgs.). Arbitragem.


Estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares, in memoriam. São
Paulo: Atlas, 2007. p. 464; GUILLAUME, Gilbert. Le précédent dans la justice et
l’arbitrage international. Journal du Droit International, vol. 137, p. 685. LexisNexis,
2010.

4 Nesse sentido, a decisão da CCI no caso Dow Chemical c. Isover Saint Gobain.
Yearbook Commercial Arbitration, vol. 9, p. 131, 136-137. Kluwer,1984: “As decisões
dos tribunais arbitrais da CCI criam jurisprudência que deve ser levada em consideração,
pois representa soluções construídas a partir da realidade econômica e em conformidade
com as necessidades do comércio internacional, e cujas regras criadas ao longo do
tempo, especificamente para a arbitragem internacional, devem ser observadas”.

5 KASSIS, Antoine. Thérie générale des usages du commerce. Cap. VIII, Le mythe de la
jurisprudence arbitrale considerée comme une source du droit du commerce
internationale. Paris: LGDJ. p. 515. No mesmo sentido, FAZZALARI, Elio. L’arbitrato.
Torino: Utet, 1997. p. 86.

6 STJ, CComp 113.260/SP, 2.ª Seção, DJ 07.04.2011: “os argumentos da doutrina


favoráveis à jurisdicionalidade do procedimento arbitral revestem-se de coerência e
racionalidade. Não há motivos para que se afaste o caráter jurisdicional dessa atividade”.

7 WALDE, Thomas. The Impact of the Publication of Awards. The Precedent in


International Arbitration, n. 5. IAI Series on International Arbitration, 2008.

8 MOURRE Alexis, Precedent and confidentiality in International Commercial Arbitration:


the case for the publication of arbitral awards. The Precedent in International Arbitration,
n. 5, p. 39. IAI Series on International Arbitration, 2008.

9 COMMISSION Jeffery P. Precedents in Investment Treaty Arbitration: a Citation


Analysis of a Developing Jurisprudence. 24 J Arb. Int 129 and Commission. 2007;
BJORKLUND Andrea K. Investment Treaty Arbitral Decisions as Jurisprudence Constante.
In: PICKER, BUNN; ARNER (coords.). International Economic Law: The State and Future
of the Discipline. Oxford: Hart Publishing, 2008. p. 265; PAULSSON, Jan. International
Arbitration and the Generation of Legal Norms: Treaty Arbitration and International Law.
In: A.J. van den Berg (ed.). ICCA Congress Series n. 13. International Arbitration 2006:
Back to Basics? Kluwer, 2007. p. 879.

10 ADC Affiliate Limited and ADC e ADMC Management Limited v. Republic of Hungary,
ARB/03/16, 02.10.2006.

11 Saipem S.p.A. v. The People’s Republic of Bangladesh, ARB/05/07, 21.03.2007, n.


67.

12 SGS c. Paquistão, ARB/01/13, 06.08.2003 e SGS c. Filipinas, ARB/02/6, 29.01.2004.

13 Enron Corporation and Ponderosa Assets, L.P. c. Argentina, ARB/01/3, 22/05/2007,


p. 307; Sempra Energy International c. Argentina, ARB/02/16, 28.09.2007, p. 346.

14 LG e E Capital Corp. e LG e E International Inc. c. Argentina, ARB/02/1, 03.10.2006,


p. 339; e CMS Gas Transmission Company c. Argentina, ARB/01/8, 25.09.2007, p. 95.

15 LEMES Selma Ferreira. A arbitragem e a decisão por equidade no direito brasileiro e


comparado. In: ______; CARMONA, Carlos Alberto; MARTINS, Pedro Batista (orgs.).
Arbitragem. Estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares, in
memoriam. São Paulo: Atlas, 2007. p. 196.

16 Nesse sentido, Emmanuel Gaillard descreve a nova lex mercatoria não como um
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sistema legal, mas como um método de evitar a aplicação de regras que sejam
incompatíveis com as necessidades do comércio internacional. GAILLARD, Emmanuel.
Trente ans de Lex mercatoria. Pour une application sélective de la méthode des principes
généraux du droit. Journal du Droit International, n. 1, p. 5. LexisNexis, 1995.

17 MOURRE, Alexis. Precedent and confidentiality in International Commercial


Arbitration: the case for the publication of arbitral awards. Precedent in international
arbitration: IAI Series on International Arbitration, n. 5, p. 39. 2008; GOLDMAN,
Berthold. Do Arbitral Awards Constitute Precedents? Should Commercial Arbitration Be
Distinguished in this Regard from Arbitration Based on Investment Treaties? IAI Series
on International Arbitration n. 3. Towards a Uniform International Arbitration Law? p.
260. 2005.

18 Processo Administrativo CVM RJ 2008/0713, Reg. Col. 6.517/2009, de 27.04.2010.

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