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Introdução
A resolução de litígios por meio de arbitragem já se revela uma realidade
no Brasil. Cada vez mais os contratos contêm cláusulas arbitrais e, por conse-
quência, as partes são remetidas ao procedimento arbitral quando estabelecido
algum conflito decorrente do contrato.
1 E-mail: daniel@justen.com.br.
2 E-mail: danyara@xvbm.com.br.
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No entanto, a arbitragem impõe uma alteração de comportamento das
partes durante o processamento da demanda.
Diversamente do processo civil, em que há regras rígidas para quase
todas as situações imagináveis que possam ocorrer durante o procedimento, o
processo arbitral tem por característica a flexibilidade de seus procedimentos,
a fim de que as partes e os árbitros possam, de forma mais ágil, atingir os resul-
tados pretendidos com a instauração da arbitragem.
Se, por um lado, tal margem de liberdade para o estabelecimento do
procedimento arbitral tende a ser mais eficaz, ao se propor adequar às vicissi-
tudes de cada caso concreto, por outro, cria-se um espaço de insegurança para
o controle do cumprimento do ônus e faculdades estabelecidos às partes e aos
árbitros – na medida em que esses ônus e essas faculdades não estão tão bem
definidos, ao se comparar com os deveres dispostos no Código de Processo
Civil.
Por essa razão, é essencial que as partes saibam se comportar durante
o procedimento e que haja também alguns mecanismos de controle de atos
procedimentais, a fim de que não se permita a consolidação de uma relação
processual nula.
Neste tipo de procedimento, dito mais flexível, entende-se que a regra do
nemo potest venire contra factum proprium pode assumir um papel essencial
na imposição de limites a atos que atentem contra a realização de um julga-
mento válido.
Isso, pois, a regra se mostra uma ferramenta eficaz, e bem aceita, com
vistas a controlar comportamentos que firam a confiança legítima das partes e
sejam contrários aos princípios que regem o procedimento arbitral. Trata-se,
então, de utilização da tutela da confiança a serviço da garantia do andamento
processual regular com vistas a garantir a prolação de uma sentença válida.
No presente artigo, pretende-se estudar os fundamentos para aplicação
do princípio da vedação ao comportamento contraditório no âmbito do proces-
so arbitral e alguns de seus efeitos.
Para tanto, o presente artigo percorrerá o seguinte caminho. Em primeiro
lugar, pretende-se traçar a natureza jurídica da arbitragem, notadamente em
relação à fase em que o procedimento é instaurado. Definida sua natureza, o
artigo tratará de uma das características que ressaltam a importância do estudo
da proibição do comportamento contraditório: o caráter flexível do procedi-
mento arbitral.
Os dois últimos itens versarão sobre a aplicação da regra no procedi-
mento arbitral e os seus efeitos. Ao final, o presente artigo se propõe a provocar
o debate sobre assunto.
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1 A natureza jurídica da arbitragem: convenção e procedimento
A escolha de um método alternativo de resolução de conflito – entenda-
-se, não resolvido por meio judicial – depende, no Brasil, exclusivamente da
vontade das partes.
Convenciona-se que todos os conflitos oriundos de uma relação jurídica
serão julgados por uma determinada forma particular e mais ou menos prede-
terminada, a depender da especificação da organização do procedimento pelas
partes3.
Entre essas formas encontra-se a arbitragem, método, assim como o judi-
cial, heterônomo de resolução de conflito. É dizer: as partes confiam a um ter-
ceiro, que não o Estado, poderes para acertar o litígio e proferir uma sentença.
O acerto do litígio fará coisa julgada e terá força executiva, tal qual a sentença
judicial4.
Esse pacto, denominado de convenção arbitral – que poderá ter a forma
de uma cláusula ou um compromisso arbitral –, obrigará as partes a, ocorrendo
um litígio originado da relação jurídica ali estabelecida, buscar os responsáveis
pela condução do procedimento, na forma estabelecia por ela. Com efeito,
trata-se de um negócio jurídico processual5, em que se forma, a partir da pro-
positura da demanda e da aceitação dos árbitros quanto à sua nomeação6, uma
relação jurídica processual com a verificação, inclusive, da litispendência7.
Portanto, é possível estudar o comportamento das partes em dois mo-
mentos – o que não implica a constatação de que há uma ordem cronológica
exata entre tais momentos.
O primeiro refere-se à elaboração da convenção de arbitragem, no qual
se denota um comportamento negocial, fazendo incidir regras do regime de di-
reito privado entre as partes e, posteriormente, entre as partes e os árbitros, que
aceitam a investidura de poderes que lhes foi conferida. O segundo momento
é processual, concernente à relação formada entre partes e árbitros, no qual
se aplicam regras de um regime peculiar (arbitral), porém muito próximo ao
3 GUERRERO, Luiz Fernando. Convenção de arbitragem e processo arbitral. São Paulo: Atlas, 2009. p. 14.
4 “A arbitragem é um ‘equivalente jurisdicional’. Nos campos em que é cabível, substitui, faz as vezes, do processo
judicial. A sentença arbitral tem eficácia e a autoridade correspondentes à da sentença judicial (Lei nº 9.307,
art. 31). Isso significa que ela é apta a produzir efeitos idênticos ao da sentença judicial independentemente
de qualquer chancela ou homologação do Poder Judiciário. Por outro lado, ela adquire a estabilidade da coisa
julgada. Apenas poderá ser desfeita nas hipóteses e formas prevista em lei.” (TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e
parceria público-privada (PPP). Fonte: <http://www.academia.edu/231459/Arbitragem_e_PPP>, acessado em
12.04.2014)
5 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2009. p. 109.
6 “Só a demanda institui a relação jurídica processual, muito embora a arbitragem já esteja instaurada mediante a
aceitação do encargo pelo árbitro ou pelos árbitros. Não são coincidentes o momento de instauração da arbitragem
e o da formação da relação processual, ou processo arbitral.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na
teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 50)
7 CARMONA, Carlos Alberto. Op. cit., p. 103.
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regime jurídico processual público8. Em tese, a arbitragem deve ser analisada à
luz da teoria geral do processo9.
Para o presente estudo, pretende-se verificar a fase da relação jurídica
processual arbitral e a incidência e o controle da vedação ao comportamento
contraditório das partes e dos árbitros. Ao reconhecer-se a existência de uma
relação jurídica processual, afirma-se que as partes exercem posições jurídicas
e os árbitros o poder-dever lhes atribuído por um negócio jurídico legitimado
pelo princípio da liberdade das partes contratantes10.
O reconhecimento dessa relação também determina a observância aos
princípios basilares do processo, seja ele judicial (civil ou penal) ou arbitral11.
Logo, revela-se necessário tornar efetivo o devido processo legal em uma rela-
ção arbitral.
Conforme será visto adiante, a regra da vedação ao comportamento con-
traditório respalda a concretização do devido processo legal no procedimento
arbitral.
8 Cândido Rangel Dinamarco, com fulcro em José Carlos de Magalhães, entende que o tratamento deve ser o mesmo
entre processo judicial e arbitral (DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 48).
9 PARENTE, Eduardo Albuquerque. O processo arbitral como sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p. 47 e ss.
10 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 52.
11 Ademais, “a concepção menos formalista e mais elástica do processo arbitral relativamente ao processo civil não
dispensa, antes reforça, a necessidade de definir claramente os princípios fundamentais do processo arbitral”
(BARROCAS, Manuel Pereira. Manual de arbitragem. Coimbra: Almedina, 2010. p. 385).
12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 52-54.
13 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. O processo arbitral como sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p. 51.
14 Idem.
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estatal15. O estudo da preclusão na arbitragem é bem mais restrito, em home-
nagem ao seu caráter flexível.
A propósito, a LBA dispõe, em seu art. 20, um único momento preclusi-
vo . Por força da mencionada previsão, “[a] parte que pretender arguir ques-
16
15 Consoante Eduardo de Albuquerque Parente: “Pode-se dizer que ele [o instituto da preclusão] praticamente inexiste
no processo arbitral nos termos do modelo estatal” (idem, p. 120). Em contrapartida, cite-se a observação da
Manoel Caetano Ferreira Filho sobre o processo civil brasileiro em 1991: “O procedimento é rígido, impondo uma
ordem legal entre as atividades processuais, dividindo em fases destinadas à prática de certos atos processuais,
sendo que a passagem de uma a outra etapa importa, quase sempre, preclusão da faculdade de praticar atos que
deveriam ter sido realizados na anterior” (FERREIRA FILHO, Manoel Caetano. A preclusão no direito processual
civil. Curitiba: Juruá, 1991. p. 76).
16 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 58.
17 Sobre o mencionado artigo, cite-se o seguinte excerto doutrinário: “Entre estas últimas estão algumas das questões
relativas à suspeição e impedimento do árbitro: se as partes sabedoras de motivo para afastamento do árbitro,
deixam de alegá-lo, estão tacitamente concordando que tal motivo não causará a parcialidade do julgamento
(ou, pelo menos, estão aceitando o risco de eventual parcialidade), e consequentemente não podem reservar-se
no direito de, proferido o laudo, trazerem à baila a questão (a não ser, é claro, que o motivo de impedimento ou
suspeição tenha sido descoberto posteriormente). A preclusão, aqui ocorrerá se a parte que tiver conhecimento do
motivo que possa levar à recusa do árbitro deixar de apresentar a respectiva exceção na primeira oportunidade que
tiver” (CARMONA, Carlos Alberto. Op. cit., p. 284).
18 MONTORO, Marcos André Franco. Flexibilidade do procedimento arbitral. Tese (Doutorado em Direito Processual)
– Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. Fonte: <http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/2/2137/tde-16082011-161411/>, acessado em 26.04.2014.
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do caso pelos árbitros; por outro lado, tais decisões e pedidos das partes e dos
árbitros devem se pautar no dever de lealdade e proteção à confiança. É impor-
tante que se preserve certa previsibilidade durante o procedimento.
Com efeito, se há algum prejuízo ao que se esperava legitimamente do
procedimento arbitral por conta de um ato processual praticado em contradi-
ção a outro, deve-se torná-lo sem efeito ou declará-lo nulo.
Antes de explorar a regra de proibição ao comportamento contraditório
no processo arbitral, é necessário compreendê-la.
der, desde que a sua liberdade não agrida a liberdade do outrem. A amplitude
da liberdade é menor ou maior de acordo com os valores que orientam o Di-
reito em cada fase histórica20.
A vedação ou permissão da incoerência deve ser analisada dessa pers-
pectiva histórica relacionada à liberdade. Tende-se a tolerar mais a incongruên
cia quando se valoriza a autonomia da vontade.
19 “[...] a categoria do direito subjetivo eleva a livre manifestação da vontade individual à principal fonte de direitos
e obrigações.” (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire
contra factum proprium. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 39)
20 “E de fato, a história do direito mostra que diferentes épocas, houve diferentes formas de se tratar a incoerência,
e que, não obstante as diversas tentativas, só recentemente se pôde cogitar, de forma aceitável, de um princípio
jurídico de proibição ao comportamento contraditório.” (Idem, p. 18)
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A proibição ao comportamento contraditório, que remonta à época do
antigo Direito romano21, foi considerada em épocas mais liberais como um
valor contrário ao princípio da proteção à autonomia privada22. Afinal, ser in-
coerente também é uma expressão da liberdade. Não por acaso, o Código
Civil de 1916, cujas raízes remontam à filosofia liberal, não possui fundamen-
to expresso destinado a conter comportamentos contraditórios23. Há, quando
muito, “normas casuísticas [...] que parecem revelar uma subjacente repressão
legislativa ao comportamento incoerente”24.
O Código de Processo Civil de 1973 também era bastante pontual em
determinar certos comportamentos contraditórios como fatos extintivos ou im-
peditivos a determinados atos25. O instituto da preclusão pode ser apontado
como uma das formas, consolidada pelo Código de Processo Civil de 1973, de
controle da coerência em prol da consecução dos fins processuais.
Portanto, o nível de importância ao qual a liberdade (valor absoluto ou
não) é alçada revela o parâmetro que reforça ou infirma, no Direito, a repug-
nância à incoerência.
Nessa perspectiva, o modelo constitucional brasileiro, erigido sob prin-
cípios como a solidariedade e a dignidade da pessoa humana, condiciona a
autonomia privada ao respeito a outros valores26.
É dizer, quando em confronto com aqueles princípios, a contradição
passa a ser vedada, ainda que seja considerada uma manifestação da autono-
mia da vontade27.
21 MARTINS-COSTA, Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra
factum proprium. Revista da Ajuris, v. 32, n. 97, p. 143-170, mar. 2005.
22 “O venire contra factum proprium – o ir contra os próprios atos – encontrava-se, assim, inserido no âmbito da
autonomia privada do indivíduo, que era livre para contrariar o seu próprio comportamento, para alterar suas
posições e dar o curso que bem entendesse à sua vontade, independentemente das expectativas eventualmente
despertadas pela sua conduta. Além disto, um dever de manutenção de comportamento coerente pareceria
retrógrado, desconforme mesmo ao espírito de revolução e rompimento com as instituições pretéritas. Tudo que se
pretendia era negar o passado, e a história demonstra que, em momentos assim, a coerência não costuma ser um
imperativo.” (SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 42-43).
23 Idem, p. 71 e ss.
24 Idem, p. 74.
25 Basta ver o art. 503 do CPC/1973, que assim dispõe: “A parte, que aceitar expressa ou tacitamente a sentença ou
a decisão, não poderá recorrer”. O novo CPC contempla regra semelhante em seu art. 1.000 que determina que
“a parte que aceitar expressa ou tacitamente a decisão não poderá recorrer”.
26 “Em definitivo, ainda que um certo comportamento seja expressamente autorizado por lei ou por contrato, será
preciso verificar se a adoção nas circunstâncias concretas se conforma à dignidade humana e à solidariedade
social. Só assim o ordenamento jurídico contemporâneo lhe assegurará a tutela.” (SCHREIBER, Anderson. Op. cit.,
p. 64).
27 Conforme será demonstrado, a incidência da boa-fé objetiva nas relações jurídicas igualmente regula a amplitude
da liberdade. Nesse sentido, “com a aplicação do princípio da boa-fé, outros princípios havidos como absolutos
serão relativizados, flexibilizados ao contato com a regra ética” (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como
processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 42).
14 R������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������RBA Nº 52 – Out-Dez/2016 – DOUTRINA NACIONAL
31 “A boa-fé não é aí mencionada naquele sentido subjetivo, que foi incorporado pelo Código Civil brasileiro de 1916
e por várias outras codificações: a chamada boa-fé possessória, definida como um estado psicológico de ignorância
acerca de vícios que maculam um direito real. O § 242 do BGB traz, ao revés, uma concepção objetiva da boa-fé,
como standard de conduta leal e confiança (Treu und Glauben), independente de considerações subjetivistas. E se
esta concepção não é estranha a outras codificações dos séculos XVIII e XIX, não há dúvida de que, em nenhum
outro sistema, foi objeto de tanto desenvolvimento quanto no direito germânico.” (SCHREIBER, Anderson. Op. cit.,
p. 83)
32 Idem, p. 81. Segundo Almiro do Couto e Silva: “Nessa moldura, não será necessário sublinhar que os princípios
da segurança jurídica e da proteção à confiança são elementos conservadores inseridos na ordem jurídica,
destinados à manutenção do status quo e a evitar que as pessoas sejam surpreendidas por modificações do direito
positivo ou na conduta do Estado, mesmo quando manifestadas em atos ilegais, que possa ferir os interesses
dos administrados ou frustar-lhes as expectativas” (COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica
(proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos
administrativos: o prazo decadencial do artigo 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/1999).
Fonte: <http://www.direitodoestado.com/revista/rede-2-abril-2005-almiro%20do%20couto%20e%20silva.pdf>,
acessado em 23.03.2014).
33 Note-se, nessa linha, a função integradora que desenvolve a boa-fé objetiva nas relações contratuais. Pontual,
portanto, a lição de Anderson Schreiber: “Aspecto interessante dos deveres anexos está na sua origem não-
-voluntarista. Tendo como fonte a própria boa-fé objetiva, tais deveres independem da vontade das partes, e podem
surgir mesmo contra essa vontade” (SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 88).
34 Idem, p. 85.
35 Idem, p. 102. O autor também trabalha com a figura do abuso do direito, diferenciado-a da boa-fé objetiva,
principalmente pelo fato de que esta enuncia deveres e é constatada de forma mais objetiva. Em que pese a
diferenciação traçada pelo autor, conclui-se que “o venire contra factum proprium inclui-se exatamente nesta
categoria: um abuso do direito por violação à boa-fé. E não há que se discutir se sua natureza jurídica se enquadra
numa ou noutra figura. O comportamento contraditório é abusivo, no sentido de que é um comportamento que,
embora aparentemente lícito, se tona ilícito ou inadmissível. E isto justamente porque seu exercício, examinando
em conjunto com um comportamento anterior, afigura-se contrário à confiança despertada em outrem, o que
revela, no âmbito normativo, contrariedade à boa-fé objetiva” (idem, p. 120).
36 “A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à necessidade de qualificar esse comportamentos,
não previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos efeitos
correspondentes ao programa contratual objetivamente posto.” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito
privado. São Paulo: RT, 1999. p. 428)
37 “Os deveres instrumentais, por isso mesmo, não constituem elemento da relação contratual ab initio e enquadrados
num quadro fechado, com conteúdo fixo. A sua concretização opera, sempre, conforme a existência, ou não, de
determinados pressupostos verificáveis apenas no caso concreto, os quais, ‘à luz do fim do contrato, adquirem essa
eficácia’. E não apenas a sua existência: também a medida de sua intensidade.” (Idem, p. 449)
38 “Sob essa ótica, apresenta-se a boa-fé como norma que não admite condutas que contrariem o mandamento de
agir com lealdade e correção, pois só assim se estará a atingir a função social que lhe é cometida.” (Idem, p. 457)
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A propósito do presente tema, interessa o estudo do último pilar da boa-
-fé objetiva. A função limitadora revela um perfil negativo do princípio, com
vistas a conter o exercício da liberdade39 e de poderes.
O limite à liberdade é justificado na medida em que certas condutas dos
sujeitos envolvidos em determinadas relações jurídicas criam expectativas e in-
teresses juridicamente tuteláveis para outros sujeitos. Com efeito, por força da
incidência de uma modelo solidarista, o ordenamento jurídico passa a tutelar
também a confiança entre as partes40.
Na realidade, a doutrina, ao esmiuçar o conceito de boa-fé objetiva,
visualiza deveres de lealdade e confiança jurídica entre as partes41. E é em prol
do dever da confiança, balizado pela boa-fé objetiva, que a proibição ao com-
portamento contraditório é erigida42. Nessa linha, Anderson Schreiber é enfáti-
co ao arrematar que “por trás de qualquer norma em que se possa vislumbrar
vedação ao comportamento contraditório pode-se sempre identificar a tutela à
confiança”43.
A partir dessa perspectiva, a confiança (como dever) é tanto a pedra
fundamental da proibição ao comportamento contraditório, como também seu
mote e sua função (como legítimo interesse44 tutelável).
A seguir, serão explorados os pressupostos de aplicação e a forma pela
qual se deve extrair os efeitos da tutela à confiança por meio do nemo potest
venire contra factum proprium.
39 “Nesta função, situa-se uma vasta gama de comportamentos que o direito privado liberal permitiria fossem
praticados por excessiva reverência à autonomia privada dos contratantes. A título de ilustração, suponha-se
que um credor, envolvido com o devedor em negociações amigáveis para a reestruturação da dívida, proponha
repentinamente ação judicial exercendo o seu direito, contratualmente previsto, de pleitear a resolução do
contrato e o pagamento de multa em valor previamente estipulado. O exercício deste direito contratual, embora
expressamente assegurado, pode se afigurar, nestas circunstâncias, inadmissível por violação à boa-fé objetiva,
violação ao dever geral de levar em conta os interesses e expectativas da outra parte, no caso do devedor que
empreendia tempo e esforços na transparente tentativa de reestruturação do débito.” (SCHREIBER, Anderson. Op.
cit., p. 90).
40 “Com efeito, ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas
legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança releva-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas
como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva, como também como forte expressão da solidariedade
social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados ao direito privado
como um todo.” (Idem, p. 95)
41 Idem, p. 91. Tal construção é importante também quanto ao alcance dessas figuras. Nessa linha, assevera-se que:
“Las construcciones derivadas del principio general de la buena fe tienen el mismo valor y alcance que el próprio
principio” (BORDA, Alejandro. Op. cit.).
42 Menezes Cordeiro revela a preocupação da remissão apenas à boa-fé como fundamento da proibição ao
comportamento contraditório. Por isso, adverte que “substituir uma referência amorfa à boa-fé pela menção
da confiança não é trocar uma fórmula vazia por outra similar. A confiança permite um critério de decisão:
um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. A
confiança contorna, ainda, o problema dogmático, de solução intricada, emergente da impossibilidade jurídica de
vincular, permanentemente, as pessoas aos comportamentos uma vez assumidos. Não é disso que se trata, mas
tão só, de imputar aos autores respectivos as situações de confiança, que de livre vontade, tenham suscitado”
(MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007.
p. 756).
43 SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 99.
44 Idem, p. 131.
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45 Idem, p. 100. Nesse sentido, e sobre o campo aberto ao julgador, cite-se o seguinte excerto: “O tipo de exercício
inadmissível de posições jurídicas, ínsito nos comportamentos contraditórios é, porém, muito extenso. Ele capta os
dados periféricos disponíveis em termos de grandes generalidades, com dificuldades imagináveis na obtenção de
soluções novas. Embora vocacionado para resolver casos concretos, sempre que não seja afastado, ele não pode
ter em conta as especificidades de todas as hipótese múltiplas que, para ele, apelem, deixando, nessa medida,
um espaço largo ‘a decisão do intérprete-aplicador’. O estabelecer de linhas dedutivas com base no venire conra
factum proprium é, em particular, inviável” (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Op. cit., p. 770).
46 SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 104.
47 “O que se tem até aqui é um princípio de proibição ao comportamento contraditório que não deve ser entendido no
sentido tradicional de um princípio geral de direito, de aplicação subsidiária e tão-somente interativa, mas como
expressão da cláusula geral de boa-fé objetiva, e em especial como uma sua expressão na função de limitação ao
exercício de situações jurídicas subjetivas.” (Idem, p. 120)
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validação de atos contraditórios. Daí a ideia de subsidiariedade48. Não haven-
do regra específica – inclusive alguma pactuada ou convencionada pelas par-
tes em uma relação jurídica –, que aborde os efeitos da contradição no plano
jurídico, entende-se prevalecer a vedação ao comportamento contraditório por
força da tutela à confiança – pilar fundante da boa-fé objetiva.
Portanto, defende-se a aplicação desta regra no processo arbitral, consi-
derando a sua flexibilidade e a ausência de regras sobre preclusão.
Dessa forma, quando não houver hipótese normativa detalhada sobre
situação em que a confiança deve ser tutelada, faz-se necessário averiguar nos
fatos analisados os pressupostos que conduzem à aplicação da vedação ao
comportamento contraditório.
Por ser subsidiário, o venire contra factum proprium possui um caráter
bivalente de interpretação. Se, por um lado, pelo fato de não encontrar rigidez
normativa, permite-se uma maior elasticidade da aplicação dessa figura jurídi-
ca; por outro, é importante que ela seja contida. Assim, é preciso eleger com
segurança jurídica os momentos em que o valor da conduta não vinculante,
que em algumas situações gera confiança, será maior do que aquele despendi-
do aos atos propriamente vinculantes49.
Logo, destaca-se a importância de sistematizar a constatação dos pressu-
postos que conduzem à aplicação do venire contra factum proprium.
Consoante Anderson Schreiber, são quatro os pressupostos50:
(i) a existência de uma conduta ou um comportamento inicial;
(ii) a legítima confiança na manutenção da conduta;
(iii) um comportamento contraditório à conduta e violador da confiança;
(iv) um dano ou um perigo de dano causado pela conduta contraditória.
48 Menezes Cordeiro explica essa característica à luz das previsões do ordenamento jurídico português nos seguintes
termos: “O investimento de confiança, por fim, pode ser sinteticamente explicitado como a necessidade de, em
consequência do factum proprium a que aderiu, o confiante ter desenvolvido uma actividade tal que o regresso
à situação anterior, não estando vedado de modo específico, seja impossível, em termos de justiça. Manifesta-se,
no fundo, aqui, mais uma consequência da natureza subsidiária da proibição de venire contra factum proprium;
outras consequências prendem-se com o afastamento do regime da confiança, sempre que normas específicas
atribua, à situação gerada, quaisquer outros efeitos” (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Op. cit.,
p. 759).
49 Idem, p. 761. Essa é uma preocupação que permeia o texto do mencionado autor, como se pode denotar do
seguinte trecho: “Deve, assim, entender-se que a protecção da confiança baseada e factos naturais não pode ser
superior à que o Direito conceda à emergente dos factos artificiais, i. é, dos factos que a própria ordem jurídica
estabelece para gerarem credibilidade no meio social” (Idem, p. 760).
50 SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 132. Quanto aos pressupostos que devem ser verificados, Menezes Cordeiro
explica: “A articulação destes requisitos entre si não opera em termos cumulativos comuns: a falta de algum
deles pode ser suprida pela intensidade especial que assumam os restantes. Neste domínio como noutros, a
concretização da boa fé impõe o abandono de subsunções conceptualísticas como modo de aplicar o Direito. A
concatenação elástica em que eles se encontram pode ser expressada através da ideia de sistema móvel, a que se
fará oportuna referência” (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Op. cit., p. 759). Ainda, para um
cotejo com os fundamentos para aplicação da teoria dos atos próprios na Argentina, confira-se: BORDA, Alejandro.
Op. cit.
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Em suma, a aplicação da proibição do comportamento contraditório, em
linhas gerais, dependerá de uma conduta não vinculante que gere confiança.
Do contrário, e sendo a conduta vinculada (por força de um comando norma-
tivo ou contratual), não se verificará a necessidade de se tutelar a confiança.
Como referido antes, havendo norma que torne vinculante algum ato, a tutela
à confiança já estará ali abrangida por conta da própria responsabilidade obri-
gacional ou legal51.
Nada obstante isso, o campo de aplicação da vedação do comportamen-
to contraditório é amplíssimo, eis que o ordenamento jurídico – bem como
a criatividade das partes durante o draft das regras que incidirão sobre uma
relação jurídica – é incapaz de apreender todas as condutas e dinâmicas que
surgem diuturnamente. Logo, afirma-se que o venire contra factum proprium
deve ser considerado como um catalisador de atos minimamente relevantes,
sob a perspectiva jurídica, tornando-as condutas vinculantes (ou potencialmen-
te vinculantes)52.
No mais, a confiança gerada deve ser qualificada objetivamente como
legítima. Extrai-se a confiança do caso concreto pelo nível de adesão de um su-
jeito à conduta praticada por outrem. Tal nível de adesão deverá ser aferido de
maneira objetiva, ainda que de forma presumida53, tanto pelos atos derivados
da confiança quanto, também, pela força representativa da conduta inicial. No
mais, denota-se a legitimidade da confiança a partir da ausência de ressalvas
ou reservas de alteração da conduta inicial adotada pela outra parte.
A conduta contraditória é caracterizada por uma posição jurídica54 assu-
mida pelo mesmo centro de interesse55 que adotou a primeira conduta e que
rompe a confiança legítima do sujeito que a aderiu. Ou seja, para que uma
posição jurídica seja qualificada como comportamento contraditório, faz-se
51 “Por outro lado, afasta-se, também, à partida, a hipótese de o factum proprium, por integrar os postulados
da autonomia privada, surgir como acto jurídico que vincule o autor em termos de o segundo comportamento
representar uma violação desse dever específico; accionar-se-iam, então, os pressupostos da chamada
responsabilidade obrigacional e não os do exercício inadmissível de posições jurídicas.” (MENEZES CORDEIRO,
António Manuel da Rocha e. Op. cit., p. 746)
52 SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 139-140.
53 Idem, p. 141-143. BORDA, Alejandro. Op. cit. Importante a seguinte advertência: “[...] o vincular uma pessoa
às suas atitudes faz sentido, em particular, quando tenham um beneficiário; este, por seu turno, não poderia
recusar as necessárias contrapartidas. As permissões normativas esgotar-se-iam no primeiro exercício e todo o
relacionamento social converter-se-ia num edifício rígido de deveres irrecusáveis. A essência do jurídico contradiz,
por si, tal possibilidade: numa crítica clássica, mas ainda actual, às tentativas de redução do Direito à sociologia,
deve ter-se presente que o Direito não sanciona o que está; tem vocação efectiva para dirigir num sentido ou noutro,
os comportamentos humanos. Entre os meios disponíveis para isso, e dos mais avançados pelo prisma da evolução
social, está o não reconhecer relevância jurídica a determinados comportamentos” (MENEZES CORDEIRO, António
Manuel da Rocha e. Op. cit., p. 751).
54 Idem, p. 769.
55 “A partir destes diferentes exemplos (devedores solidários, sociedades coligadas, e órgãos administrativos), vê-se
que a confiança depositada por terceiros não abrange apenas a coerência do sujeito formal do factum proprium,
mas a coerência de todo o centro de interesse que ele integra. Em outras palavras, o comportamento inicial de um
sujeito pode gerar legítima confiança não apenas na conservação de seu comportamento, mas de todos aqueles
sujeitos ou entes que se encontram a ele vinculados ou que ocupam a mesma posição jurídica” (SCHREIBER,
Anderson. Op. cit., p. 161). Para uma visão mais restritiva, em que se pugna pela identidade de sujeitos como
pressuposto da teoria dos atos próprios, leia-se: BORDA, Alejandro. Op. cit.
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imprescindível traçar o nexo de causalidade entre a posição jurídica adotada e
o rompimento da confiança. Tal comportamento prescinde da análise de culpa
lato sensu e da licitude do ato56. Vale apenas a análise objetiva da posição ju-
rídica que rompe a confiança57.
Por último, verifica-se se há dano ou perigo eminente de lesão por conta
do comportamento contraditório. É esse o elemento final e que arremata a jus-
tificativa da aplicação da regra da proibição do comportamento contraditório.
A rigor, o elemento é imprescindível para que ocorra a tutela à confiança, eis
que a figura jurídica, apesar de possibilitar a aplicação de algum tipo de sanção
ao sujeito incoerente, deve ser pensada sob a perspectiva sempre do sujeito
que confia58. Por isso, remédios, como a reparação e a própria declaração de
ineficácia (ou invalidade) de posições jurídicas assumidas em contradição com
as anteriores, devem ser tomados como prioritários.
Enfim, após a abordagem sobre alguns aspectos gerais da proibição do
comportamento contraditório, passa-se a abordar as possibilidades de sua apli-
cação no âmbito do direito processual civil brasileiro e nos procedimentos
arbitrais.
56 Não se deve confundir um ato ilícito desde a sua gênese com um ato que passa a ser reprovável pelo Direito por
outras circunstâncias. Assim, explica a doutrina que “o venire contra factum proprium consiste em uma conduta
aparentemente lícita, que se torna abusiva ou, na dicção do art. 187 do Código Civil, ilícita, apenas no sentido
em que viola, por força da própria contradição, a confiança legítima de outrem e a boa-fé objetiva” (SCHREIBER,
Anderson. Op. cit., p. 146).
57 BORDA, Alejandro. Op. cit.
58 “Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira
actuação, que o Dirieto não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa, com justificação, a
actuação em causa.” (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Op. cit., p. 769)
59 Assevera a doutrina internacional que “o princípio da boa-fé domina todo o processo arbitral e tem importantes
consequências práticas. Consiste na exigência às partes de um comportamento tendente a não dificultar a
constituição do tribunal arbitral e a colaborar com este no decurso da instância arbitral, no sentido de não criar
entraves desnecessários ao processamento regular da acção arbitral” (BARROCAS, Manuel Pereira. Op. cit.,
p. 385).
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boa-fé objetiva, pelos atores da relação jurídica processual, inclusive na arbi-
tragem, é imperioso notar-se o dever de agir com lealdade e confiança.
Por isso, é muito difícil infirmar a possibilidade de controle e proibição
de atos contraditórios que rompam com a legítima confiança gerada nas partes
em um processo arbitral. Como afirmado, tal controle nada mais é do que a
expressão do próprio devido processo legal e da boa-fé objetiva.
Internacionalmente, a proibição ao comportamento contraditório é sus-
citada por meio da figura jurídica do estoppel. Trata-se de figura com diversas
variações60, ora comparada ao instituto da coisa julgada, ora da preclusão61,
bem como ao venire contra factum proprium. Todas essas variações revelam
que a função do estoppel também é garantir a segurança jurídica e proteger a
confiança dos sujeitos da relação jurídica processual.
O estoppel foi desenvolvido no âmbito da common law e teve grande
aceitação na arbitragem internacional. A doutrina em certa medida equipara as
figuras do estoppel, verwirkung e venire contra factum proprium62. No entanto,
destaca-se que o venire contra factum proprium não pode ser equiparado ape-
nas à proteção da aparência jurídica, função que o estoppel também assume.
Há inserto nessas figuras o próprio dever de comportamento congruente63. É
dizer, a tutela ocorre da perspectiva do sujeito que confia e não apenas do
panorama criado pelo sujeito que aparenta agir de uma determinada maneira.
À guisa exemplificativa, o estoppel serve para compelir a instauração
de arbitragens mesmo sem a existência expressa de convenção. Nesse caso,
fundamenta-se tal decisão na verificação de comportamentos concludentes64
60 MARTINS-COSTA. Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito... cit., p. 148. A autora trata
da figura do estoppel by conduct como princípio processual integrante das regras de prova (rules of evidence).
61 “In common law jurisdictions, rules of preclusion are generally not codified, but instead based largely or entirely
upon judicial authority. Most common law jurisdictions recognize two basic types of preclusion: res judicata
(also termed ‘claim preclusion’) and issue estoppel (also termed ‘collateral estoppel’ or ‘issue preclusion’). In
most common law legal systems, the authorities formulating the precise scope an extent of these doctrines are
complex and not always clear.” (BORN, Gary B. International Commercial Arbitration. Alphen aan den Rijn:
Kluwer, v. 2, 2009. p. 2882)
62 FAUNDEZ, Maria Nélida Tur. La prohibición de ir contra los actos proprios y el retraso desleal. Pamplona:
Thomson Reuters, 2011, p. 21; MARTINS-COSTA. Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um
direito... cit., p. 145. Todas essas figuras são reconhecidas a partir do princípio da boa-fé objetiva, conforme
se denota do seguinte excerto: “However, the principle of good faith is particularly useful when understood
as providing the basis for more specific rules, which may in turn become general principles. This is the case,
for example, of the principle that a party cannot contradict itself to the detriment of another. This principle is
known in German and Swiss law by the maxim non concedit venire contra factum proprium and, in common
law countries, as estoppel by representation. It is found in French law in the form of a principle of consistency
and has also been recognized in arbitral case law. It enables arbitrators to take concrete measures where the
conditions for the application of the principle are satisfied, which occurs far less frequently than parties suggest.
Even the most reticent observers of a phenomenon which they perceive as a means allowing arbitrators to create
new rules of law recognize that the principle of good faith potentially constitutes one of the richest sources of lex
mercatoria.” (GAILLARD, Emanuel; SAVAGE, Jonh. Applicable law chosen by the parties. In: ______. Fouchard
Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 1999. p. 819).
63 BORDA, Alejandro. Op. cit.
64 “[...] um comportamento a partir do qual terceiros podem inferir um sentido negocial [...]” (MARTINS-COSTA.
Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito... cit., p. 169).
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no sentido de um terceiro participar de uma relação jurídica, observando e
beneficiando-se de contratos relacionados que possuem cláusulas arbitrais65.
No que tange ao processo, a aplicação do venire contra factum proprium
ou estoppel serve como fundamento para o árbitro negar a produção de pro-
vas, ou formulação de novos pedidos, em fases avançadas do processo66. Com
efeito, a flexibilidade do procedimento cederá a proteção à confiança, ainda
que não haja o estabelecimento de termos preclusivos ou momentos predeter-
minados em que a demanda deve ser estabilizada.
Por último, a proteção à confiança das partes se estende ao cumprimen-
to das sentenças arbitrais, impedindo que a parte prejudicada venha a arguir
questões para anular o procedimento, quando demonstrou concordar com ele
no pretérito67. Ou mesmo para evitar que o árbitro julgue determinado pedido
por falta de provas, quando recusou a produção requisitada pela parte que
formulou o pedido.
É inegável que pedidos de anulação de sentença arbitral ou pedidos pelo
seu não reconhecimento, quando estrangeira, devem levar em consideração a
regra, impossibilitando a validação de pronunciamentos eivados por condutas
que se tornaram vinculantes no passado. Por outro, tais pedidos devem ser
refutados quando se pautam em fundamentos que, no passado (durante a trami-
65 “Particularly in common law jurisdictions, ‘estoppel’ is a well-recognized legal doctrine which can be invoked
to preclude parties from denying that they are party to arbitration (or other) agreements. In these jurisdiction,
estoppel is defined in various ways, but generally means that a party precluded by consideration of good faith
from acting inconsistently with its own statements or conduct.” (BORN, Gary. B. International arbitration: cases
and materials. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 2011. p. 523). Ver também em: HALL, Robert M. Equitable Estoppel:
Binding nonsignatories to arbitral clauses. Fonte: <http://www.robertmhall.com/articles/EquitableEstopArt.pdf>,
acessado em 15.10.2013.
66 “However, it is also the panel’s view that the parties, especially the appellant, are not allowed to raise sudden and
ill-timed claims at the latest stage of the procedure. The panel points out that a general principle of ‘immutability
of the case’ applies in the frame of appeal arbitration procedure. New claims and new evidence should only be
admitted under exceptional circumstances (§ 14). The panel bases its reasoning on the principles of loyalty,
straightforwardness and transparency, namely estoppel (§ 12). The doctrine of estoppel is recognized by sports
arbitration centers, such as the CAS, defining it as a general principle of law ‘firmly established in common law
and known in other legal systems even though under a different heading (e.g. reliance in good faith, venire contra
factum proprium) [...] that arises when one makes a statement or admission that induces another person to
believe something and that results in that person’s reasonable and detrimental reliance on the belief.” (PELTIER,
Marc. The specificity of arbitrating sports-related dispute. International Journal of Arab Arbitration, v. 5, Issue 2,
p. 4, 2013)
67 “Com efeito, quem elege contratualmente a via arbitral e depois pleiteia invalidade da cláusula com o escopo
de transferir o litígio à sede judiciária pratica venire contra factum proprium, atraindo para si, conforme as
circunstâncias concretas, uma de duas consequências possíveis: (i) a paralisação da conduta incoerente, com
a manutenção da competência arbitral para a solução do litígio; ou (ii) o dever de indenizar a contraparte pelo
comportamento incoerente quando a preservação do poder arbitral se revelar, por alguma razão, impossível. Note-
-se, a propósito, que nem mesmo a nulidade da cláusula compromissória, se reconhecida na espécie, afasta tais
consequências, sendo, antes de se balancear – como será explicado no próximo item – o interesse público por
trás da nulidade e outro interesse, também público, que impõe a observância da boa-fé objetiva e o respeito à
confiança recíproca no tráfego negocial” (SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 144). Nesse sentido, e comentando
dois casos de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira julgados pelo STJ, quais sejam: L’Aiglon S.A vs.
Têxtil União S.A e Mitsubischi Eletric Corporation vs. Evadian Indústrias Amazônicas S.A, em que se tutelou a
confiança das partes a partir a incidência do princípio da boa-fé, confira-se o artigo de MOSER, Luiz Gustavo.
Cláusula compromissória: o silêncio e a lealdade negocial no juízo arbitral. Fonte: <http://www.cedin.com.br/
revistaeletronica/artigos/cl%c1usula%20compromiss%d3ria%20Luiz%20Gustavo%20Moser.pdf>, acessado em
04.05.2014.
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tação do processo), deixaram de ser suscitados gerando a confiança nas partes
de que os atos praticados no procedimento arbitral seriam válidos.
68 Veja-se, por exemplo, a solução adotada pela doutrina estrangeira: “Em nossa opinião, a parte que incumpra
injustificadamente o dever de boa fé pode ser constituída em responsabilidade civil nos termos gerais de direito
por violação da convenção de arbitragem dado o seu caráter simultaneamente instrumental de vinculação das
partes a recorrer a arbitragem e substantivo na justa medida em que a convenção de arbitragem é fonte de direitos
e obrigações de natureza contratual próprios, que estão para além e são independentes do carácter meramente
instrumental da convenção” (BARROCAS, Manuel Pereira. Op. cit., p. 385-386).
69 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 57.
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“decretação da nulidade da sentença arbitral” deve observar as hipóteses pre-
vistas no art. 32 da LBA, que acarretam a nulidade da sentença arbitral.
A verificação de comportamentos contraditórios que gerem lesões ao de-
vido processo, sejam eles praticados pelas partes ou pelos árbitros, encaixa-se
perfeitamente na hipótese do inciso VIII do art. 32 da LBA.
Tal dispositivo prevê que será nula a sentença arbitral caso “forem des-
respeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei”. O art. 21, § 2º,
encerra os princípios garantidores do devido processo legal. Na visão de Carlos
Alberto Carmona por força do mencionado dispositivo, o Judiciário poderá
controlar as escolhas das partes e dos árbitros, bem como detectar os excessos
cometidos durante o processo70.
No entanto, conforme exposto anteriormente, é preciso que os Tribunais
Judiciais, para além da análise objetiva dos comportamentos e das expectativas
legítimas das partes (prescindindo de análise de culpa lato sensu), constatem a
efetiva (ou efetivo potencial de) lesão ao processo arbitral.
Incoerências irrelevantes devem ser desprezadas, sob pena de se dar va-
lor maior a uma simples nulidade, desprestigiando-se todo o labor exercido
para a consecução de uma sentença arbitral justa.
Além disso, não se olvide que esse mesmo exercício deverá ser feito
quanto ao reconhecimento de sentenças estrangeiras no Brasil, que se sub-
metem à Convenção de Nova York sobre o reconhecimento e a execução de
sentenças arbitrais (Decreto nº 4.311/2002).
O art. V, item 2, alínea b, da mencionada Convenção dispõe que o STJ,
no Brasil, poderá recusar o reconhecimento de sentença arbitral que seja con-
trária à ordem pública. O conceito e conteúdo de ordem pública são bastante
fluidos, de difícil precisão. No entanto, dentro dos limites extensos de sua no-
ção, constata-se a formação de ordem pública transnacional71, que em arbitra-
gens internacionais é bastante observada.
Entre os princípios reconhecidos por amplo consenso da comunidade
internacional destacam-se o devido processo legal e os seus corolários, bem
70 CARMONA, Carlos Alberto. Op. cit., p. 295. Atribuindo natureza jurisdicional ao processo arbitral, cite-se o
seguinte escólio: “[...] o processo arbitral, até em razão de sua natureza jurisdicional, deve respeitar, sob pena de
nulidade absoluta, ao devido processo legal. Os operadores comerciais jamais se sentiriam confortáveis com um
meio alternativo de solução de conflitos que ignorasse o devido processo legal” (FERNANDES, Marcus Vinicius
Tenorio da Costa. Anulação da sentença arbitral. São Paulo: Atlas, 2007. p. 70).
71 Consoante elucidado por Ricardo Ramalho Almeida: “Reunidos aqueles princípios mais fundamentais, geralmente
reconhecidos na comunidade internacional, de forma consensual, como inafastáveis pelo julgador e irrenunciáveis
pelas partes, pretende-se que a ordem pública transnacional, ou ordem púbica ‘verdadeiramente’ internacional,
seja a síntese das diversas noções nacionais de ordem pública, tendo um autêntico caráter de internacionalidade,
não só quanto a seus efeitos, mas também quanto à sua origem” (ALMEIDA, Ricardo Ramalho. Arbitragem
comercial internacional e ordem pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 206).
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como a proteção da legítima expectativa das partes72. Nesse sentido, consoante
escólio de Humberto Theodoro Junior: “Para o processo justo, a teoria da con-
fiança apresenta-se como peça natural do princípio da boa-fé, cuja observância
é de ordem pública [...]”.
Dessa forma, é imperativo reconhecer-se que qualquer processo arbitral
eivado da prática de comportamentos contraditórios, que maculem a confian-
ça legítima das partes e dos árbitros, não merecerá o reconhecimento de sua
validade e eficácia.
conclusão
Enfim, o presente artigo visou a demonstrar o reconhecimento de aplica-
bilidade da regra da proibição do comportamento contraditório no âmbito do
processo arbitral. Tal regra tem por fim constituir barreiras preclusivas a atos
tomados pelos árbitros e pelas partes que, de alguma forma, invistam contra
situações regularmente consolidas no âmbito do processo arbitral.
Em suma, deve-se evitar que tanto as partes quanto os árbitros sejam
surpreendidos com a alteração de comportamento, de forma imotivada (injus-
tificável) e que possa causar algum dano ao procedimento.
Constatada alguma situação que se enquadre na hipótese de um com-
portamento contraditório, abalando objetivamente a confiança de uma das par-
tes do procedimento arbitral e gerando danos ao procedimento, deve o árbitro
ou o juiz desconsiderar o ato, declarando-o nulo ou ineficaz.
Caso o árbitro aja em contradição, ferindo a confiança legítima das par-
tes, gerando danos evidentes, resta configurada hipótese excepcional de anula-
ção da sentença por vício do procedimento arbitral.
72 “O respeito ao devido processo legal e seus corolários são requisitos universalmente reconhecidos como necessários
à validade das sentenças arbitrais e à sua aptidão para serem reconhecidas pelos órgãos estatais de execução e,
notadamente, para o reconhecimento das sentenças arbitrais em país diverso daquele onde prolatada. [...] São
também pertinentes nessa ordem de cogitações os princípios específicos de direito arbitral, já consagrados e objeto
de amplo consenso na comunidade internacional, ainda que não sejam adotados pela totalidade de países, pois
consenso não implica unanimidade (Fouchard; Gaillard; Goldman, 1999, p. 863; Racine, 1999, p. 360; Lalive,
1989, p. 69; Gailard, 1995, p. 26; Seraglini, 2001, p. 294; Pommier, 1992, p. 349), tais como princípios da
autonomia da cláusula compromissória em relação ao contrato onde se acha inserida, o princípio da competência
dos árbitros para decidir prioritariamente sobre sua própria competência (Kompetenz-Kompetenz) (Derains, 1993,
p. 838), o princípio da autonomia da vontade na escolha do direito aplicável à substância do litígio (Fouchard;
Gaillard; Goldman, 1999, p. 785), o princípio da proteção, dentro do respeito à ordem pública, da legítima
expectativa das partes (Lalive, 1989, p. 52-53), entre outros.” (Idem, p. 220-221).