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HIERARQUIA DAS NORMAS JURÍDICAS

§24.HIERARQUIA DAS NORMAS JURÍDICAS

Quanto à sua hierarquia, temos o direito internacional geral, a Constituição, as leis de valor
reforçado, as leis e decretos-leis, os decretos legislativos regionais, os regulamentos gerais (do
Estado), os regulamentos regionais e os regulamentos locais.

Os princípios sobre a hierarquia das normas, pode enunciar-se assim: a norma de valor
superior pode revogar a norma inferior que não se conforme com ela (afectada de ilegalidade,
e se, implicar directa ou indirectamente (directamente: lei de valor reforçado) a Constituição
da República Portuguesa, a nulidade de que fica afectada (ilegalidade ou
inconstitucionalidade), é declarável pelo Tribunal Constitucional; se ofender norma
internacionalista ou comunitária/unionista, é inaplicável, considerando-se, no mínimo como
de vigência suspensa).

Quanto à jurisprudência, os três sentidos correntes em que é entendida são correspondem a


ciência do direito, actividade casuística cogente dos tribunais (jurisdicional na resolução dos
casos concretos submetidos a julgamento) ou actividade doutrinal resultante da actuação
corrente (traduzida em orientações gerais dedutíveis das resoluções dos tribunais na solução
de casos semelhantes. ou seja, questões factuais idênticas com aplicação das «mesmas»
normas jurídicas).

É em relação ao conjunto destas orientações que se põe a questão de saber se elas são ou não
fontes de direito. E em sentido criador ou revelador?.
Seguindo de perto DIOGO FREITAS DO AMARAL, que distingue entre fontes juris essendi e
fontes juris co-gnoscendi, podemos encontrar várias teorias sobre a matéria:

a)- Segundo a teoria montesquiana da negação da autonomia teórica da qualificação da


jurisprudência como fonte do Direito, que é a teoria clássica, resultante do próprio
pensamento de MONTESQUIEU[1], e que tem sido seguida pela maioria da doutrina
portuguesa, os juízes não criam direito, tendo apenas uma função secundária, que se traduz na
mera aplicação do direito, pelo que sendo as fontes do direito são apenas a lei e o costume, a
jurisprudência não o é.

Como refere DIOGO FREITAS DO AMARAL, esta teoria é inaceitável, porquanto os tribunais não
são meras máquinas de reprodução exacta da vontade do normador, constituídos por juízes
transformados em puros agentes passivos, meros conversores de «ditados» exteriores em
soluções concretas, e portanto a jurisprudência não é um mero altifalante da voz do legislador,
neutra, sendo certo que os tribunais ultrapassam o mero labor de executores da norma escrita
ou costumeira, pelo que tal teoria é de afastar.

b)- Segundo a teoria realista radical, defende-se não só a autonomização conceptual da


jurisprudência como fonte do direito, como a secundarização em geral do papel da lei e do
legislador. Com efeito, para esta concepção americana, quem cria o direito são os juízes,
afirmando rotundamente que antes dos tribunais de um país se pronunciarem, não se sabe
verdadeiramente qual é o direito vigente nesse país. Nesta linha de pensamento, o célebre juiz
americano HOLMES[2]chegava ao ponto extremo de dizer que as leis não passam de meras
«pro-fecias» daquilo que os tribunais acabarão por decidir quando julgarem os casos
concretos. Mais concretamente, escreveu HOLMES, em 1897, que uma obrigação legal não é
mais do que a predição de que, se um homem faz ou deixa de fazer certas coisas, terá de
sofrer desta ou daquela maneira, por sentença dum tribunal», as profecias do que farão os
tribunais, e nada mais pretensioso do que isso, é o que eu entendo por Direito, num caminho
de mera análise do funcionamento real dos tribunais com rejeição do direito como sistema
lógico[3].
Comentando estas afirmações, DIOGO FREITAS DO AMARAL demarcando-se, diz que «as leis
não são meras ‘profecias’», pois «têm valor próprio, são obrigatórias por si mesmas,
independentemente de virem ou não a ser interpretadas e aplicadas pelos tribunais. Aliás, a
maioria das leis são obedecidas espontaneamente pela maioria dos cida-dãos na maioria dos
casos, sem recurso a qualquer tribunal», pelo que haverá aqui algum excesso no modo de
encarar a relação lei-sentença.

Consideramos que, quer a teoria clássica em Portugal, quer a teoria realista radical,
generalizam «o campo factual» que seleccionam e a que se agarram redutoramente nas suas
análises, pois, não é pelo facto de, muitas vezes, os juízes tal como os órgãos das
Administração Pública, na aplicação de certos conceitos e previsões normativas não terem
margens de inovação jurídica que pode negar-se as outras, e são muitas, em que o têm, por
não se estar perante conceitos e previsões muitas precisas (em que se limitam à efectivação de
operações de cálculo matemático) ou perante uma estreita margem de densificação jurídica,
em que não há espaço para grande criatividade apreciativa e decisória.

Como é possível desconhecer-se que há situações típicas em que a jurisprudência aparece


como um fonte não só reveladora como realmente autónoma em termos de criação de direito
e, assim, é fonte de direito, tal como: acontece com os acórdãos com força obrigatória geral,
acórdãos uniformizadores de jurisprudência com eficácia jurídica, acórdãos de actualização de
jurisprudência uniformizada, as correntes jurisprudenciais uniformes?

c)-Nesta linha de constatação e numa postura teórica realista moderada, em que nos
colocamos, e que em Portugal vemos perfilhada, desde logo, por DIOGO FREITAS DO AMARAL,
há que considerar que, embora na maioria dos casos, a fonte primária do direito seja a lei ou o
costume, a jurisprudência, também pode ser fonte juris esssendi, e fonte cognoscendi.
Com efeito, nas situações em que os tribunais intervêm, os juízes, de facto, muitas vezes,
desempenham uma função criativa, que há que reconhecer que integra o seu espaço
institucional de intervenção.

Há situações em que os juízes, nas suas tarefas de aplicação de conceitos e previsões


normativas operam operações com clara criatividade apreciativa e decisória, reservando-lhes o
próprio direito espaços heurísticos no plano da conformação dos factos a subsumir ou
decisórios seja em termos de tempo de actuação e conteúdos das soluções que revelam
remissões criativas mais ou menos significativos, através do uso de conceitos imprecisos
(vagos, indeterminados), seja pelo recursos a termos e saberes técnicos e científicos de
implicam uma mobilidade de soluções à medida dos avanços na densificação desses conceitos
extra-jurídicos, seja pela atribuição de poderes discricionários, sendo certo que, no caso dos
tribunais, isso dá origem à afirmação do direito vigente no caso e, por influência posterior da
própria decisão precedente, a orientações generalizáveis na jurisdição, e embora nem todos os
casos de aplicação do direito cheguem a tribunal propiciando este espaço reorientador ou
corrector da aplicação do direito, as suas orientações, na medida em que existam, influenciam
a doutrina e os destinatários das normas, designadamente os poderes públicos, devendo, de
qualquer modo, evitar confundir os planos de intervenção pois estamos perante aspectos
distintos que a análise dos processos revela claramente: se é verdade que os tribunais não
criam normas jurídicas, pois a decisão dos casos concretos não traduzem comandos gerais e
abs-tractos, de eficácia erga omnes, pelo que as sentenças, sendo, em si e em geral, meras
decisões individuais e concretas, não têm natureza normativa[4], também é verdade que não
sendo realmente as sentenças fonte de direito, não deixa de se constatar como historicamente
sedimentada a realidade de um fenómeno extremamente relevante que é a existência de
decisões jurisdicionais criativas na solução casuística das questões jurídicas colocadas aos
tribunais, que não podem considerar-se derivadas, automaticamente, de uma mera aplicação
da norma ao caso concreto. Independentemente de haver países (Inglaterra e em parte
também nos E.U.A.), em que o «precedente judicial» é obrigatório nos casos julgados
posteriormente, e, em regra, tal não ocorrer em Portugal, onde a lei, no entanto, não deixa de,
excepcionalmente, impor uma jurisprudência obrigatória (de jure) em certas situações[5]: o
preenchimento de casos omissos, com o dever não só de julgar, mesmo que ocorra falta ou
obscuridade da lei ou dúvida acerca dos factos em litígio; o dever de tomar em «consideração
todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e
aplicação uniformes do direito»[6], a concretização de conceitos imprecisos, geralmente
designados como conceitos vagos ou indeter-minados (situações de uso de margens de livre
decisão ou de poderes discricionários pelo juiz), as sentenças especiais, a que dá lugar, os
acórdãos de uniformização de jurisprudência, que implicam a sua obrigatoriedade para todos
os tribunais hierarquicamente subordinados, instituto do julgamento ampliado de revista e
agravo para assegurar a uniformidade da jurisprudência[7], recursos para uniformização da
jurisprudência penal (artigo 437.º do Código de Processo Penal, e recurso de reexame
actualizador da jurisprudência, no interesse da unidade do direito, do artigo 447.º do Código
de Processo Penal, que DIOGO FREITAS DO AMARAL considera de aplicação analógica a todos
os tipo de processos[8]) e da administrativa[9]-[10]-[11].

Além disso, a jurisprudência dos tribunais será também fonte indirecta do costume,
designadamente quando leve à afirmação de normas claramente contrárias ao direito tido
como vigente até aí ou quando seja manifestação da sua existência, em que ela apareça como
nomogenética, na medida em que seja inovadoramente «geradora» de actos jurídicas gerais e
abstractos, que posteriormente não só a generalidade dos tribunais como também as
autoridades administrativas e os cidadãos acatem como sendo de natureza obrigatória, ou
seja, verdadeiro direito. No entanto, como se constata, neste caso de co-autoria material de
direito, juridicamente a verdadeira fonte é o costume, cuja lógica protocriativa propicia ou a
cuja afirmação responde, embora o arranque da sua prática reiterada possa partir da própria
actuação dos tribunais, em processo algo semelhante à do costume internacional com base
nas resoluções parlamentares da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (que
alguns autores chamam de fonte parlamentar, para distinguir do costume de criação
normativa não escrita e inicialmente não intencional).

Isto pode aconte-cer sobretudo em dois tipos de situações:

Quando se criem correntes jurisprudenciais claramente maioritárias, que criem a convicção de


que um caso idêntico virá a ser decidido segundo essa orientação (da mesma maneira), e que
portanto comecem a ser acatadas, de facto, como se fossem obrigatórias até que entrando na
prática social corrente, acompanhadas da convicção da sua vinculatividade, se tornem
obrigatórias ou seja acatadas de iure.
De qualquer modo, quer para os tribunais, quer para a Administração Pública e os cidadãos em
geral, o valor prático da jurisprudência, seja na interpretação e aplicação da lei aos casos
concretos, seja como fonte excepcional de normatividade ou como sua base nomogénica, é
bastante muito importante. O direito socialmente «vigente» é o que o juiz diz que é direito e
aplica, pois as sentenças obrigam todos os seus destinatários, cidadãos ou poderes
públicos[12]-[13].

Em conclusão, o conhecimento do direito de um dado país não passa apenas pelo


conhecimento da norma-regra, pois há, além dos princípios gerais (embora estes tenham
perdido muito do seu anterior sentido autónomo, ao serem paulatinamente consagrados em
normas escritas, muitas vezes mesmo de natureza constitucional) e do costume, a
jurisprudência dos tribunais, sobretudo a dos tribunais superiores.

***

No que se refere à problemática relacionada com o papel da doutrina na construção do direito,


ou seja, ao valor da doutrina como fonte do direito, temos em pólos opostos, a doutrina
(teoria clássica) que se rejeita como fonte do direito e as posições doutrinais, como a expressa
por Diogo Freitas do Amaral, segundo as quais a doutrina é simultaneamente uma fonte juris
essendi e uma fonte juris cognoscendi.

Desde já, se afirma que não se considera nunca doutrina em geral como fonte primária de
direito.

Mas afirma-se que ela pode exercer um papel protonormador ou conformador do conteúdo
ou interpretação concretos de normas pré-existentes, pois, por vezes, exerce uma influ-ência
decisiva não só na criação de normas positivas e outras na explicitação de normas
consuetudinárias, quer junto do legislador e Administração Pública (elaboração de novas leis e
regulamentações e alteração de normas existentes), como na aplicação das normas pela
Administração Pública e, sobretudo, pelos julgadores, desde logo junto dos tribunais
superiores, ajudando, juntamente com a acção casuística dos advogados, a construir aquela
parte da jurisprudência que muitas vezes se revela mais estável.

E, sobretudo, a «doutrina unânime» ou, pelo menos, «maioritária» têm realmente uma
influência marcante, junto dos tribunais. Com efeito, quotidianamente a jurisprudência
portuguesa, em apoio aos fundamentos das suas decisões judiciais, recorre e cita
essencialmente a doutrina, que assim, por esta via, ganha foros de uma «fonte ‘indi­recta’ do
Direito» (Diogo Freitas do Amaral).

***

Não terminaremos estas breves considerações sem lembrar que a Administração Pública
portuguesa é chamada a aplicar directamente normas comunitárias, quer as de vigência
directa e transcrição interdita em normas nacionais, como acontece com os regulamentos da
CE, quer as dependentes de transcrição obrigatória, e mesmo que não efectivada, apesar de
decorrido o tempo para o efeito (Directivas; e mesmo Decisões dirigidas ao Estado) desde que
tenham efeito directo (nos termos fixados pela doutrina pretoriana do Tribunal do
Luxemburgo)[14].

Pela sua importância, vejamos, pois, especificamente a teoria das fontes unionistas.

[1] Segundo ele, «le juge c’est la bouche qui prononce les paroles de la loi».
[2] HOLMES, O.W. –The Path of Law. In The Holmes Reader, oc, p.60, apud LATORRE, Ángel –
«Los Realistas Norteamericanos». In Introducción al derecho: Nueva edición puesta al día.
Barcelona: Ariel, 1997, p.142, tradução portuguesa de Manuel de Alarcão: Introdução ao
Directo. 5.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, p.191.

[3] A. e o.c., p.192.

[4] Noutro lugar nos referimos ao papel do TC nas suas declarações de inconstitucionalidade
com eficácia geral, eliminadora das normas jurídicas. E do STA, em aplicação da al.g) do n.º1 do
artigo 119.º da CRP, ao produzir declarações de ilegalidade com força obrigatória geral (artigos
72.º, 73.º e 76.º do CPTA).

[5] Recorde-se que, em Portugal, existiu até 1993 o chamado instituto chamado dos
«assentos», previsto no artigo 2.º do Código Civil, que foi declarado inconstitucional pelo
Acórdão do Tribunal Consti-tucional n.º 810/93, de 7.12.93, solução que, aliás, tem sido
criticada por alguma doutrina.

[6] Artigo 8.º (Obrigação de julgar e dever de obediência à lei): «1. O tribunal não pode
abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável
acerca dos factos em litígio.2. O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto
de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo.3. Nas decisões que proferir, o
julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de
obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito».

[7] Artigos 732.º-A e n.º3, 762.º.

[8] O.c., p.477.

[9] Artigo 152.º do CPTA.

[10] Vide, desenvolvidamente sobre o tema, AMARAL, DIOGO FREITAS DO –o.c., p.459 e ss.
[11] Em plenário das secções cíveis, requerido pelas partes ou MP, sugerido pelo relator ou
adjuntos, presidentes das secções, parecer MP, publicação 1.ª Série A do DR: artigos 732.º-A e
732.º-B do Código do Processo Civil). Sobre os assentos, na sua configuração antiga, sem
contraditório e imodificáveis: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º810/93.

[12] De facto, mesmo quer toda a doutrina defenda uma dada interpretação de uma norma
que pode ter mais do que uma interpretação possível, se o juiz optar por uma interpretação
diferente, é esta a que passa a valer, enquanto a doutrina, sendo uma mera opinião de
especialistas, existente a montante do momento aplicativo, por muito conceituada que seja,
não é aplicável por si, ao não obrigar nem cidadãos nem autoridades.

[13] Com efeito, o cidadão ou a Administração Pública ficarão sujeitos à interpretação em que
assenta a sentença, no caso submetido a julgamento, independentemente das posições
científicas propostas pelas Escolas e seus Doutores. Para se compreender a diferença, basta
reproduzir a seguinte explicação dada por AMARAL, DIOGO FREITAS DO: «se acerca de um
dado assunto, toda a doutrina entender A e a jurisprudência decidir B, um advogado
português, interrogado por um cliente estrangeiro sobre qual é o Direito português sobre a
matéria, terá de responder B; se responder A, estará a enganar o cliente - e poderá ser
responsabilizado pelos danos que lhe causar».

[14] Sob pena de condenação pelo TUE. Seria, v.g., impensável que um dirigente da
Administração Pública tivesse punido um funcionário, que acabasse de ser progenitor e, à falta
de legislação de aplicação da Directiva sobre a igualdade dos cônjuges, tivesse gozado desse
direito com ausência ao serviço, nos termos da normativa europeia, que teve efeito directo no
período de inadimplemento estatal, até ser objecto de transcrição em fonte interna.

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