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Capítulo II

A se pa r a ç ã o da a r te do pr oc e sso da pr oduç ã o m a te r ia l de u- -lhe


a possibilida de de de sm istific a r a r e a lida de r e pr oduzida ne ste
pr oc e sso. A a r te de sa fia o m onopólio da r e a lida de que o e xiste nte
possui e fá -lo c r ia ndo um m undo fic tíc io que , no e nta nto, é m a is
« r e a l do que a pr ópr ia r e a lid a de » ( 1 4 ).
Atr ibuir a s qua lida de s c r ític a s, a utônom a s da a r te à for m a
e sté tic a é c oloc á -la s for a da lite r a tur a de te ndê nc ia , for a do
dom ínio da pr á xis e da pr oduç ã o. A a r te te m a sua pr ópr ia
lingua ge m e ilum ina a r e a lida de a tr a vé s de sta outr a lingua ge m .
Alé m disso, a a r te te m a sua pr ópr ia dim e nsã o de a fir m a ç ã o e
ne ga ç ã o, um a dim e nsã o que nã o se pode or de na r r e la tiva m e nte a o
pr oc e sso soc ia l de pr oduç ã o.
Se m dúvida , é possíve l tr a nsfe r ir a a c ç ã o de H a m le t ou de
I fig ê n ia do m undo pa la c ia no da s c la sse s supe r ior e s pa r a o m undo
da pr oduç ã o m a te r ia l; ta m bé m se pode m uda r o e nqua dr a m e nto
histór ic o e m ode r niza r a intr iga de A n t íg o n a \ a té os gr a nde s te m a s
da lite r a tur a c lá ssic a e bur gue sa pode m se r r e pr e se nta dos por
pe r sona ge ns da e sfe r a da pr oduç ã o m a te r ia l fa la ndo um a
lingua ge m a c tua l (G e r ha r t H a uptm a nn e m O s T e c e lõ e s ) . M a s e sta
tr a duç ã o te m de e sta r suje ita à e stiliza ç ã o e sté tic a , c a so que ir a
m e dia r a ve r da de que a ba la

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H ERBERT M ARC U SE

(e c om pr e e nde ) a r e a lida de : de ve se r tr a nsfor m a da num


r om a nc e , num a pe ç a ou num a histór ia e m que c a da fr a se te m o
se u pr ópr io r itm o, o se u pr ópr io pe so. N e sta e stiliza ç ã o, a obr a
de ixa que se m a nife ste o unive r sa l e m todo o pa r tic ula r soc ia l, o
e le m e nto indispe nsa ve lm e nte subje c tivo e m todo o obje c tivo, o
que pe r m a ne c e em tudo o que é r e vogá ve l. A r e voluç ã o
e nc ontr a os se us lim ite s e r e síduos ne sta pe r m a nê nc ia que é
pr e se r va da na a r te - pr e se r va da nã o c om o um a posse , nã o c om o
um pe da ç o de na tur e za ina lte r á ve l, nã o c om o um a r e c or da ç ã o
de a lgo que de c ontr á r io se r ia r e pr im ido: r e c or da ç ã o de um a
vida e ntr e a ilusã o e a r e a lida de , e ntr e a fa lsida de e a ve r da de ,
e ntr e a fe lic ida de e a m or te .
O de nom ina dor soc ia l e spe c ífic o, « da ta do» num a obr a de
a r te e ultr a pa ssa do pe lo de se nvolvim e nto soc ia l, é o m ilie u , o
m u n d o d a v id a dos pr ota gonista s. É pr e c isa m e nte e ste m u n d o
d a v id a que é tr a nsc e ndido pe los pr ota gonista s - ta l c om o os
pr ínc ipe s de Sha ke spe a r e e de Ra c ine tr a nsc e nde m o m undo da
c or te do a bsolutism o, ta l c om o os bur gue se s de Ste ndha l
tr a nsc e nde m o m undo bur guê s, os pobr e s de Br e c ht o m undo
do pr ole ta r ia do. Esta tr a nsc e ndê nc ia oc or r e na c olisã o c om o
se u m u n d o d a v id a , a tr a vé s de a c onte c im e ntos que a pa r e c e m no
c onte xto de c ondiç õe s soc ia is pa r tic ula r e s, e nqua nto r e ve la a o
m e sm o te m po for ç a s nã o a tr ibuíve is a e ssa s c ondiç õe s
e spe c ífic a s. H u m ilh a d o s e O fe n d id o s de D ostoie vsky, Os
M is e r á v e is de V ic tor H ugo sofr e m nã o só a injustiç a de um a
de te r m ina da soc ie da de de c la sse s c om o e stã o a fa vor da
hum a nida de e c ontr a a de sum a nida de de todos os te m pos. O
unive r sa l que a pa r e c e no se u de stino e stá pa r a lá da soc ie da de
de c la sse s. D e fa c to, e sta é e m si m e sm a pa r te de um m undo e m
que a na tur e za fa z e xplodir a

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A D IM EN SÃO ESTÉTIC A

c oe sã o soc ia l. Er os e Tha na tos a fir m a m o se u pr ópr io pode r de ntr o


e c ontr a a luta de c la sse s. Evide nte m e nte , a luta de c la sse s ne m
se m pr e é « r e sponsá ve l» pe lo fa c to de os « a m a nte s nã o fic a r e m
juntos» ( l5 ). A c onve r gê nc ia da r e a liza ç ã o e da m or te pr e se r va a sua
ve r da de ir a for ç a a pe sa r de toda a e xa lta ç ã o r om â ntic a e de toda a
e xplic a ç ã o soc iológic a . O ine xor á ve l e nr e da m e nto hum a no na
na tur e za c onse r va a sua pr ópr ia dinâ m ic a na s r e la ç õe s soc ia is
e xiste nte s e c r ia a sua pr ópr ia dim e nsã o m e ta ssoc ia l.
A gr a nde lite r a tur a c onhe c e a c ulpa inoc e nte , que e nc ontr a a sua
pr im e ir a e xpr e ssã o a utê ntic a e m R e i É d ip o . Aqui e stá o dom ínio do
que é m utá ve l e do que nã o m uda . Evide nte m e nte , há soc ie da de s
e m que a s pe ssoa s já nã o a c r e dita m e m or á c ulos e ta lve z ha ja
soc ie da de s e m que o inc e sto nã o é ta bu, m a s é difíc il im a gina r um a
soc ie da de que te nha a bolido a quilo a que c ha m a m os a sor te ou o
de stino, o e nc ontr o na s e nc r uzilha da s, o e nc ontr o dos a m a nte s, e
ta m bé m o e nc ontr o c om o infe r no. M e sm o num siste m a tota litá r io
te c nic a m e nte qua se pe r fe ito, só a s for m a s do de stino m uda r ia m . As
m á quina s ope r a r ia m nã o só c om o m a quinism os de c ontr olo, m a s
ta m bé m c om o m a quinism os do de stino que c ontinua r ia m a m ostr a r
a sua for ç a nos r e síduos da na tur e za a inda por c onquista r . A
na tur e za inte ir a m e nte c ontr ola da pr iva r ia a s m á quina s da sua
m a té r ia - -pr im a , da sua substâ nc ia , de c uja obje c tivida de e
r e sistê nc ia de pe nde m .
A dim e nsã o m e ta ssoc ia l é , e m gr a nde pa r te , r a c iona liza da na
lite r a tur a bur gue sa ; a c a tá str ofe oc or r e na c onfr onta ç ã o e ntr e o
indivíduo e a soc ie da de . N o e nta nto, o c onte údo soc ia l pe r m a ne c e
se c undá r io e m r e la ç ã o a o de stino dos indivíduos.

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H ERBERT M ARC U SE

Ba lza c (o e xe m plo fa vor ito) pinta r á r e a lm e nte na C o m é d ia


H u m a n a a dinâ m ic a da s fina nç a s e do c a pita lism o e m pr e sa r ia l,
a pe sa r dos se us pr ópr ios pr e c onc e itos e pr e fe r ê nc ia s polític a s
« r e a c c ioná r ia s» ? C e r ta m e nte , a soc ie da de do se u te m po é
r e tr a ta da na sua obr a , m a s a for m a e sté tic a e tr a nsfor m ou a
dinâ m ic a soc ia l e fe z de la a histór ia de de te r m ina dos indivíduos -
Luc ie n de Rube m pr é , N uc inge n, V a utr in. Este s a ge m e sofr e m na
soc ie da de do se u te m po - a soc ie da de pós-na pole ónic a -, sã o, na
ve r da de , r e pr e se nta nte s de ssa soc ie da de . N o e nta nto, a qua lida de
e sté tic a da C o m é d ia H u m a n a e a sua ve r da de r e side na
individua liza ç ã o, a tr a vé s da qua l o unive r sa l no se u de stino,
tr a nsc e nde ndo a funç ã o soc ia l dos indivíduos, se tor na for m a .
A vida e a m or te dos indivíduos: m e sm o qua ndo o r om a nc e ou
a pe ç a a r tic ula m a luta da bur gue sia c ontr a a a r istoc r a c ia e o
inc r e m e nto da s libe r da de s bur gue sa s ( E m ilia G a lo t t i de Le ssing,
E g m o n t de G oe the , o S t u r m u n d D r a n g , I n t r ig a e A m o r de
Sc hille r ), é o de stino pe ssoa l que dá for m a - o de stino dos
pr ota gonista s, nã o c om o pa r tic ipa nte s na luta de c la sse s, m a s
c om o a m a nte s, vilõe s, tolos, e a ssim por dia nte .
N o W e r t h e r de G oe the , o suic ídio é dupla m e nte de te r m ina do.
O a m a nte de sc obr e a im possibilida de do a m or (um a tr a gé dia que
nã o é m e r a m e nte im posta pe la m or a lida de bur gue sa
pr e dom ina nte ), e o bur guê s sofr e o de spr e zo que lhe é vota do pe la
nobr e za . O s dois m otivos e sta r ã o r e la c iona dos na e str utur a da
obr a ? O c onte údo de c la sse e stá nitida m e nte a r tic ula do: E m ilia
G a lo t t i de Le ssing, um dr a m a sobr e a bur gue sia m ilita nte ,
e nc ontr a -se a be r to na m e sa do qua r to e m que W e r the r se suic ida .
M a s, a obr a c om o um

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A D IM EN SÃO ESTÉTIC A

todo é a histór ia dos a m a nte s e do se u m undo e os e le m e ntos


bur gue se s nã o pa ssa m de a c ide nta is.
Esta pr iva tiza ç ã o do soc ia l, a inte r ior iza ç ã o da r e a lida de , a
ide a liza ç ã o do a m or e da m or te sã o m uita s ve ze s e stigm a tiza dos
pe la e sté tic a m a r xista c om o ide ologia c onfor m ista e r e pr e ssiva .
C onde na a tr a nsfor m a ç ã o dos c onflitos soc ia is em de stino
pe ssoa l, a a bstr a c ç ã o da situa ç ã o de c la sse , o c a r á c te r e litista dos
pr oble m a s, a a utonom ia ilusór ia dos pr ota gonista s.
Ta l c onde na ç ã o ignor a o pote nc ia l c r ític o que se a fir m a
pr e c isa m e nte ne sta for m a « sublim a da » . D ois m undos c olide m ,
possuindo c a da qua l a sua pr ópr ia ve r da de . A fic ç ã o c r ia a sua
pr ópr ia r e a lida de que pe r m a ne c e vá lida m e sm o qua ndo ne ga da
pe la r e a lida de e sta be le c ida . O be m e o m a l dos indivíduos
c onfr onta -se c om o be m e o m a l soc ia l. M e sm o na s obr a s m a is
polític a s, e sta c onfr onta ç ã o nã o é pur a m e nte polític a ; ou a nte s, a s
c onfr onta ç õe s soc ia is inte gr a m -se no jogo de for ç a s m e ta ssoc ia is
e ntr e um indivíduo e outr o, e ntr e hom e m e m ulhe r , e ntr e a
hum a nida de e a na tur e za . A m uda nç a no m odo de pr oduç ã o nã o
a lte r a r ia e sta dinâ m ic a . Uma soc ie da de livr e nã o podia
« soc ia liza r » e sta s for ç a s, e m bor a pude sse e m a nc ipa r os
indivíduos da sua c e ga suje iç ã o e m r e la ç ã o à s m e sm a s.
A histór ia pr oje c ta a im a ge m de um novo m undo de
libe r ta ç ã o. O c a pita lism o a va nç a do r e ve lou a utê ntic a s
possibilida de s de libe r ta ç ã o, que ultr a pa ssa m todos os c onc e itos
tr a dic iona is. Esta s possibilida de s susc ita r a m nova m e nte a ide ia
do fim d a a r t e . As possibilida de s r a dic a is de libe r da de
(c onc r e tiza da s no pote nc ia l e m a nc ipa tór io do pr ogr e sso té c nic o)
pa r e c e m tor na r obsole ta a funç ã o

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H ERBERT M ARC U SE

tr a dic iona l da a r te , ou, pe lo m e nos, a boli-la c om o um r a m o


e spe c ia l da divisã o do tr a ba lho, a tr a vé s da r e duç ã o da se pa r a ç ã o
e ntr e o tr a ba lho m e nta l e m a nua l. A a p a r ê n c ia do be lo e da
r e a liza ç ã o de sa pa r e c e r ía a o de ixa r de se r r e c usa da pe la soc ie da de .
N um a soc ie da de livr e , a s a pa r ê nc ia s tor na m - -se a spe c tos do r e a l.
M e sm o a gor a na soc ie da de e sta be le c ida , a a c usa ç ã o e a pr om e ssa
pr e se r va da s na a r te pe r de m o se u c a r á c te r ir r e a l e utópic o na
m e dida em que infor m a m a e str a té gia de m ovim e ntos
a nta gônic os (c om o a c onte c e u na dé c a da de se sse nta ). Em bor a o
fa ç a m de for m a im pr e c isa e tosc a , indic a m m e sm o a ssim a
dife r e nç a qua lita tiva de pe r íodos a nte r ior e s. Esta dife r e nç a
qua lita tiva a pa r e c e hoje no pr ote sto c ontr a a de finiç ã o da vida
c om o tr a ba lho, na luta c ontr a toda a or ga niza ç ã o do tr a ba lho
pr ópr ia do c a pita lism o e do soc ia lism o de e sta do (c a de ia de
m onta ge m , o siste m a Ta ylor , a hie r a r quia ), na luta pe lo fim do
pa tr ia r c a do, pe la r e c onstr uç ã o do a m bie nte na tur a l de str uído e
pe lo de se nvolvim e nto e c r ia ç ã o de um a nova m or a lida de e de
um a nova se nsibilid a de .
A r e a liza ç ã o de ste s obje c tivos é inc om pa tíve l nã o só c om um
c a pita lism o dr a stic a m e nte r e or ga niza do, m a s ta m bé m c om um a
soc ie da de soc ia lista c om pe tindo c om o c a pita lism o nos m e sm os
te r m os. As possibilida de s que hoje se r e ve la m sã o m a is a s de um a
soc ie da de or ga niza da sob um novo pr inc ípio da r e a lida de : a
e xistê nc ia de ixa r ia de se r de te r m ina da pe la ne c e ssida de do
tr a ba lho e do r e pouso a lie na dos e vita líc ios, os se r e s hum a nos
de ixa r ia m de e sta r suje itos a os instr um e ntos do se u tr a ba lho,
de ixa r ia m de se r dom ina dos pe la s ta r e fa s que lhe s sã o im posta s.
Todo o siste m a de r e pr e ssã o e r e núnc ia m a te r ia l e ide ológic a se
tor na r ia a bsur do.

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A D IM EN SÃO ESTÉTIC A

c M a s, m e sm o um a ta l soc ie da de nã o signific a r ia o fim da a r te ,


a supe r a ç ã o da tr a gé dia , a r e c onc ilia ç ã o do dionisía c o e do
a políne o. A a r te nã o pode se pa r a r -se da s sua s or ige ns. D á
te ste m unho dos lim ite s inte r nos, ‘na tur a is’ da libe r da de , da
ple nitude . Em toda a sua ide a lida de , a a r te te ste m unha a
ve r da de do m a te r ia lism o dia lé c tic o - a insupe r a bilida de da
oposiç ã o e ntr e suje ito e obje c to, hom e m e na tur e za , indivíduo e
indivíduo.
Em vir tude da s sua s ve r da de s tr a ns-histór ic a s, unive r sa is, a
a r te a pe la pa r a um a c onsc iê nc ia que nã o é a pe na s a de um a
c la sse pa r tic ula r , m a s a dos se r e s hum a nos e nqua nto « se r e s
ge né r ic os» , de se nvolve ndo toda s as sua s fa c ulda de s de
va lor iza ç ã o da vida . Q ue m é o suje ito de sta c onsc iê nc ia ?
Pa r a a e sté tic a m a r xista , e ste suje ito é o pr ole ta r ia do que ,
c om o c la sse pa r tic ula r , é a c la sse unive r sa l. A ê nfa se e stá no
pa r tic ula r : o pr ole ta r ia do é a únic a c la sse na soc ie da de
c a pita lista que nã o te m inte r e sse pe la pr e se r va ç ã o da soc ie da de
e xiste nte . O pr ole ta r ia do é livr e e m r e la ç ã o a os va lor e s de sta
soc ie da de e , por c onse guinte , livr e pa r a a libe r ta ç ã o de toda a
hum a nida de . N e sse c a so, se r ia ta m bé m no pr ole ta r ia do que a
a r te se r ia supe r a da , se m que lhe fosse a nula do o se u c onte údo,
que tr a nsc e nde a pr á xis soc ia l. Se gundo e sta c onc e pç ã o, a
c onsc iê nc ia do pr ole ta r ia do se r ia ta m bé m a c onsc iê nc ia que
va lida a ve r da de da a r te . Esta te or ia c or r e sponde a um a situa ç ã o
que já nã o é (ou a inda nã o é ) a que pr e va le c e nos pa íse s
c a pita lista s a va nç a dos.
Luc ie n G oldm a nn viu que o pr oble m a te ntr a l da e sté tic a
m a r xista se situa no pe r íodo do c a pita lism o a va nç a do. Se o
pr ole ta r ia do nã o é a ne ga ç ã o da soc ie da de e xiste nte , m a s se
e nc ontr a , e m gr a nde pa r te , inte gr a do ne la , e ntã o, a e sté tic a

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H ERBERT M ARC U SE

m a r xista c onfr onta -se c om um a situa ç ã o e m que « a s for m a s


a utê ntic a s da s c r ia ç õe s c ultur a is» e xiste m , « e m bor a nã o
possa , r e liga r -se c om a a c onsc iê nc ia - m e sm o pote nc ia l - de
um de te r m ina do gr upo soc ia l» . A que stã o de c isiva é , pois:
c om o « se e sta be le c e o ne xo e ntr e a s e str utur a s e c onôm ic a s e
a s m a nife sta ç õe s lite r á r ia s num a soc ie da de onde ta l ne xo
oc or r e fo r a d a c o n s c iê n c ia c o le c t iv a » , isto é , se m se ba se a r
num a c onsc iê nc ia de c la sse pr ogr e ssista , se m e xpr im ir ta l
c onsc iê nc ia ? ( 1 6 )
Ador no r e sponde u: e m ta l situa ç ã o, a a utonom ia da a r te
a fir m a -se de um a for m a e xtr e m a - c om o dista nc ia m e nto
intr a nsige nte . Ta nto pa r a a c onsc iê nc ia inte gr a da c om o pa r a a
c onsc iê nc ia m a r xista r e ific a da , a s obr a s a lie na da s pode m
m uito be m sur gir c om o e litista s ou c om o sintom a s de
de c a dê nc ia . Mas sã o, no e nta nto, for m a s a utê ntic a s da
c ontr a diç ã o, a c usa ndo a tota lida de da soc ie da de que tudo
a r r a sta , m e sm o a s obr a s a lie na nte s, pa r a o se u c a m po de
a c ç ã o. Isto nã o inva lida a sua ve r da de ne m ne ga a sua
pr om e ssa . C e r ta m e nte , a s « e str utur a s e c onôm ic a s» a fir m a m ­
-se a si pr ópr ia s. D e te r m ina m o va lor de uso (e , c om e le , o
va lor de tr oc a ) da s obr a s, m a s nã o o que e la s sã o e o que
dize m .
O te xto de G oldm a nn r e fe r e -se a um a c ondiç ã o histór ic a
e spe c ífic a - a inte gr a ç ã o do pr ole ta r ia do sob o c a pita lism o
m onopolista a va nç a do. M a s, m e sm o que o pr ole ta r ia do nã o
e stive sse inte gr a do, a sua c onsc iê nc ia de c la sse nã o se r ia a
for ç a pr inc ipa l ou a únic a que podia pr e se r va r e r e c onstituir a
ve r da de da a r te . Se a lgum a a r te « e xiste » pa r a qua lque r
c onsc iê nc ia c ole c tiva , é a dos indivíduos unidos na sua
c onsc iê nc ia da ne c e ssida de unive r sa l de libe r ta ç ã o - qua lque r

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A D IM EN SÃO ESTÉTIC A

que se ja a sua posiç ã o de c la sse . A de dic a tór ia de N ie tzsc he no


Z a r a t u s t r a « Für Alie und K e ine n» (Pa r a Todos e N ingué m )
ta m bé m se pode a plic a r à ve r d a de da a r te .
O c a pita lism o a va nç a do c onstitui um a soc ie da de de c la sse s
c om o um unive r so a dm inistr a do por um a c la sse m onopolista
c or r upta e pode r osa m e nte a r m a da . Em la r ga m e dida , e sta
tota lida de inc lui ta m bé m as ne c e ssida de s soc ia lm e nte
c oor de na da s e os inte r e sse s da c la sse tr a ba lha dor a . Se é de a lgum
m odo signific a tivo fa la r de um a ba se de m a ssa s pa r a a a r te na
soc ie da de c a pita lista , e sta só podia r e fe r ir -se à ‘ a r t e p o p ’ e a os
‘ b e s t s e lle r s ’ . Pr e se nte m e nte , o suje ito a que a ve r da de ir a a r te
a pe la é soc ia lm e nte a nônim o; nã o c oinc ide c om o suje ito
pote nc ia l da pr á tic a r e voluc ioná r ia . E qua nto m a is a s c la sse s
e xplor a da s, « o povo» , suc um be m a os pode r e s e xiste nte s, ta nto
m a is a a r te se dista nc ia r á do « povo» . A a r te pode pr e se r va r a sua
ve r da de , pode tor na r c onsc ie nte a ne c e ssida de de m uda nç a , m a s
a pe na s qua ndo obe de c e à sua pr ópr ia le i c ontr a a da r e a lida de .
Br e c ht, que nã o e r a e xa c ta m e nte um pa r tidá r io da a utonom ia da
a r te , e sc r e ve : « U m a obr a que nã o m ostr e sobe r a nia e que nã o
outor gue a o públic o sobe r a nia pe r a nte a r e a lida de de m odo
ne nhum é um a obr a de a r te » ( 1 7 ).
M a s, o que na a r te pa r e c e dista nte da pr á xis da m uda nç a de ve
se r r e c onhe c ido c om o um e le m e nto ne c e ssá r io num a pr á xis
futur a de libe r ta ç ã o - c om o a « c iê nc ia do be lo, a c iê nc ia da
r e de nç ã o e da r e a liza ç ã o» . A a r te nã o pode m uda r o m undo, m a s
pode c ontr ibuir pa r a a m uda nç a da c onsc iê nc ia e im pulsos dos
hom e ns e m ulhe r e s, que pode r ia m m uda r o m undo. O m ovim e nto
dos a nos se sse nta le vou a um a tr a nsfor m a ç ã o r a dic a l da
subje c tivida de e da na tur e z a , da

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H ERBERT M ARC U SE

se nsibilida de , da im a gina ç ã o e da r a zã o. Abr iu um a nova visã o


da s c oisa s, pe r m itiu o ingr e sso da supe r str utur a na ba se . H oje ,
o m ovim e nto e stá e nc la usur a do, isola do, na de fe nsiva e um a
bur oc r a c ia e sque r dista e m ba r a ç a da a pr e ssa -se a c onde na r o
m ovim e nto c om o e litism o e sté tic o, im pote nte . N a ve r da de ,
pr e fe r e -se a r e gr e ssã o se gur a à figur a pa te r na l c ole c tiva de um
pr ole ta r ia do que nã o e stá (c om pr e e nsi- ve lm e nte ) m uito
inte r e ssa do ne ste s pr oble m a s. Insiste -se no e m pe nha m e nto da
a r te njim a W e lt a n s c h a u u n g pr ole tá r ia or ie nta da pa r a « o povo» .
A a r te r e voluc ioná r ia de ve , por suposiç ã o, fa la r a « lingua ge m
do povo» . Br e c ht e sc r e ve u nos a nos tr inta : « Só e xiste um
a lia do c ontr a o ba r ba r ism o c r e sc e nte , sã o a s pe ssoa s que sob
e le sofr e m . Só de la s pode m os e spe r a r a lgum a c oisa . Por isso, o
e sc r itor de ve vir a r - -se pa r a o povo» . E é m a is ne c e ssá r io do
que nunc a fa la r a sua lingua ge m C 8 ). Sa r tr e c om pa r tilha e ste s
se ntim e ntos: o inte le c tua l de ve « r e c upe r a r tã o de pr e ssa qua nto
possíve l o luga r que o a gua r d a e ntr e o povo» ( l9 )/'
M a s, que m é « o povo» ? Br e c ht dá um a de finiç ã o m uito
r ígida : «as pe ssoa s que nã o só pa r tic ipa m tota lm e nte no
de se nvolvim e nto, m a s na r e a lida de o usur pa m , o for ç a m , o
de te r m ina m . Te m os dia nte dos olhos um povo que fa z a histór ia ,
que tr a nsfor m a o m undo e se tr a nsfor m a a si m e sm o, v Te m os
dia nte dos nossos olhos um povo luta dor ...» ( 2 0 ). M a s, nos pa íse s
c a pita lista s a va nç a dos, e sta « pa r te do povo» , nã o é « o povo» ,
nã o é a gr a nde m a ssa da popula ç ã o de pe nde nte . Pe lo c ontr á r io,
« o povo» , ta l c om o Br e c ht o de fine , se r ia um a m inor ia de
pe ssoa s, oposta s a e sta m a ssa , um a m inor ia m ilita nte . Se se pa r te
do pr inc ípio de que a a r te de ve e sta r c om pr om e tida nã o só c om
e sta m inor ia m a s c om o povo,

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A D IM EN SÃO ESTÉTIC A

e ntã o, nã o se pe r c e be por que r a zã o o e sc r itor de ve fa la r a sua


lingua ge m - nã o se r ia a inda a lingua ge m da libe r ta ç ã o.
É c a r a c te r ístic o que os te xtos m e nc iona dos c om pr om e ta m a
a r te c om « o povo» , que « o povo» a pa r e ç a c om o o únic o a lia do
c ontr a o ba r ba r ism o. Ta nto na e sté tic a m a r xista c om o na te or ia
e pr opa ga nda da N ova Esque r da , há um a for te te ndê nc ia pa r a
fa la r do « povo» e m ve z do pr ole ta r ia do. Esta te ndê nc ia e xpr im e
o fa c to de , sob o c a pita lism o m onopolista , a popula ç ã o
e xplor a da se r m uito m a ior do que o « pr ole ta r ia do» e de
c om pr e e nde r um a gr a nde qua ntida de de e str a tos da c la sse
m é dia a nte r ior m e nte inde pe nde nte s. Se « o povo» é inc or por a do
no siste m a pr e va le c e nte de ne c e ssida de s, e ntã o só a r uptur a
c om e ste siste m a pode tr a nsfor m a r « o povo» num a lia do c ontr a
o ba r ba r ism o. Ante s de ta l, o e sc r itor nã o pode tom a r
sim ple sm e nte um « luga r e ntr e o povo» , que pr e via m e nte lhe
e sta va r e se r va do. O s e sc r itor e s de ve m , a nte s de m a is, c r ia r e sse
luga r , e isto é um pr oc e sso que ta lve z e xija que se oponha m a o
povo, que ta lve z os im pe ç a de fa la r a sua lingua ge m . N e ste
se ntido, hoje , a pa la vr a « e litism o» pode be m te r um c onte údo
r a dic a l. Tr a ba lha r pa r a a r a dic a liza ç ã o da c onsc iê nc ia e da s
ne c e ssida de s signific a tom a r o m a te r ia l e xplíc ito e c onsc ie nte
be m c om o a disc r e pâ nc ia ide ológic a e ntr e o e sc r itor e « o povo» ,
e m ve z de a obsc ur e c e r e c a m ufla r . A a r te r e voluc ioná r ia pode
r e a lm e nte tor na r -se « O Inim igo do Povo» .
A te se bá sic a de que a a r te de ve se r um fa c tor de
tr a nsfor m a ç ã o do m undo pode fa c ilm e nte tor na r -se no
c ontr á r io, se a te nsã o e ntr e a a r te e a pr á xis r a dic a l dim inuir de
m odo a que a a r te pe r c a a sua pr ópr ia dim e nsã o de

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H ERBERT M ARC U SE

tr a nsfor m a ç ã o. U m te xto de Br e c ht e xpr im e m uito c la r a m e nte


e sta dia lé c tic a ( 2 I ). O pr ópr io título r e ve la o que a c onte c e
qua ndo a s for ç a s a nta gônic a s da a r te e da pr á xis se
ha r m oniza m . (O te xto intitula -se : « A Ar te de Re pr e se nta r o
M undo de M odo a D om iná -lo» .) M a s, m ostr a r o m undo
tr a nsfor m a do c om o dom ina do signific a m ostr a r a c ontinuida de
na m uda nç a , signific a obsc ur e c e r a dife r e nç a qua lita tiva e ntr e o
novo e o ve lho. O obje c tivo nã o é o m undo dom ina do, m a s o
m undo libe r ta do. C om o que r e c onhe c e ndo e ste fa c to, o te xto de
Br e c ht c om e ç a : « As pe ssoa s que que r e m m ostr a r o m undo
c om o um possíve l obje c to de dom ina ç ã o sã o a c onse lha da s à
pa r tida a nã o fa la r de a r te , a nã o r e c onhe c e r a s le is da a r te , a nã o
a spir a r à a r te .» Por que nã o? Se r á por que nã o diz r e spe ito à a r te
r e tr a ta r o m undo c om o obje c to possíve l de dom ina ç ã o? A
r e sposta de Br e c ht é : por que a a r te é « um pode r e quipa do c om
instituiç õe s e e spe c ia lista s e r uditos que só r e luta nte m e nte
a c e ita r ia m a lgum a s da s nova s te ndê nc ia s. A a r te nã o pode ir
m a is longe se m de ixa r de se r a r te » . N o e nta nto, diz Br e c ht, « os
nossos filósofos» nã o pr e c isa m de r e nunc ia r por c om ple to a o
uso dos se r viç os da a r te , « por que se r á se m dúvida , um a a r te de
r e pr e se nta r o m undo de for m a a dom iná -lo» . A te nsã o e sse nc ia l
e ntr e a a r te e a pr á xis é a ssim r e solvida a tr a vé s do jogo
m a gistr a l sobr e o duplo signific a do da « a r te » : c om o for m a
e sté tic a e c om o té c nic a .
A ne c e ssida de da luta polític a foi, de sde o pr inc ípio, um
pr e ssuposto da c r ític a da e sté tic a m a r xista a qui le va da a c a bo.
E um tr uism o que e sta luta de ve se r a c om pa nha da por um a
m uda nç a de c onsc iê nc ia . M a s, de ve le m br a r -se que e sta
m uda nç a é m a is do que o de se nvolvim e nto da c onsc iê nc ia

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A D IM EN SÃO ESTÉTIC A

polític a - que a ponta pa r a um novo « siste m a de ne c e ssida de s» .


Ta l siste m a inc luir ía um a se nsibilida de , im a gina ç ã o e r a zã o
e m a nc ipa da s do dom ínio da e xplor a ç ã o. Esta e m a nc ipa ç ã o e a s
via s que a e la c onduze m , subtr a e m -se à pr opa ga nda . N ã o sã o
tr a duzíve is de for m a a de qua da pa r a a lingua ge m da e str a té gia
polític a e e c onôm ic a . A a r te é um a for ç a pr odutiva
qua lita tiva m e nte dife r e nte do tr a ba lho; as sua s qua lida de s
e sse nc ia lm e nte subje c tiva s a fir m a m -se c ontr a a dur a
obje c tivida de da luta de c la sse s. O e sc r itor , que , n a s u a o b r a , se
ide ntific a c om o pr ole ta r ia do, c ontinua a se r m a r gina l - por
m uito que r e nunc ie à for m a e sté tic a a fa vor da e xpr e ssã o e da
c om unic a ç ã o dir e c ta . C ontinua a se r m a r gina l, nã o por c a usa da
sua or ige m e e duc a ç ã o nã o- -pr ole tá r ia , do se u a fa sta m e nto do
pr oc e sso de pr oduç ã o m a te r ia l, do se u « e litism o» , m a s de vido à
tr a nsc e ndê nc ia e sse nc ia l da a r te que tor na o c onflito e ntr e a a r te
e a pr á xis polític a ine vitá ve l. O sur r e a lism o, no se u pe r íodo
r e voluc ioná r io, a te stou e ste c onflito ine r e nte e ntr e a a r te e o
r e a lism o polític o. A possibilida de de um a a lia nç a e ntr e «o
povo» e a a r te pr e ssupõe que os hom e ns e a s m ulhe r e s
a dm inistr a dos pe lo c a pita lism o c osm opolita de sa pr e nda m a
lingua ge m , os c onc e itos e a s im a ge ns de sta a dm inistr a ç ã o, que
e xpe r im e nte m a dim e nsã o da m uda nç a qua lita tiva , que
r e ivindique m a sua sub je c tivida de , a sua inte r ior ida de . ;;
O e sc á r nio da inte r ior ida de , da ‘disse c a ç ã o da a lm a ’ na
lite r a tur a , que Br e c ht a ponta va c om o sina l da c onsc iê nc ia
r e voluc ioná r ia , nã o e stá m uito a fa sta do do de spr e zo dos
c a pita lista s pe r a nte um a dim e nsã o nã o luc r a tiva da vida . Se a
subje c tivida de é um a a quisiç ã o da e r a bur gue sa , é pe lo m e nos
um a for ç a a nta gônic a na soc ie da de c a pita lista .

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H ERBERT M ARC U SE

Re fe r i que o m e sm o se a plic a à c r ític a do individua lism o da


lite r a tur a bur gue sa , ofe r e c ida pe la e sté tic a m a r xista . N a ve r da de , o
c onc e ito do indivíduo bur guê s tor nou-se o c ontr a ponto ide ológic o
do suje ito e c onôm ic o c om pe titivo e do c he fe de fa m ília a utor itá r io.
Se m dúvida , o c onc e ito do indivíduo que se de se nvolve livr e m e nte
e m solida r ie da de c om outr os só pode tor na r -se r e a lida de num a
soc ie da de soc ia lista . M a s, o pe r íodo fa sc ista e o c a pita lism o
m onopolista m uda r a m de c idida m e nte o va lor polític o de ste s
c onc e itos. A « fuga pa r a a inte r ior ida de » e a insistê nc ia num a e sfe r a
pr iva da pode m be m se r vir c om o ba lua r te c ontr a um a soc ie da de que
a dm inistr a toda s as dim e nsõe s da e xistê nc ia hum a na . A
inte r ior ida de e a subje c tivida de ta lve z ve nha m a tor na r -se o e spa ç o
inte r ior e e xte r ior da subve r sã o da e xpe r iê nc ia , da e m e r gê nc ia de
outr o unive r so. H oje , a r e je iç ã o do indivíduo c om o um c onc e ito
« bur guê s» le m br a e pr e ssa gia a c tua ç õe s fa sc ista s. A A solida r ie da de
e a c om unida de nã o signific a m a a bsor ç ã o do indivíduo.
O r igina m -se a nte s na de c isã o individua l a utônom a ; une m
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indivíduos livr e m e nte a ssoc ia dos, e nã o m a ssa s.
Se a subve r sã o da e xpe r iê nc ia pr ópr ia da a r te e a r e be liã o c ontr a
o pr inc ípio da r e a lida de e sta be le c ida c ontida ne sta subve r sã o nã o
pude r se r tr a duzida pa r a a pr á xis polític a e se o pote nc ia l r a dic a l da
a r te r e side pr e c isa m e nte ne sta tr a nsc e ndê nc ia , e ntã o le va nta -se a
que stã o: c om o pode e ste pote nc ia l e nc ontr a r r e pr e se nta ç ã o vá lida
num a obr a de a r te e c om o pode e la tor na r -se um fa c tor de
tr a nsfor m a ç ã o da c onsc iê nc ia ?

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