Você está na página 1de 176

Ficção brasileira

contemporânea
Karl Erik Schollhammer
O leito r m in im am e n te iniciad o em li­
teratu ra b rasileira e n c o n trará n este
liv ro u m ap anhad o d e no ssa p ro d u ção
fic c io n al d as ú ltim as três d écad as, até
c h eg ar à p ro d u ção re c e n te, q u e te m
sid o c ham ad a d e “ G eração 00”. Karl
Erik Sc h o llh am m er, ren o m ad o teó ric o
e c rític o d e lite ratu ra, in ic ia su a re fle ­
xão exp o nd o a d ificu ld ad e d e d efin ir
o q ue é “ c o n tem p o rân e o ”, te rm o q u e
so fre c o n c o rrê n c ia d e c o rrelato s, tais
co m o atu al, p resen te, m o d erno , pó s-
m o d e m o , e n tre o u tro s. A ssim , so m o s
lev ad o s a rep en sar a q u estão d a p e­
rio d iz ação h istó ric a a p artir d e u m
o lh ar d e h o je , m as sem p erd er a esp e­
cificid ad e d e m o m en to .
N um a ling u ag em p recisa e clara,
aliad a ao g rand e rig o r d a p esq u isa, o
au to r p ro p õ e análises d e c o n ju n to ao
m esm o tem p o q ue faz rec o rtes em
p ro fund id ad e, lend o e co m entand o a
o b ra d e escrito res A ccio nistas. Inev ita­
v elm en te seletiv a, a ab o rd ag em não
p retend e em ab so lu to esg o tar o tem a,
m as sim d ar u m a co ntrib u ição d eci­
siv a ao s estud o s crítico s em to rn o d a
literatu ra p ro d uzid a em te rritó rio na­
c io n al, m as q ue m an tém co m a reali­
d ad e b rasileira co m p lexas relaçõ es de
ap ro xim ação e afastam ento , d e ad e­
são e c etic ism o . To d av ia, a reflexão se
faz sem p erd er d e v ista o que aco ntece
em o u tro s p aíses, v isto q ue se to rno u
im p o ssív el tratar iso lad am ente q ual­
q u er literatu ra em u m a ép o ca d e cu l­
tu ra p lanetária.
Ficção brasileira
cont emporânea
Karl Eric Sch0llhammer

Ficção brasileira
contemporânea

O R GAN I Z AD O R DA COLEÇÃO

Ev and o N asc im en to

C I V I L I Z A ÇÃ O B R A S I L E I R A

R io d e Ja n e i ro

2009
COPYRIGHT © Karl Scho llham m er. 2009

PROJETO GRÁFICO Regina Ferraz

C IP-BR A SIL C A TA LO G A Ç Ã O -N A -FO N TE

SIN D IC A TO N A C IO N A L D O S ED IT O R ES D E LIV R O S, RJ

S391f Scho llhammer, Karl Erik


Ficção brasileira co ntem p o rânea / Karl Erik Scho llham mer.
- Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2009.
- (Coleção co ntem po rânea : Filo so fia, literatura e artes)

Inclui biblio grafia


ISBN 978-85-200-0923-9

1. Ficção brasileira - Século XXI - Histó ria e crítica 2. Pós-


mo dernismo (Literatura) - Histó ria e crítica. I. Título .

CDD: 09-1832
09-1831 CDU: 821.134.3(81).09

Este texto foi revisado segundo o novo A cordo Orto gráfico da Língua Portuguesa.

Direitos desta edição adquiridos pela


EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Um selo da
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua A rgentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro , RJ - Tel.: 2585-2000

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro , RJ - 20922-970

Impresso no Brasil
2009
Sumário

N o ta intro d u tó ria 7

Que sig nifica literatu ra co ntem p o rânea? 9

1. Breve m ap eam ento das últim as geraçõ es 21

O Pó s-m o d em ism o 28
D a “ G eração 90” à “ 00” 35
O m ercad o 46

2. O realism o d e no v o 53

O hip er-realism o 70
Um no v o reg io nalism o ? 77
O m inico nto 92
Literatu ra m arg inal 98

3. O su jeito em cena 1° 5

4. Os p erig o s da ficção

5. Os “ 0 0 ” em m etam o rfo se am bulante 147

Biblio g rafia 163


Nota introdutória

Este liv ro não p retend e esg o tar o tem a da “ficção co ntem ­


p o rânea”, n em se p ro p õ e a ser um a intro d ução à ficção bra­
sileira q ue ab o rd e to d o s o s seus asp ecto s e to do s os auto ­
res relev antes surgid o s nas últim as d écad as. Perco rrend o a
criação literária atu al, a p artir d e leituras d e ro m ances e
co nto s q u e o ferecem p o nto s d e reflexão im p o rtantes, o li­
v ro lev anta q u estõ es centrais p ara um a m elho r co m p reen­
são d as tran sfo rm açõ es q ue v êm o co rrend o na literatura
d as ú ltim as d écad as, d and o p referência às o bras m ais re­
centes e q ue aind a não acu m ularam fo rtuna crítica.
Que significa literatura contemporánea?

A q u estão q u e o títu lo d este liv ro co nvid a p rim eiram ente


a p ensar é co m o en ten d er o term o “ co ntem p o ráneo ”, co ­
m o d efinir e rec o rtar a ficção nessa p ersp ectiv a tempo ral.
Que sig nifica ser co ntem p o râneo ? E que sig nifica, na co n­
d ição co ntem p o ránea, ser “ literatu ra”? Se pro curarmo s um
co nteú d o d o term o que ultrap asse a sua co m p reensão ba­
nal, d e ind icad o r d a ficção que é pro d uzid a atu alm ente ou
nó s ú ltim o s ano s, p o d eríam o s ap o ntar p ara características
p articu lares d a atu alid ad e, co m o , p o r exem p lo , ser substi­
tu to d o term o “ p ó s-m o d erno ”. Ou p o d eria esse term o ca­
racteriz ar um a d eterm inad a relação entre o m o m ento his­
tó rico e a ficção e, m ais am p lam ente, entre a literatu ra e a
cu ltu ra? N este ú ltim o sentid o , as o bras esco lhid as na pers­
p ectiv a co ntem p o rânea d ev eriam ser rep resentativ as p elo
que c o m p artilh am c o m as tend ências literárias atuais e,
nu m sen tid o m ais am p lo , p ela inserção d a literatu ra na
co ntem p o raneid ad e?
O filó so fo italiano Gio rg io A gam ben tento u recentem en­
te (2008) resp o nd er à p erg u nta “ O q ue é o co ntem p o râ­
n eo ?”, recu p erand o a leitu ra q ue Ro land Barthes fez das
“ Co nsid eraçõ es intem p estiv as”, d e N ietz sche, apro xim and o
o co n tem p o râneo ao intem p estiv o . “ O co ntem p o râneo é o
intem p estiv o ”, d iz Barthes, o q ue sig nifica que o verd ad ei­
ro co ntem p o râneo não é aq u ele que se id entifica co m seu
tem p o , o u que co m ele se sinto niz a p lenam ente. O co ntem ­
p o râneo é aq u ele q ue, g raças a um a d iferença^um a d efesa-
g eín o u um anacro nism o , é cap az d e cap tar seu te m p o e
enxerg á-lo . Po r não se id entificar, p o r sentir-se em d esco ­
nexão co m o p resente, cria um âng ulo do qual é po ssível
I
exp ressá-lo . Assim» a jite r atu ra c o n te m p o rán ea nao será ne-
j cejgsaríam ente aq uela q ue re p re sen ta a atu alid ad e, a nào
I ser p o r um a inad eq uação , u m a e stran h e z a h istó ric a què~a
\ faz p erceb er as z o nas m arg in ais e o b sc u ras d o presente,
i q u e se afastam d e sua ló g ica. Ser c o n tem p o rân e o , segundo
I esse racio cínio , é ser cap az d e se o rie n tar n o escu ro e, a
1 p artir d aí, ter co rag em d e re c o n h e c e r e d e sje co m pro m e­
te r co m um p resente co m o q u al n ão é p o ssív el coincidir.
.Na p ersp ectiv a d essa c o m p reen são d a h istó ria atu al como
d esco ntinuid ad e e d o p ap el d o e sc rito r c o n tem p o rân eo na
co ntram ão d as tend ências afirm ativ as, talv ez se ja possível
entend er alg uns d o s c ritério s im p líc ito s q u e d eterm inam
q uem faz sucesso , q u em g anha m aio r v isib ilid ad e na mí­
d ia,jiajic ad e m ia, en tre o s c rític o s o u e n tre o s leito res. Su­
cesso^ não é sinô nim o d e ad eq u ação o u h arm o n ia histó ri­
ca, assim co m o a falta d e c o m p re en são e n tre o s leito res
tam p o uco sig nifica, n e c e ssariam e n te , q u e n ão se logro u
u m a c o m p reen são ^ extrao id in ária d a ,m o m e n to histó rico
n o qual se inserem esses m e sm o s le ito res. H á, entretanto ,
u m p arad o xo em b u tid o n essa o b serv aç ão , q u e será to ma­
d o co m o p o nto d e p artid a p ara a d iscu ssão q u e aq u i se pre-
v, tend e d esd o brar. O esc rito r c o n te m p o rân e o p arec e estar
Ü-?

> m o tiv ad o p o r u m a g rand e u rg ên c ia e m se re lac io n ar com


nyvi^A (rSvJrí

'g* a realid ad e h istó ric a, estan d o c o n sc ie n te , ^ entretanto , da


^ im p o ssibilid ad e d e cap tá-la n a su a esp ec ific id ad e atu al, em
seu p resente. M arcelino Freire c o m en to u u m asp ecto des-
sa urg ência ao lançar seu m ais re c e n te liv ro , R asif: m ar que
-c r' ar r e b e n t a:

De fato, escrevo curto e, sobretudo, gro sso. Escrevo com ur­


gência. Escrevo para me vingar. E esta vingança tem pres­
sa. Não tenho tempo para nhenhenhéns. Quero logo dizer
o que quero e ir embora. (Freire, 2008a)

10
Do is arg u m ento s se ju n tam aqui: um a escrita que tem
urg ência, que realm ente “u rg e”, que sig nifica, segund o o
A urélio , que se faz sem d em o ra, m as tam bém que é em i­
n en te, que in siste, o br ig a e im p ele, o u seja, um a escrita que

se im p õ e de alg um a fo rm a. A o m esm o tem p o , trata-se de


um a escrita que age p ara “ se v ing ar”, o que tam bém pode
ser entend id o , recu p erand o -se o sentid o etim o ló g ico da
palav ra “ v ing ar” , co m o u m a escrita que cheg a a, atin g e ou
alc an ç a seu alv o co m eficiência. O essencial é o bserv ar que

essa e sf iita se g uia p o r um a am b ição de eficiência e pelo


d esejo d e cheg ar a alcançar um a d eterm inad a realid ad e,
em v ez d e se p ro p o r co m o um a m era pressa o u alv o ro ço
tem p o ral.
N esse sen tid o , p o d em o s en ten d er que a urg ência é a
exp ressão sensív el d a d ificuld ad e d e lid ar co m o m ais pró­
xim o e atu al, o u seja, a sensação , que atrav essa alguns es­
crito res, d e ser anacrô nico em relação ao p resente, passan­
d o a ac eitar que sua “realid ad e” m ais real só po d erá ser
refletid a na m arg em e nu nca enxerg ad a d e frente o u cap ­
tu rad a d iretam ente. Daí p erceberam na literatu ra um ca­
m inho p ara se relacio nar e interag ir co m o mund o nessa
fêm po ra’ITd‘ád è d e d ifícil cap tura. Um a das sugestõ es d essa
exp o sição é a d e q ue exista um a d em and a de realism o na
literatu ra b rasileira h o je que d eve ser entend id a a p artir de
u m a c o n sc iên c ia d essa d ificuld ad e. Essa d em and a não se
exp ressa ap enas no re to m o às fo rm as de realism o já co ­
nhecid as, m as é p ercep tív el na m aneira d e lid ar co m a m e­
m ó ria histó rica e a realid ad e p esso al e co letiv a.
A c rítica d a literatu ra b rasileira co ntem p o rânea ressalta
in sisten tem en te o traço d a p r e s e n t ific aç ão (Resend e, 2007)
na p ro d ução atu al, v isív el no im ed iatism o d e seu pró prio
p ro cesso criativ o e na ansied ad e d e articular e de interv ir
so bre um a realid ad e p resente co ntu rb ad aJN ão se d eve con.
fund ir, entretanto , esse traço co m a b u sca m o d ernista por
um p resente de no vid ad e e ino v ação , q u e certam en te lò i
um m o te im p o rtante da literatu ra u tó p ica, v isand o a arran-
car q futuro .g m bào nánQ d o p resente~ p Ieno recriad o na li­
teratu ra. Mas, para o s escrito res e artistas d este início de
século XXI. o p resente só é exp erim entad o co m o um encon-
tro falho , um “aind a n ão ” o u u m “já e ra”, tal co m o o for­
m ulo u Lyotard (1988, p. 104), p ara q u em o su b lim e pós-mo-
d em o ganho u o sentid o d e u m p o sic io n am en to existencial
d iante d essa im p o ssibilid ad e. A o e xig ir o p resen te e lançar
m ão da “ ago rid ad e” d o p resen te e sté tic o , Ly o tard viu na
arte e na literatu ra u m a p o tência q u e, em v ez d e se abrir
co m o a m o d erna p ro m essa d e u m a u to p ia rad ical no ho ri­
zo nte da histó ria, se faz p resen te n o in stan te d a exp eriên­
cia afetiva co m o p ura p o ssibilid ad e d e m u d an ça n a relação
entre o sujeito e sua realid ad e e, sim u ltan eam en te, co mo
am eaça de que nad a vai aco ntecer. Se o p resen te mo der-
nista o ferecia um cam inho p ara a realiz aç ão d e u m temp o
qualitativ o , que se co m unicav a c o m a h istó ria d e m aneira
red ento ra, o p resente c o ntem p o râneo é a q u eb ra d a co luna
v ertebral da histó ria e já não p o d e o fere c e r n em repo uso ,
nem co nciliação . V isto d esse p o nto , o d esafio co ntem p o ­
râneo co nsiste em d ar resp o stas a u m an acro n ism o ainda
tributário de esp eranças que lh e ch eg am tan to d o passad o
p erd ido quanto d o futuro u tó p ico . A g ir c o n fo rm e e ss a con-
d ição d em and a um q u estio nam ento d a co n sc iên c ia histó -
n c a rad icalm ente d iferente d o q u e se ap resentav a p ara as
g eraçõ es passad as co m o , p o r exem p lo , o o tim ism o desen-
vo lv im entista da d écad a d e 1950 o u o c eticism o pó s-m oder-
no da de 1980. 0 p assad o ap enas se p resen tifica enq uanto
p erd id o , o ferecend o co m o testem u n h o seus índ ices d esco­
nexo s, m atéria-p rim a d e um a p ulsão arquivista de reco lhê-
lo e reco nstruí-lo literariam ente. Enquanto isso , o futuro só
ad quire sentid o p o r interm éd io d e um a ação intempestiva
capaz d e lid ar co m a ausência d e p ro m essas red ento ras ou
übmdoras.
A ssim , na insistência d o presente tem p o ral em vários es­
crito res da g eração m ais recente, há certam ente uma preo-
cupação p ela criação de sua pró p ria presença, tanto no sen­
tid o tem p o ral m ais su p erficial de to m ar-se a J‘ficção do
m o m ento ” q uanto no sentid o m ais enfático de impor sua
p resença p erfo rm ativa. Q uestio na-se. assim , a eficiência es­
tilística d a literatu ra, seu im p acto so bre d eterm inad area-
lid ad e so cial e sua relação de respo nsabilid ad e ou solida­
ried ad e co m o s p ro blem as so ciais e culturais de seu tempo .
Entretanto , p ercebe-se a intuição d e um a d ificuld ade, de
algo que o s im p ed e d e interv ir e recup erar a aliança co m o
m o m ento e que refo rm u la o d esafio do im ed iato tanto na
criação q uanto na d iv ulgação da o bra e no im pacto no co n­
tato co m o leito r.
As no vas tec n o lo g ias o ferecem cam inho s inéd ito s para
esses esfo rço s, d e m aneira particular, co m os blogs, que fa-
cilitam a d iv ulg ação d os texto s, d ribland o os mecanism o s
do m ercad o trad icio nal d o liv ro , bem co m o o escrutínio e
o p ro cesso seletiv o d as ed ito ras. Co m essas novas platafo r­
mas de v isibilid ad e da escrita surgiu um inéd ito espaço de­
m o crático e fo ram criad as co nd içõ es para um d ebate mais
im ed iato em to m o de no vas pro po stas de escrita. Existem
caso s d e escrito res que iniciaram seus exp erim ento s aí e
só d epo is fo ram integrad o s às ed ito ras, co m o , po r exem­
plo, A na M aria Go nçalv es (Ao lado e à m arg em do qu e sentes
p o r m im , 2002), A na Paula Maia (Entre rinhas de cachorro e p o r­
cos abatido s, 2009), D aniel Galera (D entes g u ardado s, 2001) e
C larah A v erbu ck (Mtújuma d e p in b all, 2002). Seg u nd o depoi­
m e n to d a A v erb u ck, o b lo g "Braz ile iraIP re ta” serv iu para
d iv u lg ar seu p rim eiro liv ro , M áq u in a d e p in b all, escrito an-
te rio rm e n te . C o ntu d o , é p re c iso re c o n h e c e r q u e a escrita
em blo g não o fe re c e u m a c o n c o rrê n c ia re al ao m ercad o , e
q u e a p u b lic aç ão d e ro m an c e s o n lin e c o n tin u a send o um
fe n ô m e n o m in o ritário e m arg in al. O u tra te n d ê n c ia clara é
a ab e rtu ra d o m e rc ad o im p re sso e m fu n ç ão d o b aratea­
m e n to d o s cu sto s d e p ro d u ção d o liv ro , o q u e p o ssibilita,
h o je , a estreia d e m u ito s e sc rito re s e m p e q u e n as ed ito ras
au to fm an c iad as, e m b o ra a d iv u lg aç ão n as liv rarias co nti­
nu e a ser o p rin c ip al o b stác u lo . En tre tan to , m ais interes­
san te é fo c ar as c o n se q u ê n c ias d e ssa u rg ê n c ia so b re as
fo rm as e o s g ên ero s lite rário s e n tre o s e sc rito re s d o mo ­
m en to . C ertam en te p o d erem o s ap o n tar a p o p u larid ad e das
fo rm as u ltracu rtas d e m in ic o n to s e d as e stru tu ras co m p le­
xas e frag m entajd as c o m o u m sin to m a, m as tam b é m o hi­
b rid ism o c re sc en te e n tre a e sc rita lite rária e a n ão literá­
ria, seja jo rn a lístic a e p ú b lic a, se ja p e sso al e ín tim a. De
m o d o g eral, p erceb e-se, n o s e sc rito re s d a g e raç ão m ais re­
c e n te , a intu ição ^ d eju m a im p o ssib ilid ad e , alg o q u e estaria
im p ed ind o -o s d e in te rv ir e re c u p e rar a alian ç a c o m a atua­
lid ad e e q ue co lo c a o d esafio d e re in v e n tar as fo rm as his­
tó ricas d o realism o lite rário n u m a lite ratu ra q u e lid a co m
o s p ro b lem as d o p aís e q u e exp õ e as q u e stõ e s m ais v ulne­
ráv eis d o c rim e, d a v io lên c ia, d a c o rru p ç ão e d a m iséria.
A q u i, o s efeito s d e “ p re se n ç a” se alíajrT ã"u m sen tid o es­
p e c ífic o d e exp eriên cia^ u ^ e sté tic a buscad a
n u m a. lingua^em,,e,,Qu.m estilo m ais e n f á tíc o s T n ò s efeito s
c o n tu n d en tes d e d iv ersas té c n ic as n ão re p re sen tativ as de
ap ro p riaç ão d essa realid ad e. O u so d as fõ rm as^ b rev es, a
ad ap tação d e u m a ling u ag em c u rta e frag m e n tária e o na*
m o ro co m a c rô n ic a são ap enas alg um as exp ressõ es da ur­
g ência d e falar so b re e co m o “ re al”.
Essa d em and a d e p resen ça é u m traço que, para alguns
— M arcelino Freire, Luiz Ruffato , M arçal A quino , N elso n
de O liv eira, Fernand o Bo nassi, en tre o u tro s — , se evid en­
cia n a p ersp ectiv a d e u m a reinv enção d o realism o , à pro­
cu ra d e u m im p ac to nu m a d eterm inad a realid ad e so cial,
o u n a b u sca d e se refaz er a relação d e resp o nsabilid ad e e
so lid aried ad e co m o s p ro b lem as so ciais e culturais de seu
tem p o . Para o u tro s — Ru b ens Fig ueired o , A d riana Lisboa,
M ichel Laub e Jo ão A nz anello Carrasco z a — , ev o car e lid ar
co m a p resen ç a to m a-se sin ô n im o d e co n sc ifn c iãsü b jetiv a
e d e u m a ap ro xim aç ão literária ao m ais co tid iano , auto bío -
g ráfTrnrtrffiãT,'o esto fo m aterial d a vid a o rd inária em seus
d etalhes m ín im o s. Entre essas d uas v ertentes p arece haver,
seg und o alg u ns c rític o s, u m a p o lariz ação co nstante (Lopes,
2007) q u e v em send o inclu siv e ap ro v eitad a p ela im p rensa
co m o u m m o d o d e ap resen tar a p ro d uçào co ntem p o rânea
p o r in term éd io d o co n traste en tre d uas estéticas literárias.
De u m lad o , hav eria a b ru talid ad e d o realism o m arg inal,
q ue assu m e seu d esg arram en to co ntem p o râneo , e, de ou-
tro , a g raça d o s u niv erso s íntim o s e sensív eis, que ap o stam
n a p ro c u ra d a e p ifan ia e na p eq u ena h istó ria insp irad a
p elo m ais d ia, m eno s d ia d e cad a um . Co ntud o , essa pare­
ce ser aind a u m a d iv isão red uto ra, um a rem iniscência da
d iv isão trad icio nal q ue o p u nha a ficção “ neo natu ralista” à
“ p sico ló g ica” e “ existen c ial”. A literatu ra que ho je trata dos
p ro b lem as so ciais não exclu i a d im ensão p esso al e íntim a,
p riv ileg iand o ap enas a realid ad e exterio r; o escrito r que
o p ta p o r ressaltar a exp eriên cia subjetiv a não igno ra a tu r­
b u lência d o c o n tex to so cial e histó rico . Entre esses extre­
m o s, q u e tal enfo q u e c rític o tend e a sublinhar, existe um
vasto cam p o d iferenciad o q u e se e n c o n tra tam b é m através-
sad o p o r um a o u tra p o lariz ação p ro b lem átic a: d e u m lado
aqueles que env ered am p o r e x p e riên c ias d e ling u ag em e
estilo (os “ chato s e h e rm é tic o s” ), e, d e o u tro , aq u eles que
se v o ltam p ara as narrativ as trad ic io n ais e m b en efíc io do
en treten im en to e d a “ h istó ria b e m c o n tad a”. A ssim , por
exem p lo , as fro nteiras fo ram d efinid as n a p o le m ic a entre
Felip e Pena e A d riana Lisbo a n o b lo g d e “ Pro sa e V erso ” do
jo rn al 0 G lobo em o u tu b ro d e 2008. D u ran te u m d o s últi­
m o s curso s p ro ferid o s p o r Ro land Barth e s n o C o llèg e de
France, em 1978, o tem a d iscu tid o e ra e sse “ m e io ” que dri­
bla o s b inarism o s en tre su jeito e o b je to , e n tre sentim ento
e razão e entre co nfissão e re p re sen taç ão , d en o m inad o por
ele 0 n eu t ro (Barthes, 2003). Para Barth e s, o 0 n e u t r o é pre-
cisam ente o lugar d a escrita lite raria, n e m o re fle x o rep re­
sentativo do m und o exterio r n e m a exp ressão ín tim a do in­
terio r subjetiv o , m as “ u m a reiaç ao j u sta c o m o p resente,
atento e não arro g ante” (p. 171), o u u m “ e star n o m und o ”
que d esafia a co nfusão e n tre m o d ern o , n o sen tid o tem p o ­
ral e reiv ind icativ o , e p resen te, n o sen tid o d e c riar p resen­
ça p ela literatu ra. Talvez seja u m a m an e ira ab strata d emais
d e d izer que a ficção c o n tem p o rân ea n ão p o d e ser enten­
d id a d e m o d o satisfató rio n a clav e d a v o lta ao eng ajam en­
to realista co m o s p ro b lem as so ciais, n e m n a clav e d o re­
to m o d a intim id ad e d o au to b io g ráfic o , p o is, n o s m elho res
caso s, os d ois cam inho s co nv iv em e se e n tre laç am d e modo
p arad o xal e fértil.
M esm o abrind o m ão d o s c o n c eito s trad ic io n ais d a his*
tó ria, tais co m o d esenv o lv im ento e co n tin u id ad e, na defi­
nição d o que v em a ser a literatu ra c o n tem p o rân e a pode
ser p ro v eito so d iscu tir o s rec o rtes tem p o rais p o r m eio dos
quais ela v em send o abo rd ad a, p o is a q u estão d e ép o ca e

16
de g eração insiste e pro d uz aind a leituras sugestivas para
entend er a ficção p ro d uzid a nu m d eterm inad o m o m ento .
Um a d as so lu çõ es m ais freq u entes é eleg er um a d écad a
co m o d efinid o ra d e cad a g eração , o que já crio u d efiniçõ es
b astante reco nhecid as que faz em d e 1970 a d écad a de co n-
tistas urbano s^ d e 1980 ad é c ad ad a literatu ra pó s-mo d erna
no Brasil e d e 1990 a g eração d e “ transg resso res”, num
tem p o d eterm inad o p ela escrita, d e co m p utad o r e pela tem ­
p o ralid ad e im ed iata d a Internet. A “ Geração 00”, po r sua
vez,, aind a não g anho u um p erfil claro , e nenhum grupo se
id entifico u p ara escrev er o m anifesto e lev antar sua ban­
d eira d e g eração . Para Flávio Carneiro , po r exem plo ,

(...) o tra ço m a rca n te d a p ro s a b ras il e ira d este in ício d e m i­

l ê n io , n u m p ro ce s s o q u e , co m o v im o s , co m e ço u a se d efla­

g ra r n o s an o s 8 0 , to m an d o - s e m ais d en so n o s 9 0 , é o d a

co n v i v ê n cia p acíf ica d o s m ais d iv ers o s estil o s. (2 0 0 5 , p . 33)

ítalo M o rico ni d estaca a im p o rtância d o sup o rte da Inter­


n e t e a au sência d e m o d elo s canô nico s:

À s v e z e s , n e m e x i s te m re f e rê n cias lite rárias , a in sp iração

p o d e e s ta r v in d o d o p ró p rio u m b ig o d o e scrito r, co m o n o

cas o d o s b lo g u e iro s . M as n u m p o n to eles co n co rd am : n ão

h á m ai s e s p aço p a ra u m a n o v a C l arice L is p e cto r o u u m

n o v o G u im arãe s R o sa. Essa co b ran ça p o r u m n ov o cân o n e,

q u e n o rm a l m e n te p arte d o s p ró p rio s crítico s , é p o r eles

co n d e n ad a. (M o rico n i, 2 0 0 4 )

Tam bém a p esquisad o ra e crítica literária Beatriz Resend e


(2007) d efiniu a no v a g eração p o r sua m ultiplicid ad e e he­
tero g eneid ad e to lerante, aleg and o que o século XXI se ini­
cio u co m am o stras d e um a grand e d ispersão de tem as e
estilo s em co nv iv ência m ú ltip la, sem a im po sição de ne- |
nhu m a tend ência clara. Os exem p lo s principais d essa to- í

17
lerância estariam co ntid o s nas an to lo g ias d e co n to s edita-
d as po r N elso n de O liv eira (2001 e 2003), Luiz Ru ffato (2004
e 2005) e ítalo M o rico ni (2001), na v irad a d o sécu lo , alavan-
cas para um a série de no v o s esc rito re s q u e h o je conquis-
taram seu esp aço p ró p rio no m erc ad o e d ian te d a crítica,
Talvez a im p ressão de d iv ersid ad e v e n h a d a p ro liferação de
no v o s no m es de escrito res, c u ja ap ariç ão m u itas v ezes £re-
m atura exp ressa a increrrientação d o n o sso m erc ad o edi­
to rial. O Plano Real e a estab ilid ad e e c o n ô m ic a d o p aís pro­
p iciaram , na últim a d écad a, u m au m e n to c o nsid eráv el na
vend a de liv ro s; no vas liv rarias ab riram , as fe iras d e livros
se co nv erteram em m eg aev ento s, e, p rin c ip alm e n te , surgiu
um a varied ad e de p eq u enas ed ito ras q u e so u b eram apro­
v eitar 0 b arateam ento te c n o ló g ic o d o c u sto d e pro d ução
inv estind o em no v o s no m es e o fere c e n d o e sp aç o a auto res
d e p rim eira v iag em em ed iç õ e s re lativ am e n te baratas.
Co m revistas literárias co m o Ficçõ es (Rio d e Jan e iro ), Inimigo
R u m or (Rio de Janeiro / São Paulo ) e R asc u n ho (Paraná), uma

o p ção variad a d e o utras p u b licaçõ es v irtu ais e as revistas


culturais m ais co m erciais c o m o C u lt, T rip e B r av o , abriram -
se o p çõ es flexív eis d e p u b lic aç ão e c rític a, assum ind o -se
p arte da função d e d iv ulg ação an te s g aran tid a p elo s suple­
m ento s literário s, h o je m u ito p reju d ic ad o s p ela c rise dos
jo rnais. Co m as feiras d e liv ro s n ac io n ais e o s festiv ais lite­
rário s seg uind o 0 m o d elo c o m e rc ialm e n te bem -suced id o
d a Festa Literária In tern ac io n al d e Paraty (FLIP), q u e abriu
c am in h o p ara a Festa Literária In te rn ac io n al d e Po rto de
G alinhas (Flip o rto ), Passo Fund o , Po rto A leg re e Fó ru m das
Letras d e O uro Preto , en tre m u ito s o u tro s ev ento s. Segun­
d o 0 p o rtal d o Plano N acio nal d o Liv ro e Leitu ra — http:/ /
w w w .pnll.go v.br/ — , fo ram realiz ad as, e m 2 0 0 8 , m ais de
200 ativ id ad es d e p ro m o ção d a leitu ra. ‘
A ssim , a aten ç ão em to m o d a p esso a do escrito r cres­
ceu, e a fig u ra esp etacu lar d o “ au to r” tanto q uanto o o bje-
to liv ro g an h aram m aio r esp aço na m íd ia — o que não
co incid e c o m o g anho d e leito res efetiv o s; to m o u-se chique
ser auto r, e nad a inco m u m g anhar esp aço na míd ia m es­
m o antes d e jm b lic ar o p rim eiro liv ro . O utra no vid ade a ser
no tad a é a d o s jp ro g ram as literário s d e telev isão que rep re­
sen tam u m a fatia in te ressan te na p ro g ram ação cu ltu ral
d o s no v o s c an ais d e TV a cabo . D essa p ersp ectiv a, a im p res­
são d e falta d e ho m o g eneid ad e en tre o s estreantes d esta
d écad a, d a “ G eração 0 0 ” , talv ez seja um a co nseq uência da
ab ertu ra d o m ercad o ed ito rial, que acabo u p o r criar um a
relv a d ensa d e m u ito s no v o s títu lo s co m po uco s no m es de
d estaq ue e lid erança. O nú m ero d e escrito res estreantes, a
p artir d a d écad a d e 1990, é m u ito m aio r d o que na d écad a
de 1970 e não p ara d e crescer. Um m ag ro v o lum e d e co n-
to s às v ez es b asta p ara co nv erter o asp irante em escrito r
d e qualid ad e, até o c o n trário ser co m pro v ad o . E, em bo ra
m u ito s d esap areçam co m a m esm a facilid ad e co m que d es­
p o ntam , o talen to literário p arece ter, ho je, m ais chance de
ser id entificad o p elo g arim p o d as ed ito ras co m erciais.

19
Capítulo 1
Breve mapeamento das últimas gerações

A seg u inte ap resen tação não é guiad a p ela preo cupação


d e caracteriz ar u m a g eração , m as p ro curará trazer para a
d iscussão u m rep ertó rio de escrito res e de obras que ilu­
m inam co rtes e co ntinuid ad es na ficcão brasileira, possi­
bilitand o m ap ear tem as e o p çõ es estilísticas e fo rmais que
se ap resen tam nas escritas d o s auto res co ntem p o râneos.
Ev id entem ente, as esco lhas não serão d eterminad as pelos
v alo res d e q u e se v ale o m ercad o literário , pelas estatísti­
cas d e v end a o u p rêm io s, aind a que estes rep resentem me­
canism o s efic ientes d e cano niz ação e de m arketin g . A tenta­
tiv a aq u i será flag rar o q ue aco ntece d e significativo na
ficção b rasileira atu al, d e m aneira a enxerg ar as co ntinui­
d ad es e, p rincip alm ente, as rup turas produzidas pelo s es-
crito res co ntem p o râneo s. A lguns são auto res que atingem
um a b o a fatia d e p ú blico , cujo s liv ro s vend em bem , outros
são m asco tes d o s crític o s e aind a alm ejam o sucesso de
m ercad o ; n em to d o s são jo v ens, po is o que interessa são
o s auto res cu ja p ro d ução , d e algum mo d o , caracterize esse
m o m ento , o q ue não p ressup õ e a juv entud e co m o critério .
Finalm ente, tam b ém será d iscutid o o que sig nifica, no s
tem p o s p ó s-co lo niais e glo balizad o s, o ad jetivo “brasileiro".
A ind a existem traço s que co nfig urariam um a identidade
n acio n al n a lite ratu ra b rasileira co ntem p o rânea? E, em
caso afirm ativ o , que p ap el teria essa questão nas propos­
tas dos escrito res m ais recentes? Há quinze ano s, Heloisa
Buarq ue d e H o lland a anunciav a o encerram ento do ciclo
nacio nal na literatu ra b rasileira, em favo r de um interesse
crescente p ela realid ad e urbana e de urna perspectiva in-
tem acio nal glo balizad a que, já n a d écad a d e 1980, come­
çava a am p liar as fro nteiras e p erm itir ao s escrito res tratar
d e q u estõ es d e fro n teira e d e esp aç o , sem a cam isa de
fo rça d as d eterm inaçõ es d e id entid ad e nacio nal. Para He­
lo ísa Buarque de H o lland a, a p rincip al ten d ência da lTtêra.
tu ra d as últim as d écad as d o sécu lo XX p o d ia ser vista no
m o d o co m o . esta se ap ro p riav a d o c e n ário u rb ano e, es­
p ecialm ente, das grand es cid ad es. A s no v as m etró p o les bra­
sileiras to rnav am -se p alco p ara u m a série d e narradores
que d ecid iam assum ir um fran co co m p ro m isso co m a rea­
lid ad e so cial, tend o , co m o fo co p referen c ial, as consequên­
cias inum anas da m iséria hu m ana, d o c rim e e d a violência.
O grand e ro m ance nacio nal, c u n had o n o m o d elo de Eu-
clid es da Cunha eJp ãQ uGuim arães Ro sa, p erd ia po sição,
assim co m o as narrativ as in tim istas e d e intro sp ecção psi­
co ló gica que tinham em Lúcio C ard o so e C larice Lispector
seus parad igmas, em bo ra sem d esap arec er p o r completo.
Seguind o a p ersp ectiv a d e H elo isa Bu arq u e d e Hollanda,
o surgim ento incisiv o d e u m a lite ratu ra u rb an a d esenha os
co nto rno s d e um a ficção c o n tem p o rân e a q u e estaria em
sinto nia co m o co nturbad o d esenv o lv im en to d em o g ráfico
do país. Em cinq u enta ano s, o Brasil d eixo u d e ser um país
rural para se to m ar um p aís q u e, ap esar d e sua extensão,
co ncentra quase 80% d a p o p u lação e m áreas u rb anas e nas
g rand es cid ad es. V ista assim , a d écad a d e 1960 m arca o
início de um a p ro sa u rb ana arraig ad a n a realid ad e social
das grand es cid ad es e q ue, d u ran te a d écad a d e 1970, en­
co ntra sua o p ção criativ a n o c o n to c u rto . Os ano s 70 se
im p õ em so bre os escrito res c o m a d em and a d e encontrar
um a exp ressão estética que p u d esse resp o n d er à situação
p o lítica e so cial d o reg im e au to ritário . É esta respo nsabili­
d ad e so cial que se tran sfo rm a n u m a p ro cu ra d e inovação
da ling u ag em e d e alternativ as estilísticas às fo rm as do
realism o histó rico .
Segund o a v isão d o c rítico e auto r Silviano Santiago
(2002, p. 14), o esc rito r b rasileiro enfrento u, d urante os
anos p o sterio res ao go lpe de 1964, um a esco lha estilística (
fund am ental. A pó s o s pico s criativo s da d écada de 19500 )
a realização d as m ais altas am biçõ es criativas mo dernistas
na o bra d e G uim arães Ro sa, b em co m o a d erro ta da utopia
de um a m o d ernização racio nal encam ad a pelo mo vimento \¡
co ncrg íisía — , o escrito r b rasileiro ou seguia a co rrente la-
tino -am ericana em direção a urna literatu ra mágico -realista^
e aleg ó rica o u re to rnav a ao s p ro blem as estilístico s não
reso lvid o s p elo realism o so cial, co m o os que haviam sido
pro blem atizad o s n os ro m ances da d écad a de 1930, em par­
ticular p elo s regio nalistas do N o rd este, Jo sé Lins do Regó,
Graciliano Ram o s, Rachel d e Queiro z e Jo rge Amado. Como
d eno m inad o r co m u m às d uas v ertentes hav ia, segund o
Santiago , o co m p ro m isso tem ático co m uma crítica social e
po lítica co ntra q ualq uer tip o de auto ritarism o . Não apenas
resultad o d e u m go v erno antid em o crático , mas em co nse­
q uência da p ro m o ção d e um a socied ad e ind ustrial avança­
da, d o lib eralism o g lo balizad o so b o s princípio s do capita­
lismo selvagem co m o no rm a para o pro gresso da nação e
do bem -estar d os cid ad ão s. Dessa fo rnia, a literatura que se­
guia a cham ad a rev o lução d e 1964 se caracterizava, segun-
do Santiago , p o r seu co m p ro m isso co m a realid ade social e
po lítica, até m esm o quand o se exp ressava em fo rmas fan­
tásticas o u aleg ó ricas, co m o no s ro m ances de Jo sé J. Veiga,
A ho r a ào T r u n m an t e s (1966), A m áqu in a ex trav iada (1968) e ¡j

Som bras dos reis barbu do s (1972), os co nto s de Sem inário dos jj
ratos (1977), d e Lygia Fagund es Telles, ou Ivan  ngelo co m
o ro m ance A fe s t a (1976). Igno rada fo i a d ramatização das
g rand es questõ es univ ersais e u tó p icas, assim co m o os te­
m as nacio nais clássico s. Tam b ém fo ram aband o nad as as
d iscu ssõ es crític as d o o tim ism o fu tu rista e as demandas
d e um a m o d erniz ação necessária, fo rm u lad as p elo projeto
m o d ernista d o s ano s 20. M ais u m a v ez , c o n f irmava-se a
o p ção histó rica d a literatu ra p elo re alism o , e, em b o ra pro-
cu rand o no v as To rm ãsTã~p ro sa p ó s^ õ lp ê~ d ã^ d écad as de
1960 e 1970 será m arcad a p ela v o cação p o lític a. V ale a pena
iniciar a d iscussão co m u m a b rev e re flex ão so b re a década
d e 1970, um a vez que são o s traço s d a lite ratu ra d esse mo­
m ento que ap o ntam p ara a co m p reen são d a v irad a d e sécu­
lo , em alg uns caso s, p o r m eio d e u m p ro c esso d e cano niza­
ção d iante d o qual o s escrito res m ais re c e n te s se fo rmulam.
Não basta, entretanto , d escrev er a g eraç ão d e 1970 co m o li­
gad a a um no vo realism o u rb ano , em bw raTtenha sid o uma
característica dos co ntistas e d o s ad ep to s d o ro mance-repo r-
tagem . Silv iano Santiag o su b linha, n o e n saio “ Pro sa literá­
ria atual no Brasil”, d e 1984. a “ an arq u ia fo rm al” d essa ge­
ração que, ap esar d o en g ajam en to , p e rm itia u m a inovação
de o p çõ es estilísticas. Santiag o su b lin h a a em erg ên c ia de
um a narrativ a au to b io g ráfica q u e p o ssib ilita a d esconfían-
ça d iante “ da co m p reensão d a h istó ria p ela g lo balização ”
(Santiago , 2002, p. 37) e que exp ressa a o p ção su b jetiv a por
so luçõ es p o líticas m ais rad icais. Para San tiag o , surge, as­
sim , um a genealo g ia e n tre o te x to m o d ern ista e o memo-
rialism o , abo rd and o a fam ília e o clã, e n q u an to o s jo vens
m ais p o litizad o s enc o n tram n o esc o p o au to b io g ráfico ex­
p ressão m ais P£o j3lcia_ ajim iji2w
d úvid a, id entifica-se a v erten te au to b io g ráfic a e memoria­
lista tam b ém na literatu ra co n tem p o rân ea, ag o ra não mais
enq u anto d ecisãa existenciaL d iante d e o p çõ es d e vid a sob
o reg im e auto ritário ,_m as na p ro cu ra p o r m o d o s d e existen-
cia nu m a d em o cracia eco no m icam ente glo balizad a mais es­
tável, p o rém aind a incap az d e criar so luçõ es para seus gra­
ves p ro blem as so ciais. A .literatu ra auto bio gráfica da d éca­
da d e 1970 fo i p ro fu nd am ente m arcad a p elo m em o nalismo
de Ped ro Nava e p o r sua o b ra m o nu m ental em seis vo lumes
— Baú d e ossos, C hão d e fe r r o , B alão cativ o. Beira- m ar, G alo das
trev as, 0 círio p e r fe it o (Nava, 1998-2006) — , m as tam bém fo i

o lug ar de rev isão d as p o sturas d o eng ajam ento p o lítico ,


num a ficção cu jo s tem as se relacio nam d iretam ente à re­
sistência e à lu ta arm ad a co ntra o reg im e repressivo . Por
exem p lo , 0 q u e é isso, c o m p an heir o ? (1979), de Fernand o Ga-
beira; Feliz an o v elho (1982), d e M arcelo Rubens Paiva; C om
licen ça, eu v ou à lu t a (1983), d e Eliane M aciel; Tanto fa z (1983),

de Reinald o M o raes; E m c âm e r a le n ta (1977), de ítenato Tapa­


jó s; A r e be lião do s m o r t o s (1977), d e Luiz Fernand o Emed iato ;
C ade ia p a r a os m o r t o s (1977), d e Ro d o lfo Ko nder; R eflex os do

baile (1976), d e A nto nio Callad o ; A c asa d e v idro (1979), de

Iv an  ng elo ; 0 c alo r d as c o isas (1980), d e N élid a Pino n; e


Os c arbo n ário s (1981), d e A lfred o Sirkis. A ind a em 1999 saiu

um d ep o im ento nessa linha no M em órias do esqu ecim en to, de


Flávio Tav ares (2005).
O utra tend ência d as no v as fo rm as de realism o se reve­
lo u, n aq u e lê m o m e n to , na o p ção p elo hibrid ism o entre fo r­
mas literárias e não literárias co m o , p o r exem p lo , o rom an -
c e- rep o r t ag em , fo rm a d e realism o d o cu m entário insp irad o

no jo rn alism o e no n ew jo u r n alism am ericano , ou, aind a, o


r o m an c e- e n saio , q u e p erm ite um entrecru z am ento im p o r­

tante entre criação e c rítica literária, co m o no ro m ance Em


libe r dade (1981), d e Silv iano Santiago . No seu influente li­

vro Lit eratu ra e v ida lit e r ár ia, d e 1985, a crítica e ensaísta Flo-
ra Süssekind b atiz o u essa p ro d ução de literatu ra v er dade^ e
m o stro u co m o a ap ro xim ação en tre repo rtag em / crô nica
jo rn alístic a, ro m ance e c o nto era u m a resp o sta direta aos
censo res que entraram nas red açõ es d o s jo rn ais em i 95g
lo g o ap ó s o Al-5. Os escrito res, m u ito s d eles tam bém j0r
nalistas, inclu íam no ro m ance, so b fo rm a ficcio n al, a notí­
cia rep rim id a e censurad a, p riv ileg iand o as relaçõ es perj.
g o sas en tre p o liciais co rru p to s e o m u nd o d o s esquadrões
d a m o rte, assim co m o a relação e n tre a rep ressão do cri-
m ino so co m um e o co m b ate à re sistê n c ia p o lítica. Os títu­
lo s m ais fam o so s eram A in fân c ia d o s m o r t o s (1977) e Lúeio
Fláv io - P assag eiro d a ag o n ia, d e Jo sé Lo u z eiro ; V iolên cia e re­

p r e s s ão (1978), d e Persiv al d e So u z a; e A r e p ú b lic a do s assassi­

nos (1976), d e A guinald o Silv a. N o m ap e am e n to d e Süsse-


kind , a lit er at u ra v e r d ad e é co lo cad a e m c o n traste co m uma
o u tra grand e v ertente que ela d en o m in a lit e r at u r a do eu, ao
id entificar um a g rand e p arte d o s p o etas d a ép o ca, a cha­
m ad a “ G eração M im eó g rafo ” (C hacal, C acaso , C hico Alvim,
Paulo Lem inski e A na C ristina César), m as tam b é m é a con­
tinuid ad e de u m a p ro sa m ais e x iste n c ial e intim ista, re­
p resentad a p ela C larice Lisp ecto r d e A p a ix ã o se g u n do G. H„
d e 1964, ao Á g u a v iv a, d e 1973. C larice m o rre u em 1977,
rd as fo i üm a fo rte p resen ^ Tp ara o s e sc rito res que se ini*
c iaram na d écad a d e 1970, assim c o m o o s p o etas mestres
Carlo s D rum m o nd d e A nd rad e e To ão C ab ral d e M elo Neto
co ntinu aram send o as referências p rincip ais. H á aind a, nes­
ses ano s, alg uns p ro jeto s so litário s d e g rand e sofisticação,
v o ltad o s p ara u m trab alho e x p e rim e n tal d e ling uag em , co­
m o o caso d e Rad uan N assar c o m L av o u r a ar c aic a, d e 1975.
e U m c o p o d e c ó lera, d e 1978, e O sm an Lins c o m Avalovara<
d e 1973, que p assaram p ela d écad a e d eixaram u m a heran­
ç a d e im p o rtância aind a reco nhecid a.
C o m a ab ertu ra po lítica, e d u rante o p ro cesso d e retor-
n o à d em o cracia, surge u m a esc rita m ais p sico ló g ica que

26
co nfig ura u m a su b jetiv id ad e em crise, co m o o co rre, p o r
exem p lo , em Z ero , d e Ig nácio d e Lo yo la Brand ão , d e 1974,
em R eflex os do baile , d e A nto nio Callad o , d e 1976, e no C abe­
ça de p ap e l, d e 1977, d o jo rn alista Paulo Francis. N esse m es­

mo im p ulso , o lastro su b jetiv o se ap ro fund a no s co nto s de


Caio Fem and o A breu, em M or an g os m o jad o s , d e 1982, po r
interm éd io d e situ açõ es co tid ianas em que questõ es d e se­
xualid ad e e d e o p ção d e v id a v êm abso rv er as resistências
co ntra a v io lência d e u m sistem a auto ritário .
Mas a p rincip al ino v ação literária fo i a pro sa que A lfred o
Bo si (1975) b atiz o u de bru t alism o . iniciad a p o r Rubem Fon-
seca, em 1963, co m a anto lo g ia d e co nto s Os p risio n eiro s.
Insp irad o n o n e o rrealism o am ericano de Trum an Cap o te e
no ro m ance p o licial d e D ashiell H am m ett, o bru talism o ca-
racterizav a-se, tem áticam en te, pelas d escriçõ es e recriaçõ es
da v io lên c ia so c ial e n tre b and id o s, p ro stitu tas, p o liciais
co rrup to s e m end ig o s. Seu u niv erso p referencial era o ^ a
realid ad e m arg inal, p o r o nd e p eram bulav a o d elinq u ente
da g rand e cTdade, m as tam b ém rev elav a a d im ensão m ais
so m bria e cínica d a alta so cied ad e. Sem ab rir m ão d o co m -
pro irilsso " literário , Fo nseca crio u um estilo p ró p rio -V- en-
ito , d ireto , co m unicativ o ^ — , v o ltad o p ara o subm und o
cario ca, ap ro p riand o -se não ap enas d e suas histó rias e tra­
géd ias, m as, tam b ém , d e u m a ling u ag em co lo q uial que re­
sultava ino v ad o ra p elo seu p articu lar “ realism o cru el". Ou­
tro s escrito res, co m o Ig nário d e Lo y o ja Brand ão , Ro berto
D nim m o nd e, m ais tard e, Sérg io SanfA nna, Caio Fem an-
dn j^hrpn p jnãQ G ilb erto N o ll. seg uiam o s passo s d e Fo nse­
ca e de seu co m p anheiro e p recurso r, o p aranaense D alto n
Xcgvisan. d esnud and o um a “ cru ez a hu m ana” até então iné­
d ita na literatu ra b rasileira. A lém d e co nstitu ir um elem en-
to realista na literatu ra urbana, a exp lo ração da v io lência
e da realid ad e do crim e alav ancav a a p ro cu ra d e renovaçào
da pro sa nacio nal. A cid ad e, so b retud o a v id a m arg inal nos
bas- fon ds , o ferecia um a no v a e in stig an te p aisag em para a

rev italiz ação do realism o literário , e n q u an to a vio lência


po r sua extrem a irrep resentab ilid ad e, d esafiav a o s esforços
p o ético s dos escrito res. Surgiu um a no v a im ag em literária
da realid ad e so cial brasileira que, em b o ra aco mpanhand o
as mud anças so cio culturais, já não co nseg u ia refletir a ci­
dade co m o co nd ição rad icalm ente no v a p ara a exp eriência
histó rica. Na pro sa d e Fo nseca, a cid ad e n ão m ais se ofere­
cia co m o univ erso reg id o p ela ju stiç a o u p ela racio nalid a­
de do espaço público , m as co m o realid ad e d iv id id a, na qual
a cisão sim bó lica, que antes se reg istrav a e n tre “ cam p o ” e
“cid ad e”, ago ra se d elineav a en tre a “ cid ad e o fic ial” e a “ci­
dade m arginal” co m o analisad o p o r Z u enir V entu ra no seu
livro, C idade p ar t id a, so bre o crim e o rg aniz ad o e o desen­
vo lvim ento urbano no Rio d e Jan e iro d e 1994. V ale notar
que Fonseca so ube reto m ar o m aterial d o s d ram as cotidia­
no s da crô nica urbana b rasileira q u e v em d esd e M achado
de A ssire T im a jjarreto , p assand o p o r Jo ão d o Rio até Nel­
so n Rod rigues, Jo ão A ntô nio e A n tô nio Fraga. Fo nseca re­
novou a pro sa brasileira co m u m a ec o n o m ia narrativ a nun­
ca antes vista, que m arcaria as pre m issas d a refo rm u lação
do realism o , cujo sucesso d e púb lic o e d e c rític a consoli­
dou um no vo câno ne p ara a literatu ra u rb an a brasileira.

0 Pos-modernismo

Co m a d em o cratização , em m ead o s d a d écad a d e 1980, o


pro cesso literário enco ntro u no v o s ru m o s. Os crítico s brasi­
leiro s falam d esse p erío d o c o m o a d écad a d a literatura
“ p ó s-m o d em a” ; sua co nd ição p rincip al resid iria no desen­

28
vo lv im ento d e um a eco no m ia d e m ercad o que integro u as
ed ito ras e p ro fissio naliz o u a p rática do escrito r nacio nal.
Um no vo c ritério d e q ualid ad e surge, resultand o em ro ­
mances que co m binam as qualid ad es de b e st sellers co m as’
narrativas ép icas clássicas, reto m and o aos clássico s mito s
de fund ação , co m o em T ocaia g r an de (1984), de Jo rge Ama­
do, e em V iva o p o v o br asileiro (1984), de Jo ão Ubaldo Ribeiro.
A pesar d e rep resentar um reto m o ao s tem as trad icio nais
da fund ação d a nação , d a histó ria brasileira e do desenvol­
v im ento d e um a id entid ad e cultural, esses ro mances repre­
sentam , ao m esm o tem p o , um a reescrita da m em ó ria na­
cio nal d a p ersp ectiv a d e um a histo rio g rafia m etaficcio nal
p ó s-m o d em a, v alend o -se freq u entem ente da irrev erência
nesse trabalho . Um b o m exem p lo é o ro m ance de Ana Mi­
rand a, B oc a do In fern o (1989), que o bteve grand e sucesso de
público , m esm o send o um ro m ance de estreia. Trata-se de
uma ficcio naliz ação d a vid a d o p o eta barro co Gregó rio de
Matos co m binad a a um co m p lexo enred o po licial, no estilo
do ro m ance d e Um berto Eco , 0 n o m e d a rosa, de 1983, no
qual um a v asta d o cu m entação histó rica em basa uma nar­
rativ a satírica q ue flerta ab ertam en te co m o grand e pú­
b lico leito r. M ais tard e, A na M irand a tenta rep etir a fó r­
mula de sucesso em ro m ances co m o 0 retrat o do rei (1991),
so bre a Guerra d os Em bo abas, A ú ltim a qu im era (1995), so­
bre A ugusto d os A njo s, e D esm u n do (1996), que narra a his­
tó ria das m u lheres ó rfãs, enviad as ao Brasil para se casar
co m os co lo no s p o rtugueses. Mas em nenhum desses livros
a auto ra co nseg ue cheg ar ao s resultad o s o btid o s co m seu
ro m ance d e estreia. É característico d essa fo rm a de revi­
sio nism o histó rico d o Brasil, via ficção anacrô nica, que o
co nteúd o histó rico se to m e alego ria da realid ad e nacio nal
m o d em a. Co m um a ling u ag em efic iente e m uitas vezes

29
inspirad a em gênero s po p ulares, co m o o susp ense policiai
o u o ro m ance d etetiv esco , as referências histó ricas são me-
tabo lizad as de m o d o a p o ssib ilitar no v as hip ó teses inter­
p retativ as. Um bo m exem p lo é o ro m an c e A g o s t o , grande
sucesso de Rubem Fo nseca, d e 1990, q u e co nta a história
do atentad o co ntra Lacerd a e o suicíd io d e G etúlio Vargas
sem ro m p er a co erência d os fato s reais, m as inserindo-os
num enred o po licial que não d eixa nad a a d esejar aos fãs
d e Geo rges Sim eno n e d e o u tro s clássic o s d esse gênero,
Co m frequência, o leito r, o trad u to r o u o c rític o surgem
nessas histó rias co m o v erd ad eiro s d etetiv es e n tre manus­
crito s ap ó crifo s e p istas d e eru d ição , c o m o o co rre no ro-
m ance-rev elação de Isaías Pesso tti, d e 1993, A qu e le s cães
m alditos deA rqu elau , em que um g ru p o d e p esquisad o res ita­

liano s pro cura o m isterio so Bisp o V erm elho , au to r de um


tratad o so bre Euríp id es, em m eio a u m enred o generoso,
que d ispensa co nhecim ento e in telig ên cia. M ais tard e, em
1995, Pesso tti rep etiu o su cesso c o m 0 m an u s c r it o de Me-
diav illa e A luo d e v e r dade d e 1997. Trata-se d e literatu ra so­

bre literatura, ficção .q u e d iscu te sua p ró p ria co nstrução e


reflete so bre co m o tais m ecanism o s afe tam a p ercep ção do
mund o que se co stu m a rec o n h ec er co m o real. A grand e re­
ferência p ara essa narrativ a m e tarre fle x iv a fo i a o bra de
Jo rg e Luis Bo rges, p rincip alm ente seus te xto s d a d écad a de
1940, tard iam ente d esco b erto s, q u e so m e n te a p artir das
d écad as de 1970 e 1980 m o stro u -se d ete rm in an te na re­
no v ação d a narrativ a. A ind a h o je p erc eb em o s a influência
d a sua eng enho sa m etarreflexão lite rária nas o bras do ar­
g entino Ricard o Piglia, d o c h ilen o Ro b erto Bo laño e do es­
p anho l Enrique Vila-M atas. A o lo ng o d a d écad a d e 1980 , o
elem ento m ais utiliz ad o p ara id en tific ar essa v ertente pós-
m o d erna era a co m b inação híb rid a e n tre alta e b aixa litera*

30
tura, p ro piciad a p elo no v o d iálo go entre a literatura, a cul­
tura p o pular e a cultura de m assa, o u a mescla entre os gé­
neros d e ficção e as fo rm as d a não ficção , co mo a biografía,
a histo ria e o ensaio .
Tod avia, a p rincip al d im ensão híbrid a, na pro sa da dé­
cada d e 1980, é resu ltad o d a interação entre a literatura e
o utro s m eio s d e co m u nicação , p rincip alm ente meio s vi­
suais, co m o fo to g rafia, cinem a, publicid ad e, víd eo e a pro­
dução d a m íd ia em g eral. Co nfo rm e o bserva Flora Süsse-
kind , no ensaio “ Ficção 80: d o brad iças & v itrines”, de 1986
(in Süssekind , 1993), a ficção d a d écad a de 1980 se conver­
te nu m a esp écie d e m u ltim ídia, o u eventual m etam ídia, na
qual a esp etacu lariz ação d a so cied ad e m id iática co ntem po ­
ránea no Brasil enco ntra sua exp ressão e questio nam ento .
Mas a d efinição d o p ó s-m o d em o d ep end e, princip alm ente,
de urna no v a p o sição d o su jeito m arcad a pela expressão li­
terária d e um a ind iv id ualid ad e d espro vid a de co nteúd o psi­
co ló gico , sem p ro fund id ad e e sem p ro jeto . A aparição da
o bra d e Jo ão G ilb erto N o ll, em 1980, co m a co leção de co n­
to s 0 ceg o e a dan ç ar in a, aind a so b influência de Clarice Lis-
p ecto r e d a d iscussão existencial, to m o u-se o m elho r exem ­
plo d essa no v a exp ressão . Süssekind m o stra, no ensaio de
1986, d e que m aneira, no co nto “ M arilyn no inferno ”, o lei­
to r entra nu m m u nd o ficcio nal no qual os perso nagens são
incap azes d e d isting u ir entre a realid ad e e a fantasia o u
entre a exp eriên cia p esso al e o m und o o nírico dos d elírio s
pro d uzid o s p elo s m eio s d e co m unicação . Ao m esm o tem ­
po , um a no v a p ersp ectiv a v isual é aberta na narrativ a po r
m eio d o uso d e técnicas d o cinem a — flas h , mud ança de
fo co , co rtes, co ntrastes, elip ses no tem p o e ritm o acelera­
do — , que arrastam o narrad o r em m o vim ento s co ntinua­
m ente estilhaçad o s, refletid o s nas vitrines e nas imagens

31
cinem ato g ráficas, criand o , assim , u m a atm o sfera sem i¡.
m ites nítid o s entre a realid ad e e as p ro jeç õ es fantasmagó-
ricas. Mais tard e, no s ro m ances A fú r ia d o c o r p o (1981), Ban­
doleiros (1985), H otel A tlân tico (1989), R asto s d o v e r ão (1990),

O qu ieto an im al da esqu in a (1991), H ar m ad a (1993) até o A céu

aber to (1996), Noll cum p re u m a traje tó ria q u e o identifica,

inicialm ente, co m o o in té rp re te m ais o rig in al d o senti­


m ento pó s-mo d emo de p erd a d e sen tid o e d e referência.
Sua narrativ a se mo ve sem u m c e n tro , n ão anco rad a num
narrad o r auto co nsciente; seus p erso nag ens se encontram
em pro cesso de esv aziam ento d e p ro je to s e d e personali­
dade, em crise de id entid ad e n ac io n al, so c ial e sexual, mas
sempre à d eriva e à p ro cura d e p eq u enas e p erv ersas reali­
zações do d esejo . A co ntecim ento s v io len to s interro m pem
seus trajeto s de m o d o enig m ático e d eixam o co rp o em es­
tado de ferid a e num arriscad o p ercu rso d e vulnerabilid ade
e expo sição . Sem pre em m o v im ento , p eram b u land o numa
geo grafia incerta, o m o v im ento n arrativ o d e N o ll é a via­
gem numa paisagem o btu sa em q u e fro n te iras são aboli­
das, e d im ensõ es tem p o rais e esp aciais são questio nad as
po r trajeto s errantes que cru z am u m te rritó rio sem claras
d efiniçõ es, pro d uzind o um m o v im en to h e sitan te em dire­
ção a Po rto A legre, a cid ad e que, d o ro m an c e H o t el A tlântico
(1989) a Lorde, sim bo liza a o rig em , o lar e a id entid ad e que
nunca são reto m ad o s.
Outro exem p lo de um sen tim e n to se m e lh an te estava
p resente no b est seller d e Silv iano Santiag o , Stella M anhat­

tan , de 1985, que narra a h istó ria d o s im ig ran tes brasilei­

ro s em Nova York e no q ual a q u estão p o lític a se mescla


a um q uestio nam ento d as id entid ad es sexu ais entre tra­
vestis e ho m o ssexuais. A qui, a id entid ad e ind iv id ual pare­
ce substituíd a p ela au to encen ação , p ela p o se, p elo exibi'
cio nism o e p ela teatralid ad e do indivíd uo . O perso nagem
central, Ed uard o d a Co sta e Silva, muda-se para a ilha de
M anhattan, em Nova York, d urante a d itad ura militar, sain­
do de casa quand o o pai o d esco bre ho m o ssexual. Seu exí­
lio é afetiv o , e a tram a d o ro m ance se co stura pelo m er­
gulho em u niv erso s m arg inais d e exilad o s, no s quais a
necessid ad e d e u m a p o lítica do co rp o se co lo ca em relação
po lêm ica co m as d em and as p o líticas da realid ad e histó ri­
ca, nu m a exp eriên cia lim ítro fe de exílio , d eixand o a im ­
pressão d e p erd a tanto d a referência íntim a quanto da rea­
lid ade referencial o b jetiv a. A perd a de d eterm inação e de
rum o dos p erso nag ens é um a característica que a prosa da
d écad a de 1990 iria p ro lo ng ar, em narrativ as que o ferecem
o ind ivíd uo co m o um tip o de fanto che, envo lvido em situa­
çõ es que flertam co m o inum ano ; jo g o s co m plexo s de um
d estino que o p era além d e sua co m p reensão e co ntro le.
Perso nagens d essubjetiv ad o s são levado s po r fo rças d esco ­
nhecid as d a fatalid ad e o u d a co incid ência, o que resulta
num p ro fu nd o q u estio n am en to existencial, assim co m o
aco ntece no ro m ance d e C hico Buarque de Ho llanda, Estor­
v o (1991), e m ais tard e em Ben jam in (1995), o u em Um táx i

p ar a V ien a d ’Á u stria (1991), d e A ntô nio To rres, co m o tam ­

bém em A n a em V en ez a, d e 1994. N este últim o , Jo ão Tre-


visan exp erim enta um a narrativ a histó rica que jo g a co m
questõ es d e id entid ad e nacio nal e cultural, co lo cad as em
cena nas co nv ersas en tre Ju lia M ann, m ãe dos escrito res
H einrich e Tho m as, a escrav a neg ra A na e o co m p o sito r
b rasileiro A lb erto N ep o m u ceno , d urante um perío d o de
férias em V eneza, no fim d o século XIX, num a esp écie de
alego ria d e fim de século .
Outro grand e auto r, cu jo no m e se afirm a na década de
1980 e que co nso lid o u sua p resença no no sso co ntexto li­

33
terário na d écad a seg u inte, é Sérg io San t’A n na. Sua ficçà0
é um q uestio nam ento co n stan te d a c o n stru ç ão d a realida-
d e em seus fu nd am ento s fic c io n ais e d ram átic o s. Já em
1977, Sant’A nna p u b lico u u m ro m an c e c h am ad o Simula-
cros, e esta referência teatral está p re se n te p o sterio rm ente

no ro m ance exp erim en tal-d ram átic o A t r a g é d ia brasileira


(1987), na no v ela A s e n ho rit a S im p so n (1989) e n o seu roman­
ce m ais recente, U m c rim e d e lic ad o , d e 1997. Este últim o se
d esenvo lve nu m cenário realista, a cid ad e d o Rio d e Janei­
ro , o nd e um a histó ria d e am o r v ai se d elin ean d o entre um
auto r e um a m u lher inv álid a. N esse e n re d o m elo d ram áti­
co de v o yeurism o e exib ic io n ism o , n in g u é m d irig e e nin­
g uém é d irigid o , m as to d o s o s p e rso n ag e n s p are c e m impe­
lid o s p ela fo rça estranha d a ló g ic a d ram átic a. D a mesma
p ersp ectiv a, d ev eríam o s m e n c io n ar u m d o s au to res jovens
de m aio r sucesso no s ú ltim o s an o s, Bern ard o Carv alho . Es­
creveu seu p rim eiro liv ro d e c o n to s, A b e r r aç ao , e m 1993, e
no s últim o s ano s se co nso lid o u c o m o u m d o s p rincip ais es­
crito res jo v ens co m v ário s títu lo s, e n tre eles: O nze (1995),
Os bê bado s e os so n âm bu lo s (1996), T e at r o : r o m an c e (1998), As
in iciais (1999), M edo de S ade (2000), N o v e n o it e s (2002), M ongó­

lia (2003) e 0 sol se p õ e e m S ão P au lo , d e 2007. C o m extrema

argúcia, Carvalho cria enred o s q u e tê m a co m p lexid ad e das


narrativ as p o liciais, em q ue o s d etetiv es são p erso nag ens à
p ro cura d e um a co m p reensão d e su a id en tid ad e e, co m fre­
q uência, de sua o rig em fam iliar, c o m o e m alg u ns enredos
d o am ericano Paul A uster, no s q u ais o s p erso nag ens circu­
lam nu m a intensa ativ id ad e in te rp re tativ a, q u e eles mes­
m o s red efinem p ara te n tar e n te n d e r o s aco ntecim ento s,
lend o a vid a co m o se lessem u m liv ro . A ssim aco ntece, p°r
exem p lo , no ro m ance A s in ic iais , n o q u al o narrad o r-escri­
to r, u m d ia, talv ez p o r eng ano , re c e b e u m a c aixin h a com
quatro in iciais m isterio sas e, d urante d ez ano s, tenta d eci­
frar sua m ensag em . O bcecad o s p ela tarefa de elabo rar res­
po stas, o s p erso nag ens d e Carv alho estão em mo vimento
de inv estig ação d o s fato s e d o s ev ento s que escrev eram
suas histó rias e fo rn e c em p istas que lev am à o rigem fami-
liar e à id entid ad e, m as sem p re nu m a co nstrução de reali­
dade realista ap enas em ap arência e que, no d esenro lar dos
ev ento s, v ai p erd end o v ero ssim ilhança e co ngruência.

Da "Geração 9 0 " à "0 0 "

In ic ialm e n te , a “ G eraç ão 9 0 ” fo i um go lp e p ublicitário


m u ito b em arm ad o . Um g rup o hetero g êneo de escrito res
co nq u isto u sua id entid ad e g eracio nal em função de uma
c o letânea d e c o n to s inéd ito s, o rg aniz ad a em 2001 pelo ro ­
m ancista Ne lso n d e O liv eira, co m o títu lo G eração 90 - M a-
nuscritos d e c o m p u t ado r . D o is ano s d ep o is, em 2003, o auto r

lanço u o u tro v o lu m e, ag o ra intitu lad o G eração 9 0 - Os trans­


gressores, c o n so lid an d o esse fenô m eno . O lhand o mais de
p erto , e n tre tan to , é d ifíc il en c o n trar sem elhanças reais
entre o s p artic ip an tes. N ão enco ntram o s nenhum a nova
“ esco la lite rária” , n e n h u m a tend ência clara que unifique
to d o s, e n en h u m m o v im en to p ro g ram ático co m o qual o
escrito r estrean te se id entifiq u e. Parece que a característica
co m um é m esm o sua hetero g eneid ad e e a falta de caracte­
rística u n ific ad o ra, a não ser p elo fo co tem ático vo ltad o
para a so cied ad e e a cu ltu ra co ntem p o râneas, o u para a his­
tó ria m ais re c e n te to m ad a co m o cenário e co ntexto .
Em bo ra seja u m a g eração que não se im agina co m o tal,
o bserv a o o rg aniz ad o r d a co letânea, já que a m era m enção
de “ G eração 90 cheg a a cau sar asco ”, os título s dessas duas
c o letân eas su g erem , ap esar d a d iv ersid ad e, pelo m eno s
d uas hipó teses so bre a no va g eração literária. O primeiro
vo lume indica, no seu subtítu lo , q ue a no v a tecno lo g ia dp
co m putação e as novas fo rm as de c o m u n ic aç ão v ia Inter­
net pro vo caram nessa g eração u m a p re fe rê n c ia p ela prosa
curta, pelo m inico nto e p elas fo rm as d e e sc rita mstantâ-
neas, os flashes e stills fo to g ráfico s e o u tras exp eriên cias de
miniaturização do co nto . Este traço re m e te à seg und a hi­
pó tese sustentad a pela anto lo g ia, su g erind o q u e a geração
da década de 1990 reto m a o exem p lo d a g eraç ão d e 1970,
que teria pro duzido o p rim eiro g rand e b o o m d o c o nto bra­
sileiro com auto res que ho je p o d em o s c h am ar d e clássicos
co ntem po râneo s: D alto n Trev isan, Lygia Fag u nd es Telles,
Rubem Fo nseca, Sérg io San t’A nna, R o b erto Drum m o nd ,
Jo ão A ntô nio , Jo sé J. Veiga, M urilo Rubião . H o je, v ário s des­
tes no mes ainda figuram en tre o s c o n tistas m ais d estaca­
dos, como Rubem Fo nseca — M an dr àke , a b íb lia e a bengala
(2005) e Ela e ou tras m u lheres (2006) — e Sérg io San t’A nna —
0 v oo da m adr u g ada (2003). No e n tan to , p ara a tend ência

nova do m icro co nto , as referências serão o s au to res jovens


co mo Fernand o Bo nassi, M arcelino Freire e C ad ão Volpato,
embo ra seja po ssível rem eter o fe n ô m en o a au to res mais
co nso lid ad o s co m o D alto n Trev isan, 2 3 4 (1997) e A h, él
(1994), Vilma A rêas, T rou x a fr o u x a (2000), e Z u lm ira Tavares,
0 m an dril (1988). Desta m aneira, c h eg am o s talv ez ao traço

que m elho r caracteriz a a lite ratu ra d a ú ltim a d écad a: o


convívio entre a co ntinuação d e e le m en to s esp ecífico s^qu^
teriam emergid o nas d écad as an te rio res, e u m a reto mad a
ino vad o ra de certas fo rm as e tem as d a d écad a d e 1970. Por
exem plo , po d emo s d etec to r a so b rev iv ência d o realism o re­
gio nalista, d esd e a d écad a d e 1930, u m d o s fund am ento s
na inclinação brasileira p elo realism o , em ro m an c es de Ra'
chel d e Queiro z, M em orial de M aria M o u ra (1992), Francisco
J. C. D antas e seu relato so b re o cang aço d e Lamp ião , Os des­
v alidos (1993), o g aú ch o Luiz A nto nio A ssis Brasil, co m U m

castelo n o p a m p a (1992) e A m ar g e m im óv el d o rio (2003), e o

cearense Ro nald o C o rreia d e Brito , c o m Liv ro do s hom en s


(2005) e o ro m an c e G alileia, d e 2008. O g ênero não se aba­
lou d iante d o s ataq u es so frid o s p elo jo rn alista e p o lem ista
Diogo M ainard i, q u e, e m 1995, se arrisco u nu m a d esco ns-
trução m e talite rária d o g ên ero no antirro m ance p o lêm ico
P olígon o d as s e c as , p arte d e u m p ro g ram a d e d estruição não

só da literatu ra re g io n alista, m as d e to d a a literatu ra brasi­


leira do sécu lo XX.

Ao longo d esta histó ria, os sertanejo s mo rrem à medida


que representam figuras trad icio nais da literatura tradicio­
nalista, como o retirante, o coro nel, o jagunço , o jerico , o
santo, o mártir. A matança à qual são submetidas é meta­
fórica. Não ind ica um real d esejo de eliminação por parte
do autor, que não tem qualquer interesse pelos sertanejos,
a não ser como perso nagens da literatura. A morte dos ser­
tanejos é tão imaginária quanto o territó rio em que se en­
contram, aquela abstração legislativa denominada Polígo­
no das Secas. (p. 116)

Para M ainard i, a literatu ra reg io nalista é um a das vacas


sagradas d a literatu ra b rasileira e p recisa ser liquid ad a sem
pied ad e, assim c o m o m ais tard e, antes d e encerrar sua rá-
pida carreira d e ro m an c ista, d irig e um ataq ue ácid o co ntra
os lug ares-co m uns d o n ac io n alism o e d o ufanism o literá­
rio no ro m ance C o n t rao ^ B ras il ( í 998). A p esar d as intençõ es
d em õ líd o rasr o s ro m an c es d e M ainard i fo ram lid o s, para­
d o xalm ente, no esp írito p ó s-m o d em o , co m o co ntribuiçõ es
m etaliterárias d e ép o ca p ara um a d iscussão das fro nteiras
da ficção , e o q ue era p ara ser crítico causo u um efeito co n-
trário . um a esp écie d e u fanism o às avessas, que refletia um
enorme respeito ou paixão não só p ela “v erd ad eira” üte
ratura como pelo alvo do ataque, atestan d o assim , peia
negação, a vitalidade co ntínua d os tem as reg io nais e na­
cionais. Contudo, sua co ntribuição à lite ratu ra brasileira
sem dúvida foi mais pro vo cativa do q u e su b stancial, en­
tretanto deixou a lembrança d a falta q ue faz em os bons
polemistas da categoria de N elso n Ro d rig ues, Paulo Fran-
cis e Ivan Lessa.
Outra característica da ficção que se in ic ia no início da
década de 1990 é a intensificação d o hib rid ism o literário,
que gera formas narrativas análo g asTrd Õ Tm eio s audiovr
suais e digitais, tais co mo as escritas ro teiriz ad as de Pa­
trícia Melo, Marçal Aquino e Fernand o Bo nassi, o u ainda a
linguagem incorporada do univ erso d a p ublicid ad e como
no romance Sexo, de André Sant’A nna, o u no d iálo go dire­
to com a fogueira brasileira d asv aH ad és m id iáticas em Taík
show (2000), de Arnaldo Blo ch, e no C on tro le r e m o t o , de Ra­
fael Cardoso (2002). Nos livros id io ssincrático s d e Valêncio
Xavier, escritos ou elaborad os d urante as ú ltim as quatro
décadas, a apropriação peculiar d a cu ltu ra v isu al das dé­
cadas de 19 4 0 e 1950 no Brasil se realiz a g raficam ente por
meio de verdadeiros catálogos. A qui, d esenho s, ilustrações,
fotografias de revistas, quad rinho s, ilu straçõ es comerciais,
folhetins, enciclopédias, pro p agand a p o lítica, jo rnais e li­
vros de ensino compõem um m o saico co m texto s em que
a fronteira entre imagem e narrativ a é d isso lv id a para uma
experiência visual de leitura única. Xav ier trab alho u como
roteirista, diretor de TV e co nsulto r d e im ag em , e crio u um
estilo experimental em livros co m o O m e z d a g r ip p e (1981).
Minho mãe morrenâo (2 0 0 1 ), Maciste no in fern o (1 9 8 3 ) , 0 mis­

tério da prostituta japonesa (1 9 8 6 ) e Crimes à m o d a an tig a (Con­


tos verdade), de 2004, que não só se c aracteriz a p ela rica

38
exp lo ração d e um arq uiv o de imagens da cultura de mí­
dia po p ular, m as elab o ra esse im ag inário em narrativas
que exp lo ram a em erg ência, do po nto de vista atual, bas­
tante ino cente d o esp etacu lar e do assombro da mídia grá­
fica, ju n to co m o resg ate do fascínio que regia seu universo
infantil.
Em o utras exp eriências, co m o , po r exemplo, no roman­
ce de Rubem Fo nseca, Vastos em oções e pensamentos imper­
fe it os , de 1990, tratav a-se m ais de uma homenagem à es­

tética cinem ato g ráfica no cruzam ento co nstante entre o


enred o p o licial e referências de aficio nad o da história do
cinem a e d a literatu ra. O auto r, que sempre foi um apaixo­
nad o p elo cinem a, escrev eu ro teiro s que fo ram editados
co m o ficçõ es — O selv ag em d a ó p er a (1994) — e também
apro veito u a fo rm a de ro teiro na inovação da linguagem
do ro m ance, co m o aco nteceu no primeiro romance 0 caso
M orei (1973) e no co nto Lúcia M cC artney (1967).

Tam bém o recu rso ao p astiche e aos clichês dos gêne­


ro s co nsid erad o s m eno res — melo d ram a, pornografia e ro­
m ance p o licial — se reafirm a co m fo rça, numa reelabora-
ção v ig ô ro sífn a no v a g eração de escrito res, e aqui vale a
pena citar o s co nto s letais de Sérgio Rodrigues em 0 homem
qu e m at o u o es crito r, d e 2000. E, finalm ente, será necessário

não exp ulsar do m ap a da década de 1990 a produção de Ru­


bem Fo nseca, já que ele co ntinuava sendo um dos mode­
los literário s que se faziam presentes na escrita de uma
nova geração d e ro m ancistas. Em sua coleção de contos de
1992, R om an ce n eg ro, d estacam -se duas histórias que se tor­
naram chav es d e leitu ra de sua obra. No conto que empres­
ta títu lo ao liv ro , “ Ro m ance neg ro ”, em seu típico amál­
gama de g ênero s, esp ecialm ente entre ensaio e ficção, o
papel e a função d o auto r co ntem po râneo são desafiados.

39
A narrativa se cria em torno da relação e n tre o auto r e sua
imagem pública, ativando o cerne d o c o n flito entre o per.
151 literário criado pelos livros e a “p esso a re al”, o u extralj.
terária, numa história em que um leito r entu siasta assassj.
na o seu objeto de admiração, o auto r, q u e passava entâo
por uma crise criativa, para to m ar seu lu g ar e converter-se
ele mesmo em autor e dar co ntinuid ad e à o bra. Mas foi 0
conto “A arte de andar nas ruas do Rio d e Jan e iro ” que se
ofereceu para uma geração inteira d e esc rito re s como o
conto emblemático de uma nova literatu ra d a cid ad e. O tí­
tulo do conto é também o título d o liv ro q u e o protagonis­
ta está escrevendo a partir de um a im ersão n o submundo
da cidade do Rio de Janeiro , e no q ual ab o c an h a a vida ur­
bana da perspectiva mais baixa e ig no rad a. O co nto se com­
promete com a ambientação real e co m referên cias histó­
ricas e geográficas facilmente reco nhecív eis, em diálogo
explícito com os debates atuais so bre a situ ação e os pro­
blemas da cidade do Rio de Janeiro . Para alg u ns escritores
de sucesso em atividade, co m o A na M irand a, Rubens Fi­
gueiredo, Jô Soares e Patrícia Melo, Fo nseca fo i não apenas
um exemplo e um modelo, mas^ Jn lalg u ns c aso s, tamBém
o mentor flirêfcTe o possibilitador d e suas o b ras. Fonseca,
por sua vez, continua escrevendo liv ro s co m ó tim a aceita­
ção de leitores e crítica, como E do m e io d o m u n do prostituto

só amores g uardei ao m eu charu t o (no vela, 1997), H ist órias de

amor (1997), 0 bu raco n a p ar e d e (co nto s, 1995), C o n fr ar ia dos


espadas (contos, 1998), O doente M olière (no v ela, 2000), Secre­
ções, excreções e desatinos (co nto s, 2001), Pequenas criatu rti

(contos, 2002), Diário de um/ escenino (ro m ance, 2003), 64 con­


tos de Rubem Fonseca (antologia, 2004), Ela e o u t r as rnulh#0
(contos, 2006) e 0 rom an ce morreu (crô nicas, 2007). No liv10
de contos Ela e outras mulheres, de 2006, Fo nseca m o stra que

40
não perd eu a m ão na arte do co nto breve e vo lta, de certa
maneira, ao s tem as d o auge bru talista. Em 27 co nto s curtos,
o perso nagem que d esencad eia as pequenas histó rias sem­
pre é um a m u lher, cu jo no m e dá título ao co nto . Os cená­
rios são fam iliares ao univ erso de Fo nseca, co mo no co nto
“Belinha”, em que o narrad o r é um assassino de aluguel
com alto s p rincíp io s ético s, tarad o po r Belinha, de 18 anos,
que go sta d ele p o r ser band id o . Quand o ela pede que ele
mate o pai, acaba a atração sexual e, para a menina, o tiro
sai pela culatra:

Me aproximei da Belinha, tirei a Walther do bolso e dispa­


rei na cabeça dela, bem na nuca; para ela morrer de ma­
neira instantânea e sem dor: depois cobri o corpo dela com
um lenço l e saí, fechand o a porta da casa. Como é que al­
guém pode querer matar o pai ou a mãe? (2006, p. 24)

Dessa fo rm a, a d istância irô nica entre a vio lência dos


fatos e o to m cético d o narrad o r, no relato eco nô m ico da
ação, cria um efeito d e hu m o r que co ntinua send o a mar­
ca registrad a d e Fo nseca. No co nto “Laurinha”, o assassi­
nato b rutal d a filh a Laurinha leva o narrad o r e Mano el a
se vingarem, m atand o o culp ad o d epo is de horas de to rtura
co m requintes d e v io lência. Um a vez term inad o o trabalho,
os dois d iv id em u m a lata d e salsicha e cerv eja enquanto
assistem à fo g ueira d ev o rar o s resto s do m o rto no quintal.
De novo, Fo nseca cria um a p o sição estó ica d iante da bar­
bárie, um a m istu ra d e aceitação da realid ad e, na sua gro­
tesca crueld ad e, e um a atitud e d e hu m o r co nfo rm ad a co m
a existência hu m ana.
Na d écad a d e 1990, su rg iram no m eio literário duas
obras cu ja o rig inalid ad e estav a intim am ente ligada à nova
realid ad e d a v io lência e à m aneira flagrante de expô-la. Em
1995, a jo v em escrito ra p au lista Patrícia Melo lançou seu

41
seg und o liv ro , 0 m at ad o r , que se to m aria u m fenô m eno de
v end as. A auto ra já hav ia ang ariad o elo g io s p elo livro de
estreia, A cqu a t o jfan a (1994), m as fo i co m 0 m at ad o r que Pa-
trícia exp licito u a v o ntad e d e se inscrev er n o co ntexto lite­
rário brasileiro co m o a m ais fiel herd eira d a p ro sa brutalis-
t a. d e Rubem Fo nseca. O p erso nag em p rincip al d o mundo

ficcio nal d e Patrícia M elo é M áiquel, jo v e m suburbano de


São Paulo , que se to m a um m atad o r d e alu g u el, um justi­
ceiro pago para exterm inar o s d esafeto s d a alta sociedade
p aulista. Seu p rim eiro “c lie n te ” é o d en tista D o u to r Carva­
lho , um p erso nagem resg atad o d o co n to “ O co b rad o r”, de
Fo nseca, que, apó s ser balead o na p erna, no Rio de Janei-
ro , muda-se para São Paulo e reap arece n o ro m ance de Pa-
tn c iaM elo co m o o ag enciad o r d o sc o n trato s d eho m icíd io .
0 m at ado r não d eixa d e ser u m a esp écie d e r o m an ce de fo r ­

m aç ão às avessas, m o strand o o p ro cesso d e em brutecim en­

to de um ho m em que co m eça a m atar “ p o r acaso ” , p o r for­


ça das circunstâncias, p ara, em seg uid a, se to m ar cúmplice
d a alta so cied ad e. A ssum ind o a p o sição d e carrasco infor­
m al, co m d ireito à vid a fácil e p ro teção d a p o lícia, ao fim,
o perso nag em acaba send o ab so rv id o p elo p ro cesso de ba-
nalização d a v io lência que finalm en te o lev a à auto d estrui­
ção. A pesar da habilid ad e d a escrita, d a ag ilid ad e d o texto
e da co m po sição narrativ a, cu ja flu ência no s rem ete ao rit­
m o alucinante de um film e d e ação , co m flas h e s rápid o s e
co rtes im p actantes, a o bra d e Patrícia M elo ap resenta uma
d iferença fund am ental em relação à narrativ a d e Fo nseca.
Em nenhum m o m ento o tem a d a v io lência p arece impor
um lim ite expressivo , em m o m ento alg um d a le itu r a sente
se que o crescim ento dos ato s v io lento s b eira um a fro n-
teira ética, a b arreira existen cial ú ltim a d e alg o imprO"
n u n c iáv e lo m al em si. Os p erso nagens se esvaziam, seu
co nteúd o se d ilui à m ed id a que sim p lesm ente terminam
por ser retratad o s c o m o m ero s p o rtad o res de uma reali-
dade de abso lu ta d esum anid ad e, perd end o , assim, profun-
didade d iante d essa p ro ib ição fund ad o ra que os faz “ pes­
soas”. Desse m o d o , o liv ro tam b ém se esvazia de sentid o e,
em vez d e env o lv er o leito r no d ram a de um ho m em em
franco p ro cesso d e d eg rad ação m o ral, impõ e-no s a mesma
ind iferença d iante d o s fato s v io lento s que aterro rizam o
perso nagem, e, assim , nad a m ais no s esp anta. As qualida­
des técnicas d o liv ro , o ritm o em aceleração co ntínua e a
manipulação h áb il da h istó ria m o stram a d estreza da aut<>
ra e ju stific am a film ag em d o liv ro — d irigid a po r Jo sé
Henrique Fo nseca co m o títu lo 0 hom em do an o (2003) e ro ­
teiro de Rubem Fo nseca — , m as não leg itim am o incômo ­
do pro vo cad o p ela su p erexp o sição po rno g ráfica da violên­
cia dos fato s. No ro m an ce In fern o , d e 2000, o cenário já não
é o subúrbio d e São Paulo , m as um a fav ela cario ca, e o pro­
tago nista d o catatau d e 400 p ág inas é um garo to do mor­
ro, cham ad o Reiz in h o , q u e cresce ju n to ao s traficantes,
qualifica-se no c rim e e acab a se to rnand o um poderoso
chefe do tráfico . Em v ez d e co ntar a histó ria em primeira
pessoa, co m o o co rria n o ro m ance 0 m at ado r, a narrativa de
Reizinho é m ais c lássica e segue o s mo ld es do ro mance de
formação ro m ântico e realista, co m um narrad or em ter­
ceira pesso a e um a riq u ez a d e o bserv ação descritiva gran­
de. O p ro tag o nista é am b icio so e co nquista seu mundo, no
entanto acaba se d estruind o d ep o is de aniquilar seus adver­
sários, seus d esafeto s, m as tam b ém to do s os seus próximos
e amados. A pós u m p erío d o fo ragid o do mo rro , Reizinho
reaparece nas ú ltim as p ág inas d o livro sem saber se deve
esperar dos band id o s riv ais a reco nciliação ou a morte.

43
Não havia nenhuma nuvem no céu, e o sol fazia tudo bri­
lhar e arder. A previsão, naquele dia, era de que a tempera­
tura subisse a quarenta e dois graus, fato ano rmal naquela
época do ano, comentara o co brad or do ônibus. Porra. José
Luís subiu lentamente o morro, sem saber exatamente o
que iria fazer, os cachorros na frente latind o. (Melo, 2000,
p. 367)

Patrícia M elo d eu seq u ência à h istó ria d o personagem


M áiquel em M un do p e r d id o , d e 2007, ao m o strar o assassi­
no , dez ano s mais v elho , p erco rren d o o p aís em busca da
m ulher que o aband o nara no fim d e O m a t a d o r co m a filha
Sam antha e vinte m il d ó lares. O Brasil é retratad o , satiri-
cam ente, pelo o lhar de M áiquel, n u m relato em estilo roaà-
m ov ie em que o tem a central já não é m ais a v io lência, mas

a d eco mp o sição m o ral p ro d uzid a em m e io à co rrup ção , ao


o p o rtunism o e à d esap arição d e e stru tu ras e instituiçõ es
sociais sólidas. Nessa realid ad e d e eg o ísm o arriv ista gene­
ralizad o , o p rincíp io sim p les e v io len to d e u m assassino de
aluguel arrepend id o o ferece um exem p lo d e co erência, en­
quanto o laço afetivo tênu e q u e se e stab e le c e e n tre o herói
e um cacho rro v ira-lata to m a-se o ú ltim o e p atético res­
quício de humanid ad e p ara alg u ém q u e n ão ap enas se lan­
ça na pro cura de sua fam ília irrec u p erav elm en te perdida,
mas, po r meio d ela, busca u m a m an e ira d e comunicação
não vio lenta.
Com am bição e p ro p o sta to talm en te d iferentes, surge,
em 1997, o ro m ance C idade d e D eu s, d e Paulo Lins, um es­
crito r jo v em , m o rad o r d e u m a ilh a p o b re, d e cerca de 40
mil mo rad o res, encrav ad a no b airro m ais M iam i do Rio de
Janeiro , a Barra da Tiju ca. Se Patrícia M elo só piso u numa
favela pela p rim eira vez d ep o is d e te r esc rito 20 capítulo5
de In fern o, Paulo Lins nasceu e m o ro u a m aio r parte de

44
sua vid a no c o n ju n to hab itacio nal Cidade de Deus. Con­
seguiu sup erar co nd içõ es so ciais d esfavoráveis, formar-se
na univ ersid ad e p ú b lica e realiz ar um trabalho sociológico
sobre a sua p ró p ria fav ela, p ercurso de vida e de pesquisa
que cu lm ina nu m p ro jeto literário d e grand e importância.
0 livro po d e ser lid o d e v árias m aneiras. É um documento
sobre a histó ria d a Cid ad e d e Deus, co m p lexo habitacional
co nstruíd o p ara ab rig ar a p o p ulação que havia perdido
suas casas d u rante as g rand es enchentes no Rio de Janeiro ,
em 1966. A s três p artes d a narrativ a — “História de cabe­
leireira”, “ H istó ria d e Ben é” e “Histó ria de Zé Pequeno ” —
retratam três d écad as — 1960, 1970 e 1980 — da história
do lugar. A o m esm o tem p o , é um a narrativ a memo rialista
em que o p ercu rso d o d esenv o lv im ento individual — par­
tind o da infância ino cente, atrav essand o o cho que do mun­
do real na ad o lescência e d irecio nand o -se para o cinismo
da m aturid ad e — se reflete no to m de vo z, a cada passo
mais d uro no relato . Finalm ente, trata-se de uma ficciona-
lização de fato s reais: “ tud o no liv ro é real”, costuma insis­
tir o auto r co m ferv o r natu ralista o u, d iríamo s, antro po ­
ló gico , co m p ro m etid o co m seus “info rm antes”. Não cabe
dúvida de que esse co m p ro m isso co nscientem ente assu­
mido co nstitu i a g rand e fo rça e, ao m esm o tempo , a gran­
de fraqueza d o ro m ance. Fo rça po rque a realid ade trans­
parece em cad a ação d o s “ m aland ro s” o u “bicho s so lto s”,
muitas v ezes d e m aneira co m o v ente, e po rque a reconstru­
ção da ling uag em d o s p erso nag ens é realizad a com muito
esmero . Mas tam b ém fraq u ez a, po is o s perso nagens pa­
recem p reso s no s p ap éis previsíveis de d ramas em que a
ind ivid ualid ade d e cad a um p arece se co nfund ir com seus
“tipos”. De to d o m o d o , o resultad o do trabalho de Lins é
admirável p elo seu fô leg o e envergad ura, pelo compromis-

45
so cientifico e afetiv o co m o s tem as ali p re se n te s, e pelo
esfo rço de exp ressão , no q ual a c ru eld ad e d a v id a serve
co m o po tência p o ética à sua literatu ra.

0 mercado

Na d écad a de 1980, d iscutia-se, no Brasil, a q u estão d a pro­


fissio nalização do escrito r; a c arre ira, o o fíc io ain d a era vis­
to do prisma do co nflito entre m erc ad o e reco nhecim ento
crítico . Vale lem brar tam b ém q ue fo i ap en as n o fim d a dé­
cad a de 1960 que a q uestão d o s d ireito s au to rais d o s tex­
to s literário s passo u a ser seriam en te d iscu tid a n o Brasil,
d eflagrada em parte pelo p ro cesso ab erto p o r A u tran Dou­
rado e Carlos Drum m o nd d e A nd rad e c o n tra a Blo ch S.A.,
quand o esta incluiu seus texto s n a an to lo g ia L it e r at u r a bra­
sileira em curso (Ridel e Barb ieri, 1968), sem a d ev id a auto ri-

zação dos auto res. Na d écad a d e 1980, o s esc rito res já se


davam co nta de que a literatu ra era tam b é m p ro d ução de
mercad o ria em circulação e q ue, n a m aio r p arte d as vezes,
nesse circuito , eram eles p ró p rio s o s q u e m ais saíam per­
dendo. Po uco s escrito res, d en tre eles Jo rg e A m ad o e Ru­
bem Fonseca, hav iam, então , cru z ad o a fro n te ira e sabo rea­
do a exp eriência das grand es v end as. Pela p rim eira vez, o
mercad o parecia p ro m eter índ ices d e c re sc im en to suficien­
tes para viabilizar a p ro fissio naliz ação d o e sc rito r d e ficção;
no ensaio de 1984, intitulad o “ Pro sa lite rária atu al no Bra­
sil”, Silviano Santiago lançav a u m av iso p ro v o cante: “ O ro­
m ancista brasileiro de ho je p recisa p ro fissio naliz ar-se an­
tes de se to rnar um p ro fissio nal d as letras” (Santiag o , 2002,
p. 29), o u seja, o escrito r p recisa p rep arar-se p ara enfren­
tar os perigo s de um a no va relação c o m erc ial co m o ofício-
para não sucum bir à tentação d e assu m ir o s fo rm ato s di­

46
geríveis d o g o sto d o m ercad o e ab rir m ão do pro jeto literá­
rio e d os p ad rõ es d e q u alid ad e, herd ad o s do mo dernismo,
de co erência e exp erim en taç ão . Seis ano s d epois, em 1990,
numa entrev ista p ara Is t o É/ Senho r, Silv iano co m enta a Lei
do M ercad o , ad v ertind o q u e o escrito r passo u

(...) a p ro d u z i r u m te x to d e b o a q u al id ad e , m as q ue não

co n se g u e e s ca p a r às re d u n d ân ci as (excess o s) e aos elem en­

to s p re v is ív eis (cl ich ê s ) (...) Pro cu ro u f o i j ar u m cam in ho ori­

g in al, ain d a q u e p re cá ri o , p o is ti n h a d e p ass ar p ara o cam ­

po d o s in im ig o s p a ra tê -l o s co m o aliad o s (...) O utra coisa é

ce rta: n a d é cad a d e 8 0 h o u v e u m ab an d o n o grad ativo do

g ran d e a c o n te ci m e n to p o l í ti co co m o p an o de fundo para

p o em as e ro m a n ce s . (B arb ie ri, 2 0 0 3 , p. 46- 47)

À luz d os d ias atu ais, é cu rio so reg istrar que diversos


autores que e m erg iram naq u ele m o m ento , que na época
encarnav am o s v erd ad eiro s canô nico s anô nim o s, rapida­
m ente su p eraram esse d ilem a, assum ind o lid erança no
mercado n ac io n al d en tro d o s p arâm etro s possíveis e mo­
destos de v end a e d e aceitação crítica. Em alguns casos, es­
ses escrito res fo rjaram o s m o ld es tam bém estéticos para
uma nova g eração d e su cesso que viria a se consolidar no
fim da d écad a d e 1980 e n o início da de 1990, como, por
exemplo, Jo ão Ubald o Rib eiro , A ntô nio Torres, Ana Miran­
da, Patrícia Melo , Toão G ilb erto Noll e Bernardo Carvalho.
Seria inju sto , n o en tan to , acu sar essa geração de sucumbir
à tentação d o b est seller, p rincip alm ente porque entre os
ro mancistas, p elo m eno s, até quem tento u nào conseguiu
a resposta esp erad a d o p ú blico leito r. É verdade que alguns
autores das no v as g eraçõ es alcançaram independência pro­
fissional, m as a m aio ria aind a não pode abrir mão de ou­
tros em preg o s, e a exp ansão d o mercad o nunca se realizou
segundo p ro fetiz aram as visõ es o tim istas do início do Pla-

47
no Real. Quem aco m panha a lista d o s liv ro s m ais vendidos
sabe que a aparição d e ro m ancistas b rasileiro s entre os
best sellers de ficção literária é raríssim a, p o is no rm alm en­
te são dominadas po r trad uçõ es d e g rand es no m es interna­
cionais como Dan Brow n, que d urante o s ú ltim o s ano s tem
congestionado esta lista co m até q u atro títu lo s simultanea-
mente. A primeira o bservação , p o rtanto , é q ue até mesmo
os escritores que se pro puseram a ating ir urna m eta comer­
cial não conseguiram enco ntrar u m fo rm ato cap az de com­
petir com o escrito r internacio nal e co m o m ercad o edito­
rial globalizado. Nem m esm o au to res co m o Patricia Meló,
cujo sucesso inicial co m 0 m at ado r lev o u-a a fig u rar na lis­
ta da Time M agazine co m o urna d as p erso nalid ad es latino­
americanas do século XXI. Suas v end as se exp lic am em
grande parte pela co nso lid ação d a fó rm u la já exp erim en­
tada pelo mestre Rubem Fo nseca, q ue se co nv erteu numa
espécie de câno ne de literatu ra su b u rb ana co m preferên­
cia por temas de suspense e crim e. O su cesso in ic ial do pri­
meiro ro mance histó rico d e A na M irand a, Bo ca do Inferno ,

também surgiu da m esm a ap rend iz ag em , co m b inad a ao


marketing talentoso e co m p etente d a C o m p anhia d as Letras.
É verdade que alguns escrito res exp erim en taram no vas re­
ceitas mercadológicas de vend a, co m o é o caso d e livros de
encomenda atrelados a tem as p o p ulares co m o as coleções
Plenos pecados, da Edito ra O bjetiv a (1998), e Literatura ou
mo rte, da Co mpanhia das Letras (2000), o u pré-lançam en-
tos de capítulos em fo lheto s, co m o no caso d o ro m ance In­

ferno , ou veiculados pela Internet, co m o fo i o caso d e A casa

dos budas ditosos (1999), de Jo ão Ubald o Rib eiro . Também


surgem, o bviamente, escrito res co m v o cação francam ente
comercial e que co nseguem certo sucesso d entro d e gêne­
ro s trad icio nalm ente po pulares, co m o o s ro m ances poli-

48
ciais de Luiz A lfred o Garcia-Ro za, as ficçõ es conspiratórias
de Ivan San tA n n a, o u as satiras histó ricas de Jô Soares,
mas não são esses escrito res que caracterizam o mercado,
e devemos rec o n h ec er que nenhu m d eles teve a aceitação
ampla do p ú b lico , na escala antes co nseguid a po r Jo rge
Amado, salv o , o b v iam ente, Paulo Co elho , cujo caso mere­
ce uma av aliação em sep arad o . A ntes d isso, apenas obser­
vamos que a am eaça co m ercial co ntra a liberd ad e da for­
ma nunca se realiz o u ; em vez d isso , o mercad o brasileiro
de literatu ra se transfig u ro u d urante os último s vinte anos,
pro curando am p liar sua b ase d e vend a em grandes livra­
rias, co leçõ es d e clássico s a p reço s acessíveis, pro liferação
de feiras e ev ento s literário s, assim co m o uma integração
maior co m o s m eio s d e co m u nicação de grand e alcance,
programas d e telev isão , e p o r m eio de um diálogo mais in­
tenso co m o cinem a g raças ao fo rtalecim ento da indústria
cinem ato gráfica nacio nal. A g eração d e 1970 foi canoniza­
da, às v ezes o cu p and o lu g ar nas fileiras dos im o rtais da
A cademia Brasileira d e Letras, que, co m o d izem as más lín­
guas, aceitam “ até esc rito res” , e se co nsagro u com prêmios
e inclusão nas b ib lio g rafias o brig ató rias da rede pública de
ensino. No en tan to , é p reciso sub linhar que não existe no
Brasil nenhu m a Isabel A llend e, nenhum a Laura Esquivei,
nem sequer u m O svald o So riano , escrito res que, no co ntex­
to latino -am ericano , ab riram cam inho entre os best sellers
após a p assag em d o s m o nstro s sagrad o s Gabriel Garcia
Márquez e Vargas Llo sa. A lém d isso , ning uém surgiu ocu­
pando o lug arTfiPpep tílarid ad e d e Jo rg e A mado, que, nesta
perspectiva, faz falta, p o is nenhu m auto r depois d ele se
lançou num a literatu ra co m a am bição de o ferecer uma vi­
são glo bal, nem m esm o id ealizad a e fo lcló rica, da realida­
de brasileira. A p esar da m o d ernização do mercado edito-

49
rial, sua realidade eco nô m ica é crítica. Desd e 1998 até mui­
to recentemente, nenhum seto r d a eco no m ia b rasileira sp.
fteu tanto quanto o mercad o dó liv ro . N aquele ano , as ven­
das totais de livros so m aram 410 m ilhõ es d e exemplares,
e, no ano passado, apenas 271 m ilhõ es. Em p arte, a queda
se explica pela falta de inv estim ento s, p o r p arte do gover­
no Lula, nos livros d idáticos; em 2001, p o r exem p lo , o go­
verno comprou 117 m ilhõ es d e liv ro s, enq u anto que o mer­
cado privado vend eu 183 m ilhõ es. Em 2005, o mercado
privado ainda se manteve co m a v end a d e 183 m ilhõ es de
exemplares, enquanto o go v erno d im inu íra a co m p ra para
88 milhões de livros. O que ap arece nas estatísticas como
uma queda abso luta de vend a po d e, p o r causa d esta redu­
ção das compras públicas, esco nd er um a relativ a melhora
nas vendas no mercado. A ssim, em 2005, fo ram vendidos
29 milhões de livros a mais d o que em 2004, m as o gover­
no comprou 47 milhõ es de exem p lares a m eno s. Em outras
palavras, após um lo ngo perío d o d e q ued a nas vendas, o
mercado do livro no Brasil passa p o r um a tím id a recupera­
ção comercial, graças à qued a no s p reço s e à red ução nos
lucros editoriais, fato res que, em 2005, p o ssibilitaram um
aumento de vendas, nas liv rarias, d e 18 m ilhõ es de exem­
plares. No ano seguinte, o nú m ero to tal d e livro s vendidos
chegou a 310 milhõ es de exem p lares e, em 2007, a 329
milhões, o que gerou um aum ento d e lucro de 6,06%. Esse
acentuado crescim ento recente se d eve à recup eração do
mercado consumidor, que co m p ro u 8,21% m ais exemplares
em 2007 (um to tal de 200 m ilhõ es de exem p lares), e a uma
recuperação tímid a das co m pras efetuad as p elo governo,
que adquiriu mais 2,89% (129 m ilhõ es d e exem plares).
Infelizmente, a ficção não p arece ser a lo co m o tiv a desta
tendência. Os campeões brasileiro s d e vend a se e n c o n tr a m

50
entre os gênero s d id ático (aum ento de mais de 50%|e^reli-
jxjoso (aum ento de 12,8%). O go v erno ainda é o maior com­
prador, resp o nsáv el p o r cerca de 24% das vendas do setor,
mas esse nú m ero está em qued a co ntínua. A boa notícia é
que os auto res nacio nais estão se fo rtalecend o , com um
crescimento d e m ais d e 10%, de 303 milhõ es em 2006 a
334,8 m ilhõ es de exem p lares em 2007.1

1 O s n ú m e ro s s ã o d a C â m a ra B ras il e ira d o Livro e d e um estu d o da

Fu n d ação I n s ti tu to d e Pe s q u is as E co n ô m i ca s (Fipe) d a U niversidade de

São Pau lo , p u b l i ca d a n a Folha de S. Paulo, e m 1 / 1 0 / 2 0 0 8 . D isponível em :

h ttp 7 / w w w l .f o l h a.u o l .co m .b r/ f o l h a/ il u s trad a/ u l t9 0 u 4 5 1 0 6 3 .s h tm l .

51
Ca p ítu lo 2
0 realism o d e novo

Falar de u m “n o vo r e a lis m o ”, h o je, é com p licad o e exige


alguns e scla r e cim e n t o s . Gr a n d e p a r t e dos m ovim en tos de
van guard a se d is t a n cio u in icia lm e n t e do realism o históri­
co de t a l m o d o q u e su a m e m o r ia fu n cion ou sem pre com o
um a esp écie d e “o u t r o ” r e ca lca d o , u m in con scien te abafa­
do con tr a o q u a l t o d a e xp e r im e n t a çã o se m edia. Ao longo
do sécu lo XX, o r e a lis m o fe z o seu r e t o m o sob diferen tes
form as — s u r r e a lis m o , r e a lis m o fa n t á st ico, r eãü sm õr egio-
n a ÇreaTlsm o m á gico , new -realism e h ip er -r ealism o, para ci­
tar apen as a lgu n s — , d e fin id a s, p r in cip a lm en t e, pela dife-
rença q u e est a b e le cia m co m o r e a lism o h istór ico do século
XIX. O d e sp r e zo in s is t e n t e p e lo r e a lism o, em sua versão
clássica n o p a r n a so d a s a r t es e d a lit er a t u r a , aju dou a fazer
dele u m e st igm a q u e se p o p u la r izo u n o Brasil sob o ape­
lido de “n a t u r a lis m o ” e q u e , u lt im a m en t e, tem sido apli­
cado n ova m en t e co n t r a a lgu n s d os escr itor es surgidos no
fim do sécu lo p a ssa d o, t a is co m o Mar çal Aqu in o, Marceli­
no Freire e F er n a n d o Bon a ssi. Mas o q u e ju stifica verjrea-
lism o n a n ova ge r a çã o d e e scr it or es? É clar o que n in guém
está com p ar an d o-os e s t ilis t ica m e n t e aos realistas do passa­
do, pois n ã o h á n e n h u m a vo lt a às t écn ica s da verossim i­
lhança d escr it iva e d a o b je t ivid a d e n a r r a tiva . O que encon ­
gam os, sim , n esses n ovos a u t or es, é a von tad e ou o projeto
exPÜcito de r e t r a t a r a r e a lid a d e a tu a l da sociedade brasi­
ler a . fr e q u en t em en t e p elo s p on t os de vista m argin ais ou
Periféricos. Não se t r a t a , p or t a n t o, de u m realism o tradi
^ °n al e in gên u o e m b u s ca d a ilu sã o de realid ade. Nem se
ata’ tarnP ou co, d e u m r e a lism o p r op r iam en te represen
tJtiv o : a d iferença que m ais salta ao s o lho s é que os novos
"no vo s realistas" q u erem p ro v o car e feito s d e realid ad e por
o utro s nid io s,.Ora, d iscutind o um re alism o q u e nâo se pre.
tend e num érico nem p ro p riam ente rep resen tativ o, o pro.
blem a am eaça to m ar-se um p arad o xo , u m a vez^que o com­
pro misso rep resentativ o d a literatu ra h isto ricam en te surge
co m a ap arição do fenô m eno realista. D e q u e realism o fa­
lam o s então , se não o rep resen tativ o ? D iríam o s, inicial­
m ente, que o no vo realism o se exp ressa p ela vontad e de
relacio nar a literatura e a arte co m a realid ad e so cial e cul-
tural da qual em erg e, in c o rp o ran d o e ssa re alid ade este-
ticam ente d entto da o bra e situ and o a p ró p ria produção
artística co m o fojrça transfo rm ad o ra. Estam o s faland o de
um tipo de realism o que co nju g a as am b iç õ es d e sePrefe-
rencial”, sem necessariam ente ser rep re sen tativ o , e ser, si­
m ultaneam ente, “eng ajad o ", sem n e c essariam e n te subs­
crever nenhum pro gram a p o lítico o u p reten d er transmitir
de fo rma co ercitiva co nteúd o s id eo ló g ico s p rév io s. Ou seja,
não basta d em arcar um a d iferença fu n d am en tal dessa nova
escrita realista em relação ao realism o h istó ric o do sécu­
lo X IX, mas tam bém , e p rin c ip alm en te, em relação às re­
fo rmulaçõ es p o líticas do realism o realiz ad as tanto no ro­
m ance reg io nal da d écad a d e 1930 q u an to na literatura
urbana da década de 1970, que se co lo cav a claram ente con­
tra o regim e po lítico da d itad ura m ilitar. N um a entrevista
publicad a na Fo lha Ilu s t r ad a (14-03-2005), o esc rito r mineiro
Luiz Ruffato fala de seu trab alho , n a o casião d o lançamento
dos dois primeiro s vo lum es d a saga O in fe r n o p r o v is ó r io , e co­
m enta a relação que vê entre eles e a literatu ra brasileir3
co ntem po rânea:

Estou ind o d e ce rta f o rm a n a co n tra c o rre n te d a literatu ra


co n te m p o rân e a b rasileira. Ela te n d e o u p a ra o n eo-natu ra-

54
lism o o u p a ra u m a l i te ra tu ra q u e ch am o de “ eg ó tica”, m ui­
to ce n trad a n o eu . T e n to cam in h ar e m o u tra seara, a da li­
te ratu ra re al i s ta, q u e n o m e u e n te n d e r n ão é o tim ista nem

p essim ista. El a e s tab e l e ce u m a re f l e xão so b re o real a par­

tir d o real.

A citação rev ela u m co m p ro m isso co m o real em que o


autor, num m esm o g o lp e, se ap resenta como herdeiro do
realismo e se d istancia d o tip o esp ecífico de realismo en­
tendido co m o n eo n atu ralism o , e de um a literatura inti-
mista centrad a n a su b jetiv id ad e co ntem po rânea que ele
denomina “ eg ó tica”. Sem d úvid a, enco ntramo s aqui uma
vontade exp ressa d e “ realism o ” ju n to a uma consciência
lúcida quanto ao s d esafio s exp ressiv o s que essa vontade en­
frenta p o eticam ente h o je. A ssim , Ruffato acrescenta, um
pouco m ais ad iante:

M inha q u e s tão é m ai s d a te o ri a d a literatu ra. A f orm a clás­

sica do ro m a n ce f o i ad e q u ad a p ara res o l v er prob lem as do

início d a R e v o lu ção In d u s trial . D epo is, ela fo i tendo que se

ad ap tar ao s n o v o s te m p o s , até ch e g ar a Jo yce. O instrum en­

to ro m an ce , co m co m e ço - m e io - f im , n ão faz sentfdo diante

da q u an tid ad e d e i n f o rm açõ e s d e h o je, fico u obsoleto. Mi­

nha o p ção p e lo f ra g m e n tá ri o f o i tu n a p ro v ocação m esm o.

Q uando eu p u b liq u e i o Eles eram muitos cavalos, m uitos críti­


cos to rce ram o n a ri z e d is s e ram “ m as isto n ão é u m rom an­

ce”. T am b ém a ch o q u e n ão é. M as o q ue é? N ão é u m livro
de co n to s. Q u e ro co l o c a r e m xe q u e essas estruturas. Não
q uero f az e r u m a re f l e x ã o só so b re a realid ad e política, mas

tam b ém q u e s tio n ar p o r m e i o d o co n teú d o a form a.

A lo nga c itação é ju stific ad a p ela clareza na proposta


criativa do auto r. Vário s escrito res co mo Luiz Ruffato têm
se empenhado em recriar o realism o , ao conciliar duas ver-
tentes da histó ria litg rária brasileira: a vertente modernista
e experimental e a v ertente realista e engajada. É um lugar-

55
comum na história da literatura b rasileira reco nhecer o
predomínio da tradição realista em d iferença às literatura*,
nacionais latino-americanas, co m sua riqueza e diversidade
de formaTdêlítérãtura fantástica e as várias exp ressõ es do
realismo maravilhoso. Ainda éñ b rm al reco nhecer na lite­
ratura brasileira uma tensão entre a v o ntade experimental
e o engajamento social que só vai enco ntrar lugar de conci­
liação na obra de Guimarães Rosa. Para o s escrito res da
atuaTi(Tã(Tê,~al]uestão se reco lo ca nesses term o s e agora
diante de um pano de fundo m id iático carac terizad o por
uma grande demanda de realidade. O que m ais interessa à
mídia de hoje é a “vida real”. N otícias em tem p o real, re­
portagens diretas, câmera oculta a serviço do fu ro jo rnalís­
tico ou do mero entretenimento , televisão interativ a, reality

shows, entrevistas, programas de aud itó rio e to d as as for­


mas imagináveis de situação em que o co rp o -p resente fun­
cione como eixo. Na literatura, a situação não é m u ito dife­
rente nem melhor; como dito anterio rm ente, o que mais
se vende são biografias e repo rtagens histó ricas, co nfissões,
diários, cartas, relatos de viagens, m em ó rias, rev elaçõ es de
paparazzi, autobiografias e, claro , auto ajud a. Não p arece ha­
ver realidade espetacular ou terrível suficiente p ara tanta e
tamanha demanda, e, ao mesmo tem po , tapa-se o so l com
a peneira, ignorando-se a realidade mais p ró xim a em sua
real complexidade. Dessa perspectiva, o escrito r brasileiro
se depara logo de saída com o pro blema de co m o falar so­
bre a realidade brasileira quando to do s o fazem e, princi­
palmente, como fazê-lo de modo d iferente, de m o d o que a
linguagem literária faça uma d iferença. É po ssível mo strar
que a busca por um efeito literário o u estético , co m força
ética de transformação, de fato existe e se ap resenta clara
mente na preocupação em co locar a realid ade na o rd em do
dia. Essa p ro cura p o r u m n o v o tip o d e realism o na litera­
tura é mo vid a, h o je , p e lo d e se jo d e re aliz ar o asp ecto per-
formático e tran sf o rm ad o r d a lin g u ag e m e d a exp ressão
artísticaTpriv ilegiand o o e f e ito afe tiv o e sen sív el em d etri­
mento da q u estão re p re se n tativ a. En q u an to aq u ele realis-
mõ éngajad o estav a so lid am e n te arraig ad o n o co m p ro m is­
so representativ o d a situ aç ão so c io p o lític a d o p aís, as no vas
formas passam n e c e ssa ria m e n te p o r u m q u estio n am en to
das p o ssibilid ad es re p re se n ta tiv a s n u m c o n te x to cu ltu ral
pred o m inantem ente m id iátic o . Trata-se, é n tao , d e um d es­
locamento claro e m re la ç ã o à trad iç ão re alista, m esm o que
esta perm aneça p re se n te , e m q u e a p ro c u ra d o r no v as for-
mas de e xp eriên c ia e s té tic a se u n e à p reo c u p aç ão co m o
compromisso d e te s te m u n h a r e d e n u n c iar o s asp ecto s inu­
manos da realid ad e b rãsilé ífa^ c o n te m p o rân e a. É claro que
tal tend ência p ro c u ra d e m a rc a r seu esp aç o d én tro d e um a
“sede” geral d e “ re alid ad e ” , q u e , c o m facilid ad e, se v erifi­
ca igualmente n o s g ran d e s m e io s d e c o m u n ic aç ão . N uma
situação c u ltu ral e m q u e o s m e io s d e c o m u n ic aç ão no s
superexpõem à “ re alid ad e ” , se ja d o s ac o n tec im e n to s p o líti­
cos globais, s ^ d i l ñ t i m i d a d e fran q u ead a d e c elebrid ad es
e de anô nim o s, n u m a c ín ic a e n tre g a d a “ v id a co m o ela é ”,
as artes e a lite ratu ra d ep aram -se c o m o d esafio d e enco n­
trar outra exp ressão d e re a lid ad e n ão a p ro p riad a e esvazia-
da pela ind ústria d o re a lism o m id iátic o . Esse d esafio deve,
por um lado , se d e sv e n c ilh ar d a p ro life raç ão m im ética visí-
vel nas co b ertu ras p re se n c iais'd a m íd ia, e, p o r o utro , deve
se d iferenciar d o u so d as té c n ic as d e c h o q u e e d o escând a-
,0. já muito in stru m e n taliz ad as p ela ind ú stria m id iática e
Pelas vanguard as m o d e rn istas. Se b o a p arte da vanguarda,
do surrealismo ao te atro d e Bre c h t, p ro curav a criar efeito s
Cético s de tran sg ressão e d e n eg aç ão , co m a finalid ad e de
ameaçar a recepção alienad a da realid ad e, ho je, essa ne­
gação tornou-se estéril, send o ap enas m ais um modo de
atrair atenção e de aum entar a eficiência da mesma alie-
nação à qual estaria se opondo.
^ No mercado edito rial, a d em and a de realid ad e se refle-
te claramente na onda de bio grafias histó ricas e reporta­
gens jo rnalísticas, co mo o livro de Caco Barcello s, Abusado

(2003), sobre o traficante M arcinho VP. N este caso, arèãli-


dade do livro chegou a co ntrib uir p àra a m o rte do perso­
nagem principal pelas mão s dos pró p rio s co mpanheiro s de
crime, insatisfeitos co m a sup erexp o sição p ro duzida pelo
livro. Marcinho VP foi enco ntrad o estrangulad o em julho
de 2003 numa lata de lixo , em Bangu 3. Os suspeito s foram
os traficantes Pinto Lima e Silva, o Ro nald inho da Ladeira
dos Tabajaras, e Márcio dos Santo s N ep o m uceno , também
conhecido como M arcinho VP, m as d o M o rro do Alemão.
Os traficantes estavam sup o stam ente insatisfeito s com o
conteúdo do livro.
Além da popularidade dos liv ro s de auto ajud a e dos gê-
neros jo rnalístico s, histó rico s e não ficcio nais em geral, as­
sistimos ao ressurgimento de um a no v a literatu ra testemu-
nhal, escrita po r pessoas no rm alm ente excluíd as do meio
literário — criminosos, p ro stitutas, m enino s de rua, presos
e ex-presos, ou po r pesso as que d esenv o lv eram trabalhos
nos grandes presídios e instituiçõ es d o país. Revela-se um
fascínio em to rno de vo zes e d ep o im ento s de uma realida-
de excluída, que agora ganha esp aço na cham ada literatu-
ra m arg inal Na pro sa da virad a d e século , co nso lid am ^
escrito res co m o Luiz Ruffato , N elso n d e O liv eira, Bruno
Z eni, Marçal Aquino, M arcelino Freire, Jo ca Reiners Terron.
A milcar Bettega Barbo sa, Ro nald o Bressane e Cláudio Gal*
perin, que co njug am o s tem as da realidade social brasilei­
ra ao co m pro m isso co m a ino v ação das formas de expres­
são e das técnicas d e escrita. A brem, d esta maneira, cami­
nho para um o utro tip o d e realism o , cuja realidade não se
apoia na v ero ssim ilhança da d escrição representativa, mas
no efeito estético d a leitura, que visa a envolver o leitor
afetivamente na realid ad e da narrativa. Até aí, a chamada
“Geração 90” co ntinu a o s m o d elo s traçados pela geração
de 70. Se ho uv er um esfo rço de independ ência, iremos en­
contrá-lo num certo recuo d iante do uso das técnicas de
provocação e de cho q ue e na reco nciliação com a liberda­
de experim ental d a co nstrução literária, que permitem que
a prosa co ntem p o rânea se d iferencie de uma evocação sim­
ples da brutalid ad e d a trag éd ia humana, tão frequente nos
gêneros sem ijo m alísticQ.S-esr>prializad os na revelação cho­
cante dos d ram as d o co tid iano nas grandes cidades. En­
tretanto, p ercebem o s a co ntinuid ad e de uma prosa direta
e pungente, sem ro d eio s nem flo reio s, abordando temas
convulsivos e p ro curand o extrair deles sua máxima força,
como é o caso de Fernand o Bonassi, Marçal Aquino e Mar-
celino Freire. Se a p ro sa da d écad a de 1970, a chamada lite­
ratura verdade, se inspirav a no jo rnalism o e nas técnicas de
reportagem d os m eio s escrito s, o mesmo traço se mantêm
entre os auto res surgid o s no fim da década de 1980 ou no
início^da década d e 1990, muito s deles formados em cur­
sos de jo rnalism o "õ iT3e co m unicação e que se mantiveram
conectados às fo rm as jo rnalísticas e, ao mesmo tempo, às
linguagens aud io visuais, p o r exemplo , incorporando técni­
cas de ro teiro d iretam ente na prosa, ou, em certos casos,
escrevendo sim ultaneam ente a ficção e sua adaptação para
0 cinema. Escrito res co m o Marçal Aquino e Fernando Bo­
nassi publicam suas ficçõ es em livro, mas trabalham tam­
b ém em p ro jeto s cinem ato g ráfico s, telev isiv o s e em o utros
fo rm ato s. No caso esp ecífico d e M arçal A q u ino , o escritor
tem um a pro d ução d iv ersificad a, ten d o realiz ad o adapta­
çõ es de co nto s e ro m ances, p ró p rio s e d e o u tro s, para o ci­
nem a, e tam bém , em sentid o inv erso , esc rev en d o o roteiro
do film e 0 invasor para a d ireção d e Beto Bran t. Somente
d epo is de term inad as as film ag ens, A q u ino co n c lu iu o ro­
m ance, que fo i ed itad o p ela ed ito ra G eração , e m 2002, jun­
tam ente co m o ro teiro . M arçal A q u ino , e sc rito r profícuo,
fo rm o u equipe co m o d ireto r Beto Bran t e m v ário s filmes,
ad apto u o livro Ate o dia em q ue o cão m o rre u , d e D aniel Ga­
lera, para o cinem a, so b o títu lo C ão s em d o no , e 0 cheiro do

ralo , de Lo urenço M utarelli, p o ste rio rm e n te d irig id o por


Heitor Dhalia, além de ter ad ap tad o o seu p ró p rio conto,
“ Matad ores”, da co letânea M iss D anúb io , p ara a tela, tam­
bém co m d ireção de Beto Brant. A ssim , a p ro xim id ad e en­
tre as duas linguagens certam en te é u m traç o im po rtante
no percurso de A quino e fav o rece u m a p ro sa su cinta, sem
extravagâncias d escritivas e co m o b jetiv id ad e n a co nstru­
ção narrativa. Em seu ro m ance m ais re c e n te , Eu receberia as

pio res notícias dos seus lindo s lábio s, A q u ino d á m o stras de seu
talento narrativ o co nstruind o a h istó ria d e u m a p aixão fa­
tal e proibida entre o fo tó g rafo Cauby e Lav ínia, um a mis­
terio sa e sed uto ra m ulher. O enred o se p assa nu m a cidade
do garimpo no Pará, e a escrita arm a u m a estru tu ra enig­
mática que habilm ente pro d uz um su sp ense n a m elho r tra­
d ição p o licial a serviço d e u m a intrig a d e am o r impossível,
que acaba reveland o os po d res e a vio lência^d e um a comu­
nidad e na fro nteira da civ ilização n o in te rio r d o Brasil.
Fernand o Bo nassi, d e m o d o sem elh an te, atu a no s mais
diversos fo rm ato s, co m o literatu ra ju v en il, p o esia, ro teiros
de cinem a, pro gramas d e telev isão (Castelo R á- t im - bum ), jo f'

60
I
i nalismo, teatro e p ro sa. Sua estreia ficcio nal se deu com
! uma anto lo gia rad ical d e co nto s, d e 1989, intitulad a 0 amo r

í em cham as, cu jo su b títu lo “ Pânico -ho rro r & m o rte” não es-
• camoteia o p ro jeto d o auto r. Co m relato s voltados para o
subúrbio da g rand e São Paulo , co m o M o o ca e São Caetano,
" bairro de o rig em d o au to r, o liv ro d esafia os limites da re-
1 presentação d a v io lência e d o sexo . Em relato s muito dife­
rentes entre si, alg u ns b em cu rto s, o utro s relativamente
longos, e im p rim ind o ritm o s v ariad o s, alguns tecidos ape-
l nas por d iálo go s, o u tro s feito s d e d escriçõ es cirúrgicas, Bo-
! nassi co nsegue m etab o liz ar o estilo co rtante das notícias
í de jornal, transcriçõ es d e cenas d e film e e televisão, anún-
è —---------------------------— -------------------------------------- ,
j cios de sexo , frag m ento s e ru b ricas de ro teiro , entreo utro s
■j pro ced imento s, e x p erim en tan d o claram ente com a in-
’ trodução, na ficção , d esses resto s textuais da vida real, à
| procura do m áxim o e fe ito . É a realid ad e mais brutal que
- transparece, um Brasil m und o -cão m irad o através da iden-
| tificação co m o s d esejo s e o s so nho s do cotid iano da peri­
feria, que rev elam a tenacid ad e, o despudor, mas também
a tragédia e o d esam p aro d a vid a co m o ela é. Bonassi nun­
ca abandona to talm en te esse cenário degradado. No ro-
; mance do m esm cTano , U m c éu d e e s t relas, o relato constrói
o penoso e sufo cante ^processo de escalad a de ciúmes entre
um casal, pro vo cad o p ela v o ntad e d e mudança e liberdade
‘ da mulher, que acab a exp lo d ind o em vio lência e morte.
5 Aqui, a vio lência já ap arece na tensão dos diálogos entre
: os amantes, e não p o r m eio d e d escriçõ es detalhadas, opta-
se, antes, po r m o strar em lug ar de relatar, e o romance,
que mais tarde fo i ad ap tad o para o teatro , sob a direção de
Ugia Cortez, e para o cinem a, p o r Tata A maral, contribuiu
consideravelmente na d iv ulg ação do trabalho de Bonassi
para um público m ais am p lo . Nos ano s seguintes, ele diver­

61
sifica suas atividades d ed icand o -se b astan te ao teatro . En.
tre suas várias peças, figura A po calipse 1,11, do Teatro da Ver­

tigem, de 2000. Bonassi co ntinu a atu and o n o cinem a com


ro teiros de sucessos co m o C az uz a - o t em po não p a ra e Ca-
randiru, e na d ireção do p rem iad o cu rta-m etrag em 0 tra­

balho dos homens, isso sem falar d os d iferentes p ro jeto s rea­


lizados para televisão e na co ntínu a e p ro fícu a produção
literária. Prova co ntrária, publicad a em 2003, é u m a peça es-
— crita para o teatro em fo rm ato d e ro m an c e, mostrando
mais uma vez sua p red ileção p elo s híb rid o s e p ela reversi­
bilidade entre os d iferentes reg istro s e sc rito s, em projetos
que não se atêm p acificam ente ao fo rm ato d o romance
convencional. No texto , que co nta a h istó ria d e um a mu­
lher que d eclara m o rto seu nam o rad o d esap arecid o duran­
te a ditadura militar, para receb er a ind eniz ação oficial e
comprar uma casa, a am big uid ad e e n tre m em ó ria e reali­
dade é figurada no fantasm a d o h o m em — pro váv el víti­
ma da repressão — e no d iálo go entre o s d o is. Mas há uma
outra voz narrativa, a vo z d o co ro d ram ático o u a rubrica
estendida da circunstância, que enlaça o d ram a à narrativa
de modo vivo. Tanto o exem p lo d e Bo nassi q u anto o de
A quino mo stram uma p ro fissio naliz ação d iferen te desta
geração de escrito res para os quais a ed ito ra d eixo u de ser
a única e principal emp regad o ra, e a literatu ra ap enas uma
entre um leque de ativid ad es do escrito r, q u e ago ra atua
em todos os campo s po ssív eis, da im p rensa ao s meio s vi­
suais de co m unicação , p assand o p elo c in em a, p ela tele­
visão, pelo teatro e pela p ro d ução d e texto s p ara os sites

virtuais. À luz disso, a m id iatização d a literatu ra também


ganha o utra d im ensão , tratand o -se ag o ra não apenas de
um recurso para revitalizar as fo rm as literárias, m as de di­
fe re n t e s mo m ento s de pro d ução textu al nu m a no va cadeia
i

i de produção em q u e o liv ro d eixo u d e ser o pro d uto final e


' apenas rep resenta urna etap a p ro v iso ria de um desdobra-
■ mentó de sig nificantes em no v o s fo rm ato s mais vo láteis e
’ porosos da m ú tua p en etraç ão d o s d iferentes níveis.
Contudo é no c o n to b rev e q u e Bo nassi lo gra seu estilo
i mais eficiente, c alib ran d o a lin g u ag em en tre a referen-
¡ aalilad e da c ró n ic a e a ten sa estru tu ra narrativ a do mi*
I niconto. D urante urna estad a em Berlim , co m uma bolsa
I d o DAAD (Intercâm bio A cad êm ico Brasil-A lemanha), o autor
i deu início a u m p ro je to d e m in ic o n to s, que resulto u no li-
\ vro 100 coisas (2000) e, p o sterio rm en te, Passapo rte, de 2001,
nos quais o ap erfeiç o am en to d esse fo rm ato fica óbvio pelo
? golpe certeiro d e seu arg u m en to . Há urna tal eco no m ia e

; equilibrio, nesses p eq u en o s co nto s, que instigam o leito r
^ não apenas p ela carp in taria d a escrita, m as pela eficiencia
i de seu efeito . A lg uns d eles, m esm o send o evid entemente
‘ ficcionais e co nstru íd o s n a ling u ag em , atingem a realida-
• de na mo sca, in terp elan d o a co nd ição co ntem p o rânea bra-
• sileira co m a eleg ância d e um chiste.
i Em suas c ró n ic as b rev es, o au to r estabelece diálogo
I constante co m a im ag em e co m reg istro s não literarios —
| jornalismo, histo ria, cartas, enciclo p éd ias, manuais técni-
I cos e outros — , d e m o d o q u e d isso lv e as fro nteiras claras
I entre ficção e não fic ç ão e intro d u z , no universo literário,
i materiais co ncreto s e exp eriên c ias vividas no cruzamento
I entre a recep ção interp retativ a e o im p acto da experiencia
direta. É o que fica ev id ente no seg u inte exemplo :

i O d esem p reg ad o

A ndo sem s o rte , tro m b a n d o d e f re n te co m p lacas vazias

de n ecessid ad e. D ó d e s s e s ap ato p ara as m elh o res cerim ô ­


nias, ralad o n as cal çad as m ais d is tan te s . O nde velas d erre­
tem sob re p ed id o s m ín im o s , o d rag ão esp etad o ri da m inha

63
cara. Bombeiros gritando não me deixam dormir. Talvez eu
não preste. E esses talheres sambando na marmita? Ven­
dendo o café da manhã pelo almoço que não tenho onde
comer. Um passe puído de esperanças. Uma família arrima­
da em tudo, todos & ninguém. Abrindo classificados em de­
sespero, como quem estupra a pró pria mulher. (Bonassi in
Oliveira, 2001, p. 44)

Ou, co m o no frag m ento “N atu rez a m o rta co m São Pau­


lo ”, do livro de viagem P ass apo rte:

Ecos de sirenes. Vozes de prisão. Gatos co m ratos mortos


na boca. Ratos mortos com formigas na bo ca. Crianças cho­
rando abertamente. Homens-feitos cho rand o escondidos.
Talheres raspando pratos. Televisão no fim. Camas suspen­
sas por latas de óleo. Rostos em terro r espiando nos vitrôs.
Dez milhões de preces inomináveis po r d entro dos traves­
seiros. Cristos de louça. Toalhas plásticas. Cravos e espi­
nhas. Penicos e bacias. Escapamentos furados, truques, ti­
ros. Pilhas gastas. Nem pomada. Nem fo da. Nem droga.
Nem preguiça. Nem um saco de lixo para chutar, (p. 51)

Na extrem a red ução d as frases, a realid ad e é fixad a pela


no m inação instantânea d o s o b jeto s, d as co isas, d o s restos,
do lixo da grand e cid ad e d a p ersp ectiv a d o m ais baixo e
info rme, rente à rua e à m iséria. É n esse tip o d e miniatu-
rização que se cristaliza a “ c en a” , o “ ta b le a u ” o u o “cenário
narrativ o ”, e não só no co nto b rev e, m as tam b ém nas for-
m as ro manescas co m p lexas, o au to r m an e ja um material
que fertiliza exp eriências fo rm ais d a fic ç ão contempo râ­
nea, reafirm and o o asp ecto p red o m inante d as narrativas
co m plexas atuais, isto é, frag m entad as e d escentrad as, e
interagind o co m d iferentes e x p e riê n c iaF fo rm ad as sob a
influência do h ip ertexto . Os e sc rito re s co ntem po râneo s
no s m o stram que o frag m ento , a m in iatu ra o u, aind a,0
m inico nto po d em servir co m o u m a rad icaliz ação da crô-
njca — co m o no s estilh aço s co tid iano s de “São Paulo”, de
Fernando Bo nassi o u n o s “ relâm p ag o s” de Jo ão Gilberto
Noll, publicad o s no jo rn a l Fo lha de S. Paulo — pelo caráter
de flagrante o u d e instantaneid ad e, co m o se fo sse um mo­
mento co ng elad o , cap az d e inco rp o rar, em um piscar de
olhos, o sentid o d e to d o o m o v im ento narrativ o do qual foi
extirpado.
0 p rincip al e x e m p lo v em d a o b ra m ag istral Mínimos,
múltiplos, co m uns, d e N o ll, lançad a em 2004, num volume
que reco m p ila 338 relato s, resu ltad o d e um trabalho inces­
sante realizad o d u rante 3 ano s e 4 m eses em que Noll, duas
vezes po r sem ana, entreg av a d uas narrativ as para publica­
ção, no jo rn al Fo lha de S. P aulo , d e no m áxim o 130 palavras.
Em sua o rig em , a o b ra p u blicad a é p ro d uto dessa imposi­
ção de fo rm ato e d e reg u larid ad e, sua natureza estava cla­
ramente co nd icio nad a p o r esse rig o r e, ao mesmo tempo,
reflete o im ed iato d a p u b licação na im prensa esm ta. Mas
como classificar essa n arrativ a? Não se trata, na miniatura
de Noll, ap enas d e u m a síntese d os critério s clássicos do
conto m o d erno cu rto , elab o rad o s prim o ro sam ente por Ed­
gar Allan Poe no seu fam o so p refácio ao livro de Nathaniel
Hawthorae, The Tw ice- to ld Tale (1842), em que a brevidade
alcançada no ten sio n am en to d o p resente co ntinha o des­
dobramento p o ssív el d e um passad o e de um futuro, e no
qual a centralid ad e d a ação d o perso nag em principal po­
dia ser d esd o brad a em m ú ltip las co nsequências para um
elenco am p lo d e p erso nag ens, co m histó rias ao mesmo
tempo paralelas e entrecru z ad as. A insistência súbita do
presente no s relato s, em N o ll, sua instância retira sua for-
Ça da im anência. Em seus texto s, o mo m ento privilegia­
do rompe a serialid ad e linear d e aco ntecim ento s de modo
que não no s p erm ite d isting u ir o que aconteceu antes do

65
que aco nteceu d epo is, to d a a histo ria é trag ad a p ela urgen,
cia de viver uma situação que p o d em o s c arac teriz ar como
“evento ”. No evento , aquilo q ue ac o n tec e está acontecend o
para o sujeito co m um a tal fo rça q u e rem o v e a oposição
entre o interno e o externo , en tre su b jetiv id ad e e mundo,
revelando , d esse mo d o , um p lano d e im an ê n c ia na recep-
ção que d esm o nta a p rem issa rep resentativ a. D ito d e outra
maneira, a instantaneid ad e d o s relato s d e N o li não está na
co ncretud e ou na fixação d e um m o m en to esp ecífico , por
mais d etalhad o e referencial que seja, m as n a estrutura in­
tensa entre subjetivid ad es e ac o n tec im e n to s q u e irrompe
da sequência narrativ a. Trata-se d e u m a situ ação narrativa
fund amental que, ev entu alm ente, p o d e ser in sc rita como
um elo para urna histo ria m ais e x ten sa, m as q u e aqui apa­
rece na limpid ez da sua sing u larid ad e. Po r isso , a revela­
ção do instante pelo texto , em v ez d e se d ar c o m o uma re­
velação tecida po r d etalham ento s e esp ecificid ad es, remete
mais a um “esp aço -tem p o q u alq u er”, e m q u e a referência
eventual a uma situação g eo g ráfica e h istó ric a, p o r exem­
plo, “Golpe de 64” o u “Po rto A leg re” , fu n c io n a co m o con­
trap o nto para a univ ersalid ad e im an e n te d o aco ntecid o .

Em erg en cias

Tudo era u rg en te . A o o l h ar a p ró p ri a m ã o , s e u s o l h o s j á ti­

n h am se an te cip ad o : m i ra v a m o s ca b e l o s a f o g u e a d o s de

u m a m u lh er. “T udo e ra u rg e n te ”, e l e n ã o s e ca n s a v a d e re­

p e tir assim m e s m o , n o p ass ad o . R e p e ti r, s i m , p a ra q u e pu­

d esse f ixar alg u m a co is a, a n te s d e v e r a n o v a i m a g e m d ar

l u g ar a o u tra. Q u an d o p e rce b e u q u e o a m i g o e s tav a p ad e­

cen d o de u m m al sú b ito , al iás, co m o d e a l g u m a f o rm a tud o

ali, ele n ão tev e te m p o d e s o co rrê - l o o u b ati z á- l o n o ritu al

s em b an d e ira q u e p in tas s e d e d e n tro d e si. Po is q u an d o

o lh o u d e n o v o a ca ra d o p a rce i ro , o q u e v iu f o i a láp id e

co m o seu so rriso b ran d o d e o u tro m u n d o . T u d o al i e ra ur-


gente, sim, tud o , ele lad ainhav a b atend o no p eito , co m o se
uma misericó rd ia p ud esse so ar ao v ento que já se coagula­
ra na mais em p ed ernid a seca. (p. 461)

Nesse asp e c to te m p o ra l, N o ll c e rta m e n te se d iferen c ia


dos m in irrelato s d e Fe rn a n d o Bo n assi, p o is, aq u i, a atu ali­
dade da situ aç ão se e x p re s s a n a c o n c re tu d e d o reg istro d o
presente, q u e se a s s e m e lh a à in sta n ta n e id a d e d e u m a fo to ­
grafia, à rev elaç ão v isív e l d e u m in c o n s c ie n te ó p tic o co m a
impregnação d o m o m e n to , tu d o a q u ilo q u e p o d e em erg ir
dali cheio d e f o rç a n a rra tiv a .
Passem o s, e n tã o , ao s liv ro s d e M arc e lin o Freire, esc rito r
nascido no in te rio r d e P e rn a m b u c o , e m 1 9 6 7 , q u e se m u ­
dou para a c ap ital p a u lis ta e m 1 9 9 1 . Fre ire su rg e na cena
literária ju n to ao g ru p o in ic ia l d as an to lo g ias d a “ G eração
90” e é au to r d o s liv ro s d e c o n to s A n g u d e s a ngue (2000) e
BaleRalé (2003). Em 2 0 0 4 , o rg a n iz o u o liv ro Os cem m eno res

contos bras ileiro s d o s é c u lo , c o m m in ic o n to s d e até 50 letras,


e pro mo veu o in te re s s e e m to rn o d esse g ê n ero , além de
aperfeiço ar, n a p ró p ria e s c r ita , u m e stilo cad a v ez m ais en­
xuto e e n fátic o , q u e se to rn a p a te n te e m C o nto s negreiro s ,

de 2005, e R as if: m a r q u e a rre b e n t a , d e 2008. En tretan to , é


fácil no tar as d if e re n ç a s e n tr e a e x p e riê n c ia p ro p o sta na
m ininarrativ a d e Fre ire e n a s d e Bo n assi e N o ll, p o is Freire
se d istancia c la ra m e n te d a c r ô n ic a p ara trab alh ar a lin ­
guagem n u m re g istro d a p o e sia , in c lu in d o ain d a d iscurso s
orais e co tid ian o s. A p ro s a d e Fre ire o b v iam e n te n ão se d e­
limita às 50 le tra s, o s c o n to s p o d e m te r u m a o u d uas pá­
ginas co m o p o d e m te r d e z ; a te n d ê n c ia , e n tre tan to , é a
economia n o d isc u rso d ire to se m e x trav ag ân c ias, ap enas o
necessário p ara g u ia r a d ire ç ã o d a h istó ria e co lo c ar as es­
tocadas d o s a rg u m e n to s. N o c o n to “ So c o rrin h o ” , d e A ngu

de sangue, lê-se:

67
Moço, não, sua mão, suando, grito no semáforo, em con­
tramão, suada, pelos carros, sobre os carros, carros, moço,
não, viu sua mãe e a cidade, nervosa, avançando o meio-
dia, dia de calor, calor enorme, ninguém que avista, Socor-
rinho, algumas buzinas, céu de gasolina, ozônio, cheiro de
álcool, moço, não, parecido sonho ruim. (p. 47) !

Num a longa frase que se desenvolve p o r duas páginas e*


meia, o relato do sequestro de u m a m e n in a de rua é conta' f
do sem detalhes nem descrições, ap e n as deixando marcas I
do staccato de um a fala ap ressad a so b re o papel. Freire pro-i
cura as vozes sem voz, os m u rm ú rio s m arginais que nào
se transform am em linguagem , rep rim id o s, m as também
rudes e vingativos q ue se e n tr a n h a m n as ru as, no chão
queim ado do Nordeste e nos in fe rn o s vários do Brasil. Às
vezes, sua vontade de precisão e eficiência, as frases cur­
tíssimas e o esm ero nas palav ras esco lh id as aproximam
sua literatura dos contos-haicai de D alto n Trevisan, mas há
sem pre algo m ais visceral e m e n o s irô n ic o em Freire, um
desejo perverso irresistível e, p rin c ip a lm e n te , um a vonta
de musical de criar contos com o cantos. No livro Contosne­
greiros, ganhador do Prêm io Jab u ti de 2006, Freire joga com
o linguajar afro-brasileiro, sab o reia a sonoridade e o teor
linguístico das palavras yorubas p rese rv a d as n o português,
relatando episódios do co tid ian o n eg ro , q uase sempre im­
prim indo um espírito de revolta:

Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro Sambon- ■


go bungo na lama e isso parece que dá grana porque o povo ■
se junta e aplaude Sambongo na merda pulando de cima ^
da ponte tá me ouvindo bem?
Hein seu safado? Ninguém é escravo de ninguém, (p- 2°*

Em Rasif: mar que arrebenta, h o m e n a g e m a Recife e à tfr-


ra pernam bucana em to m de saboroso deleite, as to fj|

68
- ¿ades poéticas to m a m c o n ta dos en red o s e convertem os
contos em poem as:

Tenho saudade de Sertânia.


Saudades de Catolé, Canindé. Saudades
De Sairé. Saudades do batucajé. Do acarajé.
De Nazaré da Mata.
Saudades do tumbança. Do papangu,
Do maracatu de lança. Saudades do Carnaval.
Do fandango e da ciranda, (p. 121)

Outro a u to r q u e s u rg e c o m o rev elação da década de


1990 é Marcelo M irisola, q u e p ossui u m a posição singular,
com uma prosa q ue se q u alifica p elo d o m ínio de um estilo
próprio, inconfundível, p elo h u m o r, p elo sarcasm o corro­
sivo, pela precisão e p e la e n e rg ia v erb al que parece não ca­
ber nas palavras, fo rç an d o a e scrita e a leitu ra para fora de
seus limites, n u m ritm o insaciável. Em 1998, Mirisola lan­
çou sua prim eira c o le tâ n e a d e co n to s, Fátima fez ospés para
mostrar na choperia, e desd e e n tã o su rp re en d e pela alta pro­
dutividade. Contos, ro m a n c e s e crônicas, onde se reconhe­
ce uma certa verve à la H e n iy M iller, sem sua virilidade vi­
toriosa, claro, pois o n a rr a d o r de M irisola sofre o desejo e
se delicia na sublim ação b a ra ta dos prazeres mais simples.
Talvez esteja m ais p ró x im o m e sm o dos insultos de Céline,
Genet e Bukowski, se n ã o fosse pelo conform ism o declara­
do e a ausência de vocação transgressiva. É então possível
dizer que Mirisola é rad ical em a b rir m ão da radicalidade.
0 gozo está na porção de sa lam in h o e no Big Mac, nas delí­
cias mais baixas, com o coçar a b u n d a, e nas pequenas sa­
canagens dom ésticas, ao estilo de Trevisan. O universo de
Mirisola se cria em to m o de u m espírito adolescente, de
descobertas vulgares e, ao m esm o tem po, tédio e inércia
Profundos, com p erso n a g en s d a classe m édia suburbana
arraig ad a na cultura pop da d écad a d e 1970 e transpirando i
o esp írito d espud o rad o d e um N elso n Ro d rigues do século 1
XXI. M iriso la co nseg ue retratar a banalid ad e sem nunca se I
exclu ir d esta, sem nu nca recusá-la, iro nicam ente, e sem i
nu nca aceitar q ualquer d esco nto no d eb o che. Mirisola é |
um a m áquina de escrever, escrev e co m v o ntad e e certo jú- §
bilo , co m a mesm a facilid ad e co m que é lid o . a

0 hiper-realismo i

A ndré SantW nna vem se ju n tar a esse elenco de escritores" 1


co m uma o bra que co m eça em A m or, d e 1998, e Sex o, do

ano seguinte, transitand o , inicialm ente, fo ra d o circuito co­


mercial e ad quirindo m aio r v isibilid ad e co m a participação
im po rtante nas anto lo gias de co nto s O s c e m m elho r e s contos

bras ileiros do sécu lo (o rganizad a p o r ítalo M o rico ni) e o Gera­

ç ão 9 0 - Os tran sg r es so re s, d e 2003, d e N elso n d e Oliveira. Em


2006, co ncluiu seu ro m ance m ais am b icio so , 0 paraíso í

be m b ac an a, uma enco m end a d a C o m p anhia d as Letras, que


também ed ito u o livro Sex o e am iz ad e , um a co leção de nar- i
rativas antigas e novas de 2007.
Não é exagerad o d iz er q ue a esc rita d e A nd ré não se pa­
rece co m nad a do que v em send o p ro d uzid o p o r sua gera
ção. Sua linguagem , às v ezes, p arece surg ir d iretamente da
apro priação das linguagens d a cu ltu ra d e m assa, incorpo­
rand o ao m ãxim o frases d e efeito , lugares-co m uns delibe­
rad os, clichês d iscursiv o s, co m o o s p ro d uto s artifid ailjllic
a publicidade no s o ferta; em o u tro s m o m ento s, SanfAnn*'
exibe um d o m ínio extrao rd inário d a sin taxe e de toda a
arquitetura narrativa na co nstru ção d as histó rias. É Pura
linguagem sem nenhu m a in ten ç ão d e exp ressio nisnio
jetiv o , sem nenhum a sincerid ad e e, p o r isso , talvez fl1*11

70

SWÇ
honesta. Na d ificuld ad e d e e n c o n trar um d eno m inad o r des­
sa forma de escrev er, tem -se ressaltad o afinid ad es co m Jo sé
Agrippino de Paula, o g u ru d a Tro p icália, co m o livro Pana -
mérica, de 1967, em p articu lar p ela rev erência à cultura pop
e pela maneira o bsessiv a d e u sar a rep etição co m o recurso
estilístico na criação d e um ritm o co ntag iante e sedutor.
No caso de A nd ré San t’A nna, sua escrita assum e a aliena­
ção e o estranham ento d ep o sitad o s na linguagem o ral de
personagens co m p letam ente co d ificad o s p o r seus papéis so­
ciais. Todos, em burrecid o s e p reco nceituo so s, falam co m o
se fossem máquinas, sem p ro fund id ad e e sem interio rid a­
de, valendo-se d e clichês e lug ares-co m uns incessantem en­
te. Sant’Anna exp lo ra as rep etiç õ es aã infinit um , fo rjand o
um ritmo o ral em q ue a narrativ a é achatad a e banalizada
num esvaziamento exp ressiv o e na aleg re afirm ação de sua
condição id eo ló gica alienad a. Há aí um a clara o pção pela
paródia do univ erso e d a ling u ag em m id iático s, capaz de
aglutinar os p reco nceito s p o p ulares d a no ssa realidade pós-
modema co nsum ista, inv entariad a p o r simulacro s. No en­
tanto, a narrativ a d e San t’A nna g anha fo rça po ética pela
qualidade da escrita, seu ritm o exaltad o , sua serialidad e
repetitiva e iro nia co ntag io sa, sua sup erficialid ad e d elibera­
da e elíptica que no s d eixa co m a im p ressão co nstante de
perda de segredo e d e p ro fund id ad e. A ssumind o a condição
alienada, Sant’A nna p arece d ar realid ad e literária ao artifi­
cio, numa esp écie de sup er-realism o d iscursivo no qual a
apresentação literária não to m a a realid ad e co m o o bjeto,
mas assume a realid ad e d o p ró p rio d iscurso numa constru-
Çào sem o bjeto exterio r, nem interio r subjetivo .
Nesse sentid o, é p o ssív el id entificar um parentesco en­
tre a literatura d e SantVYnna e as exp eriências da po p- art

das décadas de 1960 e 1970. Na tentativ a de criar uma

71
genealogia crítica mais co nv incente d o super-realismo de i
Andy W arho l, Hal Fo ster (1994) o b serv a co m o esse tip01
de realismo não se d eixa exp licar ad eq uad am ente por ne-1
nhum dos dois esquemas de co m p reensão predominantes i
na crítica das últimas d écad as: o m o d elo referencial, por un I
lado, e o simulacràl, po r o utro . O p rim eiro m o d elo entende I
as imagens e os signos co m o lig ad o s a referentes, a temas |
iconográficos ou a coisas reais, p ertencentes ao mundo da
experiência, e o segundo entend e to d as as im ag ens como
meras representações de o utras im ag ens, o que converte
todo o sistema de representação , inclu siv e o realismo, em
um sistema auto rrefeíencial. Mas, assim co m o Foster su­
gere para7) caso de W arho l, p ro p o m o s aq ui que a prosa
de Sant’A nna, seu super-realismo p articu lar, deve ser lida
como simultaneamente referencial e sim ulacral, pois cria
imagens literárias que estão co nectad as à realid ad e, mas
também desconectadas e artificiais, afetiv as e firias, críticas b
e complacentes. Para Hal Fo ster, é exatam en te a possibili-1
dade de coexistência dos dois m o d o s d e rep resentação que ^
constitui o que ele d eno m inará “ realism o trau m ático ”. Sem r*
aprofundar 6 argumento de Fo ster, d ev em o s entend er que {J
sua leitura do trauma co m o um “ en c o n tro falho ” com o -í
real ganha amplitude para além d o s lim ites subjetivo s e in- H
dividuais, pois Foster sustenta que a exp eriência pós-indus-
trial promove uma cultura trau m ática que im p õ e o “encon-
tro falho” como cond ição g eral, e não circunscrita a esta sijj
ou aquela subjetividade. D iante d essareãlid ad e, a represen- j j
tação passa a ser entend id a co m o um a c o nstrução (tela. |
anteparo, biombo) que exib e e esco nd e ao m esm o temp0 f
A representação nos guarda e p ro teg e co ntra o real em su3
manifestação mais co ncreta (v io lência, so frim ento e mortal
e, num mesmo golpe, ind ica e ap o nta p ara o real, na &
criação de alg uns d e seu s efeito s co m o efeito s estético s.
Central para a leitu ra d e F o s t e r é i co m p reensão da repe­
tição que, para ele, no s rastro s d o p ensam ento de Lacan,
não será apenas W iederk ehr, um a rep etição do recalcad o em
sintoma ou sig nificante, m as W iederho lung , um a rep etição
compulsiva do enco ntro trau m ático co m o real, algo que
resiste à sim bo lização , e q ue não co nstitu i nenhum signifi­
cante senão o efeito , o to q u e (t uché , t ique) do real. Desta
perspectiva, a rep etição não d ev e ser v ista ap enas co m o re­
produção, no sentid o d e rep resentação d e um referente ou
simulação de um a im ag em p ura, um significante isolado.
Mesmo que a rep resentação co ntinu e funcio nand o nessa
forma de rep etição , o u tra rep etição , a rep etição compulsi­
va da significação, “ enq u ad ra” o real e ap o nta para seu efei­
to traumático.
No ro mance 0 p araís o é b em b acana, um calham aço de
quase 500 páginas, p u blicad o em 2006, Sant’A nna realiza
um em p reend im ento d e fô leg o no relato de um garo to ,
Manuel dos Santo s, d e U batu ba, um talento nato do fute­
bol que, apesar d e não co nseg u ir se ad aptar em lugar ne-
|nhum, de não entend er nu nca o que aco ntece a seu redor,
! vira jogador do clube H ertha Berlin, da A lemanha, onde se
! converte ao islam ism o , to m a-se M uham m ed Mané e, com
a finalidade de realiz ar o so nho d e um paraíso com 72 vir­
gens à disposição, vira ho m em -bo m ba e se explod e sozinho
; no meio do cam p o d e fu tebo l. O relato gira em to m o da
! vida de Mané, um g aro to esq u isito d e Ubatuba que se tor­
na um jo gado r m ais esq u isito aind a em Berlim, numa rea­
lidade que nunca entend e realm ente e co m a qual nunca
consegue se co m unicar, nem se faz er entend er. Simulta­
neamente, aco m p anha-se o d elírio de Mané quando, na
cama de ho spital, co m eça a sair da anestesia completamen-

73
te destruido pelo impacto da b o m ba, im ag inand o qUe 1
nalmente, tinha chegado ao p araíso . Há u m a espécie ^
autismo no narrador que faz co m que ele se cho que ince$. ■
>

santemente contra o mundo inco m p reensív el e bem diver-


so daquele presentificado nas fantasias m astu rbato rias, qUe
representam o único impulso de d esejo p ara M ané. A cons-
r
trução do romance é resultado de um en o rm e esfo rço esti- ¡
lístico, um mosaico de vozes d isp aratad as, g irand o em tor-1
no dos mesmos acontecimentos, narrad o s sem p re na beira |
entre fantasia delirante e algum fio tê n u e d e razão que |
nunca chega a amarrar o relato a um fio té rra o u pretende J
oferecer dele uma síntese plausível. [
No discurso do narrador de A nd ré San t’A nna, o desdo- \
bramento da fala autorreflexiva é rep etid o ironicamente, \
e o distanciamento que, no co ntexto m o d erno , ap o nta para
um reconhecimento da própria natu rez a artific ial do dis-;
curso é amplificado, de maneira que d esm o nta a perspi­
cácia crítica e reivindica urna certa b u rrice talv ez necessá­
ria para abordar esse universo em que a v io lência assume
funções ininteligíveis, segundo o s p arâm etro s d e interpre­
tação/ formulação convencionais.
Assim, o autor produz um duplo d istanciam ento em que
a autorreflexividade é absorvida p ela ficção ; o que parece
indicar simultaneamente que tudo isso é fic tíc io , mas tam­
bém que tudo é real, de modo que se inv erte a hierarqu'3
representativa literária tradicional. No d iscu rso narrativ0
realista, o recuo do narrador em terceira p esso a imprifl1,a
profundidade à intimidade da p rim eira p esso a, e haVia
uma hierarquia de proximidade subjetiv a à v iv ência naira
da. Aqui, o narrador em primeira pesso a não exp ressa 11111
maior grau de proximidade com a intenção subjetiv a,
uma espécie de flagra da rep resentação d e u m a te r^ 'r

74
pessoa que estaria p o r trás d a p rim eira. Desse modo, o des­
d o bramento au to rreflexiv o d eixa de ag ir co mo um efeito
de persp ectiv a q u e d isting ue o mund o de sua representa­
ção, mas pro d uz u m a d o bra d upla que dá densidade ao pró­
prio artificio e en c o n tra u m cam inho inusitad o de realizar
o signo.
Em o utras narrativ as d o auto r, esse exagero reaparece
na ad o ção rad ical d o nív el d e falató rio e discursivo da rea­
lidade m id iátic a c o ntem p o rânea, que é reto mado inco n­
d icio nalm ente, co m o se transcrito ou gravado sem neces­
sidade d e d istância. A ssim , a ling uag em literária não só
reproduz a ling u ag em d o lugar-co m um , mas articula-a me­
canicam ente c o m o u m o b je to e d esafia sua superficiali­
dade atrav és d e u m exag ero e afirm ação vertiginosos. Isso
aco ntece na n arrativ a d o liv ro Sexo , que se desepvolve
como se co nstruíd o p o r um p rim itiv o programa de compu­
tação que estaria ag ru p and o elem ento s substantivos em
lugar de no m es p ró p rio s:

O Jo v em E xe cu tiv o D e G rav ata V inh o C om Listras D iago­


nais A laran jad as e s q u e ce u su a N oiva Loura, Bronzeada pelo

Sol, e, u m a n o i te , n a b o ate j o v e m co n h eceu a N oiva Loura,


Bro n z ead a Pelo S ol, D o Jo v e m Execu tiv o D e G ravata A zul

C om D etal h es V e rm e lh o s , (p. 2 6 0 )

De lugar-co m um a lugar-co m um , a narrativa se desen­


volve em p equenas histó rias paralelas entre personagens
como o Executiv o d e Óculo s Ray-Ban, a Gorda Com Cheiro
De Perfume A von, o Chefe Da Expedição Da Firma, a Mu­
lher Loura, Bro nzead a Pelo So l, Magra De Seios Firmes Com
Róseos Mamilo s E Bund a Empinad a, o Jovem Executivo Que
Havia Feito Pós-Grad uação Em Econo mia Na Universidade
De Munique, o A d o lescente Meio-Hippie, o Negro Que Fe­
dia, a Esposa d o N egro Que Não Fedia e assim por diante.
Os personagens são reduzidos a uma esp écie de minibicgra-
fia publicitária ou a uma irônica catego ria sociológica qUe
os mostra através da abstração do p reco nceito , mas que
também age como se realizasse as fantasias mais sórdidas
de um mundo de mercadoria. Os p erso nag ens circulam
como mercadoria e interagem sintaticam ente em histórias
de extrema banalidade, nas quais pred o m inam a superex­
posição pornográfica e a repetição exaustiva das descrições
rotulares e também de ações altam ente previsíveis:

A V endedora De Roupas Jovens D a Bu tiq ue D e Roup as Jo­


vens lambeu o pau de A lex.
A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, l am b eu os pei­
tos da V endedora De Roupas Jovens D a Bu tiq u e D e Roupas
Jovens.
M arquinhos colocou seu p au n o cu d a V en d ed o ra De
Roupas Jovens D a Butique de Roupas Jov ens, (p. 21 6 )

O resultado é obviamente paródico e, ao m esm o tempo,


blinda qualquer possibilidade de intro sp ecção e de apelo
à interioridade psicológica. Os personagens são reduzidos
à superfície do clichê e agem como fanto ches primitivos,
realizando o lado hiper-real de uma cultura em que sonhos
e imaginação viraram matéria-prima de superexposição.
Nos textos de Sant’Anna, o signo é a realid ad e, isto é, a rea­
lidade é desde sempre natureza sígnica, tud o se reduz à
mesma superfície pornográfica em que a referência mais
exterior se extraviou, e onde tudo circula entre clichês.
É, paradoxalmente, por meio desse achatam ento radical
que o super-realismo de André Sant’A nna consegue criar
um jogo de alienação, uma construção artificial que acaba
apontando para algo atrás do signo, algo terrív el abaixo do
banal, algo violentamente inumano por baixo de todo seu
cinismo aparente. Mais do que uma crítica ideológica da

76
alienação, o p era-se, na escrita de Sant’Anna, uma inversão
da alienação e d o estranham ento em potência afirmativa
— no lugar d a falta d e su jeito , aparece uma subjetividade,
e, em vez d o s c lic h ês banalizad o s e superficiais, sua repe­
tição v ig o ro sa faz em erg ir a sensação de uma realidade,
traumática talv ez , into leráv el e d ificilmente significável.
A brutalid ad e d as p alav ras e a sobrecarga de descrições no
relato de A nd ré San t’A nna, produzidas e repetidas inces­
santemente nu m excesso de significação, tendem a esva­
ziar a ling uag em e to rná-la banal, apontando para um con­
teúdo que as p alav ras já não conseguem simbolizar.
Na criação d e u m a realid ad e cotidiana estereotipada e
vulgar, su jeita à rep ro d u ção acelerad a dos objetos de con­
sumo, a literatu ra te n ta, assim , injetar um mínimo nível
de d iferença, jo g an d o co m o utro s níveis de diferença e até
mesmo co m d uas séries o p o stas em contraste; no caso da
prosa de San t’A nna, a série habitual do consumo e as sé­
ries instintiv as d e d estruição e mo rte. Dessa forma, a sua
literatura c o necta o nív el de estupidez e ignorância com o
nível da crueld ad e, d esco rtinand o , por baixo dessa consu­
mação frenética, a v io lência e a mo rte. Esteticamente, sua
narrativa satura em ritm o d elirante as mistificações e fan­
tasias que m o v em a so cied ad e de consumo num gesto re
petitivo, in sisten tem en te banal, abrind o, assim, a possibi­
lidade de que um m ínim o d e d iferença finalmente possa
ser expresso.

Um novo regionalismo?

0 foco so bre a realid ad e urbana foi um dos traços que a


“Geração 90” p reserv o u da ficção da década de 1970. En­
tretanto, nunca fo i aband o nad o po r completo o cenário re­
gional, que subsiste até ho je na literatu ra b rasileira desde
o século XIX, e que co ntinua send o u m d o s alicerces da
opção pelo realismo. Um dos m aio res su cesso s na litera­
tura brasileira foi jo rge A mado , c u ja o b ra co nseg uiu pre­
servar a popularidade da realid ad e reg io nal p o r m eio sécu­
lo. Ao passar pelas exp eriências d e, p o r exem p lo , Sargento

Getúlio (1971), de Jo ão Ubaldo Ribeiro , E ssa t e r r a (1976), de


Antônio Torres, Os des v alido s (1993), d e Francisco J. C. Dan­
tas, entre outros, as características d o reg io nalism o se
transformaram de múltiplas m aneiras, estabelecend o diá­
logo com as obras em blem áticas de G u im arães Ro sa e Gra-
ciliano Ramos. Em algumas o bras atu ais, a q uestão regio­
nal abre mão do interesse pelo s co stu m es, p ela trad ição e
pelas características etno g ráficas p ara se to m ar um palco
da tensão entre campo e cidad e, entre a h eran ç a rural e o
futuro apocalíptico das grand es m etró p o les. Esse conflito
é o foco principal para um d os e sc rito res q u e mereceu
maior reconhecimento crítico na últim a d écad a e que, sem
ter sido rotulado de “reg io nalista”, p reserv a o o lhar sobre
sua região de origem e m o stra fo rte interesse p ela narra-
tivização épica de sua histó ria, assim co m o p ela inclusão
de características linguísticas esp ecíficas na construção
dos personagens. Trata-se do m ineiro d e Cataguases Luiz
Ruffato, que estreou co m dois livro s d e co nto s, H istórias à

rem orsos e ran cores (1998) e ( os so br ev iv en t es) (2000), este últi­


mo ganhador do Prêmio Casas de las A m éricas co m men­
ção especial. Mas foi em 2001, quand o lanço u o romance
urbano Eles eram m u itos c av alo s, que a atenção d a crítica des­
pertou de verdade. Aqui, claram ente se co nciliav am duas
ambiçõ es ap arentemente co ntrad itó rias: escrev er um r°'
manee comprometido co m a atual realid ad e so cial do país’
po rém numa linguagem adequada à co ntem po raneid ad 6.
fugindo dos fo rm ato s trad icio nais das narrativas do sécu­
lo XIX. O resultad o é co nhecid o ; o ro mance retrata um dia
da vida na m etró p o le d e São Paulo, mais precisamente o
dia 9 de m aio d e 2000, d e um a perspectiva estilhaçada de
personagens d e ru a, trab alhad o res, mendigos, donas de
casa, em p resário s, nu m a narrativ a fragmentária e comple­
xa com um a clara ap ro xim ação às experiências modernis­
tas da prim eira p arte d o século passado.
A fo rma literária exp erim ental de Ruffato, com sua agu­
da co nsciência p o étic a d a ling uag em , mantém não só o
compromisso co m a realid ad e, mas procura formas de rea­
lização literária o u d e p resentificação não representativa
dessa mesm a realid ad e. N esse sentid o , estamos diante de
um herdeiro d a trad ição realista, mas, como já foi sugeri­
do anterio rm ente, aq ui será p reciso usar esse conceito des­
vinculando-o d a ilu são d e um a linguagem referencial capaz
de co nferjU ransp arência à linguagem literária e à realida­
de d aexp eriência. É p reciso questio nar o privilégio do rea­
lismo histó rico co m o “ja n e la ” para o mundo, a fim de en­
tender de que m an eira a literatu ra contemporânea procura
criar efeitos d e realid ad e, sem p recisar reco rrer à descrição
verossímil o u à narrativ a causal e co erente. Não é bastante
afirmar que o ro m ance Eles eram muitos cavalos descreve a
vida marginal nas ruas d e São Paulo , no espelho quebrado
de uma visualid ad e v ertig ino sa, movida por uma empatia
extraordinária p o r seus p erso nagens. Tematicamente, o ro­
mance é co m p ro m etid o co m a realid ade social do Brasil
contemporâneo e se inscrev e na trad ição de narrativa ur-
bana_^Ue o cupa um a p o sição central na literatura brasilei-
ra a partir da d écad a d e 1960, privilegiand o histórias de
Pessoas co m uns em situ açõ es de co nfro nto com o medo, a
dolência, o crim e, a m iséria, mas também histórias que
envolvem os desejos e as expectativas dos m o rad o res da ca­
pital paulista. O verdadeiro d esafio está em estabelecer a
relação entre esse conteúd o e a fo rm a co m p lexa da estru-
tura narrativa. É preciso entend er m elh o r a exp lo ração do
recurso poético, na linguagem d o ro m ance, co m o produ­
ção performática dessa realid ad e, co m o p ro cu ra d e efeitos
de realidade que ultrapassam a ilusão referen cial d o realis­
mo, introduzindo o real na escrita.
A demanda de realidade do ro m ance já está p resente na
referencialidade po ntual de sua situação inicial, “ São Pau­
lo, 9 de maio de 2000. Terça-feira”, seg uid a p o r o utras in­
formações objetivas e circunstanciais referentes ao tempo,
à qualidade do ar e à fase da lua. A narrativ a se inicia à ma­
neira de um no ticiário , mas rap id am ente d esco brim o s que
não são as histórias sensacio nais d a im p rensa nem os even­
tos dramáticos de celebrid ad es que estão p o r vir, mas as
histórias ignotas do dia a d ia d e p esso as anô nim as, sem
brilho, glamo ur ou reco nhecim ento , p ro tag o nistas da vida
crua, da micro-história e de to d o s o s p equeno s d ram as que
só excepcionalmente atraem a atenção p ública.
De um ponto de vista p uram ente d escritiv o , o romance
é formado por 70 fragmento s que v ariam d e tam anho , de
duas linhas_jté mais de sete p áginas. D ep o is d o último
fragmento enumerado, há um blacko ut g ráfico d e duas pá­
ginas pretas, seguido pelo fragm ento que finaliz a o livro
com um diálogo noturno . Cada frag m ento traz um a solu­
ção de escrita própria, entre narrativ a e p o esia, que, se to­
mado separad amente, po deria ser co nsid erad o co m o um
minico nto , um capítulo de um a narrativ a m ais lo nga, um
po ema em prosa, uma ano tação , um reg istro , u m a citação,
uma lista ou o utro registro. As unid ad es são autô no m as, e
cada uma co nstitui um fragm ento po rque faz p arte de um
conjunto ab erto , u m a série casual que não se atém ao es­
q u em a início -m eio -fim d o enred o , mas configura uma es­
trutura riz o m ática sem centro e sem sequencialidade cau­
sal interna. A lguns co m entaristas se contentam em ver a
prosa do ro m ance co m o um a espécie de videoclipe de um
dia em São Paulo , e reco nheço que é muito sedutor fazer
um a leitura d e co m p aração entre os formatos audiovisuais
breves e o s frag m ento s textuais de Ruffato.
Mas o im p o rtante é entend er co m que recursos o texto
r consegue esse efeito que lhe perm ite produzir uma ima­
gem não v isív el d a cid ad e caó tica de São Paulo, uma ima­
gem que não rep ro d uz nem im ita as tecnologias visuais na
literatura, m as que é resultad o de uma exploração de algo
que a literatu ra faz m elho r do que a imagem fotográfica,
televisiva, cinem ato g ráfica, d igital e assim por diante, uma
espécie de “im ag em d o p ensam ento ”, privilégio da escrita
numa ép o ca de o fu scam ento visual ligado ao predomínio
dos grandes v eículo s d e co m unicação . Diferente do esforço
realista de recriar d escritiv am ente uma pseudovisualidade
como cenário ho m o g êneo e pano de fundo para ações, a
aguda visualid ad e d o texto de Ruffato, efeito cortante do
estilhaçamento d as im ag ens, ressalta as dimensões não
perceptíveis e não ó p ticas da imagem, aquilo que existe no
limite da v isibilid ad e e da legibilid ad e do visto e se presen-
tifica im ag inariam ente — o medo, a fantasia, o sonho, a
mentira, a atração esp anto sa da miséria, da violência, do
obsceno, da ferid a, da feiura e do gro tesco — , invertendo e
revirando no sso o lhar e co nvertend o o espectador em ob­
jeto visível, visto p elo m und o que ele não quer ver.
Histórias e cu ltu ras hetero g êneas se atravessam nas
ruas de São Paulo : retirantes nord estinos, meninos de rua.
existências suburbanas, so cialites, atrizes fracassadas, dele-
gados, drogados, alcoólatras, leo es d e c h ác ara, mendiga
vendedores ambulantes, to rced o res d e fu te b o l, crentes
playboys, mães de íamília e em p resário s cruzani-.se em lin.
guagens polifõnicas, sem trad ução p o ssív el e n tre sj. %
tingue-se o falso brilho da to talid ad e, e ab re-se inào da
nostalgia e do desejo da identidade*, e, d essa maneira, o
fragmento alegórico flagra sua pró p ria p arcialid ad e hetero­
génea, cuja produtividade po ética ap o nta p ara a prolifera­
ção do inacabado e do múltiplo. Ru ííáto resp o nd e ao dosa-!
fio de criar uma linguagem capaz d e e xp ressar as potentes
contradições da metrópole co ntem p o rânea e se inscreve no
solo que surge com as exp eriências d a v ang uard a moder­
nista, lançando mão de técnicas fu tu ristas, d ad aístas, ex-
pressionistas, cubistas e surrealistas, co m o ^ p o r exemplo, i
a montagem, a polifonia, a co lag em , as enum eraçõ es, o s;
experimentos sínestésícos e o utras téc n ic as q u e visavam a
dar corpo à cidade como espaço da sim u ltaneid ad e de tem­
pos históricos heterogéneos. No en tan to , no s “ instantes”
de Kles eram muitos cavalos, busca-se algo d iferen te das epifa­
nias profanas perseguidas pelo surrealism o , um a expressão
concreta e crua sem transcend ência em q u e a realid ad e da
imagem do pensamento se p eríó nnatiz a afetiv am ente. Um
exemplo disso pode ser percebido co m clarez a na inclusão
de textosda cidade; a escrita urbana ad entra a escrita da
ficção, seja na transcrição de “ santinho s" d e Santo l-xpedi-
to, recomendações para pedidos, co nselho s p ara preserva-
ção de casamentos, um cardápio, uma c arta, listas de em­
pregos ou dos títulos de livros num a estan te, a lista dc
CDs, anúncios de contato amo ro so , anú ncio s d e ga r o t a s dc
programa, ou na enumeraçao dos o b jeto s d e um a copa- l-v
ses fragmentos possuem uma natureza am bíg ua po r sere’11
signos da cidade incluídos entre os sig no s d a íicção , obU‘11
do-sc, assim, unia c o n c retu d e o b jetiv a, articulad o s como
objetos de um a b rico lag em textu al, “ co isas” co letad as na
rua. índices referen d ais da d d acle, que participam da mo n­
t agem do texto co m o p o d er d e arraig ar o u ind exar o texto
no real.
lim 2005, Ru ííato inicio u seu p ro jeto mais am bicio so ,
um romance em c in c o v o lu m es intitulad o In fer n o prov isó rio,

dos quais até ag o ra já fo ram p ublicad o s quatro — Mu m m a,


son lan ío Jd i c e , 0 m u n d o in im ig o , V íslu p ar c ial d a noite e 0 livro
das im p ossibilidadu s — , co m a p ersp ectiv a de se encerrar em
2010 com o últim o v o lu m e. D escrev er o u resum ir o roman­
ce ó d ifícil, po is se trata d e um ro m ance desprovido de fio
narrativo único e d e en red o fechad o em to rno de persona­
gens em d esenv o lv im ento . V. um ro m ance so bre a Zona da
Mata mineira e a cid ad e d e C atag uases, num reco rte histó­
rico com início in c erto , p ro v av elm ente d atand o da entra­
da no século XX e ch eg an d o até o s d ias de ho je. De certa
maneira, trata-se d e um ro m an ce regio nalista, pela d eter­
minação lo cal e p ela v o ntad e d e traz er para d entro de sua
linguagem a sem án tic a e o id io leto p articulares de uma
população rural d e o rig em italiana, mas tam bém se pode
ver nele um ro m an c e c o letiv o , co m o uina das versões do
grande ro m ance p ro letário . M uito s perso nagens são intro­
duzidos, alg uns d eles reto rn am e d esap arecem várias ve*
zes, sem que h aja, n ec essariam en te, co ntinuid ad e tempo*
n>l, a m aio ria d o s ev e n to s ac o n tec e numa comunidade*
estabelecida cm to rn o d o b eco d e Zé Pinto , onde a urbani-
Z;i(,'ào se d esenv o lv e g raças à p resença dos imigrantes ita­
lianos p ro letariz ad o s. A s histó rias são entreco rtad as, episo­
dios pico tad o s d e um a vid a em aberto , que emergem em
l)ri*vi‘s fu lg u raçõ es p ara lo go d esap arecerem . Por isso. o lei*
l(,r exp erim enta a leitu ra c o m o um passeio , simultanea
mente diacrônico e sincrónico, atrav essad o p o r uma série
de histórias paralelas que surgem em m o m en to s arbitrá­
rios, e onde, principalmente, a p ró p ria ev o lução da grande
História não resulta em pro gresso , n em n u m a consciência
superior. 0 olhar de Ruffato não é no stálg ico , é antes céti­
co, mas, ao mesmo tempo , p ro fu n d am ente identificado
com os personagens, apesar da su b stância subjacente de
desumanização e degradação. Co mo p ro je to literário , o ro­
mance parece combinar e co nciliar u m a am b ição literária
tradicional com uma solução exp erim ental; a narrativa é
construída a partir da reescrita de d o is d e seus livros de
contos anteriores, mencio nad o s já aq u i, e se apresenta
como um trabalho em aberto e em c o n stan te reelabora-
ção. 0 estilo da narrativa é elíp tico , su stentad o p o r monó­
logos e diálogos, discursos d ireto s e ind ireto s, que formam
mosaicos nos quais vozes do passad o in terro m p em o pre­
sente, e as frases se enco ntram e se c h o c am sem nunca
estabelecer uma verdadeira co m p reensão e sim bio se dialó-
gica. 0 filho Carlinhos reto rna a casa p ara v isitar a mãe no
“Aquário” de M amma, son tanto felice, e o re lato se passa du­
rante uma viagem de carro co m lo ng as co nv ersas sobre o
passado, no qual cada um parece encerrad o p o r sua pró­
pria memória e as palavras acentuam a falta d e aproxima­
ção. As histórias se tecem po r inú m eras co nv ersas entre
pessoas que procuram em vão sup erar o silê n c io e se apr0-
ximar por via das palavras, escaland o b arreiras d issim ^3
das ou invisíveis.
De certa maneira, o ro mance retrata u m a q uestão trad1
cional na literatura brasileira: o co nflito e n tre o país ruf3
e o país urbano, tantas vezes d iscutid o ao lo ng o do sécU
lo XX. No entanto o destino m ig rató rio não é apresenta^
como uma queda originária, nem em relação à Itália. Pa
de o rigem d essas fam ílias, nem em relação a Cataguases,
para quem acab a saind o d e lá a fim de se estabelecer em
São Paulo e n o Rio d e Janeiro . Não é à to a, pois a vida rela­
tada nas histó rias é u m a v id a o prim id a, inumana, mesqui­
nha, m iseráv el e c h eia d e v io lência nas relaçõ es sociais e
nas relaçõ es m ais íntim as.
No quarto v o lu m e, 0 liv ro das impossibilidades, as três his­
tórias aco ntecem d en tro d o m esm o espaço de tempo das
últimas d écad as d o sécu lo XX e falam dos que saíram de Ca­
taguases p ara te n tar a fo rtu na em São Paulo ou Rio de Janei­
ro. Em “Era u m a v ez ”, um a fam ília que se estabeleceu na
periferia d e São Paulo receb e visita de familiares de Cata­
guases, e são co nfro ntad o s o s so nho s da saída com a reali­
dade d uram ente co nq u istad a à custa de muitas ilusões. Nar­
rado do p o nto d e v ista d o afilhad o Guto, a vida pobre da
grande cid ad e, ap esar d e co nquistad a co m muito esforço e
sofrimento, aind a tem u m brilho de extravagância — “Cata­
guases não o ferece ho riz o nte não... Você também, se quiser
ser alguém na v id a, v ai te r que ir embo ra um dia... Se eu
tivesse ficad o ...” (2008, p. 36). A queda das ilusões é mais cla­
ra ainda na segund a histó ria, em que Aílton tenta escrever
uma carta p ara seu am o r d e ad o lescente, Laura. Dezesseis
anos d epois d e ir p ara o Rio , quand o achava que ela estava
comprometida co m Jacinto , um pro misso r jovem na mari­
nha co m ercial, A ílto n tenta reavivar a paixão de outrora e
voltar não só p ara M inas, m as para a esperança da juventu­
de. Em vão , o b v iam ente, po is as ilusõ es não se refazem.
Mais brutal é a últim a histó ria, narrad a como duas histórias
Paralelas, de Z ezé e d e Dinim , que nascem no mesmo ano e
crescem am ig o s na infância para depois se extraviarem,
cada um po r seu cam inho , nas favelas cariocas e no crime,
que acaba send o o últim o cam inho que resta para manter o
s o n h o d e u m a o u t r a v i d a e , f i n a l m e n t e , s u c u m b i r e m à tor

t u r a p o lic ia l n a c a d e i a , n a e n t r a d a d o n o v o s é c u l o . S e a vida I

n a Z o n a d a M a ta e r a m i s e r á v e l , a r e a l i d a d e d a f u g a , n a saga r
d e R u ffato , p a r e c e p i o r a i n d a , n ã o f o s s e p o r e x e m p l o s como í

a N elly, d e “E r a u m a v e z ” , q u e c o n s e g u e s e f o r m a r enfer-

m e ir a e , c o m o e s f o r ç o d o p r ó p r i o t r a b a l h o , m a n t é m unida i

a fa m ília , a p e s a r d o f r a c a s s o d o m a r i d o .

O u tro s u c e s s o l i t e r á r i o d a s ú l t i m a s d é c a d a s f o i cu n h ad o !

e m t o m o d o r e s g a t e n a r r a t i v o d a i d e n t i d a d e e s p e c í f i c a da !

re g i ã o d o A m a z o n a s , v i v i f i c a n d o s u a r i c a h i s t ó r i a e cultura j

q u e , p a r a g r a n d e p a r t e d o s b r a s i l e i r o s , c o n t i n u a s e n d o tão-

e x ó tic a q u a n to a c u ltu r a d e u m p a ís d i s t a n t e .

U m a m u l h e r v o l t a p a r a M a n a u s a p ó s u m p e r í o d o d e in­

t e r n a ç ã o e m u m a c l í n i c a d e S ã o P a u l o e c h e g a à c a s a da

m ã e a d o t iv a , E m i l ie , p r e c i s a m e n t e l o g o a p ó s a s u a m orte.

E s c re v e n d o u m a c a r t a a o i r m ã o a d o t i v o q u e v i v e e m Bar­

c e l o n a , a m u l h e r i n i c i a u m a l o n g a n a r r a ç ã o d a s m e m ó r ia s

de in fâ n cia, e n tre m e a d a p o r d e p o i m e n t o s e te s te m u n h o s

d e u m g r u p o d e p e r s o n a g e n s q u e t r a z e m d e v o l t a c e n a s da

v id a n o A m a z o n a s e o s a c o n t e c i m e n t o s t r á g i c o s d a histó­

r i a d a f a m íl i a . M u it o s r e c o n h e c e r ã o p r o v a v e l m e n t e essa

d e s c ri ç ã o c o m o o i n í c i o d o e n r e d o d o r o m a n c e Relato de um !

certo Oriente, d o e s c r i t o r a m a z o n e n s e , r e s i d e n t e e m S ã o Pau- :

l o , M ilto n H a to u m , c u j o l a n ç a m e n t o , e m 1 9 9 9 , d e s p e rto u

u m g r a n d e i n t e r e s s e e n t r e c r í t i c o s e l e i t o r e s . S e m e n t r a r na

d i s c u s s ã o d a s q u a li d a d e s n a r r a t i v a s , o r o m a n c e co n cilio u

u m leq u e d e te m a s e in te r e s s e s q u e g a r a n t i r a m s e u suces­

so e q u e se d e sd o b ra ra m n o s r o m a n c e s s e g u i n t e s , Dois ir­
mãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado, d e 2 0 0 8 . Todos os .

r o m a n c e s f o r a m m u i t o p r e m i a d o s , o s t r ê s p r i m e i r o s rece­

b e r a m o P r ê m i o J a b u t i d e M e l h o r L i v r o d e F i c ç ã o , e , cofl1

e les , H a to u m s e m d ú v id a c o n s o lid o u u m a v e r t e n t e n a
rativa b r a s i l e i r a a n t e s t i m i d a m e n t e r e p r e s e n t a d a. U m a e x ­
p l ic a ç ã o p a r a a p o p u l a r i d a d e d a l i t e r a t u r a d e H a t o u m e n ­

c o n tr a - s e n a c o n v e r g ê n c i a e n t r e u m c e r t o r e g i o n a li s m o

sem e x a g e r o s f o l c l ó r i c o s e o i n t e r e s s e c u l t u r a l i s t a n a di-

v e r s id a d e b r a s i l e i r a q u e , n a s ú l t i m a s d é c a d a s , s u b s titu iu

a t e m á t i c a n a c i o n a l . H a t o u m n a s c e u e m M a n a u s n o in ício

da d é c a d T d e 1 9 5 0 , n u m a f a m í l i a d e o r i g e m l ib a n e s a . Seus

avós e r a m d e B e i r u t e , c r i s t ã o s m a r o n i t a s , e s e u p a i c re s ­

c e u n o L í b a n o , a i n d a s o b o p o d e r c o l o n i a l f r a n c ê s . T a n to a

t ra d i ç ã o d a n a r r a t i v a á r a b e q u e H a t o u m h e r d o u d o av ô e

dos v i z i n h o s q u a n t o a i n f l u ê n c i a f r a n c e s a q u e s u a fa m ília

receb eu m a r c a r a m s u a f o r m a ç ã o e , p o s t e r i o r m e n t e , su a

li te ra t u r a . J á a d u l t o , e s t u d o u a r q u i t e t u r a e l i t e r a t u r a n a USP

e in icio u u m d o u t o r a d o n a S o r b o n n e , n a d é ca d a de 1 9 8 0 ,

t ra b a l h a n d o c o m a n o v a n a r r a t i v a l a ti n o - a m e r i c a n a . De c e r ­

ta m a n e i r a , e n c o n t r a m o s n o s r o m a n c e s d e H a to u m o re g io ­

n a l is m o a m a z o n e n s e , q u e s o b r e v i v e u n a s d é c a d a s d e 1 9 7 0

e 1 9 8 0 p o r i n t e r m é d i o d o s l i v r o s d e M á r c i o S o u z a — e n t re

eles, Galvez, im p era d or d e Acre (1 9 7 6 ), Maã Maria (1 9 8 0 ) e

0 fim do terceiro m undo ( 1 9 9 0 ) — , e m c o n flu ê n c ia c o m um

m e m o r ia lis m o f a m i l i a r , r e s g a t a n d o a h is tó ria d os em ig ran ­

tes á r a b e s n o B r a s i l , q u e s e c o m u n i c a c o m a s o b ra s d e

R a d u a n N a s s a r e S a l i m M i g u e l , e n t r e o u t r a s . A p e s a r d e su a

o b ra c o n t a r c o m a p e n a s d o is r o m a n c e s — Lavoura arcaica
(1 9 7 5 ), e Um copo d e cólera, d e 1 9 7 8 — e algu n s p ou co s co n ­

tos, e d i t a d o s e m 1 9 9 2 , n o v o l u m e Menina a caminho, R ad u an

N assar f o i u m e s c r i t o r m a r c a n t e n a d é c a d a d e 1 9 7 0 , p e la

e x c e l ê n c i a a r t ê s a n a l d a e s c r i t a , a o d e s c r e v e r o c o n fl it o c u l­

tu ra l n o s e i o í n t i m o d e u m a f a m í l i a l i b a n e s a o r to d o x a n o

in t e r i o r d e S ã o P a u l o . O c a t a r i n e n s e S a l i m M ig u el c h e g o u

ao B ra s il c o m a f a m í l i a a o s 3 a n o s d e id a d e , n a d é c a d a d e

1 9 2 0 , e t e m m a i s d e v i n t e l i v r o s p u b l i c a d o s , e n t re eles o
sab o ro so re la to Nur na escuridão , d e 1 9 9 9 , q u e l h e d e u pro.

je ç ã o n a cio n a l e c u j o t e m a é p r e c i s a m e n t e a tra je t ó r ia ^

fa m ília e d o s l ib a n e s e s n o B r a s i l . F i c a p o r t a n t o c l a r o qUç

H a to u m n ã o é o p i o n e i r o n a e x p l o r a ç ã o d o t e m a d a migra­

ç ã o , d o s c o n f li t o s c u l t u r a i s e d o s s e n t i m e n t o s d e estrangej.

rid a d e . A lé m d o s j á c i t a d o s , t a m b é m a u t o r e s c o m o Samuel

R a w e t e M o a c y r S c l i a r t r o u x e r a m o u n i v e r s o j u d a i c o para

a r e a li d a d e n a c i o n a l , e N é l i d a P i n o n d e i x o u n o rom ance

A república dos sonhos o r e l a t o d a m i g r a ç ã o g a l e g a e espanho­

l a , a s s i m c o m o J o s é C l e m e n t e P o z e n a t o g a n h o u visibili­

dade ao te r seu ro m a n ce 0 quatrüho ( 1 9 8 5 ) , s o b r e colonos

ita l ia n o s e m S a n t a C a t a r i n a , t r a n s f o r m a d o e m f i l m e p o r Fá­

b io B a r r e t o . P a r a n e n h u m d e s s e s a u t o r e s , e n t r e t a n t o , o re­

c o n h e c i m e n t o t e m s i d o t ã o u n â n i m e q u a n t o n o c a s o de

M ilto n H a to u m , o q u e t a m b é m s e e x p l i c a p e l a coin cid ên ­

c ia c o m o i n t e r e s s e q u e a c r í t i c a a c a d ê m i c a esp ecializad a

com eçou a te r n a a b o rd a g e m d o s e s t u d o s c u l t u r a i s , ver­

t e n t e d e estudo_s q u e e m p l a c o u n o B r a s i l n o f i m d a década

d e 1 9 8 0 , m u i t o i m p u l s i o n a d a p e l a f u n d a ç ã o d a A ssociação

B r a s i le i ra d e L i t e r a t u r a C o m p a r a d a ( A b r a l i c ) e p e l a orien­

t a ç ã o p r e d o m i n a n t e e m d i r e ç ã o a o m u n d o a c a d ê m i c o ame­

r i c a n o , q u e s e c o n s o l i d o u n a d é c a d a d e 1 9 8 0 . N e s s e con­

te x to , fo rta le c e u -s e u m a d i s c u s s ã o e m t o r n o d e questões

h i s t ó ri c a s e h i s t o r i o g r á f i c a s e m q u e f o r m a s e x p e rim e n ta is

d a f i c ç ã o h i s t ó r i c a g a n h a v a m u m a n o v a i m p o r t â n c i a effl

d e t r i m e n t o d e u m a a n á l i s e m a i s e s t r u t u r a l o u e s t il í s t i c a de

c u n h o e u r o p e u . N e s s e m e s m o i m p u l s o , s u r g i u u m a aten­

ç ã o r e n o v a d a s o b r e o s t r a ç o s d e i d e n t i d a d e s e m p e rs p #'

tiv as n a c io n a i s , m u l t i c u l t u r a i s , é t n i c a s e d e g ê n e r o j f

p u d e s s e m s e r v e r i f i c a d a s ( ^a n a l i s a d a s n ã o a p e n a s c o m o s>n

t o m a s d e c o n te ú d o , m a s t a m b é m c o m o f o r m a ç õ e s d isc ^

s iv a s a q u i a c u m u l a d a s s o b a f o r m a d e t r a ç o s lin g u ístico 5
híbridos n a o r a l i d a d e d o s r e l a t o s . A v o l ta a u m in teresse

mais e x p l í c i t o p o r g é n e r o s n a r r a t i v o s m a is tra d icio n a is ,

como, p o r e x e m p l o , o r o m a n c e m e m o r i a l i s t a e h istó rico ,


e x p lica -s e , p r o v a v e l m e n t e , p o r e s s e f a t o , a lia d o à sen sação,

por p a r t e d e u r n a c e r t a c r í t i c a , d o e x a u r i m e n t o d o e x p e ri­

m e n ta li s m o m a i s t é c n i c o e f o r m a l . A o m e s m o t e m p o /h á

na n a r r a t i v a d e H a t o u m u m a a p r o x i m a ç ã o à h e ra n ç a lite­

rária l a t in o - a m e r i c a n a q u e s e d e s e n v o l v e u d os ro m a n ce s

tipo “n o v e l a d e l a t i e r r a ” , g ê n e r o q u e c o r r e s p o n d e ao reg io­

n a lism o b r a s i l e i r o , e m d i r e ç ã o à d e s c o b e r t a d o re a l m a ­

rav ilh o so e d o r e a l i s m o m á g i c o , t a l c o m o o c o r re u n o c o n ­

te x to c a r i b e n h o , n o f i m d a d é c a d a d e 1 9 4 0 , e q u e depois

i rro m p e u c o m t o d a s u a f o r ç a n a d é c a d a d e 1 9 6 0 , p rod u zin ­

do g r a n d e s n o m e s i n t e r n a c i o n a i s c o m o A lejo C arp en tier,

M iguel Á n g e l A s t ú r i a s e G a b r i e l G a r c í a M árq u ez. P o d ería­

m os v e r e m H a t o u m u m d e s c e n d e n t e t a rd i o d essa fam ília

li te r á r ia , p r i n c i p a l m e n t e n a v o n t a d e é p ic a d e c o n s t ru i r

um a b o a n a r r a t i v a , s e m a b r i r m ã o d a s e s t ru t u r a s co m p le ­

xas, e p ê ]õ ~p ü r s p é c t I v i s m o q u e m u l t i p l i c a o l h a re s T v O z è s ,

e n r i q u e c e n d o a s p o s s i b i l i d a d e s d e l e i tu r a . E m Relato de um
certo Oriente, p o r e x e m p l o , a n a r r a d o r a p a s s a a p alav ra a ou­

tros q u a t r o n a r r a d o r e s , p r o d u z i n d o e l ip s e s e in c e rte z a s s o ­

bre a c o n s i s t ê n c i a d a m e m ó r i a q u e s ó é r e s g a t a d a p arcial­

m e n te e n u n c a d e s p r o v i d a d a a m b i g u i d a d e n e c e s s á r ia à

sua n a t u r e z a f r a g m e n t á r i a . S e m r e c o r r e r a o s e x c e s s o s des-

critiv os q u e t a m b é m m arcaram p a r t e d o s n a rra d o r e s d o

boom l a t i n o - a m e r i c a n o , H a t o u m c o n s e g u e a b s o rv e r e m sua

ficção o e s p a ç o a m a z o n e n s e e r e l a t a r s e u s c o s t u m e s , sem

cair n u m e x o t i s m o h i p e r t r o f i a d o e v a l o r iz a n d o re fe rê n cia s

Precisas a o s f a t o s h i s t ó r i c o s .

Em s eu s e g u n d o r o m a n c e , Dois irmãos, a q u e s t ã o id enti-

ria s e d e s l o c a m a i s c l a r a m e n t e p a r a o c e n á r i o fam iliar,


no qual a rivalid ad e q u ase b íb lic a e n tre d o is irmàos $ ^
meos, Yaqub e Omar, filho s d e Z ana e H alim , é acentuada
pela tentativa do narrad o r N ael d e c o n h e c e r a identidade
de seu pai e assim en c o n trar su a o rig e m , u m a vez que a
mãe, a empregad a índ ia D o m ing as, fo i v io lad a po r Omar,
mesmo estando ap aixo nad a p elo irm ão , Yaq u b. O temadas
relaçõ es amo ro sas ileg ítim as e p ro ib id as é reco rrente na
sua obra e co m bina, d e m o d o p riv ileg iad o , o s d ram as míti­
cos co m as narrativ as histó ric as, o s re lato s d e cunho ínti­
mo e mo ral co m os ev ento s so c iais e p o lític o s na pequena
comunidade am azo nense; m as, n a au sê n c ia d e certezas e
garantias, a relação sem p re é e stab e le c id a n a reconstrução
da memó ria, chave d a id entid ad e e e x p lic aç ão d o s desejos
amiúde vio lento s e transg ressiv o s.
Por causa da afinid ad e co m a trad iç ão o ral, Hatoum re­
conecta sua escrita co m u m p lan o fab u lar, lend ário e indí­
gena, além de fazer referências fre q u e n te s a co stu m es reli­
giosos diversos, cristão s, ju d aic o s, islâm ic o s e às crenças
animistas dos índ io s. Ev ita, e n tre tan to , o s v o o s do imagi­
nário mágico e, quand o as fáb u las e len d as en tram em po­
sição central no enred o , co m o , p o r e x e m p lo , em Órfãos do

Eldorado , tudo aco ntece d e m o d o tão b e m d efin id o que não


co ntagia o enred o d iretam ente, m as ab re u m a dimensão
imaginária paralela.

Lem b ro tam b ém d a h is tó ria d e u m a m u l h e r q u e f o i sedu­

zida p o r u m a an ta-m ach o . O m a ri d o d e l a m a to u a an ta, co r

to u e p en d u ro u o p ên is d o a n im a l n a p o rta d a m a l o ca . Aí a

m u lh e r co b riu o p ên is co m b a rro a té f i c a r s e co e d u ro ; de­

p ois dizia p alav ras carin h o s as p a ra o b i ch i n h o e b rincava

co m ele. En tão o m arid o e s f re g o u m u i ta p i m e n ta n o pau

de b arro e se esco n d eu p a ra v e r a m u l h e r l a m b e r o b ich o e

s e n tar e m ci m a d ele. D iz q u e e l a p u l av a e g ri ta v a d e tanta


d or, e q u e a l ín g u a e o co rp o q u e im av am q ue n em fogo. A í

o j e ito f o i m e rg u l h a r n o rio e v i ra r u m sap o . E o m arid o foi

m o rar n a b e i ra d a á g u a , tri s te e arre p e n d id o , p edind o q ue

a m u l h e r v o l ta s s e p a ra e l e . (p. 12)

À d iferença d o s ro m an c es anterio res, cujas histó rias se


d esenvo lv em n a seg u nd a m etad e d o século XX, Ó rfãos áo El­
dorado é situad o n a ép o ca d a d ecad ência da bo rracha e atra­
vessa as d uas g rand es g u erras. O enred o explo ra os mitos
am azô nico s d e u m a cid ad e esco nd id a no fundo do rio e a
atração que e x e rc e m so b re ho m ens e m ulheres, seres en­
cantad os c o m o o s b o to s, q u e sed uzem e atraem as mulhe­
res para o fu nd o d o s rio s; esses m ito s servem para introdu­
zir na narrativ a a h istó ria d e am o r entre A rminto Cordovil
e a m isterio sa ó rfã D in au ra, q ue leva o jo v em , herd eiro de
uma eno rm e fo rtu n a em neg ó cio s, terras e propriedades, a
perder tu d o e fin alm e n te v iv er na m iséria, à m ercê de gor­
jetas d os tu ristas d as g rand es em barcaçõ es. Por trás dessa
história, esco nd e-se u m a o u tra tram a, de incesto e de amo­
res cruzad o s, q u e só se rev ela p arcialm ente, no fim do li­
vro, po r in term éd io d o re lato d e A rm into . que o narra para
um v iajante q u e, p ac ien tem en te, se senta para ouvi-lo, no
típico cenário narrativ o o ral, tão brilhantem ente explorado
por Guim arães Ro sa.

A í tu e n tra s te p a ra d e s ca n s a r n a s o m b ra d o jato b á, pediste

ág u a e tiv e s te p a ci ê n ci a p a ra o u v ir u m v elh o . Foi um alívio

e xp u l s ar e s s e f o g o d a a l m a . A g e n te n ão respira n o que

fala? C o n tar o u c a n ta r n ã o ap ag a a n o ssa d or? Q uantas pa­

lavras eu te n te i d i z e r p a ra D in au ra, q u an ta coisa ela não

pôde o u v ir d e m i m . E s p e ro o m acacau á can tar n o fim da

tard e. O uv e só e s s e ca n to . A í a n o s s a n o ite co m eça. Estás

m e o l h an d o c o m o s e e u f o s s e u m m e n tiro s o . O m esm o

o lh ar d o s o u tro s . P e n s as q u e p as s as te h o ras n esta tap era

o uv ind o l e n d as ? (p . 1 0 3 )
Numa entrevista co nced id a a A id a Ram ezá Hanania2
em 1993, o autor se situa, insp irad o p o r W alter Benjai^
(1985), dentro de uma trad ição narrativ a que envolve Co.
merciantes-viajantes o rientais sem p re em trânsito pei0s
povoados e pelas vias fluviais do A m azo nas que também
traziam episódios ocorridos no p assad o d o Oriente Médio
por um lado, e, por outro, os am az o nenses sedentários que
vinham para a capital m anauense p ro vid o s d e lendas e de
mitos indígenas. Benjamin serv iria aí p ara evo car a pos­
sibilidade de um narrador capaz d e tran sm itir uma expe­
riência genuína, reco nstruir na narrativ a a essência da
aprendizagem humana extraíd a d a co nting ência histórica,
Poderia ser um resumo do p ro jeto literário d e Hatoum sua
vontade narradora, que se pro põ e co m o antíd o to moral ao
esvaziamento co ntemporâneo de sentid o , carregand o uma
certa nostalgia reativa, uma certa falta d e hum o r, que tal­
vez o impeça de ser aquele g rand e fab u lad o r que Jorge
Amado foi, em alguns livros, cu ja p o tência po ssa liberara
ficção de um compromisso m o ral co m o entend imento do
passado e apontar para o futuro , p ara a lib eração de uma
certa vontade de viver p lenam ente.

0 miniconto

É importante aprofundar a p o tência d iferencial de outra


experiência narrativa que se co nso lid a na d écad a de 1990
a preferência pelos minico nto s e o utras fo rm as mínima5de
escrita que se valem do instantâneo e d a visualização re­
pentina, num tipo de revelação c u ja realid ad e tenha utf

2 Disponível em: h ttp:/ /w w w .hottop os.com / collat6/m iltonl.htm (ace*

sado pela última vez no dia 18 de n ov em b ro 2 00 8).


impacto de p resença maio r. No universo hipertextual, o
texto literário se enco ntra em diálogo constante com a
imagem, assim co m o co m texto s não literários — jorna­
lismo, histó ria, cartas, enciclo péd ias, manuais técnicos e
outros — , de m o d o que se dissolvem as fronteiras claras
entre ficção e não ficção , e se introduzem, no universo li­
terário, m ateriais co ncreto s e experiências vividas no cru­
zamento entre a recep ção interpretativa e o impacto da
experiência sensível. A po pularidad e das formas curtas cria
uma nova p o nte ficcio nal entre o poema em prosa e a
crônica e d em o nstra sua eficiência estética no modo como
ressalta e po ntua a v iv ência concreta. Isso se dá, sobretu­
do, pela fo rça p o ética de um pequeno evento central que
tensiona o co nto , ap resentad o de maneira não circunstan­
cial, cujos p erso nagens atu am co mo elementos que susten­
tam a ação narrativ a. É plausível ver, na recente populari­
dade do “m icro rrelato ”, o reflexo da procura — por parte
de leitores e escrito res — de uma linguagem cuja matéria
seja sensível, surp reend ente e capaz de criar um efeito con­
tundente de p resença da realid ade exposta. Aqui, a prosa
assume a fo rça d a p o esia, sustenta-se em si mesma sem
pretender d esig nar nem rep resentar nenhuma realidade
reconhecível, m as sem p re efetiv am ente real. Parece que
a fotografia snapsho t enco ntra seu correspondente no mi-
niconto, pela rev elação d o instante privilegiado. Entre­
tanto, a visualid ad e do m inico nto não se restringe a essa
semelhança co m a velo cid ad e e a instantaneidade da foto*
’'grafia, mas se refere m u ito mais à concretude e à autossu-
ficiência de um texto in medias res, que parece não se apoiar
sobre nenhuma realid ad e fo ra de si, pelo contrário, é uma
Parte avulsa d essa p ró p ria realid ad e, como um pequeno
Asiduo duro dos m ilhares de imagens e textos que com-
I
põem a trama de no sso co tid iano . O m e sm o efeito é alcan f
çado pelas estruturas co m p lexas e frag m en tárias de narra-
tivas exp erim entais co m o E les e r a m m u it o s c av alo s , de Lujz
Ruífato, 0 flu x o silencioso d as m áq u in a s (2002), d e Bruno Zeni 1
0 avesso dos dias (2000), d e Cláud io G alp erin, e o A quidauana

e ou tras histórias sem r u m o (1997), d e M au ro Pinheiro , cujos


enredos não lineares, híbrid o s e in v erteb rad o s produzem
uma sensualidade afetiva na c o nstru ção d o o b je to literário,
em vez de uma pro sa que c o nstró i su a re laç ão co m o leitor j
I
por mecanismos de id entificação e d e in sc riç ão identitária
na construção do sentid o , nas teias d o en red o à maneira
da tradição narrativa clássica, q u e v ai d a trag éd ia grega até
o romance defo rm ação m o d erno . O u se ja, e m v ez d e situara
questão ética no cerne d a elab o raç ão d a estru tu ra narra­
tiva, a prosa co ntem po rânea p arece d esenv o lv er novos for­
matos, que colo cam o leito r im ed iatam e n te d iante da ima­
gem narrativa, devolvendo ao te x to a riq u ez a sensível do
texto modernista exp erim ental, m as ag o ra trabalhad o na
clave de uma apro ximação às q u estõ es h u m an as mais dra­
máticas da realidade d escrita. N a lite ratu ra latino-ameri­
cana, o miniconto é um g ênero q u e c o n ta c o m um a longa
tradição, explorada, de m o d o exem p lar, p elo escrito r gua-
tm alteccTÃ ugusto M o nterro so , q u e fez d o c o nto breve
uma poesia narrativa p o tente e atrav essad a p o r lances de
humor. Na Argentina, m uito s au to res já se av enturaram no
minico nto , mas a ed ição do liv ro d e e n saio s d e Ricardo
Piglia, Formas brev es (2004), ind ico u q ue o fo rm ato , de algu­
ma maneira, coincide co m um a ten d ên c ia não negligenc’a'
vel no contexto co ntem p o râneo . Q uand o Rubem Fonsec3
quase sim ultaneamente lanço u o liv ro P eq uenas criaturas

(2002), com co nto s de até d uas p ág inas, surg iu um outr°

94
indicador n a m e sm a d ireção . No entanto foi Marcelino
Freire quem , e n tre nó s, co lo co u o m inico nto na ordem do
" dia, pro po nd o o d esafio d e escrev er um co nto com menos
? de 50 letras a u m a série d e auto res, resultand o no já citado
; Os cem m eno res co nto s brasileiro s do século (2004). Apesar da ini-
- ciativa p io neira, e p reciso insistir no s exemplos do passa-
do, d entre o s q uais enco ntram o s resultad os notáveis, como
^ as narrativas teleg ráficas d e Osw ald em M emórias sentimen-

• tais de Jo ão M ira m a r e Serafim Po nte G rande, as experiências


: j de Tutameia, d e G u im arães Ro sa, que, em seus prefácios,
í cria uma relaç ão in stig an te entre a narrativa breve e o
■V punch m etafísico d o “ c h iste ” , o u as minicrô nicas de Carlos
% Drummond d e A nd rad e e d e Clarice Lispector, que tran-
sitam entre jo rn alism o e ficção , e aind a os fragmentos de
Zulmira Tav ares, e m O m and ril (1988), o u os minicontos
fj de Marina C o lasanti em Co nto s de am o r rasgado (1986). Em
í Grogotó!, d e 2000, liv ro d e estreia do mineiro Evandro
i Affonso Ferreira, o s c o n to s são pílulas de bom humor e
' densas am o stras d e u m a ling u ag em popular com toda a
; argúcia nela em b u tid a, d ialo g and o , sem constrangimentos,
com a ling uag em d e G u im arães Rosa. Para alguns escrito­
res, o m inico nto ap arec e na trad ição do poema em prosa,
I ? como, po r exem p lo , se ev id encia na poeticidade do livro
j Trouxa fro uxa (2000), d e V ilm a A rêas:

! 0 outono estend eu uma capa de toureiro sobre o muro.


Ainda flutua ao sol.
D entro d o cre p ú s cu l o , so p ran d o p ara longe as folhas de

vidro d a v aran d a. A s s o m b ras cre s ce n d o m acias e quentes


com o as cin z as n a l are i ra. A s cab e ças estâo jun tas e a pági-

| na b rilha so b a lu z . N a v o z , o caro ço de u m a cereja passada


boca a b o ca, m o l h ad a d e sal iv a, e q u e b ate nos dentes com o

um teclad o m u s ical , (p. 78 )


Na última d écad a, esta fo rm a g an h o u ad ep to s, com0
Nuno Ramos em 0 pão do co rv o (2001), Pó lita Gonçalves em
Pérolas no decote (2000) e em C aligrafias (2004), de A driana
Lisboa. Neste últim o liv ro , o e sfo rç o p o étic o visa a criar
imagens de co nd ensação em q u e u m sen tid o fragmentado
é recuperado po r um a v o ntad e d e resg ate e red enção .

Quintal

Cinco m inutos de ch u v a. N in g u é m ti ro u as ro u p as do va­

ral. D uas co lch as b ran cas, u m a to a l h a d e b a n h o cor-de-rosa,

U m sh ort e u m a cam is e ta d e cri a n ça . U m a ca l ça e u m par

de m eias. A h aste d o m e io o s cil a p a ra u m l ad o , p ara o ou­

tro . O sol v o lto u a b rilh ar e as p a l m e i ra s p ro j e ta m sombras

aveludadas sob re a g ram a b ri l h a n te . O m u ro e s tá sujo de

te rra n a p arte m ais b aixa. U m a p il h a d e tij o l o s e três esta­

cas de m ad eira o n d e cre s ce m o s p e p i n o s . A s co l ch as bran­

cas cintilam , n o v aral, e o v e rã o n a s ce n a v o z d as cigarras.

(p. 68)

Encontramos tam bém exem p lo s d este tip o d e texto no


bestiário de W ilso n Bueno , em Ja rd im z o o ló gico , o u no livro
biográfico de Rodrigo N aves, 0 f ila nt ro p o , q ue fo rma um
co njunto de retrato s ficcio nais, e x p eriên c ias em que o mi-
niconto se integra de m o d o c o eren te a u m a totalidade es­
tilhaçada.
Em vez dessa ap ro xim ação ao p o em a em pro sa, perce-
be-se, entre os co ntem p o râneo s, a in flu ên c ia contínua da
prosa po ética de D alto n Trev isan, in ic iad a na década de
1950 e que entra no no vo sécu lo c h e ia d e v ig o r e criativi­
dade. Depois de mais de trin ta liv ro s, o au to r depurou seu
pro cesso de cond ensação e su b tração , retrab alhand o obstf
sivamente o m aterial de liv ro s an terio res — culm ina^0
no s livros recentes D ino rá (1994), A h, e? (1994) e 23 4 (l^
A rara bêbada (2004) e M aníaco d e o lhos v erdes (2008) —» c3<*‘

96
vez em estilo m ais enxu to e d epurad o para extrair o máxi­
mo de unid ad es m ínim as, cham ad as po r ele de haicais. No
prólogo de 1974, ano em que publico u o livro que marca
uma virad a em sua o b ra, 0 pássaro de cinco asas, o próprio
Dalton id entifico u o p ro cesso que, a partir desse momen­
to, passou a m o b iliz ar sua escrita:

Para e s cre v e r o m e n o r d o s co n to s a v id a inteira é curta.

N unca te rm in o u m a h is tó ria. C ad a v ez q ue a releio eu a re­

escrevo (e, s e g u n d o o s crítico s , p ara pior). H á o preconcei­

to de q ue d e p o is d o co n to v o cê d eve escrev er novela e afi­


nal ro m an ce . M eu ca m i n h o s e rá o d o co n to para o soneto

e dele p ara o h aicai . (A pud W ad m an , 1 9 9 9 , p. 94)

Ao invés d e p artir d o frag m ento e da fo rma breve para


estendê-la no p ro cesso d a escrita, em direção às formas
mais lo ngas e c o m p lexas, o pro cesso se inverte na obra de
Dalton, num a c o n stan te red ução em direção ao núcleo poé­
tico. O haicai em p ro sa d e D alto n valoriza a concisão mini­
malista e a o b jetiv id ad e d esafetad a, em cenas simples e
profanas do cenário sem p re suburbano , no ambiente pro­
vinciano das b aixas p aixõ es, d o crim e, da violência e do
amor banal. O c in ism o m isó g ino é fundamental para o seu
tipo de hum o r, q ue se enlaça fo rmid avelmente ao conteú­
do vulgar e m elo d ram átic o d e no v ela, matéria-prima de
sua alta cap acid ad e estilística.

Sem f ô lego , d e s can s a. Fu m a u m cig arro , delicado. Já é ma­

nhã. Ped ala d e v ag ar p ara a cas a d a m ãe. U m a garoa fina.

Repete o caf é , trê s p ãe s , ca ta as m ig alhas: “Puxa, que fo­


me.” Exau sto , d e s m ai a n a cam a. D e tard ezin ha, dorm e ain­

da, ch eg am o s tiras . N a d e le g acia b ate a cab eça na parede:

“•••eu am av a, sim ... e l a m e traiu ... só fiz p or am or...”. (1997,


P- 99)
Literatura marginal

No mercado brasileiro , surgiu, no s ú ltim o s ano s, um outro


fenômeno que, em intenso d iálo go c o m as no v as formas de
realismo, coloca o co ntato co m a realid ad e atu al brasileira
como foco principal. Trata-se, aq ui, d e u m a literatura que,
sem abrir mão da verve co m ercial, p ro cu ra refletir os as­
pectos mais inumanos e m arg inaliz ad o s d a realid ad e social
brasileira. A primeira safra d e texto s m arg inais se deu em
2001 com o sucesso extrao rd inário e surp reend ente do re­
lato carcerário Estação C aranáiru, d o m é d ic o Drauzio Va-
rella, que, ajudado pela ad ap tação d o liv ro p ara o cinema,
assinada por Hector Babenco , cheg o u a v end er mais de 400
mil exemplares. O reflexo im ed iato fo i u m a o nd a de ro­
mances, biografias e relato s d iv erso s so b re a realid ad e mar­
ginal brasileira do crim e, das p risõ es e d as periferias mais
atrozes, como o ro m ance au to b io g ráfic o M em ó rias de um

sobrevivente (2001), best seller d e Luiz A lb erto Mendes, se


guido, recentemente, pelo v o lu m e d e co n to s Tesão e prazer

(2004). Criou-se, assim, um neo ão cum ent aris m o popular, ba­


seado na prosa testem unhal, au to b io g ráfica e confessional,
muitas vezes dando voz a so brev iv entes d o s inferno s insti­
tucionais do Brasil, e que se estab elece n a z o na cinza entre
ficção e d o cumentarismo , cap az d e co n q u istar uma fatia
significativa do novo m ercad o ed ito rial. Títu lo s como Sobre­
vivente A ndré do Rap (o rganizad o p o r Bru no Z eni), Diário de

um detento (Jocenir), Pavilhão 9 - P aixão e m o rt e no Caranáim

(Hosmany Ramos), a co letânea d e esc rito s debutantes de


presos, Letras de liberdade, o rg aniz ad a p o r Fernand o Bonassi.
e a coletânea Literatura m arginal - Talento s da escrita perifénCÚ'

organizada por Ferrez, rev elaram u m fascínio em torno à


vozes marginais, de uma realid ad e excluíd a, que agora ex>

98
ge seu espaço tam b ém na ficção . Exemplo disso é o último
romance de Ferrez, M anual prático áo ódio, de 2003, e o seu
livro de co nto s N inguém é ino cente em São Paulo, de 2006. Em
alguns casos, esta sed e d e realid ad e se reflete em biografias
históricas e rep o rtag ens jo rnalísticas sem nenhuma inova­
ção literária, co m o o recente livro de Caco Barcellos, Abusa­
do, sobre o traficante M arcinho VP, a biografia de um trafi­
cante da classe m éd ia cario ca, M eu nome não é Johnny, e, o
mais recente sucesso d e vend as, a autobiografia da garota
de pro grama Bru na Su rfistinha, O doce veneno do escorpião

(2005). Um a av aliação c riterio sa desses títulos mostraria


que, na m aio ria d o s caso s, apenas se trata de uma recicla­
gem do d o cu m entarism o trad icio nal com importância lite­
rária mínima. Rem etem ap enas a um hibridismo de lingua­
gens jo rnalísticas e p seud o literárias em busca do mercado
crescente da N ão ficção do cum entária. Entretanto, é por esse
caminho que a cham ad a “ cultura da periferia’' começou a
se impor so bre a literatu ra, apelando ao lado fortemente
mercadológico e, sim ultaneam ente, ao esforço genuíno de
encontrar um a no v a ad eq uação entre a realidade social
brasileira e no v as ling uag ens expressivas. Ao mesmo tem-
po, podemos reg istrar um a exploração , aberta por parte da
mídia, das vo zes d a p eriferia, po r exemplo, no sucesso do
programa C entral da p eriferia, so b a regência de Regina Casé,
com um im p acto d e po pularid ad e que leva até intelectuais
sérios a reco nhecê-lo co m o representação efetiva da reali­
dade periférica.
No site do p ro g ram a da Rede Globo na Internet, o antro-
pólogo Hermano V ianna ap resenta a plataforma do progra­
ma com as seg uintes palavras:

Não te n h o d ú v id a n e n h u m a : a n o v id ad e m ais im p o rtante


d a c u ltu ra b r a s ile ir a n a ú ltim a d é c ad a fo i o ap arecim ento
da voz direta da p erif eria f al an d o al to e m to d o s os lugares

do país. A periferia se can so u d e e s p e ra r a oportunidade


que nunca chegava, e q ue v iria d e f o ra, d o ce n tro . A perife­

ria não precisa m ais de in te rm e d iário s (aq u el es que sem­

pre falavam em seu n o m e) p ara e s ta b e l e ce r co n exõ e s com

o resto do Brasil e co m o re s to d o m u n d o . A n te s , os políti­

cos diziam: “V amos lev ar cu l tu ra p a ra a f av e l a.” A gora é di­

ferente: a favela resp o n de: “ Q u alé, m an é ? ! O q u e não falta

aqui é cultura! O lha só o q u e o m u n d o te m a ap ren d e r com

a gente!”

É difícil enco ntrar esq u iz o frenia m ais só lid a que essa


defesa da “voz d ireta”, sem “in term ed iaç ão ”, na apresenta­
ção de um programa da Rede Glo bo . M as, p o r um golpe de
absurdo, essa é a exata exp ressão d e u m co nflito que nào
tem solução, já que a inco rp o ração m ercad o ló g ica dessa i
produção marginal, a p artir d o s sucesso s no mercado edi-;
torial e no cinema de C idade de D eus , Est ação Carandin e,j
mais recentemente, Tro pa de elite, p arece ser inevitável e
acaba impondo uma co nd ição co m a q u al as próprias ini­
ciativas periféricas têm de lid ar e aceitar, um a vez que isso
significa sua possibilidade d e so b rev iv ência num contexto
cultural altamente perverso.
Percebe-se, então, uma ling u ag em em texto e imagem
que incorpora a crueza da realid ad e p eriférica, num a re­
presentação midiática pasteurizad a q u e d ilui qualquer
blema de conteúdo e do “ co m o ” d ar visibilid ad e a esse tip°
de questão. Já não parece hav er nenhu m a d iferença decisi
va entre as versões esp etaculares e as tentativ as genuína
de expressar a pro blemática so cial, entre produtos metf*
dológicos e d epoimentos e testem unho s literário s verdade
ros. Muitas vezes, isso aparece no s m esm o s contextos e $
dentro das mesmas obras, co m o aco ntece na coletânea
nas da favela, de Nelson de Oliveira (2007), o u Contos

100
de Rinaldo de Fernand es (2006). Aqui, fica claro que já não
; é mais po ssível av aliar o eng ajam ento ou o compromisso
1 com a realid ad e p ela o p ção tem ática e nem pelos conteú­
dos esco lhido s, um a vez que a realidade marginal e perifé­
rica foi há m u ito inco rp o rad a pelo d esejo espetacular, pela
linguagem m elo d ram ática e sentimental, e pela aceitação,
i por parte da crítica, d e um a linguagem neorrealista sim-
pies, que se cano niz o u e ago ra se reproduz dentro do do-
cumentarismo, d o cinem a e da prosa ficcional mainstream.

Apesar do sucesso co m ercial d essa crueldade digerível, que


se prolifera no m ercad o — dos livros de Marçal Aquino aos
filmes de Karim A ino uz, o u nas produções globais mais
avançadas, do Fantást ico à C idade dos homens —, ainda há
quem d efend a um a aura d e seried ade artística em tomo da
questão que p arece g ratu ita e oportunista, se comparada
com pro duções que vêm pro po nd o outras matrizes e novos
valores para a p ró p ria criação literária e artística, rtnetm-
do o desafio d e enco ntrar exp eriências formais adequadas
a esse co nteúd o , lançand o inclusive um olhar incisivo e cri­
tico sobre as ling uag ens co stum eiras da midia e do merca­
do. É claro que não se deve co nfund ir essa exploração de
mercado co m a real ap arição de uma literatura testemu­
nhal, escrita p o r p esso as no rm alm ente excUndas do meio
literário — crim ino so s, pro stitutas, meninos de rua. presos
e ex-presos — , o u p o r pesso as que desenvolveram traba­
lhos em áreas so cialm ente marginalizadas do país. Ainda
que se beneficie da m esm a popularidade para dbnr espaço
no mercado, trata-se. aqui. de uma produção que rcf.^re o
desafio estético d e um a “d emand a do real”, extrapolando
a vero ssimilhança d o cum entária e representativa em fa-
Vor de um realismo indiciai. Nessa literatura, verifica-se uma
ambiçào de trazer, para d entro de sua expressão, a realida-
de denunciada em form a de ev id ên cia te s te m u n h a l (depoi
mentos, fotos, materiais co n creto s e tc.) o u d e u m realismo
perform ativo que se realiza em situ a çõ e s d e p ro d u ção e re­
cepção comunitárias, com o u m a p a rte d a p ro d u çã o artísti­
ca, literária e dramática de p ro jeto s c o m o A froReggae, Nos
do Morro e o corpo de D ança de M aré, e n tr e m u ito s outros.
Em termos de conteúdo e dos p ro b le m a s tra ta d o s, nao há
como distinguir essas iniciativas das p ro d u çõ e s comerciáis,
A diferença principal se dá p elo fa to d e p ro p o re m proces­
sos de criação que envolvem fo rm a s c o le tiv a s de autoria,
como, por exemplo, nos livros o rg a n iz a d o s p o r Fernando
Bonassi, a partir de oficinas lite rá ria s n o s c á rc e re s paulis­
tas, mas também na co lab oração e n tr e B ru n o Zeni e Sobre­
vivente A ndré do R ap (2002), n o p r im e ir o liv ro escrito por
Ferrez, Capão pe ca do (2000), in clu in d o e s c r ita s misceláneas
de cartas, músicas e depo im en tos d e a m ig o s e vizinhos, ou
no livro Cabeça de po rc o (2 0 0 5 ), e s c r ito a seis m ão s pelos
seus três autores: Celso A thayde, MV Bill e Luis Eduardo
Soares. A diferença, en tretan to , n ã o se re d u z às experiên­
cias autorais; também podem os id e n tific a r u m a relação di­
versa e, muitas vezes, am bígua c o m o m e r c a d o comercial
e, principalmente, com os g ran d es v e ícu lo s de comunica­
ção, como se deu, por exem p lo , n a d esin ib id a divulgação
comercial e no aproveitam ento telev isiv o d o p ro jeto Falcão
- os meninos do tráfico (2006), de Celso A th ay d e e de MV Bill,
veiculado pela Rede Globo, a o m e s m o te m p o que muitos
desses projetos não ab rem m ã o de u m a in sistê n cia na pro­
cura de uma outra linguagem te x tu a l e v isu al.
Também o êxito com ercial do d o c u m e n ta r ism o no mer
cado atual possibilitou u m a p ro life ra çã o v a ria d a de livros,
e, refletindo tal sucesso m e rca d o ló g ico , v im o s a emerge0
cia de um engajam ento na realidade m a is im e d ia ta , sem rafl
lítico -partidário, e m que o im pacto estético, às vezes,
'sustentado n a p ro d u çã o participativa, na experimentação
com linguagens e x p re ssiv a s próprias, na realização perfor-
mativa e na r e c e p ç ã o c o m u n itá ria e institucional com con-
sequências so ciais e ed u ca cio n a is estendidas. É no interior
desse tipo de e x p e r iê n c ia que o privilégio do testemunho
documentário se d isso lv e e m p ráticas que redefinem as
fronteiras ríg idas e n tr e p ro d u ção , expressão, performance e
recepção artística e lite rá ria . Nesta redefinição, os concei­
tos antigos de “o b r a ” e de “au to ria” tomam-se mais poro­
sos na m edida e m q u e o diálogo participativo entre pes­
quisadores, e s c r ito re s , ativ istas comunitários e o público
envolvido se ab re e m d ire ç ã o a form as de participação, rea­
lização e re c e p çã o c o le tiv a , m a s é também nessa perspecti­
va que a solitária c r ia ç ã o literá ria enfrenta novos desafios
que vêm estim u la n d o o diálogo com as experiências mo­
dernistas, n a te n ta tiv a de transgred ir as fronteiras de gê­
nero rígidas e n tre fic ç ã o e n ão ficção.
Capítulo 3
0sujeito em c en a

Vencedor dos p ré m io s Ja b u ti e Portugal Telecom de 2008,


o autor ca ta rin e n se C risto v ã o Tezza foi o escritor mais fes­
tejado do an o. D ep o is d e u m a longa trajetória com uma
dezena de liv ro s p u b lica d o s, en tre eles outros romances
premiados, c o m o B r e v e e s p a ç o en tre cor e sombra (1998), 0 fo­
tógrafo (2004) e T r a p o (1 9 8 8 ), de repente, Tezza viu seu lu­
gar consolidado c o m o liv ro O fiJh o eterno (2007). Aparente­
mente, o su cesso fo i ta n to de crítica quanto de público, o
que por si só j á o f e re c e m o tiv o s para se discutir de que ma­
neira um livro a c e r t a n u m a veia das expectativas contem­
porâneas, c o m o u m g o lp e ce rte iro no espírito do tempo. Se
o termo “liv ro ” in d ic a , e m p rim eiro lugar, que estamos li­
dando com u m a o b ra de difícil denominação, pois 0 filho
eterno não é u m r o m a n c e n o sentido clássico, já que traba­
lha ex clu siv am en te c o m m a te ria l autobiográfico, mas sem
se entregar à fa cilid a d e do gên ero , o leitor que ali busca
uma verdad eira a u to b io g ra fia tam bém vai sair frustrado.
Sendo um re la to b a se a d o n a experiência real de ser pai e
criar um filho c o m a sín d ro m e de Down, o livro poderia
levar o leitor a o e n g a n o de se tra ta r de mais uma publica*
Ção de a u to a ju d a , ta m b é m u m erro, pois não oferece ne­
nhuma in te n çã o p e d a g ó g ica o u t êfãpêutica, nem há nele o
desejo de e n sin a r a o le ito r co m o se lida com a complexida­
de dessa q u estão , e m b o r a o livro e x ib a jjbviamente, sabe-
d°ria. É u m a f ic çã o ? S im e n ão , é um a ficção que se apro­
pria da e x p e riê n cia d e v id a, u m a escrita que utiliza a ficção
? Para p enetrar n o q u e a c o n te ce u num a história que se cons-
W i en qu an to r e l a t o m o tiv a d o pelo desafio de vida que
essa experiência impõe. Nesse sen tid o, h á u m a dimensào
ética na proposta de escrita, u m a e n c e n a ç ã o do “eu ” dian-
Te dessa realidade, que ganha u m a a m p litu d e e perspectiva
dêTéffãfÕ^êgêrãçâo, na medida e m q u e m o tiv a um resga-
te de vários momentos da ju ven tu d e do n a rra d o r, acompa-
nhando os sonhos e as ambições de q u em tin h a apenas vin­
te e poucos anos na década de 1 9 7 0 e q u e sofreu , aos 28
anos, o golpe brusco da chegada de u m filh o excepcional,
como a interrupção de um a c e rta v isão e p o s tu ra diante do
mundo. Portanto, ver aí apenas a e x p re s sã o de u m a prefe­
rência pela escrita autobiográfica e b io g rá fica seria dema­
siado simples, pois a experiência p e sso a l n e ss e livro não é
armada como introspecção, n em p ro fu n d id ad e psicológica.
Há um aspecto confessional n o re la to , a ssu m in d o a vergo­
nha de certas reações próprias d ian te d o p ro b le m a , expres­
sas, por exemplo, no desejo pela m o rte p re m a tu ra do filho;
mas Tezza evita a cilada da auto e o m p la cê n c ia e n ão se põe
a formular moralismos rasos p a ra o leito r. T am b ém há, no
livro, traços de memorialismo, m as o q u e p a re c e ser mais
importante para o autor é con seg uir, p o r m e io da ficção,
estabelecer uma relação de a c o n te cim e n to s m u ito mais su­
til, tecendo uma certa lógica n ão ca u sa l de aprendizagem
de vida. Para ser um livro sobre o filh o , fa la p o u co dele e
não dramatiza as posturas de pai e filh o , n e m resvala para
a discussão do problema en qu an to p ro b le m a social de in­
tegração e cuidado. Em vez disso, p od e-se lê-lo com o a for­
mação de outra postura do p róprio au to r, do processo árido
do desencanto à aceitação am o ro sa d esse com p rom isso.
Na crítica contemporânea, fala-se m u ito de u m “retorno
do autor”, e há claramente, na lite ra tu ra e n a própria críti­
ca contemporânea, uma acen tu ad a te n d ê n cia em revalofl*
zar a experiência pessoal e sensível c o m o filtro de cofl1
reensão do real. N esse m e s m o m ovim ento, são revaloriza­
das as estratégias a u to b io g rá fica s, talvez com o recursos de
acesso mais a u tê n tic o a o re a l e m m eio a um a realidade em
que as explicações e re p re s e n ta çõ e s estão sob forte suspei­
ta Nessa ren ov ada a p o s ta n a tá tica da autobiografia, dilui-
se a dicotom ia tra d ic io n a l e n tr e ficçã o e não ficção, e a
ficrionalização do m a te r ia l vivido tom a-se um recurso de
extração de u m a c e r ta v e rd a d e que o docum entarismo não
consegue lo g rar e q u e n ã o re sid e n um a nova objetividade
do fato co n tin g en te, m a s n a m a n e ira com o o real é rendido
pela escrita. Todavia, n o m o m e n to em que se aceita e se as­
sume a ficcio nalização d a e x p e riê n cia autobiográfica, abre-
se mão de u m c o m p ro m is so im p lícito do gênero, a sinceri­
dade con fessional, e lo g o a au tob io grafia se converte em
autobiografia fictícia , e m ro m a n c e autobiográfico, ou sim­
plesmente em a u to fic çã o , n a qual a m atéria autobiográfica
fica de certo m o d o p re s e rv a d a sob a cam ada do fazer ficcio­
nal e, sim u lta n e a m e n te , se a tre v e a um a intervenção na
organização do fic cio n a l, e m u m apagam ento consciente
dessa fron teira . É c la r o q u e a au to ficção pode acarretar
consequências d ife re n te s. E m alguns casos, a finalidade da
escrita a p a rtir de m a té r ia p essoal n em sequer pode ser
considerada au to b io g rá fica , co m o por exemplo no roman­
ce 0 segundo te m p o (2 0 0 6 ), de M ichel Laub, ou nos contos
Duas tardes (2 0 0 2 ), de Jo ã o A nzanello Carrascoza, e Galüeia,
0 primeiro ro m a n ce de Ro nald o Correia de Brito, de 2008,
no$ quais se p e rce b e u m ce n á rio de experiência autobio­
gráfica, pano d e fu n d o das h istó rias, visando a dar mais
consistência e d en sid ad e à ficção. Depois de três livros de
contos — As n o ites e o s d ia s (1 9 9 6 ), Livro dos homens e Faca
(2003) — t R o nald o C o rre ia de Brito lançou G alileia, cuja
história do r e e n c o n tr o de trê s prim os no aniversário do
p atriarca da fam ília, na la /.e n d a (« a lile ia , (* situ ad a j1()

tilo do Ceará, ab so rv id a e m s u a r e a l i d a d e p e la e scrita |jv.

da ficção. Ou, to m o o p ró p r io a u t o r e x p r e s s a : “ |'ara Crj.

m in ha licçao preciso , a n te s , e s t a b e l e c e r u m a paisagem j

teiram en te real, cujas r e f e r e n c ia s e u c o n h e ç a . íi cpie eu tT1(1

situo d en tro d aqu ele m u n d o t o t a l m e n t e r e a l .”:‘ No caso d«

au lolicçao , a relação é in v e rtid a . O m i o l o d o re a l é o sujei­

to, e a licçao serve p a ra u m a e s p é c i e d e e n c e n a ç ã o de si

com a finalidade de s e m e a r d ú v id a a r e s p e i t o da sincerida-

de enunciativa do " e u ” n a r r a t i v o , c o m o o c o r r e , por exem­

plo, no ro m an ce de S ilv ia n o S a n t i a g o , O f a l s o m en tiro so. Mc-

m órius (2004), em q ue o n a r r a d o r e m p r i m e i r a pessoa conta

a vida de Sam uel C a r n e ir o d e S o u z a , u m s u je ito de história

in certa, cu jas id e n tid a d e s s e m u l t i p l i c a m , u m a delas in­

clusive, por m u ito in v e r o s s ím il q u e p o s s a p a re c e r, nasce

em Kormiga, no e s ta d o d e M in a s G e r a is , e m 1 9 3 6 , filho de

Sebastião S an tiag o e N o e m ia 1’a r n e s e S a n tia g o . Brincando

com o jo g o de e sp e lh o s e n t r e o e u q u e fa la e o “e u ” falado,

e n tre o su jeito q u e d á o r i g e m a o t e x t o e a q u e le que surge

co m o efeito n o d is c u r s o , e n t r e u m o r i g i n a l e u m a cópia,

num tem p o e m q u e se c o n f u n d e a c ó p i a d o o rig in al como

original da có p ia , S a n tia g o c e t i c a m e n t e v a i d e encontroà

co n fian ça em u m n o v o c o n f e s s i o n a l i s m o , desconstruindo

as identidades d iscu rsiv a s e s u g e r i n d o q u e to d a sinceridade

(' suspeita e q u e o s u je ito só s e e x p r e s s a d e v e r d a d e quando

m en te. No ro m a n c e d e S a n t i a g o , o a u t o r jo g a c o m os indi­

ces a u to b io g r á fic o s , c o m o , p o r e x e m p l o , a fotografia iw

cap a que é d e le m e s m o q u a n d o b e b ê . M a s a brincado»'1

está na c o n tr a m ã o d a t e n d ê n c i a , v e r i f i c a d a e m o u tro s esc"’

to res, de d a r u m n o v o v a l o r á e x p e r i ê n c i a p ró p ria e Pc>rI111

T a l a r <>m m o r t e (>l a l a r Unha.


d a v id a " , O C 1 " d e n o v e m b r o i k ’ 2Ü° 8'
tirqiie a e sfe ra a u to b io g r á f ic a tra n sp a re ça na escrita, tiran­
do proveito d o s in te r e s s e s d e vr/yeur do leitor, por meio des­
sa e n cen ação d a in tim id a d e m a is flagrante. É importante
acentuar q u e e s s e u s o p a r tic u la r da “au to fk ção ” se aproxi­

ma da d e m a n d a d e re a lid a d e , q u e já foi verificada nas dife­


r e n te s ve rsõ e s d e n o v o s re a lis m o s , e que o “eu ” aqui é recu­
p e r a d o pela f ic ç ã o c o m o p a r te d esse real, como lugar de
traumas e c ic a tr iz e s q u e se c o n v e rte m em índices do real.
No ca so d o liv r o d e T e z z a , o co n v ite é aceitar os aconte

cimentos to d o s c o m o v e r d a d e iro s e ap enas sua organização


e elab oração c o m o f ic c io n a l. O livro não chega a questio­

nar a co n fia b ilid a d e d o “e u ” n a rra d o r, e talvez o seu aspec­


to mais tr a d ic io n a l s e ja p r e c is a m e n te o de ainda acreditar

ou ap ostar n o s p r o c e s s o s d e fo rm a çã o subjetiva, quase te­

rapêutica, p e la e s c r it a .
For o u tro la d o , p a r e c e a s u p e ra ç ã o de uma certa censu­

ra con tra u m a l i t e r a t u r a c e n tr a d a na fé de uma integrida­


de c o n fe s sio n a l s u b j e t i v a , q u e se in stala nas décadas de
1950 e 1 9 6 0 c o m a a n u n c i a ç ã o da m o rte do autor e do grau

zero da e s c r ita , m o t e s d o e s tru tu ra lis m o literário cunhados

por Roland B a r th e s . E m s e q u ê n c ia , é a reflexão do mesmo


Barthes so b re a “a u t o f l c ç ã o " , n o livro R oland Barthes por Ro­

land H urlhcs ( 1 9 7 7 ) , q u e vai p e r m itir a introdução do mate­

rial a u to b io g r á fic o , m a s in sis tin d o e m que seja lido como


«ni jogo de f ic ç ã o , c o m o a lg o q u e p erten ce a um persona­
gem de ficção . T o d a s in c e r id a d e é dup lam en te fingida e um
duplo d esafio , c o m o u m a t o r q u e rep resen ta a si mesmo,
loucault vai m a is ta r d e , e m 1 9 8 3 , v e r na escrita-de-si (Fou-
C;i»lt, 2 0 0 4 ) u m c a m i n h o d e c o n h e c im e n to de si e, princi­
palmente, d e d is c ip lin a d e c o rp o , de estilo e postura ética
diante do e s p a ç o p ú b lic o . H o je, a vo lta ao centro autobio-
Wafico n em s e m p r e m a n t é m o m e sm o ceticism o quanto
ao artifício dessa postura e se co n v e rte , às v e z e s, em exibi­
cionismo performático que apela p a ra o la d o m ais espeta-
cularizado da cultura m idiática.
Também em outros rom ances dos ú ltim o s an o s nota-se
a forte presença de traços au to b io g rá fico s, p o r exemplo,
nos dois romances de João G ilberto N oll, B e r k e le y em Bellagio
(2002) e Lorde (2004), em que duas v ia g e n s, u m a à residên­
cia em Bellagio, na Itália, e o u tra a L o n d re s, constitu em a
referencialidade circunstancial q ue u n e a u t o r e narrador,
sem que, por isso, o relato se to m e m a is v ero ssím il, nem
realista. Nos dois casos, o p on to de p a rtid a dos romances
foi a circunstância de sua escrita e u m a r e f e r ê n c ia direta a
essa oportunidade ou obrigação a b e rta p e la econ om ia do
mercado literário e de seus m e c a n ism o s de e stím u lo cria­
tivo. O autor recebe um convite de u m a fu n d a çã o ameri­
cana para passar um tem po n u m a re s id ê n c ia de artistas em
Bellagio, e o ponto de partida p a ra a f ic ç ã o é esse. O nar­
rador se chama João e a p re se n ta to d a s as características
do autor, assim como o n a rra d o r d e L o r d e é u m autor de
Porto Alegre, que visita o King’s C o lleg e, e m Londres, para
ensinar português. A co n tin g ên cia n a q u a l a e scrita do li­
vro se desenvolve converte-se e m c e n á r io d a n arrativa, de
modo que a história do ro m a n ce to rn a -s e ta m b é m a histó­
ria da realização do livro, pelo m e n o s e m seu p o n to de par­
tida, pois logo a ficção d eslan ch a liv r e m e n te e n ã o há mais
nenhum esforço por parte do a u to r e m m a n te r a veros­
similhança dos aco n tecim en to s q u e se s e g u e m . Na obra
de Noll, esse recurso não é novo. N o r o m a n c e Ban doleiros
(1985), o personagem se ch am av a “J o ã o ” e, n o livro de con­
tos A m áq u in a d e ser (2006), u m dos c o n to s te m esse mesflio
título e fala sobre a relação e n tre p e r s o n a e personagem-
“O que diriam dessa versão do m ito e s c r ita a q u atro mãos?
o que diriam d o m e u e m p e n h o na pele de João? Que mais
diriam do e s p e tá c u lo ... h e in ? ” (p. 155). Percebe-se na escri­
ta de Noll u m a d u p lic a ç ã o de identidades, encenadas pela
narrativa, n a q u a l a p ró p r ia fig ura de autor é colocada em
questão n o m e s m o n ív e l de seus artefatos. 0 crítico argen­
tino Reinaldo L a d d a g a a c e n tu a esse traço numa análise de
certos au to res d a lite r a tu r a co n tem p orân ea — Mario Belle-
tin, Cesar A ira, W a s h in g to n C ucu rto , Néstor Perlongher e
João Gilberto N oll — , e n fa tiz a n d o sua estratégia performa-
tiva. Segundo o a r g u m e n to de Laddaga, esses autores são
menos p re o cu p a d o s c o m a p ro d u ção de representações do
que com a ta re f a d e c r i a r “esp etáculos de realidade”, enten­
didos com o c e n á r io s s o b re os quais “se exibem, em condi­
ções estilizadas, o b je to s e processo s dos quais é difícil di­
zer se são n a tu ra is o u artificia is, simulados ou reais” (2007,
p. 14). A p ro p e n sã o d e a u to e n ce n a çã o autoral, a inclusão
de referências e p ista s autobiográficas podem, nesse sen­
tido, ser lidas n ã o a p e n a s co m o sintoma da espetaculari-
zação da fig u ra d o a u to r e das condições de produção do
livro, m as c o m o “d isp o sitiv o s de exibição de fragmentos do
mundo”, que se a p r e s e n ta m de m odo a produzirem pers­
pectivas e ó p tica s s o b re u m p rocesso em movimento, e não
posições su b jetivas d e o b serv ação fixas e objetos concluí­
dos. Ao d e se sta b iliz a r as sólidas posições de autor, perso­
nagem e leitor, e ssa e sp é cie de estratégia performativa con-
Segue re la tiv iz a r a re a lid a d e referid a pela narrativa na
construção de u m p e rsp ectiv ism o complexo que concreti­
za a situação d e e x ib iç ã o e observação, ao questionar a rea­
lidade re p re se n ta d a ta l co m o aparenta espontaneamente.
0 autor p ro cu ra , e m o u tra s palavras, dar realidade à situa-
Çào de o b serv ação , in clu in d o o leitor na exposição direta
dos fatos, ao m e s m o te m p o que questiona o perspectivis-
mo cenográfico ao qual a observação e s tá su b m etid a e qUe
afeta a veracidade e confiabilidade ta n to d o teste m u n h o do
autor, do narrador, do personagem q u a n to d o leitor. Se no
auge do ceticismo pós-moderno a fic çã o d esco n stru ía a rea­
lidade representada, denunciando su a re la tiv id a d e teatral
uma inversão se opera na lite ra tu ra c o n te m p o râ n e a que
concretiza os mecanismos exp ositiv os e p erfo rm á tico s da
experiência, abrindo espaço p ara a re a lid a d e d e seus efei­
tos de verdade. Trata-se, a p a re n te m e n te , d e u m desloca­
mento leve de perspectiva em que o a lv o se tran sfo rm a. Se
a ficção antes problematizava o e s p e tá c u lo , d a n d o reali­
dade ao “palco” e ao cenário, h o je, t a n to u m q u a n to outro
é desacreditado em favor da h e s ita ç ã o a m b íg u a entre os
dois e de sua realidade, do efe ito s im u ltâ n e o de irrealiza-
ção e realização, que m an tém a p r o b le m a tiz a ç ã o dos artifí­
cios da representação, m as a p o n ta p a r a e fe ito s de afeto,
além dos cognitivos e racionais. Esse m o v im e n to se dá, por
exemplo, na relação entre d o c u m e n to e f ic ç ã o e n a inclu­
são de fatos reais na co n strução d o u n iv e rs o ficcio n a l que,
da perspectiva de certos au to res, tr a b a lh a c o m o índice de
uma realidade que acaba co m p ro m e te n d o a fic çã o , e não o
contrário. Isso acontece, p or e x e m p lo , n o r o m a n c e Mongó­
lia (2003), de Bernardo Carvalh o, re s u lta d o d e u m a bolsa
oferecida pela Fundação O rien te, d e L isb o a, e m colabora­
ção com a Editora Cotovia, c o m a fin a lid a d e d e realizar
uma viagem à Mongólia e e scre v e r s o b re a e x p e riê n cia do
autor-viajante. A bolsa que levo u B e rn a rd o C a rv a lh o a via­
jar, e que assim condiciona a e x p o s iç ã o d o c e n á r io narrati­
vo, se tom a, para o escritor, u m p r e t e x t o p a r a elab o rar um
relato de viagem de alguém que n ã o v ia ja . A o le r a notícia
do assassinato de um colega, n o m o m e n to d a en trega do
resgate para libertar seu filho de u m s e q u e s tr o , num a fr
vela carioca, u m d ip lo m a ta aposentado se lembra de um
manuscrito q u e lh e fo i d eixado pelo morto, uma espécie
de diário de su a v ia g e m p a ra en co ntrar um jovem fotógra­
fo desaparecido n o s co n fin s da Mongólia, no ano anterior,
por m eio de u m a in trin c a d a com binação de documentos e
vozes, a e s tru tu ra d o ro m a n ce se ancora na leitura comen­
tada do d iário d o d ip lo m a ta e dos diários incompletos do
desaparecido. O r o m a n c e con seg ue atrelar um relato de
viagem a u m a f ic ç ã o tra m a d a p or várias fontes e manus­
critos, re p re s e n ta n d o ca m a d a s superpostas de representa­
ções que se c o n fu n d e m c o m a realidade. Sem entrar numa
análise p ro p ria m e n te d ita do ro m ance, interessa sublinhar
que esse m e c a n is m o e s tá se to m an d o bastante comum no
Brasil, p o r e x e m p lo , a tra v é s do projeto Amores Expressos,
que convida a u to r e s a re a liz a r viagens a lugares exóticos
ou não tã o e x ó tic o s e a ssu m ire m o compromisso de man­
ter um b lo g d a e x p e r iê n c ia e escrever um livro de ficção —
uma h istó ria d e a m o r n o ce n á rio da viagem.4 Percebem-se,
assim, duas e s tr a té g ia s convivendo no contexto literário
brasileiro a tu a l, q u e aq u i se com plem entam . Por um lado,
o surgim ento d e d iv e rsa s propostas de livros escritos sob
encom enda, p o r m e io d e b olsas, residências, concursos,
viagens ou sé rie s te m á tic a s de livros com condições de fi­
nanciam ento m a is in te re ss a n te s para autores reconheci­
dos, m as ta m b é m , c a d a v ez m ais, para iniciantes. 0 desa­
fio colocado p o r e sse tip o de prop osta pode ser estimulante

4 “Todos ele s r e c e b e r a m a m e s m a m issão: escrever um a história de


amor a m b ie n ta d a e m u m a c id a d e ao r ed o r do planeta, como Paris,
Cairo, T óquio e H a v a n a . E m c a d a u m a dessas cidades-destino, os es­
critores f ic a rã o p o r u m m ê s p e sq u isa n d o e desenvolvendo a ideia do
seu ro m a n c e .” h ttp ://w w w .a m o resex p resso s.co m .b r/_h tm l/au to res/
autor.cecilia. p h p .
e produtivo para os escritores, co m o se m d úvida aconteceu
nos casos citados, mas não em o u tro s caso s. Entretanto, é
necessário lembrar que não se tra ta p ro p ria m e n te de uma
inovação, pois em casos an terio res, c o m o n o livro de con­
tos de Silviano Santiago, K eith J a r r e t t n o B lu e N ote , de 1995
0 narrador também era um p ro fe sso r v is ita n te brasileiro
na Universidade de Yale, n u m a situ a ç ã o ig u al à do autor,
não tendo esse fato, porém , d e sp e rta d o ta n to interesse na-
quele momento.
Por outro lado, vemos algun s e s c r ito r e s trazen d o , para
dentro de suas ficções, as co n d içõ es fa c tu a is de criação, ou
0 material nitidamente au to b io g ráfico q u e a envolve, tiran­
do proveito da tensão en tre 0 p la n o re f e r e n c ia l e 0 plano
ficcional, ora para confundir os lim ite s e n tr e essas instân­
cias, ora, como parece ser a te n d ê n cia q u e p rev alece, para
inserir índices de um real o rig in á rio n a e x p e riê n c ia íntima
que ancore a ficção de m an eira m a is c o m p ro m e tid a .
Não se deve ver na p op ularid ad e d a au to b io g rafia e da
inserção de referências su b jetiv as n a f ic ç ã o apenas uma
volta à introspecção psicológica e m o p o s iç ã o aos escritores
comprometidos com d ife re n te s f o rm a s exp e rim e n ta is do
realismo. É mais in teressan te n o ta r q u e e x is te algo subja­
cente aproximando essas duas e s tr a té g ia s e s té tic a s aparen­
temente tão diversas. Segundo M ark S e lz e r (1 9 9 8 ), vivemos
sob 0 impacto de um a “cu ltu ra d a fe r id a ”, q u e se evidencia
numa espécie de inversão da e s fe ra p ú b lica , e m que a inti­
midade privada é exposta c o m o o i n te r io r d e u m casaco vi­
rado, exibida e vivida e m p ú b lico n u m c o n s ta n te curto-
circuito entre 0 individual e a m u ltid ã o . T ra ta-se de uni
voyeurismo espectacu lar q ue se n u tr e d o fa scín io da expo­
sição de atrocidades grand es e p e q u e n a s , d e u m a patólogo
zação da esfera pública que e m p a tic a m e n te é compartiU13'
da em to m o de fe rid as trau m áticas; sofrimentos que, de al­
guma m an eira, se co letiv izam , pois aglutinam e envolvem
em ocionalm ente, n u m te m p o em que o embrutecimento
e a indiferença p a r e c e m atin g ir a esfera privada e a vivên­
cia particular. A s co n seq u ên cias psicossociais dessa explo­
ração m id iática d a v io lê n cia são notáveis e produzem uma
ambiguidade q u e a m e a ç a as fronteiras sólidas entre as for­
mas coletivas da re p re s e n ta çã o , exposição e testemunho e
a singularidade o u a privacidad e do sujeito. A compreen­
são do tra u m a é in se p a rá v e l da confusão entre o psíquico
e o social, e n tr e o e x te r io r (o mundo) e o interior (o sujei­
to), o que c ria u m a e sfe ra pública patologizada em que o
sofrimento é c o le tiv o , e a intim idade é conquistada por
meio da sua e x p o s içã o .
0 im p acto de u m a cu ltu ra traumática é entendido por
Selzer na sua d ife re n ç a em relação à cultura moderna do
choque, an alisad a p o r Bau delaire no século XIX e Benjamin
no século XX. Se o ch o q u e era um impacto exterior sobre o
sujeito, d e te rm in a d o pelas drásticas transformações da mo­
dernidade, a c u ltu r a tra u m á tica é uma cultura de interio-
rização do im p a c to , e m que fica difícil discernir o exterior
e o interior, a p e rc e p ç ã o e a fantasia, o físico e o psíquico e.
até m esm o , a c a u s a e o efeito. É claro que Selzer pensa
a cultura de m a n e ir a p ara lela aos diagnósticos mais radi­
cais da realid ad e co n te m p o râ n e a , dialogando com teóricos
como Hal F o ste r e Slavoj Zizek, para os quais o trauma ga­
nhou um se n tid o a le g ó ric o m ais amplo que seu estrito uso
clínico. O tra u m a é , p a ra eles, sinônimo do empobrecimen­
to geral da e x p e riê n c ia h istó rica e, simultaneamente, um
efeito da re p e tiç ã o com p u lsiva dessa perda. A exploração
da violência e d o ch o q u e , ta n to na mídia quanto nas artes,
é entendida c o m o p ro c u ra de um “real”, definido como irn-
possível ou perdido, que não se d e ix a e x p e rim e n ta r a nâo
ser como reflexo, no limite da e x p e r iê n c ia p ró p ria, como
o avesso da cultura e com o aq u ilo q u e só se percebe nas
fissuras da representação e nas a m e a ç a s à estabilid ade sim-
bólica. A análise de Selzer serve, e n tr e ta n to , p a ra entender
também a afinidade in trín seca e n tre u m a e s té tic a que ex­
plora os efeitos de choque d essa re a lid a d e ra d ica l, uma es­
tética da transgressão e do ab je to , e u m a te n d ê n cia que se
posiciona contra a prim eira, c o n tr a a e s té tic a d a crueldade,
reivindicando o cotidiano, o ín tim o , o c o m u m e o privado
como vias para uma vivência r e c o n c ilia d a n o tem p o , mais
viva e mais real. Um exem p lo d isso p o d e s e r encontrado
nos textos do escritor prem iad o Jo ã o A n z a n e llo Carrascoza,
cujo realismo, às vezes co m claras e n to n a ç õ e s autobiográfi­
cas, traz de volta um Brasil so n â m b u lo e p ré-m o d em o , em
tons rurais, revivido e recu p erad o p e la lin g u a g e m melancó­
lica do autor. Ora o passado a p a re ce p e rd id o e distante, ora
se recupera e se redime pelo fe itiço d a e s c r ita , com o, por
exemplo, no último conto da c o le tâ n e a D u a s t a r d e s , intitula­
do “Preto-e-branco”, sobre o avô do n a r r a d o r :

Revivendo-o agora, c o lan d o s u a f i t a à m i n h a e e n ro la n d o - a s


na m esm a b obina, v ejo a c a d a p a la v r a q u e e s c r e v o a tin ta
preta m an ch a r a fo lh a b r a n c a d o p a p e l e s a b o r e i o a alegria
das tardes que vivem os j u n t o s , f a z e n d o c o i s a s t ã o banais,
em preto-e-branco, co m o in s in u a v a t i o J ú li o . M a s , in e s p e ra ­
dam ente, vejo b r o ta r d e ssa s l i n h a s u m i m e n s o a rco -íris. E
ao fim dele sei q ue e s tá m e u a v ô , c o m a b e n g a l a n o braço,
fum ando seu ca ch im b o , à m i n h a e s p e r a , (p. 1 0 7 )

De repente, desaparece o c e tic is m o d ia n te das possibü1'


dades realistas de recriar o passad o e m s u a p len itu d e, e utf
novo memorialismo abre u m c a m in h o o tim is ta , com Pr°
messas de epifania e red en ção.
r 0 m erg u lh o n o c o tid ia n o e nos processos íntimos que
envolvem a fe to s b á sico s d e dor, m edo, melancolia e desejo
aparece, assim , n a lite r a tu r a contem porânea, sem o peso
do estigma q u e a tin g ia a lite ra tu ra existencialista ou psico­
lógica das d é ca d a s d e 1 9 5 0 e 1 9 6 0 , pois agora a intimidade
justifica-se n a e x p lo r a ç ã o dos cam inhos do corpo e da vida
pessoal, de seus re c u r s o s de pre sença e de afirmação criati­
va, de dispositivos p riv ad o s, n u m a cultura massificada, inu­
mana e a lie n a n te . T rata-se de um a hipóstase do comum e
do banal p o r tr á s d a q u a l se esconde um a ilusão da realida­
de verdad eira, lig a d a a o s sentim en tos íntimos que agora
reivindicam p e r tin ê n c ia p úb lica, num a cultura em que o
sentim entalism o v ir o u m atéria-p rim a dos processos simbó­
licos. C h eg am o s a u m a situ ação em que produtos íntimos,
diários, ca rta s o u re la to s au tob iográficos ganham interesse
superior às o b ra s d e a rtis ta s e escritores sérios, principal­
mente se o f e r e c e m d e p o im e n to s de processos vulneráveis
como, p o r e x e m p lo , q u a n d o A driana Calcanhotto, em Saga
íusa (2008), se v ê im p e lid a a re la ta r o surto que sofreu du­
rante u m a t u m ê r e c e n t e e m Portugal. O trauma se tomou
chique, v iro u m a t é r i a c h a r m o s a para os suplementos li­
terários, e s u a a m p la d iv u lg ação traduz uma verdadeira
“traum atofilia”, u m a “an sied ad e de tomar-se vítima”, co­
mo diria o r o m a n c is ta J. Ballard, e assim ganhar mais cre­
dibilidade e a te n ç ã o . F elizm en te, garante um dos jornais
que n o ticia m a c h e g a d a do diário ao público leitor, a can­
tora con segue “f iltr a r a exp eriên cia pela lente do humor”;
muito m ais d o q u e isso , C alcan h o tto consegue publicar um
livro ap en as d ois m e s e s depois do dito surto! Em matéria
na Folha d e S. P a u lo (3 /1 0 /2 0 0 8 ), acrescenta que a “publica­
ção desse tra b a lh o d e ‘a u to a ju d a ’”, de toda forma, tem me-
n°s a v er c o m a v a id a d e de escrever do que com a conclu­
são de seu tratam en to “lite rá rio ”: “N ão te r ia u m a sensaçà0
de total sobrevivência se eu co lo c a s se e s se liv ro na gaveta
É publicando que eu sobrevivo d e f a to ”, d iz ela.
E n tretan to há casos em q ue a in v e rs ã o d o p rivad o e do
público é trabalhada lite ra r ia m e n te d e m a n e i r a q u e nào $6
rom p e com a relação re p re se n ta tiv a , m a s c o n s e g u e dar rea­
lidade à suspensão do lim ite e d a f r o n t e i r a e n tr e o corpo
íntim o e a realidade vivida. N o ú ltim o r o m a n c e de João Gil­
b erto Noll — A cenos e a fa g o s , d e 2 0 0 8 — , o e s c r it o r gaúcho
chega a uma síntese de sua o b ra a n t e r i o r in co rp o ran d o e
conciliando os e x tre m o s de A f ú r i a d o c o r p o (1 9 8 1 ), o ro­
m ance mais b arro co e e x p re ssiv o d o a u to r , c o m seus livros
centrados no esvaziam en to id e n titá r io d e p e rso n a g e n s em
ru m o incerto e ação a le a tó ria , c o m o I í o t e l A t lâ n t ic o (1989) e
Rastos do v erão (1990), e e v id e n cia s u a c o n e x ã o c o m os mais

recentes rom ances — do H a r m a d a ( 1 9 9 3 ) a o A m á q u in a âe


se r (2006) — em que a tra n s g r e s s ã o , a v i a g e m e a encena­

ção autoral, na p e r fo r m a n c e t e a t r a l d o “e u ” n a rra tiv o , pro­


duz uma m etam orfose viv id a n o n ív e l d o c o r p o . E m Acenos
e a fa go s, Noll relata a h istó ria d e u m p e r s o n a g e m , da in­

fância ao en terro , seg u ind o s u a f o r m a ç ã o h o m o e r ó tic a que

envolve personagen s e n ig m á tic o s c o m o o “e n g e n h e iro ”, o

“segurança” e um m iste rio so s u b m a r in o a le m ã o , além da


m u lh er e o filho. Da m a n e ira c a r a c t e r í s t i c a d e N oll, o nar­
rad or é levado n u m a v ia g e m s o l i t á r i a p e l a im p u lsão do
próprio desejo, n um m o v im e n to t r a n s g r e s s i v o que, em­

bora diferen te do re la to d o A f ú r i a d o c o r p o (1 9 8 1 ), e não


levando ao e x tre m o m ís tico n o ê x t a s e e r ó t i c o , acelera as

transform ações das m a rca s id e n titá r ia s d o p e rso n a g e m P°r


cim a do g én ero e do lim ite e n t r e v id a e m o r t e . Reconhece*

se a estru tu ra n a rra tiv a e r r á tic a d e u m “e u ” p o r um a gefr


grafia in certa sem te rr itó r io d e fin id o e d e p o u co s pontos
identificados e n tr e P o rto A legre e Angola, uma subjetivida­
de ilhada (M o rico n i, 1 9 8 7 ), de consciência absorvida pela
visceralidade d e s u a r e la ç ã o co m os corpos que encontra e
com os quais c o m p le x a s co n stelaçõ es se tecem e se desfa­
zem c o n tin u a m e n te , s e m p re passando pela membrana do
corpo. D esd e o liv ro d e e s tre ia , 0 cego e a dançarina (1980),
os n arrad o res d e N o ll s e m p re padecem do contato com a
realidade, sã o , n e s s e s e n tid o , “ap aixonados” verdadeiros,
vítimas da p a ix ã o , à p ro c u r a de um a realidade em falta.
Mas a c o n s e q u ê n c ia é u m desafio ao corpo que se abre e se
desfaz e m d o e n ç a s , fe rid a s e secreçõ es, todos os sintomas
de que o re a l é p e rd id o e m o rta l. O ponto crucial nessa
nova n a rra tiv a é e x a t a m e n t e a m aneira como o corpo do
narrador a b so rv e a e x te rio rid a d e da experiência e, simul­
tan eam en te, a r a z ã o re fle x iv a e a intencionalidade subjeti­
va, crian d o u m a e s c r it a q u e se percebe ao realizar as trans­
formações q u e o c o r r e m , n ã o e n tre o exterior e o interior,
mas na d ilu iç ã o d e s u a d istin ção . Assim, a escrita perfor*
matiza u m d e v ir c o n tín u o q u e não indica o limite do silên­
cio na tr a n s g r e s s ã o e r ó tic a , n e m foge pelas linhas de fuga
do d evir-m en o s, m a s g a n h a p o tên cia ora virando mulher,
ora h e rm a f ro d ita , m u ltip lic a n d o as possibilidades de vida
para além d as f r o n te ir a s da m o rte. Há uma certa megalo­
mania n a p ro s a d e N oll, u m a paranóia invertida, aliviada
pelo h u m o r d o a b s u r d o , q u e, nesse livro, liberta o narra­
dor do p a t h o s e d a m e la n c o lia existencial dos romances da
década de 1 9 8 0 e ta m b é m ev ita a cilada mística de um cer­
to b arro q u ism o , se n s ív e l n o ro m a n ce A fú ria do corpo, para,
agora, e sq u iv a n d o -se d e q u a lq u er ilusão de intimidade de­
licada, a s s u m ir u m la d o m a is explicitam ente safado em
que a lite r a tu r a to r n a -s e a realização da intersecção entre
alucinação e r e a lid a d e , n o desejo . Aqui, a narrativa encon-

i
rra um caminho e n tre o e s p a n t o t r a n s g r e s s i v o d a r e a lifa .
d e d o s fa to s , p o r u m l a d o , e o i n t i m i s m o e x p o s i t i v o , p0r

outro, em q u e a r e a l i d a d e d a s p a l a v r a s s e s o b r e p õ e às pa]a.
vras da r e a lid a d e , n o m o v i m e n t o d o d e s e j o e r ó t i c o que se
confunde com o m o v im e n to d a p r ó p r i a e s c r i t a . A narrati- 1

va d e N oll c o n s e g u e , de a l g u m m o d o , s a i r d o c ircu ito fe­

chado da cultura da fe r id a p a r a a b r a ç a r u m a c u ltu ra do


gozo, dos delírios da lin g u a g e m ; r e i n s e r e o p r e s e n t e do de­
sejo erótico na re a liz a çã o d a e s c r i t a . D e s s e m o d o , oferece
uma espécie de a n tíd o to c o n t r a a m e l a n c o l i a r e in a n te , que
desfaz a oposição e n tr e a b r u t a l i d a d e e a d e lic a d e z a , na
afirmação violenta e in c o n d i c i o n a l d o g e s t o lit e r á r i o .
Capítulo 4

Os peri gos da fi c ç ão

[ Num re s ta u ra n te ja p o n ê s do b airro da Liberdade, em São


I Paulo, um n issei d iv o rcia d o e desiludido — já perdidas as
[ ambições de u m d ia v ir a se to m a r escritor — recebe da
[ dona do lu gar, u m a im ig ra n te jap on esa de mais de 80 anos,
í com o n o m e d e S e tsu k o , a o fe rta do trabalho de escrever
uma h istó ria. O s o l s e p õ e e m S ã o P au lo (2007), de Bernardo
Carvalho, c o m e ç a n u m a cid ad e em crise, sufocada pela po­
luição, p ela b r u ta lid a d e d os ataques do crime organizado
pelo PCC, e m 2 0 0 4 , e p e lo s ato s de vingança arbitrária da
polícia, n u m e s p a ç o u rb a n o e m con stante mutação e per­
da de re f e rê n cia s . O p ô r d o sol de São Paulo é tão bonito,
comenta o n a r r a d o r , e ju s ta m e n te p o r causa do céu poluí­
do; m as a h i s t ó r i a c o m e ç a ta m b é m desse modo por ser
uma in cu rs ã o n a s o m b r a e n a opacidad e do humano. No
fim do r o m a n c e , o n a r r a d o r c ita o e scrito r japonês Jun-

chiro T an izak i, a o d i z e r q u e

(...) a beleza o rie n ta l n asce das sombras projetadas no que


em si é insignificante. O belo nada mais é do que um dese­
nho de som b ras. Os ocidentais são translúcidos; os orien­
tais são op acos. N in gu ém veria a beleza da lua de outono
se ela não estiv esse im ersa na escuridão. Temos mais em
comum do que p o d em o s imaginar. O oposto é o que mais
se parece co n o sco , (p. 164)

Nos ú ltim o s t r ê s r o m a n c e s d e B ern ard o Carvalho, um

tema te m se r e p e t i d o i n s is te n te m e n te : a ficção tem agido

c°m o c o n s t r u ç ã o d e u m a r e l a ç ã o c o m o ou tro até o limite

^ sua p o s s ib ilid a d e , n a f o r m a d e u m a procu ra além dos

im ites da c u l t u r a o c i d e n t a l . N o r o m a n c e N ove n oites (2002),


com os indios krah ô do X in g u , e m Mongólia (2 0 0 3 ), com os
orientais budistas desse p aís, e n o ú ltim o ro m a n ce , com a
cultura japonesa. S im u lta n e a m e n te , e s s a p ro cu ra é a pro.
cura do hom em p o r seu d u p lo , u m o u t r o avesso em sua
encarnação co n creta. “Q u e m s o u e u e d e o n d e venho?"
tem sido um a p erg u n ta r e c o r r e n t e n o s r o m a n ce s anterio­
res de Carvalho; em Os b ê b a d o s e o s sonâmbulos (1996), um
militar hom ossexual, a m e a ç a d o d e a m n é s ia e submetido à
perda progressiva de m e m ó r ia e d e s e n s o d e realidade, se
lança na procura p o r sua o r ig e m d e s c o n h e c id a ; em As ini­
ciais (1999), a p erg u n ta se d e sd o b ra e m p ossív eis respostas
por meio de jogos c o m n o m e s e id e n tid a d e s incertas. Nes­
ses últimos ro m an ces d e C a r v a lh o , o u t r a q u estão vem se
pronunciando. Se a n te s a r e a lid a d e e as identidades pare­
ciam am eaçadas p ela f o rç a d as re a lid a d e s convencionais,
construídas ficcio n a lm e n te n o j o g o d e e sp e lh o s dos simu­
lacros pós-m od em os, C a rv a lh o d e u u m p a sso além e agora
desenha outros cam in h o s q u e , p e la f o r ç a d a criação artísti­
ca e literária, co n seg u em e s ta b e le c e r n e x o s de sentido, ao
realizar o que ap enas e sta v a p r e s e n te d e m o d o latente nos
fatos contingentes, e, assim , se u s liv r o s t ê m conseguido ex­
pressar os lim ites da r e p r e s e n ta ç ã o d ia n te d e u m real enig­
m ático e últim o. O n a r r a d o r d e O sol se p õ e e m S ão Paulo é
filho de im igran te ja p o n ê s e t e n t a se r e c o m p o r depois que
a em presa patern a de lu s tre s v a i à b a n c a r r o ta e depois de
atravessar u m d ivórcio in c o m p r e e n s ív e l. P erce b e no convi­
te da velha jap on esa u m a sa íd a p e s s o a l, u m a possibilida^
de realizar a am b ição d e s e r e s c r it o r o u e n te rrá -la de uma
vez por todas. Pelas co n v e rsa s c o m o s u s h im a n do restauran­
te, entende que a d o n a é v iú v a , q u e c h e g o u ao Brasil na dé­
cada de 1 9 5 0 , e que seu m a r id o “m o r r e u p o r causa da l»te
ratu ra”. Aliás, a lite ra tu ra se v in c u la a to d o m om en to co®
a vida e a m o r te , e n o cu rso de mestrado que tenta con­
cluir n a USP, e le , o n a rra d o r, propõe uma análise precisa­
mente d essa re la ç ã o , o b ra e vida, no caso, a partir da leitu­
ra da L ira d o s v in te a n o s , de Á lvares de Azevedo, que, como
se sabe, m o r r e u m u ito jo v em , exatam ente aos 20 anos de
idade. A fic çã o im ita a vid a ou será a vida que imita a fic­
ção que im ita a v id a? Lem bram os logo da morte do escri­
tor suíço R o b e r t W a ls e r, m o rto na neve assim como ele
mesmo h av ia d e sc rito a m o rte de um de seus personagens,
ou de V icto r S e g a le n , q ue aparentem ente morreu imitan­
do sua p ró p ria d e sc riç ã o da m o rte de Chagall. Pode a lite­
ratura ser e n te n d id a c o m o prognose e antecipação da rea­
lidade? A re a lid a d e é fe ita n a im agem da ficção? Essas são
as pergun tas q u e in q u ie ta m o escritor, um enorme clichê
talvez, m as u m a in tu iç ã o que o faz voltar ao restaurante e
dispor-se a e s c u ta r a te n ta m e n te o relato da mulher.

Q u e r ia p r o v a r a t e s e d e q u e a lite r a tu r a é (ou foi) um a for­


m a d i s s i m u l a d a d e p r o f e t i z a r n o m u n d o da razão, um mun­
do e s v a z ia d o d e m i t o s ; q u e e la é (ou foi) u m substituto mo­
d e rn o d a s p r o f e c i a s , a g o r a q u e elas se to m a ra m ridículas,
a n te s q u e a p r ó p r i a l i t e r a t u r a ta m b é m se tom asse ridícula.
(p. 23)

É u m liv ro s o b re o p o d er da ficção, uma história sobre a


iíecessidade d e se c o n ta r a história para conseguir dar sen­
tido aos fa to s e a o s d estin os pessoais, e até mesmo para
devolver id e n tid a d e às pessoas e possibilitar que o narra­
dor faça a p a ss a g e m do “querer ser escritor” ao escrever
propriam ente d ito , assu m in d o a identidade que, por tanto
tempo, o sed u zia e assom brava. Em seus relatos, Setsuko
fala sobre a a m ig a M ichiyo — que logo se revela ser ela
mesma — , so b re o m a rid o Jokichi e o ator Masukichi; sua
narrativa se d esen v o lv e n o Japão durante a Segunda Guer­
ra e se prolonga no Brasil, n u m c o m p le x o e n re d o de trai­
ções, paixões e dissim ulações q u e n ã o a p e n a s vai sendo es­
clarecido pelo m anejo da n a rra ç ã o , m a s ta m b é m é levado
à sua realização pelo esfo rço d o n a r r a d o r e m com p letar o
enredo, que em vários m o m e n to s se in te r r o m p e . A própria
construção do enredo é trib u tá ria d a lite r a tu r a e das artes
japonesas, e, nesse sentido, o a u to r s o u b e ap ro v e ita r mui­
to bem, e de form a não óbvia, a d a ta s im b ó lic a do centená­
rio da imigração jap on esa n o B rasil. O liv ro problematiza
as tensões entre duas cu ltu ras tã o d ísp a re s e a dificuldade
de compreender e de ir ao e n c o n tr o d o o u tro . Aparecem
referências ao clássico da lite ra tu ra ja p o n e s a , C o n to d e Genji
(Genji Monogatari), da e s crito ra M u ra s a k i Shikibu, do sé­
culo XI, cuja com plexa e s tru tu ra d e e n g a n o s e desenganos
pode ter inspirado o a u to r n a e la b o r a ç ã o d a história; ao
ensaio 0 elogio d a so m b ra , de 1 9 3 3 , d e J u n ic h ir o Tanizaki
(1886-1965), que tra ta das d ife re n ça s e n tr e c u ltu ra oriental
e ocidental a partir de u m a r e f le x ã o so b re os m o do s como
cada uma delas se relacio n a e a trib u i v a lo r à s luzes e às
sombras; ao teatro Kyogen, u m g ê n e r o c ô m ic o , relaciona­
do ao teatro Nô; e ao escrito r Yu kio M is h im a (1925-1970) e
sua visita histórica a u m a co lô n ia d e fa n á tic o s nacionalis­
tas em Lins, no interior de São P a u lo , n a d é ca d a de 1950.
O personagem Masukichi é a to r d e K y o g en , m a s , em reali­
dade, é o único dos person ag en s p rin cip a is q u e n ão escon­
de sua vida por trás de ou tra s m á s c a r a s e n o m e s . Embora,
claro, tudo no rom ance de C a rv a lh o s e ja primordialmente
ficcional, Masukichi seria e n tã o u m p e r s o n a g e m mais lis0
que os demais, que c o n tin u a m e n te se r e in v e n ta m e se
autoatribuem novas identidades, t o m a n d o a tra m a ficci*
nal mais imbricada. Setsuko, p o r e x e m p lo , é o disfarce de
Michiyo, e Jokichi foi salvo da g u e rr a q u a n d o o pai envifll1
um em pregado, Seiji, p a ra se alistar em seu nome. O mes­
mo Jokichi d e sa p a re ce , a o sim u lar um suicídio, e reapare­
ce no Brasil, c o m o n o m e de Teruo, à procura do primo do
imperador que assu m iu a identidade de Seiji para escapar
dos aliados n o fim d a S egu nd a Guerra. O histórico escritor
T a n iz a k i talvez te n h a in sp ira d o o velho escritor de Kyoto,
que escreve u m a h is tó ria , n arrad a para ele por Michiyo,
para se v in g ar d o m a r id o Jo k ich i, quando ela suspeita que
ele tem u m a r e la ç ã o a m o ro sa com Masukichi. O velho es­
critor, no ro m a n c e , in te rro m p e a publicação sequencial e
folhetinesca d a n a r r a ç ã o de M ichiyo, quando os envolvidos
se reco n h eceram , a s sim c o m o tam b ém aconteceu, segun­
do a biografia d e T an izak i. As datas não coincidem, mas a
presença d essa s e m e lh a n ç a in dica com o Carvalho incorpo­
ra os fatos h istó rico s n a co n stru çã o do romance. A comple­
xidade da tr a m a , n o e n ta n to , n ão se capta nesse resumo, o
romance r e a lm e n te p re c isa ser lido. Trata-se de uma histó­
ria sobre o d e stin o d e u m h o m e m , um massacre de guer­
ra, várias tro c a s d e id e n tid ad es, um suicídio fingido, um
assassinato, u m a v in g a n ç a e u m a narrativa, escrita para
dar realid ade a o s fa to s co n tin g e n te s e revelar à filha de
Teruo a verd ad e s o b re a id entid ade do pai. Carvalho usa li­
vremente fato s in cis iv a m e n te referenciais na estrutura da
ficção, m as se e s sa m is tu r a e n tre história e ficção na litera­
tura da d écad a d e 1 9 8 0 serv ia para exibir e expor a estru­
tura ficcional d e n o s s a co m p re e n sã o da realidade, aqui ela
Parece a m a r ra r a f ic ç ã o a u m a ou tra noçào do real, um real
inevitável, p e rce b id o e m seu nível trágico, talvez como for-
de um d e stin o irre m e d iá v e l. No fim do romance, temos
uma história c o m p o s ta p o r pedaços, cujo conjunto é de-
Sçnhado p elo p riv ilé g io e xclu siv o do narrador. Nenhum
d°s person ag en s c o n h e c e r á a história inteira, nem mesmo
Setsuko/Michiyo, que c o n ta a h is tó r ia in icia lm e n te , peja
metade, e depois escreve a c a r ta f u n d a m e n ta l a Masukichj
que. recuperada pelas m ã o s d o n a r r a d o r , d a rá continuida-
de ao enredo prolo ng ado p ela r e a liz a ç ã o p o sterio r.
No rom ance Nove n o ites , o e n ig m a é a in d a m ais dissimu­

lado, segue a trilha de u m e p isó d io tr á g i c o e incompreen­


sível da história da a n tro p o lo g ia b r a s ile ir a , o suicídio do

antropólogo Buell Q uain, e m 1 9 3 9 , a o v o l t a r de uma esta­


da de trabalho de cam p o e n tr e o s ín d io s k ra h ô , no Xingu,
0 leitor segue a p ro cu ra d e te tiv e s c a d o n a r r a d o r pelas pis­

tas da imprensa, nas p esq uisas d os a rq u iv o s do Museu Na­


cional e nas cartas, e refaz a v ia g e m d o a n tro p ó lo g o para
entender os m otivos d o a to , s e m , n o e n t a n t o , encontrar

uma resposta plausível. O u tra f o n te p riv ile g ia d a para o lei­


tor é o testam ento d eixad o p e lo e n g e n h e i r o M anoel Perna,

amigo de Quain, que o fe re ce u m a o u t r a v e r s ã o e perspecti­

va sobre o relato ao qual o n a r r a d o r n ã o t e m acesso. Quain

tinha 27 anos quando v isito u o B ra s il, e r a contemporâneo

e conhecido de Lévi-Strauss e v in h a d e u m a fam ília ameri­


cana abastada e tra d icio nal. A p a r e n te m e n te , ele não tinha

nenhum motivo para se su icid a r, e o r e l a t o insiste nessa

impossibilidade que p a re ce m u ltip lic a r a s diferentes ver­

sões hipotéticas, sem n u n ca p e r m i t i r q u e se ch eg u e ao cer­

ne do mistério. Carvalho c ria u m a e s t r u tu r a semelhante à

de certos clássicos, co m o o 0 c o r a ç ã o d a s tr e v a s , de Joseph


Conrad, em que Marlow v ia ja p e lo in t e r i o r d o Congo, to­
cando as bordas da cu ltu ra d o h o m e m b r a n c o enquanto se

lança na busca por Kurtz, u m h o m e m q u e se converte em

espelho e duplo do n a rra d o r à p r o c u r a d e si m e sm o , de sua


origem e de seus lim ites. O p e r s o n a g e m K u rtz carrega su­

postam ente um c o n h e c im e n to a g u d o d a exp eriên cia de

126
ba rb á rie selv ag em n a Á frica profunda, mas, como é sabi­

do, só con seg u e e x p re s sá -lo n a palavra “horror”. A história


do p erson agem Q u a in , n o livro de Carvalho, da mesma
maneira, p assa a se co n fu n d ir co m a história do narrador,
quando este se le m b ra de u m senh or que estava no mes­
mo quarto de h o s p ita l de seu pai. Em seu delírio terminal,
o paciente c h a m a v a -o de “Bill C o hén ” e, anos mais tarde,
se dá con ta da s e m e lh a n ç a son ora en tre esse nome e “Buell
Quain”. P ro cu ra n d o o filh o do velho, começa a ver uma se­
melhança c o m Q u ain e p en sa que poderia tratar-se do fi­
lho do a n tro p ó lo g o , m a s tu d o não passa de conjeturas e,
provavelmente, d e u m a e x tr e m a projeção de identidade.

Ao se a p ro fu n d a r n a h is tó ria do m istério, as versões se


multiplicam e a s p ró p ria s h istó rias do personagem e do

narrador c o m e ç a m a se e sp e lh a r de tal modo que o narra­


dor identifica a q u e la m o r te en igm ática com a vida e mor­

te do seu p ró p rio pai. M ais u m a vez, é impossível não no­

tar o uso q ue C a rv a lh o faz, n esse rom ance, de referências


autobiográficas, ta n to n a arq u itetu ra do n aru d o r v : mto

na a p resen tação d o livro. Na cap a do livro, vemos a ilus­


tração de u m a fo to d o m e n in o Bernardo com seis anos de
idade, de m ã o s d a d a s c o m u m índio do Xingu; as visitas
do autor às fa z e n d a s d o pai são a matéria-prima para o re­
lato, assim c o m o as d e scriçõ e s profundam ente deprimen­
tes do n a rra d o r d essa realid ad e devem m uno à sua própria

memória. C a rv a lh o e n la ça , assim , um a pesquisa real. sus­


tentada p o r d o c u m e n to s , n o ticias, experiência própria, de­
poimentos de p e rso n a g e n s reais e fatos históricos com o
poder de in v e n çã o d o ficcio nista. Ele coloca o corpo pró­
prio em c a m p o , in se re fo to s e brinca com as técnicas jor-
nalisticas, ao m e s m o te m p o em que inventa documentos
apócrifos, como, por e xem p lo , a ú ltim a c a r t a e o testamen­
to do Manoel Perna, p ara depois a d m itir q u e , n a realidade
tais documentos nu nca h av iam sid o e s c r ito s . A diluição da
fronteira entre a re p o rta g e m r e a lis ta e o r o m a n c e , entre
documento e ficção não co n d u z a q u i a u m a ficcionalizaçào
da realidade, mas ao r e c o n h e c im e n to d a in su ficiência do
realismo para dar con ta da c o m p le x id a d e e d as múltiplas
facetas e versões da v erd ad e. A ss im , e m se u s últim os ro­
mances, ao in co rp orar r e f e r ê n c ia s a g ê n e r o s m ais dire­
tamente com prometidos c o m o r e a l i s m o , c o m o a escrita
antropológica, cartas, fo to g ra fia s i lu s tr a tiv a s d o persona­
gem, documentos, re lato s d e v ia g e m e d e p o im e n to s teste­
munhais, Carvalho cria u m a te n s ã o e n t r e a complexidade
densa que as histórias a d q u ire m e u m a v e r d a d e que as di­
ferentes versões realistas n ã o c o n s e g u e m d a r co n ta. Sem
pretender im prim ir u m s e n tid o ú l t im o à f ic ç ã o , mantém
abertas as possibilidades d e p r o l i f e r a ç ã o d e e fe ito s de sig­

nificação em to rno de u m m i s t é r i o q u e a c a b a n ã o sendo

elucidado. Nos ro m an ces a n te r io r e s , a n a r r a t i v a tam bém se


faz em função de u m a p r o c u r a p o r s e n tid o , a tre la d o , com
frequência, à identidade f a m ilia r, à i d e n tid a d e d o pai, co­

mo se nota em Os b ê b a d o s e o s s o n â m b u l o s , r o m a n c e no qual

a iminente perda da m e m ó r ia , e m d e c o r r ê n c i a de um tu­

m or no cérebro, é o que d e fla g r a a h i s t ó r i a :

Aos poucos me tom aria um o u tro e o que eu era desapare­


cia — “por causa da lesão”. Seria o u tra p essoa — m as o fato
de não perceber a passagem, a m u d a n ça talvez m e ajudas­
se, uma vez que passaria in co nscien te p o r tu do , não lamen­
taria a perda de quem eu e ra — , n in g u é m é ninguém , tudo
é relativo, disse, basta um toq ue aqui (ele to co u m inha tes­
ta) e puf!, o que você cham a de eu so m e , e m e abraçou de
novo, na saída, diante do m eu silêncio e da m in h a conster­
nação. (p. 14)
Sob a a m e a ç a d e s s e s u m iç o , a in vestig ação se inicia
nUma c o rrid a c o n t r a o te m p o e c o n tra a doença implacá-
vel, No fim , o r e s u lta d o é d u v id o so , o enigm a se preserva,

apesar dos in d íc io s d e e s c la r e c im e n to , e resta ainda “a sus­

peita de q u e fo ss e n a re a lid a d e u m a represen tação pura e


simples do d e m ô n io (“u m d e m ô n io p intad o”), a dúvida que
eu só ia p e r d e r m o r r e n d o ” (p. 1 4 1 ). Os personagens das pri­
meiras n a r r a tiv a s d e C a rv a lh o p ad ecem desse engano im­
plícito n as r e p r e s e n t a ç õ e s , e a lite ra tu ra tom a-se um modo
de ra d icalizar s u a ilu s ã o e , p e la via da ficção, acentuar o
lado ficcio n a l d a v id a . É n e ss e sen tid o que se observa um
fundam ento m e ta f ic c io n a l n a o b ra de Carvalho: a realida­
de é “lid a” c o m o se fo ss e lite ra tu ra , e a literatura é levada

em co n ta c o m o se fo ss e realid ad e. E n treta nto parece que


os últim os r o m a n c e s a p o n ta m p a ra fora desse gabinete de
espelhos a u to r r e f e r e n c ia l, c o n v o ca m um a outra noção do
real e, a p a r tir d e la , u m n o v o ru m o para sua ficção.
É b em v e r d a d e q u e a m e ta f icç ã o tom ou -se lugar-comum
no debate e m t o m o d a n o ç ã o m o d ern a de literatura, como
aquilo q ue v e m e x p lic ita r a a te n çã o autoconsciente da na-
tureza c o n s tr u tiv a d a fic çã o . A história da m etaficção é lon­
ga, n a rra d a p o r m u ito s e s cr ito re s , e inclui famosas refe­
rências a clá ss ico s c o m o A s m il e u m a noites, Dom Quixote e
Hamlet, d e n tre as m u ita s co n stru çõ e s “em abism o”, como

diria A nd ré G ide. P a ra os co n tem p o rân eo s, a obra monu­


mental de J o r g e Lu is B o rg es leva essa técnica aos seus ex­
tremos filo só fico s (o u te ó rico s) e provoca a grande questão:
como e s cre v e r m e ta f ic ç ã o depois de Borges? Como evitar o
pastiche sob o r is c o do ób vio ululante de uma estratégia
Que já v iro u té c n ic a de c in e m a co m ercial e fórmula para
best seller de b a n c a de jo r n a l? No chavão pós-modemo, a
m etaficção c o n s p ira a fa v o r do sim ulacro, em detrimento
da realidade, e detona a p ossib ilidad e d e m a n te r um a con
fiança na verossim ilhança re a lis ta d e n tr o de u m universo
em que os signos ap o n tam p a ra o u tro s sig n o s, te x to s se re­
ferem a outros te xtos, e as in te r p r e ta ç õ e s só se realiza^
numa tensa disputa e n tre in te r p r e ta ç õ e s . D a perspectiva
desse ceticismo, que foi o solo de u rn a lite r a tu r a altamen­
te avessa ao projeto realista e m su as fo r m a s trad icio nais —
e que inclusive atingiu e re n o v o u o r o m a n c e h istó rico , ao
se abrir para um a ace ita çã o d a a b o r d a g e m fab u la r com a
introdução direta das liberd ades fic cio n a is — , a inclusão de
fatos e personagens h istó rico s, d o c u m e n to s n ã o literários,
fotos e indicações au to b io g ráficas, n o s ú ltim o s romances
de Carvalho, rep resenta u m a r e s is tê n c ia ã d ilu içã o referen­
cial. Carvalho cria u m a n o v a te n s ã o e n t r e e sse s índices de
realidade no lim ite da r e p re s e n ta ç ã o e a s v e r s õ e s narrati­
vas produzidas ao longo da in v e s tig a çã o d o n a rra d o r que,
de certa maneira, c o m p ro m e te a lib e rd a d e fic cio n a l como
um arquivo que am arra o r o m a n c e a u m d e te rm in a d o con­
texto histórico que, por sua v e z , r e v e r b e r a n a su a constru­
ção romanesca. Essa ten são su rg e e m t o m o d e ev en to s cru­
ciais: um suicídio em N ove n o ites, a d e s a p a r iç ã o d o fotógrafo
em Mongólia, a experiên cia tr a u m á tic a d e g u e r r a de Masu-
kichi e a desaparição p o ste rio r de Ju n ic h ir o . S e m atingir o
cerne desses eventos, a n a rra tiv a a p o n ta -o s e m o s tr a como
a realidade se con stitui e m t o r n o d e le s n o n ív e l do que
pode ser interp retado, r e p re s e n ta d o e n a r r a d o , sem que
isso signifique reduzir aquilo q u e e s c a p a à re p re s e n ta çã o a
meros efeitos elípticos vazios

“Li o n te m à n o ite n e s t e liv r o d e J o c a R e i n e r s T e r r ó n .


P orra.
Isso só p o d e s e r li t e r a t u r a ”
(A nd ré S a n t’A n n a n a o r e l h a d e N ão h á n a d a lá)
p eve s e r li t e r a t u r a s im , m a s n ão há certeza. Também
Ae Ser e n sa io , c r í t i c a o u u m a o u tra fo rm a de metalitera-

lura isto é, lite r a tu r a q u e fala de si m esm a, que fala da li­


teratura, d a le itu r a o u d a e s c r ita , do processo de diálogo e
interação c o m o u tr a s lite ra tu ra s , de livros com livros, em
jjj m u n d o -b ib lio te ca b e m a o g o sto de Borges. Como se o

mundo d ev esse s e r lid o c o m o u m a biblioteca, e a biblio­

teca, q u a lq u e r liv r o , e m re a lid a d e , vivido com o se fosse


um mundo. M as n ã o é a s s im q u e T erron trata a literatura,

a distância; e le c o n v iv e c o m os escrito res e suas vidas e


obras, cria e n r e d o s q u e n o s in tro d u zem em segredos por
trás da c ria ç ã o , c o n v e r te os p erso n ag en s literários em per­

sonagens de o u tr o s d r a m a s , se m escrever biografias ou pro­

por e xp licaçõ es a o s e n tid o das ficções. Suas próprias obras

se d iversificam e n t r e p o e s ia (E le tro en c e fa lo d r a m a , 1998, e

Animal a n ô n im o , 2 0 0 2 ) e ro m a n c e s que beiram escritas me­

nos classificáv eis (N ã o h á n a d a lá , 2 0 0 1 , Hotel HeU, 2003. e

Sonho in t e r r o m p id o p o r g u ilh o t in a , 2 0 0 6 ). Para alguém que

integrou a b a n d a M in isté rio da Fom e e foi cofundador da


Editora C iê n c ia d o A c id e n te , os título s não devem sur­

preender; o q u e d e ix a , s im , o leitor intrigado é a relação


entre o d elírio p ro d u tiv o e u m com pro m isso artesanal na

construção d e ssa s h is tó r ia s q ue reescrevem a história da


literatura, v a le n d o -s e liv r e m e n te de sua potência mitoló­
gica e im a g in a tiv a . N o c a s o de N âo há n ad a la. entra-se nu­
ma galeria d e c e r a h a b ita d a p o r Fernando Pessoa, Aleister
Crowley, Is a d o re D u c a s s e , Rim bau d, Raymond Roussel,
Papa Pio XI e a p a s to r in h a Lúcia que assistiu à aparição de
N°ssa S en h o ra d e F á tim a , a lé m de Torquato Neto e Jimi
Hendrix, e n tr e o u tr o s . A s h istó rias desses personagens se
entrecruzam e se t o c a m m arg in alm en te. Em alguns casos,
frata-se de re la to s d e e n c o n tr o s conhecidos, como aquele
entre Fernando Pessoa e o satan ista in g lês A leister Crgwley
aqui recomposto em torn o do su m iço m ític o de Crowley na
“Boca do inferno”, perto de C ascais, n a ta rd e de 25 de ou­
tubro de 1930, ocasião em que o p o e ta p o rtu g u ês supos-
tamente ganha uma cig arreira d e C ro w le y c o m desenhos
mutáveis na tampa e a in scrição : “S o m e n te a literatura, 0
alicerce de tudo, não a p edra, n ã o o f e r r o , as letras desen­
cadeando-se, estrutura de síla b a s.” O u tro p o e ta maldito,
Arthur Rimbaud, foge p ara a A m é r ic a o n d e se encontra
com Billy the Kid; R ay m on d R o u sse l t e m u m encontro
amoroso com o papa Pio XI n o seu carro -tra iler-m áqu ina, a
roulette; enquanto isso, Isidore D u ca sse fu r ta A s flo r e s domai
de uma senhora obesa d e n tro d e u m t r e m e acaba meta­
morfoseado numa im p resso ra g r á fic a , L a u tr e a m o n t Press.
0 poeta William Borroughs, e m s u a fa z e n d a d e Kansas, em
1997, presencia a ap arição ce le stia l d o h ip e r c u b o Tesseract,
um cubo em quatro d im e n sõ e s, q u e o f a z experim entar
uma série de acon tecim en tos e n ig m á tic o s c o m o , por exem­
plo, a escrita na areia do d e se rto : “A s m a r c a s deixadas pe­
las cascavéis na areia e ra m le tra s , p a la v ra s , frases inteiras
em aramaico e grego!” Todas as h is tó r ia s reinventadas da
mitologia maldita da lite ra tu ra sã o c o s tu r a d a s p o r fenôme­
nos que revelam a p o tên cia o c u lta d a lite r a tu r a de tomar
posse da realidade e cria r suas p ró p ria s re d e s e estruturas,
cuja lógica apresenta te m p o ra lid a d e s d e sco n tín u a s. O ro­
mance de Terron é um a fa n ta sia m a ld ita d a literatu ra, a re­
escrita de sua genealogia viv a e u m a d e c la r a ç ã o de amora
essa face bem ro m ân tica, m a r c a d a p o r u m a c e r ta margina­
lidade, e a vocação de v iv er su a a r t e e f a z e r d e la um a vida.
No centro do hipercubo do T e s se ra ct, q u e é ta m b é m o seu
fora, interior e exterior, o b e m e o m a l, o re a l e sua ima'
gem se confundem sobre a q u a r ta d im e n s ã o temporal, e

132
seu m ovim en to é u m a in v ersão contínua dessas distinções
qUe ap arecem c o m o m e r o s efeitos prismáticos da rotação
¿0 cubo. H á, aq u i, u m a o u tra m itologia literária que per­
mite realizar e v e n to s d a m e m ó ria e do imaginário social e
reviver o e n c o n tr o , ta lv e z fa tal, en tre Torquato Neto e Jimi
Hendrix, e s cu ta n d o a v e rsã o de “Helter skelter” do Álbum
bran co, dos B e a tle s, q u e te ria inspirado Charles Manson a
cometer o m a s s a c r e n a m a n sã o de Sharon Tate, em 1969.
Apesar das fa n ta sia s m a is deliran tes, bem no molde beatník,
adotando os m a ld ito s do sécu lo XIX, Terron traz esse uni­
verso literário p a r a d e n tr o de u m a genealogia própria da
literatura b ra s ile ir a , j á n ã o definida pela nacionalidade,
nem pelo m o m e n to h istó rico . No m ais recente Sonho inter­
rompido p o r g u ilh o t in a , de 2 0 0 6 , a m escla da ficção com en­
saio p erm ite d e m a r c a r u m a “pequena família” anacrônica
que escap a às d e fin içõ e s de geração. Essas afinidades ele­
tivas en volv em V a lê n cio Xavier, personagem em dois dos
contos, Jo sé A g rip p in o d e Paula, o Escritor sem Nome e
autor de P a n a m é r ic a e L u g a r pú b lic o , Raduan Nassar, Glau­
co M attoso, D a lto n T rev isan e, ju n to com eles, um vasto
elenco de a rtis ta s in te rn a cio n a is , Duchamp, Gombrowicz,
Kafka, D ash iell H a m m e tt, N icolas Ray, ultrapassando, as­
sim, fro n te iras tra d icio n a is p ara caracterizar o que se pode
esperar da c r ia ç ã o lite rá r ia hoje. Joca Reiners Terron rom­
pe com to d as as te n d ê n c ia s trad icionais da literatura brasi­
leira, escreve n o c a m p o m in ad o entre ensaio e ficção, usan­
do en trevistas, d iá rio s , a n o ta çõ e s e fragmentos, sem abrir
mão da lib erd ad e im a g in á ria e do atrevimento transgressi-
vo na re a liz a çã o . N ão h á vo lta , já estamos do lado errado
da queda g lo b a liz a d a : “Eu resu m iria o drama contempo­
râneo assim : n ã o p o d e m o s v o ltar para casa”, afirmou Ni*
c°las Ray, “c o m u m M arlb o ro nos lábios e ao volante de
ura Porsche Spyder em d isp a ra d a r u m o a o sol poente”
(Terron, 2006, p. 115). O que r e s ta é u m a lín g u a portugue-
sa em reconstrução e à e sp e ra d o e s c r it o r desconhecido
cuja obra megalomaníaca foi “m u d a r o n o m e de tudo, ob­
jetos, seres e lugares” (p. 1 51). N ã o h á c a m in h o de volta e
não existe um futuro c la ro p a r a a l i t e r a t u r a co m o havia
para Kafka, Joyce, Pessoa e P ro u s t, e is o fu n d am en to de
uma vontade irrev eren te e v io le n ta d e exp erim en tação :
“Ao escritor contem p orâneo s o m e n te r e s t a s u a fé animal a
orientá-lo sem esperança n e m te m o r , a fé a n im a l que o
preserva da demência e o e s cr a v iz a à v id a ” (p. 177).
Uma outra voz, m u ito d ife re n te , m a s q u e ta m b é m colo­
ca no centro de sua criativ id ade o d iá lo g o c o m a literatura,
pertence a Adriana Lisboa, e s c r ito r a c a r i o c a , fo rm ad a em
música e com pós-graduação e m L e tra s . L isb o a estre ou com
o romance Os fio s d a m e m ó r ia , e m 1 9 9 9 , e re c e b e u vários
prêmios e amplo re c o n h e cim e n to c r í t i c o p e lo s romances
Sinfonia em branco (2001), U m b e ijo d e C o lo m b in a (2 0 0 3 ) e Ra-
kushisha (2007), além de te r p u b lica d o u m liv ro de minicon-

tos intitulado C aligrafia s (2 0 0 4 ) e a lg u n s títu lo s de livros


infanto-juvenis. Não seria in ju s to d iz e r q u e Lisb oa, em pri­
meiro lugar, é uma leitora q u e e s c r e v e s o b r e literatu ra, em
romances que giram em to r n o d a l i t e r a t u r a e d o imaginá­
rio literário. Teríamos n e la u m e x e m p l o d e e scrito ra que
escreve movida pela v o n tad e d e s e r li t e r a t u r a ? “Assim es-
crevo estas páginas; assim , d ig a m o s, sou e s ta s p ág in as” (Lis­
boa, 1999, p. 16). Em Os f i o s d a m e m ó r i a , s e u prim eiro ro­
mance, a viagem pelas tr a m a s d a g e n e a lo g ia fam iliar é
feita na clave de V irginia W o o lf, c o m b in a n d o a reconstru-
ção genealógica fam iliar do c lã B ra s il, a p a r tir dos diário5
abandonados pelos an tep assad o s, c o m a h is tó r ia do paise
com a sensibilidade sin g u la r e id io s s in c r á tic a de Beatriz»
qUe absorve e p r o c e s s a tu d o n a solidão e intimidade que a
casa h erd ad a d a f a m ília lh e ofere ce. Em Um beijo de Colom-
Una, a e s tr u tu r a d o r o m a n c e é calcada sobre o livro de
Manuel B a n d e ira , E s t r e la d a v id a in teira , e de novo a perso­
nagem T ereza g a n h a v id a im pulsionada pelo universo de
Bandeira e, a p a r e n te m e n te , se suicida numa praia de Man-
garatiba, d e ix a n d o u m p o e m a do m esm o Bandeira como
carta de d e sp e d id a . A lg u n s crítico s têm visto na obra de
Lisboa o c o n tr a p e s o à f ic ç ã o predom inante na década de
1990. C o n f o r m e a r e s e n h a “N a co n tram ão pela Avenida
Brasil”, de R o g é rio P e r e ir a ,5 sua escrita seria um antídoto
feminino c o n t r a a v io lê n c ia e a crueldade do “neonatura-
lismo que t o m o u c o n t a d a literatu ra brasileira”. A escrita
de Lisboa d e p o sita s u a e s p e ra n ç a na sensibilidade delicada
dos p o rm e n o re s d o u n iv e rs o dom éstico, alimentada por
uma c e rta e r u d iç ã o lite r á r ia e co m referências constantes
à música e r u d ita e às a rte s plásticas. No livro Sinfonia em
branco, a p e sa r d as r e f e rê n c ia s significativas ao romance de

Thomas M a n n A m o r t e e m Ven eza e a um quadro de James


Whistler, a h i s t ó r i a d a s duas irm ãs Clarice e Maria Inês
dialoga de m o d o m a is d ire to co m as questões da realidade
urbana, e a n a r r a t i v a se co n stró i em tom o de uma vio­
lência tr a u m á tic a d o p assado . Novamente, entretanto, é a
memória ín tim a q u e se situ a n o centro da construção nar­
rativa, sem p o s s ib ilita r a recon q uista triunfante da genea­
logia fa m ilia r e m su a a leg o ria, a construção da identidade
nacional, c o m o n o p rim e ir o ro m an ce, a narrativa ainda se
guia pelo re s g a te e p e la re cu p eração de uma memória esti­
lhaçada, c u ja c a u s a p rim o rd ia l é um estupro incestuoso

h ttp ://w w w .a d ria n alisb o a .c o m .b r/re se n h a/n aco n tra in ao p elaa v en id a


brasil.h tm l.
que a narrativa irá revelar. Em seu r o m a n c e m a is recente,
Rakushisha, a autora volta ao im a g in á rio m e ta lite r á rio , mas
agora em diálogo com M atsuô B ash ó (1 6 4 4 -1 6 9 4 ) e seu dis­
cípulo Mukai Kyorai, cu ja casa, a C a b a n a d o s c a q u is caídos,
visitada por Bashó e registrada e m u m d e seu s diários, dá
nome ao livro. Mais urna vez, o m e r g u lh o n a le itu ra , e nes­
te caso também na trad u ção dos h a ica is d e B ash ó , trans-
forma-se em fundo para urna h isto ria d e a m o r e n tre o ilus­
trador nissei Haruki, a trad u to ra Y u k ik o e a c a r io c a Celine.
Todo o universo do livro se a n co ra s o b re u m procedim en ­
to de estetização da realidade, c o m o se a re a lid a d e só se
tomasse visível pelo olh ar da lite r a tu r a . T ra ta -se de urna
literatura que olha através da lite r a tu r a o u d as a rtes em
direção a algo que nun ca se d e ix a t o c a r e m s u a presença
desarmada. Até nas im agens m a is c o n c r e ta s n o ta-se urna
exacerbada metaforização, que c h e g a a c o n v e r te r toda a
sensibilidade e sensorialidade e m m a té r ia c o n stru íd a poe­
ticamente.

Um sol vago de f in a l d e t a r d e m a n c h a v a o a s s o a l h o e t in ­
gia o rosto da jo v e m p o r tu g u e s a c o m u m a t o n a l i d a d e a c o ­
b reada e som bria, d is s i m u la n d o - l h e o s o l h o s b a i x o s . Sob
seu colo, o m ín im o cru c ifix o o s c ila v a s e g u n d o o v a i v é m dos
pulm ões. (1999, p. 36)

Não se coloca em questão a c o m p e tê n c ia a rte sa n a l e a


densidade descritiva do trab alh o d e L isb o a, a té d e sofisti­
cação no domínio da lingu agem , m a s fa lta esp o n tan eid ade
e algum fulgor do imediato e de alg o q u e s u rp re e n d a e pos-
sa desarmar a mão segura da estilista . N esse sen tid o , aqui­
lo que aparenta sensibilidade e sim p licid ad e fem in in a mui­
tas vezes chega ao leitor co m o u m b o rd a d o dom esticado,
no limite da saturação e do e x a g e ro , e m b o r a a a u to ra não
se permita as extravag ân cias d o b a r r o c o , p o is m an eja a
Ünguagem d e m o d o a n u n c a tran sb o rd ar um certo limite
qUe afetaria a c o n te n ç ã o n a rra tiv a , m as que talvez também
pudesse a c e n tu a r o a s p e c to a rtificial de sua arquitetura lin­

guística. A a u to r a o f e r e c e o d eleite do recon hecim ento me-


tatextual, g o z o p a r a o s le ito re s detetives que venham a des­
vendar as m ú ltip la s c a m a d a s de referên cias de leituras e de
citações d iss im u la d a s . L isb o a e screv e dentro da tradição
borgesiana, e m b o r a n u m a b ib lio te ca construída afetiva-

menteTe n ã o p e lo e x e r c í c i o ra d ica lm e n te racional e solip-


sista do v elh o b ib lio te c á r io . M as vale lem brar que sempre

há em Borges u m p o n t o d e fu ga, u m pon to que demarca o

limite do jo g o a u to r r e f e r e n c ia l e algu m a alusão a uma rea­


lidade p la tô n ica o u m ís tic a , p o ré m sem o conforto ou a
promessa da tra n s c e n d ê n c ia . N a literatu ra contemporânea,

os procedim entos m e ta lite r á r io s e autorreflexivos parecem

ter chegado a u m o u tr o lim ite de exa u stão , perigam con­

verter-se e m b r in c a d e ir a in te le c tu a l de professores de lite­

ratura com a m b iç õ e s c r i a t ivas e m u ito raram ente são ca­


pazes de q u e s tio n a r su a s p ró p ria s prem issas. Como já foi

apontado a n te s , e x i s te u m a p re se n ça forte da reescritura

na ficção b r a s ile ir a 6 r e c e n t e c o m inegáveis e férteis con­

tribuições, e é c la r o q u e n e n h u m a u to r hoje escreve a par­


tir da e sta ca z e r o , to d o s se d e fro n ta m , por bem ou por

toai. com u m a t r a d i ç ã o q u e seus te x to s deixam mais ou


toenos visível. Contudo, p a ra enfrentar a tradição literária

e os, f a n ta s m a s jio r e la h e rd a d o s e pod er escrever e assu­

mir a H teratu ra c o m o u m c a m p o criativo hoje, é necessá-


n° também u m a b o a d o se de v o n tad e iconoclasta e profa-

^sboa p u b lic o u u m e n s a io s o b r e e ssa m e sm a questão no seu site, dis-


^ nd0 Em liberdade, d e S ilv ia n o S an tia g o , e Lúcia, de Gustavo Bemar-
*lttP;//w w w .a d r ia n a lisb o a .c o m .br/publicacoes/reescrituras.htm l.
nadora que não p ou pe n e m m e s m o a p r ó p r ia literatura
sem a qual não se evita a s a c r a liz a ç â o d o lite r á r io , ou pj0r
o apelo em o cio n al c o lu g a r -c o m u m , n o q u a l o jo g o au-

torreferen rial tam b ém a c a b o u p o r se c o n v e r te r . Contudo


as referências m e ta lite rá ria s r e p r e s e n t a m u m a espécie de
roupagéííTdãliuáT o e s c r ito r se d e sfa z à c u s t a d e m u ito es­

forçar o TTIgsmo o c o rre c o m o u s o e x a g e r a d o d e imagens


m etafóricas e de arro u b o s líric o s , q u e a c a b a m p o r se con­
verter em preciosism o:

M arco o lh o u d e n t r o d o s o l h o s d e l a e d i s s e : v o c ê e s tá
b o n ita.
A q u ela f ra se lu m in o s a .
£ tr in ta s e g u n d o s p a s s a r a m . E t r ê s m e s e s , e t r ê s a n o s se
p a ssaram . E o u tr o s t a n t o s . E o s e s t i l h a ç o s d e s s a f r a s e lu m i­
no sa g a n h a r a m o e s p a ç o , d e s c o m p o s t o s , a f i m d e se tr a n s ­
f o r m a r e m o u tr a c o isa , j á q u e n a d a , a b s o l u t a m e n t e n a d a , se
p e rd e , j á q u e tu d o e n g e n d r a t u d o m a i s . ( L is b o a , 2 0 0 7 , p. 90)

Aqui tem os um e x e m p lo d e u m s i m u la c r o d e simpli­

cidade, perm eado p o r p r e c e ito s b u d is ta s e fig u raçõ es de


um novo orientalism o, p ro je ta n d o u m a im a g e m do que já
não existe m ais, do que ta lv e z n u n c a t e n h a existid o . Mas
incorporar a cultu ra ja p o n e s a n e s s a p e r s p e c tiv a de um li-
rismo idealizado e a n a c r ô n ic o c o lo c a a n a r r a tiv a num a si-

tuaçào de resgu ard o, n ã o se a r r is c a e n ã o s e e x p õ e . A aten­


ção descritiva da a u to ra n u n c a s e a b r e a u m a verdadeira

vulnerabilidade, não se d e s c o n tr o la e n u n c a se ren d e à in­


tensidade pertu rb ad o ra d a lo u c u r a q u e u m c o n ta to visce­
ral com o real im plica. Eis a d if e r e n ç a e n t r e o sublim e e o
kítsch, pois o sub lim e só e x is te q u a n d o o s u je ito perde o

controle e se en co n tra e x p o s to a o r e a l, m e s m o qu an do ten­


ta domesticá-lo lite ra ria m e n te . N e sse s e n tid o , a escrita de
Lisboa se posiciona n esse e q u ilíb rio d ifícil e n tr e a redun­

138
dância do b an al e d e im ag en s p o éticas já exauridas — “ Na
verdade, o s o lh o s m ap eav am o utro s lugares, vagavam den­
tro dele, e c atav am c ac o s d e m em ó ria co m o uma criança
que co lhe c o n c h in h as n a areia d a p raia” (Lisboa, 2001, p. 9)
^ e a v o ntad e e p ro m e ssa d e lev ar a co nstrução da ima­
gem p o ética a u m o u tro nív el, q ue po d emo s id entificar
com o inefáv el —

(...) todas as co isas e stav am d esem b ocand o naquele lugar


naquele m o m e n to . T o d os os an os vividos, todas as insufi­
ciências d esses an o s e tu d o o q ue neles havia sido em d e
masia. T odas os p e rig o s, tod as as prom essas, todo o am or
que am ad u re ce ra e m in d if eren ça e toda a estrutura que so­
b revivera liv re d e o rn am e n to s . (Lisboa, 2001, p. 209)

A nita é u m a jo v e m esc rito ra brasileira de sucesso que


recebe o c o n v ite p ara ir a Bueno s A ires lançar a tradução
de seu ro m an c e , D escriç ões d a chuv a. A os 27 ano s, ela está
em crise c o m seu c o m p an h e iro D anilo e com sua carreira
de escrito ra. Seu d e se jo d e te r um filho parece ser a expres­
são de u m b lo q u e io c riativ o , já não co nsegue escrever e,
como D anilo n ão ap ro v a o p ro jeto de ter um filho, sua re­
lação am o ro sa e stá d esm o ro nand o . So me-se a isso o fato de
que uma am ig a, A lexand ra, suicid o u-se recentem ente. As­
sim, ao re c e b er o c o n v ite d a v iag em , A nita resolve aprovei­
tar para se afastar d o u n iv erso em crise que a cerca. Desse
modo se in ic ia o ro m an c e A cordilheira (2008), o primeiro
resultado d o s 16 ro m an c e s esp erad o s em função do proje­
to Amores Exp resso s, d e D aniel Galera, que, como em Mãos
de cavalo (2006), c o n seg u e c o n stru ir co m muita co mpetên­
cia a crise p esso al e a im an ên cia da transfo rm ação nas es-
c°lhas d e A nita, rev elan d o p o uco a po uco os motivos que
a levam a e n trar n u m a relação co nturbad a com o enigmá-
tlco Holden. D e c erta m an eira, Galera fo rmata a questão do
papel da literatura p o r um c am in h o su rp re en d e n te que
se desdobra a p artir de um p ro b le m a in ic ial b astante tri­
vial, uma m ulher que q u er se re aliz ar n a v id a co m o mãe,
talvez po r ter sido ela m esm a c riad a ap e n as p elo pai, na
ausência da figura m aterna. A ssim , o in íc io d o ro m ance soa
como mais uma histó ria calcad a n a triv ialid ad e edipiana,
no triângulo fam iliar do “e tern o p ap ai-e-m am ãe”. Entretan­
to, o auto r logo m ud a o s ru m o s d a h istó ria, alterand o a
perspectiva da narrativ a. O d ram a d a e sc rito ra q u e quer se
realizar agora na vida, em d etrim e n to d a arte , c o m a qual
se sente frustrad a, d e rep en te é p o sto e m c o n traste com
uma sociedade secreta q ue se p ro p õ e a re aliz ar literalm en­
te a ficção na vida.
Na realidade, A nita é u m a p erso n ag em e m fug a não só
de sua vida paulistana o u d a c o m p an h ia co nv encio nal de
Danilo, da irmã e das am ig as, m as p rin c ip alm e n te em fuga
de um romance que escrev eu p ara, n a fic ç ão , c riar o que
desejava em vida. A ssim , a p erso n ag em d e seu ro m ance,
Magnólia, servia a ela co m o m o d o d e

(...) imaginar livrem ente aq uela m ãe , d ar- lh e u m a f o rm a de­


finitiva, que ficaria no papel. Perg u n tav a às m in h as am igas
sobre a relação delas co m suas m ãe s e lia co isas so b re m ães
e analisava personagens m ate m o s e m o u tro s liv ros para
construir aquela ausência n a m in h a vid a. (p. 48)

Numa leitura pública da trad u ção d o liv ro , A nita repara


num esp ectador que a c o n tem p la o b sessiv am en te, o enig­
mático Holden. A nita já não se id e n tific a c o m Magnólia,
demonstra verd ad eira rep u lsa p elo p ró p rio liv ro e “Além
disso, aquela visão trág ica e fatíd ic a d o am o r não m e inte­
ressava mais. E não q uero n em falar so b re a linguagem "
Holden, por sua vez, ap aixo na-se, n ão e x atam en te p o r Ani­
ta, mas por Magnólia, um a m u lh er cap az d e m atar o aman-

140
te para p reserv ar a id ealid ad e do amo r. Rapidamente, ini-
cia-se um a relaç ão tó rrid a e n tre os dois, sem que Anita sus­
peite das v erd ad eiras in ten ç õ es d o am ante. Seduzida pelo
erotismo arreb atad o r d e H o ld en e sem mais recursos pró­
prios, A nita m u d a-se p ara a sua casa, no bairro de Palermo,
e descobre q u e H o ld en é o líd er carism ático de um mis­
terioso g rup o d o q u al faz e m p arte Ju anjo , um açouguei­
ro sem cab elo s n e m p e lo s, Jo rg e Parsifal, Pepino, Esteban,
Vigo e a lind a Silv ia. Insp irad o s p o r um obscuro escritor
guatemalteco, Jú p ite r Irrisari, o grup o de escritores, em vez
de se p ro p o r a e sc re v e r as histó rias, passa a vivê-las.

Irrisari co ncebia p erso nag ens, traçava alguns elementos


básicos de sua histó ria e os incorporava. (...) Acreditava que
a literatura era o cam inho que podia nos levar mais longe
no esforço de transcend er a individualidade. Num certo
momento se co nv enceu que era possível dar mais ura pas­
so. O que se pod e alcançar por meio da palavra também
poderia ser alcançad o , de fo rm a análoga, por meio da ação.
“Não há razão p ara no s contentarm o s com um único eu",
concluiu nesse texto . Fo i a última coisa que publicou em
papel. (p. 96)

Sem esm iu çar m ais d etalh es d a tram a, já se percebe que


Galera se in sp iro u n u m a c erta “arg entinid ad e” literária e
construiu seu e n re d o n ão tan to em função da figura de Jo r­
ge Luis Bo rg es, m as d e R o b e rto A rlt e d e seus romances da
década de 1930, Los s ie t e loco s e Los lan zallam as (1931), sobre
Uma so cied ad e se c re ta c o m p ro p o stas co nsp irató rias e des­
truidoras. Em d ad o m o m e n to , o p ró p rio Holden explica:

Se você quer co nhecer um a nação, não leia literatura. Nem


uma página. Escrito res de ficção têm pouco ou nada a di­
zer sobre seu país. Toda arte é egoísta, mas a literatura é a
mais egoísta de to das. Não há co mo escrever honestamen­
te sobre qualquer que não seja n ós m e s m o s. U m escrito r
pode tentar m aquiar esse fato co m to d as as su as fo rças,
mas nunca escapará dele. C ioran te m raz ão , os escrito res
de segunda linha tendem a ser m ais au tê n tico s p orq u e têm
menos capacidade de m aq u iar a in d iv id u alid ad e do que
move a escrever. (G alera, 2 0 0 8 , p. 89)

Poderia ter sido um c o m en tário d ireto a Ro b erto Arlt,


um escritor consid erado de seg u nd a lin h a p o r c au sa da re­
beldia, da falta de cuid ad o na e lab o raç ão e stilístic a e do
rechaço de um certo o rg ulho n ac io n al d e c lasse m éd ia, que
se sentia id entificad a co m o c o sm o p o litism o aristo crático
de Borges e não com a anarq uia v isc eral e m arg in al de Arlt,
que realiza em seus ro m ances to d a a fú ria q u e guardava
em vida. O herói de A rlt, Erd o sain R em o , p o d eria ser um
antepassado de Holden na m ed id a e m q u e p erc e b e a radi-
calidade existencial das c o n seq u ên cias ú ltim as co m o libe­
ração de uma sociedade su p o stam en te fu n d ad a so bre a li­
berdade humanista. Co ntra u m a m e n tira só u m a m entira
maior, arguia Erdosain, p o is “ a m e n tira é a b ase d a felici­
dade humana”. Ho lden en tend e o b rilh o d essa subversão,
na realização rad ical d a fic ç ão , c o m o u m ritu al o u uma
nova fundação de m ito s, o s v erd ad eiro s reg u lad o res do des­
tino trágico e hero ico que resta ao h o m em . Está preparado
para ir até a última co nseq u ência e sac rific ar su a vid a para
realizar sua meta literária. A nita, p o r su a v ez , d em o ra para
entender a proposta de H o ld en e re siste a ser sua cúmpli­
ce, mas, no fim, p ercebe co m o

(...) os finais de nossos ro m an ces se co m p l e m e n tav am . Era


perfeito. De repente, eu en xerg av a m eu s an seio s m ais se­
cretos projetados em M agnólia, seu d estin o f ictício sim bo­
lizando uma lacuna na realidad e. U m a lacu n a q ue poderia
ser preenchida.

142
para H o ld en, o f im d o enred o está escrito há muito tempo
e não há c o m o alte rá-lo , m as, p ara A nita, o fim tem de
ser su rp reend ente e n ão d eve ser revelado antes da hora.
Galera c o n stró i c o m m u ita habilid ad e a transformação na
vida de A nita e m fu n ç ão d a capacid ad e da personagem de
se co lo car e m c e n a e n q u an to tal. O que diferencia essa
mudança p esso al d as transfo rm açõ es psicológicas e intros­
pectivas d a trad iç ão lite rária m o d erna é que o escritor ha­
bilmente ab re m ão d e g rand es incursõ es em reflexões de
consciência ín tim a e, c o m eq uilibrio , elabora seu caminho
através d e u m e n re d o im p lacáv el em sua precisão e deter­
minismo. A h is tó ria n ão e stá escrita como ocorreu, mas
está o co rrend o m e tic u lo sam e n te co m o se fosse escrita.
literatu ra so b re lite ratu ra co ntinua sendo um caminho
frequentad o n a p ro d u ç ão b rasileira contemporáñéaTfggs-
crever as o b ras d a trad iç ão u m de seus atalhos favoritos.
Como já fo i v isto , n ão h á nad a de novo nesse procedimen­
to e, na m aio r p arte d o s caso s, o gesto traz embutido o re­
co nhecim ento , m ais o u m en o s humild e, dependendo do
escritor, d e q u e to d o s o s q ue escrevem são leitores antes
de se to m are m au to re s, anõ es so bre ombros de gigantes
que, ao in c lu ir e m su a literatu ra suasjeferéncias literarias,
pagam um trib u to m o d esto . H o je, entretanto , vivendo nu-
rca cultura d a c o p ia, e m q u e a aura da origem há muito se
Perdeu, o e x e rc íc io d esse p ro ced im ento exige um cuidado
rc^ior, p o is, e m v ez d e p o ssib ilitar um recuo e urna apro- [
Priaçào p ro d utira, p o d e ten d er acap tu rar o autor nüma re- \
verência p arasitária e na sacraliz ação que esvazia a potèn- j
Cla de c o m p ree n são e d e crítica.
Quando Patrícia M elo escrev e seu último romance Jotms,
0 c° prom an ta (2008), a p artir de um conto de Rubem Fón­

ic a, trata-se sem d ú v id a d e um a franca homenagem às


obsessões de Fo nseca exp ressas n o liv ro d e c o n to s Secreções,
ex creções e desatinos (2 0 0 1 ), in c lu siv e c h e g an d o a reutilizar

neologismos co m o “ c o p ro m an c ia”, títu lo d o p rim eiro con­


to e supo stamente um a arte ad iv in h ató ria q u e se propõe a
decifrar o d estino de um a p esso a p o r in te rm é d io de seus
excrementos. Patrícia M elo n u n c a e sc o n d eu su a dívid a com
o exem plo de Fo nseca e, n esse ro m an c e , n ão só dá uma
sobrevida à ideia de Fo nseca c o m o c o n v erte e ste em perso­
nagem de ficção . E, tran sfo rm ad o e m p erso n ag em de fic­
ção, Fonseca g anha um a no v a fac e ta, o u tra id entid ad e, um
duplo que não é, m as tam b é m n ão d eix a d e c o in c id ir com
Rubem Fonseca. O jo g o e n tre id e n tid ad es “ re ais” e “ficcio­
nais” caracteriza um tip o d e su b v ersão lite rária, cu jo mes­
tre entre nós é Silv iano Santiag o , se ja c o m as m em ó rias fal­
sas de Graciliano Ram o s n o “ ro m a n c e ” E m lib e r d ad e (1981),
seja mais tarde em V iag em ao M éx ico (1997), reelabo rand o
viagens de A nto nin A rtaud .
Pierre Menard, do co n to h o m ô n im o d e Bo rg es, fo i o ar­
tista da leitura, capaz de e x trair d o id ê n tic o aq u ele diferen­
cial que marca a inserção d a o b ra n o seu c o n te x to histó­
rico. Por interm éd io de M enard , Bo rg es d eix a claro que o
discurso quixo tesco so bre as le tras e as arm as, no s arran­
jo s^ d eu m ^ im b o M d o in íc io d o sé c u lo XX, é m uito di­
ferente da leitura que se faz d esse m e sm o d iscurso no ro-
mance de Cerv antes do séc u lo XVI, e assim a imitação
ganha legitimid ad e, sem p re p ela m arc a d a d iferença. No
romance 0 falso mentiroso. M em órias, San tiag o co m b ina com
muito primor a sabed o ria d o m e stre u n iv ersitário com a
vontade literária, d esco nstró i a au ten tic id ad e da voz nar­
rativa, da “primeira p esso a” , q u e lo g o se m u ltip lica vertigi­
nosamente em “Eu so u trez en to s, so u trezento s-e-cinquen-
ta” (Mário de A ndrade). O p arad o xo c lássic o d o mentiroso
^ “eu m in to ” — m o stra que a verdade pode estar na men­
tira, P ° is’ se m in t0 ’ a verd ad e, e, se falar a verdade,
minto. A qui, o p arad o xo serve co m o ponto de partida para
uma b rin c ad eira jo c o sa co m a trad ição das “memórias fal­
sas” na lite ratu ra b rasileira. Já m uito foi dito sobre as abun­
dantes re fe rê n c ias in tertextu ais do romance de Silviano,
p rincip alm ente as q u e rem etem a M emórias póstumas de Brás
Cubas, q ue sem d úv id a rev erbera fo rtemente no texto, tan­

to num c e rto to m q u e o scila malicio sam ente entre o pi­


caresco e o c astiç o , e tam b ém na vontade de criar nesse
pastiche u m re trato bem -hum o rad o sob o fundo grave das
mazelas h istó ric as d o Brasil mo d erno . Samuel, personagem
principal d o ro m an c e , é um a versão brasileira de Elmyr de
Hory, o fam o so c o p ista d e arte filmado por Orson Welles
em F fo r F á k e ; q u e p refere g anhar a vida falsificando a arte,
já que a id en tid ad e p ró p ria é tão duvidosa, tão esguia. Um
dos tem as q u e re to m a m sem p re nas narrativas de Santia­
go é o d as in c e rtas o rig ens fam iliares, que, assim como
ocorre no s seu s ro m an c es anterio res Uma história de família
(1992) e D e c ó c o r as (1999), guard a um segredo, aqui, a dú­
vida do filh o b astard o . No ro m ance mais recente de San­
tiago, H e r an ç as (2008), no ta-se a semelhança e até o pro­
lo ngam ento d e q u estõ es já presentes em 0 falso mentiroso,
p rincip alm ente p elo to m m achad iano e pela perspectiva
genealó gica d e ép o c a, v o ltad a para o Brasil do século XX,
da rev o lu ção d e 1930 até o s dias de hoje. 0 protagonista
de H eran ças, W alter, p erten c e à mesma geração de Samuel,
mineiro e h e rd e iro d o arm arinho de “papai”, que logo en­
riquece e se e n tre g a à vid a de so lteiro devasso. 0 crítico
am ericano Fred ric Jam eso n criticava o pastiche vendo nele
uma esp écie d e “ p aró d ia b ranca” que esvaziaria a agudeza
da crític a h istó ric a e cau saria a perda do autêntico riso
liberador da sátira, p o r p erm an ecer p reso d em ais ao exer­
cício hermético da m etaling u ag em . N o c aso d e Santiago , o
pastiche oferece ao auto r um in stru m en to d e d istância cí­
nica, porém aguda, que fav o rece a d esc rição d o p ro cesso de
modernização tanto da realid ad e e c o n ô m ic a q u anto dos
costumes. Da m anufatura d o arm arin h o , W alter envereda
pela especulação im o biliária e f in alm e n te p en etra o mer­
cado de capital sem pre em c o n tato ín tim o e co m p ro m etid o
com a política. So lteiro , c harm o so e sed u to r, b u sca satisfa­
ção onde lhe fo r m ais co n v en ien te e v iv e alg u m as poucas
histórias de am o r que d iv ersificam seu c o n h ec im en to da
sociedade brasileira. Na o rig em d a h istó ria, en tretan to , es­
conde-se um segredo, um c rim e talv ez , e u m a d úvid a dig­
na de Dom Casmurro. No fim d o ro m an c e , ain d a q ue a re­
velação possa satisfazer o enred o , o n arrad o r n ão consegue
esvaziar o enigma de d úv id as q u e p o d em e d ev em motivá-
lo a reco ntar a histó ria m ais e m ais v ez es.

K 146
l
Capítulo 5
0S"00" em metamorfose ambulante

Qual sem elh anç a p o d em o s reco nhecer, se ela existir, entre


escritores d a c h am ad a “ G eração 0 0 ”, tais co m o Daniel Ga­
lera, Santiag o N az arian , M ichel Laub, Cecília Giannetti e
Verônica Stig g er, to d o s e les estrean tes no s primeiro s anos
do novo séc u lo ? E p o r q u e estes no m es? São representa­
tivos p elo te o r d e n o v id ad e? E o s o utro s? Em qualquer
consulta ráp id a n a In te rn e t, o resultad o o ferece cerca de
40 nomes d e no v o s au to res q u e m ereceriam atenção . Seria
pretensioso d em ais q u e re r an alisar e m ap ear aqui o co n­
junto c o m p le to d o s au to re s q u e estrearam nos últimos
anos, e m ais p re te n sio so aind a seria uni-lo s por algumas
poucas c arac te rístic as d e co n teú d o o u de estilo . Nos capí­
tulos anterio res, re g istram o s u m a grand e diversidade de te­
mas e de so lu çõ es c riativ as, q ue só fez aum entar durante a
última d écad a, ao m e sm o tem p o em que pudemos no tar
que não se p ro d u z iu q u alq u er rup tura mais significativa
entre quem d esp o n to u na d écad a d e 1990 e os recém-che­
gados. Havia u m a c e rta re je iç ão , p o r p arte da “Geração 90“,
à tradição e u m a re c u p e raç ão c o nsciente de alguns mode­
los recentes d a lite ratu ra u rb ana q ue fo ram sendo retraba*
lhados e reno v ad o s. Parec e q u e o s auto res da última d eca­
da, ainda q ue se m o stre m c o n sc ien tes de suas preferências,
d eitam m elh o r u m c e rto e c letism o que cruza fro nteiras,
línguas e trad iç õ es literárias. A seguir, serão mencionad os
% m s d esses au to res m ais rec en tes, ap arentem ente dife-
rentes entre si. Em u m p o n to , entretanto , parecem compa-
raveis, na lib erd ad e e x e rc id a d e m o d o m uitas vezes irreve-
rente- raas não su p e rfic ial, na co rag em de se arriscar em
um cam inho p ró p rio , c rian d o u m a e s c rita d esab u sad a que
apo sta na fabulação .
Lív t o s do Mal fo i u m a p e q u e n a e d ito ra g aú c h a surgida

nos p rim eiro s ano s d o sé c u lo XXI e q u e lan ç o u u m grupo


de escrito res co m p lan o s p ara f in c a r p é s n a literatu ra bra­
sileira. A inda o ran g o t an g o s ( 2 0 0 3 ) , d e Pau lo Sc o tt, H otel Hell
(2003), de Jo ca Reiners T e rró n , O liv ro d a s c o u s as q u e aconte­
cem (2002), d e D aniel Pelliz z ari, e D e n t e s g u ar d ad o s (2001),

de D aniel G alera, e n tre o u tro s, f o ra m p a rte d a p rim eira


leva de p ublicaçõ es. H o je, a e d ito ra n ã o e x is te m ais, po rém
todos os auto res citad o s v ão m u ito b e m , o b rig ad o , cad a um
tocando sua carreira e, e m alg u n s c aso s, já c o m c erta con­
sagração de c rític a e d e p ú b lic o . O e x e m p lo q u e será d esta­
cado aqui é o d e D aniel G ale ra, q u e , ap ó s o p rim e iro livro
de co nto s, ago ra d isp o nív el n a In te r n e t , 7 já p u b lic o u mais
três ro m ances. O A t é o d ia e m q u e o c ã o m o r r e u , d e 2003, foi
adaptado p ara o teatro p o r M ário B o rto lo tto e p ara o cine­
ma por Beto Brant, e re lan ç ad o p e la C o m p an h ia d as Letras,
que tam bém p u b lico u M ão s d e c av alo , e m 2 0 0 6 , e A cordilhei­
ra, em 2008. Este ú ltim o já f o i d isc u tid o an te rio rm e n te ,

mas o m elho r exem p lo d a c o n trib u iç ã o d e G ale ra talvez


seja M ãos de cav alo, u m ro m a n c e q u e re v e la seg u ran ç a na
realização , cheg and o a faz e r le m b ra r o s p rim e iro s liv ro s de
Bernard o Carvalho , q u e p are c iam n a s c e r m ad u ro s e p ro n­
tos para enfrentar o o lh ar d e safiad o r d a c rític a e d o s leito ­
res. De um p o nto d e v ista m ais g e ral, o liv ro c o n stró i uma
histó ria sem rec o rrer a e x p e rim e n to s e stilístic o s rad icais,
v alo rizand o a h istó ria b e m c o n ta d a e c o n stru in d o , co m
muito esm ero , cenas e p e rso n ag e n s, c o n se g u in d o tam b ém
uma co m p lexid ad e in stig an te n a e s tru tu ra n arrativ a, apa-

7 http://w w w .ranchocarne.org/pdf/dentes.pdf.

148
jentem ente d iv id id a em três m o m ento s: um garoto de dez
anos, ciclista u rb an o , arrisca um a alucinante corrida pelos
caminhos d e u m a cid ad e elabo rad a e dominada por sua
imaginação e p e ríc ia até ser interro m p id o por um tremen­
do to m bo . O o u tro m o m e n to d iz resp eito à vida de um
médico b em -su c ed id o , q u e em certa manhã parte para
uma v iag em ru m o ao A ltip lano Bo liviano, onde escalará a
montanha C e rro Bo n e te, u m d esafio arriscado proposto
por seu am ig o e p arc eiro Renan. Parte deixando em casa
mulher e filh a, e o le ito r aco m p anha sua viagem e refle­
xões d urante n ad a m ais d o que duas horas. A terceira li­
nha narrativ a v o lta-se p ara um ad o lescente de 15 anos, mo­
rador da Esp lanad a, b airro o p erário de Porto Alegre, que
exp erimenta u m m o m e n to d e transição em sua vida, cons­
trangido p elo d ifíc il eq u ilíb rio entre os desejos de aceitação
entre os am ig o s e o s esfo rço s p ara d elim itar suas próprias
metas e d esejo s. São trê s tem p o s e três durações muito di­
ferentes, to d o s c o n v erg ind o p ara um momento de transe,
de êxtase e d e sin c ro n ia em que um nível dará sentido ao
outro o u ao s o u tro s. H ab ilm ente, Galera escreve no regis­
tro da m em ó ria, seletiv a e o rd enad a, e do presente, inten­
so e em ato , so b rep o nd o -o s co m o se fossem ordens para­
lelas co m u m a in d ep en d ên cia inicial que logo se mostra
ilusória. Os trê s p erso nag en s e as três histórias em realida­
de fo rm am u m a h istó ria única. Seus planos temporais con­
vergem p ara u m ep isó d io trau m ático que envolve covardia,
^aição e ap ag am ento . Trata-se de um episódio que se tor­
nara inv isív el p o r fo rç a d e um m ecanism o interno de sus­
pensão, e q u e d em arc a claram ente a ruptura na vida de
Germano (o m e n in o e ad o lescente que se to m a médico), ao
^esmo tem p o em q u e exp lica sua ambivalência de vida, na
^ual sucesso e realiz aç ão se entretecem com uma simultâ­
nea sensação de infelicid ad e e fru stração . C o m o no conto
de Borges “La otra m uerte”, ao heró i q ue fraq u ejo u na ba­
talha de sua vida é o ferecid a um a seg und a ch an c e, e dessa
vez ele não perde a o p o rtu nid ad e d e afirm ar q u em ele
“realmente” é. No co nto de Bo rges, o h eró i m o rre duas ve­
zes, primeiro como covard e e d ep o is c o m o heró i, m as, no
relato de Galera, co m p ro m etid o co m o realism o da lem­
brança, a “m o rte” p rim eira é a p erd a d e alg o o b tu so no ca­
ráter de um menino e, na segund a v ez , a “ m o rte ” co incid e
com o nascimento de um ho m em . Do p o n to d e v ista da
história, da co nstrução da narrativ a, o ro m an c e d e Galera
traz semelhanças co m o últim o ro m an ce d o g aú cho M ichel
Laub, 0 segundo tempo (2006). Laub tam b ém estreo u co m o
sucesso M úsica an terior (2001), seg u id o p o r Lon g e d a ág ua
(2004), todos pela Co m p anhia d as Letras. Su a narrativ a se
caracteriza por uma sensibilid ad e q u e c ap ta aco ntecim en­
tos aparentem ente sem g rand e d ram aticid ad e; no relato
de 0 segundo tempo, a histó ria é co n stru íd a e m d o is plano s
de memória: o p rim eiro p lano , o c o n c re to , so b re o que
aconteceu dia 12 de fev ereiro d e 1989, q u and o o Grêmio
vai decidir o Campeonato Brasileiro c o n tra o arq u irriv al In­
ternacional, no estád io Beira-rio , e u m seg u nd o p lano , das
consequências, se as intençõ es d o n arrad o r tiv essem sido
consumadas. Na histó ria d e Laub, o n arrad o r v ai lev ar o
irmão menor ao jo go , m as, em realid ad e, p lan e ja fug ir de
casa como fo rma de p ro testo c o n tra o d iv ó rcio d o s pais,
traindo, assim, a co nfiança d o m en in o . D esse m o d o , tam ­
bém se faz a construção do p assad o em d o is nív eis, no pla­
no concreto de um dia e no p assad o an te rio r q u e se des­
venda na med id a necessária p ara rev elar ao leito r as
motivações por trás dos ato s do p erso nag em . A ind a assim,
a reco nstrução é feita na p ersp ectiv a d o fu tu ro , p o is os

150
aco ntecimento s são relatad o s co m o partes de uma inten­
ção que acab a n ão se realiz and o , dand o abertura para con­
sequências q u e co n d u z em a narrativ a ao momento a par­
tir do qual a h istó ria é co ntad a. Tanto o plano de fuga que
flão se realiz a q u an to as suas co nsequências ganham con­
sistência d e realid ad e e, d esse m o d o , dois níveis do passado
se entrecru z am c o m d o is nív eis do futuro possível. No ro­
mance de G alera h á u m c erto reto m o ao passado, quando,
no fim d o liv ro , o p erso nag em Herm ano volta ao bairro da
juventude e re e n c o n tra N aiara, irm ã do amigo Bonobo;
mas o p assad o n ão se recu p era e o enco ntro , agora entre
duas p esso as q u e se estran h am , exp ressa essa impossibili-
; dade. Não h á n e n h u m a lição , e “as memó rias que ainda
podem ser rec u p erad as, em b o ra já não signifiquem quase
nada na p rátic a” (G alera, 2006, p. 179). Contudo é impor­
tante ressaltar q u e o m o d o co m o o enredo se constrói não
revela o traç o p e c u liar d a escrita de Galera, que tem a ver
muito m ais c o m a d ensid ad e e a p recisão de sua elaboração
do que c o m a e stru tu ra ro m anesca p ro priamente dita. Lon­
ge de ser m in im alista, o texto d e Galera resulta compacto
; e sem d iv ag açõ es su p érflu as nem d escriçõ es desnecessá­
rias. Em alg u n s m o m e n to s, a o bjetiv id ad e dos detalhes
apresenta se m e lh an ç a c o m v erbetes de dicionário ou ins­
truções d e m an u al d e uso , co m o quando o narrador cede à
tentação d e e n trar n o s d etalhes técnico s de uma corrida de
I bicicleta, d e u m a c esarian a o u d e um a escalada de monta­
nhismo. Há u m c e rto hip er-realism o nesse detalhismo, mas
nada nesse p ro c e d im e n to o v incula às ilusões representati­
vas do m ero artifíc io d escritiv o . A qui, o detalhe preenche
0 relato c o m u m a c e rta necessid ad e que empurra a açáo
para a fren te, c o m o se fo sse um crescim ento natural. Na
ekbo ração d a tran sfo rm aç ão d e personalidade, que ocorre
no romance, a d inâm ica não p assa p ela c o n sc iên c ia refle­
xiva, nem tem nela sua fo rça m o to ra, tu d o p arec e ser con­
sequência de pequenas c o n tin g ênc ias, q u e fin alm en te ga­
nham envergadura em g rand es aç õ es, e a transfo rm ação
se performatiza p lasticam ente na m aterialid ad e d o relato .
Não há espaço para d iscussão e x iste n c ial e m u ito menos
para momentos de hesitação e av aliação d as o p çõ es po ssí­
veis, pois tudo se m etam o rfo seia c o m o q u e p o r necessid a­
de intrínseca. Sublinham o s, aq u i, esse traç o c o m o essencial
para entend er o que p o d e u n ir v ário s d o s esc rito res mais
recentes, apesar de suas d iferenças em te m a e fo rm a. Des­
faz-se a primeira im p ressão d e re alism o sim p les no caso de
Galera quando a leitura se p rend e à ev o lu ção d a histó ria
sem reco rrer ao esp etacular d o s ac o n te c im e n to s.
Um exem plo de o u tra re aliz aç ão d essa m e sm a fo rça
plástica pode ser enco ntrad o no s te x to s d e Santiag o Naza-
rian, que, preco ce co m o G alera, já te m q u atro ro m ances
publicados: Olívio (2003), A m o r t e s e m n o m e (2004), Fer iado de
mim mesmo (2005) e M as tig an do hu m an o s , d e 2006. Feriado

de mim mesmo tam bém se p o d e c o n fu n d ir c o m u m ro m an­

ce existencial co m ares franceses (“ O in fe rn o são o s o utro s”


etc.), pois a histó ria é narrad a p o r u m jo v e m e so litário ra­
paz que, trabalhand o em casa n u m a trad u ç ão d u rante um
feriado, entra em um esp iral d e p sic o se p aran ó ic a e acaba
matando seu room m ate Tho m as, c o n fu n d id o c o m u m ima­
ginário perseguidor. Parece triv ial, m as, e m realid ad e, a
narrativa é bem co nstruíd a e n u m tip o d e d iscu rso ind ire­
to livre pelo qual a leitu ra é c ap tu rad a n a m e c ân ic a da per­
da de realidade e num a lo u cu ra in c re sc en do. Faz v er e per­
ceber o narrado r em franco p ro c esso d e alie n aç ão , o que
afasta a narrativ a do d ram a e x iste n c ial e a re m ete fo rte­
mente aos co nto s fantástico s d o séc u lo XIX, em sua explo ­

152
ração d o f e n ô m e n o d o d up lo , co m o em Hoffman, ou Poe,
Stevenson e D o sto iev ski, en tre outros. De novo a escrita pa-
rece ser u m lu g ar p o ssív el p ara a materialização da loucu­
ra, e tanto a in tro sp e c ç ão q uanto o monólogo interior não
criam a ilu são d e u m a p ro fund id ad e psicológica do perso­
nagem, m as m an ife stam a d ram atização do estranhamen­
to que a c o n sc iê n c ia p o d e criar.

Ele f ico u lá, co m o ro s to colad o no chão e parecia tudo lin­


do, p are cia tu d o ce rto . Ele fazendo parte de seu próprio
ap artam en to . Es co rre n d o pelas frestas, se integrando, inte­
ragindo co m o s in seto s. N ão m ais esmagando baratas. Não
mais se o lh an d o n o esp elh o . M as mergulhando nos cacos,
esm agand o-se j u n to a eles. A go ra somos apenas um. Todos
nós. A q ui n e s te ap artam e n to , somos todos sangue do mes­
mo san g ue. (N az arian , 2 0 0 6 , p. 142)

No ú ltim o ro m an c e , M astig an do humanos, o passo em di­


reção ao fan tástic o e à fab u lação é consumado plenamen­
te. Parece q u e N az arian q uis se afastar de um cenário de­
masiado n arc ísic o , an tes m u ito centrad o em personagens
solitários, e n te d iad o s, p erd id o s e desencantados com o
mundo, p ara e lab o rar m ais intensam ente a inventividade
fantástica. O re su ltad o é u m d ivertido relato autobiográfico
de um jac aré q u e v iv e no s esgo to s da grande cidade e que
testem unha, c o m sang u e-frio , as mazelas humanas, apre­
sentando u m a g ro te sc a sátira alegó rica da sociedade de
consumo c o m m o m e n to s hilariantes e debochados. A car­
reira ac ad êm ica d o ja c a ré co m eça quando é convidado pelo
Dr. G o nco u rt, o ja b u ti, p ara ensinar na universidade. Aqui,
úücia-se a e sc rita d e u m a tese que é o próprio livro e, como
Se vê, tam b ém u m re lato d e fo rm ação do escritor jacaré.
Seria p o ssív el in d ic ar insp iraçõ es alegóricas óbvias de la
F°ntaine a G eo rg e O rw ell, há um paralelo claro com o con-
to de Kafka “Info rm e p ara urna A cad em ia”, c o m a grand e
diferença que não se trata aqui d e u m a aleg o ria m o ral nu­
ma hierarquia entre natureza anim al e c aráter hum ano . Os
animais já são mais hum ano s do q ue o s hu m ano s e vice­
versa, e o que o mund o anim al p o d e o f e re c e r talv ez seja
apenas uma certa ho nestid ad e em relação à p ró p ria natu­
reza e instinto. Enco ntram o s, aind a, a p ro liferação das re­
ferências literárias e auto bio g ráficas tão caras ao auto r, e,
no fim do ro mance, quand o o narrad o r fin alm e n te irá en­
viar o manuscrito ao escrito r-aranha Seb astião Salto (sic),
que, com oito braços é cap az d e esc rev er q u atro p arágra­
fos ao mesmo tempo , o jac aré c o n fessa q u e te ria p referid o
pedir os conselhos ao escrito r Tho m as Sc h im id t, m as este
morreu em Feriado de mim m esm o (2005). R ec eb e, d e Salto , a
seguinte reco mend ação , que o p ró p rio N az arian d ev e ter
ouvido muitas vezes:

Olhe, Frank. Sua vida pode ser in teress an te p ara s e r vivida.


Se você contar essas histórias p ara seu s am ig o s n u m bar,
num blog, tenho certeza de que eles ach arão im p ressio nan ­
te, mas para registrar em papel são ap en as h istó rias b anais
de um jacaré, entende? (p. 216)

Nazarian extrai excelentes o b serv açõ es d as asp iraçõ es miú­


das, e sua habilid ad e de narrar, a p artir d e banalid ad es,
vem se aliando a um a p o tência c riativ a salu tar. Co ntud o
não parece ainda capaz de sair d a realid ad e p ró p ria e de­
colar na linguagem, d eixand o n o leito r, ao term in ar o ro­
mance, a impressão de um c erto esv az iam ento o u falta de
assunto.
Na capacidade de fabular e c riar a realid ad e no ato da
fala, de modo a d esfazer a p artilha en tre o p riv ad o e o co­
letivo, Nazarian pode ser co m p arad o c o m a g aú cha Verô ni­
ca Stigger. Crítica e p ro fesso ra d e arte, Stig g er lanço u dois
livros d e c o n to s, O t r ág ic o e ou tras comédias, pela editora
7Letras, em 2004, e G ran c abar et ãemenzial, pela CosacNaify,
em 2007. A m b o s m arc ad o s p o r um estilo que aparente­
mente p o u co te m a v er c o m as características predominan­
tes da ficção atu al. D o p o nto d e vista do conteúdo, são his­
tórias g ro tescas, d e v io lên c ia cruel e sexo, com uma clara
exploração d e f ix aç õ e s anais e práticas sadomasoquistas,
mas tud o sem p re n arrad o em to m lúdico, envolvido por
humor n eg ro e e x ag e ro extrav ag ante. O contorcionismo
de seus p erso n ag e n s re m ete às figuras de desenhos anima­
dos, cujo s c o rp o s m u tan te s e sem p re maleáveis não se en­
quadram n o s lim ite s d a anato m ia convencional. Seus con­
tos tam b ém faz e m le m b rar as histó rias burlescas de Hilda
Hilst, m as n e le s en c o n tram o s igualm ente momentos de
surrealismo à la C am p o s d e Carvalho, e alguns deles, por
sua co nstru ção fab u lar, n o p ano ram a nacional, apontariam
para os c o n to s d e M u rilo Rubião ou ainda para a liberdade
co nstrutiva d e u m Jo sé J. Veiga. As narrativas simples e
diretas in tro d u z e m c o m fo rça o leito r nas tramas de um
imaginário b iz arro e escab ro so , em que, por exemplo, uma
mulher p o d e se r rap id am en te tragad a e mastigada por
uma escad a ro lan te , d ian te d o em baraço do marido, que
observa tu d o , sem en ten d er:

Q uando ele se d eu co n ta de q ue perdia a mulher, restava a


ela, in teiro , s o m e n te u m b raço — e a mão correspondente,
que, d ed os ab e rto s , trem elicav a no ar. Na dúvida se aquilo
era u m ú ltim o ace n o , u m pedido de socorro ou um espas­
mo de dor, o m arid o , o tim ista, acenou-lhe de volta. (2007,
P 17)

Estam o s sim u ltan eam en te no registro da fábula, do con­


to de fad as e d o m ito , p ela fo rça insistente das construções
^ ling u ag em , q u e em erg e to talm ente real e sem nenhu­
ma referência exterio r rep resentativ a. Essa co nv erg ência
entre a liberdade im aginativ a e um a alta p rec isão na co ns­
trução narrativa se faz no tar n itid am e n te , p o r exem p lo ,
no conto “Do mitila”, em que a p erso nag em h o m ô n im a sai
para passear no d o mingo , 25 d e jan e iro , às 15 h o ras, e pas­
sa por uma série de m utilaçõ es, tu d o m in u c io sam e n te cro ­
nometrado e, quando finalm ente c heg a em casa, u m m o ­
lambo se arrastand o já sem u m b raç o e as d u as p ernas
destruídas, recebe um b eijo na testa e as p alav ras carin ho ­
sas da mãe, que lhe ped e p ara to m ar lo g o u m b an h o , po is
o jantar está pro nto. Já a fo rte in c lin aç ão p e lo h u m o r ne­
gro se dá nos exp erim ento s q ue te stam as m etam o rfo ses
do real até to car os lim ites d a im ag inaç ão , c o m o n o co nto
“Cubículo”, em que um casal v ai m o rar n o c u d e u m am i­
go e depois acaba se alo jand o nu m a lo m b rig a, e c o m tanto
conforto que recebe a v isita d o p ró p rio am ig o . O u e m “Ja-
nice e o umbigo”, de 0 trág ico e ou tr as c o m é dias (2004), em
que Janice pouco a p o uco enfia a c ab eç a e d ep o is o co rp o
todo no umbigo até co nseg uir v iv er feliz d en tro d ele. A s­
sim os corpos se entrelaçam e se m e tam o rfo se iam co m a
facilidade p lástica do d esejo p o lim ó rfic o e p erv erso que
leva um velho senho r a d esco brir o s p raz eres d e chu p ar os
próprios genitais o u go zar en tre seus seio s p o stiço s. O u ain­
da como aco ntece co m a sua O lív ia Palito , q u e enc o ntra
novos usos para os b aixinho s q u and o , ac id e n talm e n te , in­
troduz um cabeção de b aixinho d en tro d o ânu s. C o ntud o ,
a satírica vio lência do univ erso d e Stig g er v ai d e m ão s da­
das com a vio lência extraíd a d a p ró p ria lin g u ag em , refo r­
çada pelo palavrão, usad o e ab u sad o c o m a aleg ria d e um a
criança que d esco bre a fo rça d a p alav ra p ro ib id a e insiste
nela até o esg o tam ento . É o q u e se v ê, p o r exem p lo , no
conto “A chuv a”, que co m eça d esse m o d o :

156
imagina se u m d ia co m e ças s e a ch o v er caralhos. Um monte

¿e caralh o s d e to d o s o s tam an h o s e form as caindo do céu.

Uns m aio re s , o u tro s m e n o re s . U ns fininhos, outros bem

grossos, p are ce n d o to ras . C aralh o s grandes. Caralhos volu­

mosos. C aralh o s ro xi n h o s . C aralh o s peq uenos, mas engra­

çadinhos, d aq u eles q u e d á v o n tad e de chupar feito piruli­

to. C aralh os co m b e m i g a . C aralh os lisos. Caralhos brancos.

Caralhos ro sas. C aralh o s p reto s. C aralhos retos, apontando

para a f re n te . C aral h o s m ais q ue ereto s, apontando para

cima. C aralh o s to rto s , ap o n tan d o p ara o lado. Dois caralhos

em um só , tip o o s q u e se v e e m em film e pornô de aberra­


ção. C aralh os circu n cid ad o s . C aralh os carnudos. Caralhos a

quatro. T od os d u ro s e , co m o se diz, prontos para o comba­

te. Um p araíso . (2 0 0 4 , p. 29)

Em alg u m as h istó rias d e Stig g er, so m o s levados de vol­


ta às narrativ as e tn o g ráfic as d o s p rim eiro s viajantes, com
descrições d etalh ad as d e p o v o s, civ ilizaçõ es e culturas ab­
soluta e d elib e rad am e n te inv ero ssím eis, mas desenhadas
com um a ap are n te fid elid ad e a d etalhes e minúcias cientí­
ficas, co m o nas o b se rv aç õ es a resp eito do pequeno “Jakoo,
um p equeno p aís lo caliz ad o no O ceano Pacífico, à altura do
paralelo trin ta g rau s su l” (2007, p. 45) o u dos baixinho s em
“Olivia Palito ”, so b re o s q u ais se sabe que

(...) viviam m uito bem : tomavam banho diariamente, lava­


vam as mão s antes de comer, iam à missa todo domingo,
trocavam os lençó is e as to alhas todo sábado, dormiam oito
horas po r no ite, co m iam três vezes ao dia (incluindo sobre­
mesa), fo m icav am quatro vezes por semana, cortavam as
unhas cinco vezes po r mês." (p. 60)

Esse d etalh ism o exac erb ad o cria estruturas e lógicas si­


m ultaneam ente re ais e u tó p icas, seja ao tratar de estra­
nhos exo tism o s, se ja ao d estilar o s p rincip ais elem ento s
^Ue caracteriz am u m p erso nag em , co m o no conto “No tea-
tr° ’ (2004), em q u e, so b re a p erso nag em Jo sefina, se diz:
Josefina não gostava de teatro . N em d e circo . Ela gostava
de novelas, de crian ças, de b ich o s, d e b an an a am assad a, de
espirrar, de arrum ar o cab elo n o salão d a esq u in a, de pas­
sear no conversível de seu n am o rad o rico e feio so , de co r­
near seu nam orado rico e feio so co m o b o n itão d o jip e ve­
lho, de dar b anho no seu co clcer sp an iel, de f az e r tricô e
sexo anal, de ouvir pagode e co n fissõ es d as am ig as, (p. 20)

Na verdade, o estranham ento q u e su rg e n e sse s c o n to s tan­


ge o limite entre o m ais b anal e o m ais extrav ag an te; a apa­
rição do m inho cão na casa d a M arth a e d e su a fam ília é
aceita com a m esm a n atu ralid ad e c o m q u e a fam ília de
Gregor Samsa aceita sua m etam o rfo se e m in se to , e, d essa
maneira, a realid ad e g an ha d im e n sõ e s f a n tá stic a s e su-
prarreais. Trata-se aí de re c o n h e c e r o re al p o r interm éd io
do estranho. O arg entino C esar A ira d esc rev eu c e rta v ez o
escritor Copi co m o aq uele q u e p o ssib ilita u m a no v a co n­
cepção do realism o que c ab eria tam b é m à n arrativ a de
Stigger: “Um realism o d a felicid ad e, d o q u al a arte é a ga­
rantia” (Aira, 1991, p. 82) e q ue se d ev e a u m p ro c esso de
transmutação em que a felicid ad e ab an d o n a o cam p o do
possível, onde fo i enquad rad a p ela c o m p re e n são co m um ,
para se instalar na realid ad e d o e stran h o , c o m tu d o o que
traz de absurdo e extrav ag ante.
Os exemplo s d essa p o tência d e m e tam o rfo se e transfi­
guração m encio nad o s p arecem se d eslo car e m relaç ão à in­
sistência da literatura b rasileira, analisad a in ic ialm e n te , de
se to rnar p ró xim a à realid ad e m arg in al e à v io lê n c ia das
grandes cidades. Ao ab rir m ão d e u m c o m p ro m isso rep re­
sentativo co m um a realid ad e h istó ric a re c o n h e c ív e l, esses
novos auto res se p ro p õ em a c riar d ire tam e n te o s co nto r­
nos daquilo que se to rna p resente e real. M esm o quand o
se trata de relato s de m em ó ria, no ta-se u m a co m p lexifica-

158
çã0 do te m p o e d o s p ro c esso s narrativ o s envolvidos, evi­
denciados p e lo tra b a lh o c o m a linguagem. A realidade não
é o bjeto e x te rio r à fic ç ão , m as a p o tência de transforma­
ção e d e c riaç ão q u e n e la se exp ressa. A té mesmo no retor­
no a u m a n arrativ a in tro sp ectiv a, a consciência é insepará­
vel de seu o b je to , e a n arrativ a p erfo rm atiza sua simbiose,
conferindo à se n sib ilid ad e subjetiv a uma natureza menos
psicológica e e x iste n c ial. N o ro m ance de estreia da jorna­
lista C ec ília G ia n n e tti, Lu g ares qu e n ão conheço, pessoas que
nunca v i, d e 2 0 0 7 , v o ltam o s e não vo ltamos ao cenário ur­

bano atu al, R io d e Ja n e iro , em sua gro tesca brutalidade co­


tidiana. U m a jo v e m re p ó rte r d e televisão testemunha uma
cena d e e x tre m a v io lê n c ia, e o mund o começa a perder
contorno e d e fin iç ão . O q u e era registro de uma curiosida­
de jo rn alístic a, m e sc lan d o cenas de observação com repre­
sentações m id iátic as, e n tra nu m a ro ta de alucinação e de­
sequilíbrio . Esse p ro c e sso d e p erd a traumática sustentado
na lin g u ag em d o te x to , q u e se tece numa complexidade
crescente, o f e re c e as m arc as do esquecimento do inominá­
vel e a p ro lif e raç ão d o s sinto m as que interrogam as fron­
teiras d a fan tasia, lo u c u ra e pesadelo .

G ostaria q u e o v e n to arran casse as placas das ruas como


folhas d as árv o re s e q ue tod o s se esquecessem como se cha­
m am os b airro s , as av en id as, q ue lembram de conversas
en treou v id as d é cad as atrás , go staria que o vento embara­
lhasse f ro n te iras e e stad o s pelo país afora e ninguém mais
p ro n u n ciasse seu s n o m e s. Q ue ela m esma não fosse mais

ch am ad a p o r n in g u é m , (p. 34-35)

É im p o ssív el re su m ir o p ro cesso que o romance enceta, e


^esm o n ão in te re ssa, p o is o p ro jeto da autora é fazer com
^ e se p o ssa ac o m p an h á-lo na p ró pria leitura, que deve ser
feita sem p ressa. Em b o ra se tratand o de um romance, a
estrutura se despedaça em frag m ento s d e p ro sa co m certa
\ autonomia po ética, sep arad o s p o r um p ro je to g ráfico inte­

ressante de Christiano M enezes. “Tud o m e p arece abso lu­


tam ente real”, o bserva a narrad o ra, e tu d o é, ao m esm o
tempo , cada vez m ais inco m p reensív el, em b o ra m antid a
sua lógica interna.

Doca brinca em um canto do co n su ltó rio , en fian d o e reti­


rando objetos com o um peso de papel e u m a b ússo la dos
buracos de sua m ão. A té q ue p erd e co m p l e tam e n te seus
contornos e tudo m ais q ue o define, su m ind o n o ar, d eixan ­
do-me para trás. (p. 196)

A pesar do exp erim entalism o d e e stilo , a lin g u ag em não


perde seu nexo , e, m esm o co lo cand o em c rise a d efinição
referencial e a função rep resentativ a, a lin g u ag em não se
desfaz, e o todo se m antém reco nhecív el, em b o ra estranho .
Nos últimos cinco cap ítulo s, to d o s c o m o títu lo “ C ristina”,
acompanhamos o rep o uso d a rep ó rte r so b o s cuid ad o s do
namorado “Baiano ” e d o s am ig o s. En c errad a e m casa, a
realidade se ap resenta so b a fo rm a d e im ag en s, d e m o d o
que o lhar pela janela e o lhar a telev isão é a m e sm a co isa,
a personagem interage co m o se ela m e sm a fo sse m ais um a
imagem inserid a num m und o d e im ag ens. C o nfinad a nes­
se gabinete de esp elho s, não se v islu m b ra n e n h u m a sup e­
ração do torpor, e a única cu ra e a felicid ad e só se ap resen­
tam para quem não carreg a c o nsig o o q u e ac o n te c e u : “ Seu
papel na histó ria é seg uir ad ian te. A felic id ad e é assim :
aconteceu” (p. 224).
Giannetti reto rna aí p ara u m a p o sição b e m co nhecid a
entre os escrito res da “G eração 9 0 ”, trab alh an d o o o lhar
jo rnalístico d iante do esp etácu lo c ru el d a v io lên c ia e dos
extrem o s da m arg inaliz ação so c ial. A im ag e m d a m íd ia
explo ra a dor hum ana, m as tam b ém afasta e p ro teg e o es­

160
pectador d ela, fu n cio n an d o co m o projeção e escudo simul­
taneam ente. A n arrad o ra jo rnalista está no limite dessa du­
pla face d a realid ad e u rb ana, po r um lado vivendo o tédio
da sensib ilid ad e anestesiad a do cotidiano e, por outro lado,
a crise trau m átic a d e u m a situação que, de repente, a de­
sequilibra. Em v ez d e d escrev er e expo r a violência, o ro­
mance c o n stró i su as co nseq u ências na percepção da narra­
dora, q u e v ai p erd en d o d efinição e nitidez num processo
de d ec o m p o sição . Em certo s mo m ento s, a autora cede à
tentação d a e sc rita d ifíc il, a narrativ a abandona o leitor e
se to m a sin té tic a d em ais p o r falta de concretude na elabo­
ração d as seq u ê n c ias. A p esar disso e de uma certa previsi­
bilidade n o e n re d o trau m ático , o romance oferece um re­
lato so b re a n ec e ssid ad e de esquecer. O encontro com o
presente é in su p o rtáv e l e a m em ó ria não oferece redenção.
Para su p erá-lo , a narrad o ra entend e que precisa deixá-lo
para trás o u su c u m b irá so b o seu peso. Ao abrir mão do
realism o re p rese n tativ o e d a tentação de descrever esse es­
p etáculo c o m o é v iv id o o u co m o é reproduzido pela ima­
gem m id iátic a, G ian n e tti evita confro ntar a imagem com
o texto . R ealiz a o q u e a literatu ra faz melhor, expressando
a realid ad e ao c riar relaçõ es e ações no tempo e no espaço
em im ag en s su g estiv as q ue, sem serem visualmente descri­
tivas, se im p rim e m e no s fazem pensar.
I
Bibliografia

Teoria e crít ica


AGAMBEN, G io rg io (2008). C he c o s é il contemporâneo? Roma: Notte-
tempo.
AiRA, Cesar (1991). C opi. Bueno s A ires: Beatriz Viterbo Editora.
ARRI GU CCI JR., Davi (1987). En igm a e comentário. São Paulo: Companhia
das Letras.
------- (1979). Jo rn al, realism o , alego ria. O romance brasileiro recen­
te. In: A chados e pe r dido s. São Paulo: Polis.
BARBIERI, Therez inha (2003). Ficção impura. Rio de Janeiro: EdUERJ.
BARTHES, Ro land (1977). R olan d Barthes p or Roland Barthes. São Paulo:
Cultrix.
------- (2003). O n eu t ro. São Paulo : Martins Fontes.
------- (2005). A p r e p ar aç ão d o rom an ce I. São Paulo: Martins Fontes.
BENJAMIN, W alter (1985). O Narrado r. Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov. In: M ag ia e técnica, arte e política. Ensaios sobre lite­
ratura e h istó ria d a cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Pau­
lo: Brasiliense.
BOSI, A lfredo (1975). O con to brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix.
--------(1994). H ist ória con cisa d a literatu ra brasileira. São Paulo: Cultrix.
CARNEIRO, Fláv io (2005). N o p aís do presente - ficção brasileira no iní­
cio do século XXI. Rio de Janeiro : Rocco.
DEALTRY, G io v anna (o rg .) (2007). A lguma prosa: Ensaios sobre literatu­
ra brasileira co ntem p o rân ea. Rio de Janeiro: 7Letras.
FOSTER, Hal (1994). T he R etu m o ft h e Real. Nova York: October.
FOUCAULT, M ichel (2004). A escrita de si. In: D itos e escritos, v. V. Trad.
Manoel Barro s da M o tta. Rio de Janeiro : Forense Universitária.
FREIRE, M arcelino (2008a). “M arcelino Freire fala sobre seu novo livro,
‘Rasif O G lobo, C ad erno Pro sa e Verso, 29 set. 2008.
GARRAMUNO, Flo rencia (1997). G enealogias culturales: Argentina, Brasil
y Uruguay en la no v ela co ntem p o rânea. Buenos Aires: Beatriz Vi­
terbo Ed ito ra.
GOMES, Renato C o rd eiro (1994). Todas as cidades, a cidade. Rio de Janei­
ro: Ro cco .
; GUMBRECHT, H ans U lrich (2004). Production ofPresence: What meaning
canno t co nv ey. C alifó rnia: Stanfo rd University Press.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (1992). P ós-m odem ism o e política. Rio de
Janeiro: Rocco.
-------- (2000). 70-80 - Cultura em trânsito. Rio d e Jan e iro : A ero p lan o.
LADDAGA, Reinaldo (2006). Espetáculo s d e realid ad . C omunicação 6 Po­
lítica. Rio de Janeiro , v. 24, n° 3, p. 159-178, set.-dez.

-------- (2007). Espetáculos de realidad. Bueno s A ires: Beatriz Viterbo


Editora.
LIMA, Luiz Costa (1979). A literatura e o leitor: Texto s de estética da re­
cepção. Rio de Janeiro : Paz e Terra.
-------- (1981). D ispersa dem anda. Rio d e Janeiro : Francisco Alves.
-------- (1991). Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro : Ro cco .
-------- (2002). Sobre alguns A ccio nistas co ntem p o râneo s. In: Interven­
ções. São Paulo: Edusp.
LOPES, Denílson (2007). A delicadez a. Brasília: UnB.
LY0TARD, Jean-François (1988). L' inhumain. Causeries sur les temps. Pa­
ris: Galilée.
MORICONIJR., ítalo (1987). Tentand o cap tar o ho m em -ilha. M atraga.
Rio de Janeiro, v. 1, n° 2/ 3, p. 21-29, maio/ dez.
-------- (1994). A prov ocação pós- m o dem a - raz ão histórica e política da teo­
ria hoje. Rio de Janeiro: Diadorim.
-------- (org.) (2001). 0s cem melhores contos do século. São Paulo: Objeti­
va.
-------- (2004). “Blogueiros na berlind a”. Entrev ista co m Flávio Carnei­
ro a Paula Barcellos. Jorn al do Brasil, T l nov.
RESENDE, Beatriz (2007). Questõ es da ficção brasileira do século XXI.
Grumo 6 .2 , dez.
-------- (2008). Contemporâneos - Exp ressõ es da literatu ra brasileira no
século XXI. Rio de Janeiro : Casa da Palavra.
R1DEL, Dirce; BARBIERI, Ivo (1968). Literatu ra brasileira em curso. Rio de
Janeiro: Bloch.
SANTIAGO, Silviano (2002). N as m alhas da letra. Rio de Janeiro : Rocco.
-------- (2004). Outubro retalhad o (entre Esto co lm o e Frankfurt). In:
MARGATO, Izabel; GOMES, Renato Co rd eiro . O p ap el do intelectual
hoje. Belo Horizonte: s. ed.
-------- (2005). 0 cosmopolitismo do pobre. Belo H o rizo nte: EdUFMG.
SANTOS, Roberto Corrêa dos (1998). Modos de saber, m odos de adoecer.
Belo Horizonte: Ed. UFMG.

164
SCHWARTZ, Ro berto (1987). Que horas são? São Paulo: Companhia das
Letras.
^ — (2006). Sequ ên cias brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.
SELZER, Mark (1998). Serial Killers: Death and life in America’s wound
culture. Nova Yo rk: Ro utled ge.
SPIVAK, Gayatri (1988). Can the subaltern speak? In: NELSON, Cary;
GROSSBERG, Law rence. M arx ism and the interpretation of culture.
Illinois: Univ ersity o f Illino is.
SCH0LLAMMER, Karl Erik (2 0 0 5 ). O s novos realismos na arte e na cul­
tura co ntem p o rânea. In: PEREIRA, Miguel: GOMES, Renato Cordei­
ro; FIGUEIREDO, V era Lúcia Follain de. Comunicação, representação e
práticas sociais. Rio d e Janeiro : Editora da PUC-Rio.

SCHWARTZ, Ro b erto (1979). Pressupostos, salvo engano, da “Dialética


da M aland ragem ”. Ensaios de O pinião (13).
--------(1984). N os bast ido res da censura, sexualidade, literatura e repressão
pós-64. São Paulo : Estação Liberdade.

SOUZA, Eneid a M aria d e (1993). Traço crítico. Belo Horizonte/ Rio de Ja­
neiro: Ed. UFMG/ UFRJ.
SÜSSEKIND, Flo ra (1982). Tal Brasil, qual romance? Dissertação de Mes-
, trado. D ep artam ento d e Letras. PUC-Rio.
\ ------- (1985). Literatu ra e v ida literária. Polémicas, diários e retratos. Belo

Ho rizonte: UFMG, 2004.


--------(1993). P apéis colados - ensaios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
-------- (1998). A v oz e a série. Rio/ Belo Horizonte: Sette Letras /
EdUFMG.
—----- (2000). Escalas & ventrílo quo s. Folha de S. Paulo, São Paulo. 23
jul., Cad erno Mais!
—— (2005). D esterrito rializ ação e forma literária. Literatura bra­
sileira c o n tem p o rân ea, a exp eriência urbana. Literatura e Socif-
dade. São Paulo : Universid ad e de São Paulo, FFLCH, DTLLC, n. 8 ,

p. 60-81.
VENTURA, Z uenir (1994). C idade partida. São Paulo: Companhia das Le­
tras.
VILLAÇA, N izia (1996). P aradox os do pós-modemo. Sujeito & ficção. Rio
de Janeiro : Ed. UFRJ.
WALDMAN, Bertha. Q uem fala? Vozes de um sujeito desautorizado. In:
Ficções, v. 4. Rio d e Janeiro : Sette Letras, p. 93-101.
Bibliografia de ficção

ABREU, Caio Fernando (1982). M orangos mofados. São Paulo : Brasiliense.


AMADO, Jorge (1984). Tocaia g ran de: a face o bscura. Rio de Janeiro :
Record.
ANDRADE, Oswald de (1972). M emórias sentim en tais de Jo ão M iram ar. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira.
-------- (1991). Serafim Ponte G rande. São Paulo : Glo bo / Secretaria de
Estado da Cultura.
ÂNGELO, Ivan (1976). A festa. São Paulo: Geração Ed ito rial, 2004.
-------- (1979). A casa de vidro. São Paulo: Liv raria Cultura.
AQUINO, Marçal (1994). M iss D anúbio. São Paulo : Scritta.
-------- (2002). 0 invasor. São Paulo: Geração .
-------- (2005). Eu receberia as piores n otícias dos seus lindos lábios. São Pau­
lo: Companhia das Letras.
ARÊAS, Vilma (2000). Trouxa frottx a. São Paulo : C o m p anhia das Letras.
ATHAYDE, Celso; MV BUL (2006). Falcão. M enino s d o tráfico . Rio de Ja­
neiro: Objetiva.
------- ; -------- ; SOARES, Luis Eduardo (2006). C abeç a de po rco . Rio de
Janeiro: Objetiva.
AVERBUCK, Clarah (2002). M áquina de pin ball. São Paulo : Co nrad.
BANDEIRA, Manuel (1993). Estrela da v ida inteira. Rio d e Janeiro : Nova
Fronteira.
BARCELLOS, Caco (2003). A busado: O don o d o D on a M artha. Rio d e Janei­
ro: Record.
BLOCH, Arnaldo (2000). Talk show. São Paulo : C o m p anhia das Letras.
BONASSI, Fernando (1991). Um céu de estrelas. São Paulo : Siciliano .
-------- (1989). 0 amor em chamas: P ân ico- horror & m orte. São Paulo : Esta­
ção Liberdade.
-------- (2000). 100 coisas. São Paulo: A ngra.
-------- (2000). Letras de liberdade. São Paulo : W B.
-------- (2001). Passaporte. São Paulo: CosacNaify.
-------- (2003). Prova contrária. Rio de Janeiro : O bjetiv a, 2003.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola (1974). Z ero. Rio d e Janeiro : Glo bal, 2001.
BRASIL, Luiz A ntonio Assis (1992). Um castelo n o p am p a. Po rto A legre:
Mercado Aberto.
-------- (2003). A margem imóvel do rio. Po rto A legre: L&PM.
BRITO, Ronaldo Correia de (1996). A s n oites e os dias. Recife: Bagaço.

166
___ (2003). Faca. São Paulo: CosacNaify.
„ ___ _ (2005). Liv ro dos homens. São Paulo: CosacNaify.
___ (2008). G àlileia. São Paulo: Objetiva.
BRUNA SURFISTINHA (Rachel Pacheco) (2005). 0 doce veneno do escorpião.
São Paulo : Pand a Bo o ks.
BUENO, W ilso n (1999). Jar dim zoológico. São Paulo: Iluminuras.
CALCANHOTTO, A d riana (2008). Saga lusa, relato de uma viagem. Rio de
Janeiro : Co bo gó .
CALLADO, A nto nio (1976). Reflex os do baüe. São Paulo: Nova Fronteira.
CARDOSO, Rafael (2002). C ontrole remoto. Rio de Janeiro: Record.
CARRASCOZA, Jo ão A nz anello (2002). D uas tardes. São Paulo: Boitempo.
CARVALHO, Bernard o (1993). A berração. São Paulo: Companhia das
Letras.
---------(1995). O nze. São Paulo : Companhia das Letras.
— (1996). Os bê bado s e os sonâmbulos. São Paulo: Companhia das
Letras.
-------- — (1998). T eatro: rom an ce. São Paulo: Companhia das Letras.
---------(1999). A s iniciais. São Paulo: Companhia das Letras.
-------- (2000). M edo de Sade. São Paulo: Companhia das Letras.
-------- (2002). N ov e noites. São Paulo: Companhia das Letras.
-------- (2003). M on g ólia. São Paulo: Companhia das Letras.
-------- (2007). O sol se p õ e em São Paulo. São Paulo: Companhia das
Letras.
COLASANTI, M arina (1986). C ontos de am or rasgado. Rio de Janeiro:
Rocco.
CONRAD, Jo sep h (2002). O coraç ão das trevas. Porto Alegre: L&PM.
DANTAS, Francisco J. C. (1993). Os desvalidos. São Paulo: Companhia das
Letras.
ECO, Um berto (1980). O n om e da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983.
EMED1ATO, Luiz Fernand o (1977). A rebelião dos mortos. São Paulo: Alfa-
Ômega.
FERNANDES, Rinald o d e (o rg .) (2006). Contos cruéis. Rio de Janeiro: Ge­
ração .
FERREIRA, Ev and ro A ffo nso (2000). Crogotó! São Paulo: Editora 34,
2007.
FERREZ (2000). C ap ão p ec ado . São Paulo: Labortexto.
— (2003). M an u al p rát ic o do ódio. São Paulo: Objetiva
-------- (2005). Literatura marginal: Talento s da escrita p eriférica. São
Paulo: Agir.
-------- (2006). Ninguém é inocente em São Paulo. São Paulo: Objetiv a.
FRJZA, Guilherme (2004). Meu nome não é Johnny . Rio de Janeiro : Record.
FONSECA, Rubem (1973). 0 caso M orei Rio de Janeiro : A rteno va.
-------- (1990). Agosto. São Paulo: Companhia das Letras.
-------- (1990). Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. São Paulo : Com­
panhia das Letras.
-------- (1992). Romance negro. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (1963). 0s prisioneiros. São Paulo: Co m panhia das Letras, 2000.
-------- (1994). 0 selvagem da ópera. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (1995). 0 buraco na parede. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (1997). E do meio do mundo prostituto só am ores g u ardei ao meu cha­
ruto. São Paulo: Companhia das Letras.
-------- (1997). Histórias de amor. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (1998). Confraria dos espadas. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (1967). Lúcia M cCartney. São Paulo: Co m p anhia das Letras, 1999.
-------- (2000). O doente M olière. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (2001). Secreções, excreções e desatinos. São Paulo : Co m p anhia das
Letras.
-------- (2002). Pequenas criaturas. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (2003). D iário de umfescenino. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (2004). 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo : Co m p anhia das
Letras.
-------- (2005). Mandrake, a bíblia e a beng ala. São Paulo : Co m p anhia das
Letras.
-------- (2006). Ela e outras mulheres. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
-------- (2007). 0 romance morreu. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
FRANCIS, Paulo. Cabeça de papel. Rio de Janeiro : Civ ilização Brasileira,
1977.
FREIRE, Marcelino (2000). Angu de sangue. São Paulo: A telier.
-------- (2003). BaléRalé. São Paulo: A teliê Ed ito rial.
-------- (2005). Contos negreiros. Rio de Janeiro : Reco rd .
-------- (2008). Rasif: M ar que arrebenta. Rio de Janeiro : Reco rd .
-------- (org.) (2004). Os cem menores contos brasileiros do século. São Pau­
lo: Ateliê Editorial.
GABEIRA, Fernando (1979). O que é isso, companheiro? São Paulo: Com­
panhia das Letras, 1996.

168
GAUERA. D aniel (2001). Dentes guardados. Porto Alegre: Livros do Mal.
„___ _ (2003). Até o dia em que o cão morreu. Porto Alegre: Livros do Mal.
_ _ — (2 0 0 6 ). Mãos de cav alo. São Paulo: Companhia das Letras.
_____(2008). A cordilheira. São Paulo : Companhia das Letras.
GALPERIN, Cláud io (2000). O avesso dos dias. São Paulo: Beca.
GIANNETT1, C ecília (2007). Lu g ares qu e n ão conheço, pessoas que nunca vi.
Rio de Janeiro : Ed io uro .
GONÇALVES, A n a M aria ( 2 0 0 2 ). A o la d o e à m ar g e m do qu e sentes por mim.

Salvador: Bo rb o letras.
GONÇALVES, Pó lita (2000). Pérolas no decote. Rio de Janeiro: Sette Letras.
HATOUM, M ilto n (1989). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Compa­
nhia das Letras.
--------(2000). Dois irmãos. São Paulo : Companhia das Letras.
------- (2005). Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras.
------- (2008). Ó rfãos d o Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras.
HAWTHORNE, N athaniel (1842). The Twíce-told Tale. Nova York: Modem
Library Inc.
HOLLANDA, C hico Buarq ue (1991). Estorvo. São Paulo: Companhia das
Letras.
--------(1995). Benjam in. São Paulo : Companhia das Letras.
J0CEN1R (2001). D iário d e um detento, o livro. São Paulo: Labortexto.
KONDER, Ro d o lfo (1977). C adeia p ar a os mortos. São Paulo: Alfa-Ômega.
LAUB, M ichel (2001). M úsica an terior. São Paulo: Companhia das Letras.
— (2004). Longe d a ág u a. São Paulo: Companhia das Letras.
— (2006). O seg u n do tem po. São Paulo: Companhia das Letras.
UNS, Osman (1973). A v alov ara. São Paulo: Melhoramentos.
UNS, Paulo (1997). C idade de D eus. São Paulo: Companhia das Letras.
USBOA, A driana (1999). Os fio s da memória. Rio de Janeiro: Rocco.
(2001). Sinfonia em branco. Rio de Janeiro: Rocco.
■— (2003). Um beijo de C olombina. Rio de Janeiro: Rocco.
' — (2004). C alig rafias. Rio d e Janeiro : Rocco.
~~— (2007). R akushisha. Rio d e Janeiro : Rocco.
USPECTOR, C larice (1973). Á g ua viva. São Paulo: Círculo do Livro.
' (1964). A p aix ão seg u ndo G. H. Rio de Janeiro: Do autor.
^OUZEIRO, Jo sé (1977). A in fância dos mortos. Rio de Janeiro; Abril.
— (1977). Lúcio Flávio, passag eiro da agonia. Rio de Janeiro: Record.
^ C EL, Eliane (1983). C om licença, eu vou à luta. Rio de Janeiro: Codecri.
MAIA. Ana Paula (2009). Entre rinhas de cachorro e p or co s abatidos. Rio de
Janeiro : Record.
MAINARDI, Diogo (1995). Polígono das secas. São Paulo : C o m p anhia das
Letras.
-------- (1998). Contra o Brasil. São Paulo : Co m p anhia d as Letras.
MANN, Thomas (s.d.). A morte em V eneza. São Paulo : H em us.
MELO, Patrícia (1994). A cqua toffan a. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
-------- (1995). 0 matador. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
---------(2000). Inferno. São Paulo: Co m p anhia d as Letras.
---------(2007). M undo perdido. São Paulo : Co m p anhia d as Letras.
---------(2008) .Jon as, o coprom an ta. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
MENDES, Luiz A lberto (2001). M em órias de u m sobrev iv en te. São Paulo:
Companhia das Letras.
---------(2004). Tesão e praz er: m em ó rias eró ticas de u m p risio neiro . São
Paulo: Geração.
MIGUEL, Salim (1999). N ur n a escuridão. Rio de Janeiro : To p bo o ks.
MIRANDA, Ana (1989). Boca do Inferno. São Paulo . C o m p anhia das Le­
tras.
---------(1991). 0 retrato do rei. São Paulo: C o m p anhia das Letras.
---------(1995). A última qu im era. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
---------(1996). D esmundo. São Paulo: Co m p anhia das Letras.
MIRISOLA, Marcelo (1998). Fátima fe z os p és p ar a m o s tr ar n a cho peria. São
Paulo: Estação Liberdade.
MORAES, Reinaldo (1983). Tanto faz . Rio de Janeiro : Brasiliense.
MUTARELLI, Lourenço (2003). O cheiro do ralo. São Paulo : Devir.
NASSAR, Raduan (1975). Lav oura arcaica. Rio de Janeiro : J. O lym p io .
---------(1978). Um copo de cólera. São Paulo : Cultura.
---------(1992). M enina a caminho. São Paulo : C o m p anhia das Letras.
NAVA, Pedro (1998-2006). Especial P edro N av a. São Paulo : A teliê Edi­
torial.
NAVES, Rodrigo (1998). O filantropo. São Paulo : C o m p anhia das Letras.
NAZARIAN, Santiago (2003). Olívio. São Paulo: Talento .
---------(2004). A morte sem nome. São Paulo: Planeta do Brasil.
---------(2005). Feriado de mim m esmo. São Paulo : Planeta d o Brasil.
---------(2006). M astigando humanos. Rio de Janeiro : Nova Fro nteira.
NOLL, Jo ão Gilberto (1980). 0 cego e a dan çarin a. Rio d e Janeiro : Civili­
zação Brasileira.
---------(1981). A fú ria do corpo. Rio de Janeiro : Reco rd .

170
__ - (1985). B an doleiro s. Rio d e Janeiro : Nova Fronteira.
^ — •( 1 9 8 9 ) . H otel A tlân tic o. Rio d e Janeiro : Rocco.

__ .__ (1990). R astos d o v er ão . Rio d e Janeiro : Rocco.


(1991). O q u ie t o an im al d a esqu in a. Rio de Janeiro: Rocco.
___ — (1993). H ar m ada. São Paulo : Co m p anhia das Letras.
___(1996). A céu ab e r t o . São Paulo : Co m panhia das Letras.
_____ (2002). B er ke ley e m B ellag io. São Paulo: Francis.
_____(2004). Lo rde. São Paulo : Francis.
_____ (2004). M ínimos, m ú ltiplos, comuns. São Paulo: Francis.
--------(2006). A m áq u in a d e ser. Rio d e Janeiro : Nova Fronteira.
___ — (2008). A cen os e afag o s. Rio de Janeiro : Record.
OLIVEIRA, N elso n d e (2001). G er ação 90 - M anuscritos de computador. São
Paulo: Bo item p o .
-------- (2003). G e r aç ão 9 0 - O s tran sg ressores. São Paulo: Boitempo.
-------- (2006). C en as d a fav e la. São Paulo : Geração Editorial.
PAIVA, M arcelo R u b en s (1982). Feliz an o velho. Rio de Janeiro: Brasi-
liense.
PAULA, Jo sé A g rip p ino d e (1967). Pan am érica. Tridente.
-------- (2004). L u g ar p ú blic o . São Paulo : Papagaio.
PELLIZZARI, D aniel (2002). O liv ro das cousas qu e acontecem. Porto Alegre:
Livros d o M al.
PESSOTTI, Isaias (1993). A qu ele s cães m alditos de A rquelau. Rio de Janei­
ro: Ed ito ra 34.

------- (1995). 0 m an u scr ito d e M ediav illa. São Paulo: Editora 34.
--------(1997). A lu a d e v e r d ad e . São Paulo : Edito ra 34.
PIGLIA, Ricard o (2004). F o rm as brev es. São Paulo: Companhia das Letras.
PINHEIRO, M auro (1997). A q u idau an a e outras histórias sem rumo. Rio de
Janeiro : Ro cco .
P1N0N, N élid a (1980). O c alo r d as coisas. Rio de Janeiro : Nova Fronteira.
~~— (1987). A re p ú blic a do s sonhos. Rio de Janeiro : Francisco Alves.
POZENATO, Jo sé C lem en te (1985). 0 qu atrilho. Porto Alegre: Mercado
A berto.
QUEIROZ, Rachel d e (1992). M em o rial de M aria M oura. São Paulo: Sici-
liano.
RAMOS, H o sm any (2001). P av ilhão 9 : Paixão e m o rte no Carand iiu São
Paulo: G eração .
*^MOS, N uno (2001). 0 p ã o d o corv o. São Paulo: Editora 34.
ABEIRO, Jo ão U b ald o (1971). Sarg e n to G etíãio. Rio de Janeiro: Artenova.
-------- (1984). Viva o povo brasileiro. Rio d e Janeiro : Record/ A ltaya.
-------- (1999). A casa dos budas ditosos. São Paulo : O bjetiv a.
RODRIGUES, Sérgio (2000). O homem qu e m atou o escritor. São Paulo : Ob­
jetiva.
ROSA, João Guimarães (1967). Tutameia: terceiras estó rias. Rio de Janei­
ro: J. Olympio.
RUFFATO. Luiz (1998). H istórias de rem orsos e ran cores. São Paulo : Boi-
tempo.
-------- (2000). (os sobreviventes). São Paulo : Bo item p o .
-------- (2007). Eles eram muitos cav alos. Rio d e Janeiro : Reco rd .
-------- (2005). M amma, sem tan to felice. Inferno p ro v isó rio , v. I. Rio de
Janeiro: Record.

-------- (2005). 0 mundo inimigo. Inferno p ro v isó rio , v. IL Rio d e Janei­


ro: Record.
-------- (2006). V ista parcial da noite. Inferno p ro v isó rio , v. III. Rio d e Ja­
neiro: Record.
-------- (2008). 0 livro das impossibilidades. Inferno p ro v isó rio , v. IV. Rio
de Janeiro: Record.
SANTANNA, André (1998). A mor. Sabará: Ed içõ es d o Bo lso .
-------- (1999). Sexo. Rio de Janeiro : 7Letras.
-------- (2006). 0 paraíso é bem bacan a. São Paulo : C o m p anhia das Le­
tras.
-------- (2007). Sexo e amizade. São Paulo : Co m p anhia d as Letras.
SANTANNA, Sérgio (1977). Simulacros. Rio d e Janeiro : Civ ilização Brasi­
leira.
-------- (1987). A trag édia brasileira. Rio d e Janeiro : G uanabara.
-------- (1989). A senhorita Simpson. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
-------- (1997). Um crime delicado. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
-------- (2003). 0 voo da m adru gada. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
SANTIAGO, Silviano (1981). Em liberdade. Rio d e Janeiro : Paz e Terra.
-------- (1985). Stella M anhattan. Rio d e Janeiro : Nova Fro nteira.
-------- (1992). Uma história de fam ília. Rio de Janeiro : Ro cco .
-------- (1996). Keith Jarrett n o Blue N ote. São Paulo : C o m p anhia d as Le­
tras.
-------- (1997). V iagem ao M éxico. Rio de Janeiro : Ro cco .
-------- (1999). De cócoras. Rio de Janeiro : Ro cco .
-------- (2004). 0 falso mentiroso. Memórias. Rio d e Janeiro : Ro cco .
-------- (2008). H eranças. Rio de Janeiro : Ro cco .

172
SCOTT, Paulo (2003). Ainda orangotangos. Porto Alegre: Livros do Mal.
\ !
SILVA, A guinald o (1976). A repú blica dos assassinos. Rio de Janeiro: Civili­
zação Brasileira. |
SIRKIS, A lfred o (1981). Os carbon ários. Rio de Janeiro : Global. I
SOUZA, M árcio (1976). G alv ez , im perado r do A cre. São Paulo: Círculo do 1
Livro.
-------- (1980). Mad M aria. São Paulo : Círculo do Livro. \

.-------- (1990). O fim d o ter ce ir o mundo. Rio de Janeiro: Record, 2007.


SOUZA, Persiv al d e ( 1 9 7 8 ). V iolência e repressão. Rio de Janeiro: Símbolo.
STIGGER, V erô nica (2004). O trágico e outras comédias. Rio de Janeiro:
7Letras.
---------(2007). G ran c ab ar e t dem en z ial. São Paulo: CosacNaify.
TANIZAK1, Ju n ic h iro (1933). O elogio d a sombra. Lisboa: Relógio d’Água,
1999.
TAPAJÓS, Renato (1977). Em c âm er a lenta. São Paulo: Alfa-Ômega.
TAVARES, Fláv io (2005). Memórias do esquecimento - os segredos dos porões
d a dit adu ra. Rio d e Jan eiro : Reco rd .

TAVARES, Z u lm ira (1988). 0 m an dril. São Paulo: Brasiliense.


TELLES, Lygia Fag u nd es (1977). Seminário dos ratos. Rio de Janeiro:
J. O lym p io .
TERRON, Jo ca Reiners (1998). Eletroen cefalodrama. São Paulo: Ciência do
A cid ente.
--------- (2001). N ão h á n ad a lá. São Paulo : Ciência do Acidente.
--------- (2002). A n im al an ôn im o. São Paulo: Ciência do Acidente.
--------- (2003). Hotel H ell. Po rto A legre: Livros do Mal.
--------- (2006). Son ho in t er ro m p ido por guilhotina. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra.
TEZZA, C risto v ão (1988). T rapo . São Paulo: Brasiliense.
--------- (1998). Brev e es p aç o en tre co r e som bra. Rio de Janeiro: Rocco.

-------- (2004). O fo t ó g r afo . Ro m ance. Rio de Janeiro : Rocco.
--------- (2007). O filh o et er n o . Rio de Janeiro : Record.
TORRES, A ntô nio ( 1 9 7 6 ). Essa te rra. São Paulo: Ática.
---------(1991). U m t áx i p ar a V ien a dÁ ustria. São Paulo: Companhia das
Letras.
TREVISAN, D alto n (1974). O p áss aro de cinco asas. Rio de Janeiro: Civili­
zação Brasileira.
— ----- (1994). Ah, é? Rio d e Janeiro : Record.
~~------ (1994). D in orá. Rio d e Janeiro : Record.
---------(1997). 234. Rio de Janeiro : Ro cco.
---------(2004). A rara bêbada. Rio d e Janeiro : Reco rd .
---------(2008). M aníaco de olhos verdes. Rio d e Jan eiro : Reco rd .
TREVISAN, Jo ão S. (1994). A na em V eneza. São Paulo : Best Seller.
VARELLA, Dráuzio (2001). Estação C aran diru. São Paulo : C o m p anhia das
Letras.
XAVIER, Valéncio (1981). 0 m ez da g rípp e. C uritiba: Casa Ro m ário M ar­
tins.
---------(1983). M aciste no inferno. Curitiba: Ed içõ es Criar.
---------(1986). 0 mistério da prostitu ta jap o n e sa. C u ritib a: M ó d u lo 3.
---------(2001). M iriha m ãe m orren do. São Paulo : C o m p anhia d as Letras.
---------(2004). C rimes à m o da an tig a (C ontos v erdade) . São Pau lo : Publi-
folha.
ZENI, Bruno (org.) (2002). Sobrev iv ente A n dré d o R ap. São Paulo : Labo r-
texto .
---------(2002). 0 flu x o silencioso das m áqu in as. São Paulo : A teliê Ed ito rial.

174
s te l iv ro f o i co m p o s to n a tip o lo g ia Swift, em corpo 10/15,

e A p re s s o e m p ap el off-w hite 80g /m 2


S is te m a C am e ro n d a D iv isão G ráfica da D istribuidora Record.
O auto r não se furta a em itir avalia­
çõ es p esso ais, p ro p iciand o o co nfro n­
to co m o utras o p iniõ es so bre o mes­
m o assunto , v igentes na universidade
e na m íd ia. Com isso, leva-se às últi­
m as co nsequências o sentid o da pala­
vra crítica, relacio nand o -a a uma ver­
d ad eira p o lítica da leitura. Bernardo
Carv alho , Rubem Fo nseca, Milton Ha-
to um , Luiz Ruffato , A d riana Lisboa,
Jo ão Gilberto Noll, A ndré SantA nna,
Silv iano Santiago , Cristovão Tezza são
alguns dos no m es referid o s e co m en­
tad o s ao lo ngo do vo lume.
So b to d o s os p o nto s de vista, este
liv ro d everá se to rnar uma referência
inco nto rnáv el para d iscutir a produ­
ção literária no Brasil ho je, literatura
em p lena transfo rm ação , em busca de
no vo s e arguto s leito res.

Evando Nascimento

Karl Er ik Schollham m er é professor-


associado do depart am ent o de Letras
da PUC-Rio. Autor, coaut or e editor de
vários livros, ent re eles: Linguagens da
violência (2000), Novas epistemologias
(2000), Literatura e mídia (2002), Litera­
tura e cultura (2003). Literatura e imagem
(2005), Literatura e memória (2006).
Henrik íbsen no Brasil (2008), * d°
yisivel - 0 olhar da literatura (2007) e
t am bém t radut or de autores escand,-
navos. como Peter Hogh. U r s N o r e.
S0ren Kierkegaard. Jon Fosse e H ennk

Ibsen.

Você também pode gostar