INTRODUÇÃO

MODELOS DE T E O R Í A CRÍTICA

Marcos Nobre

D e s d e s e u m a r c o i n a u g u r a l , c o m a o b r a d e Karl M a r x ( 1 8 1 8 - 1 8 8 3 ) , a T e o r i a
Crítica se c a r a c t e r i z a p o r p o l e m i z a r c o m d u a s m a n e i r a s t r a d i c i o n a i s d e c o m p r e e n s ã o
da s o c i e d a d e : o p e n s a m e n t o c h a m a d o d e u t ó p i c o e a q u e l e q u e , c o m u m a p r e t e n s ã o
de neutralidade e objetividade, propõe-se u n i c a m e n t e a descrever o f u n c i o n a m e n t o
d o c a p i t a l i s m o . N o c a s o d e M a r x , esses d o i s p r i n c i p a i s a d v e r s á r i o s t e ó r i c o s s ã o
r e p r e s e n t a d o s p e l o s "socialistas u t ó p i c o s " e p e l a " e c o n o m i a política".

C o m e ç a r e i p o r a p r e s e n t a r as c r í t i c a s d e M a r x a e s s a s d u a s l i n h a s d e
p e n s a m e n t o , de m a n e i r a a alcançar a n o v i d a d e p r ó p r i a de seu p e n s a m e n t o . E m
s e g u i d a , b u s c a r e i m o s t r a r c o m o esse m o d o d e t r a b a l h o p o l ê m i c o c r i s t a l i z o u a i d é i a
d e " m o d e l o c r í t i c o " ( N o b r e 2 0 0 4 ) , c o m b a s e n a q u a l se t o r n a possível o r g a n i z a r as
diferentes c o n t r i b u i ç õ e s ao c a m p o crítico c o n s e r v a n d o seu p l u r a l i s m o e sua
n e c e s s i d a d e d e p e r m a n e n t e r e n o v a ç ã o . Essas análises s ã o r e f e r i d a s e m e s p e c i a l à
v e r t e n t e d o c a m p o c r í t i c o i n f l u e n c i a d a p e l o s escritos d e M a x H o r k h e i m e r ( 1 8 9 5 -
1973), q u e é a vertente explorada n o presente v o l u m e e q u e e m alguns círculos
a i n d a é c o n h e c i d a p e l o e q u í v o c o n o m e d e " E s c o l a de F r a n k f u r t " .

Contra o utopismo

A p a r t i r d a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X V I I I , n a s c e r a m diversas p r o p o s t a s de
o r g a n i z a ç õ e s v o l u n t á r i a s q u e p r e t e n d i a m realizar, n a e s c a l a l i m i t a d a d e u m a
c o m u n i d a d e , a i g u a l d a d e e a l i b e r d a d e p r o m e t i d a s pelas r e v o l u ç õ e s q u e d e r r u b a r a m
as o r d e n s f e u d a i s . Se, n a s s o c i e d a d e s c a p i t a l i s t a s reais, a i g u a l d a d e e a l i b e r d a d e n ã o
se r e a l i z a v a m , seria p r e c i s o i n v e n t a r c o m u n i d a d e s n a s q u a i s isso fosse p o s s í v e l .

N a s c e u d a í a v e r s ã o m o d e r n a d o s o c i a l i s m o q u e v i r i a a ser c h a m a d o
p o s t e r i o r m e n t e d e " u t ó p i c o " , n o q u a l se d e s e n h a m s o c i e d a d e s ideais b a s e a d a s em

C u r s o livre d e Teoria Crítica 9

p r i n c í p i o s m o r a i s e p o l í t i c o s de i g u a l d a d e e de l i b e r d a d e Charles Fourier (1772-1837), p o r e x e m p l o , i m a g i n o u p e q u
de trabalhadores a s s o c i a d o s , e m q u e as p a i x õ e s h u m a n a s p u d e s s e m ser c o l o c a d a s a
serviço do desenvolvimento de cada indivíduo e do c o n j u n t o da coletividade. Era a
p r o p o s t a de c o n s t i t u i ç ã o d e associações v o l u n t á r i a s à m a r g e m d o s i s t e m a capitalista,
q u e e n t ã o se c o n s o l i d a v a , e d o E s t a d o - N a ç ã o , q u e se estabelecia c o m o f o r m a política
exclusiva de organização.

S e m d e s m e r e c e r a i m p o r t a n t e c o n t r i b u i ç ã o desses p r i m e i r o s p e n s a d o r e s
u t ó p i c o s s o b r e o c a p i t a l i s m o , M a r x p r e t e n d e u m o s t r a r q u e essas p o s i ç õ e s a t a c a v a m
p r o b l e m a s reais, m a s o f e r e c i a m p a r a eles s o l u ç õ e s a b s t r a t a s e d e s c o l a d a s d a r e a l i d a d e
c o n c r e t a . P a r a ele, o fato m e s m o de ter s u r g i d o a idéia d o s o c i a l i s m o , d a c o n s t i t u i ç ã o
d e u m a s o c i e d a d e d e h o m e n s livres e i g u a i s , n ã o se d e v i a à c a b e ç a d e s t e o u d a q u e l e
p e n s a d o r , e r a o r e s u l t a d o d e u m d e s e n v o l v i m e n t o h i s t ó r i c o c o n c r e t o q u e já a h a v i a
t o r n a d o possível.

P a r a M a r x , o s o c i a l i s m o p e r m a n e c e u a p e n a s u m a idéia até q u e o c a p i t a l i s m o
se d e s e n v o l v e u o s u f i c i e n t e ( n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o X I X ) p a r a m o s t r a r q u e
a s o c i e d a d e socialista n ã o t i n h a s u r g i d o a p e n a s n a c a b e ç a de a l g u n s , q u e t i n h a raízes
n a p r ó p r i a r e a l i d a d e social d o c a p i t a l i s m o , q u e o s o c i a l i s m o p o d e r i a s u r g i r d e d e n t r o
d o sistema capitalista. C o m a consolidação da p r o d u ç ã o industrial e m massa,
c o n s t i t u i u - s e t a m b é m u m a força p o l í t i c a i n t e r n a a o s i s t e m a , c a p a z d e d e s t r u i r o
capitalismo e instaurar o socialismo: o operariado. Nesse m o m e n t o e m que a
r e a l i z a ç ã o d o s o c i a l i s m o se t o r n a p o s s í v e l a p a r t i r d a p r ó p r i a o r g a n i z a ç ã o s o c i a l
capitalista, c o n t i n u a r a insistir e m p r o p o s t a s utópicas deixa de ter u m caráter
p r o g r e s s i s t a p a r a se t r a n s f o r m a r e m m e r a i d e o l o g i a .

A Revolução Industrial na Inglaterra e a Revolução Francesa libertaram o

d e s e n v o l v i m e n t o d a i n d ú s t r i a , d o c o m é r c i o e d a s i n s t i t u i ç õ e s p o l í t i c a s , sociais e
j u r í d i c a s c a p i t a l i s t a s d a s a m a r r a s d a d o m i n a ç ã o f e u d a l . P a r a M a r x , as c o n d i ç õ e s
p a r a essas d u a s r e v o l u ç õ e s f o r a m p r o d u z i d a s n o i n t e r i o r d a p r ó p r i a o r d e m f e u d a l
a n t e r i o r . Essas c o n d i ç õ e s p e r m i t i r a m q u e a a ç ã o p o l í t i c a r e v o l u c i o n á r i a fosse
p o s s í v e l , m a s as r e v o l u ç õ e s n ã o l i b e r t a r a m a p e n a s o d e s e n v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a .
L i b e r t a r a m t a m b é m os g e r m e s d e u m a s o c i e d a d e socialista. D o m e s m o m o d o c o m o
o capitalismo nasceu d o feudalismo, t a m b é m o socialismo poderá nascer do interior
d o p r ó p r i o c a p i t a l i s m o . P a r a M a r x , o c a p i t a l i s m o n u n c a p o d e r á realizar a i g u a l d a d e
e a l i b e r d a d e q u e p r o m e t e . Só o s o c i a l i s m o p o d e r i a realizar e f e t i v a m e n t e esses
i d e a i s , e m n o m e d o s q u a i s f o r a m feitas as r e v o l u ç õ e s c a p i t a l i s t a s .

C o m o desenvolvimento do capitalismo, Marx considera que imaginar

sociedades ideais e m u m a p r a n c h e t a é n ã o a p e n a s colaborar p a r a a p e r p e t u a ç ã o da

10 P a p i r u s Editora
Ordem v i g e n t e , m a s t a m b é m u m a p o s i ç ã o c o n s e r v a d o r a , d i s t a n t e da r e a l i d a d e das açõoes
insiste e m que p r e t e n d e e n c o n t r a r o n o v o m u n d o socialista n a crítica ao m u n d o
velho tio c a p i t a l i s m o , insiste e m q u e os p r i n c i p i o s d o n o v o m u n d o t ê m de ser
d e s e n v o l v i d o s c o m b a s e n o s p r i n c i p i o s d o m u n d o e x i s t e n t e . É o entendimento
c o n c r e t o d o f u n c i o n a m e n t o d o c a p i t a l i s m o e a a p r e s e n t a ç ã o d o s p o t e n c i a i s de
resistência e d e e m a n c i p a ç ã o n e l e p r e s e n t e s q u e p o d e m m o s t r a r o c a m i n h o d a
teoria e da prática, da c o m p r e e n s ã o d a realidade e de sua t r a n s f o r m a ç ã o .

Isso significa dizer q u e é p r e c i s o p r o d u z i r u m d i a g n ó s t i c o , u m a c o m p r e e n s ã o

do c a p i t a l i s m o a b r a n g e n t e o s u f i c i e n t e p a r a c o n t e r n ã o a p e n a s o e n t e n d i m e n t o d e
seu f u n c i o n a m e n t o , m a s t a m b é m os e l e m e n t o s d e s t r u t i v o s c o n t i d o s nesse
funcionamento, os elementos que permitem entrever a possibilidade de destruição
d o c a p i t a l i s m o e a i n s t a u r a ç ã o d o s o c i a l i s m o . O s o c i a l i s m o n ã o é a p e n a s u m a idéia.
Resulta d e p r o c e s s o s sociais c o n c r e t o s q u e t ê m d e s e r a n a l i s a d o s e c o m p r e e n d i d o s .
Esses p r o c e s s o s sociais s ã o o s p o r t a d o r e s d a n o v a o r d e m p o s s í v e l , d e m o d o q u e
teoria e p r á t i c a t ê m d e estar u n i d a s n o p e n s a m e n t o e n a a ç ã o . D i t o d e o u t r a m a n e i r a ,
a t e o r i a d e M a r x é crítica d a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a e a p r á t i c a d o p r o l e t a r i a d o é
t r a n s f o r m a d o r a d a s r e l a ç õ e s sociais c a p i t a l i s t a s .

E x e m p l o disso é j u s t a m e n t e a crítica q u e M a r x dirigiu a o p e n s a m e n t o

u t ó p i c o . U m p r i m e i r o m o m e n t o dessa crítica diz q u e o p e n s a m e n t o u t ó p i c o
a t r a v a n c a a v e r d a d e i r a t r a n s f o r m a ç ã o . Já n o século XIX, M a r x p r o d u z o d i a g n ó s t i c o
de q u e o capitalismo é u m m o d o d e p r o d u ç ã o q u e organiza o c o n j u n t o d a sociedade
e q u e vai se t o r n a r m u n d i a l , q u e vai a b a r c a r t o d o o g l o b o . C o m o a f i r m a o Manifesto
comunista, d e M a r x e Friedrich Engels (1820-1895), p u b l i c a d o e m 1847, o q u e
distingue a época burguesa é u m a "subversão contínua da produção", u m "abalo
c o n s t a n t e d e t o d o o s i s t e m a social". C o m isso, " d i s s o l v e m - s e t o d a s as relações sociais
a n t i g a s e c r i s t a l i z a d a s , c o m s e u c o r t e j o d e c o n c e p ç õ e s e d e idéias s e c u l a r m e n t e
v e n e r a d a s " : " T u d o o q u e e r a s ó l i d o e estável d e s m a n c h a n o ar, t u d o o q u e era s a g r a d o
é p r o f a n a d o " ( M a r x e E n g e l s s.d., p . 2 4 ) . Esse d i a g n ó s t i c o d e u m a p e r m a n e n t e
e x p a n s ã o d o c a p i t a l i s m o e d e u m p e r m a n e n t e r e v o l u c i o n a m e n t o d a s relações sociais
m o s t r a q u e a p r e t e n s ã o u t ó p i c a d e u m a o r g a n i z a ç ã o à m a r g e m d o s i s t e m a capitalista
é impossível.

M a s M a r x vai a i n d a m a i s l o n g e . N ã o a p e n a s a f i r m a q u e q u a l q u e r t e n t a t i v a
d e se o r g a n i z a r fora d o s i s t e m a c a p i t a l i s t a p a r a resistir a ele está f a d a d a a o fracasso,
c o m o m o s t r a t a m b é m q u e essas t e n t a t i v a s t i r a m o f o c o d a s r e a i s p o s s i b i l i d a d e s de
c o n s t r u ç ã o d o s o c i a l i s m o . P o r isso, o s e g u n d o m o m e n t o d a c r í t i c a a o u t o p i s m o diz
q u e o f u t u r o d o s o c i a l i s m o está i n e x t r i c a v e l m e n t e l i g a d o a o p l e n o d e s e n v o l v i m e n t o

C u r s o livre d e Teoria Crítica 1 1

do próprio capitalismo. Só o pleno desenvolvimento do capitalismo permite que o

V e m o s e n t ã o q u e a crítica de M a r x às p r o p o s t a s u t ó p i c a s se c o n c e n t r a n a
Idéia d e q u e são c o n s t r u ç õ e s d e p e n s a m e n t o a b s t r a t a s , q u e n ã o l e v a m e m c o n t a os
d e u m sujeito social c o l e t i v o e n ã o d e u m a f a b u l a ç ã o a b s t r a t a d e p e n s a m e n t o .

Os vetores da ação transformadora e n c o n t r a m - s e e m u m diagnóstico d o

c a p i t a l i s m o q u e c o n j u g a t a n t o a lógica i n t e r n a d e f u n c i o n a m e n t o d o s i s t e m a c o m o
o m o v i m e n t o o p e r á r i o q u e se o r g a n i z a p a r a resistir à d o m i n a ç ã o capitalista e eliminá-la.
a n t e r i o r m e n t e , o s e l e m e n t o s d e d i a g n ó s t i c o e r a m : 1. o c a p i t a l i s m o é u m m o d o d e
o germe de sua própria destruição.

A p e r s p e c t i v a d e e m a n c i p a ç ã o d a d o m i n a ç ã o q u e c a r a c t e r i z a a Teoria Crítica
É decisiva para a Teoria Crítica a análise das estruturas sociais reais em que estão inscritos tanto os potenciais de emancipação quanto os obstáculo

12 Papirus Editora
ser d e r i v a d o s desse d i a g n ó s t i c o . É c o m b a s e nas t e n d ê n c i a s e s t r u t u r a i s da lógica
SOCIAL d o c a p i t a l i s m o e n o e x a m e d o s a r r a n j o s h i s t ó r i c o s c o n c r e t o s e m q u e essa
lógica se expressa - c o m b a s e n o d i a g n ó s t i c o d o p r e s e n t e , p o r t a n t o - q u e se d e s e n h a m as

Isso significa q u e esse d i a g n ó s t i c o d o p r e s e n t e n ã o p o d e ser p r o d u z i d o e m

vista a p e n a s da c o m p r e e n s ã o de como funciona a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a . T e m d e ser
O d i a g n ó s t i c o d o p r e s e n t e t e m d e ser p r o d u z i d o e m r a z ã o d a s p o s s i b i l i d a d e s d e libe

A crítica da economia política

O s socialistas u t ó p i c o s f o r a m criticados p o r M a r x p o r n ã o a n c o r a r e m sua

teoria e sua prática n a realidade concreta d o t e m p o presente e suas d e t e r m i n a ç õ e s .
M a s t a m b é m a q u e l e s q u e p r e t e n d e m u n i c a m e n t e c o m p r e e n d e r c o m o funciona o
sistema capitalista r e c e b e r a m a crítica de M a r x , p o r n ã o s e r e m capazes de situar
h i s t o r i c a m e n t e as s u a s p r ó p r i a s t e o r i a s , p o r n ã o c o m p r e e n d e r e m q u e t e o r i a s
c o r r e s p o n d e m s e m p r e a d e t e r m i n a d a s a t i t u d e s d i a n t e d a d o m i n a ç ã o existente. C o m
c o n s c i ê n c i a o u n ã o d i s s o , esses p e n s a d o r e s s e r v e m à p e r p e t u a ç ã o d o c a p i t a l i s m o e,
nessa m e d i d a , c o l a b o r a m p a r a i m p e d i r a realização de u m a liberdade e de u m a
igualdade c o n c r e t a m e n t e possíveis.

O q u e n ã o significa, e n t r e t a n t o , q u e n ã o seja p o s s í v e l a p r e n d e r m u i t o c o m
s u a s a n á l i s e s . A l g u n s deles f o r a m p a r t i c u l a r m e n t e i m p o r t a n t e s p a r a a e l a b o r a ç ã o
do diagnóstico d o t e m p o presente d o próprio Marx. Refiro-me aqui particularmente
à c h a m a d a " e c o n o m i a p o l í t i c a clássica", cujos m a i s d e s t a c a d o s e x p o e n t e s f o r a m
A d a m Smith e David Ricardo. M a r x baseou-se nos resultados a que chegaram para
m o s t r a r n ã o a p e n a s o seu a l c a n c e e r e l e v â n c i a , m a s t a m b é m s u a p a r c i a l i d a d e e
limitação.

M a r x a f i r m a q u e , a o p r o c u r a r m o s c o m p r e e n d e r a s o c i e d a d e capitalista c o m o
sociedade p r o d u t o r a de mercadorias, a primeira grande questão que defrontamos é
a d e s a b e r q u a l é o padrão, q u a l é a medida d a t r o c a . N a f o r m u l a ç ã o clássica d e

C u r s o livre d e Teoria Crítica 13

Adam Smith ( 1 7 2 3 - 1 7 9 0 ) , t r a t a - s e de " e x a m i n a r q u a i s são as normas que

E a resposta ao p r o b l e m a levantado v e m logo no início d o capítulo seguinte

2
(ibid., p . 6 3 ) : " N ã o foi p o r o u r o e p r a t a , m a s p e l o t r a b a l h o , q u e foi originalmente
c o m p r a d a t o d a a r i q u e z a d o m u n d o ; e o v a l o r dessa r i q u e z a , p a r a a q u e l e s q u e a
p o s s u e m e desejam trocá-la p o r n o v o s p r o d u t o s , é e x a t a m e n t e igual à q u a n t i d a d e
d e t r a b a l h o q u e essa r i q u e z a lhes d á c o n d i ç õ e s de c o m p r a r o u c o m a n d a r " . Essa é a
q u e s t ã o i n a u g u r a l d a e c o n o m i a política, q u e M a r x s e m p r e fez q u e s t ã o d e d i s t i n g u i r
d o q u e ele c h a m o u d e e c o n o m i a v u l g a r , q u e n ã o vai a l é m d a m e r a a p a r ê n c i a , q u e
n ã o vai a l é m d a s u p e r f í c i e d o s f e n ô m e n o s .

A q u e s t ã o d o critério d a t r o c a , o u , e m t e r m o s m a i s p r e c i s o s , d o v a l o r d e t r o c a ,
é r e s p o n d i d a p o r A d a m S m i t h pela referência ao trabalho ou, m a i s p r e c i s a m e n t e , à
q u a n t i d a d e d e t r a b a l h o cristalizada n o s p r o d u t o s . M a s essa r e f e r ê n c i a é suficiente?
N o s s a p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a c o t i d i a n a m o s t r a q u e o valor de t r o c a , o u seja, a p r o p o r ç ã o
q u a n t i t a t i v a e m q u e são t r o c a d o s os p r o d u t o s , é c o n t i n g e n t e , v a r i a n d o n o t e m p o e
n o e s p a ç o . C o m o a r e f e r ê n c i a ao t r a b a l h o p o d e resolver esse p r o b l e m a ?

P a r a r e s p o n d e r a essa p e r g u n t a , t e m o s d e a v a n ç a r u m p o u c o n o t e m p o e
c o n s i d e r a r a o b r a d e o u t r o e c o n o m i s t a q u e , s u c e s s o r d e A d a m S m i t h , foi t a m b é m
referência f u n d a m e n t a l para a obra de M a r x : David Ricardo (1772-1823). Mas a
especificidade da s o l u ç ã o d e M a r x a p o n t a a i n d a p a r a a l é m d e R i c a r d o e m o s t r a já os
e l e m e n t o s de u m a crítica da economia política (o s u b t í t u l o d e O Capital é j u s t a m e n t e
Para a crítica da economia política), e l e m e n t o f u n d a m e n t a l q u e será e x a m i n a d o
mais adiante.

O v a l o r d e t r o c a d e uma m e r c a d o r i a e m p a r t i c u l a r p o d e ser i n t e i r a m e n t e
r e l a t i v o , m a s , a p a r t i r d o m o m e n t o e m q u e duas m e r c a d o r i a s se r e l a c i o n a m e m
u m a d e t e r m i n a d a p r o p o r ç ã o , p r e s s u p õ e - s e n e c e s s a r i a m e n t e u m tertius, u m t e r c e i r o
m e m b r o d a e q u a ç ã o : u m a medida comum. Essa m e d i d a c o m u m é o v a l o r d e u m a
m e r c a d o r i a . M a s d i z e r s i m p l e s m e n t e q u e essa m e d i d a c o m u m , o valor, t e m c o m o
b a s e o " t r a b a l h o " n ã o r e s o l v e o p r o b l e m a . É p r e c i s o , a d i c i o n a l m e n t e , a p r e s e n t a r as
d e t e r m i n a ç õ e s p r ó p r i a s d o trabalho e m sua encarnação na u n i d a d e mais elementar

1. O grifo d e " n a t u r a l m e n t e " é m e u . A d i a n t e , farei u m c o m e n t á r i o b r e v e s o b r e isso.

2. O grifo e m " o r i g i n a l m e n t e " é m e u e t e m o m e s m o s e n t i d o d o grifo a n t e r i o r .

14 Papirus Editora
da riqueza capitalista, a m e r c a d o r i a , e, p o s t e r i o r m e n t e , e m t o d a s a s f o r m a s m a i s
complexas d e s s a r i q u e z a , o d i n h e i r o e o c a p i t a l .

Alem d e sua u t i l i d a d e , u m a m e r c a d o r i a é, a n t e s d e q u a l q u e r o u t r a coisa, u m

p r o d u t o p a r a - s e r - t r o c a d o , e, nesse s e n t i d o , r e m e t e n e c e s s a r i a m e n t e a o c o n j u n t o d a

Para p r o d u z i r u m a mercadoria, não só se t e m de criar u m artigo que

satisfaça a u m a necessidade social qualquer, c o m o t a m b é m o t r a b a l h o
nele incorporado deverá representar u m a parte integrante da soma global
de trabalho invertido pela sociedade. Tem de estar s u b o r d i n a d o à divisão
do trabalho dentro da sociedade.

D i t o d e o u t r a m a n e i r a , o t r a b a l h o , c o m o substância d o valor, é t r a b a l h o social.

Como m e d i m o s a g r a n d e z a desse valor, o v a l o r relativo d e u m a m e r c a d o r i a ? P o r
m e i o d o tempo d e t r a b a l h o . E n t r e t a n t o , s e n d o esse t r a b a l h o t r a b a l h o social, está claro
q u e esse t e m p o n ã o é o d o p r o d u t o r i n d i v i d u a l , m a s t e m p o d e t r a b a l h o socialmente
necessário. P o r é m , se é a s s i m , t e m o s d e a d m i t i r t a m b é m q u e as m e r c a d o r i a s s ã o
s e m p r e v e n d i d a s p e l o seu valor, p o i s , d o c o n t r á r i o , o v a l o r já n ã o p o d e r i a ser p a d r ã o
de m e d i d a d e coisa a l g u m a .

A d m i t i r isso, e n t r e t a n t o , c o l o c a - n o s d i a n t e d e u m a o u t r a q u e s t ã o clássica d a
e c o n o m i a p o l í t i c a : se t o d a s as m e r c a d o r i a s s ã o v e n d i d a s p e l o seu valor, d e o n d e
p r o v é m o l u c r o ? M a r x p r e t e n d e ser o p r i m e i r o a f o r n e c e r u m a r e s p o s t a a d e q u a d a
ao p r o b l e m a , cuja f o r m u l a ç ã o é a s e g u i n t e :

Para explicar o caráter geral do lucro não tereis outro remédio senão partir
d o t e o r e m a de q u e as m e r c a d o r i a s se vendem, em m é d i a , pelos seus
verdadeiros valores e que os lucros se obtêm vendendo as mercadorias pelo
seu valor, isto é, em proporção à quantidade de trabalho nelas materializado.
Se não conseguirdes explicar o lucro sobre essa base, de n e n h u m outro
m o d o conseguireis explicá-lo. (Ibid., p. 158)

P a r a r e t o m a r o r a c i o c í n i o : s e m a p r e s s u p o s i ç ã o d e u m a s u b s t â n c i a d o valor,
t o r n a - s e impossível u m a ciência e c o n ô m i c a . M a n t e n d o - s e a pressuposição e m sua
v e r s ã o r i c a r d i a n a , t o r n a - s e i m p o s s í v e l explicar a o r i g e m d o l u c r o , q u e a d q u i r e e n t ã o
u m caráter misterioso.

M a r x sustenta q u e a natureza d o trabalho e m u m a sociedade p r o d u t o r a de

m e r c a d o r i a s p r e s s u p õ e u m a d i s t i n ç ã o f u n d a m e n t a l : a q u e l a e n t r e t r a b a l h o e força

C u r s o livre d e Teoria Crítica 15

di trabalho A n o v i d a d e d o m o d o di' produção capitalista está tvn que .1 atividade
I lutiva humana Se t r a n s f o r m o u em m e r c a d o r i a , p o s s u i n d o u m v a l o r , s e n d o algo
1 p i e p o d e ser comprado o u v e n d i d o . O q u e i n t e r e s s a ao capitalista é a c a p a c i d a d e d e

produzir n o v a s m e r c a d o r i a s p e l a u t i l i z a ç ã o d e força d e t r a b a l h o . M a s c o m o se
determina o v a l o r da força d e t r a b a l h o ? D a m e s m a m a n e i r a c o m o se d e t e r m i n a o de
qualquer o u t r a m e r c a d o r i a : s o m a n d o - s e as q u a n t i d a d e s d e t r a b a l h o c o n t i d a s n o s
p r o d u t o s q u e a c o m p õ e m . N o c a s o d a força d e t r a b a l h o , t r a t a - s e d a q u a n t i d a d e d e
meios de subsistência necessários à m a n u t e n ç ã o e r e p r o d u ç ã o da força de trabalho,
a l é m d e u m a série d e o u t r a s coisas, c o m o a m a n u t e n ç ã o d o s filhos e os v a l o r e s
g a s t o s n o d e s e n v o l v i m e n t o e a p e r f e i ç o a m e n t o t é c n i c o d a força d e t r a b a l h o , p o r
exemplo.

D e q u e serve, e n t r e t a n t o , m o s t r a r a t r a n s f o r m a ç ã o da atividade h u m a n a
p r o d u t i v a e m m e r c a d o r i a para a explicação da origem do lucro? Ora, entre outras
c o i s a s , a d i s t i n ç ã o e n t r e t r a b a l h o e força d e t r a b a l h o t e m p r e s s u p o s t o s h i s t ó r i c o s : o
t r a b a l h a d o r foi d e s p o j a d o d a t e r r a e d o s m e i o s de p r o d u ç ã o e, p a r a t r a b a l h a r , p r e c i s a
r e c o r r e r a o s m e i o s d e p r o d u ç ã o e m p r o p r i e d a d e d o capitalista. O r e s u l t a d o d e s s a
s e p a r a ç ã o h i s t ó r i c a d e t r a b a l h o e força d e t r a b a l h o é o s e g u i n t e : a força d e t r a b a l h o
e m a ç ã o , e x e r c i d a e m m e i o s d e p r o d u ç ã o d e p r o p r i e d a d e d o c a p i t a l i s t a (o t r a b a l h o ,
e m u m a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a , é essa j u n ç ã o d e força d e t r a b a l h o c o m o m e r c a d o r i a
e m e i o s de p r o d u ç ã o e m p o d e r d o capitalista), é capaz de obter u m p r o d u t o de
maior valor d o q u e o v a l o r q u e a força d e t r a b a l h o l h e a c r e s c e n t a c o m o m e r c a d o r i a .
O u seja, o t r a b a l h o h u m a n o t e m a p e c u l i a r i d a d e d e a g r e g a r m a i s - v a l o r à m e r c a d o r i a
d o q u e o s i m p l e s c u s t o d e r e p r o d u ç ã o d a força d e t r a b a l h o . A s s i m , o l u c r o r e s u l t a d a
d i f e r e n ç a e n t r e o v a l o r d a força d e t r a b a l h o c o m o m e r c a d o r i a ( d a d o p e l o seu c u s t o
d e r e p r o d u ç ã o ) e a c a p a c i d a d e q u e t e m essa m e r c a d o r i a especial d e , e m s e u u s o ,
p r o d u z i r u m valor m a i o r d o q u e o seu valor de troca. A fonte do lucro encontra-se,
p o r t a n t o , n e s s a mais-valia e x t r a í d a d a força d e t r a b a l h o e a p r o p r i a d a p e l o capitalista.

Foi o p o n d o - s e àquele " n a t u r a l m e n t e " d o texto de A d a m Smith, citado

a n t e r i o r m e n t e , q u e M a r x c o n s e g u i u d e s v e n d a r os s e g r e d o s d o m o d o d e p r o d u ç ã o
capitalista. N a s sociedades que a n t e c e d e r a m historicamente o capitalismo, M a r x
o b s e r v o u q u e a p r o d u ç ã o era p r i m o r d i a l m e n t e p r o d u ç ã o de objetos úteis,
necessários à r e p r o d u ç ã o d o p r ó p r i o produtor. A troca era apenas ocasional,
r e s u l t a n d o d e u m e v e n t u a l e x c e d e n t e d e p r o d u t o s , q u e p a s s a v a m e n t ã o a ser m e i o s
d e t r o c a . N o c a p i t a l i s m o , a o c o n t r á r i o , os p r o d u t o s n ã o se d e s t i n a m ao u s o d o
p r o d u t o r , m a s à troca no mercado. Eles s ã o p r o d u t o s p a r a - s e r e m - t r o c a d o s . N ã o h á
u m a regulação direta da p r o d u ç ã o , m a s u m a regulação indireta, d a d a pela troca q u e
v i n c u l a os p r o d u t o r e s i n d i v i d u a i s . Isso só se t o r n a possível, p o r s u a vez, q u a n d o a

16 P a p i r u s Editora
Iroca passa a ser u m f e n ô m e n o g e n e r a l i z a d o , q u a n d o se m u l t i p l i c a a s é r i e d e
ei pi i v a l e n t e s d o s d i v e r s o s v a l o r e s d e t r o c a . D e s s e m o d o , n ã o e s t a m o s a p e n a s d i a n t e
d e u m a s o c i e d a d e cujo d e s e n v o l v i m e n t o t é c n i c o é i n f i n i t a m e n t e s u p e r i o r a o d a s
s u c i e d a d e s q u e a a n t e c e d e r a m , o u seja, u m a s o c i e d a d e q u e c o n t i n u a r i a p r o d u z i n d o
da m e s m a f o r m a , só q u e c o m m a i o r eficiência. E s t a m o s d i a n t e d e u m a n o v a maneira
de produzir, d i a n t e d e u m n o v o modo de produção.

C o m isso, M a r x m o s t r o u m a i s q u e s i m p l e s m e n t e os p r e s s u p o s t o s h i s t ó r i c o s
e p o l í t i c o s d a e c o n o m i a p o l í t i c a . M o s t r o u q u e t o d o r e s u l t a d o t e ó r i c o está a n c o r a d o
e m c o n t e x t o s h i s t ó r i c o s d e t e r m i n a d o s e está c o m p r o m e t i d o c o m u m a m a n e i r a
d e t e r m i n a d a de c o m p r e e n d e r a forma presente de d o m i n a ç ã o , c o m uma
d e t e r m i n a d a p r á t i c a . M a s , a o m e s m o t e m p o , m o s t r o u t a m b é m q u e é p o s s í v e l se
a p r o p r i a r de teorias não-críticas para a elaboração de u m diagnóstico crítico d o
p r e s e n t e . Essa m a n e i r a d e se a p r o p r i a r d o s r e s u l t a d o s t e ó r i c o s d e p e n s a d o r e s q u e
não estão c o m p r o m e t i d o s c o m a destruição do sistema capitalista é m o d e l a r p a r a o
c a m p o da Teoria Crítica. O m o d e l o da "Crítica da e c o n o m i a política" serviu de
p o n t o de partida para todos aqueles que, de u m a m a n e i r a o u de outra, p r e t e n d e r a m
e p r e t e n d e m l e v a r a d i a n t e essa t r a d i ç ã o .

Modelos críticos

A Teoria Crítica n ã o pretende apresentar u m a "explicação mais a d e q u a d a "

d o f u n c i o n a m e n t o d o c a p i t a l i s m o . P r e t e n d e e n t e n d e r o t e m p o p r e s e n t e e m vista d a
s u p e r a ç ã o d e s u a l ó g i c a d e d o m i n a ç ã o . D a í o s e u c a r á t e r crítico justamente:
" e n t e n d e r " c o m o "as coisas f u n c i o n a m " é já a c e i t a r q u e essas " c o i s a s " são a s s i m e
q u e n ã o p o d e m ser r a d i c a l m e n t e d e o u t r a m a n e i r a .

P o r essa r a z ã o , é i m p o r t a n t e e n f a t i z a r q u e a T e o r i a C r í t i c a n ã o se c o l o c a
c o m o " c o n c o r r e n t e " d a s c o n t r i b u i ç õ e s n ã o - c r í t i c a s . Ela n ã o p r e t e n d e ser u m a
explicação "mais a d e q u a d a " o u "mais abrangente" do funcionamento do capitalismo.
M a r x n ã o a p r e s e n t o u u m a "teoria econômica", m a s u m a crítica das teorias
existentes. Essa p r e t e n s ã o de n ã o - c o n c o r r ê n c i a m o s t r a t a n t o o vínculo das
c o n t r i b u i ç õ e s críticas c o m as c o n t r i b u i ç õ e s n ã o - c r í t i c a s ( q u e são, p o r t a n t o , o o b j e t o
d a c r í t i c a ) c o m o o p o n t o d e v i s t a d e o n d e as e x a m i n a .

N ã o c a b e à t e o r i a l i m i t a r - s e a d i z e r c o m o as coisas funcionam, mas sim

a n a l i s a r o f u n c i o n a m e n t o c o n c r e t o d a s c o i s a s à l u z d e u m a emancipação ao m e s m o
t e m p o concretamente possível e bloqueada pelas relações sociais v i g e n t e s . C o m isso, é

C u r s o livre d e Teoria Crítica 17

,i própria perspectiva da emancipação que torna possível .1 teoria, pois t essa
perspectiva q u e a b r e p e l a p r i m e i r a vez o c a m i n h o p a r a a efetiva c o m p r e e n s ã o d a s
r e l a ç õ e s sociais. S e m a p e r s p e c t i v a da e m a n c i p a ç ã o , p e r m a n e c e - s e n o â m b i t o d a s
ilusões reais c r i a d a s p e l a p r ó p r i a lógica i n t e r n a da o r g a n i z a ç ã o social c a p i t a l i s t a .
Dito d e o u t r a m a n e i r a , é a orientação para a emancipação o que permite compreender
a sociedade e m seu c o n j u n t o , o q u e p e r m i t e pela p r i m e i r a vez a constituição de
u m a teoria e m sentido enfático.

Se, p o r t a n t o , a o r i e n t a ç ã o p a r a a e m a n c i p a ç ã o está n a b a s e d a t e o r i a , c o m o o
q u e c o n f e r e s e n t i d o a o t r a b a l h o t e ó r i c o , a t e o r i a n ã o p o d e se l i m i t a r a descrever o
m u n d o social, t e m d e e x a m i n á - l o d a p e r s p e c t i v a d a d i s t â n c i a q u e s e p a r a o q u e
existe d a s p o s s i b i l i d a d e s m e l h o r e s nele e m b u t i d a s e n ã o r e a l i z a d a s , vale dizer, à l u z
d a c a r ê n c i a d o q u e é d i a n t e d o m e l h o r q u e p o d e ser. N e s s e s e n t i d o , a o r i e n t a ç ã o p a r a
a e m a n c i p a ç ã o exige q u e a t e o r i a seja e x p r e s s ã o d e u m comportamento crítico
r e l a t i v a m e n t e a o c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o e m c o n d i ç õ e s sociais c a p i t a l i s t a s e à
p r ó p r i a r e a l i d a d e social q u e esse c o n h e c i m e n t o p r e t e n d e a p r e e n d e r .

Esses p r i n c í p i o s n o r t e a d o r e s d a Teoria Crítica n ã o s ã o i n t r o d u z i d o s " d e fora"

p e l o t e ó r i c o , s ã o p r i n c í p i o s i n s c r i t o s n a r e a l i d a d e p r e s e n t e d a s r e l a ç õ e s sociais. É
esse p o n t o d e vista q u e p e r m i t e i d e n t i f i c a r as t e n d ê n c i a s e s t r u t u r a i s d o d e s e n v o l -
v i m e n t o h i s t ó r i c o e s e u s a r r a n j o s c o n c r e t o s d a p e r s p e c t i v a das potencialidades e dos
obstáculos à e m a n c i p a ç ã o . Esses d o i s p r i n c í p i o s f u n d a m e n t a i s d a T e o r i a C r í t i c a ,
h e r d a d o s de Marx, ao m e s m o t e m p o e m q u e caracterizam o c a m p o crítico,
d e m a r c a m n e g a t i v a m e n t e esse c a m p o , j á q u e e x c l u e m d e l e t a n t o o s t e ó r i c o s
" u t ó p i c o s " c o m o t a m b é m aqueles q u e p r e t e n d e m ser possível s i m p l e s m e n t e
"descrever o f u n c i o n a m e n t o " d a p r o d u ç ã o capitalista, s e m c o n s i d e r a r q u e essa a t i t u d e
já i m p l i c a u m p o s i c i o n a m e n t o d e t e r m i n a d o e m favor d a d o m i n a ç ã o e x i s t e n t e .

O q u e d i s t i n g u e a p e r s p e c t i v a crítica é j u s t a m e n t e o s e u a n c o r a m e n t o real n a
sociedade, u m ancoramento intimamente relacionado c o m a produção de
diagnósticos d o t e m p o . É u m a característica m a r c a n t e da Teoria Crítica a sua
p e r m a n e n t e renovação, a sua p e r m a n e n t e capacidade de analisar o m o m e n t o
histórico presente. Nesse sentido, q u e m q u e r q u e c o n t i n u e a repetir hoje c o m o
v e r d a d e i n a b a l á v e l o d i a g n ó s t i c o d e M a r x , p o r e x e m p l o , d e i x a d e ser c r í t i c o , p o i s o
essencial é q u e se seja c a p a z d e p r o d u z i r n o v o s d i a g n ó s t i c o s d o t e m p o d a p e r s p e c t i v a
teórica e p r á t i c a i n a u g u r a l d e M a r x . R e p e t i r c o m o v e r d a d e o q u e M a r x o u q u a l q u e r
OUtro t e ó r i c o c r í t i c o d o p a s s a d o a f i r m a r a m é cair n o d o g m a t i s m o q u e a T e o r i a
I 1 (tica b u s c a a t o d o c u s t o evitar.

D i t o d e o u t r a m a n e i r a , a T e o r i a C r í t i c a só t e m v i d a e i n t e r e s s e se for
I" 1 1 1 1 . 1 u r u t e m e n t e r e f o r m u l a d a e r e p e n s a d a e m vista d e n o v a s c o n d i ç õ e s h i s t ó r i c a s .

Ill 1'npíius rditora

 i Miihc lo, i . i d a r e l o r m u l a ç à o ele cada p e n s a d o r a o u p e n s a d o r , e m c a d a u m a d a s
i' de sua o b r a , i o n s t i t u i u m m o d e l o c r í t i c o a u t ô n o m o , a i n d a q u e p e r t e n c e n t e a
, i i i i p o t e ó r i c o c o m u m . A idéia d e " m o d e l o c r í t i c o " p r e t e n d e r e s s a l t a r q u e n ã o
1
h li ses d e t e r m i n a d a s , c o m c o n t e ú d o s fixos, a q u e a l g u é m t e n h a d e a d e r i r se q u i s e r
i ff p a r t e d o c a m p o c r í t i c o .
;
I ,sle I i v r o se p r o p õ e a f o r m u l a r e a t e s t a r a p o s s i b i l i d a d e d e o r g a n i z a r a u t o r e s
t períi idos diferentes dessa v e r t e n t e intelectual s e g u n d o modelos críticos q u e p e r m i t a m
lauto distinguir autores e períodos de suas obras u n s dos o u t r o s c o m o m a n t e r a
Pi fi 1 1 I H ia a u m a m a t r i z t e ó r i c a c o m u m , c o m b a s e n a q u a l se t o r n a possível d i z e r
• 1111 „ 1 0 m o d e l o s d e u m a m e s m a t r a d i ç ã o crítica.

Por isso, são a p r e s e n t a d o s a q u i diferentes m o d e l o s de Teoria Crítica c o m o

i iToi n u i l a ç õ e s s u c e s s i v a s d o s p r i n c í p i o s f u n d a m e n t a i s q u e d e m a r c a m esse c a m p o
I n t e l e c t u a l , t a n t o e m s e n t i d o a m p l o c o m o n o s e n t i d o r e s t r i t o d o s m o d e l o s q u e se
I ' i r i a m nas f o r m u l a ç õ e s de H o r k h e i m e r n o s a n o s 1930. E x a m i n a r a t r a d i ç ã o d a
I r o i i . i C r í t i c a , e n t r e t a n t o , n ã o p o d e se l i m i t a r a a p r e s e n t a r m o d e l o s c r í t i c o s j á
formulados e e s t u d a d o s , h á t a m b é m a t a r e f a d e t e n t a r e n t e n d e r c o m o as
Contribuições atuais p r o c u r a m p r o d u z i r novos m o d e l o s críticos baseados e m
novos diagnósticos d o t e m p o e novas formulações dos princípios fundamentais
da T e o r i a C r í t i c a .

P a r a r e a l i z a r e s s a t a r e f a , as d i s c i p l i n a s d o c o n h e c i m e n t o t a i s c o m o as
l o n h e c e m o s hoje p a r e c e m p o r demais especializadas. A o m e s m o t e m p o , n ã o é
possível a b r i r m ã o d o c o n h e c i m e n t o e s p e c i a l i z a d o p a r a c o m p o r d i a g n ó s t i c o s d o
t e m p o e, a p o i a n d o - s e neles, a p o n t a r t e n d ê n c i a s d e d e s e n v o l v i m e n t o h i s t ó r i c o q u e
p o d e m i n f o r m a r a a ç ã o . É p o r isso q u e , d e s d e os a n o s 1930, a Teoria C r í t i c a se
propõe explicitamente a produzir conhecimento em u m processo de colaboração
e n t r e as d i s c i p l i n a s . U m a d a s m a r c a s i m p o r t a n t e s d o c a m p o c r í t i c o é a sua p r o p o s t a
de trabalho interdisciplinar.

E esse t r a b a l h o i n t e r d i s c i p l i n a r é possível n ã o a p e n a s p o r q u e os d i v e r s o s
c o l a b o r a d o r e s se c o l o c a m e m u m m e s m o c a m p o t e ó r i c o , d e m a r c a d o pelos p r i n c í p i o s
norteadores da Teoria Crítica, m a s t a m b é m e s i m u l t a n e a m e n t e p o r q u e c o l a b o r a m
c o m u m o b j e t i v o c o m u m , o d e p r o d u z i r u m d i a g n ó s t i c o d o t e m p o c a p a z de fornecer
uma c o m p r e e n s ã o acurada e complexa do m o m e n t o histórico e de suas
potencialidades emancipatórias. É nesse sentido q u e c o l a b o r a m economistas,
cientistas sociais, historiadores, psicólogos, teóricos d o direito, da política e da
l i t e r a t u r a , filósofos e c r í t i c o s d e a r t e .

E é essa c o l a b o r a ç ã o e essa t e n t a t i v a d e c o m p o r o d i a g n ó s t i c o d o t e m p o m a i s
plausível e a d e q u a d o q u e p o d e m o s e n c o n t r a r e m c a d a u m a d a s p r o d u ç õ e s t e ó r i c a s

C u r s o livre d e Teoria Crítica 19

itutis da Teoria Critica. Ao exarninar a condiçlo feminint na lociedade capitaliitAi
|>or e x e m p l o , as c o n t r i b u i ç õ e s críticas p r e t e n d e m c o m p r e e n d e r essa c o n d i ç ã o de
u m a p e r s p e c t i v a m u i t o m a i s a m p l a d o q u e a d e especialistas c m q u e s t õ e s d e gênero
Ao p r o p o r , a cada vez, n o v a s categorias explicativas p a r a os f e n ô m e n o s de
d e s i n t e g r a ç ã o s o c i a l e d e a l i e n a ç ã o , as c o n t r i b u i ç õ e s c r í t i c a s t ê m e m c o n t a as
m u d a n ç a s n a e c o n o m i a e n o direito, n a sociedade e n a política. Ao t e n t a r pensar a
p s i c a n á l i s e c o m o u m e l e m e n t o d e decisiva i m p o r t â n c i a p a r a a c o m p r e e n s ã o d a s
p a t o l o g i a s , a Teoria C r í t i c a irá p e n s a r o viés p s i c a n a l í t i c o s e m p r e e ao m e s m o t e m p o
c o m o t e o r i a social, d e tal m o d o q u e os e l e m e n t o s p s í q u i c o s n ã o s e j a m a b s t r a í d o s d e
s u a i n s e r ç ã o n a s o c i e d a d e , m a s p e n s a d o s s e g u n d o s u a lógica s o c i a l p r ó p r i a .

Essas o b s e r v a ç õ e s p r e t e n d e m m o s t r a r t a m b é m q u e a idéia m e s m a d e m o d e l o
c r í t i c o está e s t r e i t a m e n t e l i g a d a a a r r a n j o s d i s c i p l i n a r e s d e t e r m i n a d o s . P o d e m o s
c o m p r e e n d e r cada m o d e l o crítico n ã o apenas e m sua tentativa de p r o d u z i r o
diagnóstico do t e m p o mais abrangente e preciso possível, m a s t a m b é m na
c o n s t e l a ç ã o d i s c i p l i n a r q u e p õ e e m p r á t i c a a c a d a vez. Se o m o d e l o o r i g i n a l d e M a r x
c o l o c o u a e c o n o m i a p o l í t i c a n o c e n t r o desses a r r a n j o s d i s c i p l i n a r e s , o p r e s e n t e
livro m o s t r a q u e essa n ã o é a ú n i c a c o n s t e l a ç ã o possível. Pelo c o n t r á r i o , p r e t e n d e m o s
m o s t r a r a q u i q u e a p r á t i c a d a i n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e é t ã o d i v e r s a q u a n t o d i v e r s o s são
os d i a g n ó s t i c o s d o t e m p o e os m o d e l o s c r í t i c o s . E m o s t r a q u e , d e n t r e os m u i t o s
desafios p a r a c o m p r e e n d e r o m o m e n t o atual, o de e n c o n t r a r n o v a s relações
p r o d u t i v a s e n t r e as d i f e r e n t e s d i s c i p l i n a s é talvez o m a i s p r e m e n t e . P a r a i s s o ,
i n v e s t i g a r a r i q u e z a d o p a s s a d o d a Teoria C r í t i c a é t ã o i m p o r t a n t e q u a n t o m a n t e r os
o l h o s a b e r t o s e a t e n t o s p a r a as t r a n s f o r m a ç õ e s d o p r e s e n t e .

Referências bibliográficas

MARX, K. ( 1982). "Salário, preço e lucro". São Paulo: Abril Cultural. (Col. Os Economistas)

M A R X , K. e E N G E L S , F. (s.d.). "Manifesto comunista". In: Obras escolhidas. Vol. 1. São

Paulo: Alfa-Ômega.

N O B R E , M . (2004). A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

S M I T H , A. ( 1 9 8 4 ) . A riqueza das nações. C a p . IV. São Paulo: Abril C u l t u r a l . (Col. O s

Economistas)

20 P a p i r u s Editora
 MAX HORKHEIMER.
A TEORIA C R Í T I C A ENTRE
O NAZISMO E O CAPITALISMO TARDIO

Marcos Nobre

1 I o r k h e i m e r ( 1 8 9 5 - 1 9 7 3 ) é c o n s i d e r a d o o f u n d a d o r d a Teoria Crítica, p o r q u e
loi ele o p r i m e i r o a f o r m u l a r essa idéia n a f o r m a d e u m c o n c e i t o , o p o n d o - o à i d é i a
ile teoria t r a d i c i o n a l . H o r k h e i m e r fez isso e m u m e n s a i o q u e se c h a m a j u s t a m e n t e
leoi ¡,1 t r a d i c i o n a l e Teoria Crítica", p u b l i c a d o e m 1937 ( H o r k h e i m e r 1 9 7 5 ) . M a s 1

H p r ó p r i o H o r k h e i m e r n ã o se c o n s i d e r a a s s i m . P a r a ele, a T e o r i a C r í t i c a é u m
RlOvimento intelectual e político de c o m p r e e n s ã o e t r a n s f o r m a ç ã o da sociedade
i|iu' j.í existia m u i t o a n t e s d e ele l h e d a r esse n o m e e d e c o n f r o n t á - l o c o m o u t r o s
fimos d e p e n s a m e n t o q u e ele d e n o m i n o u t e o r i a t r a d i c i o n a l .

P a r a H o r k h e i m e r , faz Teoria C r í t i c a t o d o a q u e l e q u e p r e t e n d e c o n t i n u a r a
" I H . I de Karl M a r x ( 1 8 1 8 - 1 8 8 3 ) . Isso n ã o significa de m a n e i r a a l g u m a q u e
" l o n t i n u a r " seja s i m p l e s m e n t e r e p e t i r o q u e M a r x h a v i a d i t o . P e l o c o n t r á r i o ,
I liii k h e i m e r i n s i s t e e m q u e só é possível c o n t i n u a r a v e r t e n t e i n t e l e c t u a l d a T e o r i a
( 'lítica i n d i c a n d o p r i m e i r a m e n t e t o d o s os p o n t o s e m q u e as análises i n a u g u r a i s d e
M a r x já n ã o s ã o s u f i c i e n t e s p a r a e n t e n d e r o m o m e n t o p r e s e n t e . D i t o d e o u t r a
m a n e i r a , a i d é i a m e s m a d e T e o r i a C r í t i c a exige u m a p e r m a n e n t e a t e n ç ã o à s
II a n s f o r m a ç õ e s s o c i a i s , e c o n ô m i c a s e p o l í t i c a s e m c u r s o e u m a c o n s t a n t e r e v i s ã o e
i c n o v a ç ã o d a s análises e m vista d e u m a c o m p r e e n s ã o a c u r a d a d o m o m e n t o p r e s e n t e .

Essa p e r m a n e n t e a t u a l i z a ç ã o d a s análises i n a u g u r a i s d e M a r x é o q u e faz a

força e a v i t a l i d a d e d a Teoria C r í t i c a , e essa a t u a l i z a ç ã o é possível p o r q u e c a d a n o v a
t e n t a t i v a d e c o m p r e e n d e r o m u n d o d o p o n t o d e v i s t a c r í t i c o exige u m n o v o
d iagnóstico d o t e m p o presente, u m a c o m p r e e n s ã o n o v a das relações de d o m i n a ç ã o
e d a s p o s s i b i l i d a d e s d e s u p e r á - l a s . Essa p e r s p e c t i v a d a s u p e r a ç ã o d a d o m i n a ç ã o e d a

1. N o m e s m o v o l u m e , é possível e n c o n t r a r t a m b é m u m texto c o m p l e m e n t a r , intitulado

"Filosofia e T e o r i a Crítica", e m q u e H o r k h e i m e r p r o c u r a r e s p o n d e r a objeções e a p r e s e n t a r
esclarecimentos conceituais.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 35

Instauração de uma so< ledade de homens t mulheres l i v r e s e Iguais < onfere < arátei
critico à t e o r i a . C a d a t e ó r i c a crítica, cada t e ó r i c o crítico q u e produz u m n o v o
d i a g n ó s t i c o d o t e m p o e m vista d a e m a n c i p a ç ã o da d o m i n a ç ã o c o n s t r ó i u m m o d e l o
crítico que lhe é p r ó p r i o .

H o r k h e i m e r apresentou pelo m e n o s dois diagnósticos d o t e m p o e dois

m o d e l o s c r í t i c o s b a s t a n t e d i f e r e n t e s ao l o n g o d e s u a o b r a . A p r e s e n t a r e i o m o d e l o
c r í t i c o d o s e s c r i t o s d a d é c a d a de 1930 e o m o d e l o c r í t i c o d o s e s c r i t o s d a d é c a d a de
1940, m a s n ã o s e m a n t e s fazer a ressalva d e q u e , se h á r u p t u r a s i m p o r t a n t e s e n t r e
esses d o i s m o d e l o s , t a m b é m h á l i n h a s d e c o n t i n u i d a d e q u e t ê m d e ser l e v a d a s e m
c o n s i d e r a ç ã o . C o m o será possível v e r m a i s a d i a n t e , e n t e n d o q u e m u i t o s t e m a s e
m o t i v o s q u e se t o r n a r a m c e n t r a i s n o m o d e l o crítico d a d é c a d a d e 1940 já e s t a v a m
p r e s e n t e s n o s escritos d a d é c a d a de 1930, m a s e m u m a o u t r a c o n s t e l a ç ã o disciplinar.

O c o n j u n t o m a i s significativo d e e s c r i t o s d e H o r k h e i m e r se c o n c e n t r a e n t r e
1930 e 1950 e c o m p õ e a m a i o r i a e s m a g a d o r a d e sua o b r a p u b l i c a d a e m v i d a . D o s 19
v o l u m e s q u e c o m p õ e m s u a o b r a c o m p l e t a , d o i s são c o m p o s t o s p o r e s c r i t o s d a
d é c a d a de 1920, q u a t r o p o r e s c r i t o s d a s d é c a d a s de 1930 e 1940 e o u t r o s q u a t r o d e
c o r r e s p o n d ê n c i a selecionada. Os d e m a i s nove v o l u m e s são c o m p o s t o s de escritos
p ó s t u m o s d e d i f e r e n t e s p e r í o d o s , a l é m de c o n f e r ê n c i a s e d i s c u r s o s . P o r i m p o r t a n t e s
q u e s e j a m s e u s e s c r i t o s d a d é c a d a d e 1920 e t a m b é m a q u e l e s p o s t e r i o r e s a 1950, h á
u m c o n s e n s o e s t a b e l e c i d o e n t r e os e s t u d i o s o s d e q u e os t r a b a l h o s m a i s r e l e v a n t e s
s ã o m e s m o os d a s d é c a d a s d e 1930 e 1940.

Essa c e n t r a l i d a d e e i m p o r t â n c i a d o s e s c r i t o s d a s d é c a d a s d e 1930 e 1940

coincidem t a m b é m c o m u m período de intensa atividade do Instituto de Pesquisa
Social, u m c e n t r o i n t e r d i s c i p l i n a r q u e H o r k h e i m e r a j u d o u a f u n d a r e m 1923 e q u e
p r e s i d i u d e 1930 a 1 9 5 8 , a n o e m q u e p a s s o u a d i r e ç ã o a s e u c o l a b o r a d o r e a m i g o
T h e o d o r W . A d o r n o ( 1 9 0 3 - 1 9 6 9 ) , a u t o r q u e será e x a m i n a d o e m o u t r o c a p í t u l o
deste livro. E coincide e m boa parte c o m a ascensão e a q u e d a d o n a z i s m o (1933-
1 9 4 5 ) , aí c o m p r e e n d i d o o p e r í o d o d a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l ( 1 9 3 9 - 1 9 4 5 ) . D e
1933 a 1950, o I n s t i t u t o de P e s q u i s a Social foi o b r i g a d o a se exilar s u c e s s i v a m e n t e
n a Suíça ( 1 9 3 3 ) , n a F r a n ç a ( 1 9 3 4 ) e, p o r fim, n o s E U A ( 1 9 3 4 - 1 9 5 0 ) .

Foi nessas circunstâncias q u e H o r k h e i m e r p r o c u r o u c o m p r e e n d e r o

m o m e n t o h i s t ó r i c o q u e v i v e u . E, n e s s a s c i r c u n s t â n c i a s , é i m p o r t a n t e r e s s a l t a r d o i s
e l e m e n t o s q u e f o r a m d e c i s i v o s p a r a os d i a g n ó s t i c o s d o t e m p o q u e p r o d u z i u e,
p o r t a n t o , p a r a os m o d e l o s críticos q u e n o s l e g o u . E m p r i m e i r o lugar, H o r k h e i m e r
( i í o u n o I n s t i t u t o d e P e s q u i s a Social u m a m b i e n t e de t r a b a l h o i n t e r d i s c i p l i n a r , e m
q u e especialistas d e d i f e r e n t e s á r e a s c o l a b o r a v a m c o m a p e r s p e c t i v a c o m u m d a
Orientação p a r a a e m a n c i p a ç ã o q u e c a r a c t e r i z a a Teoria C r í t i c a . E m s e g u n d o lugar,

-
li' I . i| .ii i J•. I d i l o r a
I Iuri hcinici p r o d u z i u seus d o i s m o d e l o s críticos e m u m m o m e n t o h i s t ó r i c o e m
i|iieo m o v i m e n t o operário tinha sido praticamente d e s t r u í d o e e m q u e o socialismo
da e n t ã o U n i ã o Soviética ( 1 9 1 7 - 1 9 9 1 ) n ã o a p a r e c i a a o s o l h o s d e g r a n d e p a r t e d o s
m e m b r o s d o i n s t i t u t o c o m o u m m o d e l o d e e m a n c i p a ç ã o social a s e r s e g u i d o .

A conseqüência mais direta disso é q u e tanto o m o d e l o crítico d a década d e

i ' U c o m o o d a d é c a d a d e 1940 j á n ã o t ê m n o m o v i m e n t o o p e r á r i o o d e s t i n a t á r i o
1

• li p r ó p r i a t e o r i a . A o c o n t r á r i o d a s p o s i ç õ e s e n t ã o d o m i n a n t e s n o i n t e r i o r d o
II i.i i x i s m o , H o r k h e i m e r n ã o c o n s i d e r a v a m a i s possível, e m vista d a s n o v a s c o n d i ç õ e s
Initóricas, c o n t i n u a r s u s t e n t a n d o q u e o p r o l e t a r i a d o s e r i a a ú n i c a força p o l í t i c a
interna a o p r ó p r i o sistema, q u e seria p o r t a d o r a da destruição d o capitalismo e da
i n s t a u r a ç ã o d o s o c i a l i s m o . E m r a z ã o d e seu d i a g n ó s t i c o d o t e m p o , já n ã o c o n s i d e r a v a
possível s u s t e n t a r u m a u n i ã o e n t r e t e o r i a e p r á t i c a n o s t e r m o s e m q u e h a v i a s i d o
• b i s a d a pelo m a r x i s m o d e seu t e m p o .

S e m a b r i r m ã o d o s p r i n c í p i o s m a i s gerais q u e c a r a c t e r i z a m o c a m p o d a
Teoria Crítica — o da orientação para a e m a n c i p a ç ã o d a d o m i n a ç ã o e o d o
2
i o m p o r t a m e n t o c r í t i c o d i a n t e d o e x i s t e n t e - , H o r k h e i m e r c o n s i d e r o u q u e as
i elações e n t r e t e o r i a e p r á t i c a t e r i a m d e s e r e n t e n d i d a s , a p a r t i r d a q u e l e m o m e n t o ,
u i n i o r e l a ç õ e s t e n s a s e s e m p r e difíceis, a s e r e m p e n s a d a s c a s o a c a s o , m e s m o t e n d o
p o r o b j e t i v o p e n s a r esses d o i s m o m e n t o s s e m p r e c o n j u n t a m e n t e . C o m esse n o v o
posicionamento teórico, inaugurou toda u m a nova vertente n o interior mais vasto
da T e o r i a C r í t i c a . U m a v e r t e n t e q u e a i n d a h o j e é c h a m a d a e m a l g u n s c í r c u l o s p e l o
n o m e d e " E s c o l a d e Frankfurt", m a s q u e v a i m u i t o a l é m d e s s a e t i q u e t a r e d u t o r a .

Os escritos da década de 1930

H á u m a g r a n d e d i f e r e n ç a e n t r e a s i t u a ç ã o d a p r o d u ç ã o científica n o t e m p o
de M a r x e a q u e l a q u e foi t e o r i z a d a p o r H o r k h e i m e r e m 1937, n o já m e n c i o n a d o
a r t i g o " T e o r i a t r a d i c i o n a l e Teoria Crítica". N ã o h a v i a n e m d e l o n g e , n o t e m p o d e
M a r x , o n ú m e r o d e d i s c i p l i n a s científicas e d e e s p e c i a l i d a d e s q u e se d e s e n v o l v e r a m
p o s t e r i o r m e n t e . Esse é u m d o s e l e m e n t o s n o v o s c o m q u e H o r k h e i m e r t e m d e l i d a r
q u a n d o c o m p a r a d o a o q u a d r o teórico formulado p o r Marx.

2. S o b r e isso, v e r a i n t r o d u ç ã o deste ensaio e t a m b é m N o b r e ( 2 0 0 4 ) .

C u r s o livre d e Teoria Crítica 37

 Horkheimei pretende encontri sentido positivo para o movimento em
d i r e ç ã o à c r e s c e u i e espet iali/.açâo, d e m o d o .1 orienta i> sentido critico, Para
t a n t o , l a n ç o u as b a s e s d o já m e n c i o n a d o materialismo interdisciplinar, e m q u e
pesquisadores q u e t r a b a l h a m e m diferentes áreas d o c o n h e c i m e n t o t ê m c o m o
h o r i z o n t e c o m u m a teoria d e M a r x . Economistas, cientistas sociais, psicólogos,
t e ó r i c o s d o d i r e i t o e d a p o l í t i c a , filósofos e c r í t i c o s d e a r t e c o l a b o r a m p a r a , e m c a d a
disciplina particular, p r o d u z i r u m a i m a g e m d a s o c i e d a d e capitalista e m s e u c o n j u n t o ,
simultaneamente organizada e m t o r n o da valorização d o capital e dotada de
potenciais de s u p e r a ç ã o dessa m e s m a d o m i n a ç ã o d o capital.

Isso significa t a m b é m q u e o m o d e l o crítico e l a b o r a d o p o r H o r k h e i m e r n a

d é c a d a d e 1930 a t r i b u í a à e c o n o m i a p o l í t i c a u m a p o s i ç ã o c e n t r a l n o a r r a n j o
disciplinar, tal c o m o já h a v i a sido feito a n t e s p o r M a r x . Isso n ã o i m p e d i u , e n t r e t a n t o ,
q u e m u i t o s n o v o s t e m a s e m e s m o m u i t a s n o v a s disciplinas fossem i n c o r p o r a d o s a o
t r a b a l h o coletivo. O caso m a i s i m p o r t a n t e a q u i p a r e c e ser o d a psicanálise, c r i a d a p o r
S i g m u n d F r e u d ( 1 8 5 6 - 1 9 3 9 ) n a v i r a d a d o sécu l o . A psicanálise e n t ã o n a s c e n t e e
b a s t a n t e d e s c o n h e c i d a fora d o s círculos intelectuais foi vista p o r H o r k h e i m e r c o m o
u m c o m p l e m e n t o essencial à teoria d e M a r x . D u r a n t e a d é c a d a d e 1930, foi estreita e
i n t e n s a a c o l a b o r a ç ã o e n t r e H o r k h e i m e r e o p s i c ó l o g o Erich F r o m m ( 1 9 0 0 - 1 9 8 0 ) ,
a u t o r q u e será e x a m i n a d o neste livro n o c a p í t u l o s o b r e psicanálise e Teoria Crítica.

A e c o n o m i a p o l í t i c a f u n c i o n a v a c o m o p o n t o d e fuga d a s d i v e r s a s análises e
contribuições n o arranjo interdisciplinar do modelo crítico p r o p o s t o por
H o r k h e i m e r e m seus escritos d o s a n o s 1930, m a s isso n ã o d e v e a p a g a r a i m p o r t â n c i a
d a s l i n h a s d e i n v e s t i g a ç ã o q u e p a r a ali c o n v e r g i a m . Isso n o s p e r m i t i r á ver, p o r
e x e m p l o , q u e o n o v o m o d e l o c r í t i c o a p r e s e n t a d o n a d é c a d a d e 1940 a p r e s e n t a
r u p t u r a s i m p o r t a n t e s em relação ao m o d e l o anterior, m a s t a m b é m guarda
c o n t i n u i d a d e s significativas. Se, n o m o d e l o c r í t i c o q u e H o r k h e i m e r a p r e s e n t o u n o
livro q u e escreveu c o m A d o r n o , Dialética do esclarecimento ( p u b l i c a d o pela p r i m e i r a
vez e m e d i ç ã o l i m i t a d a e m 1944 e, p o s t e r i o r m e n t e , e m e d i ç ã o c o m e r c i a l e m 1947)
( H o r k h e i m e r e A d o r n o 1 9 8 5 ) , a e c o n o m i a política p e r d e a p o s i ç ã o c e n t r a l q u e
antes detinha, e l e m e n t o s antes auxiliares p a s s a m ao p r i m e i r o p l a n o . É o caso, p o r
e x e m p l o , d a p s i c a n á l i s e , a p r o p r i a d a p o r eles n a f o r m a d e u m a t e o r i a social.

N o c o n t e x t o d o s e s c r i t o s d a d é c a d a d e 1930, esses e l e m e n t o s p o d e m ser

encontrados, p o r exemplo, n o ensaio intitulado "Egoísmo e m o v i m e n t o de
3
libertação. Sobre a antropologia da época burguesa", de 1936. Nesse texto,

3. N ã o h á , i n f e l i z m e n t e , t r a d u ç ã o desse e n s a i o e m p o r t u g u ê s . Aliás, s ã o b a s t a n t e escassas as

t r a d u ç õ e s d e H o r k h e i m e r para o p o r t u g u ê s . A l é m d o s textos m e n c i o n a d o s neste c a p í t u l o , h á

38 Papirus Editora
1 1 . <i I In I H M i p r o c u r a inosl rar c o m o o e g o í s m o c a r a c l e r í s l i c o cia é p o c a b u r g u e s a se
|l ii a b e r t a m e n t e d e s t r u t i v o , p o i s se e n c o n t r a a g o r a d e s p r o v i d o d e s u a s f o r m a s
llili i iiti e s d e l e g i t i m a ç ã o , c o m o a religião cristã o u m e s m o o E s t a d o - N a ç ã o , p a r a s e
> • i d e m a n e i r a c r u a e d i r e t a . Se essa c r u e z a p e r m i t e q u e s u a n a t u r e z a d e s t r u t i v a
• revele p o r i n t e i r o , é t a m b é m c e r t o q u e o s m e c a n i s m o s d e r e p r e s s ã o e d e r e c a l q u e
.pi. " i .ii.icterizam c o n t i n u a m a operar, b l o q u e a n d o a p o s s i b i l i d a d e de q u e os
I m p u l s o s sejam e l a b o r a d o s e m u m s e n t i d o e m a n c i p a t ó r i o .

I ssa referência a o e n s a i o s o b r e o e g o í s m o serve t a m b é m p a r a i l u s t r a r a e n o r m e

UMnih d e t e m a s e d e p e r s p e c t i v a s t e ó r i c a s m o b i l i z a d a s p o r H o r k h e i m e r e m s e u s
• li i i i os d a d é c a d a d e 1930, e m q u e se d i s c u t e m a p o s i ç ã o d a p s i c o l o g i a e d a h i s t ó r i a ,
0 problema da moral e da verdade, a antropologia filosófica, a questão judaica na
1 111 o p a , a c u l t u r a d e m a s s a s e m u i t o m a i s . E essa referência é e s s e n c i a l a q u i t a m b é m ,
M r a justificar a r a z ã o p e l a q u a l m e o c u p a r e i , nessa p r i m e i r a p a r t e , a p e n a s d o e n s a i o
I. oi ia t r a d i c i o n a l e T e o r i a Crítica". N ã o se t r a t a d e r e d u z i r t o d a essa v a s t a " p r o d u ç ã o
11 i nas a esse t e x t o , m a s d e c o n s i d e r a r q u e esse é o t e x t o e m q u e s e e n c o n t r a m a i s
• I i i . i i n e n t e f o r m u l a d o o m o d e l o crítico q u e caracteriza d e m a n e i r a mais geral a
produção d e s s e p e r í o d o .

São t r ê s o s e l e m e n t o s f u n d a m e n t a i s q u e c a r a c t e r i z a m o d i a g n ó s t i c o d o t e m p o
presente d e H o r k h e i m e r e m "Teoria t r a d i c i o n a l e Teoria Crítica", t o d o s eles d e r i v a d o s
d i i e i a o u i n d i r e t a m e n t e d e t r a b a l h o s r e a l i z a d o s n o I n s t i t u t o d e P e s q u i s a Social n a
lécada d e 1 9 3 0 e e m g r a n d e m e d i d a d i v e r g e n t e s r e l a t i v a m e n t e a o d i a g n ó s t i c o
a p r e s e n t a d o o r i g i n a l m e n t e p o r M a r x n o século XIX.

O p r i m e i r o e l e m e n t o i m p o r t a n t e t e m sua origem nas análises econômicas

d e Friedrich Pollock (1894-1970), a u t o r q u e t a m b é m será e x a m i n a d o neste livro.
S e g u n d o Pollock, as t e n d ê n c i a s a u t o d e s t r u t i v a s d o c a p i t a l i s m o d e s c o b e r t a s p o r M a r x
n ã o se e n c o n t r a v a m a c i r r a d a s , a p e s a r d a R e v o l u ç ã o R u s s a d e 1 9 1 7 e d a c r i s e
• o n ô m i c a s e m p r e c e d e n t e s o c o r r i d a e m 1929. O c a p i t a l i s m o p a s s o u d e u m a fase
c o n c o r r e n c i a l p a r a u m a fase m o n o p o l i s t a , e m q u e u m a alta e c r e s c e n t e c o n c e n t r a ç ã o

a p e n a s a t r a d u ç ã o d e a l g u n s d o s ensaios i m p o r t a n t e s d a d é c a d a d e 1930, q u e p o d e m ser

e n c o n t r a d o s n o v o l u m e Teoria Crítica I (São Paulo: Perspectiva, 1990) e o v o l u m e Origens
da filosofia burguesa da história, p u b l i c a d o pela Editorial Presença, d e Portugal. T a n t o q u a n t o
eu saiba, o ú n i c o t r a b a l h o a analisar d e t a l h a d a m e n t e essa idéia d e u m a " a n t r o p o l o g i a d a época
b u r g u e s a " é o d e J o h n A b r o m e i t , The dialectic of bourgeois society: An intellectual biography
of the young Max Horkheimer, 1895-1937, tese d e d o u t o r a m e n t o , d e f e n d i d a n a Universidade
da C a l i f ó r n i a , e m Berkeley, e m 2004, n a q u a l m e a p o i e i p a r a d e l i n e a r a h i p ó t e s e d e leitura
aqui apresentada.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 39

do capital em uns pou< osconglomei ados econômicos acabou poi exlgli intei vençôes
p r o f u n d a s t i o l i s i a d o na e c o n o m i a , com o objetivo de estabilizai a s relações de
m e r c a d o . C o m isso, t o r n o u - s e n e c e s s á r i o r e p e n s a r as relações e n t r e l i s t a d o e capital,
já que, s e g u n d o o p r o g n ó s t i c o original de M a r x , a possibilidade d e u m a intervenção
p e r m a n e n t e d o E s t a d o p a r a estabilizar e o r g a n i z a r o m e r c a d o levaria a u m c o l a p s o
d a p r ó p r i a lógica d e v a l o r i z a ç ã o d o c a p i t a l , e isso n ã o a c o n t e c e u m e s m o d e p o i s d a
g r a n d e crise d e 1 9 2 9 .

S e g u n d o as análises d e Pollock, é possível o b s e r v a r v á r i o s s i n t o m a s d e q u e o

s i s t e m a d e m e r c a d o v i g e n t e até e n t ã o estava e m declínio. E m p r i m e i r o lugar, o b s e r v a -
se u m a d e c a d ê n c i a d o p r ó p r i o l i b e r a l i s m o , e m q u e o s u r g i m e n t o d e m o n o p ó l i o s
p r i v a d o s e a i n t e r f e r ê n c i a g o v e r n a m e n t a l e s t a v a m g r a d u a l m e n t e d e s t r u i n d o as
e m p r e s a s de m é d i o p o r t e e o livre c o m é r c i o , antes bases d o gigantesco
d e s e n v o l v i m e n t o d a s forças p r o d u t i v a s d o h o m e m n o s é c u l o X I X .

E m s e g u n d o lugar, P o l l o c k e n u m e r a u m a série d e p r o c e s s o s e m c u r s o q u e
i m p e a e m o funcionamento de u m a economia de mercado n o sentido e m q u e
M a r x a i n d a a e n t e n d e u . Esses p r o c e s s o s são, b a s i c a m e n t e , o s s e g u i n t e s : c o n c e n t r a ç ã o
d a a t i v i d a d e e c o n ô m i c a e m e m p r e s a s g i g a n t e s c a s ( c o m as c o n s e q ü ê n c i a s d e p r e ç o s
rígidos, autofinanciamento e concentração sempre crescente); controle
governamental d o sistema de crédito e d o comércio exterior; posições de quase
m o n o p ó l i o p o r p a r t e d o s s i n d i c a t o s e c o n f e d e r a ç õ e s ( c o m a c o n s e q ü e n t e rigidez d o
m e r c a d o d e t r a b a l h o ) ; d e s e m p r e g o e m larga escala d e capital e d e t r a b a l h o ; e e n o r m e s
d e s p e s a s g o v e r n a m e n t a i s c o m a assistência a o s d e s e m p r e g a d o s .

P o r fim, P o l l o c k m e n c i o n a t a m b é m o s d i s t ú r b i o s d o s m e c a n i s m o s d e
m e r c a d o c a u s a d o s p e l o s m o n o p ó l i o s (e q u e f o r a m a c e n t u a d o s p e l a r e v o l u ç ã o
técnica na agricultura c o n t e m p o r â n e a ) , assim c o m o u m d e s l o c a m e n t o destrutivo
da p r o d u ç ã o o c o r r i d o desde a Primeira Guerra, q u e b l o q u e o u os canais de
exportação q u e funcionavam c o m o i n s t r u m e n t o s de superação das dificuldades
de m e r c a d o n o século XIX.

O segundo elemento importante d o diagnóstico de H o r k h e i m e r p r o v é m dos

e s t u d o s e m p í r i c o s s o b r e a classe t r a b a l h a d o r a a l e m ã r e a l i z a d o s n a p r i m e i r a m e t a d e
da d é c a d a d e 1 9 3 0 , e n t r e eles o e s t u d o d i r i g i d o p o r E r i c h F r o m m , i n t i t u l a d o
1
Autoridade e família! B a s e a d o e m e s t u d o s c o m o esse e e m o u t r a s análises d o p r ó p r i o

I I 'arte desse e s t u d o foi p u b l i c a d a n a Zeitschriftfür Sozialforschung, revista oficial d o I n s t i t u t o

d e P e s q u i s a Social, n o a n o d e 1936. A t r a d u ç ã o desse t e x t o se e n c o n t r a e m H o r k h e i m e r
1990, p p . 173-236.

111 l . «i ni 1 1 . I ilitoin
i illi I . I loi k h e i n i c i i u n i luiii q u e t i n h a o c o r r i d o u m a i m p o r t a n t e d i f e r e n c i a ç ã o
I H i il I H . i n i r i ioi d o p r ó p r i o p r o l e t a r i a d o e q u e p o d e r o s o s m e c a n i s m o s psicossociais
i sido i l i a d o s e e s t a v a m s e n d o u t i l i z a d o s e m favor d a d o m i n a ç ã o c a p i t a l i s t a
ii s e n t i d o i n t e i r a m e n t e n o v o .

f v.a diferenciação seria, e m p r i m e i r o lugar, e c o n ô m i c a . Ao c o n t r á r i o d a p r e v i s ã o

i e m p o b r e c i m e n t o crescente d o proletariado, observou-se o s u r g i m e n t o de
i iiislocracia operária" e u m a m e l h o r i a das condições de vida de p a r t e d o
ipi i 11 iado. A l é m disso, o p r ó p r i o p e s o d a classe t r a b a l h a d o r a n o p r o c e s s o e c o n ô m i c o
• iltcrou e m r a z ã o dessa d i f e r e n c i a ç ã o social, n ã o s e n d o m a i s possível identificar
iiiiiplesmente u m grande pólo de pobreza e u m outro p e q u e n o pólo de riqueza na
il.ule, m a s d i f e r e n t e s níveis e c a m a d a s sociais. Essa d i f e r e n c i a ç ã o dificultava
iibii m a n e i r a a o r g a n i z a ç ã o de u m a ação u n i t á r i a c o n t r a o p o d e r d o capital.

O terceiro e l e m e n t o i m p o r t a n t e d o diagnóstico de H o r k h e i m e r , t a m b é m
Objeto d e p e s q u i s a d o i n s t i t u t o , é r e p r e s e n t a d o p e l a a s c e n s ã o d o n a z i s m o e d o
i i li i s m o . Esse e l e m e n t o m o s t r a n ã o s ó q u e a c a p a c i d a d e d e r e s i s t ê n c i a d a classe
i i a b a l h a d o r a à d o m i n a ç ã o capitalista fora s u p e r e s t i m a d a , m a s q u e a sua
^ o r g a n i z a ç ã o s o b a b r u t a l r e p r e s s ã o n a z i s t a era m u i t o i m p r o v á v e l . É p r e c i s o l e m b r a r
t a m b é m q u e a ascensão do n a z i s m o e d o fascismo veio a c o m p a n h a d a de u m
I 11 a o r d i n á r i o d e s e n v o l v i m e n t o d o s m e i o s de c o m u n i c a ç ã o de m a s s a , d a p r o p a g a n d a
I da i n d ú s t r i a d o e n t r e t e n i m e n t o , o q u e a u m e n t o u e m m u i t o as p o s s i b i l i d a d e s d e
i o i i l r o l e social p e l o s p o d e r e s e s t a b e l e c i d o s .

A o e x a m i n a r esses três e l e m e n t o s e m c o n j u n t o , é possível e n t e n d e r p o r q u e

I l o r k h e i m e r c o n s i d e r a v a q u e os p o t e n c i a i s de e m a n c i p a ç ã o d a d o m i n a ç ã o capitalista
encontravam-se bloqueados naquele m o m e n t o : estabilização d j s elementos
autodestrutivos d o capitalismo, integração das massas ao sistema e repressão a t o d o
m o v i m e n t o d e c o n t e s t a ç ã o . C o m isso, era a p r ó p r i a ação t r a n s f o r m a d o r a , a p r ó p r i a
II rática q u e se e n c o n t r a v a b l o q u e a d a , n ã o r e s t a n d o ao exercício crítico s e n ã o o â m b i t o
da teoria. Esse t a m b é m é u m d o s s e n t i d o s c o n t i d o s n a e x p r e s s ã o "Teoria Crítica".

Esse d i a g n ó s t i c o d e H o r k h e i m e r d o b l o q u e i o d a p r á t i c a c o n t i n h a v á r i o s
e l e m e n t o s e s t r u t u r a i s n o v o s , divergentes relativamente ao q u a d r o teórico
estabelecido p o r M a r x , c o m o a estabilização dos elementos autodestrutivos d o
c a p i t a l i s m o e m s u a fase m o n o p o l i s t a e o s u r g i m e n t o d e n o v o s m e c a n i s m o s d e
i n t e g r a ç ã o d a s m a s s a s a o s i s t e m a . E m 1 9 3 7 , esses e l e m e n t o s e s t r u t u r a i s a p o n t a v a m
p a r a a n e c e s s i d a d e d e u m a r e v i s ã o m a i s p r o f u n d a d e a l g u n s d o s pilares d a t e o r i a d e
M a r x , s e m , e n t r e t a n t o , r e a l i z á - l a . Esse c o n f r o n t o m a i s i n t e n s o c o m a t e o r i a d e
M a r x seria realizado p o s t e r i o r m e n t e , t a n t o pelo p r ó p r i o H o r k h e i m e r c o m o p o r
o u t r o s p e n s a d o r e s da Teoria Crítica.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 41

 Esse diagnóstico do tempo foi fundamenta] para que i [orkheimei pudesse
estabelecer o lugar da teoria n o p r o c e s s o m a i s geral de e m a n c i p a ç ã o , vale dizer> o novo
lugar a ser o c u p a d o pela t e o r i a n o m o d e l o crítico q u e f o r m u l o u . li a p r i n c i p a l f o r n i . i
pela q u a l ele realizou esse m o v i m e n t o foi a d e m a r c a ç ã o p r ó p r i a d o c a m p o d a Teoria
Crítica, vale dizer, sua distinção e m relação àquilo q u e ele c h a m o u d e teoria tradicional.

H o r k h e i m e r n ã o p r e t e n d e u se d i s t a n c i a r s e m m a i s d o p r o c e s s o d e
e s p e c i a l i z a ç ã o d a s d i v e r s a s áreas d o c o n h e c i m e n t o , p r o c u r o u d a r a ele u m s e n t i d o
c r í t i c o . Isso foi p o s s í v e l , p r i m e i r a m e n t e , p o r q u e a c r e s c e n t e e s p e c i a l i z a ç ã o d o
c o n h e c i m e n t o foi c o m p r e e n d i d a p o r H o r k h e i m e r e m s e u s c o n d i c i o n a m e n t o s
h i s t ó r i c o s e e m s e u s e n t i d o social. A i n d a a s s i m , é n e c e s s á r i o t e r c l a r o q u e , a o
f r a g m e n t a r c a d a v e z m a i s o o b j e t o d e e s t u d o (a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a ) e m m ú l t i p l a s
p e r s p e c t i v a s , a especialização t o r n a c a d a vez m a i s difícil a c o m p r e e n s ã o d a s o c i e d a d e
e m s e u c o n j u n t o , c o m s u a d i v i s ã o e m classes e s u a o r g a n i z a ç ã o e m t o r n o d a
v a l o r i z a ç ã o d o c a p i t a l , se s u a p r o d u ç ã o científica e n c e r r a r - s e c a d a v e z m a i s n a
j u s t i f i c a ç ã o d a o r d e m e x i s t e n t e . É isso j u s t a m e n t e o q u e faz a t e o r i a t r a d i c i o n a l .

O c o n h e c i m e n t o c r í t i c o se o p õ e a t o d o c o n h e c i m e n t o q u e n ã o se o r i e n t e
p a r a a e m a n c i p a ç ã o , m a s n ã o se t r a t a s i m p l e s m e n t e d e rejeitar o c o n h e c i m e n t o q u e
n ã o dispõe d a perspectiva da emancipação e m sua p r o d u ç ã o ; ao contrário, trata-se,
p a r a a p e r s p e c t i v a crítica, d e m o s t r a r p r i m e i r a m e n t e p o r q u e esse c o n h e c i m e n t o é
parcial, p a r a , e n t ã o , b u s c a r i n t e g r á - l o , e m n o v a f o r m a , a o c o n j u n t o d o c o n h e c i m e n t o
crítico. E, c o m o e s t a m p a d o n o p r ó p r i o t í t u l o d o artigo, esse c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o
5
e m condições não-críticas é d e n o m i n a d o p o r H o r k h e i m e r "teoria tradicional".

A c o n c e p ç ã o m o d e r n a d e c i ê n c i a e d e t e o r i a científica e s t a b e l e c e u - s e c o m o
u m c o n j u n t o d e p r i n c í p i o s a b s t r a t o s c o m b a s e n o s q u a i s se t o r n a possível f o r m u l a r
leis q u e e x p l i c a m a c o n e x ã o n e c e s s á r i a d o s f e n ô m e n o s u n i c a m e n t e s e g u n d o relações
d e c a u s a e e f e i t o . O c i e n t i s t a p r o c u r a a p l i c a r o s p r i n c í p i o s e leis a f e n ô m e n o s
p a r t i c u l a r e s , f o r m u l a n d o h i p ó t e s e s q u e se c o n s t i t u e m e m p r e v i s õ e s s o b r e o q u e
t e m n e c e s s a r i a m e n t e de ocorrer dadas d e t e r m i n a d a s condições iniciais. A
o c o r r ê n c i a d o f e n ô m e n o p r e v i s t o p e l a h i p ó t e s e significa a c o n f i r m a ç ã o d a p r e v i s ã o
e, nesse s e n t i d o , a c o n f i r m a ç ã o d a p r ó p r i a t e o r i a . C a s o n ã o o c o r r a o p r e v i s t o , p a s s a
a s e r n e c e s s á r i o r e v e r s e j a m as c o n d i ç õ e s d o e x p e r i m e n t o d e verificação, seja a l g u m
aspecto da própria teoria.

'>. K m b o r a n ã o seja possível d e s e n v o l v e r esse p o n t o a q u i , é decisivo i n d i c a r q u e a i n s p i r a ç ã o

f u n d a m e n t a l d e H o r k h e i m e r a o estabelecer essa distinção foram as análises marxistas presentes
n.i o b r a História e consciência de classe, d e G e o r g L u k á c s ( 1 8 8 5 - 1 9 7 1 ) , p u b l i c a d a e m 1 9 2 3 .
S o b r e isso, v e r N o b r e ( 2 0 0 1 ) .

•li' I\i|>iuis Editora

 I n l e n d i d a a s s i m , .1 teoria científica c o l o c a - s e c o m o t a r e i a u n i c a m e n t e o
Idlielei i m e n l o d e v í n c u l o s n e c e s s á r i o s e n t r e o s f e n ô m e n o s c o m b a s e e m leis o u
I' 1 >!•»•. m a i s gerais. C o m isso, o c i e n t i s t a é a q u e l e q u e o b s e r v a o s f e n ô m e n o s e
1 llti U n e c o n e x õ e s o b j e t i v a s e n t r e e l e s , q u e r d i z e r , c o n e x õ e s q u e s e d ã o
I111I1 1 lei 1 1 e m e n t e d e q u a l q u e r i n t e r v e n ç ã o d e sua p a r t e . P a r a t a n t o , t e m d e a b s t r a i r
1
1 uai i d a d e s c o n c r e t a s d o s o b j e t o s e d o s e n t i d o q u e p o s s a m t e r n o c o n t e x t o d a s
• 1 • sociais, p a r a c o n s i d e r á - l o s u n i c a m e n t e e l e m e n t o s d e u m a c a d e i a c a u s a i
.ai ia. lissas s ã o as c a r a c t e r í s t i c a s m a i s gerais d o q u e H o r k h e i m e r d e n o m i n a
/ V i u tradicional de teoria., a t e o r i a t r a d i c i o n a l .

Para q u e esse m o d e l o d e c i ê n c i a t e n h a e f e t i v i d a d e , e n t r e t a n t o , é p r e c i s o
1 I p. un 1er a o p r o b l e m a d e c o m o seria possível m e r a m e n t e o b s e r v a r o s f e n ô m e n o s
• • .1 alielecer c o n e x õ e s c a u s a i s o b j e t i v a s e n t r e eles, q u a n d o o o b j e t o e m q u e s t ã o s ã o
as p r ó p r i a s r e l a ç õ e s sociais, vale dizer, u m p r o d u t o d a ação h u m a n a . A l é m disso, o
Bui significa n e s s e c o n t e x t o u m " f e n ô m e n o " social?

l'ara e n f r e n t a r esses p r o b l e m a s , o m o d e l o t r a d i c i o n a l d e t e o r i a s e p a r a o
1 u n i ista social d o a g e n t e social q u e ele t a m b é m é, o u seja, s e p a r a o o b s e r v a d o r d e
relações s o c i a i s d o m e m b r o d e u m a s o c i e d a d e c o n c r e t a . S e p a r a r i g i d a m e n t e ,
Iuh t a n t o , a observação d a s o c i e d a d e d e u m a avaliação d a o b s e r v a ç ã o feita, o u seja,
lepara, d e u m l a d o , a d e s c r i ç ã o d e c o m o f u n c i o n a a s o c i e d a d e e, d e o u t r o , o s v a l o r e s
p r ó p r i o s a c a d a c i e n t i s t a c o m o a g e n t e social.

Se, n o caso d o e s t u d o d a s o c i e d a d e h u m a n a , o sujeito ( o cientista) é t a m b é m

• m u ] t a n e a m e n t e o o b j e t o d a investigação ( c o m o agente social), o u seja, se a s o c i e d a d e
e I esultado d a a ç ã o h u m a n a d e q u e participa aquele q u e p r e t e n d e e n t e n d ê - l a , é preciso
separar essas d u a s facetas d o m e s m o i n d i v í d u o , d e m o d o q u e n ã o se c o n f u n d a m c u
m i s t u r e m . P a r a isso, é necessário estabelecer u m método científico q u e i m p e ç a q u e o
cientista social, c o n s c i e n t e 0 1 1 i n c o n s c i e n t e m e n t e , dirija a investigação d o s f e n ô m e n o s
sociais p a r a u m a m e r a c o n f i r m a ç ã o d e seus p r ó p r i o s valores.

Esse m é t o d o científico t e m a p r e t e n s ã o d e s e p a r a r r i g i d a m e n t e o q u e é d o
d o m í n i o d o conhecimento d a q u i l o q u e p e r t e n c e a o d o m í n i o d a ação. 1 )cssa perspectiva
I radicional d e teoria, n ã o cabe a o cientista fazer q u a l q u e r valoração d o objeto e s t u d a d o ,
m a s t ã o - s o m e n t e a s u a classificação e e x p l i c a ç ã o s e g u n d o o s p a r â m e t r o s n e u t r o s d o
m é t o d o . N a c o n c e p ç ã o t r a d i c i o n a l , p o r t a n t o , a teoria n ã o p o d e e m n e n h u m caso t e r
por objetivo a ação, n ã o p o d e ter u m objetivo prático n o m u n d o , m a s apenas
a p r e s e n t a r a c o n e x ã o d o s f e n ô m e n o s sociais tais c o m o se a p r e s e n t a m a u m o b s e r v a d o r
isolado d a p r á t i c a . D o c o n t r á r i o , o o b s e r v a d o r deixa d e ser u m cientista e passa a ser
u m a g e n t e social c o m o q u a l q u e r o u t r o , i m b u í d o d e u m a d e t e r m i n a d a c o n c e p ç ã o d e
m u n d o , d e u m d e t e r m i n a d o c o n j u n t o d e v a l o r e s e m n o m e d o s q u a i s age.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 43

 Segundo Horkheimer, a perspectiva i i . n l u i u n . i l de t e o r i a , pretendendo
s i m p l e s m e n t e e x p l i c a r o funcionamento da sociedade, termina p o r adaptar o
p e n s a m e n t o à realidade. E m n o m e d e u m a p r e t e n s a neutralidade tia descrição, a teoria
t r a d i c i o n a l resigna-se à f o r m a histórica p r e s e n t e d a d o m i n a ç ã o . E m u m a s o c i e d a d e
d i v i d i d a e m classes, a c o n c e p ç ã o t r a d i c i o n a l acaba p o r justificar essa divisão c o m o
necessária. O p r o b l e m a está, diz H o r k h e i m e r , e m q u e o c o n h e c i m e n t o d a realidade
social é u m m o m e n t o d a ação social, assim c o m o esta é u m m o m e n t o d a q u e l e .

N ã o se t r a t a d e n e g a r q u e " c o n h e c e r " e " a g i r " s e j a m m o m e n t o s d i s t i n t o s , m a s

d e r e c o n h e c e r q u e t ê m d e ser c o n s i d e r a d o s c o n j u n t a m e n t e . Se a r e a l i d a d e social é
0 r e s u l t a d o d a a ç ã o h u m a n a , esta se d á , p o r s u a vez, n o c o n t e x t o d e e s t r u t u r a s
h i s t ó r i c a s d e t e r m i n a d a s , d e u m a d a d a f o r m a d e o r g a n i z a ç ã o social. D e s s e m o d o , o
p r i m e i r o p a s s o é o d e i n v e s t i g a r essas e s t r u t u r a s , d e m a n e i r a a d e s c o b r i r q u a i s s ã o as
c o n d i ç õ e s h i s t ó r i c a s d e t e r m i n a d a s e m q u e se d á a a ç ã o .

A o fixar d e m a n e i r a rígida a s e p a r a ç ã o e n t r e " c o n h e c e r " e "agir", e n t r e " t e o r i a "

e "prática", a t e o r i a t r a d i c i o n a l e x p u l s a d o s e u c a m p o d e reflexão as c o n d i c i o n a n t e s
h i s t ó r i c a s d o s e u p r ó p r i o m é t o d o . Se t o d o c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o é, e n t r e t a n t o ,
h i s t o r i c a m e n t e d e t e r m i n a d o ( m u t á v e l n o t e m p o , p o r t a n t o ) , n ã o é possível i g n o r a r
essas c o n d i c i o n a n t e s , s e n ã o a o p r e ç o d e p e r m a n e c e r n a s u p e r f í c i e d o s f e n ô m e n o s ,
s e m ser c a p a z d e c o n h e c e r p o r i n t e i r o s u a s c o n e x õ e s n a r e a l i d a d e social. E m o u t r a s
palavras, na concepção tradicional de teoria, o m é t o d o é t r a n s f o r m a d o e m u m a
i n s t â n c i a a t e m p o r a l , d e m a n e i r a a t e n t a r e l i m i n a r o c e r n e h i s t ó r i c o q u e l h e é,
entretanto, constitutivo.

C o n t r a isso, i n s u r g e - s e o comportamento crítico, q u e p r e t e n d e c o n h e c e r s e m

a b d i c a r d a reflexão s o b r e o c a r á t e r h i s t ó r i c o d o c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o . S e n d o o
c a p i t a l i s m o u m a f o r m a social histórica q u e t e m c o m o c e n t r o o r g a n i z a d o r o m e r c a d o ,
t r a t a - s e a n t e s d e m a i s n a d a d e r e c o n h e c e r q u e a p r o d u ç ã o d e m e r c a d o r i a s é o foco a
p a r t i r d o q u a l se e s t r u t u r a a s o c i e d a d e . A o r g a n i z a ç ã o d a s o c i e d a d e e m f u n ç ã o d a
p r o d u ç ã o d e m e r c a d o r i a s e d o l u c r o e s t r u t u r a a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a e m classes.
S e g u n d o H o r k h e i m e r , qualquer concepção de ciência q u e n ã o tenha como
p r e s s u p o s t o a d i v i s ã o d a s o c i e d a d e e m classes e q u e n ã o seja c a p a z d e r e c o n h e c e r o
exercício d a ciência c o m o u m d o s m o m e n t o s dessa sociedade p r o d u t o r a de
m e r c a d o r i a s e s t a r á s e n d o , c o m o c o n c e p ç ã o d e ciência, p a r c i a l .

O c o m p o r t a m e n t o crítico p r e t e n d e m o s t r a r d u a s coisas s i m u l t a n e a m e n t e .
P o r u m l a d o , m o s t r a q u e a p r o d u ç ã o científica d e e x t r a ç ã o t r a d i c i o n a l é parcial,
porque, a o i g n o r a r q u e t o d a p r o d u ç ã o científica t e m u m a p o s i ç ã o d e t e r m i n a d a n o
1 u i u ionamento d a s o c i e d a d e , a c a b a p o r c o n s t r u i r u m a i m a g e m d e s o c i e d a d e q u e fica

•M I '.ipiiu:; I ilitora
 •ih rl «l.i a p a r e m ia, n a o c o n s e g u i n d o atingir, dessa m a n e i r a , os o b j e t i v o s q u e ela
ii |i 11 ., . u l i H o u UIIIIII teoria. Por o u t r o l a d o , essa a p a r ê n c i a à q u a l se l i m i t a a t e o r i a
n HIII iiin.il e t a m b é m a q u e l a p r o d u z i d a pela p r ó p r i a lógica i l u s ó r i a d o c a p i t a l , q u e
•fOllii lc l i b e r d a d e e i g u a l d a d e q u e j a m a i s p o d e r ã o ser r e a l i z a d a s s o b o c a p i t a l i s m o .
• sentido, a parcialidade própria da concepção tradicional de teoria é t a m b é m
• l.i expressa a p a r c i a l i d a d e p r ó p r i a d e u m a s o c i e d a d e d i v i d i d a e m classes.

Portanto, c a b e à Teoria Crítica e l i m i n a r essa p a r c i a l i d a d e d a t e o r i a t r a d i c i o n a l ,

ii i l i m i n a r - l h e a p a r c i a l i d a d e n ã o significa afastar o u n e g a r a t e o r i a t r a d i c i o n a l .
i i i diz I l o r k h e i m e r , t r a t a - s e d e d a r a ela a c o n s c i ê n c i a c o n c r e t a d e s u a l i m i t a ç ã o ,
Bui i dizer, é p r e c i s o c o n s i d e r a r os r e s u l t a d o s d a t e o r i a t r a d i c i o n a l n o c o n t e x t o m a i s
iiinplii ila s o c i e d a d e p r o d u t o r a d e m e r c a d o r i a s , é p r e c i s o e n t e n d ê - l o s e m v i s t a d e
ii.i i'1'sição s o c i a l específica. Só a s s i m a t e o r i a t r a d i c i o n a l p o d e s u p e r a r s u a f u n ç ã o
dl l e g i t i m a ç ã o d a d o m i n a ç ã o , a s s u m i d a d e s d e o m o m e n t o e m q u e p ô s c o m o t a r e f a
i l a m i n a r os f e n ô m e n o s sociais de m a n e i r a " o b j e t i v a " e " n e u t r a " . Se é a s s i m , a T e o r i a
i i ii ii ,i n ã o se c o m p o r t a c r i t i c a m e n t e a p e n a s e m relação a o c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o
i i i i i o n d i ç õ e s c a p i t a l i s t a s , m a s i g u a l m e n t e e m r e l a ç ã o à p r ó p r i a r e a l i d a d e q u e esse
i u i i l i e c i m e n t o p r e t e n d e u a p r e e n d e r . D i t o d e o u t r o m o d o , a a t i t u d e c r í t i c a n ã o se
volta a p e n a s p a r a o c o n h e c i m e n t o , m a s p a r a a p r ó p r i a r e a l i d a d e d a s c o n d i ç õ e s
i>i lais c a p i t a l i s t a s , e isso p o r q u e o c o m p o r t a m e n t o c r í t i c o t e m s u a f o n t e n a
Orientação para a emancipação relativamente à d o m i n a ç ã o vigente.

N e s s e s e n t i d o , a T e o r i a C r í t i c a i n t e r p r e t a r á t o d a s as r í g i d a s d i s t i n ç õ e s e m q u e
se baseia a t e o r i a t r a d i c i o n a l ( c o m o " c o n h e c e r " e "agir", " c i ê n c i a " e " v a l o r " e t a n t a s
outras) c o m o indícios da incapacidade da concepção tradicional de c o m p r e e n d e r a
r e a l i d a d e s o c i a l e m s e u t o d o . O m é t o d o t r a d i c i o n a l , a o t o m a r essas c i s õ e s c o m o
d a d a s e n ã o c o m o p r o d u t o s h i s t ó r i c o s d e u m a f o r m a ç ã o social d e t e r m i n a d a , n ã o é
c a p a z d e e x p l i c a r s a t i s f a t o r i a m e n t e p o r q u e tais cisões s e r i a m , afinal, n e c e s s á r i a s . A
Teoria C r í t i c a , a o c o n t r á r i o , m o s t r a q u e tais divisões r í g i d a s s ã o c a r a c t e r í s t i c a s d e
u m a sociedade dividida, ainda não emancipada.

É a perspectiva da emancipação, da instauração de u m a sociedade recon-

ciliada, q u e i l u m i n a a p r e s e n t e s i t u a ç ã o d e n ã o - e m a n c i p a ç ã o c p e r m i t e à T e o r i a
C r í t i c a c o m p r e e n d e r o s e n t i d o d a s cisões n ã o j u s t i f i c a d a s d a t e o r i a t r a d i c i o n a l . É a
u n i d a d e f u t u r a , n a s o c i e d a d e e m a n c i p a d a , d o s e l e m e n t o s q u e se e n c o n t r a m c i n d i d o s
s o b a d o m i n a ç ã o c a p i t a l i s t a , a f o n t e d e l u z q u e i n s t a u r a a p e r s p e c t i v a crítica s o b r e o
e x i s t e n t e . O c o m p o r t a m e n t o c r í t i c o t o r n a - s e possível, p o r q u e f u n d a d o e m u m a
o r i e n t a ç ã o p a r a a e m a n c i p a ç ã o da sociedade, para a realização da liberdade e da
igualdade q u e o capitalismo ao m e s m o t e m p o possibilita e bloqueia.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 45

A dialética do esclarecimento

Esses p r i n c í p i o s f u n d a m e n t a i s q u e c a r a c t e r i z a m a T e o r i a C r í t i c a s e r ã o
f o r m u l a d o s d e m a n e i r a b a s t a n t e d i f e r e n t e n o s escritos d e H o r k h e i m e r d a d é c a d a d e
1940. A s p r i n c i p a i s p u b l i c a ç õ e s d e H o r k h e i m e r nesse p e r í o d o s ã o a j á m e n c i o n a d a
Dialética do esclarecimento e t a m b é m Eclipse da razão - r e u n i ã o d e u m a série d e
c o n f e r ê n c i a s d i r i g i d a s a o p ú b l i c o n o r t e - a m e r i c a n o , escrita t a m b é m d u r a n t e o exílio
n o s E U A ( H o r k h e i m e r 1976). O s d o i s livros p a r t i l h a m d e u m m e s m o u n i v e r s o
t e ó r i c o e t e m á t i c o . V o u m e c o n c e n t r a r a q u i n a Dialética do esclarecimento.

Trata-se de u m a obra de estrutura peculiar. É provável q u e o m a i o r d e s c o n -

f o r t o n a l e i t u r a esteja n o c h o c a n t e c o n t r a s t e e n t r e a o r g a n i z a ç ã o a b e r t a m e n t e
e n s a í s t i c a d o l i v r o e o c a r á t e r i n v a r i a v e l m e n t e p e r e m p t ó r i o d e s u a s teses. O l i v r o
a b r i g a f o r m a s estilísticas m u i t o d i v e r s a s : u m a e x p o s i ç ã o g e r a l s e g u i d a d e d o i s
"excursos", d o i s " e s t u d o s d e c a s o " ( i n d ú s t r i a c u l t u r a l e a n t i - s e m i t i s m o ) e u m a s é r i e
d e " n o t a s e e s b o ç o s " . N ã o se t r a t a d e u m c o n j u n t o d e t e x t o s r e d u t í v e i s a u m a
o r g a n i z a ç ã o s e g u n d o "capítulos", m a s , d e o u t r a p a r t e , t a m p o u c o se p o d e c o m p r e e n d e r
o v o l u m e c o m o u m a c o l e ç ã o d e e n s a i o s d i s p e r s o s , e n f e i x a d o s s e g u n d o u m fio
c o n d u t o r mais o u m e n o s arbitrário. A l é m disso, o p r ó p r i o subtítulo d o livro
{Fragmentos filosóficos) já a d v e r t e c o n t r a p r e t e n s õ e s s i s t e m á t i c a s a c a b a d a s d e s e u s
desenvolvimentos teóricos. N o entanto, é patente q u e há elementos sistemáticos
presentes n o s diferentes desenvolvimentos teóricos.

Mas, além desse, h á ainda u m o u t r o desconforto, q u e consiste n a utilização

d e p e n s a d o r e s e o b r a s n ã o a p e n a s d í s p a r e s , m a s i n c o n c i l i á v e i s e n t r e si. A c r e s c e q u e
essa u t i l i z a ç ã o n ã o se faz s e g u n d o q u a l q u e r c r i t é r i o d e c o e r ê n c i a i n t e r n a d a s o b r a s
u t i l i z a d a s : H o r k h e i m e r e A d o r n o r e t i r a m idéias e c o n c e i t o s d e s e u s r e s p e c t i v o s
contextos e os utilizam segundo os interesses de sua própria a r g u m e n t a ç ã o .

Nesse livro, H o r k h e i m e r a b a n d o n o u o m o d e l o d o "materialismo interdis-

ciplinar" d a d é c a d a de 1930, o q u e significou, e m m u i t o s aspectos, a b a n d o n a r
t a m b é m a l g u n s t r a ç o s decisivos d a T e o r i a C r í t i c a tal c o m o a p r e s e n t a d a e m 1 9 3 7 . 0
modelo d o materialismo interdisciplinar tinha por pressuposto fundamental o
princípio de q u e o capitalismo p r o d u z n ã o apenas a ilusão de u m a sociedade de
livres e iguais, m a s t a m b é m a p o s s i b i l i d a d e c o n c r e t a d a r e a l i z a ç ã o d a i g u a l d a d e e d a
liberdade. Desse m o d o , s e , e m " T e o r i a t r a d i c i o n a l e Teoria Crítica", a p o s s i b i l i d a d e
d l prática t r a n s f o r m a d o r a e n c o n t r a v a - s e b l o q u e a d a h i s t o r i c a m e n t e pela r e p r e s s ã o
C pela p r o p a g a n d a n a z i s t a , p e r m a n e c i a a i n d a n o h o r i z o n t e a i d é i a d e q u e as
possibilidades d e i n t e r v e n ç ã o t r a n s f o r m a d o r a n o m u n d o p o d e r i a m se r e a b r i r c o m
w dei rola d o n a z i s m o .

li. l'.M'im • I ditora

 I••,•,(• n . K i loi, e n t r e t a n t o , o d i a g n ó s t i c o d c I l o r k h c i m c r n o p e r í o d o p ó s - g u e r r a ,
iliii 1,1 das I m p a s aliadas n ã o significou, p a r a ele, a r e s t a u r a ç ã o d a s p o s s i b i l i d a d e s
• iilin i o n á r i a s . Pelo c o n t r á r i o , o d i a g n ó s t i c o d o t e m p o p r e s e n t e q u e d e s e n v o l v e u
na / Ualétmi do esclarecimento foi o d e u m bloqueio estrutural da prática
li i i i s l o i i n a d o r a . Esse d i a g n ó s t i c o e s t a v a c a l c a d o e m a n á l i s e s e c o n ô m i c a s ( d e
i ' i ' ,h u li 1'ollock, a q u e m foi d e d i c a d o o livro) q u e a p o n t a v a m p a r a u m a m u d a n ç a
i .liiiimal do funcionamento do capitalismo, e m que a intervenção do Estado na
ii m i / a ç ã o da p r o d u ç ã o , da distribuição e do c o n s u m o adquiriu o caráter de u m
r d a d e i r o p l a n e j a m e n t o , o q u e a l t e r o u r a d i c a l m e n t e os t e r m o s e m q u e M a r x h a v i a
• l U b c l c c i d o s u a s a n á l i s e s . Essa n o v a f o r m a d o c a p i t a l i s m o foi d e n o m i n a d a p o r
Polloi l< " c a p i t a l i s m o de Estado". NaDialética do esclarecimento, Horkheimer e Adorno
nu m a i s d a s vezes, referir-se a essa n o v a f o r m a c o m o " c a p i t a l i s m o a d m i n i s t r a d o " ,
m u n d o a d m i n i s t r a d o " ou, a i n d a , " c a p i t a l i s m o tardio".

Um s e u s e s c r i t o s d a d é c a d a d e 1940, P o l l o c k m o s t r o u q u e , c o m a n o v a f o r m a
• Ir m i e r v e n ç ã o d i r e t a d o E s t a d o n a o r g a n i z a ç ã o d a p r o d u ç ã o , d a d i s t r i b u i ç ã o e d o
i i i n s u m o , a política tinha adquirido primazia sobre a e c o n o m i a na determinação
das e s t r u t u r a s sociais f u n d a m e n t a i s . H o r k h e i m e r e A d o r n o n ã o a c e i t a r a m s e m
m a i s essas f o r m u l a ç õ e s d e P o l l o c k . A p e s a r d e c o n c o r d a r e m , d e m a n e i r a g e r a l , c o m
I ideia d e P o l l o c k d e u m a n o v a f o r m a d e " p r i m a z i a d a política", n ã o c o n c o r d a r a m
l o i n ele e m q u e o " c a p i t a l i s m o d e E s t a d o " t i v e s s e p o t e n c i a l p a r a a s s u m i r u m a " f o r m a
d e m o c r á t i c a " , f u n d a d a e m a l g u m t i p o d e c o n t r o l e p o p u l a r . N a Dialética do
esclarecimento, o q u e se e n c o n t r a é o " m u n d o a d m i n i s t r a d o " , u m a f o r m a s o f i s t i c a d a
de c o n t r o l e s o c i a l d e q u e as m a s s a s e s t ã o i n t e i r a m e n t e e x c l u í d a s e s o b r e a q u a l n ã o
icm qualquer tipo de domínio.

A i m p o r t â n c i a d a s análises de P o l l o c k d o início d o s a n o s 1940 está j u s t a m e n t e

e m q u e ele m o s t r o u q u e a e c o n o m i a n ã o o c u p a v a m a i s o l u g a r c e n t r a l d a n o v a f o r m a
l o m a d a p e l o c a p i t a l i s m o , de m o d o q u e t a m b é m os t e ó r i c o s críticos já n ã o d e v e r i a m
i o n s i d e r a r c o m o c e n t r a l a p r ó p r i a e c o n o m i a política c o m o disciplina o r g a n i z a d o r a
tio t r a b a l h o . É n e s s e n o v o c o n t e x t o d e u m a " p r i m a z i a d a política s o b r e a e c o n o m i a "
q u e d e v e m o s c o m p r e e n d e r as análises d a Dialética do esclarecimento.

As fases a n t e r i o r e s à d o c a p i t a l i s m o de E s t a d o (a fase " l i b e r a l " o u " c o n -

correncial", a fase " m o n o p o l i s t a " ) t i n h a m a i n d a a c a r a c t e r í s t i c a m a r c a n t e d e a p o n t a r
p a r a a l é m d e si m e s m a s , d e s c o r t i n a v a m e m si m e s m a s o c a m p o d e a ç ã o c a p a z d e
abolir o capital e instaurar a sociedade justa. O capitalismo a d m i n i s t r a d o é u m
s i s t e m a q u e se f e c h a s o b r e si m e s m o , q u e b l o q u e i a e s t r u t u r a l m e n t e qualquer
possibilidade de s u p e r a ç ã o virtuosa da injustiça vigente e paralisa, p o r t a n t o , a ação
genuinamente transformadora.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 47

 O velho paradigma ilo c a p i t a l i s m o liberal o da a u t o r e g u l a ç ã o elo m e r c a d o
nao mais se aplica, e o n o v o m e c a n i s m o q u e o s u b s t i t u i u é a i n d a m a i s o p a c o . O
sistema e c o n ô m i c o n o c a p i t a l i s m o a d m i n i s t r a d o é c o n t r o l a d o de fora, p o l i t i c a m e n t e ,
c, n o e n t a n t o , esse c o n t r o l e p o l í t i c o n ã o é e x e r c i d o d e m a n e i r a t r a n s p a r e n t e . Esse
controle é exercido burocraticamente, segundo a racionalidade própria da
b u r o c r a c i a . Essa r a c i o n a l i d a d e c h a m a - s e , na l i n g u a g e m de Horkheimer,
" i n s t r u m e n t a l " : t r a t a - s e d e u m a r a c i o n a l i d a d e q u e p o n d e r a , c a l c u l a e ajusta os
m e l h o r e s m e i o s a fins d a d o s e x t e r i o r m e n t e a o a g e n t e .

Historicamente, entretanto, o grande projeto de emancipação da razão

h u m a n a esteve s e m p r e c o l o c a d o n a d e t e r m i n a ç ã o r a c i o n a l d o s fins, o u seja, n o
d e b a t e e n a efetivação d a q u e l e s v a l o r e s j u l g a d o s b e l o s , j u s t o s e v e r d a d e i r o s . N o
c a p i t a l i s m o a d m i n i s t r a d o , a r a z ã o se vê r e d u z i d a a u m a c a p a c i d a d e d e a d a p t a ç ã o a
fins d a d o s d e a n t e m ã o ; v ê - s e r e d u z i d a à c a p a c i d a d e d e c a l c u l a r os m e l h o r e s meios
p a r a alcançar fins q u e lhe são e s t r a n h o s . Essa r a c i o n a l i d a d e é d o m i n a n t e n a s o c i e d a d e
n ã o a p e n a s p o r m o l d a r a e c o n o m i a , o s i s t e m a p o l í t i c o o u a b u r o c r a c i a estatal, ela
faz p a r t e d a socialização, d o p r o c e s s o de a p r e n d i z a d o , da f o r m a ç ã o d a p e r s o n a l i d a d e .

H o r k h e i m e r e A d o r n o , m e s m o c o n s i d e r a n d o q u e a e c o n o m i a p o l í t i c a já
n ã o d e v e r i a ser t o m a d a c o m o a d i s c i p l i n a c e n t r a l n o a r r a n j o i n t e r d i s c i p l i n a r d a
Teoria C r í t i c a , n ã o se d e d i c a r a m a f o r m u l a r de m a n e i r a d i r e t a u m a t e o r i a p o l í t i c a
crítica. M a s é t a m b é m v e r d a d e que desse diagnóstico resulta u m a p e r d a de
c e n t r a l i d a d e d a e c o n o m i a n o a r r a n j o d i s c i p l i n a r v i g e n t e até os a n o s 1930, o q u e
i m p l i c o u u m n o v o p r o b l e m a d e f u n d a m e n t a ç ã o p a r a a p r ó p r i a crítica.

H o r k h e i m e r b u s c o u resolver esse p r o b l e m a p o r m e i o d a f o r m u l a ç ã o d e u m a
n o v a a n t r o p o l o g i a , q u e r dizer, n a f o r m a de u m a investigação c o n j u n t a de
c o n d i c i o n a m e n t o s h i s t ó r i c o s e d e d e t e r m i n a n t e s p r ó p r i o s ao m e t a b o l i s m o e n t r e
h o m e m e n a t u r e z a . C o m o já m e n c i o n a d o , essa l i n h a de i n v e s t i g a ç ã o t i n h a
p r e c e d e n t e s n a o b r a d o p r ó p r i o H o r k h e i m e r d o s a n o s 1930, c o m o o c i t a d o e n s a i o
"Egoísmo e m o v i m e n t o de libertação. Sobre a antropologia da época burguesa". Nos
t r a b a l h o s d o s a n o s 1940, c o n s i d e r o q u e a i n s p i r a ç ã o f u n d a m e n t a l p a r a a c o n s t r u ç ã o
d e s s a n o v a a n t r o p o l o g i a d e v e ser b u s c a d a n a o b r a d e S i g m u n d F r e u d ( 1 8 5 6 - 1 9 3 9 ) .
T r a t a - s e , e n t r e t a n t o , d e u m a v e r s ã o r a d i c a l m e n t e t r a n s f o r m a d a d e a l g u m a s teses
a n t r o p o l ó g i c a s d e F r e u d e q u e n ã o se l i m i t a d e m o d o a l g u m ao c a m p o d a psicanálise.

Essa n o v a a n t r o p o l o g i a , e n t r e t a n t o , b o r r a i n t e i r a m e n t e as f r o n t e i r a s e n t r e as
d i s c i p l i n a s , tais c o m o e n t e n d i d a s até os a n o s 1930, p o i s n ã o p o d e ser r e d u z i d a a
n e n h u m a d i s c i p l i n a e x i s t e n t e . N ã o se p o d e d i z e r d e l a q u e seja u m a n o v a d i s c i p l i n a
a ser c o l o c a d a n o c e n t r o d e u m n o v o a r r a n j o interdisciplinar, n o p a p e l a n t e s o c u p a d o
pela e c o n o m i a política. É a idéia m e s m a de i n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e q u e está e m q u e s t ã o

48 Papirus Editora
M i / • / ' ( / / ( • [ / ( 1 / i/i' esclarecimento. T a m p o u c o sc p o d e d i z e r q u e a ideia d e c o l a b o r a ç ã o
• litt«.* .is d i s c i p l i n a s t e n h a d e s a p a r e c i d o . O q u e d e s a p a r e c e u foi a c e n t r a l i d a d e d a
1 1 iiiiuiiii.i política. De o u t r o lado, H o r k h e i m e r e A d o r n o c o m o q u e c r i a r a m , c o m
i 1 1 q u e e sto u c h a m a n d o de n o v a a n t r o p o l o g i a , u m a m b i e n t e , u m e s p a ç o d e d i á l o g o
Inti i d i s c i p l i n a r n o v o . É p r e c i s o q u e se d i g a t a m b é m , e m s e n t i d o c o n t r á r i o , q u e
I H ih .,ir os e l e m e n t o s d e s s a n o v a a n t r o p o l o g i a é tarefa a i n d a p o r ser r e a l i z a d a , já
q u i iis a u t o r e s n ã o a f o r m u l a r a m d e m a n e i r a e x p l í c i t a n o l i v r o .

Seja c o m o for, essa n o v a a n t r o p o l o g i a t e m s u a s f r o n t e i r a s d e l i m i t a d a s p o r

HUM dialética entre " m i t o " e "esclarecimento" que estrutura t o d o o v o l u m e .
Hot k h e i m e r e A d o r n o s u s t e n t a m q u e o a v a n ç o d a " r a z ã o " - r e p r e s e n t a d o p e l o
• i c l a r e c i m e n t o " (Aufklärung), palavra que, em alemão, designa t a m b é m o
luminismo d o s é c u l o X V I I I - se d e u c o n t r a as v i s õ e s m i t o l ó g i c a s d o m u n d o ,
m a r c a d a s p o r idéias c o m o a de "destino".

O e s c l a r e c i m e n t o - l i g a d o i n e x t r i c a v e l m e n t e às i d é i a s d e r a z ã o e d e p r o g r e s -
m> p r e t e n d i a t o r n a r os h o m e n s s e n h o r e s d e seu d e s t i n o e d a n a t u r e z a . E m s e u
• li ' . e n v o l v i m e n t o h i s t ó r i c o - c u l t u r a l , e n t r e t a n t o , a r a z ã o m o s t r o u s e r a p e n a s
.11111 i p r c s e r v a ç ã o , o u seja, m o s t r o u - s e u n i c a m e n t e c o m o i n s t r u m e n t o d e d o m i n a ç ã o
I Dio d e l i b e r t a ç ã o , p o i s a h i p e r t r o f i a d a a u t o p r e s e r v a ç ã o n ã o s e r v i u à c o n s c i ê n c i a
i le q u e os h o m e n s p r o d u z e m s u a p r ó p r i a h i s t ó r i a e, dessa f o r m a , p o d e m se a p r o p r i a r
de suas p r ó p r i a s v i d a s .

Ao c o n t r á r i o , o d o m í n i o da a u t o p r e s e r v a ç ã o sob o m a n t o da razão
e s c l a r e c e d o r a se m o s t r o u i n s t r u m e n t o n ã o a p e n a s d e d o m í n i o d a n a t u r e z a e x t e r n a ,
m a s i g u a l m e n t e d a n a t u r e z a i n t e r n a e d a s r e l a ç õ e s sociais d e m a n e i r a m a i s a m p l a .
6
Nesse s e n t i d o , o p r o c e s s o t r a n s - h i s t ó r i c o d e d e s e n c a n t a m e n t o d o m u n d o , dirigido
contra o m i t o , acaba p o r reverter à mitologia. O m u n d o totalmente desencantado é
aquele e m q u e o m i t o r e t o r n a na f o r m a de u m a sociedade racional, na qual idéias
c o m o a d e d e s t i n o n ã o d e v e r i a m m a i s ter lugar, m a s q u e são, e n t r e t a n t o , d o m i n a n t e s .
0 desenvolvimento pleno do esclarecimento produz o contrário do que promete,
p r o d u z u m m u n d o e s t r a n h o e h o s t i l a o s h o m e n s , a o q u a l eles t ê m d e se a d a p t a r
7
c o m o a f o r ç a s e s t r a n h a s e f a n t a s m a g ó r i c a s s o b r e as q u a i s n ã o t ê m d o m í n i o .

H o r k h e i m e r e A d o r n o c o n s i d e r a m q u e esse p r o c e s s o n ã o é c a s u a l . N ã o se
trata de dizer q u e a razão c o m o tal, e m seu d e s e n v o l v i m e n t o n o processo d o

6. S o b r e isso, ver o v e r b e t e " M a x W e b e r " ao final deste v o l u m e .

7. Essa idéia t e m s u a o r i g e m n a n o ç ã o d e " f e t i c h i s m o " desenvolvida o r i g i n a l m e n t e p o r M a r x .
S o b r e isso, v e r o v e r b e t e respectivo ao final d e s t e v o l u m e .

C u r s o livre d e Teoria Crítica 49

e s c l a r e c i m e n t o , deva ser e x i m i d a desse r e s u l t a d o . IVlo c o n t r á r i o , b u s c a m ItlOStrai
q u e a r a z ã o é, d e s d e s e m p r e , i n s t r u m e n t o de d o m i n a ç ã o p e l o fato d e c o n s i s t i r c m
i n s t r u m e n t o d i r i g i d o p r i m a r i a m e n t e à a u t o p r e s e r v a ç ã o d a e s p é c i e . É nesse s e n t i d o
que vão abrir o c a m i n h o de u m a nova antropologia, investigando a estrutura
f u n d a m e n t a l d a r a z ã o e m s u a r e l a ç ã o c o m a a u t o p r e s e r v a ç ã o d a e s p é c i e e e m seu
projeto de d o m i n a ç ã o da natureza.

P o r isso, H o r k h e i m e r e A d o r n o e m p r e e n d e r a m , na Dialética do esclarecimento,

u m a i n v e s t i g a ç ã o s o b r e a razão h u m a n a d e a m p l o e s p e c t r o . Seu o b j e t i v o foi o d e
b u s c a r c o m p r e e n d e r p o r q u e a r a c i o n a l i d a d e d a s relações sociais h u m a n a s , ao invés
d e l e v a r à e m a n c i p a ç ã o , à i n s t a u r a ç ã o d e u m a s o c i e d a d e d e h o m e n s livres e i g u a i s ,
a c a b o u p o r p r o d u z i r u m s i s t e m a social q u e b l o q u e o u e s t r u t u r a l m e n t e q u a l q u e r
p o s s i b i l i d a d e e m a n c i p a t ó r i a , t r a n s f o r m a n d o os i n d i v í d u o s e m e n g r e n a g e n s d e u m
m e c a n i s m o q u e n ã o c o m p r e e n d e m e n ã o d o m i n a m e a o q u a l se s u b m e t e m e se
a d a p t a m , i m p o t e n t e s . Esse p r o b l e m a m a i s geral se t r a d u z n a tarefa d e c o m p r e e n d e r
c o m o a razão h u m a n a acabou por restringir-se historicamente à sua forma
i n s t r u m e n t a l , cuja f o r m a social c o n c r e t a é a d o m u n d o a d m i n i s t r a d o .

T r a d u z i d o n o s t e r m o s d o a r t i g o " T e o r i a t r a d i c i o n a l e T e o r i a Crítica", seria

c o m o dizer q u e a f o r m a de p e n s a m e n t o ilusória e parcial p r ó p r i a d a teoria t r a d i c i o n a l
é n ã o a p e n a s d o m i n a n t e , m a s t a m b é m a única f o r m a possível d e r a c i o n a l i d a d e s o b
o capitalismo a d m i n i s t r a d o . Assim, a racionalidade c o m o u m t o d o reduz-se a u m a
função de adaptação à realidade, à p r o d u ç ã o d o conformismo diante da d o m i n a ç ã o
v i g e n t e . Essa s u j e i ç ã o a o m u n d o tal q u a l a p a r e c e já n ã o é, p o r t a n t o , u m a i l u s ã o real
q u e p o d e ser s u p e r a d a p e l o c o m p o r t a m e n t o crítico e p e l a a ç ã o t r a n s f o r m a d o r a : é
u m a sujeição s e m a l t e r n a t i v a , p o r q u e a e m a n c i p a ç ã o já n ã o e n c o n t r a a n c o r a d o u r o
c o n c r e t o n a r e a l i d a d e s o c i a l d o c a p i t a l i s m o a d m i n i s t r a d o , p o r q u e já n ã o s ã o
d i s c e r n í v e i s as t e n d ê n c i a s reais q u e p o d e m levar à e m a n c i p a ç ã o . A d o m i n a ç ã o t o t a l
e c o m p l e t a d a r a c i o n a l i d a d e i n s t r u m e n t a l s o b r e o c o n j u n t o d a s o c i e d a d e capitalista
resulta, então, n o m e n c i o n a d o bloqueio estrutural da prática.

M a s , se é a s s i m , t a m b é m o p r ó p r i o exercício crítico e n c o n t r a - s e e m u m a
aporia: se a r a z ã o i n s t r u m e n t a l é a f o r m a única de racionalidade n o capitalismo
a d m i n i s t r a d o , b l o q u e a n d o q u a l q u e r p o s s i b i l i d a d e real d e e m a n c i p a ç ã o , e m n o m e d o
q u e é possível criticar a r a c i o n a l i d a d e i n s t r u m e n t a l ? H o r k h e i m e r e A d o r n o a s s u m e m
c o n s c i e n t e m e n t e essa a p o r i a , d i z e n d o q u e ela é, n o c a p i t a l i s m o a d m i n i s t r a d o , a
c o n d i ç ã o d e u m a crítica cuja p o s s i b i l i d a d e se t o r n o u e x t r e m a m e n t e p r e c á r i a .

O c a p i t a l i s m o t a r d i o se fecha s o b r e si m e s m o s e m falhas. P a r a criticá-lo, p a r a

di Itl ni lo, é p r e c i s o l a n ç a r m ã o d a m e s m a r a c i o n a l i d a d e q u e o c o n s t i t u i , o q u e o
reforça e m l u g a r d e a b a l á - l o . Essa t a m b é m é a r a z ã o p e l a q u a l a Dialética do

Ml I '.i|mii\ I ditora
I rltiiYiViiciilo ó u n i livro cio leitura t ã o difícil: é u m p e n s a r q ü e p e n s a c o n t r a o
111 lento, q u e se vira c o n t r a nossas p r ó p r i a s e s t r u t u r a s d e p e n s a m e n t o , d e n u n c i a n d o
Inii i da f o r m a d e n o s s a r a c i o n a l i d a d e c o m a f o r m a d e d o m i n a ç ã o v i g e n t e .

i o n l u i o " d e q u e talvez a idéia d e p r o g r e s s o n o s d ê o m e l h o r e x e m p l o . Essa

Ideia foi d u r a n t e m u i t o t e m p o o s í m b o l o m e s m o d a i n s c r i ç ã o d a s o c i e d a d e
inani ipada na f o r m a p r e s e n t e d e o r g a n i z a ç ã o social c o m o u m a t e n d ê n c i a real d e
li n \ o l v i m e n t o . O p r o g r e s s o t é c n i c o c a r r e g a r i a d e n t r o d e si u m p o t e n c i a l
i v I ilosivo, a ser a p r o v e i t a d o p e l a a ç ã o t r a n s f o r m a d o r a , e m q u e o c r e s c e n t e d o m í n i o
d i n a t u r e z a p a s s a r i a a s e r v i r a u m a s o c i e d a d e d e livres e i g u a i s , à h u m a n i d a d e e m
ii ii s e n t i d o p r ó p r i o . O c o r r e q u e , p a r a H o r k h e i m e r e A d o r n o , o p r o g r e s s o p e r d e u
seu p o t e n c i a l t r a n s f o r m a d o r a o r e d u z i r - s e p o r i n t e i r o a " p r o g r e s s o t é c n i c o " ,
i i sentido único de progresso tornou-se n ã o apenas d o m i n a n t e , m a s expressão
d( u m a racionalidade única.

Nesse m o m e n t o , H o r k h e i m e r e A d o r n o q u e s t i o n a m o s e n t i d o original
Itribuído p o r M a r x à e m a n c i p a ç ã o . O d o m í n i o s e m p r e crescente d o progresso
penico n ã o r e s u l t o u e m l i b e r t a ç ã o , m a s t ã o - s o m e n t e e m s u b m i s s ã o e c o n f o r m i s m o .
I p o r isso q u e , p a r a eles, a e m a n c i p a ç ã o j á n ã o p o d e s e r p e n s a d a c o m o t r i u n f o d a
M I i o n a l i d a d e s i m p l e s m e n t e , c o m o p r o g r e s s o n o s e n t i d o ú n i c o q u e este a d q u i r i u ,
I ii lis m o l d a r a r e a l i d a d e à feição d a razão p r o d u z i u u m a r e a l i d a d e e s t r a n h a a o h o m e m ,
•icapaz d e i n s t a u r a r a v e r d a d e i r a h u m a n i d a d e . A e m a n c i p a ç ã o p a s s a , e n t ã o , a
d e p e n d e r d o s u r g i m e n t o ( q u e n ã o e s t a v a à vista p a r a eles n a q u e l e m o m e n t o ) d e
uma forma de racionalidade sem pretensões de anexação d o m u n d o .

P r e t e n d e n d o m a n t e r - s e fiel a o s p r i n c í p i o s n o r t e a d o r e s d a T e o r i a C r í t i c a ,
I l o r k h e i m e r c o n s i d e r o u j á n ã o ser p o s s í v e l m a n t e r o s e n t i d o q u e l h e s foi d a d o
primeiramente p o r Marx. O que mostra mais u m a vez q u e é característica
l u n d a m e n t a l d a T e o i i a C r í t i c a ser p e r m a n e n t e m e n t e r e n o v a d a e e x e r c i t a d a , n ã o
p o d e n d o s e r fixada e m u m c o n j u n t o d e teses i m u t á v e i s . A a p o r i a p r o p o s t a p o r
1 l o r k h e i m e r e m s e u m o d e l o c r í t i c o d a d é c a d a d e 1940 r e s u l t a d o fato d e q u e , p a r a
ele, p e r m a n e c e r fiel à e m a n c i p a ç ã o significava r e c o n h e c e r q u e ela se h a v i a t o r n a d o
impossível n a f o r m a ç ã o social d o " c a p i t a l i s m o a d m i n i s t r a d o " , q u e ela havia p e r d i d o
o s e u a n c o r a d o u r o real n o s n o v o s p r o c e s s o s sociais q u e se d e l i n e a v a m p a r a o p e r í o d o
p o s t e r i o r à S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l . O c o m p o r t a m e n t o crítico a u t ê n t i c o , p o r t a n t o ,
estava e m r e a l i z a r s e m c o n c e s s õ e s essa d u r a a n á l i s e d a n o v a r e a l i d a d e h i s t ó r i c a .

D o p o n t o d e vista d a c o n s t e l a ç ã o d e d i s c i p l i n a s p r e s e n t e n o e n s a i o s e m i n a l
" T e o r i a t r a d i c i o n a l e T e o r i a Crítica", o m o d e l o crítico d a Dialética do esclarecimento
parece revelar u n i c a m e n t e u m a posição aporética o u s i m p l e s m e n t e contraditória.
K n t r e t a n t o , se p e n s a r m o s a Dialética do esclarecimento n o contexto de u m rearranjo

C u r s o livre d e Teoria Crítica 51

Interdisciplinar, t o r n a - s e possível p e n s a r esse livro c o m o u m novo m o d e l o crítico.
Isso significa, d e u m l a d o , q u e c o n t i n u a a ser p e r f e i t a m e n t e p o s s í v e l c r i t i c á - l o c o m
base n o m o d e l o p r e s e n t e e m " T e o r i a t r a d i c i o n a l e Teoria Crítica", c a s o se c o n s i d e r e
este c o m o u m m o d e l o m a i s a d e q u a d o c o m o p o n t o de p a r t i d a p a r a p e n s a r o m o m e n t o
p r e s e n t e . D e o u t r o l a d o , e n t r e t a n t o , h á especificidades n e s s e n o v o m o d e l o , d e tal
m a n e i r a q u e " T e o r i a t r a d i c i o n a l e T e o r i a C r í t i c a " já n ã o p o d e a l c a n ç á - l o .

O m o d e l o c r í t i c o d a Dialética do esclarecimento p a r e c e ser m a l c o m p r e e n d i d o

q u a n d o e n t e n d i d o c o m o u m m o d e l o aporético sem m a i s . Seu diagnóstico
subjacente, q u e a p o n t a p a r a u m b l o q u e i o objetivo da praxis, da ação v e r d a d e i r a m e n t e
t r a n s f o r m a d o r a , n ã o p o d e e n ã o d e v e ser c o n f u n d i d o c o m a u s ê n c i a d e p o t e n c i a l
crítico. M u i t o p e l o c o n t r á r i o , a força d a Dialética do esclarecimento está e m q u e , até
hoje, p e r m i t e análises críticas cruciais d a v i d a c o n t e m p o r â n e a . N ã o se trata d e a f i r m a r
q u e as teses f o r m u l a d a s e m 1947 s o b r e a i n d ú s t r i a c u l t u r a l o u s o b r e o n a z i s m o
p e r m a n e ç a m p l a u s í v e i s , m a s s i m p l e s m e n t e d e r e c o n h e c e r q u e elas são até h o j e
p o n t o s de p a r t i d a inescapáveis p a r a q u e m se p r o p o n h a a e s t u d a r o f e n ô m e n o . M e s m o
q u e seja p a r a c o n c l u i r q u e o m o d e l o p r e s e n t e n o s escritos d a d é c a d a de 1930 seja
m a i s a d e q u a d o p a r a l e v a r a d i a n t e , h o j e , a T e o r i a Crítica.

Referências bibliográficas

ABROMEIT, J. (2004). " T h e dialectic of bourgeois society: An intellectual biography of the

y o u n g M a x H o r k h e i m e r , 1895-1937". Tese de d o u t o r a d o . Berkeley: Universidade da
Califórnia.

H O R K H E I M E R , M . (1975). "Teoria tradicional e Teoria Crítica". Benjamin, Horkheimer,

Adorno, Habermas. São Paulo: Abril C u l t u r a l . (Col. Os Pensadores, vol. XLVIII)

(1976). Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor.

(1990). Teoria Crítica I. São Paulo: Perspectiva.

H O R K H E I M E R , M. e A D O R N O , T.W. (1985). Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro:

Jorge Zahar.

N O B R E , M . ( 2 0 0 1 ) . Lukácse os limites da reificação. São Paulo: E d i t o r a 34.

(2004). A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

52 Papirus Editora
 JÜRGEN HABERMAS E O
MODELO RECONSTRUTIVO DE
TEORIA CRÍTICA
8
Luiz Repa

N o presente texto, p r e t e n d o apresentar e discutir o m o d e l o de Teoria Crítica

desenvolvido pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen H a b e r m a s (1929-). Mais
e x a t a m e n t e , o m o d e l o d e Teoria C r í t i c a q u e esse a u t o r e l a b o r a n o c o n t e x t o d e s u a
•ra Teoria da ação comunicativa, p u b l i c a d a e m 1 9 8 1 . Essa o b r a f u n d a m e n t a a
i oncepção h a b e r m a s i a n a da sociedade c o m o u m todo. Portanto, é c o m base nela
| u e se d e v e e n t e n d e r o q u e v e m a ser a T e o r i a C r í t i c a p a r a esse a u t o r .

D e i n í c i o , c o n v é m afastar u m e q u í v o c o r e c o r r e n t e s o b r e o s i g n i f i c a d o d a
e x p r e s s ã o " T e o r i a C r í t i c a " . É c o m u m c o n s i d e r a r que ela é u m t i p o d e t e o r i a ,
d e s e n v o l v i d a seja e m q u e á r e a for d a s c i e n c i a s h u m a n a s , q u e t r a z c o n s i g o , d e m o d o
geral, u m a c r í t i c a social e, p a r t i c u l a r m e n t e , u m a crítica d a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a
m o d e r n a . N e s s a s c o n s i d e r a ç õ e s , n o r m a l m e n t e se e s q u e c e d e a c r e s c e n t a r q u e n e m
t o d a c r í t i c a social se c o n f i g u r a c o m o u m a Teoria Crítica, q u e n ã o b a s t a u m a r e l a ç ã o
p o r a s s i m d i z e r n e g a t i v a c o m a r e a l i d a d e social p a r a qualificá-la c o m o tal.

Essa o b s e r v a ç ã o n ã o p r e c i s a ser l o n g a m e n t e justificada. Talvez seja suficiente

n o t a r a p e n a s d u a s o u t r ê s coisas. P r i m e i r a m e n t e , os d i v e r s o s m o d e l o s de T e o r i a
( a í t i c a a p r e s e n t a m c a d a u m deles u m a f o r m a específica e m q u e se e x e r c e a crítica
á sociedade m o d e r n a capitalista. A Teoria Crítica t e m princípios p r ó p r i o s que a
d i f e r e n c i a m d a s d e m a i s f o r m a s d e t e o r i a , as q u a i s p o d e m a q u i ser c h a m a d a s d e
1
"tradicionais", a d o t a n d o o t e r m o d e H o r k h e i m e r . E m s e g u n d o l u g a r , b a s t a r e c o r d a r
u m a série d e p e n s a d o r e s c o n s e r v a d o r e s q u e f i z e r a m críticas ferozes, m u i t a s vezes
r e l e v a n t e s , d a s o c i e d a d e m o d e r n a , p a r a se d a r c o n t a d e q u e h á críticas sociais e
c u l t u r a i s q u e n ã o s ã o d e m o d o n e n h u m f o r m a s d e Teoria C r í t i c a . Isso t a m p o u c o

1. Para u m a visão d e c o n j u n t o dos princípios da Teoria Crítica e de alguns m o d e l o s que atualizam

esses p r i n c í p i o s , c o n f o r m e distintos diagnósticos d e época, inclusive o de H a b e r m a s , cf. N o b r e
2 0 0 4 e t a m b é m o c a p í t u l o desse a u t o r s o b r e H o r k h e i m e r n e s t e livro.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 161

significa q u e basta ser progressista p a r a que a i rítka SOi ial Si |n reoi ia I rítii a, I li
m u i t a crítica social d e e s q u e r d a q u e t a m p o u c o c u m p r e as exigências da Teoria
C r í t i c a . Se essa o b s e r v a ç ã o está c o r r e t a , é p r e c i s o e n t e n d e i ' e m q u e c o n s i s t e a crítica
social d e H a b e r m a s e, a l é m d i s s o , e m q u e s e n t i d o essa crítica se c o n f i g u r a t o
u m a Teoria C r í t i c a , o u seja, c o m o ela c u m p r e as s u a s e x i g ê n c i a s .

Novas formas de violência e alienação

Talvez seja p o u c o contestável t a m b é m a f i r m a r q u e t o d a crítica d a s o c i e d a d e

t e m p o r objeto u m a f o r m a d e violência. N a t r a d i ç ã o m a r x i s t a , a violência se apresenta
d e diversas m a n e i r a s : c o m o e x p l o r a ç ã o d a força d e t r a b a l h o , c o m o o p r e s s ã o e c o n t r o l e
policial, c o m o a l i e n a ç ã o , reificação e t c . A violência t e m f o r m a s v i r u l e n t a s , m a s
t a m b é m o u t r a s m u i t o sutis, q u a s e i m p e r c e p t í v e i s n a h o r a e m q u e se e x e r c e m . Às
vezes, o s p r ó p r i o s sujeitos q u e e x e r c e m a violência n ã o se d ã o c o n t a dela. S ã o f o r m a s
sociais d e violência q u e c o n s t i t u e m p a d r õ e s t ã o a r r a i g a d o s d e s o c i a b i l i d a d e , q u e são
q u a s e invisíveis o u t ã o discretos q u e n ã o se p e r c e b e q u e p o d e m e s t a r n a o r i g e m de
m a n i f e s t a ç õ e s explosivas, rebeliões r e p e n t i n a s e a p a r e n t e m e n t e s e m m o t i v o .

A violência social q u e H a b e r m a s b u s c a analisar e m s u a teoria d a ação

c o m u n i c a t i v a é j u s t a m e n t e d o s e g u n d o t i p o , u m a v i o l ê n c i a m a i s sutil o u m a i s
e n c o b e r t a . N ã o se t r a t a d a violência p r ó p r i a d a esfera p r o d u t i v a , d a d i m e n s ã o material
d a s o c i e d a d e , o n d e a v i o l ê n c i a se m a n i f e s t a a o l h o s vistos c o m o p o b r e z a e m i s é r i a ,
c o m o o p r e s s ã o d a força d e t r a b a l h o o u c o m o u m a v i o l ê n c i a p r ó p r i a d a l u t a d e
classes e m t o r n o d a c o n s e r v a ç ã o o u d a t o m a d a d o s m e i o s d e p r o d u ç ã o e d i s t r i b u i ç ã o
de riqueza.

E m vez disso, as s o c i e d a d e s m o d e r n a s capitalistas s ã o m a r c a d a s cada vez m a i s ,

s e g u n d o H a b e r m a s , p o r f e n ô m e n o s n o v o s d e violência, reificação e a l i e n a ç ã o q u e
n ã o r e s u l t a m d i r e t a m e n t e d e e s t r u t u r a s d e classe. O s p r ó p r i o s conflitos d e classe são
relativamente a p a z i g u a d o s p o r u m a série d e fatores. Entre eles, c o n t a - s e p r i m e i r a m e n t e
a i n t e r v e n ç ã o e s t a t a l n a e c o n o m i a , seja p a r a m a n t e r o u a u m e n t a r as t a x a s d e
c r e s c i m e n t o , seja p a r a evitar o u a b s o r v e r crises e c o n ô m i c a s . A l é m disso, a p a r t i c i p a ç ã o
n o sistema político é generalizada p o r m e i o das democracias de massas, de m o d o que
a d o m i n a ç ã o p o l í t i c a se legitima n a m a i o r p a r t e d a p o p u l a ç ã o . A o m e s m o t e m p o , os
c o n f l i t o s s o c i a i s s ã o i n s t i t u c i o n a l i z a d o s j u r i d i c a m e n t e , i s t o é, e s t a b e l e c e m - s e
legislações s o b r e relações de t r a b a l h o e seguridade social. T a m b é m o sistema
e d u c a c i o n a l se e x p a n d e , p o s s i b i l i t a n d o m a i o r e s m a r g e n s d e m o b i l i d a d e social.

162 Papi rus Editora

 I sses fatores l o d o s c o n c o r r e m a o m e s m o t e m p o para a i n t e g r a ç ã o social d a s
1111 ii las I l a b a l l i a d o r a s e para a diferenciação social n o i n t e r i o r d e l a s , d e m o d o q u e o
"ii M• . m o g e r a d o pelas e s t r u t u r a s d e classe deixa d e d e t e r m i n a r e m g r a n d e m e d i d a
2
m i elações sociais e m seu c o n j u n t o . As f o r m a s d e v i d a se m u l t i p l i c a m e m a l se
1.1 . m i qualificar s i m p l e s m e n t e e s e m m a i s c o m o " b u r g u e s a s " o u "proletárias".

< l o n t u d o , o a p a z i g u a m e n t o r e l a t i v o d o s c o n f l i t o s d e classe é a c o m p a n h a d o
I M u u m a série d e f e n ô m e n o s p a t o l ó g i c o s n o v o s . Se a v i o l ê n c i a n a esfera d a p r o d u ç ã o
Militei ial p a r e c e m e n o r , a v i o l ê n c i a n a esfera " e s p i r i t u a l " a p r e s e n t a f o r m a s n o v a s e
i ida vez m a i s fortes. A q u i se d e s t a c a u m a c o n s t a t a ç ã o q u e a t r a v e s s a q u a s e t o d a a
leni ia da a ç ã o c o m u n i c a t i v a : q u a n t o m a i s as s o c i e d a d e s m o d e r n a s c a p i t a l i s t a s
l i i n s e g u e m a p a z i g u a r os conflitos específicos d o m u n d o d o t r a b a l h o , t a n t o m a i s
Urgem conflitos d e o u t r a n a t u r e z a , t a n t o m a i s s u r g e m efeitos v i o l e n t o s r e i f i c a d o r e s
Itrts d i m e n s õ e s d a v i d a social n ã o d i r e t a m e n t e ligadas à esfera p r o d u t i v a , o u seja, n a s
Jffluções sociais f a m i l i a r e s e afetivas, n a v i d a c u l t u r a l , n o s m o d o s d e e x e r c e r a
I nl.idania, n a m a n e i r a c o m o c a d a u m se r e l a c i o n a c o m s e u m u n d o s u b j e t i v o e t c .

A o invés d e d i m i n u i r , os f e n ô m e n o s p a t o l ó g i c o s se m u l t i p l i c a m . O s q u e
(lltiis c h a m a m a a t e n ç ã o são a p e r d a d e s e n t i d o e m r e l a ç ã o a p r o d u ç õ e s c u l t u r a i s -
quer dizer, as p e s s o a s n ã o c o n s e g u e m a b a r c a r e i n t e r - r e l a c i o n a r as m a n i f e s t a ç õ e s
i n l l u r a i s - , f e n ô m e n o s n o v o s d e a n o m i a s o c i a l - o u seja, as p e s s o a s n ã o r e c o n h e c e m
I validade d a s n o r m a s sociais - e f e n ô m e n o s c o m o p s i c o p a t o l o g i a s , o u seja, d i s t ú r b i o s
• i q u i c o s de diversos tipos q u e i m p e d e m a socialização m a i s o u m e n o s b e m -
aii e d i d a d o s i n d i v í d u o s . Essas p a t o l o g i a s d a s o c i e d a d e m o d e r n a e m s e u c o n j u n t o e
suas c a u s a s se t o r n a m o o b j e t o d a crítica social d e H a b e r m a s .

P a r a ele, esse t i p o d e p a t o l o g i a s u r g e e m v i r t u d e d e u m a e s p é c i e d e i n v a s ã o .
As p a t o l o g i a s m o d e r n a s típicas, as f o r m a s n o v a s d e a l i e n a ç ã o e v i o l ê n c i a s ã o o
i i s u l t a d o da e x p a n s ã o d o s i s t e m a e c o n ô m i c o capitalista e d o s i s t e m a b u r o c r á t i c o
m o d e r n o p a r a a l é m d o â m b i t o e m q u e eles se d e s e n v o l v e m o r i g i n a l m e n t e - isto é,
I â m b i t o d a r e p r o d u ç ã o m a t e r i a l - , d e m o d o q u e esses s i s t e m a s i n v a d e m o u t r o s
Âmbitos d a s o c i e d a d e , cujas f o r m a s d e r e p r o d u ç ã o n ã o p o d e m ser s u b s t i t u í d a s s e m
u i u s a r p a t o l o g i a s e crises. E m o u t r o s t e r m o s , o s i s t e m a e c o n ô m i c o , c h a m a d o p o r
I labermas de sistema dinheiro, e o sistema estatal-burocrático, c h a m a d o de sistema
poder, i n v a d e m a q u e l a p a r t e d a s o c i e d a d e d e n o m i n a d a " m u n d o d a vida", isto é, a
esfera p r i v a d a d a família, d a s relações d e a m i z a d e e d e v i z i n h a n ç a e a esfera p ú b l i c a
i o n s t i t u í d a d e i n s t i t u i ç õ e s e d i s c u s s õ e s c u l t u r a i s e p o l í t i c a s . Esses d o i s c o n c e i t o s

A r e s p e i t o d a i n t e g r a ç ã o e diferenciação d o p r o l e t a r i a d o n o i n t e r i o r da s o c i e d a d e capitalista,
cf. os c a p í t u l o s s o b r e H o r k h e i m e r , Pollock e M a r c u s e neste v o l u m e .

C u r s o livre d e Teoria Crítica 163

f u n d a m e n t a i s d a t e o r i a social de H a b e r m a s s ã o c m g r a n d e p a r t e antagôllii i
1
seja, h á u m a n t a g o n i s m o e n t r e o s i s t e m a ( e n t e n d i d o c o m o a c o m b i n u ç í l n
subsistemas dinheiro e poder) e o m u n d o da vida (entendido c o m o c o m b i n a i •
esfera d a v i d a p r i v a d a e d a esfera p ú b l i c a ) .

Esse a n t a g o n i s m o se d e s e n v o l v e q u a n d o o s i s t e m a c o m e ç a a i n v a d i r c nau rpàl

t o d a s as e s t r u t u r a s d o m u n d o d a v i d a d e m o d o q u e ele, o s i s t e m a , p o s s a e n c o
n o v o s r e c u r s o s p a r a s u a r e p r o d u ç ã o . D e u m l a d o , o s i s t e m a e c o n ô m i c o busi n, Slfl
r a z ã o d e s e u s p r ó p r i o s i m p e r a t i v o s d e a u t o - r e p r o d u ç ã o , m o n e t a r i z a r o m u n d o d(
v i d a , q u e r dizer, t r a n s f o r m a r as r e l a ç õ e s sociais d o m u n d o d a v i d a e m rei
a d o t e m a f o r m a d o d i n h e i r o . D e o u t r o l a d o , o s i s t e m a a d m i n i s t r a t i v o bu |
b u r o c r a t i z a r t o d a s as r e l a ç õ e s s o c i a i s d o m u n d o d a v i d a , e m v i r t u d e dc • U
i m p e r a t i v o s d e c o n t r o l e social e b u s c a d e l e a l d a d e d a p o p u l a ç ã o .

D e u m m o d o o u de o u t r o , os sistemas d i n h e i r o e p o d e r a t u a m c o m o
o r g a n i s m o s b i o l ó g i c o s q u e b u s c a m p r i o r i t a r i a m e n t e satisfazer os s e u s i m p e r a t i v o »
de autoconservação, t r a n s f o r m a n d o o m u n d o da vida e m u m m e r o m e i o ambientl
de o n d e p r o c u r a m retirar cada vez m a i s recursos. Ao m e s m o t e m p o , o próprio
m u n d o d a v i d a d e p e n d e desses s i s t e m a s p a r a se r e p r o d u z i r m a t e r i a l m e n t e . O u scJK,
os s i s t e m a s c u m p r e m s u a s f u n ç õ e s d e r e p r o d u ç ã o m a t e r i a l d a s o c i e d a d e , m a s , aléill
disso, e m c o n s e q ü ê n c i a de seus i m p e r a t i v o s de conservação e r e p r o d u ç ã o ,
e x p a n d e m - s e p a r a a l é m d o â m b i t o m a t e r i a l e a t a c a m os d o m í n i o s d o m u n d o >I.«
vida que n ã o t ê m a ver diretamente c o m questões materiais.

O c o n c e i t o q u e H a b e r m a s forja p a r a c o m p r e e n d e r esse p r o c e s s o t o d o t I
c o n c e i t o d e c o l o n i z a ç ã o s i s t ê m i c a d o m u n d o d a v i d a . O u seja, os s i s t e m a s d i n h e i m
e p o d e r se c o m p o r t a m c o m o s e n h o r e s c o l o n i a i s q u e i n v a d e m d e fora u m a sociedade
t r i b a l , u s u r p a m s e u s r e c u r s o s n a t u r a i s e f o r ç a m os n a t i v o s a a s s i m i l a r as r e g r a s d o
s e n h o r . E m s u m a , o s i s t e m a i n v a d e e c o l o n i z a o m u n d o d a vida. A lógica d a e c o n o m i a
c a p i t a l i s t a e a l ó g i c a d a a d m i n i s t r a ç ã o b u r o c r á t i c a i n t e r v ê m n o s â m b i t o s d a esfera
d a v i d a p r i v a d a e d a v i d a p ú b l i c a , s u b s u m i n d o o q u e é específico desses â m b i t o s d o
m u n d o d a v i d a s o b s e u s c ó d i g o s , o u seja, o c ó d i g o d o d i n h e i r o e o c ó d i g o d o p o d e i ,
q u e s ã o f o r m a s e m p o b r e c i d a s e p a d r o n i z a d a s d e l i n g u a g e m . N ã o é p r e c i s o falar
1
m u i t o p a r a c o m p r a r o u v e n d e r u m a m e r c a d o r i a . O d i n h e i r o e suas forma ,
s u b s t i t u t i v a s falam p o r si, e n o r m a l m e n t e as p e s s o a s são a j u s t a d a s a esse c ó d i g o para
r e a l i z a r u m a série d e f i n a l i d a d e s n e c e s s á r i a s p a r a a s u a c o n s e r v a ç ã o m a t e r i a l . Algo
s e m e l h a n t e se a p l i c a a o s t r â m i t e s d e d o c u m e n t o s e m r e p a r t i ç õ e s p ú b l i c a s .

N o m o m e n t o e m q u e a t e n d ê n c i a d e e s t r u t u r a r t o d a s as r e l a ç õ e s sociais p o r
m e i o desses códigos g a n h a u m a d i m e n s ã o avassaladora, são inevitáveis, para
H a b e r m a s , as p a t o l o g i a s sociais. N o e n t a n t o , essas p a t o l o g i a s s ã o o r e s u l t a d o m a i s

164 Papirus Editora

I i |\ c i l . i i o l o n i z a ç á o s i s t ê m i c a , n ã o os ú n i c o s eleitos oleia. Na vicia c o t i d i a n a , s a o
[li i|(lenles t a m b é m m u i t í s s i m a s f o r m a s d e reificação, m a i s i n t e r m i t e n t e s e d i s p e r s a s .

Essas p a t o l o g i a s e f o r m a s d e reificação s u r g e m j u s t a m e n t e p o r q u e o m u n d o
. 1 1 vida t e m sua p r ó p r i a lógica d e r e p r o d u ç ã o , q u e n ã o p o d e ser s u b s t i t u í d a p e l a
(
i i da r e p r o d u ç ã o d o s s i s t e m a s d i n h e i r o e p o d e r . A l ó g i c a d e r e p r o d u ç ã o d o
11 d o da vida m o d e r n o é, s e g u n d o H a b e r m a s , a lógica d o e n t e n d i m e n t o r e c í p r o c o
i ni i e os d i v e r s o s s u j e i t o s d a i n t e r a ç ã o social, e n t r e os s u j e i t o s e n v o l v i d o s e m a ç õ e s
t o i m m i c a t i v a s . D e s s a m a n e i r a , a r a c i o n a l i d a d e d o e n t e n d i m e n t o r e c í p r o c o , q u e se
i f r l u a a t r a v é s d a l i n g u a g e m , serve t a m b é m d e c r i t é r i o p a r a verificar f o r m a s d e
(t.ilolngia social, d e u m l a d o , e f o r m a s d e v i d a e m a n c i p a d a , d e o u t r o . Isso significa,
portanto, que a racionalidade do entendimento t a m b é m dá a chave para u m conceito
lli lei m i n a d o d e e m a n c i p a ç ã o , d e v i d a e m a n c i p a d a .

C o m isso, c h e g a m o s a u m p o n t o c r u c i a l d e t o d a crítica d a s o c i e d a d e , o u seja,

11 •<• i q u e c r i t é r i o s s u s t e n t a m a crítica, a q u e p a d r õ e s d e m e d i d a o t e ó r i c o p o d e
i li o r r e r p a r a c r i t i c a r f e n ô m e n o s p a t o l ó g i c o s e s u a s c a u s a s . A p r e o c u p a ç ã o c o m a
l u n d a m e n t a ç ã o d o s c r i t é r i o s n o r m a t i v o s p e l o s q u a i s se p o d e m j u l g a r p r o c e s s o s
jBiancipatórios o u regressivos é u m a característica d o p e n s a m e n t o h a b e r m a s i a n o .
Ptira ele, o m a r x i s m o s e m p r e p a d e c e u d e u m a falta d e t r a n s p a r ê n c i a s o b r e s e u s
princípios normativos, apesar de sempre colocar e m perspectiva a emancipação
I ii i m a n a . Essa o b s c u r i d a d e n o r m a t i v a teria t i d o c o n s e q ü ê n c i a s políticas graves, c o m o
tuna r e l a ç ã o p u r a m e n t e i n s t r u m e n t a l c o m a d e m o c r a c i a e o s d i r e i t o s h u m a n o s .

P o r o u t r o l a d o , os p a d r õ e s n o r m a t i v o s d a crítica d e v e m ser r e t i r a d o s d a p r ó p r i a
realidade, pois, d o c o n t r á r i o , ela estaria c o n t r a p o n d o à realidade u m a idéia irrealizável.
(.hier dizer, o q u e t e r í a m o s nesse caso seria u m u t o p i s m o q u e , n o m a i s das vezes, só
leva à satisfação m e r a m e n t e subjetiva c o n s i g o m e s m o - c o m o n o s falsos b e a t o s - o u
I resignação d i a n t e d e u m a r e a l i d a d e s u p o s t a m e n t e i m u t á v e l . D e u m m o d o o u d e
n u t r o , a fuga d a r e a l i d a d e t e m p o r efeito u m reforço d a r e a l i d a d e , o u seja, os critérios
i la Teoria Crítica d a sociedade d e v e m ser de a l g u m m o d o i m a n e n t e s a o objeto criticado,
isto é, à s o c i e d a d e . A crítica t e m d e e n c o n t r a r a p o i o n a p r ó p r i a r e a l i d a d e criticada. Ela
não é s o m e n t e u m a n e g a ç ã o d a r e a l i d a d e , m a s u m a n e g a ç ã o f u n d a m e n t a d a n a s
possibilidades reais d e e m a n c i p a ç ã o e justiça inscritas n a r e a l i d a d e .

Ação comunicativa

O conceito central da teoria de H a b e r m a s , o de ação comunicativa, procura

realizar essa tarefa d e ser u m a fonte d e critérios n o r m a t i v o s q u e estão e n r a i z a d o s na

C u r s o livre d e Teoria Crítica 165

práxis social e vinculados às potencialidades de uma vida emani ipada, I s s o porque t
p o r m e i o das ações c o m u n i c a t i v a s q u e o m u n d o da vida se r e p r o d u z em sua dimensão
s i m b ó l i c a , n ã o - m a t e r i a l . R e f i r o - m e à d i m e n s ã o q u e a b a r c a as c r i a ç õ e s c u l t u r a i s , ai
f o r m a s sociais d e s o l i d a r i e d a d e e as e s t r u t u r a s d a p e r s o n a l i d a d e i n d i v i d u a b - - '

M a s o q u e v e m a ser esse c o n c e i t o c e n t r a l d e a ç ã o c o m u n i c a t i v a ? A expressa, i

p a r e c e c o n t e r algo d e p a r a d o x a l , já q u e se p o d e s u p o r q u e , a o a g i r m o s , n ã o n o s
c o m u n i c a m o s , e, a o n o s c o m u n i c a r m o s , n ã o a g i m o s . M a s essa i m p r e s s ã o se dissolve
q u a n d o a n o ç ã o s u b j a c e n t e d e a ç ã o é a l a r g a d a . P o r a ç ã o n ã o se e n t e n d e s o m e n t e a
i n t e r v e n ç ã o q u e p o d e m o s realizar n o m u n d o d a s coisas, n ã o se e n t e n d e u m " f a z e i " ,
c o m o serrar u m a m a d e i r a o u a p e r t a r u m b o t ã o . P o r a ç ã o p o d e m o s e n t e n d e r t a m b é m
a r e a l i z a ç ã o d e r e l a ç õ e s sociais e m u m a i n t e r - a ç ã o . D e s s a p e r s p e c t i v a , é p r e c i s o
i n c l u i r a c o m u n i c a ç ã o c o m o e l e m e n t o essencial d a a ç ã o , já q u e n e n h u m a i n t e r a ç ã o
social é possível s e m a c o m u n i c a ç ã o .

No entanto, é importante t a m b é m o m o d o de entender aqui o termo

" c o m u n i c a ç ã o " . N ã o se t r a t a d e u m a m e r a t r o c a d e i n f o r m a ç õ e s a r e s p e i t o d e a l g u m a
c o i s a n o m u n d o . C o m u n i c a ç ã o a q u i se r e f e r e a a l g o m a i s e x i g e n t e . A a ç ã o
c o m u n i c a t i v a é u m t i p o d e i n t e r a ç ã o social e m q u e o m e i o d e c o o r d e n a r o s d i v e r s o s
objetivos das pessoas envolvidas é d a d o n a forma de u m a c o r d o racional, do
e n t e n d i m e n t o r e c í p r o c o e n t r e as p a r t e s , a l c a n ç a d o a t r a v é s d a l i n g u a g e m . O u seja,
c o m u n i c a ç ã o se refere a u m d e t e r m i n a d o u s o d a l i n g u a g e m , o u s o d a l i n g u a g e m
o r i e n t a d o p a r a a o b t e n ç ã o d e u m a c o r d o , d e u m c o n s e n s o . Esse u s o n ã o d e v e s e r
e n t e n d i d o , n o e n t a n t o , e m u m s e n t i d o i n s t r u m e n t a l , c o m o se a c o m u n i c a ç ã o para
u m c o n s e n s o fosse a p e n a s u m m e i o p a r a a r e a l i z a ç ã o d a s finalidades d e cada
p a r t i c i p a n t e d a i n t e r a ç ã o social, p o i s , a o t e n t a r fazer u s o d a l i n g u a g e m e m u m a
a t i t u d e c o m u n i c a t i v a ( t a m b é m c h a m a d a d e a t i t u d e p e r f o r m a t i v a ) , o s falantes t ê m
d e r e s t r i n g i r s e u s p l a n o s i n d i v i d u a i s às c o n d i ç õ e s n e c e s s á r i a s p a r a o e n t e n d i m e n t o
mútuo.

N e s s e a s p e c t o , a a ç ã o c o m u n i c a t i v a se d i s t i n g u e d a a ç ã o e s t r a t é g i c a e da
i n s t r u m e n t a l . Esses d o i s ú l t i m o s t i p o s se c a r a c t e r i z a m p e l o fato d e o s a t o r e s , isto é,
as p e s s o a s e n v o l v i d a s n a a ç ã o , b u s c a r e m a n t e s d e t u d o o s u c e s s o , a r e a l i z a ç ã o d o fim
d e s e j a d o . A s s i m , p o d e - s e d i z e r q u e , se t a i s f o r m a s d e a ç ã o s ã o r a c i o n a i s , s u a
r a c i o n a l i d a d e está c e n t r a d a n a idéia d a eficácia d o s m e i o s u t i l i z a d o s p a r a a o b t e n ç ã o
d o fim, o u seja, u m a a ç ã o é t a n t o m a i s r a c i o n a l q u a n t o m a i s eficiente é o m e i o
a d o t a d o p a r a se o b t e r o fim a l m e j a d o . D i z e m o s e n t ã o q u e se t r a t a d e u m a " a ç ã o
r a c i o n a l c o m r e s p e i t o a fins". A a ç ã o i n s t r u m e n t a l e a e s t r a t é g i c a s ó se d i f e r e n c i a m
p e l o fato d e q u e , n a p r i m e i r a , o sujeito lida n ã o d i r e t a m e n t e c o m o u t r o sujeito, m a s
c o m as coisas, c o m o n a f a b r i c a ç ã o d e u m p r o d u t o e m q u e se utiliza u m a coisa

166 Papirus Editora

 I H M I p a u o b t e r iiin.i o u t r a coisa, a o p a s s o q u e , na s e g u n d a , o s u j e i t o b u s c a
H M li i>m i,ii' o o u t r o s u j e i t o p a r a q u e este realize a t o s n e c e s s á r i o s p a r a a o b t e n ç ã o d o
I H l i i n , o u seja, o o u t r o é v i s t o t ã o - s o m e n t e c o m o m e i o p a r a a l c a n ç a r u m fim. 3

A r a c i o n a l i d a d e desses t i p o s d e a ç ã o é p r ó p r i a d o s s i s t e m a s d i n h e i r o e p o d e r ,
B i i I n eles se f o r m a m c o m o u m e n c a d e a m e n t o d e a ç õ e s i n s t r u m e n t a i s e e s t r a t é g i c a s ,
l'iii'ém, é i m p o r t a n t e n ã o e s q u e c e r q u e , n o s i s t e m a , c a d a a ç ã o t e m u m a f u n ç ã o n a
i • pi i n i u ç ã o d o s i s t e m a p o r i n t e i r o , d e m o d o q u e , n o m a i s d a s v e z e s , a i n t e n ç ã o d o
al m , a r e a l i z a ç ã o d e d e t e r m i n a d o fim, já é c o n d i c i o n a d a d e t a l m a n e i r a q u e a
finalidade é s o m e n t e m e i o p a r a a r e p r o d u ç ã o d o s i s t e m a , o u seja, o s i s t e m a i n v e r t e
I I elação m e i o s e fins d a d a n a p e r s p e c t i v a i n d i v i d u a l . O q u e é fim p a r a o s i n d i v í d u o s
i torna m e i o de u m sistema cujo alcance extrapola a perspectiva individual.

Por s u a vez, o m u n d o d a v i d a se r e p r o d u z , s e g u n d o H a b e r m a s , p o r m e i o d e
•Iterações c o m u n i c a t i v a s . S u a lógica p r ó p r i a seria a d a r a c i o n a l i d a d e c o m u n i c a t i v a .
M i p r a x i s social c o t i d i a n a , a a ç ã o c o m u n i c a t i v a se d á d e m a n e i r a i m p l í c i t a , c o m
um sim o u n ã o tácitos sobre os m a i s diversos p r o f e r i m e n t o s q u e e f e t u a m o s o u
i i u v i m o s a t o d o instante. M a s t o d a vez q u e aceitamos o p r o f e r i m e n t o de alguém,
ai e i i a m o s q u e e s s e p r o f e r i m e n t o t e m u m a c e r t a v a l i d a d e , o u seja, quando
I li r e v e m o s c o i s a s e n a r r a m o s a c o n t e c i m e n t o s , q u a n d o a f i r m a m o s q u e a l g o é
insto o u i n j u s t o o u q u a n d o e x p r e s s a m o s n o s s o s s e n t i m e n t o s a r e s p e i t o d e a l g o ,
l a / e m o s , m e s m o s e m t e r m o s consciência disso, reivindicações o u pretensões de
validade, q u e r e q u e r e m d o o u v i n t e u m a t o m a d a de p o s i ç ã o . A a n u ê n c i a o u a
i e p r o v a ç ã o d e l e t e m efeitos p a r a o p r o s s e g u i m e n t o d a i n t e r a ç ã o .

Dessa m a n e i r a , estabelecemos u m a relação interpessoal u n i c a m e n t e através

de palavras. R e a l i z a m o s algo s i m p l e s m e n t e falando, n o s s o s p r o f e r i m e n t o s são a t o s d e
lala. O s a t o s d e fala b u s c a m d o o u v i n t e o r e c o n h e c i m e n t o d a v a l i d a d e d o q u e é d i t o .
( g u a n d o a f i r m a m o s , e x p l i c a m o s , d e s c r e v e m o s algo, está a s s o c i a d a à n o s s a fala u m a
p r e t e n s ã o d e q u e o q u e é d i t o é v e r d a d e i r o , c o m o n a frase "A r o s a é vermelha". Se
d i s s é s s e m o s " é v e r d a d e q u e a rosa é vermelha", e s t a r í a m o s a p e n a s r e s s a l t a n d o o s e n t i d o

1. Trata-se d e u m a tipologia, c o m a qual o teórico social p o d e analisar as ações sociais concretas,

m a s é r a r o q u e estas se m o s t r e m c o m o a b s o l u t a m e n t e c o m u n i c a t i v a s o u c o m o a b s o l u t a m e n t e
estratégicas. N o m a i s das vezes, os m o m e n t o s q u e c o n s t i t u e m a série t e m p o r a l da ação p o d e m
a p r e s e n t a r u m a a l t e r n a ç ã o e até m e s m o u m a s i m u l t a n e i d a d e d e e s t r u t u r a s p r ó p r i a s aos dois
t i p o s d e a ç ã o , já q u e , p o r e x e m p l o , u m a t o r q u e se o r i e n t a p a r a o e n t e n d i m e n t o p o d e passar
a se o r i e n t a r p a r a o sucesso, ao p a s s o q u e seu p a r c e i r o de i n t e r a ç ã o c o n t i n u a na p r i m e i r a
o r i e n t a ç ã o . Só q u e , p a r a u m a análise conceituai, o teórico t e m de "exagerar", isto é, estabelecer
u m m o d e l o p u r o , n o i n t e r i o r d o qual vai d e s t a c a n d o suas e s t r u t u r a s e sua lógica i n t e r n a , e m
oposição a outro modelo.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 167

C o m u n i c a t i v o ( o u p e r f o r m a l i v o , na t e r m i n o l o g i a cie I l a h e r n i a s ) d o a l o d e l.il.i
P r e t e n d e m o s q u e o o u v i n t e aceite a v e r d a d e cio d i t o . P m s u m a , l e v a n t a m o s u m a
p r e t e n s ã o de v e r d a d e . Q u a n d o fazemos p r o m e s s a s , p e d i d o s , e x i g ê n c i a s , exortas<><
etc. a a l g u é m , t a m b é m l e v a n t a m o s u m a p r e t e n s ã o d e v a l i d a d e p a r a o q u e é d i t o , m a l
diferente d a v e r d a d e . Se e x o r t a m o s a l g u é m c o m a frase " n ã o j o g u e lixo n a rua", estan li it
a s s o c i a n d o a p r e t e n s ã o d e q u e o d i t o é c o r r e t o e m u m a s p e c t o n o r m a t i v o o u q u e , pell >
m e n o s , c o r r e s p o n d e a u m c o n t e x t o n o r m a t i v o c o n s i d e r a d o l e g í t i m o . A p r e t e n s ã o em
q u e s t ã o é a d a c o r r e ç ã o n o r m a t i v a . P o r fim, p o d e m o s t a m b é m revelar i n t e n ç õ e s ,
s e n t i m e n t o s , v i v ê n c i a s subjetivas, c o m o n a frase " t e n h o m e d o d e viajar d e avião".
N e s s e caso, o a t o d e fala l e v a n t a u m a p r e t e n s ã o d e s i n c e r i d a d e p a r a o q u e é d i t o .

C e r t a m e n t e , o f a l a n t e p o d e n e m m e s m o p e r c e b e r q u e está l e v a n t a n d o u m a
p r e t e n s ã o d e v a l i d a d e a o q u e diz. Q u e r dizer, ele p o d e n e m m e s m o e s t a r c o m a
intenção p l e n a m e n t e consciente de erguer u m a pretensão de validade. É a partir do
outro, do ouvinte, que geralmente t o m a m o s consciência de q u e reivindicamos
v a l i d a d e p a r a o q u e d i s s e m o s , e isso s o b r e t u d o q u a n d o o o u v i n t e n o s v e m c o m u m
" n ã o " . A c o m p r e e n s ã o d o s i g n i f i c a d o d o a t o d e fala só se realiza n o o u v i n t e q u a n d o
ele c o m p r e e n d e q u e p r e t e n s ã o d e v a l i d a d e está s e n d o e r g u i d a p e l o a t o d e fala e e m
q u e c o n d i ç õ e s ela é a c e i t á v e l .

P a r a H a b e r m a s , a q u e l a s três p r e t e n s õ e s d e v a l i d a d e - d e v e r d a d e , d e c o r r e ç ã o
n o r m a t i v a e d e s i n c e r i d a d e - s ã o u n i v e r s a i s e c o - o r i g i n á r i a s , isto é, elas se a p l i c a m
a t o d o a t o d e fala e n ã o p o d e m ser d e r i v a d a s u m a d a o u t r a . E m seu c o n j u n t o ,
f o r m a m a b a s e d e v a l i d a d e d e t o d o a t o d e fala, o u seja, u m m e s m o a t o d e fala p o d e
ser q u e s t i o n a d o n o q u e se r e f e r e a o s t r ê s a s p e c t o s . Isso n ã o significa q u e t o d o s os
a t o s d e fala s e j a m d a m e s m a n a t u r e z a . N o s casos n o r m a i s , u m a d e s c r i ç ã o r e i v i n d i c a ,
e m primeira linha, a v e r d a d e c o m o validade, u m a exortação, a correção normativa,
u m a c o n f i s s ã o , a s i n c e r i d a d e . M a s a i n d a q u e o falante p o s s a e c o n s i g a r e a l ç a r o
s e n t i d o c o m u n i c a t i v o d o q u e diz, isto é, d e i x a n d o c l a r o q u e o b j e t i v a u m a c o r d o
sobre a verdade, sobre a correção normativa ou sobre a sinceridade, o ouvinte,
m e s m o r e c o n h e c e n d o o s e n t i d o q u e o f a l a n t e q u e r enfatizar, p o d e n ã o c o n c o r d a r
c o m o a t o d e fala, c o n f o r m e u m o u t r o a s p e c t o d e v a l i d a d e , p o i s p a r a ele é esse o u t r o
aspecto que é relevante p a r a a interação.

P o r e x e m p l o , u m p r o f e s s o r diz a u m d e s e u s a l u n o s : " V á p e g a r u m c o p o de
á g u a p a r a m i m " . S e o e s t u d a n t e n ã o e n t e n d e isso a p e n a s c o m o u m i m p e r a t i v o , u m a
o r d e m s e m m a i s b a s e a d a e m u m p o d e r d e s a n ç ã o , m a s c o m o u m a t o d e fala r e a l i z a d o
em u m a atitude comunicativa, orientada para o entendimento, então, pode
q u e s t i o n a r o a t o d e fala e m c a d a u m d a q u e l e s a s p e c t o s d e v a l i d a d e . Ele p o d e se
r e c u s a r a b u s c a r o c o p o d e á g u a , c o n s i d e r a n d o q u e n ã o é j u s t o ser t r a t a d o c o m o u m

HiH l'íipims Editora

. m e u fiado ( p r e t e n s ã o de c o r r e ç ã o n o r m a t i v a ) , q u e o p r o f e s s o r t e m a i n t e n ç ã o
§1 nilii de h u m i l h á - l o na frente d o s colegas ( p r e t e n s ã o d e s i n c e r i d a d e ) o u q u e o
o i i g n o r a q u e a f a c u l d a d e está s e m á g u a , de m o d o q u e o p e d i d o se a p o i a e m
pi ii e p ç á o f a l s a d a r e a l i d a d e ( p r e t e n s ã o d e v e r d a d e ) .

O q u e vale p a r a esse e x e m p l o se e s t e n d e a t o d o s a t o s de fala. T u d o o q u e é d i t o

i i i i a t i t u d e c o m u n i c a t i v a a c a b a se r e f e r i n d o à v e r d a d e , à c o r r e ç ã o n o r m a t i v a e à
i Lide, p o i s , e m t o d a s i t u a ç ã o e m q u e se e n c o n t r a m o s p a r t i c i p a n t e s d a
m i i iição, são inevitáveis as referências ao m u n d o o b j e t i v o , f o r m a d o p e l a t o t a l i d a d e
i | | i oisas e d o s f a t o s , a o m u n d o s o c i a l , f o r m a d o p e l a t o t a l i d a d e d a s n o r m a s
li lideradas l e g í t i m a s , e a o m u n d o s u b j e t i v o , f o r m a d o pela t o t a l i d a d e d a s v i v ê n c i a s
i ...iis, ao q u a l c a d a u m t e m u m a c e s s o p r i v i l e g i a d o . D a d a s essas t r ê s r e f e r ê n c i a s
n u \ iláveis d e c a d a a t o d e fala, ele p o d e ser q u e s t i o n a d o e m r e l a ç ã o seja à v e r d a d e
p.ii.i o m u n d o o b j e t i v o , seja à c o r r e ç ã o n o r m a t i v a p a r a o m u n d o social, seja à

l l l l i ei idade para o m u n d o subjetivo.

lissas t r ê s p r e t e n s õ e s u n i v e r s a i s f o r m a m , c o m o disse, a b a s e d e v a l i d a d e d e
indo a l o d e fala. É o r e c o n h e c i m e n t o i n t e r s u b j e t i v o d e s s a b a s e d e v a l i d a d e q u e t e m
l e l e v â n c i a p a r a a i n t e r a ç ã o social, p o i s , j u n t a m e n t e c o m esse r e c o n h e c i m e n t o , é
titula a g a r a n t i a d e q u e o falante vai d a r r a z õ e s p a r a a v a l i d a d e q u e a s s o c i o u à s u a fala.
f e o falante, p o r e x e m p l o , p r e t e n d e v a l i d a d e p a r a u m a n o r m a e, e m s e g u i d a ele
p i o p r i o n ã o o b s e r v a essa n o r m a , e n t ã o n o s s e n t i m o s a u t o r i z a d o s a exigir r a z õ e s
para o seu a t o . E o m e s m o se aplica a o o u v i n t e , caso t e n h a a c e i t a d o a v a l i d a d e d a
i n u m a . O u seja, o a c o r d o c o m u n i c a t i v o p o d e c o o r d e n a r a a ç ã o d e d i v e r s o s a t o r e s ,
p o r q u e está i n t r i n s e c a m e n t e l i g a d o a u m a m o t i v a ç ã o r a c i o n a l , isto é, os a t o r e s e s t ã o
m o t i v a d o s r a c i o n a l m e n t e p a r a s e g u i r o c u r s o d a a ç ã o q u e se b a s e i a n o c o n s e n s o , já
q u e h á a g a r a n t i a d e q u e o i n t e r l o c u t o r vai dar, se for o caso, r a z õ e s p a r a o q u e disse.

E v i d e n t e m e n t e , t o d o esse p r o c e s s o se baseia e m regras i m p l í c i t a s , a r e s p e i t o

das q u a i s os falantes e os o u v i n t e s p o s s u e m u m saber i n t u i t i v o e p r é - t e ó r i c o . É c o m o
se fosse u m a g r a m á t i c a , cujas regras u s a m o s a t o d o m o m e n t o m a s q u e só t r a n s p a r e c e m
q u a n d o p e r c e b e m o s a l g u m a falha. O q u e o t e ó r i c o faz é j u s t a m e n t e r e c o n s t r u i r essas
regras, r e c o n s t r u i r o m o d o e os e l e m e n t o s q u e as c o n s t i t u e m . D a í H a b e r m a s c h a m a r
sua Teoria Crítica d a s o c i e d a d e d e "reconstrutiva". V o l t a r e m o s a isso.

Mundo da vida e discurso

0 fato d e os h á b i t o s sociais e as r e s p o s t a s a u t o m á t i c a s f o r m a r e m u m a m a s s a
c o n s t a n t e n a s p r á t i c a s c o m u n i c a t i v a s c o t i d i a n a s n ã o significa q u e eles n ã o t e n h a m

C u r s o livre d e Teoria Crítica 169

u m a base de validade, isto é, q u e n a u se n u t r a m de alguma foi i n a de reconhei imetito
P r o v a d i s s o é esses h á b i t o s p o d e r e m ser q u e s t i o n a d o s a qualquer momento, Elea
p e r d e m e n t ã o s u a e v i d ê n c i a " n a t u r a l " e se t o r n a m o b j e t o d e d i s c u s s ã o a r e s p e i t o dl
s u a v a l i d a d e , isto, é, p a s s a - s e a d i s c u t i r p o r q u e r a z ã o d e v e m ser a c e i t o s e praticado-,
É n e s s e s e n t i d o q u e a a ç ã o c o m u n i c a t i v a r e p r o d u z o m u n d o d a v i d a , p o i s esii
c o n c e i t o n ã o se refere s o m e n t e às esferas p r i v a d a e p ú b l i c a d a s o c i e d a d e , ele també] 11
se refere a u m c o n t e x t o i n e s g o t á v e l d e c o n v i c ç õ e s c o m p a r t i l h a d a s , n o , q u a l se realiza
determinada interação.

D i t o d e o u t r o m o d o , n e n h u m a t o d e fala é feito e m a b s t r a t o , m a s e m u m
d e t e r m i n a d o c o n t e x t o i m p l í c i t o , q u e d á significação a o q u e é d i t o . T o m e m o s u m a
frase c o m o " v o c ê faz m u i t a falta". D a d o o c o n t e x t o , ela p o d e v a r i a r d e s e n t i d o ,
a p o i a n d o - s e e m u m a r e d e d e r e f e r ê n c i a s significativas d e t e r m i n a d a s p e l a s i t u a ç ã o .
P o r e x e m p l o , " v o c ê faz m u i t a falta" e x p r e s s a algo m u i t o d i f e r e n t e q u a n d o d i t o e m
u m j o g o d e f u t e b o l o u e m u m r e e n c o n t r o d e a m i g o s . S a b e m o s o q u e significa
"falta" n u m caso o u n o o u t r o , e s a b e m o s i n t u i t i v a m e n t e t a m b é m o q u e o
proferimento p o d e desencadear.

M a s esses c o n t e x t o s b e m d e t e r m i n a d o s p o d e m ser r e c o b e r t o s p o r m a i s u m a
c a m a d a d e significações i m p l í c i t a s , e x p a n d i n d o o h o r i z o n t e e o f u n d o d o c o n t e x t o .
P o r e x e m p l o , n o c a s o d o j o g o d e futebol, a frase se refere a c e r t o s p a d r õ e s d e l e a l d a d e
q u e n ã o p o d e m ser f e r i d o s , m e s m o q u e seja g r a n d e o d e s e j o d e v i t ó r i a . N o c a s o d o
reencontro de amigos, justamente a padrões de amizade e solidariedade. E o contexto
se a m p l i a a i n d a m a i s , c o n f o r m e se c o n c a t e n e m c o m o u t r a s t r a d i ç õ e s c u l t u r a i s e
sociais. N o l i m i t e , o a t o d e fala a c a b a se r e f e r i n d o a t o d o u m m u n d o d e significações
e remissões, q u e é sempre dado j u n t o c o m o proferimento, e sempre de maneira
implícita.

D e m o d o m a i s geral, n a p r á t i c a c o m u n i c a t i v a d o d i a - a - d i a , só p o d e m o s
realizar e n t e n d i m e n t o s m ú t u o s sobre pretensões de validade n a base de u m
c o n j u n t o e n o r m e d e convicções c o m u n s n ã o - p r o b l e m á t i c a s , n a base de u m saber
familiar e m princípio inquestionável, n a base de u m d o m í n i o de u m s e m - n ú m e r o
d e r e g r a s c c a p a c i d a d e s d a s q u a i s n e m t e m o s c o n s c i ê n c i a q u e p o s s u í m o s a n ã o ser
q u e s e j a m p r o b l e m a t i z a d a s e m a l g u m m o m e n t o . Esse c o n j u n t o d e certezas
i m e d i a t a s , q u e f o r m a u m a t o t a l i d a d e e n ã o se deixa p e n e t r a r a b e l - p r a z e r , é o m u n d o
d a v i d a , isto é, u m s a b e r q u e serve d e p a n o d e f u n d o , q u e se d e s l o c a c o n f o r m e se
t e m a t i z a este o u a q u e l e d e s e u s c o m p o n e n t e s , m a s q u e , c o m o m u n d o , n ã o p o d e se
t o r n a r o b j e t o d e d i s c u s s ã o p a r a os p a r t i c i p a n t e s d a i n t e r a ç ã o . N ã o - t e m á t i c o , i n t u i t i v o ,
implícito, pré-reflexivo, o saber de fundo constituído pelo m u n d o da vida contrasta
c o m a q u e l e s a b e r q u e é t e m a t i z a d o e x p l i c i t a m e n t e e m a t o s d e fala, p a r a o q u a l os

170 Papirus Editora

Ilmi o i 1. 1111 ,i 111 o u c o n l c s t a i n a v a l i d a d e . Nesse s e n t i d o , p o d e se d i z e r cpie tal sabei'
• I• l u n d u n e m m e s m o é u m s a b e r e m s e n t i d o e s t r i t o , já q u e n ã o se p o d e verificar
M i i i l . i d a d e o u v e r d a d e . E, n a m e d i d a e m q u e u m d e s e u s c o m p o n e n t e s é
1111 iai i / a d o , t o r n a n d o - s e c a n d i d a t o a s a b e r e s t r i t o , já n ã o faz p a r t e , n e s s e m o m e n t o ,
iln saber d e f u n d o d o m u n d o d a v i d a . E, u m a v e z q u e v o l t e a ser u m e l e m e n t o
rotineiro, retorna ao m u n d o da vida.

( ) s a b e r d e f u n d o q u e c o n s t i t u i o m u n d o d a v i d a p o d e ser a n a l i s a d o s e g u n d o
llfs a s p e c t o s f u n d a m e n t a i s . O m u n d o d a v i d a se e s t r u t u r a d e m o d o g e r a l e m t r ê s
I lonentes: a cultura, a sociedade e a personalidade. A cultura é entendida c o m o
• • i c e r v o d e s a b e r a q u e os a t o r e s r e c o r r e m c o m o f o n t e d e i n t e r p r e t a ç õ e s p a r a as
mais d i v e r s a s s i t u a ç õ e s ; a s o c i e d a d e é t o m a d a n o s e n t i d o e s t r i t o d e c o n j u n t o d e
I H d e i is c o n s i d e r a d a s l e g í t i m a s , c o m b a s e n a s q u a i s se c r i a m s o l i d a r i e d a d e s ; e a
personalidade, e n t e n d i d a c o m o conjunto de c o m p e t ê n c i a s adquiridas pelos
i n d i v í d u o s e m p r o c e s s o s d e a p r e n d i z a g e m , as q u a i s p e r m i t e m f o r m a r a i d e n t i d a d e
p e s s o a l e m p r o c e s s o s d e i n t e r a ç ã o . A o m e s m o t e m p o e m q u e esses c o m p o n e n t e s
e s t r u t u r a i s s e r v e m d e r e c u r s o s p a r a os p r o c e s s o s c o m u n i c a t i v o s c o t i d i a n o s , esses
mesmos processos os r e p r o d u z e m .

Esse p r o c e s s o c i r c u l a r q u e se d á e n t r e o m u n d o d a v i d a e a a ç ã o c o m u n i c a t i v a
1 1 institui a r e p r o d u ç ã o s i m b ó l i c a d o m u n d o d a vida. C o n f o r m e os três c o m p o n e n t e s ,
ela se efetua c o m o r e p r o d u ç ã o c u l t u r a l , c o m o i n t e g r a ç ã o social e c o m o s o c i a l i z a ç ã o
d o s indivíduos. As interações comunicativas estão s e m p r e inseridas n o interior d o
i n u n d o d a v i d a e s t r u t u r a d o s i m b o l i c a m e n t e , d e cujos e l e m e n t o s os a g e n t e s n ã o
p o d e m se d i s p o r a b e l - p r a z e r ; a o c o n t r á r i o , eles m e s m o s s ã o p r o d u t o s d e t r a d i ç õ e s
i ulturais, de g r u p o s a q u e p e r t e n c e m , de processos de socialização e a p r e n d i z a g e m .

N a t u r a l m e n t e , o processo circular entre o m u n d o da vida c a ação c o m u -

nicativa n ã o d e v e ser e n t e n d i d o c o m o a r e p e t i ç ã o d o m e s m o , já q u e o c o m p o n e n t e
d o m u n d o d a v i d a q u e p a s s a a ser t e m a t i z a d o n a a ç ã o c o m u n i c a t i v a e volta a o
m u n d o d a v i d a p o d e ser n ã o só r e v i g o r a d o , m a s t a m b é m t r a n s f o r m a d o p o r e v e n t u a i s
d i s c u s s õ e s . E m g e r a l , tal c o m p o n e n t e p a s s a a ser t e m a t i z a d o q u a n d o sua v a l i d a d e ,
r e c l a m a d a e m u m a t o d e fala, é r e j e i t a d a o u p r o b l e m a t i z a d a p o r u m o u m a i s
participantes da interação.

A s s i m , se o falante p r e t e n d e a i n d a se m a n t e r e m u m a o r i e n t a ç ã o c o m u -
n i c a t i v a , ele t e m d e d a r r a z õ e s p a r a m o s t r a r q u e o q u e diz m e r e c e r e c o n h e c i m e n t o
d o o u t r o , o u seja, c o m e ç a a q u i u m p r o c e s s o d e a r g u m e n t a ç ã o , d e d i s c u s s ã o . O
t e r m o " d i s c u r s o " (Diskurs), q u e c a r a c t e r i z a esse p r o c e s s o d e a r g u m e n t a ç ã o , n ã o
d e v e ser e n t e n d i d o n o s e n t i d o h a b i t u a l d e u m a p e ç a o r a t ó r i a d i a n t e d e u m p ú b l i c o

C u r s o livre d e Teoria Crítica 171

n e m a i n d a n o s e n t i d o d e u m s i s t e m a d e e n u n c i a d o s , ideias e valores m a i s ou m e n o s
coerentes e c o m p a r t i l h a d o s p o r várias pessoas de u m a m e s m a área cultural, c o m o
nas expressões "discurso da antropologia", "discurso da psiquiatria" etc. Discurso
significa, d e m o d o geral, a d i s c u s s ã o b a s e a d a e m a r g u m e n t o s s o b r e a v a l i d a d e de
u m p r o f e r i m e n t o , s e n d o q u e essa d i s c u s s ã o se c o n s t i t u i d e r e g r a s c o m p a r t i l h a d a s .

O q u e é i m p o r t a n t e p a r a H a b e r m a s a g o r a n ã o é t a n t o o r e s u l t a d o desse
p r o c e s s o , isto é, o c o n s e n s o o u d i s s e n s o , m a s j u s t a m e n t e as c o n d i ç õ e s e as r e g r a s
q u e t o d o s p r e c i s a m s u p o r p a r a q u e seja p o s s í v e l o b t e r u m c o n s e n s o . É n e s s a s
c o n d i ç õ e s e n e s s a s r e g r a s , nesses p r o c e d i m e n t o s d a a r g u m e n t a ç ã o , q u e está o c e r n e
d a r a c i o n a l i d a d e c o m u n i c a t i v a . T o d a s essas c o n d i ç õ e s e r e g r a s t ê m d e a s s e g u r a r
i d e a l m e n t e a a u s ê n c i a d e t o d a c o e r ç ã o , fora a q u e l a d o m e l h o r a r g u m e n t o . P o r t a n t o ,
t o d a vez q u e e n t r a m o s p a r a valer e m u m p r o c e s s o a r g u m e n t a t i v o , t e m o s d e p r e s s u p o r
u m a série d e c o n d i ç õ e s q u e g a r a n t a m u m t o t a l pé d e i g u a l d a d e e n t r e os p a r t i c i p a n t e s ,
u m a total liberdade para intervir na discussão e mobilizar t o d a sorte de c o n t e ú d o s
e u m a total transparência pública das razões.

Isso n ã o significa q u e d i s c u r s o s t ã o ideais se r e a l i z e m n a p r á t i c a . A rigor,

n u n c a p o d e m o s s a b e r a q u i e a g o r a se a d i s c u s s ã o q u e l e v o u a u m c o n s e n s o foi
r e a l i z a d a e f e t i v a m e n t e s e m n e n h u m t i p o d e c o e r ç ã o fora a d o m e l h o r a r g u m e n t o . É
p o s s í v e l q u e n o f u t u r o u m e l e m e n t o n ã o j u s t i f i c a d o se r e v e l e c o m o u m fator
d e t e r m i n a n t e , e x i g i n d o u m a n o v a d i s c u s s ã o . N o r m a l m e n t e , as d i s c u s s õ e s s ã o
d e s e n c a d e a d a s q u a n d o u m d e t e r m i n a d o c o n s e n s o p r é v i o foi a b a l a d o . O i m p o r t a n t e
é q u e os envolvidos na discussão n ã o p o d e m pretender alcançar u m acordo sem
antes p r e s s u p o r e antecipar c o m o realizadas aquelas c o n d i ç õ e s ideais de u m a
c o m u n i c a ç ã o i s e n t a d e r e l a ç õ e s d e p o d e r . A q u i e a g o r a , n ã o se p o d e s a b e r se essas
c o n d i ç õ e s e s t ã o s e n d o c u m p r i d a s i n t e i r a m e n t e , m a s , ao m e s m o t e m p o , n ã o se
p o d e d e i x a r d e p r e s s u p o r q u e e s t ã o s e n d o c u m p r i d a s , caso se p r e t e n d a r e a l m e n t e
alcançar u m consenso.

Patologias da comunicação e possibilidades de emancipação

O c o n j u n t o d e t o d o s esses p r o c e d i m e n t o s q u e g a r a n t e m u m c o n s e n s o n ã o -
c o a g i d o , u m c o n s e n s o l i v r e m e n t e p r o d u z i d o , c o n s t i t u i o n ú c l e o n o r m a t i v o e, ao
m e s m o t e m p o , a d i m e n s ã o e m a n c i p a t ó r i a d a a ç ã o c o m u n i c a t i v a . T o d o s esses
p r o c e d i m e n t o s d e c e r t o m o d o i n c o r p o r a m o q u e t r a d i c i o n a l m e n t e é l i g a d o à idéia
d e r a z ã o e d e r a c i o n a l i d a d e , o u seja, a v e r d a d e , a j u s t i ç a e a l i b e r d a d e . T o d o s esses

172 P a p i r u s Editora
 r d u u e n t o s sc p r e s s u p õ e m r e c i p r o c a m e n t e , Pies a p o n t a m e m c o m u m para
1
|| o .ulo ila r a z ã o na m u l t i p l i c i d a d e d e s u a s vozes. A s s i m , e m t o d o d i s c u r s o , h á
l e r e m ia s i m u l t â n e a à v e r d a d e , à i g u a l d a d e e à l i b e r d a d e c o m o c o n d i ç ã o d e
ii a l i d a d e , m e s m o q u e o d i s c u r s o p o s s a se e s p e c i a l i z a r e m u m a p r e t e n s ã o
i ilidade, c o m o a v e r d a d e d e u m a p r o p o s i ç ã o , p o r e x e m p l o .

I n v e r s a m e n t e , as f o r m a s p a t o l ó g i c a s d a s o c i e d a d e c o n t e m p o r â n e a p o d e m
| | d e s c r i t a s c o m o f o r m a s d e c o m u n i c a ç ã o s i s t e m a t i c a m e n t e d i s t o r c i d a s , i s t o é,
i i i . de c o m u n i c a ç ã o e m q u e as r e g r a s q u e g a r a n t e m o d i á l o g o livre s ã o o u
»upi u n i d a s o u a f e t a d a s d e a l g u m a m a n e i r a . Essa d i s t o r ç ã o p o d e t e r u m a f o r m a
i 11 q u a n d o a l g u é m i n t e r e s s a d o é i m p e d i d o de falar. M a s p o d e ter f o r m a b e m
sutil, q u a n d o a d i n â m i c a e a c o m p l e x i d a d e d a r a c i o n a l i d a d e c o m u n i c a t i v a
H t J p e i t u r b a d a s , q u e r d i z e r , q u a n d o n ó s m e s m o s d e i x a m o s d e falar a l g o o u
Ittipi dimos ou desviamos quase imperceptivelmente o a n d a m e n t o de um
i | i u ' . i l o n a m e n t o . E m u m a d i s c u s s ã o q u e vise a u m c o n s e n s o v e r d a d e i r o , n ã o -
ii i (ido, é p r e c i s o q u e t o d o s o s p a r t i c i p a n t e s p o s s a m fazer t o d o s o s t i p o s d e
pintei a m e n t o s , q u e p o s s a m m a n i f e s t a r t o d a s as i n q u i e t a ç õ e s e n e c e s s i d a d e s .

Q u a n t o mais a práxis cotidiana comunicativa consegue manter-se

relativamente intacta, t a n t o mais a racionalidade comunicativa m o s t r a suas três
d i m e n s õ e s , as q u a i s d e v e m a l c a n ç a r u m e q u i l í b r i o : a d i m e n s ã o q u e se r e l a c i o n a
1 1 ii 11 o m u n d o d o s o b j e t o s e d o s fatos (a d i m e n s ã o c o g n i t i v o - i n s t r u m e n t a l da r a z ã o ) ,
• d i m e n s ã o q u e se r e l a c i o n a c o m o m u n d o d a s n o r m a s e d o s v a l o r e s (a d i m e n s ã o
•l aiii o - m o r a l ) e, p o r fim, a d i m e n s ã o q u e se r e l a c i o n a c o m o m u n d o s u b j e t i v o d e
Cuda u m e d a s v a l o r a ç õ e s estéticas (a d i m e n s ã o e s t é t i c o - e x p r e s s i v a ) . I n v e r s a m e n t e ,
q u a n t o m a i s a práxis c o m u n i c a t i v a cotidiana é afetada pela colonização sistêmica,
mais é p o s s í v e l c o n s t a t a r o p r e d o m í n i o d a d i m e n s ã o c o g n i t i v o - i n s t r u m e n t a l . P o r
MU vez, q u a n t o m e n o s a p r á x i s c o m u n i c a t i v a c o t i d i a n a c o n s e g u e m a n t e r j u n t a s
essas três d i m e n s õ e s , m a i s a u m e n t a m as p o s s i b i l i d a d e s d e a c o l o n i z a ç ã o se p r o p a g a r .
H U a n t o m a i s as n e c e s s i d a d e s p r á t i c a s , éticas, m o r a i s , estéticas e p s i c o l ó g i c a s s ã o
d i s p e r s a d a s , d e s e s t r u t u r a d a s e s u f o c a d a s , m a i s a lógica d a s r e l a ç õ e s i n s t r u m e n t a i s
avança a t í t u l o d e ú n i c a r a c i o n a l i d a d e , objetiva e i n q u e s t i o n á v e l , c o n v e r t e n d o a q u e l a s
necessidades o u e m elementos quantificáveis o u e m elementos arbitrários.

C o m isso, H a b e r m a s n ã o p r e t e n d e d e m o d o a l g u m d e m o n i z a r a d i m e n s ã o e
0 u s o c o g n i t i v o - i n s t r u m e n t a l d a r a z ã o , já q u e ela é i n d i s p e n s á v e l p a r a o
c o n h e c i m e n t o , p a r a a t é c n i c a e o t r a b a l h o , s e m o q u e os seres h u m a n o s n ã o p o d e r i a m
se r e p r o d u z i r m a t e r i a l m e n t e . T r a t a - s e d e e v i t a r q u e a r a c i o n a l i d a d e c o g n i t i v o -
i n s t r u m e n t a l u s u r p e as o u t r a s d i m e n s õ e s . T r a t a - s e de e v i t a r q u e q u e s t õ e s p r á t i c a s
s o b r e j u s t i ç a s o c i a l , p o r e x e m p l o , se t o r n e m q u e s t õ e s t é c n i c a s d e m a n u t e n ç ã o d e

C u r s o livre d e Teoria Crítica 173

s i s t e m a s s o c i a i s o u s e j a m i n t e r p r e t a d a s unicamente c o m o manifestações dl
preferências, s e m n e n h u m a racionalidade.

N o e n t a n t o , é j u s t a m e n t e essa t e n d ê n c i a q u e se verifica n a s sociedadi

m o d e r n a s capitalistas. A m o d e r n i z a ç ã o c a p i t a l i s t a i m p õ e u m p a d r ã o seletivo dOI
p o t e n c i a i s d e r a c i o n a l i d a d e i n s c r i t o s n a c u l t u r a m o d e r n a , p r i v i l e g i a n d o o a s p o tO
c o g n i t i v o - i n s t r u m e n t a l e e n f r a q u e c e n d o as d e m a i s d i m e n s õ e s d e r a c i o n a l i d a d e ItQ
m u n d o d a vida. O u seja, o q u e é m a i s i n c e n t i v a d o e e x p l o r a d o p e l a m o d e r n i z a ç l i |
capitalista n ã o é a a r t e m o d e r n a o u as f o r m a s d e s a b e r q u e a b a r c a m a m o r a l t Q
d i r e i t o , m a s m u i t o m a i s a ciência e s u a s p o s s i b i l i d a d e s t e c n o l ó g i c a s .

E m c o r r e s p o n d ê n c i a c o m isso, o s p o t e n c i a i s c o g n i t i v o s d a d o s c o m o
desenvolvimento estético e c o m o prático ( n o sentido m o r a l , jurídico e p o l í l i m )
são e n c a p s u l a d o s e m c u l t u r a s d e especialistas, c a d a vez m a i s a f a s t a d a s d o m u n d o < la
v i d a c o m o u m t o d o . C o m isso, a d i m e n s ã o estética, i m p o r t a n t e p a r a n o v a s f o r m a s
de percepção e expressão d o m u n d o subjetivo, p o d e enfraquecer, t a n t o q u a n l o a
d i m e n s ã o prática, d e r i v a d a o u p a r a f o r m a s tradicionalistas o u p a r a f o r m a s tecnicistas
d e p e n s a r a a ç ã o . N ã o se t r a t a d e u m a t e n d ê n c i a fatal, já q u e n a p r ó p r i a n a t u r e z a da
r e p r o d u ç ã o d o m u n d o d a v i d a e n c o n t r a m - s e o s p o t e n c i a i s d e r e s i s t ê n c i a e de
e m a n c i p a ç ã o , o u seja, a r e p r o d u ç ã o c u l t u r a l , a i n t e g r a ç ã o social e a s o c i a l i z a ç ã o d o s
indivíduos d e p e n d e m da racionalidade própria da ação comunicativa.

A respeito das condições da ação comunicativa, é preciso notar mais u m a

v e z q u e n u n c a p o d e m o s e s t a r s e g u r o s d e q u e elas se r e a l i z a m t o t a l m e n t e , m a s a o
m e s m o t e m p o n ã o p o d e m o s d e i x a r d e p e n s a r q u e elas e s t ã o s e n d o c u m p r i d a s t o d a
vez q u e p r e t e n d e m o s e n t r a r e m u m d i á l o g o livre d e d o m i n a ç ã o . O u seja, essas
c o n d i ç õ e s f o r m a m u m a s i t u a ç ã o ideal q u e n u n c a se realiza t o t a l m e n t e e, a o m e s m o
t e m p o , essa s i t u a ç ã o ideal é a n t e c i p a d a e m t o d o d i á l o g o , e m t o d o p r o f e r i m e n t o .
C o m o o b s e r v a o s o c i ó l o g o b r a s i l e i r o G a b r i e l C o h n , essa s i t u a ç ã o ideal é

uma possibilidade real, e nisso se traduz o potencial emancipatório da ação

comunicativa. Mas não se trata de u m a construção utópica, n o sentido
usual d o t e r m o . Ela não aponta para u m estado futuro a ser realizado,
mas assinala uma possibilidade sempre presente, m e s m o na comunicação
mais distorcida. (....) As condições ideais não figuram c o m o u m estado
final, mas c o m o condições formais prévias de u m a ação que (...) aponta
para a possibilidade de u m a emancipação de todas as tutelas que tolhem o
livre exercício da racionalidade comunicativa. Mas, c o m o são condições
formais, nada se diz sobre os conteúdos desse m u n d o , possível no horizonte
de todas as ações. Q u a n d o se fala de comunicação livre de coerções quer-
se realmente dizer livre, ou seja, sem o risco de enredar-se em conteúdos
predeterminados. (Cohn 1993, p. 69)

174 Papirus Editora

 I pre< iso e n f a t i z a r o falo d e o p o t c m ial e m a n e i p a l ó r i o tia a ç ã o c o m u n i c a i i v a
i.i p o s s i b i l i d a d e real e n ã o u m a c o n s t r u ç ã o u t ó p i c a . A r a c i o n a l i d a d e
nii . i l i v . i , e m b o r a d é b i l , é p e r s i s t e n t e m e n t e o p e r a n t e , ela é u m a f a g u l h a d e
i ip.içao p r e s e n t e e m t o d o p r o f e r i m e n t o , e m e s m o n a s c o m u n i c a ç õ e s m a i s
i i idas. U m a p r o v a d i s s o é o fato d e , m e s m o e m u m a a ç ã o e s t r a t é g i c a b a s t a n t e
Miinuin, em q u e u m sujeito p r o c u r a d e l i b e r a d a m e n t e e n g a n a r o o u t r o c o m
lliniliras, precisar simular u m a orientação comunicativa para conseguir seu
Bbjelivo. Precisa parecer se o r i e n t a r pela v a l i d a d e i n t e r s u b j e t i v a d o q u e diz, p a r a q u e
i i . i ter a c o n f i a n ç a d o o u t r o , q u e age e m a t i t u d e c o m u n i c a t i v a . I s s o d e m o n s t r a
11111 o u s o e s t r a t é g i c o d a r a c i o n a l i d a d e c o m u n i c a t i v a é u m a f o r m a derivada,
p . i i . r . i l á r i a . Ele d e p e n d e d o u s o n o r m a l d a l i n g u a g e m , q u e é a q u e l e o r i e n t a d o p a r a
1 1 'I ' t e n ç ã o d e u m a c o r d o s o b r e as p r e t e n s õ e s d e v a l i d a d e . E o m e s m o se a p l i c a às
IçOes a b e r t a m e n t e e s t r a t é g i c a s , c o m o as a m e a ç a s b a s e a d a s e m u m p o d e r d e s a n ç ã o ,
i lesse c a s o , a a m e a ç a , a p r e s e n t a d a c o m o u m a o r d e m , d e r i v a s e u s e n t i d o d a q u i l o
ipie ela s u s p e n d e n o u s o c o m u n i c a t i v o d a l i n g u a g e m . N ã o é p o s s í v e l u s a r a
11 n g u a g e m s e m d e a l g u m m o d o a t i v a r as e s t r u t u r a s d e r a c i o n a l i d a d e c o m u n i c a t i v a .

P a r a H a b e r m a s , os p o t e n c i a i s d e r e s i s t ê n c i a e e m a n c i p a ç ã o d a r a c i o n a l i d a d e
i o i n u n i c a t i v a n ã o p o d e m ser s u b e s t i m a d o s , v i s t o q u e n i n g u é m p o d e se s o c i a l i z a r
• T l ã o e m c o n t e x t o s d e ação c o m u n i c a t i v a , q u e n e n h u m a t r a d i ç ã o c u l t u r a l i n d e p e n d e
da l i n g u a g e m , q u e n e n h u m a n o r m a p o d e se i m p o r s o m e n t e à força, m a s d e p e n d e
t a m b é m de consensos considerados legítimos. N o caso das sociedades m o d e r n a s , a
.u a o c o m u n i c a t i v a se t o r n a a i n d a m a i s e s t r u t u r a l , já q u e n ã o existe n e l a s u m s a b e r
1111 c enfeixe e d e t e r m i n e t o d a s as esferas d o m u n d o d a v i d a , c o m o e r a o c a s o n a s
s o c i e d a d e s t r a d i c i o n a i s , c o n s t i t u í d a s p e l a força das visões religiosas e metafísicas d o
m u n d o . À m e d i d a q u e n a s s o c i e d a d e s m o d e r n a s a religião vai p e r d e n d o esse p o d e r
de t o t a l i z a r e e n f e i x a r t o d a s as m a n i f e s t a ç õ e s c u l t u r a i s e sociais, a u m e n t a a d e m a n d a
cie a ç õ e s o r i e n t a d a s a o e n t e n d i m e n t o e m t o d a s as esferas d a v i d a , o u seja, é p o s s í v e l
d e m o n s t r a r q u e , n o c u r s o d a e v o l u ç ã o social, os c o n t e x t o s d e i n t e r a ç ã o social p a s s a m
,i d e p e n d e r c a d a v e z m a i s d e p r o c e d i m e n t o s a r g u m e n t a t i v o s , d e m o d o q u e a
r a c i o n a l i d a d e c o m u n i c a t i v a se e s p r a i a e se c o n s o l i d a e m u m a série d e f o r m a s d e
reprodução sociocultural. A m o d e r n i d a d e cultural, s o b r e t u d o , é m a r c a d a por u m a
i n d e p e n d ê n c i a c a d a vez m a i o r d a ciência, d a a r t e e d a crítica d e a r t e , d a m o r a l e d o
d i r e i t o t a n t o e m r e l a ç ã o às visões religiosas e metafísicas d o m u n d o c o m o e n t r e si
m e s m a s . I s t o é, c a d a u m a dessas esferas c u l t u r a i s d e s e n v o l v e m e t o d o l o g i a e r e g r a s
p r ó p r i a s p a r a o t r a t a m e n t o d o s respectivos p r o b l e m a s . A teoria d a a ç ã o c o m u n i c a t i v a
b u s c a i n v e s t i g a r e a p r o f u n d a r t o d o s esses a s p e c t o s , d e d i c a n d o l o n g a s análises p a r a
cada u m deles. N ã o caberia aqui retomá-las.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 175

 v.iinc is nos deter ainda na última obsei vação de Gabriel Cohn a respeito do
aspecto formal d a s c o n d i ç õ e s ideais d a a ç ã o comunicativa, p o i s ela é importante
p a r a e n t e n d e r m o s o s e n t i d o d o p r o j e t o e m a n c i p a t ó r i o c a l c a d o na racionalidade
c o m u n i c a t i v a . A e m a n c i p a ç ã o j á n ã o se a p r e s e n t a c o m o u m a f o r m a d e v i d a cone reta,
baseada e m u m m o d o de produção determinado ou e m u m a comunidade
determinada ou, ainda, em u m projeto determinado de reconciliação (com (
n a t u r e z a , p o r e x e m p l o ) . N ã o é possível d e t e r m i n a r p r e v i a m e n t e o q u e é u m a vida
e m a n c i p a d a , m a s é possível e s t a b e l e c e r as regras e as c o n d i ç õ e s e m q u e se p o d e d a r
o d i á l o g o e m a n c i p a d o , e desse m o d o c r i a r i n s t i t u i ç õ e s q u e b u s q u e m a s s e g u r a i
d i v e r s o s p r o j e t o s e f o r m a s d e v i d a e m a n c i p a d a . É p o r isso q u e o s o c i a l i s m o , q u e na
t r a d i ç ã o m a r x i s t a se a p r e s e n t a c o m o s i n ô n i m o d e e m a n c i p a ç ã o , a c a b a t e n d o u n i
s e n t i d o b a s t a n t e p e c u l i a r e m H a b e r m a s . Ele define o s o c i a l i s m o c o m o " s u m a das
c o n d i ç õ e s n e c e s s á r i a s p a r a f o r m a s d e v i d a e m a n c i p a d a , a r e s p e i t o d a s q u a i s as
p r ó p r i a s p e s s o a s i n t e r e s s a d a s p r e c i s a m se enten-.-or p r i m e i r o " ( H a b e r m a s 1997, p.
9 ) . C o m isso, a p r ó p r i a idéia d a a u t o - o r g a n i z a ç ã o d e m o c r á t i c a d e u m a c o m u n i d a d e
j u r i d i c a m e n t e c o n s t i t u í d a p a s s a a ser o c e r n e d o p r o j e t o socialista.

E m c o r r e s p o n d ê n c i a c o m isso, d i r e i t o e d e m o c r a c i a se t o r n a m , n o d e c o r r e i
d a o b r a d e H a b e r m a s , p r i n c i p a l m e n t e a p a r t i r d o final d o s a n o s 1980, t e m a s cada
vez m a i s c e n t r a i s . A s s i m , ele p r e t e n d e t a m b é m s u p r i r u m déficit n o s m o d e l o s de
Teoria Crítica de seus antecessores, que p o u c a atenção d e r a m ao c o n t e ú d o
e m a n c i p a d o r d o d i r e i t o e d a d e m o c r a c i a , c o m exceção d e N e u m a n n e K i r c h h e i m e r ,
d i s c u t i d o s n e s t e v o l u m e . M a s n ã o c a b e levar a d i a n t e essa d i s c u s s ã o d e n a t u r e z a
m a i s p o l í t i c a . O q u e é i m p o r t a n t e frisar, n e s s e c o n t e x t o , é o t i p o d e r e l a ç ã o q u e a
T e o r i a C r í t i c a d e v e m a n t e r c o m os m o v i m e n t o s sociais e os p o t e n c i a i s d e p r o t e s t o
n o m o d e l o h a b e r m a s i a n o ( m a s q u e j á se p o d e o b s e r v a r t a m b é m n o m o d e l o de
H o r k h e i m e r , discutido neste livro).

U m a vez q u e o p o t e n c i a l e m a n c i p a t ó r i o d a a ç ã o c o m u n i c a t i v a n ã o prefigura
u m a f o r m a d e v i d a e m p a r t i c u l a r , o t e ó r i c o c r í t i c o terá u m i n t e r e s s e c u i d a d o s o e m
t o d o s os m o v i m e n t o s sociais. A Teoria C r í t i c a já n ã o se v i n c u l a i n t r i n s e c a m e n t e ao
p o n t o d e vista de u m a classe, d e u m g r u p o o u d e u m m o v i m e n t o social, c o m o foi o
c a s o n o m a r x i s m o e m r e l a ç ã o ao p r o l e t a r i a d o . O s d i v e r s o s m o v i m e n t o s sociais
p r e c i s a m ser c o n s i d e r a d o s e m t o d o s os s e u s p o t e n c i a i s , p o t e n c i a i s d e e m a n c i p a ç ã o ,
d e r e s i s t ê n c i a e t a m b é m d e r e g r e s s ã o . E m c o n s o n â n c i a c o m o p r ó p r i o c o n c e i t o de
e m a n c i p a ç ã o calcado n o s p r o c e d i m e n t o s discursivos, a Teoria Crítica n ã o pode
c o n t r a p o r à r e a l i d a d e social o q u e d e v e ser feito n e m , m u i t o m e n o s , a s s u m i r a
p o s i ç ã o d e r e p r e s e n t a n t e d e s t e o u d a q u e l e m o v i m e n t o s o c i a l . Ela n ã o p o d e
d e t e r m i n a r previamente os conteúdos da ação e d o discurso. E m última instância,

176 Papirus Editora

D IrArico c r í t i c o s ó p a r t i c i p a tias tiisciissõcs na esfera p ú b l i c a política c o m o q u a l q u e r
poile participar: c o m o u m cidadão.

Ao m e s m o t e m p o , é p r e c i s o e x p l i c a r o s u r g i m e n t o d o s m o v i m e n t o s s o c i a i s ,
lima vez q u e é tieles q u e se p o d e m e s p e r a r t r a n s f o r m a ç õ e s p o l í t i c a s r e l e v a n t e s . É o
t|iic p r e t e n d e H a b e r m a s c o m s u a t e o r i a d a a ç ã o c o m u n i c a t i v a n o q u e se refere a o s
'fhrtinados n o v o s m o v i m e n t o s s o c i a i s . P a r a H a b e r m a s , o d i a g n ó s t i c o d e é p o c a
• 1111 a I i z a d o n a tese d a c o l o n i z a ç ã o s i s t ê m i c a d o m u n d o d a v i d a s e r v e c o m o p o n t o
>l< i m i titia p a r a e x p l i c a r o s u r g i m e n t o d o s n o v o s m o v i m e n t o s s o c i a i s . E s s e s
m o v i m e n t o s se d i f e r e n c i a m d o s m o v i m e n t o s o p e r á r i o s e s o c i a l i s t a s t í p i c o s p o r
. • iloi a r e m na o r d e m d o dia n ã o q u e s t õ e s d i r e t a m e n t e r e d i s t r i b u t i v a s , m a s q u e s t õ e s
m a s ecológicas e d e q u a l i d a d e d e v i d a , d a i g u a l d a d e d e d i r e i t o s ( e n t r e os g ê n e r o s
p e n t r e os g r u p o s é t n i c o s ) , d a a u t o - r e a l i z a ç ã o i n d i v i d u a l , d a p a r t i c i p a ç ã o p o l í t i c a
niilislatória, d o s d i r e i t o s h u m a n o s e m t o d o s e u e s p e c t r o . H a b e r m a s escreve:

A análise das patologias d o m u n d o da vida exige u m a investigação não

p r e d e t e r m i n a d a de tendências e contratendências. O fato de que (...) o
conflito de classe que marcou as sociedades capitalistas na primeira fase de
seu desenvolvimento foi institucionalizado e desse m o d o desativado não
significa a desativação dos potenciais de protesto em geral. Mas os potenciais
de protesto surgem agora em outras linhas de confronto, a saber, ali onde
era de esperar que surgissem, se a tese da colonização do m u n d o da vida
está correta. (Habermas 1981, p. 576)

teoria Crítica como teoria reconstrutiva

P a r a H a b e r m a s , p o r t a n t o , a Teoria Crítica b u s c a realizar u m d i a g n ó s t i c o de

é p o c a c a p a z d e e x p l i c a r f o r m a s d e a l i e n a ç ã o e, a o m e s m o t e m p o , p o t e n c i a i s d e
e m a n c i p a ç ã o , c o n f o r m e c r i t é r i o s i n s c r i t o s n a p r ó p r i a r e a l i d a d e social. N o e n t a n t o ,
a i n d a q u e essas c o n s i d e r a ç õ e s s e j a m essenciais p a r a a c o m p r e e n s ã o d o m o d e l o
h a b e r m a s i a n o d e T e o r i a C r í t i c a , resta s a b e r c o m o se d á n e s s e m o d e l o a r e l a ç ã o c o m
as d e m a i s f o r m a s d e t e o r i a , p o i s a Teoria Crítica, escreve H a b e r m a s c o m t e r m o s q u e
remetem diretamente a Horkheimer:

Se c o m p o r t a criticamente t a n t o em relação às ciências sociais c o n t e m -

porâneas c o m o em relação à realidade social que estas devem apreender.
(...) N o entanto, a Teoria Crítica da sociedade não se comporta diante das

C u r s o livre d e Teoria Crítica 177

 linhas de pesquisa estanciei idas c o m o concorrente; a o pariu ilo conceito
que estas elaboram sobre o s u r g i m e n t o d a s sociedades m o d e r n a s , ela
procura explicar em que consiste a limitação específica e o direito relativo
de suas abordagens. [Ibiã., pp. 5 4 9 - 5 5 0 )

A Teoria Crítica n ã o p r e t e n d e estar n o m e s m o nível q u e a ciência t r a d i c i o n a l ,

ela n ã o c o n c o r r e c o m esta, já q u e isso i m p l i c a r i a u m a i d e n t i d a d e n o s p r o p ó s i t o s de
4
c a d a u m a . As a b o r d a g e n s t e ó r i c a s t r a d i c i o n a i s n ã o b u s c a m t e r c o m a r e a l i d a d e
u m a a t i t u d e crítica, p e n s a n d o s e m p r e as p o s s i b i l i d a d e s reais d e e m a n c i p a ç ã o . A
p r ó p r i a q u e s t ã o d a e m a n c i p a ç ã o n ã o se c o l o c a d e m a n e i r a c o n s t i t u t i v a p a r a essas
t e o r i a s . P o r o u t r o l a d o , a Teoria Crítica p o d e se a p r o v e i t a r d o q u e elas s ã o c a p a z e s de
o f e r e c e r p a r a o c o n h e c i m e n t o d a s s o c i e d a d e s m o d e r n a s d e m o d o geral, e x p l i c a n d o
a o m e s m o t e m p o a l i m i t a ç ã o d e sua a b o r d a g e m e o seu d i r e i t o r e l a t i v o .

N a t u r a l m e n t e , H a b e r m a s n ã o está se r e f e r i n d o a t o d a e q u a l q u e r a b o r d a g e m
das ciências sociais o u h u m a n a s , m a s a linhas de investigação c o m p l e x a s e
t e o r i c a m e n t e ricas q u e c o n s e g u i r a m se e s t a b e l e c e r n o m e i o científico. A l i m i t a ç ã o
específica se explica p e l o fato de elas se r e s t r i n g i r e m a a p e n a s u m aspecto f u n d a m e n t a l
da sociedade, p o r exemplo, u m a linha c o m o o funcionalismo sistêmico, q u e entende
a s o c i e d a d e u n i c a m e n t e c o m b a s e n a idéia d e s i s t e m a s a u t o - r e p r o d u t o r e s o u , a i n d a ,
as d i v e r s a s c o r r e n t e s d a s o c i o l o g i a c o m p r e e n s i v a , v o l t a d a s à e x p l i c a ç ã o d a r e a l i d a d e
social, b a s e a d a s n a idéia d e m u n d o d a v i d a . O p r o b l e m a d e s s a s , c o m o d e o u t r a s
a b o r d a g e n s e m â m b i t o s teóricos diferentes, reside em sua unilateralidade e
parcialidade, o q u e se t o r n a visível q u a n d o o t e ó r i c o crítico r e ú n e a b o r d a g e n s o p o s t a s .

P o r é m , a crítica d a u n i l a t e r a l i d a d e d a s a b o r d a g e n s t r a d i c i o n a i s n ã o p r e s s u p õ e
u m c o n c e i t o d e t o t a l i d a d e q u e p e r m i t a u l t r a p a s s a r as l i m i t a ç õ e s c o m o se fossem
m o m e n t o s d e u m m e s m o p r o c e s s o . N ã o é possível, p a r a H a b e r m a s , u m c o n c e i t o
s u p e r i o r q u e s i n t e t i z e , p o r e x e m p l o , os c o n c e i t o s d e m u n d o d a v i d a e s i s t e m a , o u
q u e s i n t e t i z e t o d a s as esferas d a c u l t u r a , c o m o a ciência, a a r t e , a m o r a l e o d i r e i t o ,
c o m o o c o r r i a n a s v i s õ e s religiosas e metafísicas d o m u n d o , t í p i c a s d a s s o c i e d a d e s
p r é - m o d e r n a s . A t o t a l i d a d e nesse s e n t i d o t e m d e d a r l u g a r p a r a u m a c o n c e p ç ã o
mais c o m p l e x a de sociedade e racionalidade, aberta para suas diversas dimensões.
C a d a c i ê n c i a t r a d i c i o n a l q u e se especializa e m u m a dessas d i m e n s õ e s t e m o seu
d i r e i t o , n a m e d i d a m e s m o e m q u e n ã o a b s o l u t i z a seu c a m p o d e o b j e t o s c o m o a

4. A r e s p e i t o d o p r i n c í p i o d e n ã o - c o n c o r r ê n c i a e m H a b e r m a s , cf. N o b r e ( 2 0 0 8 , p p . 2 6 5 - 2 8 4 ) .

178 Papirus Editora

m u i ,i eslora ila villa social o c u l t u r a l . A p a r c i a l i d a d e da t e o r i a t r a d i c i o n a l r e s u l t a r i a ,
i a ni, d e s u a própria pretensão de totalidade.

I )e u m p o n t o d e vista i n s t i t u c i o n a l d a p e s q u i s a científica, o m o d e l o d e T e o r i a
i ni ica do H a b e r m a s t o r n a viável, p o r c o n s e g u i n t e , r e t o m a r d e m a n e i r a n o v a a i d é i a
de i M a t e r i a l i s m o i n t e r d i s c i p l i n a r p r o p o s t a p o r H o r k h e i m e r n o s a n o s 1930, u m a v e z
que as m a i s d i v e r s a s l i n h a s d e p e s q u i s a p o d e m se e n c a i x a r n o q u e b r a - c a b e ç a d a
Teoria C r í t i c a , d a n d o c o n t a d o s m a i s d i v e r s o s â m b i t o s d a t e o r i a d a s o c i e d a d e , d a
m o d e r n i d a d e e da racionalidade. A idéia de t o t a l i d a d e , a i n d a d e f e n d i d a por
I loi k h e i m e r , d á l u g a r à d e c o m p l e x i d a d e d a r a z ã o , d i f e r e n c i a d a e m s u a s d i m e n s õ e s
I I i g n i t i v o - i n s t r u m e n t a l , p r á t i c o - m o r a l e estético-expressiva, m a s u n i d a f o r m a l m e n t e
n o s p r o c e d i m e n t o s discursivos p r ó p r i o s de cada u m a dessas d i m e n s õ e s e n a s
5
possibilidades de "passagem" de u m c a m p o a o u t r o .

Esse t i p o d e r e l a ç ã o a p r o v e i t a d o r a e c r í t i c a c o m as a b o r d a g e n s t e ó r i c a s
11 a d i c i o n a i s s ó é p o s s í v e l q u a n d o se a b a n d o n a , p o r t a n t o , o p r i n c í p i o d e t o t a l i d a d e
n o s e n t i d o d e u m t o d o e m q u e as p a r t e s são a p e n a s m o m e n t o s d e s u a c o n s t i t u i ç ã o .
A esse a b a n d o n o c o r r e s p o n d e u m a m u d a n ç a d e p a r a d i g m a n o i n t e r i o r d a t r a d i ç ã o
da T e o r i a C r í t i c a , m a s q u e t a m b é m p o d e t e r c o n s e q ü ê n c i a s n a p r o d u ç ã o t e ó r i c a
c o n v e n c i o n a l , o u seja, a idéia d e t o t a l i d a d e n o s e n t i d o m e n c i o n a d o é p r ó p r i a d e u m
p a r a d i g m a d a filosofia e d a t e o r i a social, s e g u n d o a q u a l a r a z ã o e a s o c i e d a d e se
d e i x a m d e c i f r a r p o r r e f e r ê n c i a a o m o d e l o d e u m sujeito q u e c o n h e c e e l i d a c o m
objetos. É o c h a m a d o p a r a d i g m a d a filosofia d o sujeito, q u e , c r i s t a l i z a d o n a t r a d i ç ã o
filosófica q u e vai d e D e s c a r t e s a H e g e l , d e m o n s t r o u s u a força t a m b é m n o i n t e r i o r
d o m a r x i s m o , a o i m p o r a idéia d a s o c i e d a d e c o m o m a c r o s s u j e i t o q u e se c o n s t i t u i e
se r e p r o d u z p e l o s p r o c e s s o s d e t r a b a l h o , e q u e , n o c a s o d a s o c i e d a d e c a p i t a l i s t a ,
t o m a c o n s c i ê n c i a d e si m e s m o p o r i n t e i r o d o p o n t o d e vista d o p r o l e t a r i a d o , q u e é
tanto sujeito c o m o objeto dessa sociedade. E m última instância, o c o n c e i t o d e
p r á x i s social passa a ser e n g l o b a d o p o r a q u e l e d e t r a b a l h o social o u p r o d u ç ã o , e s u a
r a c i o n a l i d a d e se r e d u z à d i m e n s ã o c o g n i t i v o - i n s t r u m e n t a l . P a r a o c o n h e c i m e n t o e
p a r a a crítica, resulta u m a c o n s i d e r a ç ã o q u e e n g l o b a t o d a s as c o n f o r m a ç õ e s c u l t u r a i s
sociais c o m o m o m e n t o s p a r c i a i s d e s t i n a d o s a u m a u n i d a d e s u p e r i o r .

Inversamente, o paradigma proposto p o r Habermas, aquele d o e n t e n d i m e n t o

r e c í p r o c o e n t r e s u j e i t o s q u e falam e a g e m , p r e t e n d e a m p l i a r o c o n c e i t o d e r a z ã o ,

Cf. Terra 2003. Ricardo Terra m o s t r a q u e , e m c o n s o n â n c i a c o m a filosofia k a n t i a n a , é possível

p e n s a r , e m H a b e r m a s , u m sistema d e p a s s a g e n s e n t r e as diversas d i m e n s õ e s e os usos da
razão, g a r a n t i n d o sua u n i d a d e e, p o r o u t r o lado, d i s p e n s a n d o o conceito d e totalidade oriundi >
da tradição hegeliano-marxista.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 179

a t e n t a r p a r a as d i f e r e n c i a ç õ e s sociais e identificai' f o r m a s de p a t o l o g i a S O C Lai, 0 qut
t e m c o m o c o n t r a p a r t i d a a q u e l e a p r o v e i t a m e n t o c r í t i c o c o m a t e o r i a t r a d k ional A
m u d a n ç a d e p a r a d i g m a n ã o visa p r o p o r às c i ê n c i a s c o n v e n c i o n a i s u m a n o v a

orientação teórica, m a s sim u m a nova orientação na Teoria Crítica, que leni

c o n s e q ü ê n c i a s n a s u a r e l a ç ã o c o m a q u e l a s . P o r s u a vez, isso p e r m i t e a c o n v i v e m [f
p r o d u t i v a de diversos p a r a d i g m a s t e ó r i c o s , c o m o o p a r a d i g m a s i s t e m a e o paradigl til
m u n d o d a v i d a , já d e s e n v o l v i d o s n a h i s t ó r i a d a t e o r i a social.

P o r é m , s o m e n t e a m u d a n ç a de p a r a d i g m a n o interior da Teoria Crítica n a u

é suficiente. A Teoria Crítica n ã o p o d e se b a s e a r e m u m c o n c e i t o d e r a z ã o a u t á r q u í< j |
q u e b a s t e a si m e s m o e d e t e r m i n e p a r a c a d a l i n h a d e p e s q u i s a u m a p o s i ç a u
s u b o r d i n a d a e p r e d e t e r m i n a d a . A filosofia e a t e o r i a social d e H a b e r m a s p r o c u r a 1 1 1
e s t a b e l e c e r u m c o n c e i t o u n i v e r s a l i s t a e c o m p l e x o d e r a z ã o c o m u n i c a t i v a d e tal
m o d o q u e escapa de recaídas n o p e n s a m e n t o metafísico. A razão comunicativa
d e v e ser s i t u a d a h i s t o r i c a m e n t e e reconstruída c o m b a s e n o m o m e n t o p r e s e n t e , ou
seja, o t e ó r i c o c r í t i c o r e c o n s t r ó i p a d r õ e s d e r a c i o n a l i d a d e i n c o r p o r a d o s n o s m u n d o ,
d a v i d a m o d e r n o s e n a s e s t r u t u r a s d a a ç ã o social, u t i l i z a n d o - s e d e a r g u m e n t o s
filosóficos c o m o as c o n t r a d i ç õ e s p e r f o r m a t i v a s , q u e n ã o se f e c h e m , m a s a n t e s se
abram, à comprovação empírica.

A idéia d e r e c o n s t r u ç ã o d e p a d r õ e s d e r a c i o n a l i d a d e é f u n d a m e n t a l , p o r t a n t o ,
n o m o d e l o h a b e r m a s i a n o d e Teoria C r í t i c a . A r e c o n s t r u ç ã o t e m d o i s m o m e n t o s ou
vetores básicos. Dissemos que o teórico reconstrói o saber intuitivo, pré-teórico,
d o s p a r t i c i p a n t e s d a i n t e r a ç ã o , o u seja, p a r a o t e ó r i c o , t r a t a - s e d e t o r n a r explícito
esse s a b e r i n t u i t i v o , e x p o n d o - o c o m o u m a série d e r e g r a s c o n e c t a d a s e n t r e si. Dessa
m a n e i r a , esse s a b e r i n t u i t i v o se t o r n a u m s a b e r t e ó r i c o , ele m e s m o l e v a n t a d o c o m
u m a p r e t e n s ã o d e v e r d a d e q u e d e v e ser c o r r o b o r a d a p o r v á r i o s t i p o s d e testes
e m p í r i c o s . P a r a esse e x e r c í c i o d e r e c o n s t r u ç ã o d e r e g r a s , o t e ó r i c o p r e c i s a a d o t a i a
p e r s p e c t i v a d e u m p a r t i c i p a n t e d a a ç ã o , s e m a q u a l n e m m e s m o p o d e r i a t e r acesso
a o s e u o b j e t o . A s i m p l e s p e r s p e c t i v a d e u m o b s e r v a d o r d e fora n ã o p e r m i t i r i a
e n t e n d e r o sentido interno da ação ou de qualquer p r o d u t o simbólico,
i m p o s s i b i l i t a n d o o e n t e n d i m e n t o das estruturas centrais d o m u n d o da vida.

P o r é m , essa r e c o n s t r u ç ã o se d á a i n d a n o h o r i z o n t e d e s o c i e d a d e s m o d e r n a s
c o n t e m p o r â n e a s . Esse p r i m e i r o m o m e n t o d a r e c o n s t r u ç ã o , a i n d a h o r i z o n t a l e
s i n c r ô n i c o , t e m d e ser c o m p l e t a d o p o r u m s e g u n d o , q u e p r o c u r e m o s t r a r c o m o os
p a d r õ e s d e r a c i o n a l i d a d e d e s c o b e r t o s se d e s e n v o l v e r a m h i s t o r i c a m e n t e . Esse
s e g u n d o m o m e n t o da r e c o n s t r u ç ã o , vertical e diacrónico, g a n h a a forma de teorias
g e n é t i c a s v o l t a d a s p a r a a e x p l i c a ç ã o d a lógica i n t e r n a e d a d i n â m i c a h i s t ó r i c a dos
padrões de racionalidade.

I no i 'apirus Editora
 I'.u.i I labei ni.is, a linguagem tem u m elesenvolvimento histórico, suas
l l t l t i i r a s f o r a m se d e s d o b r a n d o s e g u n d o as m a i s d i v e r s a s conformações
ii 11 ti ra is c isso d e s d e o m o m e n t o e m q u e s u r g i u o Homo sapiens, destacando-
lie os h o m í n i d a s n ã o só p e l o t r a b a l h o , m a s t a m b é m , e j u s t a m e n t e , p e l a
llll i ' igciu. A l é m d i s s o , t o d o s os c o n c e i t o s d a t e o r i a d a a ç ã o c o m u n i c a t i v a q u e
ll ii ii da m o s a q u i , c o m o p r e t e n s õ e s d e v a l i d a d e , m u n d o o b j e t i v o , social e s u b j e t i v o ,
Hfni i d i m e n t o s d i s c u r s i v o s i d e a l i z a d o r e s e t c . r e f e r e m - s e a e s t r u t u r a s q u e se
.1. d o b r a r a m e se d i f e r e n c i a r a m à m e d i d a q u e as v i s õ e s m í t i c a s , r e l i g i o s a s e
- i 'ii a i as d o m u n d o f o r a m p e r d e n d o s u a força d e u n i f i c a r e a m a l g a m a r . P a r a
IHrili.se d e t o d o s esses p r o c e s s o s , é p r e c i s o m a i s u m a v e z o c o n s o r c i o c o m as d e m a i s
linhas de p e s q u i s a s d e o u t r a s c i ê n c i a s , a l é m d e u m a r e c o n s t r u ç ã o s u p l e m e n t a r d a
Ih a d a s t e o r i a s filosóficas e sociais.

( ) c o n c e i t o d e r e c o n s t r u ç ã o n ã o se e s g o t a , p o r é m , n e s s a s c o n s i d e r a ç õ e s d e
u n i ' n i m e t o d o l ó g i c a . O s e n t i d o d o m é t o d o n ã o se e s g o t a e m si m e s m o . A t e o r i a
istrutiva p r e c i s a e x p l i c a r a si m e s m a , isto é, e x p l i c a r p o r q u e ela m e s m a s u r g e
• n i vista d e u m p r o b l e m a social c o n c r e t o . O t e ó r i c o c r í t i c o só p o d e t e r acesso às
•III ni u r a s q u e p r e t e n d e r e c o n s t r u i r n o m o m e n t o e m q u e t a m b é m essas e s t r u t u r a s
tf e n c o n t r a m e m r i s c o , n o m o m e n t o e m q u e as i n f r a - e s t r u t u r a s d o m u n d o d a v i d a
i nino u m t o d o , a o q u a l ele p e r t e n c e , são a t a c a d a s pelas i n t e r v e n ç õ e s s i s t ê m i c a s ,
. u n í eleitos p a t o l ó g i c o s d i s s e m i n a d o s . O m o d e l o r e c o n s t r u t i v o d e T e o r i a C r í t i c a é
u m a r e s p o s t a a essa crise.

/ i- 'lerendas bibliográficas

Al T L , K.O. et ai. (2004). Com Habermas, contra Habermas: Direito, discurso e democracia.
São Paulo: Landy.

ARAÚJO, L.B.L. (1996). Religião e modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola.

AVKITZER,L. (1999). "Teoria Crítica e teoria democrática". Novos Estudos Cebrap, n.53 (mar.).

( : O H N , G . (1993). "A teoria da ação e m H a b e r m a s " . In: CARVALHO, M . C . B . Teoriasda

ação em debate. São Paulo: Cortez.

I HJTRA, D.J.V. (2005). Razão e consenso em Habermas: A teoria discursi ja da verdade, da

moral, do direito e da biotecnologia. Florianópolis: U F S C .

(IIDDENS, A. et a/. (1988). Habermas and moâernity. C a m b r i d g e : MIT.

C u r s o livre d e Teoria Crítica 181

HABERMAS, J. (1981). I'licoric des kommunikativen Handeln». VbU, l e Ii. Frankfurl
S u h r k a m p ; Teoría de la acción comunicativa. Madri: Taurus, 1987; The theoi r o)
communicative action. Boston: Beacon Press, 1987.

(1982). Conhecimento e interesse. Rio d e Janeiro: Zahar.

(1984). Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro

(1989). Consciência moral e agir comunicativo. Rio d e Janeiro: Tempo

Brasileiro.

(1990a). Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense.

(1990b). Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: T e m p o Brasileiro.

(1994). Técnica e ciência como "ideologia". Lisboa: Edições 70.

(1997). Direito e democracia: Entrefacticidadee validade. Vols. I e II. Rio de

Janeiro: T e m p o Brasileiro.

(2001). A constelaçãopós-nacional. São Paulo: Littera M u n d i .

(2002). O discurso filosófico da modernidade. São P a u l o : M a r t i n s Fontes.

(2004a). A inclusão do outro. São Paulo: Loyola.

( 2 0 0 4 b ) . Verdade e justificação. São Paulo: Loyola.

H O N N E T H , A. (1991). The critique ofpower: Reflective stages in a criticai social theory.
Cambridge: MIT.

MCCARTHY, T. (1989). Criticai theory of Jürgen Habermas. Cambridge: MIT.

N O B R E , M . (2004). A Teoria Crítica. Rio d e Janeiro: Zahar.

(2008). "Teoria Crítica hoje". In: PERES, D.T.; M A T T O S , F.C. et al. (orgs.).
Tensões epassagens: Filosofia crítica e modernidade - Uma homenagem a Ricardo Terra.
São Paulo: Singular/Esfera Pública, p p . 265-284.
O U T H W A I T E , W. (1994). Habermas: A criticai introduction. C a m b r i d g e : Polity Press.

TERRA, R. (2003). Passagens: Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio d e Janeiro: UFRJ.

W E L L M E R , A. (1994). Ética y diálogo: Elementos del juicio moral en Kant y en la ética del
discurso. Barcelona: A n t h r o p o s .

(1997). " C o n s e n s o c o m o telos da c o m u n i c a ç ã o lingüística?". Novos Estudos

Cebrap, n. 48 (jul.).

W H I T E , S.K. ( 1 9 9 5 ) . Razão, justiça e modernidade: A obra recente de Jürgen Habermas.

São Paulo: í c o n e .

IH:' I 'npirus Editora