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Capítulo 38

Poderes inerentes da função de árbitro


no Brasil: a proposição de um teste
em prol da segurança jurídica

Bruno Guandalini1

Sumário: Introdução; I. As fontes para uma identificação ampla dos


poderes inerentes da função de árbitro; II. As limitações da efetiva in-
vocação dos poderes inerentes da função de árbitro; Conclusão;
Bibliografia.

Introdução
A Lei de Arbitragem Brasileira (Lei 9.307/96) completa 25 anos. São 25 anos
de suporte ao consentimento das partes e da convenção de arbitragem, de reconhe-
cimento da jurisdição de árbitros e da sentença arbitral. A Lei respeita o contrato
de investidura2, em decorrência do consentimento ex ante das partes em conce-
der a missão jurisdicional ao árbitro.3

1. Doutor pela Université Côte d’Azur. LL.M. pela Georgetown University Law Center.
Mestre pela Université de Paris II (Panthéon-Assas). Presidente da ARBITAC (Câmara
de Mediação e Arbitragem das Associação Comercial do Paraná).
2. Entendemos que é o contrato de árbitro que concede jurisdição ao árbitro, co-
mo recentemente defendido em Bruno Guandalini, Economic Analysis of the Ar-
bitrators’ function. (Wolters Kluwer, 2020). Pág. 3. Mas não ignoramos a posição,
com a qual não concordamos, de que a jurisdição do árbitro não tenha nenhuma
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A convenção de arbitragem, ex ante ou ex post, prevista respectivamente


3

nos seus Arts. 4º e 9º, não somente concede jurisdição aos árbitros, mas tam-
bém estabelece a missão do árbitro; o objetivo jurisdicional. Para alcançar o
objetivo dessa jurisdição o árbitro tem poderes expressamente previstos na
convenção ou na lei ou mesmo decorrentes da própria missão jurisdicional à
qual fora incumbido.
É na convenção de arbitragem – no consentimento das partes – portanto,
que está a fonte primária dos poderes dos árbitros. Não que a Lei de Arbitragem
não regule os poderes dos árbitros; ela faz em diversas situações, mas atribui uma
importância particular ao acordo das partes4 o qual sempre será incompleto.
Ocorre que tanto a Lei quanto a vontade das partes em diversos casos apenas
enumeram poderes que são inerentes à função de árbitro.5
Seja por uma questão de aumento de segurança jurídica e previsibilidade,
seja pelo importante desenvolvimento da arbitragem no Brasil, as convenções de
arbitragem, os regulamentos das principais instituições e mesmo a Lei têm trazi-
do cada vez maior enumeração desses poderes, o que diminuiria num primeiro
momento o próprio interesse em se estudar os poderes inerentes da função de
árbitro.
Entretanto, com expressiva sofisticação das partes e dos advogados em ar-
bitragem (que não necessariamente levam a uma postura mais ética e mais coo-
perativa), aparece a utilização cada vez maior das famosas táticas de guerrilha
no procedimento arbitral.6 As partes utilizam-se de mecanismos cada vez mais
criativos para plantar nulidades no procedimento quando não têm interesse na
validade da sentença. Atrapalham mais e mais a eficiência do procedimento.
Buscam aumentar custos e sufocar partes mais frágeis. Utilizam-se de artifícios

relação com o contrato de árbitro. Ver. Pierre Mayer, Le mythe du contrat d’arbitre, in
Mélanges em l’honneur du Professeur Bertrand Ancel: Le droit à l’épreuve des siècles et
des frontières (Marie-Elodie Ancel, Louis d’Avout, Marie Goré & Jean-Michel Jude
eds., LGDJ 2018). Ver também Léonor Jandard, La relation entre l’arbitre et les par-
ties: critique du contrat d’arbitre (François-Xavier Train dir., Paris Nanterre 2018).
3. Ver Arts. 3º e 4º da Lei de Arbitragem.
4. Ver Art. 21, § 1º, da Lei de Arbitragem.
5. Seguindo o entendimento de que árbitro não é profissão ou cargo, mas uma função.
Tratar-se-á neste texto de poderes inerentes à função de árbitro.
6. Margaret L. Moses, Inherent and Implied Powers of Arbitrators, in Defining Issues in
International Arbitration: Celebrating 100 Years the Chartered Institute (Edited by Ju-
lio César Betancourt, International Commercial Arbitration 2016). Parágrafo 21.25.
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 661

cada vez mais agressivos para direta ou indiretamente coagir a contraparte, seus
procuradores ou até mesmo do árbitro, muitas vezes passando do limite ético do
litígio e do fairplay no procedimento arbitral. Vê-se, portanto, uma necessidade
crescente de que a função de árbitro seja exercida com mãos firmes7 e invoquem
poderes suficientes para controlar qualquer conduta que não se coadune com a
legítima expectativa das partes nem com a eficiência preconizada e esperada do
instituto da arbitragem.
No meio disso tudo estão os árbitros, com suas canetas e os poderes decor-
rentes dela, com a obrigação de conduzir o procedimento de forma eficiente, de
entregar a sentença arbitral perfeita e válida, no prazo estipulado pelas partes e
com o objetivo principal de que ela seja aceita pelas mesmas.8
A discussão se dá quando o árbitro, para atingir esses objetivos, precisa
invocar poderes que não tenham sido expressamente dispostos pelas partes ou
pela lei. Portanto, deve-se investigar se o árbitro detém poderes inerentes e não
escritos, de onde também surgem outras questões sobre fontes e limitações da
sua invocação.
A primeira discussão se deu em torno do princípio competência-compe-
tência. Com origem para o estabelecimento da própria jurisdição de cortes inter-
nacionais, o poder para se dizer o limite da sua própria competência é hoje um
poder enumerado em quase todos os países que detêm arbitragem moderna,
baseada nos mesmos princípios que norteiam a Lei Modelo da Uncitral.9
Mais recentemente, a discussão sobre poderes inerentes começou a ga-
nhar força em âmbito internacional quando a International Law Association
(ILA) resolveu atribuir um mandato específico para o Comitê de Arbitragem
Comercial Internacional para que preparassem um relatório sobre os poderes
inerentes e implícitos dos árbitros. O resultado foi a publicação de um Relató-
rio10 em 2014 e que gerou Recomendações11 adotadas em 2016. O interesse da

7. Margaret L. Moses, Inherent and Implied Powers of Arbitrators, in Defining Issues in


International Arbitration: Celebrating 100 Years the Chartered Institute (Edited by Julio
César Betancourt, International Commercial Arbitration 2016). Parágrafo 21.25.
8. Charles Jarrosson, L’acceptabilité de la sentence (4 Rev. Arb. 793, 2012).
9. Lei Modelo da Uncitral.
10. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014).
11. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014). Anexo I. Recomendações.
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iniciativa da ILA foi de encontrar soluções para as situações não regulada pelas
partes ou pela Lei nas quais os árbitros são confrontados a decidir e conduzir
o procedimento.
De fato, os árbitros vêm cada vez mais se confrontando com situações
nas quais são chamados a ter o controle do procedimento, a serem colocados
em situações de potencial ou sugestivo conflito de interesses ou mesmo a se
encontrarem no meio da guerra estabelecida pelas partes que se utilizam de
técnicas mais e mais desenvolvidas para criar tumulto e eventuais nulidades
processuais.
Apesar da tendência de se enumerar cada vez mais os poderes dos árbitros,
sempre vão aparecer situações inesperadas, imprevistas e muitas vezes urgentes.
O grande problema, como bem reconheceu o relatório da ILA, é que “os árbitros
que se deparam com novos problemas e resolvem por recurso aos poderes implí-
citos e inerentes podem ser desafiados por parcialidade pela parte prejudicada
e perdedora.”12 O problema de direito está justamente quando se precisa agir,
os poderes não são enumerados e o árbitro arrisca ser pechado de parcial ou de
extrapolar os limites da sua jurisdição.13
Assim, porque os poderes inerentes são necessários para uma jurisdição
efetiva, devem estar disponíveis para os árbitros dentro dos mais diferentes sis-
temas jurídicos.14 Por isso, é importante determinar os poderes inerentes dos
árbitros para que se conceda mais segurança jurídica, o que não se fará com enu-
meração, já que ela em si é por natureza incompleta, ineficiente e impossível. É o
bom entendimento das fontes, origem e principalmente limitações da invocação
dos poderes inerentes que concederá maior previsibilidade na determinação dos
poderes para controlar o procedimento, partes, seus procuradores, testemunhas
e, finalmente, para auxiliar a interpretação e controle pelo judiciário. Ver-se-á,
portanto, num primeiro momento, as fontes dos poderes inerentes (I) para, em
seguida, analisar os necessários limites da sua efetiva invocação (II).

12. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014). Pág. 3.
13. Margaret L. Moses, Inherent and Implied Powers of Arbitrators, in Defining Issues in
International Arbitration: Celebrating 100 Years the Chartered Institute (Edited by Julio
César Betancourt, International Commercial Arbitration 2016). Parágrafo 21.03.
14. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014). Pág. 18.
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I. As fontes para uma identificação ampla dos poderes inerentes


da função de árbitro

A utilização dos poderes inerentes para regular o processo teve seu apareci-
mento no sistema common law, justamente como base para o desenvolvimento
de regras informais pelos próprios juízes para a gestão e organização do proces-
so.15 Atualmente, os países do common law utilizam com frequência da noção de
poderes inerentes16. O mesmo se passa nas cortes internacionais, como a Corte
Internacional de Justiça, uma vez que seus Estatutos, de origem convencional,
geralmente não trazem detalhes sobre os poderes processuais da Corte.17
Há quem alegue que não há poderes inerentes à função de árbitros em ju-
risdições da civil law, simplesmente porque seria um conceito da common law
e não deveria ser uma fonte válida para nenhuma lei aplicável à arbitragem em
nenhum evento18.
Ainda que em número consideravelmente menor se comparado aos países
de common law quando analisados precedentes das cortes brasileiras, o STJ já
reconheceu que o efetivo exercício da jurisdição depende de poderes inerentes
como de documentação, fiscalização e coação, num caso em que se discutia os
poderes do juiz para ordenar a reconstituição de autos19. A fonte do poder encon-
trado foi mesmo na própria existência e finalidade da jurisdição.

15. Chester Brown, The Inherent Powers of International Courts and Tribunals (British
Yearbook of International Law, Volume 76, Issue 1, 2005, Pages 195–244). Pág. 205.
16. Philippe Leboulanger, Remarques sur les pouvours inhérents de l’arbitre, in Droit sans
frontières Mélanges en l’honneur de Éric Loquin, (CREDIMI, CNRS FRE 2018, Vol. 51).
Pág. 183.
17. Chester Brown, The Inherent Powers of International Courts and Tribunals (British
Yearbook of International Law, Volume 76, Issue 1, 2005, Pages 195–244). Pág. 201.
18. Christian Hausmaninger, ‘Rights and Obligations of the Arbitrator with Regard to
the Parties and the Arbitral Institution – A Civil Law Viewpoint’, in The Status of
the Arbitrator, ICC International Court of Arbitration Bulletin: 1995 Special Supple-
ment, ed. Jean-François Bourque (Paris: ICC Publishing, 1995), 38. apud Michael
Pryles, ‘Foreword’, in Jeffrey Waincymer, Procedure and Evidence in International
Arbitration, (Kluwer Law International 2012). Pág. 72.
19. “Sem processo, corporificado em autos, não há como se pedir a prestação jurisdicional,
ou como prestá-la. A existência de autos é pressuposto de existência da própria presta-
ção jurisdicional, sendo impossível, sem eles, que o juiz exerça seus poderes inerentes
à jurisdição que detém, como os de documentação, fiscalização e coação. Daí a inti-
mação para que a exequente procedesse à restauração dos autos, com as peças de que
dispusessem, única forma de se considerar existente a execução fiscal e de nela pros-
seguir.” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.385.188 – RJ – 2013/0161447-6, j. 30.07.2013).
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Mas há quem argua a impossibilidade de comparação com os poderes dos


juízes, por diversas razões. A uma, os árbitros são juízes privados e não têm base
dos seus poderes em âmbito constitucional, concentrado na própria separação
de poderes. A duas, os juízes têm uma função política de atender interesse social
em diversas áreas do direito. A três, juízes têm também a função de desenvolvi-
mento do direito e jurisprudência, o que não caberia aos árbitros.20
Entretanto, apesar da diferenciação, dentro daquele escopo jurisdicional
definido pelas partes – e aí reside a grande diferença e pode gerar poderes ineren-
tes diferentes para árbitros e juízes – os árbitros detêm jurisdição pois juízes de
fato e de direito21 e sua sentença tem o mesmo valor de uma sentença do juiz es-
tatal. Isso dá segurança para se partir da identificação das teorias adotadas, ainda
que sua origem da jurisdição do árbitro seja convencional e não constitucional.
Precedentes de cortes domésticas e internacionais fundamentaram a orga-
nização de quatro teorias sobre as fontes dos poderes inerentes; e se reconhece
haver certa confusão entre elas.22 Entretanto, o estudo das fontes é de extrema
importância para entender os limites23 da invocação dos poderes inerentes.
A primeira teoria é de que os poderes inerentes decorrem de princípios gerais
do direito24. A força axiológica dos princípios gerais do direito fundamentaria a
existência de poderes processuais inerentes ao julgador, independentemente de
consentimento, texto ou norma. Um fundamento é buscado especificamente no
Art. 38 (c) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça que menciona que a Cor-
te julgará com base nos princípios gerais do direito. Este argumento, entretanto,
pode ser considerado fraco e com pouca legitimidade, principalmente quando a
jurisdição em questão não se trata de cortes internacionais. Em arbitragem do-
méstica, no Brasil, o fundamento poderia assentar-se em uma suposta lacuna da
Lei de Arbitragem e que poderia buscar os princípios gerais do direito no Art. 4º
da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro ou na própria Constituição
Federal de 1988.

20. Michael Pryles, ‘Foreword’, in Jeffrey Waincymer, Procedure and Evidence in Interna-
tional Arbitration, (Kluwer Law International 2012) Pág. 73.
21. Lei de Arbitragem, Art. 18.
22. Chester Brown, The Inherent Powers of International Courts and Tribunals (British
Yearbook of International Law, Volume 76, Issue 1, 2005, Pages 195–244). Pág. 223.
23. Chester Brown, The Inherent Powers of International Courts and Tribunals (British
Yearbook of International Law, Volume 76, Issue 1, 2005, Pages 195–244). Pág. 223.
24. Chester Brown, The Inherent Powers of International Courts and Tribunals (British
Yearbook of International Law, Volume 76, Issue 1, 2005, Pages 195–244). Pág. 224.
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 665

A segunda é a de que os poderes inerentes derivam do fato de que o ente


adjudicante é um ente jurisdicional. Nessa linha, o julgador teria poderes ine-
rentes simplesmente porque seriam poderes normalmente atribuídos a entes
jurisdicionais. Os poderes inerentes seriam então necessários para empoderar
o julgador para tomar qualquer decisão necessária para atingir os objetivos in-
dicados daquele ente jurisdicional e assim decorreriam da mera existência do
ente como um órgão jurisdicional estabelecido por acordo e de modo que sua
existência deve ser preservada25. Essa teoria poderia explicar poderes inerentes
aos árbitros no Brasil, mas há pelo menos duas pontos a serem considerados; um
positivo e um negativo. O negativo é que a função de árbitro não é algo perene.
Não se é árbitro; está-se árbitro, para aquela disputa específica. Num primeiro
momento, portanto, não se pode considerar a função de árbitro como uma corte
que teria poderes inerentes. A jurisdição do árbitro decorre da vontade das par-
tes. Sem investidura do estado, na concepção antiga de proteção da exclusividade
jurisdicional do estado, é frágil querer encontrar ao árbitro poderes inerentes a
uma corte. O positivo e a boa notícia é que o entendimento é pacífico de que o
árbitro goza de jurisdição – a mesma do poder judiciário, ainda que tenha origem
contratual.26 Não por outro motivo que a Lei de Arbitragem afirma que o árbitro
é juiz de fato e de direito27 e o Código de Processo Civil equipara a sentença do
árbitro àquela do juiz28.
A terceira teoria decorre da necessidade de haver poderes inerentes para se
atingir o objetivo da jurisdição do ponto de vista funcional. O árbitro tem uma
missão jurisdicional, conferida pelas partes e suportada pela Lei. Para exercer a
jurisdição e entregar o esperado pelas partes o árbitro precisa ter poderes, dos
mais diversos – impossível de enumerar. E dentro da função, de sua missão de
entregar a jurisdição, o árbitro precisa agir e preservar a integridade do processo
e do conceito de justiça, ao menos do ponto de vista processual. Baseado neste
conceito, o tribunal arbitral tem meios suficientes à sua disposição para preser-
var a justiça e integridade do processo.29 Em outras palavras, os poderes inerentes

25. Andrea K. Bjorklund; Jonathan Brosseau, Sources of Inherent Powers, in Inherent power
of arbitrators (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 9.
26. Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e Processo: Um comentário à Lei. 9.307/96
(3 ed. Ed. Atlas, São Paulo 2009). Pág. 27.
27. Lei de Arbitragem, art. 18.
28. CPC, Art. 515, inc. VII.
29. Andrea K. Bjorklund; Jonathan Brosseau, Sources of Inherent Powers, in Inherent power
of arbitrators (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 31.
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decorrem de um conceito chave que provê substância para preencher os pode-


res do tribunal arbitral para restaurar, proativamente, a igualdade das armas. Na
arbitragem no Brasil, o conceito alinha-se com o conceito da missão do árbitro,
estabelecida contratualmente, e principalmente dos deveres do árbitro de julgar
todos os pleitos estabelecidos e que aceitara julgar, e de proferir, no prazo esta-
belecido, uma sentença arbitral exequível. E é justamente daquilo imposto pelas
partes que decorre a quarta teoria.
A quarta possível fonte dos poderes inerentes do árbitro decorre dos cha-
mados poderes implícitos. Ainda na semelhança da teoria anterior, os poderes
implícitos seriam poderes decorrentes dos próprios poderes jurisdicionais atri-
buídos pelas partes. Como o árbitro recebeu poderes, mas nem todos estão ex-
pressamente enumerados, faz-se uma interpretação sistemática para entender
quais poderes deveria ter para encontrar poderes implícitos. É o entendimento
da ILA e de SCHERER30 de que os poderes implícitos não podem ser confundi-
dos com os poderes inerentes, já que os inerentes seriam decorrentes mesmo da
função e não extraídos dos poderes expressos.
O artigo 19(2) da Lei Modelo da UNCITRAL e do Art. 21, caput e § 1º da Lei
Brasileira de Arbitragem conferem poderes amplos ao Tribunal Arbitral de regu-
lar o procedimento arbitral e da forma como entender apropriada.
Ora, a disposição é inequívoca de delegação dos poderes ao árbitro de re-
gular o procedimento. Entretanto, outros poderes ou poderes específicos que
se enquadrem nessa amplitude e sirvam para atingir o objetivo delimitado na
jurisdição são poderes implícitos ou inerentes?
Não se concorda com a diferença entre poderes implícitos e inerentes, uma
vez que a resposta está justamente em saber que os poderes implícitos estão in-
cluídos nos poderes inerentes e não existem por si só e em decorrência da inter-
pretação dos poderes expressos ou enumerados.
Ora, os poderes inerentes existem conquanto exista a jurisdição. Os im-
plícitos são poderes que existem porque são inerentes, mas apenas não foram
enumerados. Por isso, não se concorda com MOSES que entende que os poderes
inerentes estão em uma área de sombra31, como se não houvesse poderes ineren-
tes em área iluminada. Os poderes enumerados são também poderes inerentes à

30. Maxi Scherer, Inherent powers to Sanction Party Conduct in Inherent Power of Arbitra-
tors (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 110.
31. Margaret L. Moses, Inherent and Implied Powers of Arbitrators, in Defining Issues in
International Arbitration: Celebrating 100 Years the Chartered Institute (Edited by Julio
César Betancourt, International Commercial Arbitration 2016). Pág. 21.05.
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 667

função. Os poderes inerentes estão por todos os lugares, seja nos locais ilumina-
dos ou sombreados. E os que estão iluminados são poderes enumerados, mas que
não deixam de ser inerentes. Apenas foram enumerados ou iluminados, pelas
possíveis mais diversas razões. A principal pode ser a segurança jurídica; o legis-
lador resolve enumerar alguns poderes inerentes para pacificar entendimento,
educar os usuários do sistema, entre outras razões.
E foi isso que se fez no Brasil, em diversas situações. O princípio compe-
tência-competência, previsto no Art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem,
não era positivado antes da promulgação de Lei, assim como em diversas outras
jurisdições e corpos jurisdicionais era objeto de fundamentação como um poder
inerente. E não quer dizer que o árbitro antes da Lei 9.307/96 não pudesse ter
poderes inerentes para dizer sobre sua própria competência. Apenas não se res-
peitava ou reconhecia no Brasil o efeito negativo do referido princípio. E conti-
nua sendo inerente; agora é apenas positivado, enumerado, e amplamente aceito.
Mas ainda há outros exemplos dos enumerados na Lei Brasileira. Poderes de
proferir sentenças parciais32, para proferir medidas de urgência e cautelares33, pa-
ra designar um secretário34, para determinar às partes o adiantamento de verbas
para despesas e diligências que entender necessárias35, para atuar como conci-
liador36, para determinar a lei aplicável ao mérito, para produzir amplamente as
provas de ofício37, para manter, modificar ou revogar tutela de urgência proferida
pelo Poder Judiciário38, expedir ordem para o Poder Judiciário em cooperação
judicial39, alocar custas na sentença40, condenar em litigância de má-fé41, e para
corrigir a sentença42. São exemplos de poderes inerentes enumerados pela Lei
Brasileira de Arbitragem, principalmente por uma questão de segurança jurídica.
A reforma da lei em 2015 para enumerar expressamente o poder de proferir tutela

32. Art. 23, § 1º, da Lei de Arbitragem.


33. Art. 22-B, parágrafo único, da Lei de Arbitragem.
34. Art. 13, § 5º, da Lei de Arbitragem.
35. Art. 13, § 7º, da Lei de Arbitragem.
36. Art. 21, § 4º, da Lei de Arbitragem.
37. Art. 22 da Lei de Arbitragem.
38. Art. 22-B da Lei de Arbitragem.
39. Art. 22-C da Lei de Arbitragem.
40. Art. 27 da Lei de Arbitragem.
41. Art. 27 da Lei de Arbitragem.
42. Art. 30 da Lei de Arbitragem.
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de urgência ou modificar decisões do poder judiciário, por exemplo, nada mais


foi do que um reconhecimento anterior deste poder inerente anteriormente no-
tado pela jurisprudência43. O poder existia. Já era inerente à função. Foi apenas
enumerado, iluminado.
E esse movimento também vem ocorrendo em âmbito internacional. A Lei
Modelo da Uncitral foi reformada em 2006 e também passou, por exemplo, a
permitir medidas cautelares44. Em 2021, o Regulamento de Arbitragem da CCI
passou a expressamente permitir o árbitro decidir sobre consolidação de arbitra-
gens mesmo depois da constituição do Tribunal e sem o consentimento das par-
tes.45 No mesmo texto, enumerou-se os poderes de o árbitro limitar a mudança de
representante das partes que possa gerar conflitos de interesse.46
Ainda, diversos desses poderes enumerados são discricionários. E também
não se confunda poderes inerentes com discricionários47. Essa natureza qualifica
os poderes cujo efetivo exercício seja opcional ou alternativo ao árbitro, de esco-
lher qual e quando exercer. Assim, poderes inerentes podem ser discricionários,
mas não é a discricionariedade que define a qualidade de inerente.
Sem prejuízo de que as partes não possam definir o que entendem por po-
deres necessários ao árbitro. A regulação privada da função do árbitro se dá prin-
cipalmente pelos regulamentos publicados pelas instituições de arbitragem. A
título de exemplo, os regulamentos de arbitragem de instituições brasileiras con-
cedem poderes para definir idioma, lei aplicável ao mérito e sede da arbitragem.48
Não se pode cogitar exercício completo da jurisdição arbitral sem o exercício
desses poderes. Não precisariam as partes terem acordado em enumerar esses
poderes inerentes do árbitro. Os regulamentos o fazem – e andam bem – por uma
questão de previsibilidade e segurança jurídica.
Por isso, podem tanto enumerar os poderes inerentes, quanto criarem po-
deres expressos que não necessariamente são inerentes. E ainda não quer dizer
que o legislador não possa definir o que entende ser poderes inerentes, ou tam-
bém o que entende não poder ser um poder inerente, limitando-o e impedindo
que o árbitro possa usá-lo.

43. RECURSO ESPECIAL Nº 1.297.974 - RJ (2011/0240991-9).


44. Lei Modelo da Uncitral, art. 17.
45. Regulamento de Arbitragem da CCI. Art. 10.
46. Regulamento de Arbitragem da CCI. Art. 17 (2).
47. Andrea K. Bjorklund; Jonathan Brosseau, Sources of Inherent Powers, in Inherent power
of arbitrators (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 41.
48. Regulamento de Arbitragem do CAM/CCBC Art. 9º.
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 669

A definição dos poderes inerentes decorre da própria fonte na jurisdição


do árbitro. É por isso que se precisar substituir a expressão inerente, o melhor
sinônimo é intrínseco49 à função do árbitro. É por isso que não há definição pre-
cisa, se não diferentes conceitos que podem tomar corpo dependendo da teoria
da fonte que se considera. E, mais do que isso, a definição dos poderes inerentes,
existentes por si só e pela existência da jurisdição, é tão ampla em seu conceito
que encontrar sua limitação, dependendo da aplicação pretendida, é ainda mais
importante quando se discute segurança jurídica.

II. As limitações da efetiva invocação dos poderes inerentes da


função de árbitro

A identificação da limitação dos poderes inerentes da função de árbitro par-


te da definição do que não é inerente. Como visto, poderes inerentes podem ser
implícitos, enumerados ou expressos, e mesmo assim não deixam de ser inerentes.
Entretanto, sempre em busca da segurança jurídica, os critérios para encon-
trar as limitações estão justamente nas fontes dos poderes inerentes. Elas ajuda-
rão a encontrar diferentes critérios que devem ser lidos cumulativamente para se
definir a possibilidade de efetiva invocação dos poderes inerentes.
SCHERER sugere que os poderes inerentes, especificamente para os ca-
sos de controle de comportamento da parte pelo árbitro, devem ser invocados
apenas em caráter subsidiário, se não estiverem presentes algumas situações:
(1) o tribunal não conseguir controlar o mau comportamento usando regular
administração do procedimento; (2) a leis e regras aplicáveis não contenham po-
deres expressos para sancionar o desvio de conduta; (3) a leis e regras aplicáveis
não contenham previsão da qual o Tribunal possa extrair poderes implícitos; e
(4) não haja outra forma de o Tribunal lidar com os desvios de conduta da parte.50
É o teste criado por SCHERER.
Os critérios indicados acima são apenas para determinar a subsidiariedade
necessária para permitir a invocação dos poderes inerentes. Entretanto, não se
tem a intenção de restringir a análise à utilização dos poderes inerentes para
controlar desvio de conduta das partes e, conforme já colocado, não se entende
devida a distinção entre poderes implícitos e inerentes.

49. Maxi Scherer, Inherent powers to Sanction Party Conduct in Inherent Power of Arbitra-
tors (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 109.
50. Maxi Scherer, Inherent powers to Sanction Party Conduct in Inherent Power of Arbitra-
tors (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 123.
670 25 ANOS DA LEI DE ARBITRAGEM (1996-2021)

O relatório da ILA afirma que cada ação tomada pelo árbitro deve ser ca-
librada cuidadosamente para responder proporcionalmente às exigências das
circunstâncias e para alinhar com a noção particular de justiça e devido processo
legal que anima a cultura jurídica da qual as partes provêm e sob as quais o árbitro
deve decidir.51
BOLLÉE, em recente curso na Academia de Haia sobre os poderes inerentes
dos árbitros internacionais, reconheceu que os poderes dos árbitros estão sendo
cada vez mais enumerados e o recurso aos poderes inerentes tem caráter subsi-
diário, mas estão se reintroduzindo de maneira invisível.52
Levando essa realidade em consideração, propõe-se o seguinte teste com
alguns critérios, cumulativos, que podem indicar o limite seguro para a reintro-
dução do exercício de poderes inerentes pelo árbitro.
O primeiro critério é axiológico. Os poderes inerentes devem sempre res-
peitar os princípios do Art. 21, § 2º. É o controle geral e obrigatório da lex arbitri.
O exercício dos poderes não pode, de nenhuma maneira, desrespeitar o princípio
do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu
livre convencimento. É por essa linha que a sentença é e poderá mais facilmente
ser atacada quando se invocar poderes inerentes para a tomada de decisão no
procedimento arbitral. A pergunta a ser feita é: as determinações ou decisões
decorrentes da invocação dos poderes inerentes atende aos princípios funda-
mentais da arbitragem?
O segundo critério é o consensual. O consentimento só é fonte dos poderes
inerentes da função porque outorga jurisdição ao árbitro. Mas o consentimento
em si não cria poderes inerentes, salvo quando o consentimento enumera pode-
res inerentes ou criar outros expressamente, ainda que não inerentes. E este mes-
mo consentimento pode expressamente limitar poderes. No caso ICSID Aguas
Argentina SA v The Argentine Republic53 o Tribunal Arbitral entendeu que tinha

51. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014). Pág. 18.
52. Menção retirada de exposição de Sylvain Bollée durante o Curso “Pouvoirs inherents
des arbitres internationaux” realizado na Academia de Haia. Ver Sylvain Bollée, Les
pouvoirs inhérents des arbitres internationaux, (slides apresentados no Curso de Versão
da Académie de Droit International de la Haye 2021).
53. Ver ICSID Case No ARB/03/19, Amicus Curiae Order (12 February 2007), 6 (‘Al-
though the Tribunal... does have certain inherent powers with respect to arbitral
procedure, it has no authority to exercise such power in opposition to a clear direc-
tive in the Arbitration Rules’). Apud Margaret L. Moses, Inherent and Implied Powers
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 671

poderes inerentes, mas não teria autoridade para exercê-los com oposição a uma
diretiva no regulamento de arbitragem. Portanto, os poderes inerentes podem,
em princípio, ser expressamente limitados pelas partes.
Em todo caso, a limitação convencional deve ser ela mesma limitada e inter-
pretada restritivamente para fins de aplicação desse teste, sob pena de inviabili-
zar os testes axiológico e da funcionalidade, já que são, ao contrário, de respeito
obrigatório sob pena de se proferir sentença em desrespeito aos princípios do
Art. 21, § 2º ou sentença extra petita54.
Há quem diga que esses poderes que não podem ser limitados seriam poderes
verdadeiramente inerentes.55 Mas não se pode acolher essa posição simplesmente
porque o significado de verdadeiramente é tanto impreciso quanto contraditório
na essência. Se há os verdadeiros é porque os demais são falsos e, portanto, não
seriam inerentes – poderiam ser, no mínimo, alguns poderes expressos.
A mesma mão que dá é a mesma mão que tira. Entretanto, ao retirar os po-
deres, as partes correm o risco de violar os princípios essenciais do contraditório,
igualdade, imparcialidade e livre convencimento. Se na concepção do direito
brasileiro, a limitação pretendida pelas partes não ultrapassar as definições dos
princípios basilares do processo arbitral então poder-se-ia, ao menos em tese,
aceitar alguma limitação.
Por isso se considera que os poderes inerentes existem em decorrência da
jurisdição concedida pelas partes e, por isso, elas podem limitar tudo, desde que
a limitação respeite o escopo da jurisdição, os princípios fundamentais da arbi-
tragem e a ordem pública. É por isso que BOLLÉE vê uma fragilidade dos poderes
inerentes face à liberdade contratual.56
Ademais, mesmo o critério consensual estabelece os limites da atuação do
árbitro no que toca ao escopo da jurisdição. As partes ao consentirem à arbitra-
gem determinam um escopo da jurisdição do árbitro. O poder inerente invocado

of Arbitrators, in Defining Issues in International Arbitration: Celebrating 100 Years the


Chartered Institute (Edited by Julio César Betancourt, International Commercial
Arbitration 2016). Nota 60.
54. Lei de Arbitragem, art. 32, incisos IV.
55. Ver Maxi Scherer, Inherent powers to Sanction Party Conduct in Inherent Power of Arbi-
trators (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 116.
56. Menção retirada de exposição de Sylvain Bollée durante o Curso “Pouvoirs inherents
des arbitres internationaux” realizado na Academia de Haia. Ver Sylvain Bollée, Les
pouvoirs inhérents des arbitres internationaux, (slides apresentados no Curso de Versão
da Académie de Droit International de la Haye 2021).
672 25 ANOS DA LEI DE ARBITRAGEM (1996-2021)

não poderá ultrapassar esse escopo. Por isso, a jurisprudência americana enten-
deu que aplicar sanções ao advogado da parte extrapola o escopo da jurisdição do
árbitro, pois o próprio advogado não consentira à arbitragem.57 É por isso que as
regras da LCIA requerem expressamente que o advogado das partes, para atuar
em procedimento da instituição, deve consentir com uma regra de que o próprio
advogado deve anuir às regras de que poderá sofrer sanções do árbitro por desvio
de conduta.58
Ainda, esse critério consensual deve aferir, não somente a limitação dos
poderes consensualmente estabelecida pelas partes, mas também se o poder a
ser invocado pelo árbitro não contraria o acordo das partes de uma forma geral.
O teste, portanto, é responder às perguntas: o poder inerente que se quer
invocar foi expressamente limitado pelas partes e sua invocação fere o consenti-
mento das partes?
O terceiro critério é o da funcionalidade. Os limites estão naquilo que se es-
pera da missão do árbitro. Por isso, MOSES acerta ao dizer que as fontes acabam
por se resumir na noção básica de que os poderes inerentes devem ser limitados
a permitir que o Tribunal Arbitral desempenhe sua função jurisdicional.59 Os
poderes serão inerentes e sempre existirão para cumprir a missão estabelecida
pelas partes e aceita pelo árbitro no contrato de investidura. Mas não é só. No
mesmo conceito incluem-se os deveres inerentes da função de árbitro de atender
a missão para a qual foi investido. E os deveres, inerentes ou expressos, também
ditarão o exercício da função. Por isso, há poderes inerentes para que o árbitro
possa atender aos deveres enumerados, por exemplo, no Art. 13, § 6º, da Lei de
Arbitragem, como competência, diligência, discrição, e de celeridade, previs-
to no Art. 12, III e Art. 23. Os deveres são consequência do encargo da missão
assumida. A pergunta a ser feita para se passar o teste é: a invocação do poder é
necessária para cumprir a missão?
O quarto é o critério da subsidiariedade ou da proporcionalidade. A in-
vocação dos poderes inerentes da função somente poderá ocorrer se não hou-
ver poderes enumerados que permitam sua fundamentação. Dá-se quando não

57. Maxi Scherer, Inherent powers to Sanction Party Conduct in Inherent Power of Arbitra-
tors (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Pág. 125.
58. Ver Art 18.5 do Regulamento de Arbitragem da London Court of International
Arbitration.
59. Margaret L. Moses, Inherent and Implied Powers of Arbitrators, in Defining Issues in
International Arbitration: Celebrating 100 Years the Chartered Institute (Edited by Julio
César Betancourt, International Commercial Arbitration 2016). Ver § 21.24.
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 673

houver outra forma de lastrear o poder que se busca invocar. É o que sugere as
Recomendações da ILA.60
A pergunta a ser feita para o teste é: inexiste poder expresso ou enumerado
que se possa invocar para exercer o mesmo poder inerente que se quer invocar?
Há algum outro poder enumerado que se pode invocar mais adequado para con-
seguir o mesmo objetivo?
O quinto é o critério da necessidade absoluta ou da integridade da jurisdi-
ção. A invocação dos poderes inerentes da função somente poderá ocorrer quan-
do sua invocação for absolutamente necessária para a proteção da integridade
da jurisdição. As Recomendações da ILA aos Tribunais Arbitrais sugerem que se
considere se a situação coloca em risco a jurisdição ou a integridade do procedi-
mento.61 Dá-se quando não há outra forma de se proteger e preservar a jurisdição
e se faz necessária a invocação daquele poder inerente em questão. A pergunta a
ser feita para o teste é: não exercer esse poder pode colocar em risco a integridade
da jurisdição e da sentença?
Respondidas estas perguntas e passados estes cinco critérios de forma
cumulativa seriam afastados qualquer limite aos poderes inerentes e estaria au-
torizada a sua invocação. Depende, portanto, de uma séria análise casuística.
Ainda haveria um sexto e último critério, sobre a aceitabilidade da decisão.
Ainda que a imprecisão do conceito não contribua para a segurança jurídica,
os poderes inerentes devem também estar limitados à legítima expectativa das
partes e ao respeito absoluto à independência do árbitro. Difere-se essa abor-
dagem do critério funcional, porque se estima um dever de conduta acima do
mero respeito da missão estabelecida pelas partes e do dever de imparcialidade.
Entende-se que o exercício dos poderes inerentes deve além de tudo atingir um
padrão de conduta especial de buscar a aceitabilidade da sentença, decorrente
do mais absoluto respeito à legítima expectativa das partes, conceito que não se
confunde apenas com a obrigação de proferir uma sentença válida.
O poder inerente somente poderá ser invocado, portanto, quando se jus-
tificar por um padrão liso de conduta e da mais absoluta intenção de atender a
aceitabilidade da sentença pelas partes. Ainda que o conceito de aceitabilidade
não seja imediatamente encontrado por uma parte que diretamente não tem seus

60. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014). Anexo I, Recomendações da ILA, 2 (a).
61. Filip De Ly, Luca G Radicati di Brozolo, Mark Friedman, Report for the Biennial Con-
ference in Washington D.C. (International Law Association, Washington Conference
2014). Anexo I, Recomendações, Item 2 (b) (iii).
674 25 ANOS DA LEI DE ARBITRAGEM (1996-2021)

interesses atendidos (ex. Tribunal Arbitral que afasta seu advogado), ele é aten-
dido quando se questiona se a parte ficaria satisfeita do ponto de vista processual
se a mesma situação se colocasse à contraparte.
Mas, para que se possa atingir o conceito de aceitabilidade e passar no teste,
deve o árbitro fundamentar a invocação do poder inerente de tal forma que as
partes cumpram espontaneamente a decisão62 ou que seja proferida com o cui-
dado de afastar e impedir, desde logo, a construção de eventuais pleitos de nuli-
dade da sentença. Essa fundamentação decorre exatamente das boas respostas às
questões explicitadas no teste proposto.
Este último critério não seria necessário para garantir a validade da sen-
tença, mas apenas algo que os árbitros deveriam levar em conta para garantir a
legitimidade do instituto e da jurisdição arbitral, afastando o descontentamento
das partes e até mesmo a propositura de ações anulatórias.
Lembre-se que os poderes inerentes adotados podem ser os mais diversos e
podem com serenidade passar no efetivo teste, dependendo, sempre, do contex-
to casuístico.
Apenas como exemplificação, os poderes inerentes são invocados nas
mais diferentes situações: para ordenar apresentação de garantia para custos
da arbitragem63, para aceitar atuação de amicus curiae64, para controlar des-
vio de comportamento da parte65, para permitir litisconsórcio66, para bifurcar

62. Sobre a necessidade de cumprimento espontâneo para atender ao conceito de aceitabili-


dade, ver Charles Jarrosson, L’acceptabilité de la sentence (4 Rev. Arb. 793, 2012). Pág. 795.
63. Weixia Gu, Security for Costs in International Commercial Arbitration, 3 Journal of In-
ternational Arbitration 167, (2005). Apud Dolores Bentolila, Arbitrators as Lawmakers
(Wolters Kluwer, The Netherlands, 2017).
64. Aguas Provinciales de Santa Fe S.A., Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona S.A.
and InterAguas Servicios Integrales del Agua S.A. v. The Argentine Republic, ICSID Case
No. ARB/03/17, Order in Response to a Petition for Participation as Amicus Curiae,
17 March 2006. Apud B Dolores Bentolila, Arbitrators as Lawmakers (Wolters Kluwer,
The Netherlands, 2017).
65. Ver Maxi Scherer, Inherent powers to Sanction Party Conduct in Inherent Power of Ar-
bitrators (Franco Ferrari, Friedrich Rosenfeld, editors, Juris, New York). Ver também
Libananco Holdings Co. Limited v. The Republic of Turkey, ICSID Case No. ARB/06/08,
Decision on Preliminary Issues, 6 May 2008, para. 78. Apud Be Dolores Bentolila,
Arbitrators as Lawmakers (Wolters Kluwer, The Netherlands, 2017).
66. Ambiente Ufficio S.p.A. and Others v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/08/9,
Decision on Jurisdiction and Admissibility, 8 February 2013; Abaclat and Others v. The
Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/07/5, Decision on Jurisdiction and Admis-
sibility, 4 August 2011. Apud Dolores Bentolila, Arbitrators as Lawmakers (Wolters
Kluwer, The Netherlands, 2017).
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 675

procedimento67, para excluir advogado da parte por má conduta68, para impedir


substituição de advogado se gerar conflito de interesses. A realidade é sempre
mais complexa do que a teoria e a criatividade das partes e árbitros dentro da
complexa necessidade de condução dos procedimentos pode justificar a invoca-
ção de poderes inerentes ainda não questionados.
Por óbvio, o teste proposto não tem o condão de impedir o controle pelo
judiciário da função do árbitro, ou no caso do eventual excesso da utilização de
poderes pelo árbitro. O controle, no direito brasileiro, dá-se mediante as hipóte-
ses taxativamente arroladas no Art. 32 da Lei de Arbitragem. Para o controle dos
poderes inerentes, tem especial importância os incisos IV e VIII que tratam res-
pectivamente do respeito aos limites da convenção de arbitragem e do respeito
aos princípios do Art. 21, § 2º.
Os limites da convenção de arbitragem também controlarão situações nas
quais as partes possam ter expressamente limitado os poderes inerentes. Haven-
do o limite imposto pelas partes, o juiz seria chamado ex post para verificar, nos
termos do Art. 32, inciso IV, se o árbitro usou poderes inerentes que teriam sido
limitados ou afastados pelas partes.
Do mesmo modo, o árbitro que não usa os poderes inerentes diante da su-
posta existência de alguma limitação – neste caso de validade questionada – pode
ter sua sentença controlada por eventual omissão que faça surgir violação dos
princípios basilares (Art. 32, inc. VIII c/c 21, § 2º).
Os cinco critérios obrigatórios sugeridos, portanto, podem contribuir como
balizas para que árbitros na decisão pela invocação possam buscar mais aceitabi-
lidade e juízes, no controle posterior, apreciem com mais precisão e parcimônia
uma alegação de nulidade.
O último critério da avaliação da legítima expectativa das partes não tem
hipótese de nulidade para controle pelo poder judiciário. O seu controle – ou
a importância de se passar no teste – será determinado pelo mercado diante do
fator reputacional dos árbitros, conforme já descrevemos anteriormente69.

67. AWG Group Ltd. v. Argentine Republic, Decision on Liability, 30 July 2010, para. 273.
Apud Dolores Bentolila, Arbitrators as Lawmakers (Wolters Kluwer, The Netherlands,
2017).
68. Hrvatska Elektroprivreda, d.d. v. The Republic of Slovenia, ICSID Case No. ARB/05/24,
Tribunal’s ruling regarding the participation of David Mildon QC in further stages
of the proceedings, 6 May 2008, paras 31–33. Apud Dolores Bentolila, Arbitrators as
Lawmakers (Wolters Kluwer, The Netherlands, 2017).
69. Bruno Guandalini, Economic Analysis of the Arbitrator’s Function (Wolters Kluwer,
The Netherlands, 2020). Especialmente página 230 e seguintes.
676 25 ANOS DA LEI DE ARBITRAGEM (1996-2021)

Conclusão
Os poderes inerentes da função de árbitro são principalmente decorrentes
dos poderes necessários ao exercício da jurisdição. Em busca de maior eficiência
e segurança jurídica na arbitragem, o exercício da função de árbitro requer a utili-
zação dos poderes inerentes, que não perdem a natureza de inerentes mesmo que
sejam enumerados. Como visto, mais do que identificar com precisão as fontes
desses poderes, é importante delimitar as hipóteses permitidas de sua efetiva
invocação.
No Brasil e no exterior, em regulação estatal ou privada, vê-se uma tendência
de aumento da enumeração dos poderes inerentes da função do árbitro. Assim,
seguimos a conclusão de BOLLÉE de que há uma predominância de princípio
dos poderes expressamente conferidos pelas partes.70 Estes, como se explicou, não
deixam de ser inerentes; a particularidade é que não precisam ser invocados pelos
árbitros como poderes inerentes e não se corre o malfadado risco de nulidade.
Como se viu, a tendência de enumeração dos poderes da função de árbitro
é uma resposta à necessidade de os árbitros conduzirem e controlarem proce-
dimentos cada vez cada vez mais litigiosos. Essa evolução da criativa prática
arbitral faz com que os árbitros tenham de encontrar poderes suficientes para
responder às expectativas das partes no fiel desempenho da missão jurisdicional.
A explicação razoável desse movimento ou predominância é a busca de
segurança jurídica para que árbitros possam exercer a jurisdição com segurança
de que a sentença não seja colocada em risco. E justamente porque a invocação
dos poderes inerentes não deve ser ampla, mas feita de forma absolutamente
essencial e comedida.
A tendência a enumerar esses poderes em regulamentos, de um lado, con-
cede mais segurança jurídica e previsibilidade. Entretanto, ao se enumerar, seja
por lei, seja numa espécie privada de positivação, corre-se o risco de gerar uma
suposta sensação de ausência de poderes inerentes, numa indevida indicação
de inexistência de poderes se não forem expressos. Por isso é de extrema impor-
tância o entendimento e aceitação da existência e possibilidade de invocação de
poderes inerentes, com a devida cautela e balizada pelo proposto teste.
Dentro do reconhecimento da doutrina internacional de ser presente uma
reintrodução aos poderes inerentes, ainda que seja feito em caráter subsidiário,

70. Sylvain Bollée, Les pouvoirs inhérents des arbitres internationaux, (slides apresentados
no Curso de Versão da Académie de Droit International de la Haye 2021). Último slide
da aula.
Poderes inerentes da função de árbitro no Brasil 677

propôs-se o teste com cinco critérios obrigatórios e um sugerido para orientar


tanto os árbitros na invocação dos poderes inerentes quanto o judiciário no mo-
mento do controle de eventual nulidade da sentença que eventual utilização
desses poderes possa acarretar.

Bibliografia
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Netherlands, 2020).
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Pierre Mayer, Le mythe du contrat d’arbitre, in Mélanges em l’honneur du Professeur Ber-
trand Ancel: Le droit à l’épreuve des siècles et des frontières (Marie-Elodie Ancel, Louis
d’Avout, Marie Goré & Jean-Michel Jude eds., LGDJ 2018).
Sylvain Bollée, Les pouvoirs inhérents des arbitres internationaux, (slides apresentados
no Curso de Versão da Académie de Droit International de la Haye 2021).

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