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V O L U M E II

um a h istória das id eias


psicológicas na Europa até 1850

ED U A RD O M O U R Ã O VASCONCELOS
s três v o lu m e s in ic ia is d esta c o le tâ n e a s ã o r e s u lta d o s
O d e u m tr a b a lh o s is te m á tic o q u e já f a z d e z a n o s . In ­
c lu i o e x a m e d a c o le ç ã o d e c in q u e n t a v o lu m e s d e o b r a s
c o m p le ta s d e M a r x -E n g e ls, a p e s q u is a e m s e u s p r in c ip a is
centros d e d o cu m en ta çã o , o In tern a tio n a l In stitu te o f Social
H istory, em A m sterd a m , e a K arl-M arx-H au s, e m T rier, A le ­
m a n h a , a c id a d e n atal d e M a r x . R eto m a ta m b é m u m a
vasta b ib lio g r a fia h is tó r ic a e te ó r ic a d a s id e ia s p s ic o ló g i­
cas na E u rop a e d e c o m e n t a d o r e s d e n t r o e fo r a d o m a r x is ­
m o . S eu o b j e t o d e e s t u d o , a s u b je tiv id a d e h u m a n a , é r e c o ­
n h e c id o c o m o te m a p o u c o d e s e n v o lv id o o u i n t e n c i o n a l­
m e n te r e je ita d o e n tr e o s m a r x ista s, e su a a b o r d a g e m n a s
v á ria s e x p e r iê n c ia s d e s o c ia lis m o rea l fo i c e r c a d a d e e q u í ­
v o c o s. L ogo a p ó s o se u d e s m o r o n a m e n t o q u a s e in te g r a l
n o fin a l d a d é c a d a d e 1980, e s b o ç o u - s e u m a p e r p le x id a d e
e u m in íc io d e r e fle x ã o s o b r e a s p o s s ív e is r a z o e s d e s te s
p r o b le m a s . N o e n ta n to , n a q u e le m e s m o m o m e n t o , a lu ta
co n tra o n e o lib e r a lis m o e x i g iu d e t o d o s n ó s d a e s q u e r d a ,
cer ra r file ir a s n a s d e n ú n c ia s d e su a s m a z e la s e na c e n tr a -
lid a d c in c o n to r n á v e l d o m a r x is m o n e s ta l u l a . A s s im , esta
r e v isã o te ó r ic a e h istó r ic a in te r n a a o m a r x is m o , a p e n a s
in ic ia d o p o r s e u s a u to r e s m a is f le x ív e is , a c a b o u s o f r e n d o
u m a d ia m e n to . C o n tu d o , e la é f u n d a m e n t a l p a ra q u e
p o s sa m o s ir m a is a lé m d e n ossa já c o n h e c id a c a p a c id a d e
d e critica r o statu s quo, p a ra p o d e r c o n s t r u ir p o s it iv a m e n ­
t e , n a t e o r ia e n a p rá tica , a s b a ses c o n t r a - h e g e m ó n ic a s d e
u m a s o c ie d a d e m a is ju sta , s o lid á r ia e t a m b é m p lu r a lis ta e
d e m o c r á tic a , d e s d e já . Esta c o le tâ n e a v e m e x a ta m e n te c o n ­
tr ib u ir p ara esta r e to m a d a , n o c a m p o p a r tic u la r d a s u b j e ­
tiv id a d e h u m a n a . Este s e g u n d o v o lu m e faz u m a r e v isã o da
h istó ria d a s id é ia s p s ic o ló g ic a s na E uropa a té 1S^O, p r iv ile ­
g ia n d o o s a u to r e s e o b r a s q u e fo ra m refe rên cia 11a fo rm a çã o
e in te r lo c u ç ã o d e M a rx .

C a pa ; Mariana N ada.
S A Ú D E L O U C U R A (T E X T O S ) 32
direção de
A n tô n io L an cetti
de E duardo M o u rào Vasconcelos
na E d ito ra H ucitec
Reinventando a vida: narrativas de recuperação
e convivência com o transtorno m ental (org.)
Podem os ser curadores, mas sem pre. . . tam bém feridos! dor, envelh ecim en to e
m orte c suas im plicações pessoais, políticas e sociais. In: E y m ard M . Vasconcelos
(org.). A espiritualidade no trabalho em saúde
Abordagens psicossociais I — história, teoria e trabalho no campo
Abordagens psicossociais I I — reforma psiquiátrica e saúde mental
na ótica da cultura e das lutas populares (org.)
Abordagens psicossociais I I I — perspectivas para o serviço social (org.)
M arx e a subjetividade humana
1. a trajetória das ideias e conceitos nos textos teóricos
M arx e a subjetividade humana
2. uma história das ideias psicológicas na Europa até 1850
M arx e a subjetividade humana
3. balanço de contribuições e questões teóricas para debate
E d u a rd o M o u rã o Vasconcelos

Karl Marx
ea
Subjetividade Humana

volume 2
U M A H IST Ó R IA DAS ID E IA S
PSICOLÓGICAS N A EUROPA
ATÉ 1850

E D IT O R A H U C IT E C
S ã o P a u lo , 2 0 1 0
© 2010, de Eduardo M ourâo Vasconcelos.
Direitos de publicação reservados por
Aderaldo ôc Rothschild Editores Ltda.,
Rua Senador Feijó, 176, conj. 701
01006-000 São Paulo, Brasil
T el: (55 11) 3637-9641

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lerereler@hucitec.com.br

Depósito Legal efetuado.

Coordenação editorial
M a ri ana N ada
Assistente editorial
M ariangela G iannella

ISBN : 978-85-7970-048-4
SUMÁRIO

C apítulo 1
I n tr o d u ç ã o ao s e g u n d o v o lu m e d a c o le tâ n e a . . 13

C apítulo 2
A h e ra n ç a d e d ilem as h istó ric o s e filo só fico s n a s c o n ce p çõ es
d e s u b je tiv id a d e h u m a n a n a I d a d e C lá ss ic a e M o d e r n a . 23
2 .1 . R a c io n a lid a d e g re g a e a lo n g a h e ra n ç a d u a lis ta e n tre
n a tu re z a /c o rp o e p e n s a m e n to /ra z ã o , e su a re ite ra ç ã o n a m o ­
d e r n id a d e . . . . . . . . 2 3
2 .2 . A e m e rg ê n c ia d e u m a n o v a co n ce p ção d e su je ito e d e
s u b je tiv id a d e no R e n a s c im e n to e n a m o d e rn id a d e . . 25

C apítulo 3
A lg u m a s c o n trib u iç õ e s p r é - ilu m in is ta s im p o r ta n te s p a r a
a c o n fo rm a ç ã o d a s id e ia s p sic o ló g ic a s n a Id a d e M o d e r n a 29
3 .1 . A “in v e n ção d o su je ito h u m a n o c o m p le x o ” e d a “d i­
m e n sã o p sico ló g ica m o d e rn a ” n a lite ra tu ra , p o r S h ak esp eare 29
3 .2 . O s ru d im e n to s d a id e ia e d o fu n c io n a m e n to d o in ­
c o n sc ie n te n a filosofia m o ra l e n a m e ta físic a d o sécu lo X V II 34
3 .3 . U m a c o n c e p ç ã o in te g ra d a e m o n ista d e c o rp o e alm a, e
u m esb o ço das ideias d e in c o n scien te e s in to m a, e m E sp in o sa. 39
3 .4 . U m o u tro esb o ç o d a id e ia d e in c o n sc ie n te , e m L e ib n iz 42

Sum ário | 7
Capítulo 4
O m a terialism o ilu m in ista fra n c ê s e su a p s ic o lo g ia s e n s a -
cio n ista dc b ase e m p iris ta . . . . . 4 5
4.1. A psicologia d e C o n d illa c c o m o p rin c ip a l m a tr iz d a
psicologia ilu m in ista e rev o lu c io n ária fran cesa . . 45
4.2. U m d e sd o b ra m e n to c e n tra l d o sen sacio n ism o : P h ilip p e
P inei, a em erg ên cia d a p siq u ia tria m o d e rn a e o tr a ta m e n to
m o r a l. . . . . . . . . 5 4

Capítulo 5
O m o v im e n to ro m â n tic o e su as im p lic a ç õ e s n a s id e ia s p s i­
co ló g icas . . . . . . . . 6 3
5.1. C o n te x to h istó ric o , c ara cterísticas e p rin c ip a is te n d ê n ­
cias n a E u ro p a . . . . . . . 6 3
5.1.1. A em ergên cia d o c ap italism o e suás rep ercu ssõ es so cio -
cu ltu rais . . . . . . . . 6 3
5.1.2. As p rin cip ais cara cterísticas d a reação e d a c rític a r o ­
m ân tica na E u ro p a . . . . . . . 6 4
5.1.3. As d ifere n tes tra d iç õ e s ro m â n tic a s, d o p o n to d e v ista
p o lítico . . . . . . . . 6 9
5.2. R ousseau e suas id eias p sico ló g icas: o u so d a im a g in a ­
ção para fins p o sitiv o s e p a ra o c o n h e c im e n to d e si, seus
p o n to s positivos e suas d ific u ld a d e s . . . . 7 3
5.3. O ro m a n tism o a lem ão . . . . . 7 9
5.3.1. C o n te x tu a liz a ç ã o h istó ric a . . . . 7 9
5.3.2. C arac terísticas p rin c ip a is d o m o v im e n to r o m â n tic o
alem ão, na d ireç ão d e u m a h is tó ria d as id eias p sic o ló g ic a s . 82
5.3.3. G o eth e: o e sp írito ro m â n tic o , a te n sã o p e r m a n e n te
dos opostos, as forças có sm icas d o desejo , e o ro m a n c e d e
form ação (B ildungsrom an) . . . . . 8 6
5.3 .3 .1 . G o e th e e su b jetiv id a d e: alg u n s tra ç o s m a is g erais
de sua obra, in c lu in d o o Fausto . . . . . 8 8
5.3 .3 .2 . Os anos de aprendizagem de W ilkelm A/Ieister e o r o ­
m an ce de fo rm a ç ã o (B ild u n g sro m a n ) . . . 92
5.3 .4 . G . H . S c h u b e rt, a sim b ó lic a d o s o n h o e o e sb o ç o d e
u m a m etap sico lo g ia . . . . . . 9 9

8 | Sum ário

i
5 .3 .5 . K arl G u s ta v C a ru s e o r e c o n h e c im e n to e x p líc ito da
e x istê n c ia d o in c o n sc ie n te e d e su a d in â m ic a m e ta p s ic o ló -
gica • » • • ■ • • . . 1 0 2
5 .3 .6 . O b se rv a ç õ e s fin a is so b re o ro m a n tis m o a le m ã o e suas
im p lic a ç õ e s n o c a m p o d a su b je tiv id a d e . . . 107

C apítulo 6
A c o n tra p o s iç ã o ra c io n a lis ta e d ia lé tic a : as id e ia s p s ic o ló ­
g ic a s n a o b ra d e H e g e l . . . . . . 1 1 3
6 .1 . A d v e rtê n c ia s m e to d o ló g ic a s p re lim in a re s . . 113
6 .2 . A lg u m a s n o ta s in tro d u tó ria s so b re a re la ç ã o e n tre a
v id a e a o b ra d e H e g e l e o c a m p o d as id e ias p sico ló g icas . 115
6 .3 . A F enom enologia do esp írito . . . . . 1 2 0
6.4. A Enciclopédia das ciênciasfilosóficas e su a seção so b re a
alm a . . . . . . . . . 1 3 3

C apítulo 7
A c rític a d o id e a lis m o r a c io n a lis ta a le m ã o a n te s d e M a rx :
p r e c u r s o r e s ( S c h o p e n h a u e r e K ie r k e g a a r d ) e F e u e r b a c h ,
c o m s u a a n á lis e d a a lie n a ç ã o re lig io s a . . . 1 4 5
7.1. P re c u rs o re s d a c rític a ao ra c io n a lis m o h e g e lia n o : S c h o ­
p e n h a u e r e K ie rk e g a a rd . . . . . . 1 4 5
7 .1 .1 . S c h o p e n h a u e r . . . . . . 1 4 5
7 .1 .2 . K ie r k e g a a r d . . . . . . . 147
7 .2 . F e u e rb a c h e o c o n te x to m a is g e ra l d e su a v id a e o b ra . 1 4 9
7.3. O c o n te x to e a sig n ificaçã o m a is g e ra l d e A essência do
cristianism o . . . . . . . . 1 5 0
7 .4 . A s p rin c ip a is p ro p o siç õ e s d e A essência do cristianism o
n o c a m p o p sic o ló g ic o . . . . . . 1 5 3
7 .4 .1 . O s a rg u m e n to s e teses c e n tra is d o livro . . 154
7 .4 .2 . O p r im e ir o m o v im e n t o : o s e r h u m a n o c su a c liv a g e m
e s s e n c ia l . . . . . . . . 1 5 5
7 .4 .3 . O s e g u n d o m o v im e n to : a o b je tiv a ç ã o e p ro je ç ã o da
e ssê n c ia e m u m O u tr o . . . . . . 1 5 7
7 .4 .4 . O te rc e iro m o v im e n to : a in v e rsã o s u je ito -o b je to e n ­
tre o s e r h u m a n o e o O u tr o p ro je ta d o , c o m o n eg aç ão e e m ­
p o b re c im e n to d a s ca ra c te rístic a s h u m a n a s . . . 1 5 8

Sum ário | 9
7.4.5. O q u a rto m o v im en to : a d ia lética d o d esejo e d o im a ­
g inário, co m o p ro d u ç ã o p o sitiv a d e realid ad es s ó c io -h is tó ­
ricas e psicológicas . . . . . . . 1 6 0
7.4.6. O q u in to m o v im e n to : o p ro cesso d e d e sa lie n a ç ã o ,
com o rec o n h e c im e n to d a p ro jeç ão e d as cara c te rístic a s p s i­
cológicas e an tro p o ló g icas d a essên cia h u m a n a . . 161
7.5. A lg u m a s o b serv açõ es c rític a s fin a is so b re a o b ra d e
F euerbach . . . . . . . . 1 6 4

Capítulo 8
C o n sid e ra ç õ e s fin a is d o v o lu m e . . . . 1 6 9

R e fe rê n c ia s . . . . . . . . 1 7 3

S um ário dos vo lu m es d a c o le tâ n e a já la n ç a d o s o u e m p r o ­
cesso de p u b licação . . . . . 181

S um ary in E n g lish o f th e alread y p u b lish e d v o lu m e s a n d


o f th e issues y e t u n d e r in q u iry . . . . . 1 9 3

I O | Sum ário
A h o ra é d e sa b e r a h is tó ria , é d e d e s a b e r a h is tó ria , é d e
a m á -la e m seus desvios
e e m seu lo n g o e le n to cu rso a a lte rn a r-s e e n tre v erõ es e
in v e rn o s.
A h o ra é d e o lh a r as raízes d o h o m e m e m c a d a h o ra
— a su a v e g e ta l p ro fu n d id a d e d e m ilén io s, a su a a lm a
m in e ra l e n tre as estrelas —
e o seu tra n s fo rm a r-s e , d e g ra u p o r d e g rau , n a escad a ria
d o s te m p o s
e m q u e ele é o q u e n ão era, sem p re se to m a n d o em o u tro
lib e rta d o d ele p ró p rio , m istu ra d e alegrias e triste z a s,
m o rte e vida.
D e s e ja r n ã o serve ao h o m e m se a esp essu ra d o real n ã o é
a su a h is tó ria e n q u a n to lib e rd a d e tra n s fo rm a d a e m
c o rp o . A h o ra
é d e fa z e r o q u e n u n c a d eix o u d e fazer q u e m é p o e ta :
o u v ir d e ca d a co isa o g rito a p risio n ad o
d a q u e le q u e a fez sem te r se q u e r p o r p ag a
a s o m b ra d e u m d o m in g o q u e valesse a p en a.
E s te é o o ficio d a m ã o q u e escreve o te m p o e as av en id as
s a b e n d o -o s c o m o o ro s to d e d eu s a esfacelar-se
e m ex p lo sõ es d e a m o r e em lib e rd a d e in fin d a .

T re c h o s d o p o e m a “O tex to ”, d e M o a c y r F élix , p o e ta e
m ilita n te socialista, falecido em 2 0 0 5 . In : E m nom e da
v id a , R io d e Janeiro: C ivilização B rasileira, 1 981, p. 1 3 6 ).
C ap ítu lo I
In t ro d u ç ã o ao Segund o Volum e
da coletânea

O s o lh o s , p o r e n q u a n to , são a p o r ta d o
e n g a n o ; d u v id e d e le s, do s seu s, n ã o d e
m im . A h , m e u a m ig o , a esp écie h u m a n a
p e le ja p a ra im p o r a o la te ja n te m u n d o u m
p o u c o d e r o tin a e ló g ic a, m a s a lg o o u a l­
g u é m d e tu d o fa z trin c h a p a ra r ir- s e d a
g e n te . . . E e n tã o ?
— J oào G uimarães R osa1

E s te v o lu m e c o n s titu i o s e g u n d o d e u m a série m a is lo n g a ,
c o m p o n d o u m e s tu d o m a is a m p lo so b re as co n ce p çõ es d e K arl
M a rx s o b re a su b je tiv id a d e h u m a n a . É p o ssível se in ic ia r a le itu ra
d a c o le tâ n e a p o r e s te v o lu m e , p a rtic u la rm e n te p a ra aqueles in te ­
ressad o s ap en a s n o c a m p o d a h is tó ria d as id eias p sico ló g icas, m a s o
le ito r cu jo in te re s se m a is fu n d a m e n ta l está n o d e b a te m a rx ista s o ­
b re o te m a , d ev e p r o c u r a r in s e rir a le itu ra d o p re s e n te to m o n a
se q u ê n c ia d o s d e m a is.
A te s e d e f u n d o q u e in s p ir a o c o n ju n to d a c o le tâ n e a é a q u e
já ex p u se m o s c o m m a is d e ta lh e s n a a p re se n ta ç ã o d o p rim e iro v o lu ­
m e, já d iv u lg ad o : o m a rx is m o c o n s titu i se m d ú v id a a lg u m a a p r i n ­
cip a l re fe rê n c ia te ó r ic a e é tic o - p o lític a p a r a a lu ta p e la e m a n c i­
p açã o h u m a n a e so c ia l, m a s a p ó s c e rc a d e c e n to e c in q u e n ta a n o s
d e f o r m u la ç ã o in i c ia l d e s u a s id e ia s , e d e v á r ia s e x p e r iê n c ia s
d e rro ta d a s d e s o c ia lis m o re a l, é n e c e ss á rio se a b r ir p a r a u m a re ­
novação da h era n ça m a r x is ta , u m a v e z q u e a p r ó p r ia r e a lid a d e
h is tó ric a é d in â m ic a e v e m n o s d e s c o r tin a n d o in ú m e r o s o u tr o s
no v o s d e sa fio s e q u e s tõ e s . A lé m d isso , p e n so q u e p a r tic u la r m e n te
n o c a m p o d a s u b je tiv id a d e , p e la s su a s c a r a c te r ís tic a s e s p e c íf i­
cas, as d ific u ld a d e s s ã o a in d a m a io re s e m a is c o m p le x a s, n ã o se
ju s tific a n d o a p r e t e n s ã o d e m u ito s c o m p a n h e ir o s m a r x is ta s d e

3 T recho d o c o n to “O esp elh o ”. In: Primeiras estórias. R io de Ja n e iro : M E -


D IA fashion, 2 0 0 8 , p. 77.

Introdução ao Segundo Volume | I 3


c o n s id e ra r a a b o r d a g e m m a r x ia n a o u e x c lu s iv a m e n te m a rx is ta
c o m o s u fic ie n te e o n i p o t e n t e p a r a li d a r c o m to d o s o s f e n ô m e ­
n o s e q u e s tõ e s d o c a m p o .
E m su m a , p r e te n d o d e m o n s tr a r q u e , a o m e sm o te m p o q u e
n ão p o d e m o s a b rir m ã o d e n o sso p r o je to h is tó ric o m ais g lo b a l, de
no ssa m ilitâ n c ia p o r u m a n o v a s o c ie d a d e e d a tra d iç ã o m arx ista
q u e n o s in sp ira , a p r ó p r ia fid e lid a d e a e s te p ro je to e à co n c e p ç ã o
d ia lé tic a d a h is tó ria n o s o b rig a a o c o n s ta n te m o v im e n to d e n e g a -
ç ã o /su p ra ss u n ç ã o e, p o r ta n to , d e re n o v a ç ã o d e n o ssas id eias, n o
e n fre n ta m e n to c o m o c o n s ta n te flu x o d e tra n s fo rm a ç ã o social e de
novas d e sc o b e rta s e te o ria s c ie n tífic a s q u e v ê m se d e s c o rtin a n d o
nos ú ltim o s c e n to e c in q u e n ta a n o s , p a r tic u la r m e n te n o c a m p o d a
su b je tiv id a d e . C o m o in d iq u e i e m o u tr o s v o lu m e s d a c o le tâ n e a , os
e n o rm e s d e s a fio s q u e a lu ta e c o n ó m ic a , so c ia l e p o lític a n o s a p r e ­
s e n ta h o je , d a d a a r a d ic a lid a d e c o n s e r v a d o r a e d e v a s ta d o r a d o
n e o lib e ra lis m o e s u a s c rise s, n ã o ju s tif ic a m u m a re g re s s ã o te ó r i­
ca a e s q u e m a s q u e j á m o s tr a r a m s u a lim ita ç ã o , n e m a o tr a b a lh o
d e n o s p e r g u n ta r s o b r e o s d e t e r m in a n te s d o s fra c a s s o s h i s t ó r i ­
co s e te ó ric o s q u e le v a r a m à d e r r o c a d a d a q u a s e to ta lid a d e d a s
e x p e riê n c ia s d e s o c ia lis m o re a l q u e se in ic ia r a m n o sé c u lo X X .
N o v o lu m e a n te r io r d a c o le tâ n e a , e m u m p r im e ir o n ív el d e
in v e stig açã o d e s te e s tu d o , b u s q u e i s is te m a tiz a r d e fo rm a in te ir a ­
m e n te d esc ritiv a as c o n c e p ç õ e s d e su b je tiv id a d e h u m a n a p re s e n te s
nas o b ra s te ó ric a s d e M a rx , te n ta n d o se r o m a is fiel p o ssív el a seu
te x to e a suas id e ias, e m b o ra ta m b é m tiv esse in c lu íd o , n a fo rm a d e
n o ta s d e ro d a p é e d e m a n e ira in te ir a m e n te s e c u n d á ria , a lg u m a s
re fe rê n c ia s a d ife re n te s le itu ra s d e seu te x to d e n tr o n a tra d iç ã o
m a rx ista. N e s te v o lu m e , p r o p õ e - s e u m o u tr o n ív e l d e in v e s tig a ç ã o :
te n ta r m a p e a r a lg u m a s d a s p r in c ip a is lin h a s d a h is tó r ia d a s id e ia s
p s ic o ló g ic a s n o s p e r ío d o s C lá s s ic o e M o d e r n o , n o c o n te x to e u r o ­
p e u , p a r tic u la r m e n te n a A le m a n h a , F r a n ç a e I n g la te r r a , p a r a p o ­
d e r m o s id e n tif ic a r , p a r a a lé m d a s f o n te s e x p l ic it a m e n te r e c o ­
n h e c id a s p o r M a r x e p e lo s p r in c ip a is a u to re s m a rx is ta s , o s a u to r e s
e id e ia s r e f e r e n te s à s u b je tiv id a d e q u e e s tiv e r a m p r e s e n te s n o
u n iv e rs o te ó ric o , c u ltu r a l e b io g r á f ic o d e M a r x , p a r a in d i c a r a s
p o ssív eis p re s e n ç a s , a u s ê n c ia s d e lib e ra d a s o u n ã o , lin h a s d e c o r te
I 4> | Introdução ao Segundo Volume
ou d e c o n f r o n to a b e r to , q u e n o s p o ssa m in d ic a r com m ais p ro ­
fu n d id a d e a te s s it u r a o p e r a d a p o r ele n e s te cam p o tem ático .
S a b e m o s q u e p a r a q u a lq u e r a to r social q u e te n h a um a práxis
h istó rica e escrev a, os c o n ta to s e in flu ên cias teóricas e culturais que
reco n h ece e x p lic ita m e n te são se m p re e in ev itav elm en te apenas p ar­
ciais, já q u e d e fo rm a c o n s c ie n te /in te n c io n a l o u não, ele reconhece,
privilegia, c ritic a o u se re a p ro p ria d e ap en as alguns elem entos de
sua c u ltu ra , e m d e tr im e n to d e o u tro s. A ssim , co n sid ero im p o rta n ­
te refaze r e s te itin e r á r io d a s fo n te s e au to res q u e tiveram algum a
in d icação d e c o n ta to p o r M a rx , m as d e fo rm a m ais am pla, retra­
tan d o ta n to o q u e fo i a p ro p ria d o c o m o o q u e foi desconhecido,
rejeitado o u n e g a d o . S e rã o feitas, n a tu ra lm e n te , ta m b ém algum as
incursões e m a lg u n s a u to re s q u e M a rx d esco n h eceu o u evitou, mas
que c o n fig u ra m re fe rê n c ia s im p o rta n te s p ara a cultura da época
em relação ao te m a , a té 1 8 5 0 .
E im p o r ta n te e x p lic ita r m e lh o r os te rm o s p rincipais u tiliza­
dos n a fo rm u la ç ã o d esse o b je tiv o . A o m e referir acim a às ideias
p sico ló g icas e à n o ç ã o d e s u b je tiv id a d e , esto u m ais interessado
nos te m a s d a p e r s o n a lid a d e e se u p ro c e sso d e fo rm ação , d o ap a­
relh o p s íq u ic o , d e se u s m e c a n is m o s in te r n o s e d a n o ção d e in ­
c o n s c ie n te , b e m c o m o d e su a s im p lic a ç õ e s n o q u e se refere às
relaçõ es e n t r e c o r p o r a lid a d e /e m o ç õ e s e p e n s a m e n to /c o g n iç ã o ,
b em c o m o d o s c a m in h o s in d ic a d o s p a r a os in d iv íd u o s ela b o ra ­
rem e tr a t a r e m d e s u a s q u e s tõ e s su b je tiv a s, p a rtic u la rm e n te do
s o frim e n to p s íq u ic o . E s tã o ta m b é m in c lu íd as aq u i as im p lic a ­
ções d e s s a s te m á tic a s p a r a o s p ro c e s s o s so ciais e co letiv o s, n o
cam p o d a p s ic o lo g ia so c ia l e d a p sic o lo g ia política.
Q u a n d o m e re firo à co n c e p ç ã o d e su b jetiv id ad e d e M a rx , o
objetivo m a is a m p lo d e s ta c o le tâ n e a n ã o é só explicitar o cam po
das ideias, m as ta m b é m a s u a p r ó p r ia v iv ên cia su b jetiv a p essoal
e fam iliar, o q u e re p re s e n ta rá o o b je to de vários volum es seguintes,
mas se b u sc a rá ta m b é m c h e g a r a o te m a das im p licaçõ es n o q u e se
refere a e s tr a té g ia s c o n c r e ta s d e lid a r c o m a s u b je tiv id a d e n o
p lano d a p o lític a c u ltu r a l e so cial. N esse te rre n o , nos p ró x im o s
volum es, o foco c e n tra l d a in v e stig açã o serão as fo n tes p rim árias e
secundárias so b re a v id a c o n c re ta d e M a rx , q u e inclui as várias
Introdução ao Segundo Volume | I S
biografias sérias ex isten tes, m as s o b re tu d o as m u ita s c artas tro c a d a s
com seus p rin c ip a is in te rlo c u to re s , q u e c o n s titu e m d u r a n te u m
p erío d o razoável d e sua vid a, n o ta d a m e n te em L o n d re s , u m a fo n te
d e ta lh a d a de d escrição d e su a v id a c o tid ia n a , d e suas d ific u ld a d e s,
e p a rtic u la rm e n te d e suas le itu ra s e fo n te s d e re fe rê n c ia . N essas
cartas, é possível id en tificar, m ais c la ra m e n te , u m c a m p o d e in te r -
locução cu ltu ral e te ó rica d e M a rx m ais a m p la , e q u e n ã o e stá c la­
ra m e n te ex p licitad o e m seus te x to s fo rm a is e te ó ric o s. Se p u d e r ­
m os e n tã o esclarecer n o sso o b je tiv o a q u i, d ire m o s q u e é c o n h e c e r
u m p o u c o m e lh o r e ste c o n te x to d a s o b ra s , a u to re s , m o v im e n to s
c u ltu ra is e d as id e ias s o b re a s u b je tiv id a d e h u m a n a q u e tiv e ra m
alg u m a re p e rc u ssã o e m M a r x , p a r a te n ta r id e n tif ic a r n ã o ta n to o
q u e foi c la ra m e n te re c o n h e c id o o u r e je ita d o d e f o r m a in te n c io ­
n a l p o r M a rx , c o m o fiz e m o s n o v o lu m e a n te r io r , m a s o q u e ele
a ssim ilo u , d e s c o n h e c e u o u re je ito u d e f o r m a in d ir e ta , te n ta n d o
dessa fo rm a e x p lic ita r m e lh o r e d e f o rm a m a is c o m p le x a a s r e la ­
çõ es q u e ele e s ta b e le c e u c o m o c a m p o d a s id e ia s e d a c u ltu r a
so b re s u b je tiv id a d e e d a s id e ia s p s ic o ló g ic a s d e su a é p o c a .
E im p o rta n te ta m b é m fazer u m a o b se rv a ç ã o q u a n to ao u so
d a expressão história das ideias, p o is e s to u c o n s c ie n te d e q u e se tra ta
de u m c o n ce ito n ã o co n se n su a l n o c a m p o d a h is tó ria , p a rtic u la r­
m e n te p o rq u e a tra d iç ã o in g lesa e n o r te -a m e ric a n a p re fe re a n o ção
de história intelectual (L a c e rd a ôc K irsc h n e r, 2 0 0 3 ). E n tr e ta n to ,
h istó ria das ideias é o c o n c e ito c a n ó n ic o u tiliz a d o n o c o n tin e n te
eu ro p eu p ara d e s ig n a r esse tip o d e e s tu d o h is tó ric o , e m e sm o q u e
possib ilite alg u m a a m b ig u id a d e , esclareço d e a n te m ã o d e q u e to m o
o c o n c e ito n o s e n tid o m a is r e s tr ito d e u m a in v e s tig a ç ã o fo c a d a
em o b ra s, d o u tr in a s e m o v im e n to s c u ltu ra is n a e sfe ra m a is e r u ­
d ita d a c u ltu ra . P o r ta n to , d ife re n c io e s te tr a b a lh o d a s p e s q u is a s
q u e in c lu e m as m e n ta lid a d e s , as id e o lo g ia s , o im a g in á r io e a d i­
m e n sã o so cial d a c u ltu ra , q u e c o n s titu e m fe n ô m e n o s m u ito m a is
am p lo s e m ais co m p lex o s.
N e s ta h is tó ria d a s id e ia s, o le ito r p o d e r á n o ta r u m a f o rte
p re o c u p a ç ã o c o m u m a a b o r d a g e m d id á tic a e a c e s s ív e l p a r a os
n ã o in ic ia d o s e m h is tó r ia d a p sic o lo g ia e d a filo so fia , d a d o c o n s i­
d e ra r q u e p a rtic u la r m e n te o p r im e ir o c a m p o é p o u c o c o n h e c id o
I 6 | Introdução ao Segundo Volume
d o p r in c ip a l p ú b lic o p o te n c ia l d e in te r lo c u ç ã o d o p r e s e n te t r a ­
b a lh o , q u e é p rio r ita r ia m e n te a p r ó p r ia e s q u e rd a e o s e s tu d a n te s
u n iv e rs itá rio s d e m o d o g e ra l. A lé m d isso , a p e sa r d e c o n s titu ir u m a
ta re fa c o m p le x a , n ã o h á n e n h u m a p r e te n s ã o d e o r ig in a lid a d e o u
d e e x a u s tiv id a d e , m as a p e n a s a b u sc a d e revisar, s itu a r h is tó ric a e
c u ltu ra lm e n te p a ra o le ito r as p rin c ip a is te n d ê n c ia s e a u to re s d as
id eias p sico ló g icas q u e c h e g a ra m até M a rx , d e fo rm a d e sc ritiv a e
m ais s in té tic a possível, e v ita n d o n a m e d id a d o p o ssív el as suas p o ­
lêm icas e p ro b le m a tiz a ç õ e s se c u n d á ria s, já q u e essa rev isão m a is
a m p la n ã o c o n s titu i o te m a c e n tra l d e n o sso e s tu d o . A lé m d e d e li-
b e ra d a m e n te n ã o b u s c a r a ex au stiv id ad e, o c rité rio d e e s c o lh a d a s
te n d ê n c ia s e a u to r e s se b a s e o u e s t r i t a m e n t e n a p o s s ív e l r e l e ­
v â n c ia p a ra m a p e a r o c a m p o d e in te rlo c u ç ã o e as c o r r e n te s q u e
M a r x in d ic o u d e f o r m a e x p líc ita o u im p líc ita . N essa d ire ç ã o , a l­
g u n s a u to re s im p o rta n te s d e id e ias p sico ló g icas n o O c id e n te n ã o
fo ram c o n te m p la d o s c o m seções esp ecíficas, se n d o a lg u n s e x e m ­
p los sig n ificativ o s os casos d e H u m e , L o ck e , K a n t e os filó so fo s d o
g ru p o d e J e n a , e n tre eles S ch e llin g , S chiller, os irm ã o s S ch le g el,
N o v alis, S c h le ie rm a c h e r e T ie c k . E n tr e ta n to , a m a io ria desses a u ­
to re s foi c ita d a o u re fe re n c ia d a n a an álise d o s d e m a is a u to re s e
m o v im e n to s rev isad o s aq u i, c o m o fo rm a d e c o n te x tu a liz a r o d e b a ­
te d a ép o ca , o u d e d e sc re v e r m a is g lo b a lm e n te o m o v im e n to c u ltu ­
ral o u filo só fico d o q u a l p a rtic ip a ra m . H á ta m b é m u m g ru p o ú n i­
co d e filó so fo s, id e n tific a d o so b o títu lo d e “filo so fia m o ra l e n a
m e ta físic a d o sécu lo X V I I ”, q u e , e m b o ra n ão sejam a u to re s p r o ­
p ria m e n te re le v a n te s n o m a p e a m e n to d a in te rlo c u ç ã o d e M a rx ,
fo ra m in c lu íd o s aq u i p a ra in d ic a r o in ício d e u m a reflex ão m ais
esp ecífica so b re os p ro cesso s p síq u ic o s m ais p ro fu n d o s n o c lassi­
c ism o o c id e n ta l. L e m b ro a in d a q u e h á o u tro s p e n s a d o re s e filó so ­
fos id e n tific a d o s p e la tra d iç ã o m a rx ista, p a rtic u la rm e n te p e lo m a r ­
x ism o o c id e n ta l (A n d e rso n , 2 0 0 4 ), c o m o ta m b é m im p o rta n te s p a ra
a g e n e a lo g ia d o p e n s a m e n to m a rx ia n o e m a rx ista, m as q u e c o n s i­
d e re i n ã o n e c e ss a ria m e n te rele v an tes p a ra o c a m p o d a su b je tiv id a ­
d e e d a h is tó ria d as id e ias p sico ló g icas.
C o m o p rim e iro p asso n o re c o n h e c im e n to d o c a m p o p sico ló g i­
co n a h is tó ria , c o n s id e ro fu n d a m e n ta l re le m b ra r q u e o s a b e r s o b re
Introdução ao Segundo Volume | I 7
o s fe n ô m e n o s p síq u ic o s se c o n s titu iu c o m o c a m p o c o n s id e ra d o
c ie n tífic o , d a fo rm a c o m o o c o n h e c e m o s h o je , a p e n a s a p a r tir d o
fin a l d o sécu lo X IX . A té e n tã o , a fo rm u la ç ã o d e id eias so b re os fe ­
n ô m e n o s subjetivos h u m a n o s p asso u in ic ia lm e n te pelas relig iõ es
a n tig as e pelas ideias e trad içõ es desen v o lv id as pelas so cied ad es m ais
estáveis e longas q u e nos leg aram sinais, m o n u m e n to s e d o c u m e n to s
(E g ito , ín d ia , C h in a , Jap ão , P érsia, G ré c ia , Im p é rio R o m a n o , etc.).
A ssim , u m a h istó ria m ais am p la d as id e ias p sico ló g icas n o s lev aria
p ela h is tó ria d as religiões e d a a rte , p ela h is tó ria d a c u ltu ra e d o
c a m p o an tro p o ló g ic o , p ela h istó ria d a filo so fia, etc . N o O c id e n te ,
u m a tra je tó ria h istó ric a desse tip o te ria d e ser in ic ia d a e p assaria
p elo m e n o s p ela G ré c ia p rim itiv a, pelas p ro d u ç õ e s asso ciad as ao
a n im ism o , p elo u n iv erso h o m é ric o , p elo s filó so fo s p ré -so c rá tic o s,
pelo p e n sa m e n to socrático, p o r P latão , A ristó te le s e pelos m o v im e n ­
tos ep ic u rista e esto icista, p elo p e n s a m e n to ju d a ic o e c ristã o , até
ch eg a r ao m u n d o clássico e m o d e rn o (M u e lle r, 1 9 7 8 ). E s te c o n s ti­
tu i u m c am p o d e e n o rm e a m p litu d e , e fo g e c o m p le ta m e n te aos
objetivos de nosso e stu d o , e su a le m b ra n ç a a q u i te m o ú n ic o o b jetiv o
de in d ic a r n este m o m e n to as m u ita s p o ssib ilid a d e s e d ife re n te s
te rre n o s em q u e as id e ias p sic o ló g ic a s se c o n s titu ír a m n a h is tó r ia
h u m a n a , antes d a em e rg ê n c ia d e u m c o rp o d e c o n h e c im e n to m ais
a u tó n o m o e re c o n h e c id o n o q u a d ro d as ciên cia s c o n te m p o râ n e a s .
A ssim , se estam os in teressados nas co n cep çõ es d e su b jetividade
e na h istó ria das ideias p sicológicas n o c o n te x to d a c u ltu ra o c id e n ta l
e p a rtic u la rm e n te alem ã q u e c h e g a ra m a té M a rx e q u e serão re e la -
b o rad as e, o u , v ivenciadas p o r ele, te m o s d e p a r tir d e s te re c o n h e c i­
m e n to dos vários cam p o s rele v an tes d e s a b e r e a tiv id a d e c u ltu ra l
em q u e em erg em . E im p o rta n te reiterar, s o b re tu d o p a ra o le ito r
pouco h a b itu a d o co m a h istó ria d o cam p o , q u e este v o lu m e re c o n h e ­
ce in te g ra lm e n te u m a im p o r ta n te c a r a c te r ís tic a d a h is tó r ia d as
ideias p sico ló g icas: o fa to d e elas e m e r g ir e m n a h is tó r ia h u m a n a
de fo rm a c o m p le ta m e n te in te g r a d a e “e n t r a n h a d a ” n a p r o d u ç ã o
d as d e m a is p rá tic a s lite rá ria s , c u ltu r a is , in te le c tu a is e p o lític a s .
A ssim , n ão a p re s e n ta m a té o fin a l d o s é c u lo X I X n e n h u m a in d e ­
p e n d ê n c ia e re fle x ã o p r ó p r ia , n e m d if e r e n c ia ç ã o d e o b je to , d e
su as c a ra c te rístic a s p a rtic u la re s , d o s p la n o s d e a n á lis e e d e su as
I 8 | Introdução ao Segundo Volume
e p is te m o lo g ia s e sp e c ífic a s, n e m a e n o r m e a u t o n o m ia re la tiv a e
c u id a d o s e p iste m o ló g ic o s p ró p rio s q u e c o n h e c e m o s h o je n a s v á ­
ria s c iê n c ia s c o n te m p o r â n e a s s o b re o s e r h u m a n o . A re ite ra ç ã o
d essa característica te m p ro fu n d a s im p licaçõ es n a a b o rd a g e m a se
re a liz a r aq u i, p o is a a u to n o m ia r e la tiv a d o c a m p o p s ic o ló g ic o s e rá
to m a d a c o m o p re s s u p o s to n e c e ss á rio d a m e to d o lo g ia d e a n á lis e
e s e rá p r o je ta d a r e tr o s p e c tiv a m e n te s o b re u m p e r ío d o n o q u a l
n ã o ex istia fo rm a lm e n te . E m o u tras palav ras, se n o p e río d o a b o rd a ­
d o a te m á tic a psicológica estava in te ira m e n te e m b u tid a n o d e b a te
literário, filosófico, cultural e político d a época, a avaliação d a relevância
d e u m a id eia psicológica será feita a q u i p o r critério s teó rico s e e p is te ­
m oló g ico s posteriores a ele, e q u e valorizam a especificidade d o c a m p o
p sicológico c o n te m p o râ n e o . A ssim , m u ita s vezes u m a id e ia p s ic o ló ­
g ic a p o d e ser avaliad a p o r au to re s d a ép o c a p ela ó tic a p a rtic u la r d a
filo so fia o u d a p o lític a , m as, se c o n s id e ra d a a p a r tir d o s c u id a d o s
te ó ric o s, m e to d o ló g ic o s e e p iste m o ló g ic o s q u e a área foi d e m a n ­
d a n d o p a ra si a p a rtir d e seu re c o n h e c im e n to c o m o c a m p o a c a d ê ­
m ic o e c ien tífico específico, essa avaliação será c o m p le ta m e n te d ife ­
re n te . N e sta direção , p o r m ais m u ltid im e n sio n a l e fra g m e n ta d o q u e
seja (V asconcelos, 2 0 0 8 a), tal a u to n o m ia relativa p ró p ria d o c a m p o
p assa a exigir q u e essa avaliação se to m e m u ito m ais co m p lex a e rica,
rev elan d o facetas im possíveis d e serem percebidas se m a n tid a a in e s-
pecificidade teó rica e ep istem o ló g ica v ig e n te nos p erío d o s an terio res.
E sse p o n to d e p a rtid a te m v árias co n seq u ên cias fu n d a m e n ta is
n e ste s e g u n d o to m o , e u m a delas é q u e ele im p lic a tr a ta r o c a m p o
d a s id e ia s p sic o ló g ic a s d e f o r m a b e m m a is liv re q u e n o v o lu m e
a n te rio r. A ssim , p e n so q u e estam o s lid a n d o agora com u m a c o n c e p ­
ç ã o d e h is tó r ia d a id e ia s p sic o ló g ic a s e d o p ró p rio c a m p o d a p s i­
c o lo g ia b e m m a is a m p la d o q u e u m a e v e n tu a l a b o rd a g e m e s tr i­
ta m e n te m a rx is ta , a p esar d a in te n s a e fu n d a m e n ta l in flu ê n c ia d o
m a rx ism o em m in h a p ró p ria fo rm a ç ã o te ó rica e p o lític a. D e s sa fo r­
m a , n e ste v o lu m e , n o s re fe rim o s a a u to re s , o b ra s e id e ias d a é p o ­
c a e p ro c u ra m o s re la c io n á -lo s c o m o c o n ju n to d as p rin c ip a is li­
n h a s te ó ric a s e id e ia s c o n te m p o r â n e a s d a p sico lo g ia, sem n e n h u m
re s triç ã o a p r io r i. C o n tu d o , d a d a a c e n tra lid a d e d o fo co n o s te m a s
d a p e rs o n a lid a d e , n o a p a re lh o p síq u ic o e n o in c o n sc ie n te , será d a d a
Introdução ao Segundo Volume | I 9
atenção especial às ideias que m ais ta rd e d esag u aram nas co n cep çõ es
de F reu d e Ju n g , p rin cip ais m a trize s m ais recen tes d e d esen v o lv i­
m e n to das ideias psicológicas em relação a esses te m as. E ssa tra je ­
tó ria req u er ta m b é m , d e fo rm a m ais s in té tic a p o ssível, id e n tific a r
os principais eixos d e in flu ên cia h istó ric a , social e c u ltu ra l q u e in ­
cidem sobre o c a m p o em seus co n tex to s esp ecífico s, e e m ta l c a m i­
n h o p o d em o s b u sc a r recu rso s e in sp ira ç ã o e m u m a a b o rd a g e m
m arxista, m as é p reciso d eix ar claro q u e n ão nos lim ita re m o s a ela.
A característica d a h istó ria d o c am p o p sico ló g ico até a m o d e r­
n id ad e referid a acim a, d e c o m p le ta in serçã o n o u n iv e rso aca d êm ico
e cu ltu ral h u m a n o m ais am p lo , a p o n ta ta m b é m fo rte s ex ig ên cia s
m etodológicas. A o co n sid erar esta am p lid ão d a in c id ên cia das ideias
psicológicas, p e n s o q u e q u a lq u e r e s tu d o p a rtic u la r d ev erá p a r tir d e
u m a clara d e lim ita ç ã o d e seu foco de in v estig ação , p a ra se to r n a r
viável. N o nosso caso, d a tra je tó ria d o c a m p o n o p e río d o clássico e
m o d e rn o até M a rx , o c e n á rio o b je to d e n o s so e s tu d o d e v e rá , p o r
ta l razã o , ser r e d u z id o a in d ic a ç õ e s o riu n d a s a p e n a s d e d u a s á re a s
p rin c ip a is: d a filo so fia e, m e n o s f r e q u e n te m e n te , d a lite r a tu r a .
Sem d ú v id a alg u m a, n o O c id e n te , as in d a g a ç õ e s e fo rm u la ­
ções m ais sistem áticas acerca d o s fe n ô m e n o s p sico ló g ico s a té o sé­
culo X IX fo ram realizad as n o c a m p o d a filo so fia , e m suas d iv ersas
áreas, m as m ais esp e c ific a m e n te n a a n tro p o lo g ia filo só fica, n a te o ­
ria do c o n h e c im e n to , na estética , n a étic a , n a filo so fia p o lític a , n a
filosofia m oral e n a filosofia d a relig ião . T a m b é m d o p o n to d e v ista
da te m ática d e n o sso tra b a lh o , a filo so fia c o n s titu iu o p rin c ip a l
cam po de fo rm aç ão aca d êm ica d e M a rx , e, sem d ú v id a alg u m a ,
deve ser o p rin c ip a l fo co d e q u a lq u e r revisão, m e sm o q u e e s q u e ­
m ática, das ideias so b re su b jetiv id a d e q u e e sta v a m d isp o n ív e is n a
A lem an h a, F ran ça e In g la te rra — p aíses q u e c o m p u s e ra m a in te r -
locução in te le c tu a l d ire ta d e M a rx — n o c o n te x to p rév io e d u r a n ­
te a sua fo rm ação u n iv e rsitária .
A seg u n d a fo n te im p o rta n tís s im a d as id e ia s p sico ló g icas e
que teve relev ân cia em to d a a v id a d e M a rx fo i a lite r a tu r a . M a rx
sem p re leu in te n s a m e n te os clássicos e a lite ra tu ra d e seu te m p o ,
teve c o n ta to s m u ito estre ito s e reg u la res c o m a lg u n s p o e ta s , e e m
sua ju v e n tu d e escrev eu p o e m a s, p r e te n d e u ser p o e ta c o m o p ro je to
20 | Introdução ao Segundo Volume
p ro fis s io n a l d e v id a, p a rtic ip a n d o d e g ru p o s v o lta d o s p a ra a lite r a ­
tu ra. E n t r e t a n t o , alg u n s au to res clássicos, q u e fize ram in c u rs õ e s
fu n d a m e n ta is n o c a m p o d a su b je tiv id a d e h u m a n a , p a rtic ip a ra m
d e f o rm a m u ito m a is in te n s a ao lo n g o d e to d a a su a v id a p e sso a l e
fam iliar, e n tre os q u ais se d estac am S h ak esp eare e G o e th e . A s s im ,
o u n iv e rs o d e ste s d o is a u to re s e a su a relação p o te n c ia l c o m M a rx
deve s e r o b je to d e u m o lh a r m ais cu id a d o so , c o m o o le ito r p o d e r á
c o n s ta ta r n o d e c o rre r d o tra b a lh o .
A tra je tó ria tra ç a d a ab aix o n e sta rev isão b u sc a rá e n tre m e a r
in d ic a ç õ e s e m a m b o s os c am p o s, o u seja, n a filo so fia e n a lite ra tu ra ,
s e g u in d o n a m e d id a d o p o ssív el a o rd e m h is tó ric a o u , e m a lg u n s
casos, p riv ile g ia n d o a c o n tin u id a d e te m á tic a o u s u a id e n tid a d e
c o m o m o v im e n to te ó ric o e c u ltu ra l c o m c a ra c te rís tic a s p r ó p r ia s ,
em d e tr im e n to d e p e q u e n a s d ifere n ças cro n o ló g icas, b u s c a n d o d e
q u a lq u e r fo rm a e em a m b a s as lógicas d e a p re se n ta ç ã o , a m e lh o r
c o m p re e n s ã o po ssív el d as c o n tin u id a d e s , in te ra ç õ e s e d e b a te s e n tre
as d iv ersas te n d ê n c ia s e a u to re s. D a d o o c a rá te r d e rev isão e a ex ­
te n sã o d o c a m p o in v e stig a d o , s e ria im p o ssív e l ex ig ir u m tr a b a lh o
d ire to s o b re as fo n te s p rim á ria s p a r a to d o s o s a u to re s , c o m o foi
re a liz a d o e m relação aos te x to s d e M a rx , n o v o lu m e a n te rio r. Isso
foi p o ssív el a p e n a s e m p a rte d o s c a p ítu lo s e seçõ es, m a s p a r tic u la r ­
m e n te n a s re fe re n te s a a u to re s m ais p ró x im o s e re le v a n te s p a ra
M a rx , le n d o d ire ta m e n te os te x to s o rig in ais c ita d o s, e e s ta in d ic a ­
ção é fe ita e m c a d a tó p ic o esp ecífico d o p re s e n te te x to .
D o p o n to d e v is ta d o s c u id a d o s m e to d o ló g ic o s p r á tic o s ,
n e ste v o lu m e fo ra m to m a d a s as se g u in te s m e d id as:

a) C o m o n o v o lu m e a n terio r, as p rim e ira s referên cias ao s p r in ­


cipais a u to re s c ita d o s tê m as d a ta s d e n a s c im e n to e m o rte in d ic a ­
d o s, b e m c o m o a d a ta d a p u b lic a ç ã o d e suas o b ra s c o n s id e ra d a s
m ais im p o rta n te s , p a ra q u e o le ito r p o ssa a c o m p a n h a r c o m m ais
rig o r a c ro n o lo g ia d a p ro d u ç ã o n o c a m p o . P a r a le v a n ta m e n to o u
c o n fe rê n c ia d estas d atas e d e d a d o s b io g ráfico s m ais im e d ia to s , além
d as fo n te s específicas in d ic a d a s, a p rin c ip a l fo n te foi a W ik ip é d ia ,2

21 A W ikipedia é acessada no site w w w.wikipedia.org .

Introdução ao Segundo Volum e | 2 I


a en ciclo p éd ia d ig ital, em sua versão in g lesa, a m ais c o m p le ta e n tre
as várias versões d e lín g u as disp o n ív eis. N a s citaçõ es d ire ta s das
principais obras clássicas, a d a ta o rig in a l d a p rim e ira p u b licaçã o
p reced e a d a ta d a ed ição u sad a n e ste estu d o .
b) O recurso a n o tas d e pé d e p ág in a será u tiliz a d o p a ra in d ic a r
e d iscu tir as p rin cip ais fo n tes b ib lio g ráficas u tiliz a d a s n a in v e sti­
gação e redação d o tex to , além das relev an tes p a ra a p ro fu n d a m e n ­
to , b em co m o p a ra fazer in d icaçõ es d e in te r-re la ç õ e s e n tre as n o ­
ções apresentadas e as ideias m ais co n tem p o rân ea s d e n tro d a trad ição
m arxista, em psico lo g ia, em p sican álise e p sico lo g ia a n alítica, q u e
ajudem a c o m p re en são d o te m a p elo leitor. E m a lg u n s caso s, a lg u ­
m as citações secu n d árias serão feitas n as n o ta s d e p é d e p á g in a ,
co m o fo rm a d e ilu stra r as afirm açõ es d o te x to p rin c ip a l e d e n ão
desviar a aten ção d o le ito r d a tra je tó ria c e n tra l d a a rg u m e n ta ç ã o .
c) Q u a n d o se tra ta d e fo n tes p rim árias d e a u to re s c o n sid era d o s
m ais relevantes p a ra a in terlo cu ção d e M a rx , n o ta d a m e n te n o s casos
de H eg el e F eu erb ach , serão feitas várias citações d e tre c h o s c o n sid e ­
rados m ais relev an tes d e seus tex to s o rig in a is, c o m o e s tra té g ia d e
evidenciar a fid elid ad e ao p e n s a m e n to o rig in a l d o a u to r e d e ilu stra r
seu estilo p ara os leito res. N o s d o is casos in d ic a d o s , c o m o ta m b é m
na revisão d a o b ra d e P in e i, as n o ta s d e ro d a p é ta m b é m fo ra m
utilizadas sistem aticam e n te p a ra citaçõ es lo n g as e /o u reg u lares, p a ra
“aliviar” o tex to c o rre n te p a ra le ito res q u e n ã o q u e ira m te r u m c o n ­
ta to tão estreito e d e ta lh a d o co m o d iscu rso o rig in a l d e ste s a u to re s.
D epois dessas observações in tro d u tó ria s e m e to d o ló g ic a s, p e n ­
so q u e agora te m o s to d a s as co n d iç õ e s p a ra e n tr a r n a te m á tic a e m
foco, in ician d o p o r rá p id a revisão d e a lg u m as q u e s tõ e s d e fu n d o
centrais exigidas n o d e b a te so b re a su b je tiv id a d e h u m a n a ao lo n g o
da h istó ria d o m u n d o o c id en tal.

R io de J a n e iro , ju lh o d e 2 0 0 9

E dua rd o M o u rà o V a sc o n c elo s

C o n ta to s : <e m v asc o n celo s@ sk y d o m e.c o m .b r >

22 | Introdução ao Segundo Volume


C apítulo 2
A herança de dilem as históricos,
e filosóficos nas concepções
de subjetividade hum ana
na Idade Clássica e M o d e rn a

2.1. Racionalidade grega e a longa herança dualista


entre natureza/corpo e pensamento/razão, e sua
reiteração na modernidade

P ô r e m foco o te m a d a su b jetiv id ad e, n o c o n te x to d a m o d e rn i­
d a d e , re q u e r p e lo m e n o s re le m b ra r d e p ro b le m á tic a s c o m u n s q u e
tê m la s tro m ais a m p lo e p ro fu n d o n a h is tó ria d o O c id e n te , e p a r ti­
c u la rm e n te d a re p re s e n ta ç ã o q u e os seres h u m a n o s fa z e m d e si e
de seus a trib u to s , c o m o a racio n alid ad e, o p e n sa m e n to , a co n sciên cia,
e as re la ç õ e s c o m as p aix õ es e e m o ç õ e s, e d e seus d ile m a s b ásico s.
A s p rim e ira s fo rm u laçõ es significativas p a ra n ó s d essa q u e s tã o
fo ram fe ita s n o c o n te x to d a p rim e ira ex p eriên cia d e m o c rá tic a q u e
c o n h e c e m o s , a d a p ó lis (n ó X iç ) g re g a , a p a r tir d o sécu lo I V a. C .
P elo d e sa fio le v a n ta d o p elo p rin c íp io d a ig u a ld ad e e n tre os c id a d ã o s
(d os h o m e n s livres, p o is as m u lh e re s , e stra n g e iro s e escrav o s n ã o
p a rtic ip a v a m d ela), a g estão p o lític a e a d m in istra tiv a d a cid a d e exigia
bases d o c o n h e c im e n to m ais seg u ras e racio n ais p a ra a ação p ú b lic a ,
p a ra a lé m d a re tó ric a d o s so fistas e d as o p in iõ e s, d as se n sa ç õ e s in s ­
táveis e d o s in teresses p a rtic u la re s, d e fo rm a q u e g a ra n tis se a eficácia
e a c o n tin u id a d e d o e sb o ço d e e x p eriên cia d e m o c rá tic a , c o n tr a os
an seio s reg ressiv o s d o s a to re s in te re ssa d o s n a v o lta d a m o n a rq u ia .
N o lo n g o p e rc u rs o d a h is tó ria d a filo so fia o c id e n ta l, a p e s a r
d as d ife re n te s c o n ce p çõ es, as n o çõ es d e logos (X ó yo q ) g re g a e ra tio
la tin a , q u e e s tã o n a o rig e m d a id é ia m o d e rn a d e ra z ã o , v ã o se
e n c a m in h a n d o p a ra d u a s lin h a s d e sig n ificação : a p r im e ir a , a d a
A subjetivid a d e hum ana na Idade Clássica e na M oderna | 2 3
razão subjetiva, de p en sar e falar orden ad am en te, com clareza e de
m o d o co m p reen siv o para os outros, e a segunda, ligada ao objeto
d o c o n h e c im e n to , de que a realidade do m u n d o é ordenada e p as­
sível de u m c o n h ec im e n to racional. O cam po filosófico seria então
o e n c o n tro d estas duas linhas de racionalidade. A ssim , o conheci­
m e n to racional, na sua concepção clássica e m oderna, se constrói
p re d o m in a n te m e n te em oposição a q u atro atitudes m entais básicas:
— ao c o n h ec im e n to ilusório, do costum e, das aparências e da
m e ra o p in ião ;
— às em oções, sen tim en to s e paixões;
— à cren ça religiosa e à idéia de co n h ecim en to revelado;
— ao êxtase m ístico e seu ro m p im en to com a consciência.
É b o m relem b rar com um pouco m ais de detalhes com o essa
ex ig ên cia d e racionalid ad e se configurou nas duas tradições p rin ci­
pais q u e ch eg am à m odernidade. N a perspectiva racionalista, a linha
d e c o n tin u id a d e q u e vai de P latão a D escartes (1596-1 6 5 0 ) privi­
legia as idéias e o p en sam e n to ou com o essências eternas, in co rp ó ­
reas, tra n sc e n d e n te s, com o em P latão, ou com o atrib u to principal
ta m b é m in a to d o h o m em e base do co nhecim ento racional, in sp i­
rad o b asica m en te pelo m odelo da m atem ática, com o em D escartes.
E m am b o s, esses atrib u to s estão em oposição ao corpo, à realidade
d o m u n d o social e natu ral, reiteran d o sem pre um a dualidade radi­
cal entre o corpo e a materialidade, de um lado, e de outro, a alma,
pensam ento e razão, dualism o que coloca paradoxos insolúveis para
a co n sid eração dos sen tim en to s, paixões e em oções, que se co n sti­
tu e m n o cam p o in term ed iário en tre os dois polos d a dualidade.
P o r sua vez, a tradição em pirista, que tem no inglês Francis
B a c o n ( 1 5 6 1 - 1 6 2 6 ) sua p rincipal m atriz con stitu tiva, q uestionava
o m u n d o das idéias ou a capacidade racional com o atributos inatos e
c o m o fu n d a m e n to seguro d o conhecim ento, e colocava com o base
d o sab er h u m a n o a experiência sensível, que disseca cada p arte da
realid ad e, b u scan d o inspiração no m odelo das ciências físicas e b io ­
lógicas. N o en tan to , em term os m uito gerais, aqui tam bém a dualida­
d e c o rp o /a lm a é recolocada, um a vez que a origem do conhecim ento
b aseado na associação das experiências sensíveis p o r m eio da percep -
çâo, em sua o b je tiv id ad e e din âm ica atom izada, frag m en tad a e m e-
24 | A subjetividade hum ana na Idade Clássica e na M oderna
cânica, n ão era cap az d e fo rn ecer um a explicação adequada aos
fe n ô m e n o s cognitivos, em ocionais e linguísticos mais complexos
dos seres h u m a n o s (ou seja, daq u ilo que os racionalistas cham avam
de alm a), ta m b é m p ara su sten ta r u m pensam ento crítico para além
das co n d içõ es existentes naquele m o m en to histórico, nem de fu n ­
d a m e n ta r u m co n h ecim en to m ais sistem ático dos fenôm enos u n i­
versais, m ais d istan tes d a percepção, com o na física e na m atem áti­
ca. A ssim , a concepção m o d e rn a de h o m em repõe essa aporia ou
p arad o x o que atravessa de p o n ta a p o n ta to d a a história da filosofia
e das rep resen taçõ es que o ser h u m an o faz do m u n d o , de si e das
características d e seu co n h ecim en to , de sua psique e seu corpo, e os
vários autores racionalistas ou em piristas posteriores buscarão en ­
g en d rar tentativas de en cam inham ento e aproximação dos polos deste
paradoxo. N ão custa relem b rar que tal aporia está na base dos p rin ­
cipais d eb ates p resen tes n a h istó ria das idéias psicológicas desde o
m u n d o grego até a m o d ern id ad e.
É in teressan te recordar, só p ara efeito d e ligação com o volu­
m e anterior, de que essa p roblem ática aparece no tex to m arxiano
não p ro p riam en te no cam p o específico das idéias psicológicas, m as
p articu la rm en te n a ab o rd ag em das diferentes m odalidades de alie­
nação, em sua o n to lo g ia e p articu larm en te em sua teo ria d o c o n h e ­
cim en to , n o d ista n ciam en to grad u al que M arx assum e no início
dos anos 1840 em relação ao idealism o alem ão, seu recurso ao m a ­
terialism o francês, via a sua dialetização, pela in flu ên cia de H eg el,
para chegar à noção d e práxis e de objetivação. N este volum e, vere­
m os com o essas e outras várias tradições e autores anteriores a M arx
trafegaram sobre este cam p o “m inado" de dificuldades e deb ates,
para m elh o r p rep arar u m a análise mais rigorosa de com o M arx
construiu seu p en sam e n to no cam p o psicológico.

2.2. A emergência de uma nova concepção de sujeito e


de subjetividade no Renascimento e na modernidade

D o p o n to de vista filosófico, o conceito de subjetividade a p o n ­


ta para as características e qualidades da id éia d e su jeito, e n q u a n to
categoria central d a reflexão d o ser h u m a n o sobre si m e sm o , e q u e
A subjetividade hum ana na Idade Clássica e na M oderna | 2 5
p o rta n to atravessa toda a história da filosofia e das ciências hum a­
nas. D o p o n to de vista etimológico, o term o subjectus existia no
latim , com o partieípio passado masculino do verbo subjicere (ou
subi cere), com posto pelo prefixo sub (embaixo) e pelo verbo jacere
(jogar, lançar), indicando um sentido literal de lançar debaixo ou
po r baixo, e os sentidos figurados de submeter, subjugar, subordi­
nar, ou de apresentar, fornecer, sugerir, ou ainda de acrescentar, pôr
depois, ajuntar (Faria, 1955). H oje, ambos os dicionários mais au­
torizados de português, o Aurélio e o Houaiss, indicam a predo­
m inância do significado latino original, prom ovendo sentidos cor­
rela cio n ad o s com o sú d ito , escravizado, cativo, co n stran g id o ,
sujeitado, obediente, dócil, subm etido, vassalo, súdito, etc.
N o c a m p o d a filo so fia , d a o n to lo g ia e d a te o ria do
conhecim ento, tem os inicialmente na metafísica clássica, sobretu­
do no aristotclism o, a noção de sujeito como ser real, substância,
realidade perm anente à qual se atribuem transform ações, qualida­
des ou acidentes. N o latim medieval já surge o sentido escolástico
de sua contraposição a objectus, que prenuncia a perspectiva m o ­
derna da teoria do conhecim ento, pela qual a noção de sujeito é
referenciada à equação entre um sujeito do conhecim ento e seu
objeto de contem plação ou pensamento.
Essa nova direção é desenvolvida de form a paradigm ática p o r
Descartes, em sua trajetória calcada no cogito, ergo sum, que coloca
com o ponto de partida de todo seu sistema filosófico racionalista a
preexistência a priori do pensam ento, e p ortanto de um a natureza
pensante e autónom a, que recoloca a dualidade p en sam en to -m u n ­
do e a questão do idealismo.
Esta virada na noção de sujeito e de subjetividade centrada na
cognição tem com o pano de fundo algumas transform ações histó­
ricas e culturais im portantes. A prim eira foi a R eform a P rotestante,
introduzida de início na Alem anha por Lutero (1483-1546) e Calvi-
no (1509-1564), como reação à decadente hierarquia católica rom ana,
que, do ponto de vista da representação, se punha como representante
da esfera do divino na relação com as com unidades e os hom ens. O
protestantismo implicou um forte estímulo ao individualism o e sua
liberação para atividades económicas, por sua proposição de um a
26 | A subjetividade humana na Idade Clássica e na Moderna
relação d ireta de cada indivíduo com Deus, pelo acesso direto ao
texto bíb lico trad u zid o em alemão, pela ênfase na busca de salva­
ção individual, c p o r nova ctica cm relação ao trabalho c à usura.
A segunda transform ação é representada pela invenção da
im prensa (prensa m óvel) p o r G utenberg (nascido na década de
1390 e falecido em 1468), possibilitando ampliar o acesso à Bíblia
trad u zid a para as línguas correntes, iniciada pelas lideranças da
R eform a P ro testan te, mas gradativamente expandindo o acesso à
produção escrita e a obras universitárias, no contexto da Europa
nos séculos X V e X V I. A ssim , das obras copiadas à mão e restritas
às elites m onásticas e m onárquicas, os livros e mais tarde os jornais
im pressos provocaram um processo gradual de democratização da
produção cultural e perm itiram a formação de uma opinião públi­
ca cada vez m ais individualizada e com autonomia crescente em
relação aos poderes constituídos, o que permitirá mais tarde tam­
bém a difusão dos ideais ilum inistas revolucionários.
O terceiro e principal conjunto de transformações é mais per-
vasivo e determ in an te, dado que ocorre nas relações económicas e
de trabalho na sociedade, e é representado pela expansão do mer­
cantilism o e p o r longa transição de um a economia predominante­
m ente rural e de subsistência, m oldada pelas relações de servidão e
pela propriedade da terra, ou ainda limitada à produção artesanal
controlada pelas corporações de ofício, para um a economia hege­
m onicam ente m ercantil, “livre” e urbana. Assim, o indivíduo que
se representava com base nas tradições oral, local e religiosa, marca
da im agem m edieval do ser hum ano, é gradualmente deposto pela
desterritorialização dos fluxos mercantis e migratórios. Emerge
então, gradualm ente, com o protótipos das novas representações de
ser hum ano, o proprietário burguês mais autónomo, empreende­
dor, explorador do m undo e da natureza, nos projetos mercantilis-
ta, colonial e mais tarde industrial, e o trabalhador agora “livre” das
malhas da servidão no cam po ou das tradições rígidas de vida e de
trabalho das corporações de ofício, para vender a sua força de tra­
balho segundo as leis do mercado. Essa representação hum ana é
consubstanciada no indivíduo-sujeito portador de direitos civis e hu­
manos das práticas jurídicas e políticas burguesas, que emergem de
A subjetividade humana na Idade Clássica e na Moderna \ 2 7
filosofia e u ro p e ia , p a r tic u la r m e n te n o p e n s a m e n to d e N ie tz s c h e ,
exigem p elo m e n o s u m a b rev e re fe rê n c ia a q u i, n a s e q u ê n c ia h is tó ­
rica d a p rim e ira m e ta d e d o sécu lo X I X e d a re a ç ã o ao h e g e lia n is -
m o. E m b o ra c o m u n g u e v á rio s e le m e n to s c o m o r o m a n tis m o ale­
m ão, c o m o o g o s to p e la a v e n tu ra s u b je tiv a in d iv id u a l, o e sc a p ism o
in terio r, a fra n c a o p o s iç ã o ao ra c io n a lis m o d e H e g e l (c o m o q u al
S c h o p e n h a u e r co n v iv eu e c o m p e tiu n a U n iv e r s id a d e d e B e rlim ) e
a sim p a tia p ela m ito lo g ia e e s p ir itu a lid a d e o r ie n ta l, s u a o b r a exce­
de o ro m a n tis m o p a rtic u la rm e n te p e lo se u c a r á te r f o r te m e n te p e s­
sim ista e, até m e sm o , p e lo seu fa s c ín io p e lo d e s e s p e r o .1
P ara S c h o p e n h a u e r, p a r tic u la r m e n te e m O m u n d o como v o n ­
tade e representação, d e 1 8 1 9 , o e le m e n to p r im o r d ia l n o s seres h u ­
m an o s é a vo n ta d e , s e n d o o in te le c to a p e n a s s e c u n d á rio , u m m ero
in s tru m e n to a serv iço d a v o n ta d e , q u e c o lo re e d is to rc e n ã o só o
ju lg a m e n to , m as ta m b é m a p e rc e p ç ã o o rig in a l d a s c o isas. P e lo fato
de q u e a v o n ta d e o p e ra in d e p e n d e n te m e n te d e n o s s a re p re s e n ta ­
ção c o n sc ie n te d a re a lid a d e , p o d e m o s c r e d ita r a e la d e se jo s, p ro p ó ­
sitos e s e n tim e n to s n ã o c o n s c ie n te s q u e c o n tro la m a v id a h u m a n a ,
p o n d o S c h o p e n h a u e r c o m o u m d o s p re c u rs o re s c e n tra is d a s c o n ­
cepções p o ste rio re s d e in c o n s c ie n te , d a p rim a z ia d a sex u alid ad e
sobre no sso c o m p o rta m e n to , b e m c o m o d a id e ia fre u d ia n a d e re­
pressão, p elo q u a l se s u p rim e d a c o n s c iê n c ia c e rto s c o n te ú d o s in ­
su p o rtáv eis, o q u e p o d e g e ra r a té m e s m o a in s a n id a d e .
*

E cu rio so n o ta r a re la ç ã o d e F re u d c o m S c h o p e n h a u e r, u m a
vez q u e o p rim e iro re c o n h e c e a c o in c id ê n c ia d e su as id e ia s c o m as
de seu p re c e d e n te , m as d e se n v o lv e u m a c la ra e s tra té g ia d e d is ta n ­
c ia m e n to , a firm a n d o u m a le itu ra a p e n a s ta rd ia , p a ra e v ita r a acusa­
ção de e s ta r fa z e n d o filo so fia e n ã o c iê n c ia .2 D e o u tr o la d o , Ju n g
P a r a os in te r e s s a d o s c m b re v e i n t r o d u ç ã o p a n o r â m ic a à v id a e a o p e n s a m e n to
d e S c h o p e n h a u e r , s u g ir o o s t r a b a l h o s d e a p r e s e n t a ç ã o d o a u t o r , d e J a n a w a y (2 0 0 3 ) e
d e B i r n b a c h e r ( 2 0 0 0 ) , q u e s e r v ir a m d e r e f e r ê n c i a p r i n c i p a l p a r a a s p o u c a s lin h a s
a c im a s o b re a o b ra d o a u to r.
2 É in te r e s s a n te r e to m a r e s te t r e c h o d e F r e u d , d e 1 9 2 5 ( U m estu d o a u tobiográ­
fico ):
“M e s m o q u a n d o m e a f a s te i d a o b s e r v a ç ã o , e v ite i c u i d a d o s a m e n t e q u a l­
q u e r c o n t a t o c o m a f ilo s o f ia p r o p r i a m e n t e d i t a . [. . .] O a l t o g r a u e m q u e a
p sic a n á lise c o in c id e c o m a filo s o fia d e S c h o p e n h a u e r — e le n ã o s o m e n t e afirm a
o d o m ín io d a s e m o ç õ e s e a s u p r e m a im p o r t â n c i a d a s e x u a lid a d e , m a s ta m b é m
estav a a té m e s m o c ô n s c io d o m e c a n is m o d a r e p r e s s ã o — n ã o d e v e s e r re m e tid a

I 4Ô | Schopenhauer ; K ierkegaard e Feuerbach


re c o n h e c e a b e rta m e n te a le itu ra d o filó so fo a p a rtir d e seus d e z e s-
se te a n o s , o u seja, n a d é c a d a d e 1890.
D o p o n to d e v ista s ó c io -h istó ric o e p o lític o , S c h o p e n h a u e r
p o d e se r c o n s id e ra d o u m irra c io n a lista rad ical, po is vê o p re d o m í­
n io d a v o n ta d e c o m o in c a p a z d e g e ra r q u a lq u e r m e ta ou fin a lid a ­
d e, c a u s a n d o in e v ita v e lm e n te d o r e so frim e n to . A s únicas saídas
p a ra o se r h u m a n o se ria m , em c a rá te r p ro v isó rio , a co n te m p la ç ã o
e sté tic a e o a sc e tism o relig io so , m as m ais fu n d a m e n ta l e d e fo rm a
m ais d e fin itiv a , a re n ú n c ia q u ie tis ta ao eu e ao m u n d o , ao desejo,
p ela ac e ita ç ã o in te g ra l d o s o frim e n to c o m o característica p rin cip al
d a v id a , u m a id e ia q u e ta m b é m te m in sp ira ç ã o n o b u d ism o , m as
em u m a v ersão b a s ta n te p e s s im ista e co n serv ad o ra.
A ss im , d o p o n to d e v ista d o p re s e n te tra b a lh o e de seu autor,
a c o n c e p ç ã o d e S c h o p e n h a u e r c o n s titu i u m d o s ex em p lo s m ais
cristalin o s d a p o ssib ilid a d e real d a id e ia d e in c o n sc ie n te p o d e r g e ­
rar, se le v ad a ao e x tre m o , a u m a c o n c e p ç ã o p e ssim ista , irracio n alis­
ta e c o n s e rv a d o ra d a v id a h u m a n a , so cial e p o lític a .

7 .1.2. K ierkegaard

S õ re n A sb y e K ie rk e g a a rd (1 8 1 3 -1 8 5 5 ) n asceu em u m a D i ­
n a m a rc a a in d a m o n á rq u ic a e te o c ra ta , o n d e o c ristia n ism o ain d a
d itav a in c ó lu m e o c o m p o rta m e n to e as leis m o rais p a ra a p o p u ­
lação, e era ta m b é m fo rte m e n te m a rc a d a p e la in flu ên cia d o p e n ­
s a m e n to h e g e lia n o . S ua o b ra , n esse s e n tid o , p o d e ser c o n sid e ra d a
com o u m a reação e crítica ao lu te ra n ism o p ie tista e m oralista im p o sto
p o r sua fa m ília e so cied a d e, n a d ire ç ã o de u m a e sp iritu alid ad e c e n ­
tra d a n a p rio rid a d e d a ex istên cia p ró p ria d e cad a in d iv id u a lid a d e ,
a m i n h a f a m ilia r id a d e c o m s e u s e n s in a m e n to s . L i S c h o p e n h a u e r m u i t o ta r d e
e m m i n h a v id a ” ( F r e u d [ X X ] , 1 9 2 5 , p p . 7 5 - 6 ) .
E n t r e t a n t o , c o m o n o t a m o s c o m e n t a d o r e s d e s u a s o b ra s s ta n d a r d , h á v á r ia s
re fe rê n c ia s à o b r a d o filó s o fo d e s d e 1 9 1 7 , a té m e s m o a “u m a p a s s a g e m i n t e n s a m e n t e
c o m o v e n te ” e “p a la v ra s d e in e sq u e c ív e l im p re s s iv id a d e ” d e u m tre c h o d e O m u n d o como
vo n ta d e e representação, tr e c h o q u e é ta m b é m r e p r o d u z id o em su as o b ra s c o m p le ta s (in :
F re u d [ X I X ] , 1 9 2 3 - 1 9 2 5 , p . 2 7 7 ) . M e s m o q u e a c r e d ite m o s q u e a le itu r a d o f iló s o f o
p o r F r e u d t e n h a s i d o r e a l m e n t e t a r d i a , J a n a w a y s a l i e n t a q u e “a a t e n ç ã o d a d a a
S c h o p e n h a u e r n a v id a a c a d ê m ic a e c u ltu r a l d u r a n t e esse p e r ío d o fo i u m i m p o r t a n t e
fa to r e m te rm o s d e t o m a r p o ssív e l a o b ra d e F r e u d , q u e r ele te n h a o u n ã o d a d o c o n t a
d is s o ” ( J a n a w a y , 2 0 0 3 , p . 1 5 4 ).

Schopenhauer , K ierkegaard e Feuerbach | 147


de su as p rin c ip a is im p lic a ç õ e s so c ia is, c o le tiv a s e p o lític a s , que
m ais ta rd e fo ra m a p ro p ria d o s p elo s p rin c ip a is m o v im e n to s te ó ri­
cos d o c a m p o p sico ló g ico d o século X X .
E s to u c e rto d e que esse m a p e a m e n to n o s p e rm itirá , n o v o lu ­
m e se g u in te , e sta b e le c e r c o m m u ito m ais rig o r a fo rm a c o m que
M arx teceu seu p e n s a m e n to , e sta b e le c e n d o c ríticas e c o n tra p o s i­
ções, tra ç a n d o lin h a s de c o rte e se a p ro p ria n d o se le tiv a m e n te d e
fo n tes esp ecíficas. P o d e re m o s ta m b é m e n tre v e r, n e s te p ro cesso ,
co m o ta m b é m d e ix o u d e la d o te m a s , c o n c e ito s e p ro b le m a s a b o r­
d ad o s p elo s in te rlo c u to re s q u e o a n te c e d e ra m , c o m o q u e stõ e s ava­
liadas e c o n sid e ra d a s, em seu p ro c e sso d e práxis e fo rm a ç ã o , co m o
não relev an tes d o p o n to d e v ista e p iste m o ló g ic o , o n to ló g ic o , só cio -
h istó ric o , p o lític o e, é claro, ta m b é m d o p o n to d e v ista p sico ló g ico .
E ste será o te m a d o p ró x im o v o lu m e , p ara o q u a l c o n v id o já d e
a n te m ã o os leito res.

172 | Considerações fin a is


Referências

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Referências | 173
d e ste e s tu d o e n a p e rsp e c tiv a das ideias p sico ló g icas p elas q u ais
o p ta m o s , p e n s o q u e já te m o s a rro la d o s acim a b o a p a rte d o s p rin c i­
p ais te m a s le v a n ta d o s p elo filó so fo alem ão n este tre c h o d a o b ra.
E ssa tra je tó ria sobre o p e n s a m e n to h eg elian o , n o â m b ito d e sta
rev isão , m o s tro u em p rim e iro lu g a r q u e, a d e sp e ito d a p e rsp e c tiv a
m ais e n fa tic a m e n te racio n alista e u n iv ersalista d o au to r, su a g e n ia li-
d a d e p o ssib ilito u p a ra d o x a lm e n te am p la e d e ta lh a d a in v e stig ação
e sistem atização d os processos subjetivos e singulares d o ser h u m a n o ,
a d ia n ta n d o vários e le m e n to s q u e só m ais ta rd e n a h is tó ria d as ideias
p sico ló g icas p u d e ra m receb er tra ta m e n to m ais s iste m á tic o . A lé m
d isso , e m p aralelo co m o m o v im e n to ro m â n tic o , a filosofia ra c io n a ­
lista e d ia lética, re p re se n ta d a aq u i p o r H e g e l c o m o sua fig u ra c e n tra l
a té aq u ele m o m e n to d a h istó ria , já a p re se n ta ra ta m b é m n o in ício
d o sécu lo X I X u m a co n cep çã o relativam en te com p lexa e d eta lh a ­
da da su b jetivid ad e h u m an a, p articu larm en te em relação às fases
d o d e se n v o lv im e n to p sic o ló g ic o e à id eia d e aparelho p síq u ico ,
d o in c o n sc ie n te , e d os seus m eca n ism o s de fu n c io n a m e n to e de
form ação da p erson alid ad e h u m an a. E m te rc e iro lugar, o u n iv e rsa -
lism o e n c ic lo p é d ic o d e H e g e l o leva a u m a persp ectiva p o u co reco ­
n h ecid a d e sua co n cep çã o de totalidade: além d a to ta liz a ç ã o h is ­
tó ric a u n iv ersal, q u e in te g ra suas d im e n sõ e s te m p o ra l, g eo g ráfic a e
p o lític o -in s titu c io n a l, as relaçõ es e n tre os p o lo s d o u n iv ersal, d o
p a rtic u la r e d a sin g u la rid a d e a ssu m e m ta m b é m d im e n sõ e s su tis d a
a lm a e d a su b je tiv id a d e . P o d e m o s nos p e rg u n ta r se e m H e g e l as
m e d iaçõ es lógicas e te ó ricas e n tre estes e a su a filo so fia d a h istó ria,
q u e e n fa tiz a o to d o , estã o c la ra m e n te ex p licitad as. C o n tu d o , este
re c o n h e c im e n to d a c o m p le x id a d e p ró p ria e esp ecífica d a su b je ti­
v id ad e h u m a n a n ão sig n ific a ria q u e, a in d a n o in íc io d o século X IX ,
ele n ão e sta ria p re v e n d o a n e c e ssid a d e d e u m a p e rsp e c tiv a m u ltid i­
m e n sio n a l e in te rd is c ip lin a r p a ra o c o n h e c im e n to d o ser h u m a n o ,
co m o u m a ta re fa d o p ró p rio p ro c e s s o d e to ta liz a ç ã o ? C e rta m e n te ,
este te m a re p re s e n ta u m d e sa fio p a ra a tra d iç ã o m a rx ista e re to rn a rá
nos p ró x im o s v o lu m e s d e s ta c o le tâ n e a .
D e q u a lq u e r fo rm a, esse m o v im e n to in a u g u ra d o p o r H e g e l na
v erten te dialética a in d a teve o u tro re p re s e n ta n te im p o rta n te antes
de K. M a rx , n a fig u ra d e L u d w ig F e u e rb a c h , te m a d a p ró x im a seção.
I 44 | Ideias psicológicas na obra de H eg el
deste estudo e na perspectiva das ideias psicológicas pelas quais
optamos, penso que já temos arrolados acima boa parte dos princi­
pais temas levantados pelo filósofo alemão neste trecho da obra.
Essa trajetória sobre o pensamento hegeliano, no âm bito desta
revisão, mostrou em primeiro lugar que, a despeito da perspectiva
mais enfaticamente racionalista e universalista do autor, sua geniali-
dade possibilitou paradoxalmente ampla e detalhada investigação
e sistematização dos processos subjetivos e singulares do ser hum ano,
adiantando vários elementos que só mais tarde na história das ideias
psicológicas puderam receber tratam ento mais sistem ático. Além
disso, em paralelo com o movimento rom ântico, a filosofia raciona­
lista e dialética, representada aqui por H egcl com o sua figura central
até aquele m om ento da história, já apresentara tam bém no início
do século X IX um a concepção relativam ente com plexa e d etalh a­
da da subjetividade hum ana, particularm ente em relação às fases
do desenvolvim ento psicológico e à ideia de aparelho psíquico,
do inconsciente, e dos seus m ecanism os de fu ncionam ento e de
form ação da personalidade hum ana. Em terceiro lugar, o universa-
lismo enciclopédico de H egel o leva a um a perspectiva pouco reco­
nhecida de sua concepção de totalidade: além da totalização his­
tórica universal, que integra suas dim ensões tem poral, geográfica e
político-institucional, as relações entre os polos do universal, do
particular e da singularidade assumem tam bém dim ensões sutis da
alma e da subjetividade. Podem os nos perguntar se em H egel as
mediações lógicas e teóricas entre estes e a sua filosofia da história,
que enfatiza o todo, estão claram ente explicitadas. C o n tu d o , este
reconhecim ento da com plexidade própria e específica da subjeti­
vidade hum ana não significaria que, ainda no início do século X IX ,
ele não estaria prevendo a necessidade de um a perspectiva m u ltid i­
mensional e interdisciplinar para o conhecim ento do ser hum ano,
com o um a tarefa do próprio processo de totalização? C ertam en te,
este tem a representa um desafio para a tradição m arxista e retornará
nos próxim os volumes desta coletânea.
D e qualquer forma, esse m ovim ento inaugurado por H egel na
vertente dialética ainda teve outro representante im portante antes
de K. M arx, na figura de Ludw ig Feuerbach, tem a da próxim a seção.
144 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
Capítulo 7
A crítica do idealismo racionalista
alemão antes de Marx:
precursores (Schopenhauer e
Kierkegaard) e Feuerbach, com
sua análise da alienação religiosa

7.1. Precursores da crítica ao racionalismo hegeliano:


Schopenhauer e Kierkegaard

Q u alq u er h istó ria das ideias psicológicas sobre a prim eira


m etade do século X IX não pode deixar de pelo m enos assinalar a
presença de dois autores europeus que, a despeito de não com par­
tilharem da interlocução e d a form ação de K arl M arx, objetivo
central deste estudo, tiveram influência no pensam ento psicológico
posterior: o alem ão S chopenhauer e o dinam arquês K ierkegaard.
A pesar de co m partilhar de alguns elem entos com uns com o ro ­
m antism o, am bos os autores não podem ser considerados ro m ân ti­
cos, razão pela qual não se deve inseri-los no capítulo anterior so­
bre o tem a. A m eu ver, o traço com um e principal dos dois autores
é sua reação ao racionalism o hegeliano, o que justifica a sua coloca­
ção à parte e posterior à o b ra do p en sad o r dialético alemão.

7.1.1. Schopenhauer

C o m o já assinalam os acim a, A rth u r S chopenhauer (1788-


-1860) não pode ser considerado com o um autor rom ântico nem
com partilha da interlocução de K arl M arx, devido a seu claro viés
antirracionalista. E n tre ta n to , sua im portância no conjunto da h is­
tória das ideias psicológicas no contexto alemão, com o mais um
dos precursores das ideias que desaguaram na psicanálise e n a psi­
cologia analítica, bem com o sua influência posterior mais am pla na
Schopenhauer, Kierkegaarde Feuerbach | 145
filosofia europeia, particularm ente no p en sam en to d e N ietzsche,
X L pelo menos um a breve referência aqui, na sequencia h istó ­
rica da primeira m etade do século X IX e d a reaçao ao hegeliam s-
mo Em bora com ungue vários elem entos com o ro m an tism o ale­
mão, como o gosto pela aventura subjetiva individual, o escapism o
interior, a franca oposição ao racionalism o de H e g e l (com o qual
Schopenhauer conviveu e com petiu na U niversidade de B erlim ) e
a simpatia pela m itologia e espiritualidade o rien tal, sua obra exce­
de o rom antism o particularm ente pelo seu caráter fo rtem en te pes­
simista e, até m esm o, pelo seu fascínio pelo desesp ero .1
Para Schopenhauer, particularm ente em O mundo como von­
tade e representação , de 1819, o elem ento p rim o rd ial nos seres hu­
manos é a vontade, sendo o intelecto apenas secundário, um m ero
instrum ento a serviço da vontade, que colore e distorce não só o
julgamento, mas tam bém a percepção original das coisas. Pelo fato
de que a vontade opera in d ep en d en tem en te d e nossa representa­
ção consciente da realidade, podem os cred itar a ela desejos, propó­
sitos e sentim entos não conscientes que co ntrolam a vida hum ana,
pondo Schopenhauer com o um dos precursores centrais das con­
cepções posteriores de inconsciente, da prim azia d a sexualidade^
sobre nosso com portam ento, bem com o da ideia freudiana de re­
pressão, pelo qual se suprim e da consciência certos conteúdos in ­
suportáveis, o que pode gerar até m esm o a insanidade.
E curioso notar a relação de Freud com Schopenhauer, uma
vez que o prim eiro reconhece a coincidência d e suas ideias com as
de seu precedente, mas desenvolve um a clara estratégia de distan­
ciamento, afirm ando um a leitura apenas tardia, para evitar a acusa­
ção de estar fazendo filosofia e não ciência.12 D e o u tro lado, Jung
1 Para os interessados em breve introdução panorâmica à vida e ao pensamento
de Schopenhauer, sugiro os trabalhos dc apresentação do autor, de Janaway (2003) e
de Birnbacher (2000), que serviram de referência principal para as poucas linhas
acima sobre a obra do autor.
2 É interessante retomar este trecho de Freud, de 1925 (Um estudo autobiográ­
fico):
Mesmo quando me afastei da observação, evitei cuidadosamente qual- j
quer contato com a filosofia propriamente dita. [. . .] O alto grau em que a
psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer — ele não somente afirma j
o domínio das emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também |
estava até mesmo cônscio do mecanismo da repressão — não deve ser remetida

146 | Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach


reconhece ab ertam en te a leitura do filósofo a p a rtir de seus dezes-
sete anos, ou seja, n a d écada de 1890.
D o p o n to de vista só cio -h istó rico e político, S ch o p en h au er
pode ser considerad o um irracionalista radical, pois vê o p red o m í­
nio d a v o ntade com o in cap az de gerar q ualquer m eta ou finalida­
de, causando inevitavelm ente d o r e sofrim ento. A s únicas saídas
para o ser h u m a n o seriam , em caráter provisório, a contem plação
estética e o ascetism o religioso, m as m ais fu n d am en tal e de form a
mais definitiva, a ren ú n cia q u ietista ao eu e ao m u n d o , ao desejo,
pela aceitação integ ral d o so frim en to com o característica principal
da vida, u m a ideia que tam b ém tem inspiração no budism o, mas
em u m a versão b astan te p essim ista e conservadora.
A ssim , d o p o n to de vista d o p resen te trab alh o e de seu autor,
a concepção de S ch o p en h au e r c o n stitu i um dos exem plos mais
cristalinos da possibilidade real d a ideia de in co n scien te p o d er g e­
rar, se levada ao extrem o, a u m a concepção pessim ista, irracionalis­
ta e conservadora d a vida h u m a n a, social e política.

7.1.2. Kierkegaard

S õren A sbye K ierkegaard (1 8 1 3 -1 8 5 5 ) nasceu em um a D i­


nam arca ainda m o n árq u ica e teo crata, o n d e o cristianism o ainda
ditava incólum e o co m p o rtam e n to e as leis m orais para a p o p u ­
lação, e era tam b ém fo rtem en te m arcada pela influência do p e n ­
sam ento hegeliano. Sua obra, nesse sen tid o , p ode ser considerada
como um a reação e crítica ao luteranism o pietista e moralista im posto
por sua fam ília e sociedade, n a direção de um a espiritualidade cen ­
trada na p rio rid ad e da existência p ró p ria de cada individualidade,
a m inha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde
em m inha vida” (Freud [XX], 1925, pp. 75-6).
E ntretanto, como notam os com entadores de suas obras standard, há várias
referências à obra do filósofo desde 1917, até mesmo a “uma passagem intensamente
comovente” e “palavras de inesquecível impressividade” de um trecho de O mundo como
vontade e representação, trecho que é também reproduzido em suas obras completas (in:
Freud [XIX], 1923-1925, p. 277). M esmo que acreditemos que a leitura do filósofo
por F reud ten h a sido realm ente tardia, Janaw ay salienta que “a atenção dada a
Schopenhauer na vida acadêmica e cultural durante esse período foi um im portante
fator em termos de tom ar possível a obra de Freud, quer ele tenha ou não dado conta
disso” (Janaway, 2003, p. 154).

Schopenhauer, Kierkegaarde Feuerbach | 147


forma pactuada ou revolucionária, particularmente a Partir do:sé­
culo XVIII, com o Marx indica ríA questão ju d a ica ( g / ) (1 8 4 4 /2 0 0 5 ).
E com o quarto elem ento, tem os a representação d o cosm os,
não mais hierarquizado e geocêntrico, mas agora infinito, d escen-
trado de nosso planeta e de uma suposta relação direta e privilegi­
ada de D eus com os seres humanos, que nos colocava no centro do
universo, e que é agora concebido com o ordenado por leis e rela­
ções mecânicas descritas pelas ciências da natureza, que tam bém
serviam com o modelo de investigação e descrição objetiva dos pro­
cessos naturais e do corpo humano.
Assim, em suma, uma nova noção de sujeito emerge neste pe­
ríodo, expressa de forma inaugural no campo filosófico pelo carte-
sianismo e pela tradição racionalista, mas também calcada no desen­
volvimento das ciências empíricas. Esta cosm ovisão racionalista
constitui uma representação de sujeito que se põe a si m esm o e
“constitui a matriz subjetiva por excelência, cujo maior bem culmina
em uma hipóstase do sujeito do conhecim ento, sob a performance
do sujeito da ciência” (Dor, 1995, p. 55). V im os no volum e anterior
que a vertente mais racionalista e metafísica desta concepção foi objeto
de uma crítica radical de Marx e Engels, em suas obras sobre o idealis­
mo, mas neste segundo momento de análise, ampliaremos nossa circu­
lação de suas fontes e suas implicações no campo psicológico, para
melhor investigar como Marx processou suas escolhas no cam po.
Assim , cabe a este volume não reiterar o nível da análise que
realizamos no anterior, mas justamente ampliar c reconhecer com
mais precisão as ideias, tradições c autores correntes sobre a sub­
jetividade que estavam d isponíveis no cam po de in terlocu ção
cultural e intelectual de Marx, e que foram objeto, por sua parte,
das várias elaborações e sobretudo rupturas intencionais, ou ape­
nas de desconhecim ento, deliberadamente ou não, em suas con ­
cepções de subjetividade ou em suas próprias vivências subjetivas
ou na vida familiar e privada. Dessa forma, a partir deste m om ento,
buscaremos indicar algumas das correntes e ideias sobre a subjetivi­
dade no campo da filosofia e da literatura na Alem anha, França e
Inglaterra, que consideramos fundamental para com preensão mais
profunda do tema em Marx.
28 | A s u b j e t iv i d a d e h u m a n a n a I d a d e C lá s s ic a e n a M o d e r n a
C a p ít u lo 3
Algum as contribuições
pré-iluministas importantes para
a conformação das ideias
psicológicas na Idade Moderna

3.1. A “invenção do sujeito humano complexo” e da


“dimensão psicológica moderna” na literatura, por
Shakespeare

A s bases da concepção de sujeito hum ano m oderno, form u­


lada inicialm ente e de forma mais sistem ática no terreno filosófico
por Descartes, foi sem dúvida alguma precedida no cam po literário
por W illiam Shakespeare (1 5 6 4 -1 6 1 6 ), considerado de forma ra­
zoavelm ente consensual pela crítica literária de todo o m undo o
maior escritor inglês de todos os tem pos, e tam bém marcado por
um caráter de genialidade e universalidade incomparável, em relação
aos autores de sua época. A lém disso, do ponto de vista psicológico,
penso que as concepções de sujeito e de subjetividade que emanam
da obra de Shakespeare é bem mais com plexa do que a de Descartes,
servindo ainda de inspiração para m uitos dos autores românticos,
particularmente franceses e alemães, bem com o para vários dos prin­
cipais autores contem porâneos da psicologia, com o o próprio Freud
e Jung. D o ponto de vista de nosso estudo, é importante lembrar
que Shakespeare fazia parte da leitura assídua e regular, bem com o
contava com a admiração de Marx e de sua família.
W illiam Shakespeare nasceu no contexto da expansão mer-
cantilista inglesa, no longo reinado de Elisabete I, e de forte ex­
pansão do teatro em todo o reino, não só com o manifestação da
vida cultural da nobreza e com o dispositivo cultural de exteriori­
zação do poder monárquico no povo, mas também com o expressão
I d e i a s p s ic o ló g ic a s n a I d a d e C lá s s ic a e n a M o d e r n a | 29
forma pactuada ou revolucionária, particularmente a Partir do:sé­
culo XVIII, com o Marx indica ríA questão ju d a ica ( g / ) (1 8 4 4 /2 0 0 5 ).
E com o quarto elem ento, tem os a representação d o cosm os,
não mais hierarquizado e geocêntrico, mas agora infinito, d escen-
trado de nosso planeta e de uma suposta relação direta e privilegi­
ada de D eus com os seres humanos, que nos colocava no centro do
universo, e que é agora concebido com o ordenado por leis e rela­
ções mecânicas descritas pelas ciências da natureza, que tam bém
serviam com o modelo de investigação e descrição objetiva dos pro­
cessos naturais e do corpo humano.
Assim, em suma, uma nova noção de sujeito emerge neste pe­
ríodo, expressa de forma inaugural no campo filosófico pelo carte-
sianismo e pela tradição racionalista, mas também calcada no desen­
volvimento das ciências empíricas. Esta cosm ovisão racionalista
constitui uma representação de sujeito que se põe a si m esm o e
“constitui a matriz subjetiva por excelência, cujo maior bem culmina
em uma hipóstase do sujeito do conhecim ento, sob a performance
do sujeito da ciência” (Dor, 1995, p. 55). V im os no volum e anterior
que a vertente mais racionalista e metafísica desta concepção foi objeto
de uma crítica radical de Marx e Engels, em suas obras sobre o idealis­
mo, mas neste segundo momento de análise, ampliaremos nossa circu­
lação de suas fontes e suas implicações no campo psicológico, para
melhor investigar como Marx processou suas escolhas no cam po.
Assim , cabe a este volume não reiterar o nível da análise que
realizamos no anterior, mas justamente ampliar c reconhecer com
mais precisão as ideias, tradições c autores correntes sobre a sub­
jetividade que estavam d isponíveis no cam po de in terlocu ção
cultural e intelectual de Marx, e que foram objeto, por sua parte,
das várias elaborações e sobretudo rupturas intencionais, ou ape­
nas de desconhecim ento, deliberadamente ou não, em suas con ­
cepções de subjetividade ou em suas próprias vivências subjetivas
ou na vida familiar e privada. Dessa forma, a partir deste m om ento,
buscaremos indicar algumas das correntes e ideias sobre a subjetivi­
dade no campo da filosofia e da literatura na Alem anha, França e
Inglaterra, que consideramos fundamental para com preensão mais
profunda do tema em Marx.
28 | A s u b j e t iv i d a d e h u m a n a n a I d a d e C lá s s ic a e n a M o d e r n a
C a p ít u lo 3
Algum as contribuições
pré-iluministas importantes para
a conformação das ideias
psicológicas na Idade Moderna

3.1. A “invenção do sujeito humano complexo” e da


“dimensão psicológica moderna” na literatura, por
Shakespeare

A s bases da concepção de sujeito hum ano m oderno, form u­


lada inicialm ente e de forma mais sistem ática no terreno filosófico
por Descartes, foi sem dúvida alguma precedida no cam po literário
por W illiam Shakespeare (1 5 6 4 -1 6 1 6 ), considerado de forma ra­
zoavelm ente consensual pela crítica literária de todo o m undo o
maior escritor inglês de todos os tem pos, e tam bém marcado por
um caráter de genialidade e universalidade incomparável, em relação
aos autores de sua época. A lém disso, do ponto de vista psicológico,
penso que as concepções de sujeito e de subjetividade que emanam
da obra de Shakespeare é bem mais com plexa do que a de Descartes,
servindo ainda de inspiração para m uitos dos autores românticos,
particularmente franceses e alemães, bem com o para vários dos prin­
cipais autores contem porâneos da psicologia, com o o próprio Freud
e Jung. D o ponto de vista de nosso estudo, é importante lembrar
que Shakespeare fazia parte da leitura assídua e regular, bem com o
contava com a admiração de Marx e de sua família.
W illiam Shakespeare nasceu no contexto da expansão mer-
cantilista inglesa, no longo reinado de Elisabete I, e de forte ex­
pansão do teatro em todo o reino, não só com o manifestação da
vida cultural da nobreza e com o dispositivo cultural de exteriori­
zação do poder monárquico no povo, mas também com o expressão
I d e i a s p s ic o ló g ic a s n a I d a d e C lá s s ic a e n a M o d e r n a | 29
da vida urbana e rural, co m o produção teatral represen tad a n o r­
m alm ente nas feiras e festas populares, e que ta m b ém incorp orava
personagens e elem en tos d o folclore popular. A p resen ça d esses
elem en tos da cultura popular nas obras d e Shakespeare é a m p la ­
m ente reconhecida, co m o tam bém sua relativa a u to n o m ia id e o ló ­
gica em relação à nobreza, um a v ez q ue seus textos são rech ead os
de críticas aos con flitos e tragédias na vida m onárquica.
A representação d o sujeito e da subjetividade q ue em erg e da
obra d e Shakespeare é bastante com plexa e m u ltifacetad a.1 E n tr e ­
tanto, d o p o n to de vista de n osso estu d o , p o d e m o s in d icar o s se ­
guintes p o n to s m ais relevantes:

a ) u m a ên fase na d ico to m ia e nas am b igu id ad es en tre a ap a­


rência e a essência d os processos h u m an os, entre o q u e parece ser e
o que m ais tarde é revelado com a verdade da tram a em cu rso, o
que é reforçado pela sua exploração d o próprio teatro d en tro d e
suas peças e pela passagem de personagens “reais” d a tram a em
atores teatrais, n orm alm ente desm ascarando a aparência e a versão
até en tão aceita dos fatos;
ò ) a p erm anente atenção sobre a grande rep resen tação e a m ­
biguidade da psique hum ana, marcada pelas p aixões, m e d o s, trai­
ções, tramas e crim es, que con stitu em o caráter ao m e sm o te m p o
cóm ico e trágico da existência hum ana;
c) o recon h ecim en to da im portância da im a g in a çã o en q u a n to
função p síquica, m o b iliza n d o -a in ten sam en te n o p ú b lico . M u ito
além d os vínculos im p lícitos regulares entre atores e p ú b lico , q ue
marca estruturalm ente o teatro em qualquer ép o ca , as p eça s d e
Shakespeare interpelam o en volvim en to ativo da im agin ação d e cada
expectador, recolocan do o universo sim b ólico da cultura m ed iev a l
na estrutura d o p alco e na ação d os p erson agen s. C o m o , p or e x e m -

1 A o b ra dc S hakespeare vem se n d o in te n siv a m e n te e stu d a d a e avaliad a pela


crítica literária ocidental. E n tre os principais trabalhos clássicos disponíveis cm p o rtu ­
guês, dcstacam -sc os de Spurgeon (2006), K crm ode (2006), H e lio d o ra (1 9 9 7 e 2 0 0 5 ),
H alliday (1 9 9 0 ), B loom (2 0 0 1 ), K icrn an (1 999) c Fryc (1 9 9 2 ). P a ra u m a p rim e ira
apresentação e um a visão intro d u tó ria d a o b ra e d c sua repercussão, su g iro a c o le tân e a
dc artigos organizada p o r M anuel da C o sta P in to (P in to , 2 0 0 6 ), que tam b é m c o n tri­
buiu na c onstrução da síntese a p rese n tad a aqui.

3O | I d e ia s p s ic o ló g ic a s n a I d a d e C lá s s ic a e n a IV Io d e r n a
p io , traz os elem en to s co sm o ló g ico s d o inferno, da terra e dos céu
na estrutura d o cenário e perm ite que diabos, bruxas e fantasm as
p u d essem subir d o p iso para o palco e tom assem parte ativa da
trama, prefigu ran d o na d in âm ica entre o literal e o m etafórico a
aproxim ação ao in co n scien te que só se concretizará bem m ais tar­
d e na cultura europeia;
cl) a exploração d o dram a p sico ló g ico , com o em H a m let, que
sem d úvida algum a situa Shakespeare m u ito à frente de seu tem p o
e das características m ais gerais d o teatro elisabetano e das tragédias
clássicas centradas na revanche às traições na vida m onárquica. Isso
é p articularm ente recon h ecid o por autores con tem p orân eos da p si­
co lo g ia , p elo fato d e que id en tificam n o autor a capacidade n e g a ti­
v a ou to le râ n c ia d ia lé tic a , ou seja, quan d o o ser h u m an o é capaz dc
aceitar in certezas, con trad ições, dúvidas e m istérios, que só se reve­
lam g rad u alm en te, qualidade im prescindível à investigação filo só ­
fica e cien tífica , ao trabalho artístico e particularm ente à in vestiga­
ção d os fe n ô m en o s p sicológicos e à gestão das próprias contradições
e co n flito s na d in âm ica p olítica d em ocrática m oderna.
e) outra faceta da im p ortân cia da d im en são subjetiva e d o
drama p s ic o ló g ic o em Shakespeare está na valorização d o so liló q u io ,
ou seja, d o d iá lo g o c o n sig o m esm o co m o representação da au toex-
ploração p sico ló g ica , q ue ganhava um a posição ccnográfica parti
cular. Q u a n d o o p erson agem expressava seus sen tim en tos e dilem as
m ais ín tim o s, Shakespeare o pun h a n o centro d o p alco central,
perto d o p ú b lico , c o m o se q u isesse que o expectador co n h ecesse
mais d e p erto a p rofu n d id ad e da alm a d esse personagem , ao m e s­
m o te m p o q ue criava id en tificações profundas e um a cu m p licid a­
de en tre exp ectad or e p erson agem , certam ente c o m o d isp ositivo
para acentuar o efe ito dram ático da peça;
J ) na p ersp ectiva op osta, a ausência de au to co n h ecim en to ou
sabedoria, o u ser p o ssu íd o cega e passivam ente p elos im p u lsos da
paixão (o u p e lo q ue hoje id en tifica m o s c o m o projeções in c o n sc ien ­
tes', sem u m m ín im o d e p en sa m en to autocrítico e au ton om ia d o
sujeito, o u sem reflexão e escuta d e suas dúvidas, prefigura na trama
o d esfech o d esfavorável, a au tod estru ição e a m orte trágica. E m b o ­
ra use a estru tura d ram ática das p eças m oralizantes m e d iev a is,
I d e ia s p s ic o ló g ic a s n a I d a d e C lá s s ic a e n a M o d e r n a | 3I
da vida urbana e rural, como produção teatral representada n o r­
m alm ente nas feiras e festas populares, e que tam bém incorporava
personagens e elementos do folclore popular. A presença desses
elementos da cultura popular nas obras de Shakespeare é am pla­
m ente reconhecida, como tam bém sua relativa au to n o m ia ideoló­
gica em relação à nobreza, um a vez que seus textos são recheados
de críticas aos conflitos e tragédias na vida m onárquica.
A representação do sujeito e da subjetividade que em erge da
obra de Shakespeare é bastante complexa e m ultifacetada.1 E n tre ­
tanto, do ponto de vista de nosso estudo, podem os in d icar os se-
guintes pontos mais relevantes:

a) uma ênfase na dicotomia e nas am biguidades en tre a apa­


rência e a essência dos processos hum anos, entre o que parece ser e
o que mais tarde é revelado com a verdade da tram a em curso, o
que é reforçado pela sua exploração do próprio teatro d en tro de
suas peças e pela passagem de personagens “reais” d a tram a em
atores teatrais, norm alm ente desmascarando a aparência e a versão
até então aceita dos fatos;
b) a perm anente atenção sobre a grande representação e am ­
biguidade da psique hum ana, marcada pelas paixões, m edos, trai­
ções, tramas e crimes, que constituem o caráter ao m esm o tem p o
cómico e trágico da existência humana;
c) o reconhecimento da im portância da im aginação enq u an to
função psíquica, m obilizando-a intensam ente no público. M u ito
além dos vínculos implícitos regulares entre atores e público, que
marca estruturalm ente o teatro em qualquer época, as peças de
Shakespeare interpelam o envolvimento ativo da im aginação de cada
expectador, recolocando o universo simbólico da cu ltu ra m edieval
na estrutura do palco e na ação dos personagens. C o m o , p o r exem -

1 A obra dc Shakespeare vem sendo intensivamente estudada e avaliada pela


crítica literária ocidental. Entre os principais trabalhos clássicos disponíveis em portu­
guês, destacam-se os de Spurgeon (2006), Kermode (2006), Heliodora (1997 e 2005),
Halliday (1990), Bloom (2001), Kicrnan (1999) e Frye (1992). Para uma primeira
apresentação e uma visão introdutória da obra c de sua repercussão, sugiro a coletânea
de artigos organizada por Manuel da Costa Pinto (Pinto, 2006), que também contri­
buiu na construção da síntese apresentada aqui.

3O | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna


pio, traz os elem entos cosmológicos do inferno, da terra e dos céu
na estrutura do cenário e perm ite que diabos, bruxas e fantasmas
pudessem subir do piso para o palco e tom assem parte ativa da
tram a, prefigurando na dinâm ica entre o literal e o m etafórico a
aproxim ação ao inconsciente que só se concretizará bem mais tar­
de na cultura europeia;
d) a exploração d o dram a psicológico, como em H am let, que
sem dúvida algum a situa Shakespeare m uito à frente de seu tem po
e das características mais gerais do teatro elisabetano e das tragédias
clássicas centradas na revanche às traições na vida monárquica. Isso
é particularm ente reconhecido por autores contem porâneos da psi­
cologia, pelo fato de que identificam no autor a capacidade negati­
va ou tolerância dialética, ou seja, quando o ser hum ano é capaz de
aceitar incertezas, contradições, dúvidas e mistérios, que só se reve­
lam gradualm ente, qualidade imprescindível à investigação filosó­
fica e científica, ao trabalho artístico e particularm ente à investiga­
ção dos fenôm enos psicológicos e à gestão das próprias contradições
e conflitos na dinâm ica política dem ocrática moderna.
e) outra faceta d a im portância da dimensão subjetiva e do
dram a psicológico em Shakespeare está na valorização do solilóquio,
ou seja, do diálogo consigo m esm o com o representação da autoex-
ploração psicológica, que ganhava um a posição cenográfica parti­
cular. Q u an d o o personagem expressava seus sentimentos e dilemas
mais íntim os, Shakespeare o punha no centro do palco central,
perto do público, com o se quisesse que o expectador conhecesse
mais de perto a profundidade da alma desse personagem, ao m es­
mo tem po que criava identificações profundas e um a cum plicida­
de entre expectador e personagem , certam ente como dispositivo
para acentuar o efeito dram ático da peça;
f ) na perspectiva oposta, a ausência de autoconhecim ento ou
sabedoria, ou ser possuído cega e passivamente pelos impulsos da
paixão (ou pelo que hoje identificam os como projeções inconscien­
tes), sem um m ínim o de pensam ento autocrítico e autonom ia do
sujeito, ou sem reflexão e escuta de suas dúvidas, prefigura na tram a
o desfecho desfavorável, a autodestruição e a m orte trágica. E m b o ­
ra use a estru tu ra d ram ática das peças m oralizantes m edievais,
Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna | 3 I
Shakespeare inova in teiram en te ao configurar u m a visão laica, em
que o mal não vem do dem ónio, m as das p rofim dezas d a p ró p ria
alma hum ana. Estas são características centrais de personagens com o
Rei Lear, O telo e L aerte, em H am let. P or exem plo, este é o sen tid o
das conhecidas frases do personagem B obo para L ear: “E u te d aria
um a surra p o r teres ficado velho antes do te m p o [. . .] n ão devias
ter envelhecido antes de teres se to rn ad o sábio . Esse reco n h e ci­
m ento e diálogo com o lado som brio dos seres h u m a n o s te rá m ais
tarde um a interrupção nos autores ilum inistas, m as será reto m ad o
pela cultura barroca e particularm ente rom ântica, e não é to talm en te
estranho à biografia de M arx, em sua fase juvenil, em b o ra n eg ad o
em sua m adurez, com o verem os no d ecorrer deste trab alh o ;
g) talvez em consequência d o d ito no tó p ico anterior, é am ­
plam ente reconhecido que os personagens criados p o r S hakespeare
revelam personalidades com plexas, m arcadas p o r incoerências, d u ­
plicidades ou m ultiplicidade de papéis, m o stran d o um ser h u m a n o
em “cam adas”, ao m esm o tem po conectadas e desconexas, e não
com o apenas com o um a superfície plana e única, o que p ren u n cia
em séculos as instâncias diferenciadas e co n trad itó rias p ropostas
nos m odernos modelos metapsicológicos sobre o aparelho psíquico
que apareceram apenas a p artir da virada para o século X X ;
b) com o consequência dos tópicos anteriores, é im p o rtan te
reconhecer, na concepção de sujeito em Shakespeare, um a clara noção
de crescim ento e autodesenvolvim ento pessoal, que a m eu ver p re­
figura no tem po as concepções de Bildung (form ação pessoal) de
G oethe (objeto de revisão mas abaixo neste texto) e dos dem ais
autores rom ânticos, bem com o de individuação que em erge nas
teorias psicológicas do século XX. Para descrever essa noção que
aparece em Shakespeare, farem os uso de um a citação de H a ro ld
Bloom co n ten d o um a avaliação relativ am en te co n sen su al en tre
outros críticos:23

2 T d have thee beaten for being old before thy time [. . .] T hou shoudst not
have been old till thou hadst been wise” (Shakespeare, 1987, p. 839). A tradução
deste trecho no texto acima é do autor deste trabalho.
3 Essa observação é im portante, dado que este autor, um dos reconhecidos
críticos literários e estudiosos há décadas da obra shakespeariana, algumas vezes ex­
pressa pontos de vista identificados entre seus colegas como polêmicos.

32 | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna


A n tes de S hakespeare, os p erso n ag en s literários são,
relativam en te, im utáveis. H o m e n s e m ulheres são rep resen ­
tad o s envelhecendo e m o rren d o , m as não se desenvolvem a
p a rtir de alterações in teriores, e sim em d ecorrência de seu
relacio n am en to com os deuses. E m S hakespeare, os p erso n a­
gens não se revelam , m as se desenvolvem , e o fazem p orque
tê m a capacidade de se autocriarem . À s vezes, isso ocorre
p o rq u e, in v o lu n tariam en te, escutam a p ró p ria voz, falando
consigo m esm os ou com terceiros. P a ra tais personagens, es­
c u ta r a si m esm os co n stitu i o no b re cam in h o para a in d iv id u ­
ação, e n en h u m o u tro autor, antes e depois de Shakespeare,
realizou tão bem o verdadeiro m ilagre de criar vozes a um só
te m p o tão d istin tas e tão in tern am e n te coerentes para seus
personagens principais, que som am m ais de cem , e para cen ­
tenas de personagens secundários, ex trem am en te individua-
dos” (B loom , 2001, p. 19).

t) do p o n to de vista dos processos subjetivos envolvidos na


vida política, esta é m arcad a pelas oposições en tre legitim idade e
usurpação do poder, e estabilidade e guerra. E m Shakespeare, há
ligação en tre vida e política, já que to d o s os indivíduos sofrem os
efeitos das ações dos governantes, p articu larm en te causados pelo
ro m p im en to da leg itim idade, pelo golpe, g eran d o violência e m a r­
cando um te m p o desestabilizado o u de guerra, q u an d o o m ed o e o
sangue invadem o m undo. Esses fenôm enos são estreitam ente liga­
dos às dificuldades e às características trágicas da sociabilidade e do
exercício do p o d er pelos hom ens, particularm ente quando exercidos
pelo h o m em intem pestivo e não virtuoso. H á em seus textos um a
visão relativam ente cíclica da história política, em que bons governos
po d em degenerar-se em m aus governos, e estes p o r sua vez d an d o
lugar n o v am en te à estab ilid ad e e leg itim idade, sucessivam ente.
Shakespeare, do p o n to de vista d o gênero artístico, inaugura um a
nova estrutura trágica, em direção ao dram a, em um a fase de transi­
ção que ainda h á algum sentido de destino, mas não mais na frontei­
ra entre os deuses e os hom ens, mas em um a dinâm ica já centrada
nos lim ites terrenos e existenciais do indivíduo m oderno, enquanto
Ideias psicológicas na Idade Clássica e na M oderna | 3 3
principal protagonista. Temos então uma concepção de política como
tragédia, próxima à visão realista de M aquiavel, girando em torno
de um a autonomia relativa da dinâmica do poder em relação aos
hom ens, e de um conflito impossível de ser resolvido, que é m otor
da ação humana, que dá a marca de instabilidade p erm an en te e
imprevisibilidade da ação dos governantes, configurando transi­
ções entre períodos de ordem e ruptura, estabilidade e instabilida­
de, e paz e guerra,
Apesar de caráter extremamente sintético dessas observações,
creio que para os objetivos deste trabalho podem os encerrar a revi­
são sobre Shakespeare e passar a um m ovim ento filosófico que ex­
plorou mais profundamente, do ponto de vista teórico, um a de
suas intuições, o solilóquio.

3.2. Os rudimentos da idéia e do funcionamento do


inconsciente na filosofia moral e na metafísica do
século XVII

A ideia da existência de áreas desconhecidas ou resistentes ao


conhecimento da mente humana emerge, na Idade C lássica, na
literatura e na filosofia moral do século X V II, no g osto pelo exame
da consciência e pelo “conhecimento de si m esm o e dos h o m en s”.
C om o nos indica Reis (2005) e Plantié (1994), esta expressão está
presente no título de várias obras no contexto francês.4 Esse tipo
de conhecimento é estimulado em duas direções bem diferencia­
das, uma como meio para conquista da prudência e d a sabedoria,
no cam inho apresentado pelos moralistas, e a o u tra te m objetivos
mais mundanos, na vulgarização de um a m oda que valoriza a d es­
crição de si mesmo, em retratos e autorretratos literários, com obje­
tivos autopromocionais.

4 Entre os exemplos citados, estão: M artin Cureau de la C ham bre, U a rt d


connaltre lei hommes, 1660; François de La Mothe le Vayer, De la conaissance de soy-même,
1669; Pierre Nicole, De la conaissance de soy-méme (Essais de morale, tomo 3), 1675;
Madeleine de Scudéry, De la conaissance d ’autruy et dc soy-mcme (em Conversations
sur divers sujets, tomo 1); Jacques Abbadic, L'art de se connoitre soy-méme, 1692; François
Lamy, De la connaissance de soi-méme, 1694-1698; Jacques Bénigne Bossuet, Traité de la
con-naissance de Dieu et de soi-méme, publicado cm 1722.

34 | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na M oderna


U m dos autores representativos desse movimento, na vertente
m oralista, m as que nos perm ite com preender m elhor tam bém a
o utra v erte n te, foi o francês La Rochefoucauld (1613-1680). Em
sua p rim eira versão de sua obra M aximes (Reflexões ou Sentenças
M áxim as Morais), d e 1665, criticava os que se abandonavam in ­
g en u am en te à adulação inerente à literatura dos retratos literários,
indicando nessa prática o com ponente do am or-próprio, como jogo
de imagens e olhares entre os indivíduos, e que também se reproduz
d en tro de um a m esm a pessoa, em relação a seu próprio coração, em
um a m istura de clarividência e ignorância de si mesmo, já que faz
parte do jo g o do am o r-p ró p rio gerar um disfarce não só para os
outros, m as tam bém para si mesmo. Assim, La Rochefoucauld as­
sinala que o esforço introspectivo é fortem ente desqualificado,
porque se vê envolvido nos mecanismos do am or-próprio, chegando
à conclusão de que o acaso ou as paixões têm mais poder de desco­
b rir o fu n d o o b scu ro do coração do que q u alquer esforço de
introspecção.
A ssim , com o conclui Reis (2005), na análise dos moralistas
do século X V II já se esboça um a ideia de inconsciente, ao m ostrar
a cegueira dos indivíduos sobre si mesmos e a falsidade da cons­
ciência e do jogo de cena para enganar aos outros e a si mesmo,
como resultado de forças obscuras e de desejos que o indivíduo não
está disposto a reconhecer em si.
Reis nos relem bra ainda que outros filósofos mais conhecidos
trabalharam com essa m esm a problem ática, sendo o francês Blaise
Pascal (1623-1662) u m dos mais radicais, porque em sua metafísica
denuncia a própria natureza do eu, ao lhe atribuir com o sinónim o
o am or-próprio, descrevendo o eu, portanto, com o um a som bra
sem substância, uma espécie de fantasma, uma imagem construída
pelo indivíduo com finalidades particulares. E m últim a instância,
o eu, segundo ele, seria apenas o desejo de ser estimado, a necessidade
de admiração, que pressupõe, por um lado, a ignorância de si mesmo,
e por outro, a im aginação e a representação, p o r meio de um jogo
de aparências. A ssim , cada um de nós se apresenta aos olhos dos
demais com o ser im aginário, um “eu para os outros”, com o um a
construção, e daí a necessidade de fixar as qualidades que quer
Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna | 35
apresentar ao outros. Um ponto de vista m u ito similar foi exposto
um pouco mais tarde também por Bernard d e Mandeville (1670-
1733), filósofo de origem holandesa, mas q u e viveu na Inglaterra,
em obras de estilo mais satírico e ofensivo. N ã o há como negar, em
Pascal e Mandeville, se o compararmos com as teorias do inconsci­
ente do século XX, um a clara intuição dos principais mecanismos
de defesa do ego e do funcionamento básico do narcisismo e do
imaginário.
O utro autor im portante da filosofia m oral da época, desta
vez um pouco mais otimista, foi o inglês A n thony Ashley Cooper,
ou C onde de Shaftesbury5 (1671-1713), q u e se apropriou do re­
curso do solilóquio, utilizado por Shakespeare, retom ando-o e
am pliando-o em sua reflexão no campo da moral. O filósofo bus­
cou diferenciar-se do ceticismo de Pascal e opor-se à tendência ao
egoísmo de Hobbes, que argumentava que todos os seres hum anos
seriam motivados pelo autointeresse. Buscava tam bém se confron­
tar com Locke, que afirmava que as leis da natureza e da m oral
seriam emanadas de Deus. Para Shaftesbury, a m oralidade existe
independentem ente da religião, a partir da capacidade exclusiva
dos homens de refletir sobre ações e sentim entos, de si próprios e
dos outros, os levando a experimentar respostas em ocionais não
somente a partir de estímulos físicos, mas tam bém a p artir destas
vivências mentais, que os capacitam a desenvolver em si m esm os o
bem e as virtudes, e a noção de bem público.
Em oposição a Descartes, Shaftesbury criticava as tentativas
de provar a nossa existência, pois disso já estamos convictos, argu­
m entando que o que nos interessa é entender o que “constitui o
nós ou o eu?” (Shaftesbury, “Soliloquy o r advice to an a u th o r”,
1711/1999, p. 221), ou seja, “o que eu sou”. Vê na filosofia de seu
tempo a propensão para apreender o que é universal no gênero
humano, o que a leva a perder as características particulares dos
homens, a sua diversidade e suas diferenças, levando-a a identificar
como “am oral” qualquer costum e ou co m p o rtam en to estran h o .

5 Para os interessados em uma visão introdutória sobre este autor, ver o trabalho
de Nascimento (2007), o próprio Shafsterbury (1711/1999) e Jaffro (1998), que
serviram de base para montar essa esquemática apresentação do autor.

36 | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na M oderna


A ssim , a p artir desse reconhecim ento da diversidade e das cons­
tantes m udanças em cada ser hum ano, se pergunta o que permite a
convicção de identidade, ou seja, de ser idêntico a si mesmo, de se
reconhecer com o ten d o um eu e as variações a que estamos su jeitos.
Para ele, o que possibilita isso é a prática do solilóquio, o diálogo
em que sou o m eu próprio interlocutor, ou conversa interna (inward
conversely em que podem os assum ir nossas diferenças e entender o
que somos. P ara com preender o solilóquio, ele lembra algumas
imagens ilustrativas:
— a dissecação de si (seIf-dissection), ou um a análise na qual o
indivíduo abre e exam ina o seu interior;
— o teatro, pelo qual nossas facetas entrariam em cena, in ­
cluindo o que fom os nas diversas fases do passado e as diferentes
personagens que assum im os nos variados contextos, enquanto ou­
tra parte de nós assiste com o expectadora;6
— o espelho de bolso (pocket-mirrour), com o um instrum en­
to sempre à m ão, para nos contem plarm os a qualquer m om ento e
refletirm os a p artir dessa im agem.
O solilóquio desenvolve em nós a figura do autoexaminador,
em um constante trabalho de autocrítica e julgam ento, que ele
com para a figuras com o a do tribunal de inquisição, do inspetor,
do auditor ou de um jardineiro que poda os elem entos indesejáveis
de seu jardim , ou sua identidade. A ssim , a capacidade do soliló­
quio nos perm ite unir a m ultiplicidade de opiniões, fantasias e
desejos em nós, bem com o perceber os processos de m udanças.7
Dessa forma, considera com o a principal característica do gênero
hum ano a capacidade de autoform ação.
Para ele, a m em ória sozinha não garante a identidade pessoal,
mas sim a nossa capacidade de ligar e estabelecer relações en tre as

6 É im p re ssio n a n te a a n te rio rid a d e das ideias de S h afsteb u ry em re la çã o aos


conceitos que mais tarde, no início do século XX, foram utilizados por M oreno para
criar o psicodrama.
7 Nesse sentido, não tenho dúvidas de que Shafstebury anteviu, cerca de du­
zentos anos antes, os mecanismos básicos envolvidos na dinâmica das noções psicana-
líticas do eu (ego, na tradução convencional) e do supereu (superego). Além disso, há
cm suas ideias um esboço de uma psicopatologia, uma vez que atribui ao louco a
dificuldade de reconhecer o que lhe é próprio e de unificar suas diferenças e de formar
um eu idêntico.

Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna | 3T


lembranças desconexas. A identidade seria, então, um processo
dinâmico de formação que é aperfeiçoado na m edida de nossa cons­
ciência de seu movimento. E essa prática precisa ser aprim orada,
com esforço e dedicação, pois nossos p ensam entos têm um a
“linguagem tão obscura e im plícita”, exigindo subir regularm ente
ao palco do solilóquio e m uito esforço para “fazê-los se exprimir
claram ente”8 (Shaftesbury, 1711/1999, p. 94). São exatam ente os
períodos em que sofremos mudanças que exigem m aior esforço,
como forma de compreensão das transformações em nossa id en ti­
dade pessoal.
Para além da perspectiva m eram ente individual, Shaftesbury
retom a a com paração do solilóquio com o teatro, dizendo que a
prática daquele nos prepara para um espetáculo maior, o palco do
m undo (stage o f the world), pois é justam ente nessa conversa in ter­
na que escolhemos a figura e m ontam os a personagem que assum i­
remos na vida. E paradoxalmente, é o próprio solilóquio, ao perm i­
tir a consciência de me constituir como um ser particular, é que
possibilita a compreensão do que me torna universal e o contato
com m inha natureza racional, como cidadãos do m undo: ao com ­
preender que cada um de nós exerce, de forma pessoal, essa capaci­
dade de autoform ação e de se diferenciar dos dem ais, criam os a
possibilidade de compreensão de nosso vínculo e de nossa sem e­
lhança com os outros. Poderíamos dizer, em term os co ntem porâ­
neos, que para Shafstesbury é a capacidade de individuação e au­
toformação que nos torna universais, como gênero hum ano. A ssim ,
para ele, a prática de solilóquio e a autoform ação constituiriam
também o critério que perm ite avaliar o grau de h u m an id ad e de
um povo, e não seus costumes literais ou sua sim ilaridade com
padrões conhecidos de com portam ento.
Creio que podemos encerrar aqui essas notas sobre a filosofia
moral clássica, para podermos introduzir, na co n tin u id ad e da h is­
tória da filosofia ocidental, um autor que teve m a io r reconheci­
m ento e repercussão: Espinosa.

8 Novamente, não haveria aí um esboço de um método d c interpretaçã


direção do que foi desenvolvido pela psicanálise?

38 | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na M oderna


3.3. Uma concepção integrada e monista de corpo e
alma, bem como um esboço das ideias de inconsciente
e sintoma, em Espinosa

O holandês B enedictus de E spinosa9 (1632-1766) nasceu


em um contexto de franca expansão m ercantilista na H olanda,
fundada na liberdade de em presa e de consciência. D e família ju ­
daica, foi excluído da com unidade, processo que se refletiu em sua
obra em um a crítica de todas as formas de superstição, particular-
m ente a religiosa. C hegou até a esboçar um a teoria do que mais
tarde seria cham ado de alienação religiosa, baseada na im potência
de entendim en to das leis necessárias do universo, no m edo dos
m ales e na esperança dos bens, e na im aginação, que projeta em um
ser suprem o e todo-poderoso, que existiria fora do m undo, trans­
cendente, e o controlaria de form a voluntária e onipotente.101
Nessa trajetória, Espinosa propõe o m étodo histórico-crítico,
pelo qual as verdades religiosas não constituem verdades, mas pre­
ceitos morais e políticos, voltados para os interesses de preservação
histórica da com unidade judaica e de dirigir o povo, e assim, a
superstição se m antém . D e form a similar, expõe tam bém seu método
genético, pelo qual conhecer é descobrir as causas, ou seja, o m odo
pelo qual algo é produzido.11 A qui, há um a crítica ao racionalism o

9 No Brasil, a principal estudiosa da obra de Espinosa é sem dúvida Marilena


Chaui, da USP. Para uma introdução à complexa obra do filosófo, ver o volume específi­
co da coleção Os Pensadores (Espinosa, 1979), com texto de apresentação e seleção
das obras originais de sua responsabilidade, além de dois outros livros de sua autoria
(Chaui, 1999 e 2005), obras que serviram de base à esquemática revisão feita aqui, além
da própria Ética (Spinoza, 1677/2007), lida diretamente, dada a relevância para este
trabalho, e por sua presença direta nos escritos de Mane. Aproveito a ocasião para saudar
a publicação recente no Brasil, em 2007, de nova edição desta sua obra pela Editora
Autêntica, com tradução bem-cuidada e bilíngue (latim e protuguès) de Tomaz Tadeu,
propiciando ultrapassar as limitações das publicações disponíveis até então.
10 A meu ver, Espinosa aqui precede e é fonte essencial da crítica da alienação
religiosa de Feuerbach, tão importante na formação de Marx, e na do próprio Freud,
além de já esboçar o conceito de projeção, tal qual o entendemos hoje em psicanálise.
11 Não tenho dúvidas de que aqui Espinosa já tem esboçada uma teoria de
ideologia e de produção material, na direção do materialismo marxiano. Mesmo saben­
do que Marx efetivamente leu Espinosa na juventude, penso que isto não implica
necessariamente subscrever a tese mais recente de Althusser (1980) de filiação genea­
lógica direta e necessária do pensamento de Marx com a obra de Espinosa.

Ideias psicológicas na Idade Clássica e na M oderna | 3 9


e ao empirismo: no primeiro, há um exterioridade entre a ideia e
aquilo de que ela é ideia, o que gera a necessidade de uma garantia
para a verdade, como apela Descartes para D eus; no segundo, essa
garantia está na experiência. Ao propor sua teoria da im anência da
verdade ao objeto, de que conhecer é conhecer a sua génese, ou o
seu m odo de produção, Espinosa defende que a verdade não preci­
sa de garantia externa, ela é índice de si mesma. N a verdade, com
sua tese monista da imanência, o autor holandês está propondo na
verdade a abolição do dualismo cartesiano, pois sugere que pensa­
m ento e matéria/extensão são atributos de um a única e mesm a
substância, retom ando a posição de que D eus seria a própria m até­
ria. Assim, para ele, a natureza hum ana teria a mesm a estrutura da
substância do mundo, e a alma seria não um reflexo, mas um a
consciência do corpo. Critica qualquer explicação mecanicista, como
se o corpo fosse a causa das ideias e vice versa, pois tem os entre eles
uma relação de correspondência ou de expressão. O ser hum ano
seria uma estrutura,12 ou seja, uma organização de partes relacio­
nadas entre si, com uma inteligibilidade intrínseca, e suas transfor­
mações não são geradas por causas externas, mas internas.
A relação entre ideias na alma e o m ovim ento in tern o no
corpo constituem a essência do hom em , denom inada de conatus>
como um esforço para perseverar na existência, vencendo os obstá­
culos exteriores e expandir-se, realizando-se plenam ente. A ssim ,
somos livres não quando decidimos o que querem os, mas sim quan­
do conhecemos as leis da natureza e de nosso corpo, e não nos
deixamos dom inar pelo exterior, mas pelo contrário, sabem os d o ­
miná-lo de forma ativa, e não passiva.13 A passividade se dá quan­
do somos afetados em nosso corpo pelo que E spinosa cham a de
“causa inadequada ou parcial”, não nos p erm itindo conhecer de
forma clara e distinta “as afecções do corpo, pelas quais a sua p o ­
tência de agir é aum entada e dim inuída, estim ulada ou refreada, e,

12 Esta teoria imanentista de Espinosa tem, em minha opinião, clara corre


com teorias psicológicas mais contemporâneas, tais como algumas vertentes da psi­
cossomática e teorias bioenergéticas, bem como com as ideias de Nietzsche, Deleuze
e Guattari.
n Há também aqui clara semelhança com elementos da ontologia materialista
de Marx.

40 | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna


ao m esm o tem po, as ideias dessas afecções” (Spinoza, 1677/2007,
Parte III, D efinições, p. 163). D aí, segundo ele, “quanto mais ideias
inadequadas a m ente tem , tan to m aior é o núm ero de paixões a
que é subm etida; e, contrariam ente, quanto mais ideias adequadas
tem , tanto mais ela age” (Ibidem , Parte III, Proposição I, Corolário,
p. 165). N ão há dúvida de que aqui há um esboço de um a teoria
dos im pulsos inconscientes e de seus sintom as, e veremos com o
essa referência ficou gravada p o r M arx, em sua leitura de Espinosa.
Para o filósofo holandês, a causa da ação hum ana é portan to o
desejo, com o a tendência interna do conatus a conservar ou aum en­
tar a nossa força. D essa form a, a liberdade hum ana não consiste em
querer escapar das leis da natureza hum ana, mas em conhecer tais
leis, e deixar-se levar pelas paixões positivas, que levam à alegria,
amor, coragem , etc. M esm o que não possamos escapar de alguma
passividade, é possível vencer as paixões negativas pelas positivas.
Suspendendo as noções correntes de bem , mal, ju sto , im perfeito,
etc., os critérios de definição ética para Espinosa são claram ente
distintos dos deveres morais (quando se age não p o r autonom ia,
mas por m andam ento), e o objetivo d a ética está em aum entar
nossa potência ou conatus, agindo pela força in terio r de seu desejo
e de sua com preensão.14
Para efeito de nosso estudo, basta indicar apenas, neste m o­
m ento do trabalho, que M arx leu Espinosa na juventude, p arti­
cularm ente no processo de realização de sua tese de doutoram ento,
onde se vêem várias citações e referências explícitas ao filósofo
holandês. E n tre ta n to , a presença de E spinosa será im p o rtan te
tam bém mais tarde, em nossa análise da subjetividade do próprio
M arx, quando M arx tom a Espinosa com o um a referência-chave,
expressa em um a de suas cartas a Engels, para um a tentativa de
com preensão de seus próprios problem as subjetivos e corporais,
em um m om ento de forte ataque psicossomático de carbúnculos,
em 1864.

14 Estou certo de que aqui Espinosa está esboçando uma formulação da teoria
do inconsciente e da pulsão, bem como de suas implicações éticas, que será inspiradora,
quase duzentos e cinquenta anos depois, da obra de Nietzsche, Deleuze e Guattari.

Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna | 4 I


3.4. U m o u tro e s b o ç o da ideia de inconsciente, e m
Leibniz

Por sua vez, o alemão W ilhelm G o ttfried L eibniz'* (1646-


-1716) contemporâneo de B e n e d ic ts Espinosa é considerado um
dos màis eruditos dos filósofos m odernos, p ro duzindo u m a obra
com contribuições para a filosofia, a m atem ática (cnação do cál­
culo diferencial e integral), a biologia (foi um dos precursores da
ideia de evolução) e vários outros campos do conhecim ento. Seu
sistema de pensamento sobre o hom em e a natureza é com plexo,
intrincado e singular, e é geralmente colocado com o o terceiro dos
grandes sistemas racionalistas do século X V II, depois d e D escartes
e de Espinosa.
Apesar dessa perspectiva racionalista geral e de u m a co m ­
pleta rejeição ao atomismo de sua época, a ontologia d e L eibniz
praticam ente reconhece no ser hum ano um cam p o perceptivo
amplo para além da consciência, que tem m uitas sem elhanças com
a noção contemporânea de inconsciente. Paradoxalm ente, ao m es­
mo tem po que vê cada ser hum ano com o um a m ô n ad a ou m i­
crocosmo autossuficiente e independente, e suas propriedades p o ­
derem ser dedutíveis deste conceito au to co n tin g e n te, em u m a
concepção idealista radical, as m ônadas tem um c o m p o n e n te
em inentemente relacional. Tudo que se produz no universo e na
realidade exterior deste sujeito repercute para su sc ita r algum a
percepção e influi no seu desenvolvimento. Essas pequenas p er-
cepções cotidianas, chamadas de apercepções, influem em nós sem
que possamos sabê-lo, pois as distinguim os apenas q u an d o assu­
mem uma certa intensidade. Este esboço da ideia de “in co n scien te”
está igualmente presente no intelecto e atividade cognitiva, um a
vez que nossa atenção está presa a um cam po lim itad o , sem ser
capaz de abarcar toda a infinidade do cam po em q u estão , form ado
por uma ampla série de estímulos. Ele tam bém aparece na form a

ls Para os interessados cm uma visão introdutória ao autor, ver Leibniz (vols. I


e II, 1980), Strathern (2002) e Ross (2001).

42 | Ideias psicológicas na Idade Clássica e na M oderna


de hábitos e costum es, que nos levam a ignorar elem entos de nossa
realidade perceptiva diária. E, finalm ente, ele constitui um ele­
m ento im portante do que hoje cham aríam os de nossa identidade,
de nossa personalidade e de nossos traços psicopatológicos, já que
ta n to a intensidade com o a q u an tid ad e dessas percepções p re ­
cedentes, em um a im pressão forte, podem ter, de um a só vez, o
efeito de um longo hábito.
C oncluída esta rápida revisão dos principais autores raciona-
listas pré-ilum inistas, penso que agora tem os condições de partir
para as correntes de pensam ento de m aior expressão no Ilum inis-
m o europeu, no próxim o capítulo.

Ideias psicológicas na Idade Clássica e na Moderna | 4 3


Capítulo 4
O materialismo iluminista francês
e sua psicologia sensacionista
de base empirista

4.1. A psicologia de Condillac como principal matriz da


psicologia iluminista e revolucionária francesa

C o m o vim os no volum e anterior, a filosofia m aterialista e ilu­


m inista francesa teve profunda im portância na form ação do p en ­
sam ento m arxiano. A s principais linhas de com o M arx se ap ro ­
priou dessa tradição já foram aí indicadas, e cabe agora am pliar o
foco de análise para detectarm os m elh o r algum as de suas caracte-
rísticas e tensões internas, para ap ro fu n d ar nossa análise.1
N o século X V III, o pensador da tradição em pirista anterior
com m aior im pacto no cam po da ideias psicológicas na E uropa foi
sem dúvida John Locke (1632-1704). A lém de im portante obra no
campo da filosofia política e economia, desenvolveu um a crítica radical
do pensam ento escolástico e metafísico e u m forte elogio das formas
de conhecimento inspiradas pelas ciências naturais. E m term os m uito
sucintos, Locke rejeitou po r com pleto a noção racionalista de ideias
inatas, propondo um a com paração da m ente hum ana a um a tabula
rasa, que se forma totalm ente a partir das experiências sensíveis. Estas,
associadas (e daí o nom e de associacionismo ou sensacionista à teoria),
são a base para a formação de um a identidade pessoal ou self? com 12

1 Para. esta seção, as principais fontes foram os trabalhos volumosos de Seigel


(2005) e Goldstein (2005), em inglês, que recomendo ao leitor interessado em um
aprofundamento sistemático e sério do assunto.
2 Em Lockc, o tema da identidade pessoal ou. self, objeto de crítica pelos seus
contemporâneos a partir da primeira edição, só vai aparecer como com plem entaçio
(cap. 27 do livro II) na segunda edição do Ensaio sobre o entendimento humano, de 1694.

Omaterialismo ilum inista francês e sua psicologia | 45


fundam ento na consciência e principalm ente na memória das ex­
periências anteriores de punição e recom pensa, bem como de um
pensam ento complexo, pela reconstrução d as origens dos juízos e
certezas, seus vínculos e relações, e de crítica às ideias e opiniões
distorcidas vigentes na sociedade. Em sua concepção, esse tipo de
conhecim ento é capaz de produzir um a estrutura racional siste­
mática, como na matemática e nas ciências morais, que ele põe no
mesmo plano epistemológico, e nas ciências experimentais. Sua obra
principal nessa temática foi Ensaio sobre o entendimento humano,
publicado em 1690, mas há desdobram entos de suas ideias ta m ­
bém no campo da educação, uma vez que ela forma o ser hum ano,
em seu estudo intitulado Algunspensamentos sobre educação^ de 1693.
Além disso, apresenta também uma teoria similar a de Leibniz das
impressões insensíveis, mas centradas na prim eira infância, que
constituem as primeiras marcas da tabula rasa e da fundação do
self, e que portanto têm consequências duradouras ao longo da vida,
admoestando particularmente contra certas influências perniciosas
na educação infantil, como as associadas a seres fantasiosos da n o i­
te, que geram medo, em um conjunto de ideias que prefiguraram
claramente elementos contemporâneos da psicologia do desenvol­
vimento, da personalidade e da educação.
Na França, onde a influência de Locke foi sensível, o p rin ci­
pal intérprete do Ensaio sobre o entendimento humano e das ideias
associacionistas foi Étienne B onnot de C ondillac (1715-1780),
que teve laços diretos com D iderot e Rousseau. Suas obras p rin ci­
pais sobre o assunto foram Ensaio sobre a origem do conhecimento
humano (Condillac, 1746/1999), e Tratado das sensações, de 1754.
O primeiro retom a a ideia lockiana de que todo o conhecim ento
tem origem nas experiências sensíveis, discutindo as várias funções
mentais, a história da linguagem e da cultura h u m an as, inserida
em um projeto histórico iluminista de reform ar as ideias sobre
humanidade, natureza e sobre a sociedade, m ed ian te um a racio ­
nalidade próxim a da experiência concreta, b u sc a n d o lib e rta r os
seres hum anos do saber oriundo das autoridades a té e n tã o co n s-
dtuídas. O segundo livro reforça ainda mais rad icalm en te a tese
das experiências sensíveis com o fonte do co n h ecim en to , p o r m eio
46 | O materialismo iluminista francês e sua psicologia
de um a alegoria de um a estátu a h u m an a que adquire passo a passo
cada um dos cinco sentidos, às vezes de form a separada, outras
vezes em co n ju n to , te n d o acesso a p artir daí aos poderes da com ­
preensão, im aginação e ju lg am en to . N esse sentido, particularm en­
te o Tratado sustenta a psicologia h um ana em bases ainda mais
claram ente m aterialistas, em sua proxim idade com a natureza e o
corpo, do que Locke.
E n tretan to , particularm ente no Ensaio (1746/1999), há ainda
esferas da consciência (particularm ente o que cham ou de consciên­
cia reflexiva ou sintética), da linguagem e da espiritualidade que
podiam até partir, mas não se reduziam à determ inação estrita da
experiência sensível. U m a das razões para isso indicadas p o r Seigel
(2005) estava não só em um a estratégia de se defender dos ataques
críticos, particularm ente do clero, em um contexto de ainda forte
perseguição religiosa, mas tam bém p o r um a questão lógica im p o r­
tante: u m a m e n te to ta lm e n te d e p e n d e n te das condições m a te ­
riais já existentes p ara sua fo rm ação, te ria dificu ld ad es p ara se
co n stitu ir com o u m a consciência crítica dessas condições, ques­
tão que mais tarde seria levantada pelo p en sam en to kantiano, e
mais bem identificada adiante. A m eu ver, aqui tem os claram ente
um prim eiro desafio e tensão para um pensam ento estritam ente
em pirista que mereceria discussão mais aprofundada.
Por sua vez, D enis D id ero t (1713-1784), apesar de não ter
um a produção tão sistem ática no cam po da psicologia,3 foi mais
livre e mais radical em sua form a de pensar, e teve m aior im pacto
em virtude do seu trabalho com o organizador da Enciclopédia, ou
Dicionário racional das ciências, artes e ofícios, cujos vários volum es
foram publicados entre 1751 e 1772. D id ero t e seu projeto sofre­
ram inúm eras perseguições, insultos, deserção de am igos, períodos
de clandestinidade e interrupções, pelo fato de que d efen d eu a

3 Sua contribuição específica no campo se resume principalmente às Cartas sobre


os cegos, de 1749, um ensaio curto sobre a dependência do homem em relação aos
sentidos, mostrando o caso de uma pessoa privada da visão, bem como indicando
hipóteses pré-darwinistas, na direção da variação e seleção natural. Mais tarde, uma
segunda peça, Carta sobre os surdos e mudos descreveu o caso de privação em um cego e
mudo. A primeira obra foi considerada ofensiva para as autoridades eclesiais, que o
levaram à prisão por cerca de três meses.

Omaterialismo iluminista francês e sua psicologia | 47


tolerância política e religiosa, liberdade de pensamento, o valor da
ciência e da indústria e os interesses da maioria da população com o
o maior valor de uma nação.
Mais além desse pequeno sumário das principais ideias e obras,
é im portante indicar que, no contexto histórico, cultural e político
mais amplo da França pré-revolucionária, a perspective da psico­
logia associacionista ou sensacionista estava in teiram en te coe­
rente com os objetivos e o projeto ilum inistas, como já percebera
M arx, mas também tentava buscar respostas aos desafios concretos
que seus principais intelectuais vislumbravam no cam po político-
-cultural e da subjetividade coletiva, tem a que precisa ser mais bem
explicitado. Para discuti-lo, buscarei seguir algumas das indicações
propostas por Goldstein (2000), sugerindo alguns pontos analíti­
cos para a discussão.
Em relação ao primeiro ponto, a psicologia m aterialista e em -
pirista, apesar de suas reconhecidas lim itações com o ato m ista e
mecanicista, significava um esforço intelectual efetivo para co m ­
preender o processo de form ação da subjetividade d o s in d iv í­
duos e das m assas populares, co m o form a de crítica às várias
perspectivas m etafísicas, religiosas e o b sc u ra n tista s im p o sta s
pelo clero e pela aristocracia (que utilizavam a ten d ên cia d o h o ­
mem simples de escapar de sua dura realidade co tid ian a através
de um m undo imaginário), m ostrando a possibilidade de co n h e­
cer esse processo em bases racionais e científicas. A busca desse
conhecimento implicava estratégias para in d u z ir co m p o rta m e n ­
tos e uma cultura apropriada no seio das m assas p o p u lares, m ais
coerente com os objetivos políticos ilum inistas de um a sociedade
laica, republicana, voltada para a livre em presa, e livre das form as
de autoridade do Velho Regime.
O segundo ponto foca um tem a de forte interesse neste m o ­
mento da análise, e constituiu tam bém um a questão central para
os primeiros teóricos da sociologia no século X IX , com o C o m te e
Durkheim. Os anatomistas da psique se p ro p u n h am um desafio
sociocultural e subjetivo concreto e im portante: as possíveis im plica­
ções da reivindicação de uma econom ia regida pelas d o u trin as do
liberalismo e do individualismo económico, em u m a sociedade a
48 | O materialismo iluminista francês e sua psicologia
ser guiada prim ordialm ente pelas livres forças d o m ercado, e ao mes­
m o tem po laica e sem as corporações de ofício, ou seja, sem as duas
principais velhas instituições fontes de autoridade que até então m o­
dulavam a m oralidade e a identidade cultural dos indivíduos, d irig in ­
do-lhes a im aginação. N a nova sociedade, os indivíduos passariam
a ser atom izados e isolados d en tro da grande m assa populacional, o
que levantava de antem ão o problem a da ausência de regras que g o ­
vernariam as condutas d e cada indivíduo da população, deixando-
-os inteiram ente disponíveis para os descam inhos de um a im aginação
desagregadora, de forças centrífugas, capazes de gerar desordem , e
que os faria perder co n tato com um a realidade coletiva e m in im a­
m ente consensuada de um projeto histórico e político com um .
Esse problem a já estava form ulado de form a diferenciada nas
várias obras de C o n d illac. O g ra n d e desafio de u m a sociedade
liberal, para ele, estava p o sto n a função psíquica da im aginação,
e para o enfrentam ento d o problem a, a “ciência da psicologia” cons­
tituía um recurso sociopolítico precioso, já que estim ularia um a
linguagem ap ro p riad a e u m co n h ecim en to analítico p ara ideias
m ais exatas, com base n a deco m p o sição d a realid ad e co n creta,
em su b stitu iç ã o das id e ias a b s tra ta s , co m o n a m e ta físic a e na
religião, que co n d u ziriam inevitavelm ente ao rein o d a im ag in a­
ção e ao erro.
O dilem a em ergiu concretam ente no período revolucionário.
As associações corporativas em geral foram abolidas em 1789, e as
corporações de ofício em 1791, e os discursos de seus rep resen tan ­
tes nos coletivos revolucionários denunciavam os perigos assinala­
dos acima (G oldstein, 2000). C o m o os revolucionários resp o n d e­
ram ao desafio? A lguns exem plos de estratégias propostas com base
na psicologia sensacionista, realizadas ou não, im plicaram a e stru ­
turação do que hoje poderíam os cham ar de u m a v erd ad eira “e n ­
genharia sociopolítica, cu ltu ral e psicológica”:

a) o uso de festivais públicos ou civis, com o u m a fo rm a de


pedagogia civil baseada em teorias psicológicas sensacionistas, que
pregavam atuar no nível pré-linguístico. U m deles foi realizado
efetivam ente em Paris e m 1793, o Festival da Razão, em q u e se
Omaterialismo iluminista francês e sua psicologia \ ê t9
estim ulava o culto em templos dedicados à razão, à filosofia e à
liberdade, sendo esta última representada com o uma linda mulher,
viva e não uma estátua, como um exem plar ilustrativo das várias
estratégias pensadas para marcar presença na imaginação do cida­
dão em um a direção racionalista;
b) a proposta de um sistema de censura para restringir a extre­
m a liberdade cultural, baseado em deliberação coletiva de homens
sábios e educados, com direito de defesa dos autores dos trabalhos;
c) contrário ao sistema de censura, o conde de M irabeau (H o ­
noré G abriel Riqueti, 1749-1791) propôs um a pedagogia p ró ­
pria para a vida diária, particularm ente por meio de im agens v i­
suais, que moldariam a imaginação diretam ente, para privilegiar
certas atitudes sociopolíticas desejáveis. Assim, quando a proposta
dos festivais públicos foi abandonada, foi substituída pela propos­
ta de uma linguagem alegórica de sinais e sím bolos em eventos e
cerim onias públicas, inspirada nos rituais religiosos, para evocar
respeito, confiança e demais valores cívicos;
d ) a universalização do francês como língua, elim inando os
dialetos locais marcados por imperfeições linguísticas;
é) o uso de uniform e especial para os guardas republicanos,
que interpelasse a imaginação popular;
f ) um novo sistema de nom es republicanos p ara locais p ú ­
blicos, como ruas, praças, etc.;
g) a reform a do calendário, recontando os anos a p artir do
início da revolução, renom eando-se os meses e estações d o ano;
h) a abertura de escolas centrais de ensino laico, racio n alis­
ta e patriota, nas quais os cidadãos seriam ensinados, en tre outras
coisas, uma gramática inteiram ente baseada nas ideias de C ondillac
e na psicologia sensacionista, para ativamente co m p reen d erem o
processo de educação transform ando suas m entes. N esse ensino, a
proposta dc C ondillac era de ab erto co m b ate c b a n im e n to da
imaginação, m ediante um a linguagem estru tu ra d a p a ra o p e n sa ­
mento analítico e racional au tónom o.
A maioria dessas propostas se sustentaram apenas d u ran te o
período propriam ente revolucionário, até a queda d o D ire tó rio , em
1799.
50 | 0 materialismo ilum inista francês e sua psicologia
Segundo G o ld stein (2000), apesar do fervor revolucionário,
a psicologia sensacionista e este tipo de “engenharia social e psico­
lógica” certam en te geraram d eb ates, desafios e dificuldades em
sua im plem entação, e estes podem ser reveladores de alguns dos
problem as e tensões inerentes à perspectiva:

d) A despeito dos princípios de livre acesso, autonom ia local,


igualitarism o e laissez-faire na dinâm ica das escolas no período re­
volucionário, alguns historiadores recentes revelam que ela gerou
elitism o e em alguns casos, perplexidade e evasão dos alunos. H oje,
podem os nos perg u n tar se seu p ro g ram a de ensino n ão im plicava
um distan ciam en to da investigação e valorização das diferentes
vertentes da cu ltu ra p o p u lar, e se ele não veicularia um a noção
im plícita do hom em com um com o hom ogeneam ente m arcado por
um a m ente fraca, dócil, crédula, vulnerável e sempre capturada pela
superstição. Essa tem ática será retom ada mais à frente, na discus­
são sobre o rom antism o, m ovim ento que tom ou a direção contrá­
ria, de valorização da cultura popular.
b) A pesar do entusiasm o com a psicologia sensacionista, m es­
m o alguns filósofos e revolucionários, com o por exem plo E m m a-
nuel-Joseph Sieyès (1748-1836), au to r de um panfleto político
im portante em 1789 (O que éo Terceiro Estado) chegaram a levantar
perguntas sugestivas sobre com o salvar os processos m en tais da
posição de fragm entação e passividade, em que aquela psico lo ­
gia o colocava. Tais perguntas foram amplificadas nos eventos p ro ­
movidos pelo D iretório de intercâm bio filosófico com os países
vizinhos, nos quais o pensam ento do filósofo alem ão Im m anuel
K ant (1724-1804) é introduzido na França, estim ulando g radual­
m ente neste país a em ergência de intelectuais que, apesar de fo rte­
mente marcados inicialm ente pelo sensacionismo, vão revertendo
essa influência, com o W ilh e lm von H u m b o ld t (1 7 6 7 -1 8 3 5 ),
M aine de Biran (1766-1824) e V ictor C ousin (1792-1867). B i-
ran, por exemplo, ainda em 1794, formula para si o seguinte p ro ­
jeto: “eu gostaria, se eu puder realizar algo efetivam ente su sten tá­
vel, de investigar o grau com que a m ente é ativa, o grau com que
ela pode m odificar as impressões externas, aum entar ou d im in u ir
Omaterialismo iluminista francês e sua psicologia | 5 I
sua intensidade pela atenção que ela dá a elas; eu gostaria de exa­
m inar a extensão com que ela é a m estre desta atenção (Biran,
apud: G oldstein, 2000, p. 134).
c) O contraponto da filosofia kantiana,4 apesar de sua estrutura
mais global fortem ente idealista, levantou questões profundas e
pertinentes para a psicologia sensacionista e para o futuro do pensa­
m ento psicológico. A pesar de reconhecer a im portância da crítica
da metafísica realizada pelo em pirism o, particularm ente na perspec-
tiva de H um e, K ant procurou dem onstrar que a experiência sensí­
vel não é suficiente p ara p o ssibilitar o co n h ecim ento, pois este
depende diretam ente de conceitos e princípios prévios que organi­
zam a fragm entada experiência hum ana, e que perm item univer­
salizar o conhecimento produzido. Além disso, há objetos do conhe­
cimento que não se dão à experiência sensível concreta, com o os da
matemática e de parte d a física. Assim , todo o conhecim ento só é
possível a partir de formas ou regras lógicas a priori, como, por exem­
plo, a noção de espaço e de tempo. O pensam ento kantiano tem
fortes implicações no campo psicológico,5pois se contrapõe às concep­
ções de ser humano inteiram ente relativistas e dependentes da expe­
riência sensível, como na psicologia sensacionista, para afirm ar que
as funções da percepção, do entendim ento e da razão h u m an a são
marcadas por estruturas a priori, inerentes e dadas a todos os indiví­
duos, de forma independente da experiência, com o um a “herança
de gênero”. Essa discussão deverá ser retom ada no próxim o volum e,
quando será feito um prim eiro balanço crítico da herança m arxiana. *

* Infelizmente, mesmo tendo em vista a importância do filósofo alemão para as


idéias psicológicas, não será possível apresentar no âmbito deste trabalho as linhas mais
gerais do pensamento kantiano, dada a dimensão e os objetivos do presente texto, mais
voltado para os autores que tiveram mais impacto no pensamento marxiano. E ntretan­
to, poderemos pelo menos indicar as principais consequências de sua presença na
trajetória das idéias psicológicas revisadas, como por exemplo neste caso das idéias
sensacionistas.
5 Para se ter noção do desafio levantado por Kant na história das ideias psicol
gicas, diferentes teorias psicológicas contemporâneas, em vários campos e temáticas,
como em cognição e seu desenvolvimento (Piaget), linguagem (Chomsky), personali­
dade e aparelho psíquico (Freud, Jung e a psiquiatria fenomenológico-existcncial dc
Binswanger e Minkowski), imaginário social (Durand), bem como da antropologia
social (Lévi-Strauss), compartilham de noções similares dc estruturas a priori presen­
tes em todos os seres humanos, e que entram em formas de interação complexa com a
experiência concreta de cada indivíduo ou grupo social.

52 | O materialismo iluminista francês e sua psicologia


A lém do debate e das críticas levantadas já na época em rela­
ção à psicologia senesacionista e seu projeto social associado ao ilu-
m in ism o revolucionário, é im portante se perguntar pelas avaliações
desenvolvidas ao longo da história até os dias de hoje. U m balanço
com tal abrangência e caráter sistem ático seria impossível n o âm b i­
to de um trabalho com o este, mas é viável levantar alguns p o n to s
básicos e exem plificar pelo m enos um de seus desdobram entos, a
génese d a psiquiatria m oderna, com P hilippe Pinei, o que será
en cam inhado na próxim a seção. Para isso, é im p o rtan te co m p re­
en d er a direção mais geral que assume o projeto revolucionário no
cam po m ais am plo da saúde, da assistência aos indigentes e da
abordagem da crim inalidade, e algum as de suas principais co n tra­
dições e am biguidades.
N este cam po, segundo C astel (1978, p. 71 e ss.), a revolução
francesa im plicou dois processos sim ultâneos. D e um lado, tem os a
crítica das instituições totalitárias do velho regim e, com sua assis­
tência-repressão que gerava o enclausuram ento indiferenciado e
maciço de todos os desviantes e indigentes. D e outro, a celebração
da estrutura contratual e liberal da nova sociedade de m ercado in ­
duziu à privatização máxima da assistência aos indigentes, mas tam ­
bém im pôs o reconhecim ento das categorias que não podiam en ­
trar nessa ordem contratual: os crim inosos, os portadores de doenças
venéreas e contagiosas, e os loucos, e esses últim os não podiam ser
abandonados a si m esm os. A ssim , se p o r um lado o hospital geral
era visto com o um afastam ento geral dos miseráveis da sociedade
sob com ando autoritário anterior, era necessário inventar um a saí­
da para lidar com essas categorias irredutíveis à nova lógica liberal.
Era preciso rem odelar a assistência e seus hospitais, superar os ar­
caísmos, m odernizá-los, racionalizar seus procedim entos, hum anizar
as relações e m oralizar a vida interna. N esse sentido, a saída preco­
nizada por Pierre Jean G eorges C abanis (1757-1808),6 m édico,

6 Cabanis, com Jacques-Guillame T hourct (1746-1794), Jean-Baptiste Joseph


Delecloy (1747-1807), e A ntoine François, conde de Fourcroy (1755-1809), repre­
sentam a corrente de reformadores da assistência, higienistas e filantropos, na maioria
médicos, que, segundo Castel (1978, p. 79), “realizando progressivamente essa síntese
burguesa da ordem e do progresso, que eles preconizaram*.

Omaterialismo ilum inista francês e sua psicologia | 5 3


revolucionário, um dos ideólogos centrais d a psicologia sensacio-
nista na época, e o principal responsável p o r esta reforma, enfati­
zou as seguintes direções:

a) um a classificação mais rigorosa para diferenciar os diversos


tipos de indivíduos a serem mantidos em internação;
b) técnicas avançadas e minuciosas d e observação em pírica
dos internos por todos os agentes no novo regim e de internação;7
c) colocação de cada serviço sob controle médico,8 com o um
dos primeiros sinais da direção m edicalizante que a assistência à
loucura e a medicina social das cidades vai desenvolver na França
no século XIX.
Assim, nesta perspectiva mais geral em que foi m oldada a
assistência pública no período revolucionário, já estavam traçadas
as principais diretrizes que iriam direcionar seus desdobram entos
posteriores. Estes requeriam operadores capazes de os pôr em prática.
N o campo da medicina mental, surge então Philippe Pinei.

4.2. Um desdobramento central do sensacionismo:


Philippe Pinei, a emergência da psiquiatria moderna e
o tratamento moral9

Philippe Pinei (1745-1826) estudou m edicina em T oulouse


e M ontpellier, na França, se m udando para Paris em 1778. A í, se

7 “Serão observados sobre todos os aspectos, serão observados por oficiais de


saúde, serão observados pelas pessoas de serviço, dentre os mais inteligentes e mais
habituados a observar a loucura em toda a sua variedade”. Chega até a imaginar a
execução de um registro diário “onde o quadro de cada doença, os efeitos dos remédios,
as aberturas de cadáveres, serão referendados com uma escrupulosa exatidão. Todos os
indivíduos serão inscritos no mesmo modo com o que, a administração poderá se dar
conta monimativamente de seu estado, a cada semana ou mesmo a cada dia, se julgar
necessário" (Cabanis. (Euvres complètes> t. II, 1823, apud: Castel, 1978, p. 78).
8 “Estabelecer-se-á, cm cada seção, um oficial dc saúde, unicamente ligado aos
serviços das loucas, sob a inspeção do médico-chefe” (Ibidem).
* A breve sistematização realizada nesta seção do texto baseia-se na consulta aos
seguintes textos e obras, que recomendo ao leitor interessado no aprofundamento do
tema:
— na edição brasileira recente (2007) do Tratado médico-filosófico sobre a alienação
mental ou da mania, traduzido por Joice Armani Galli, publicada pela E ditora da
UFRGS, diretamente a partir da primeira edição original de Pinei, de 1800. A segunda

54 | O materialismo ilum inista francês e sua psicologia


tornou am igo e próxim o de C abanis, frequentando o “Salão dos
Ideólogos” que se reunia na residência da viúva do filósofo H el­
vétius, liderado p o r um dos discípulos de C ondillac, D estu tt de
Tracy, que tam bém influenciou M arx, com o descrevemos no volu­
m e anterior, no capítulo sobre a influência da filosofia materialista
francesa. E ste grupo e especialm ente C abanis tiveram forte in ­
fluência no pensam ento de Pinei, propondo substituir as teorias
especulativas dos sistemas filosóficos anteriores pelo naturalismo
das ciências e pela im portância da experiência e d a observação sis­
tem ática dos fenôm enos observáveis, ou seja, dos processos orgâni­
cos, do c o m p o rta m e n to e dos fenôm enos patológicos, para o
conhecim ento da ciência m ental. C om o vimos, o grupo tam bém
participou diretam ente na proposição e na reorganização concreta
dos hospitais na França, de form a orgânica ao m ovim ento revolu­
cionário de 1789. Pinei foi então nom eado e assum iu com o m édi­
co do hospício de Bicêtre no período de 1793-1795, passando
neste últim o ano para o cargo de m édico-chefe do hospital da Sal-
pêtrière, exercendo-o até sua m orte trin ta e um anos depois, ou
seja, em 1826.
A continuidade da filosofia em pirista e da psicologia sensaci-
onista de C ondillac é m arcante na sua apropriação revolucionária
por P inei.10 C om o vimos, para Condillac, com base na concepção
anti-inatista, todas as funções psíquicas advêm d a com binação de
sensações, e um conteúdo imaginativo persistente e duradouro indica
a presença por mais tem po de um a sensação, m as sem a presença

edição francesa, de 1809, já trouxe muitos acréscimos, que foram trazidos aqui através
da sistematização feita por Pessoti (1996), em O século dos manicômiosy que recomendo
vivamente ao leitor,
— na apresentação feita por Ana Maria G. R. Oda e Paulo Dalgalarrondo para
esta edição;
— na discussão do percurso histórico das ideias e propostas de Pinei no conjun­
to do processo revolucionário francês, realizada por Castel (1978).
Para uma referência literária ilustrativa do espírito alienista do século XIX, no
contexto brasileiro, mas bastante representativa das suas representações em todo o
Ocidente, sugiro ao leitor saborear toda a fina crítica irónica de Machado de Assis em
seu conto “O Alienista”.
10 “[O médico] conseguiria traçar todas as alterações ou perversões das funções
do entendimento humano, se não tiver profundamente meditado os escritos de Locke
e de Condillac e se a ele não se tomarem familiares seus princípios?” (Pinei, 1800/2007,
seção I, 99).

O materialismo iluminista francês e sua psicologia | 5 5


do objeto ou da percepção concreta de referência, com o se fosse
um a form a passageira de loucura. Assim, as formas graves de lou­
cura seriam portanto uma ditadura da imaginação sobre a associa­
ção de ideias, distorcendo o pensam ento e a própria percepção.
P ortanto, o louco é aquele incapaz de distinguir as sensações reais,
os sonhos e as ilusões dos sentidos.
O projeto iluminista visava libertar o ser hum ano das ideias e
principalm ente da imaginação induzida pelas autoridades consti­
tuídas, em função das sensações e do pensam ento fundados na p ró ­
pria experiência pessoal, na educação e na racionalidade. D essa for­
ma, os desvios das funções do pensam ento só podiam ser corrigidos
a partir de novas experiências substitutivas, capazes de organizar a
m ente do alienado em um pensam ento e com portam ento ord en a­
do e coerente com a racionalidade, ou seja, por meio de um projeto
de reeducação de um novo ser humano.
A pesar da enorm e im portância e complexidade da obra e das
novas práticas psiquiátricas introduzidas por Pinei, para efeito da
dim ensão e dos objetivos do presente texto terem os de nos ater a
uma breve síntese de suas ideias e significados mais im portantes,
indicando os seguintes pontos principais:

a) Uma epistemologia e abordagem cotidiana do alienado ins


rado nas ciências naturais:n
N a esteira da influência do em pirism o, da psicologia sensa-
cionista de C ondillac e do pensam ento de H elvetius e C abanis, a

n “Talvez tenha chegado o momento em que a medicina francesa, livre dos


entraves criados pelo espirito da rotina, livre ainda da ambição do sucesso, bem como
de sua associação com instituições religiosas e do desfavor da opinião pública, possa
doravante afirmar sua caminhada, mantendo severo rigor na observação dos fatos, podendo
generalizá-los, c andar assim face a face com todas as outras partes da História Natural.
Um grande progresso já lhe foi preparado pelo ensino conforme os princípios da revolução,
fundado na ampla liberdade de pensamento. Mas é sobretudo nos hospitais e nos hospí­
cios que a observação pode estender seus domínios, fazendo progressos sólidos na história
e no tratamento de algumas doenças ainda pouco conhecidas [...]" (Ibidem, I, pp. 97-8).
“Estas são, por assim dizer, verdades estéreis, quando não nos guiamos por
observações precisas quanto às circunstâncias de lugar, do tempo, do caráter do alienado,
na natureza particular de seus transtornos, das lesões variadas das faculdades morais;
e se não fixamos assim a aplicação judiciosa dos preceitos gerais, relacionando com
igual franqueza os exemplos de sucesso como os de insucesso deste método, pois por
que não confessar que, no estado atual de nossos conhecimentos cm medicina, algumas
dificuldades não puderam ainda ser superadas?” (Ibidem, II, p. 101).

56 | O materialismo ilum inista francês e sua psicologia


m eto d o lo g ia proposta por Pinei reproduz a observação empírica e
direta d o hom em com objetividade, com o qualquer objeto da na­
tureza. E sta observação deveria ser realizada sem pressupostos do
tipo teológico, teórico ou metafísico, suspendendo qualquer avaliação
sobre o significado da loucura. Deve tam bém ser feita de modo
gentil e elegante no trato com os pacientes, dado o resíduo de hum a­
nidade e racionalidade existente neles, e ser cuidadosa e demorada,
requerendo contatos regulares e dem orados com eles, em situação
adequada, ordenada e regida por regras precisas, ou seja, nos hospí­
cios de alienados.
b) Elaboração, pela prim eira vez, de uma classificação nosográfi-
ca sistem ática em psiquiatria a p a rtir da observação’} 2
A utilização do m étodo em pírico leva necessariamente a um a
sistem atização do material observado em um núm ero grande de
casos em categorias classificatórias, com rigor descritivo, fazendo
em ergir pela prim eira vez um a nosografia em psiquiatria, e que
mais tarde seria aperfeiçoado por Esquirol, seu seguidor.
c) Construção de um a etiologia pluralista, no estudo das causas
das alienações m entais, mas com ênfase nas afecções morais e nas paixões'.
P artindo da observação rigorosa e do processo classificatório,
Pinei desenvolveu um a etiologia pluralista, ou seja, a possibilidade
de um a pluralidade de causas para as alienações m entais, incluindo
a possibilidade de um a m istura de fatores. Essa etiologia é mais
bem sistem atizada na segunda edição de seu tratado, de 1809, que
recebeu num erosos acréscimos mais conclusivos sobre o tema. N a
análise feita por Pessoti a partir desta edição, se destacam as seguintes
causas principais: 12

12 “É um termo feliz, este de alienação mental, para expressar em toda a sua


extensão as diversas lesões do entendimento; mas importa antes de tudo analisar suas
diversas espécies, considerá-las separadamente e deduzir as regras do tratam ento
médico e as que a polícia interna deve seguir nos hospícios. Procurarei pouco discutir
as distribuições arbitrárias admitidas pelos nosografistas para as vesânias, uma vez que
elas estão longe de ser o resultado de observação reiterada feita sobre um grande
número de alienados” (Ibidem: 161).
“Resulta deste quadro que o número total dos alienados do hospício se dividisse
naturalmente em cinco espécies diferentes, obedecendo à distinção geral que em
mesmo adquiri em Bicêtre; a saber, a melancolia simples ou com plicada com a
hipocondria, o furor maníaco sem delírio ou sem incoerência de idéias, a mania com
delírio, a demência, o idiotismo” (idem: 242).

O materialismo ilum inista francês e sua psicologia | 57


— as “afecções morais” e as “paixões ardentes”, com alterações
da sensibilidade física e moral, como as causas mais com uns;
— as “influências de uma educação corrom pida sobre a perda
da razão”;
— os “desregramentos no m odo de viver”, as inconstâncias
dos hábitos e busca frequente de mudanças n a situação de vida;
— as lesões orgânicas e as disposições hereditárias, tam bém
menos frequentes (expressões entre aspas d o próprio Pinei).
d) Desenvolvimento do tratamento moral, como programa ter
pêutico reeducativo e de reforma dos costumes do alienado:
Pinei racionalizou, ordenou e dividiu o espaço hospitalar, repro­
duzindo a classificação dos quadros patológicos, dos diversos tipos
de alienados e estágio do processo, redistribuindo-os em diferentes
alas e prédios do hospital, como guia para práticas similares de tra ­
tam ento. M anteve o isolamento terapêutico no hospital, que então
deixa de ser medida de polícia para se constituir em intervenção de
natureza estritamente médica, e que visava distanciar o alienado das
influências externas consideradas patogênicas, marcadas pela desor­
dem e miséria. Também aboliu as formas violentas de tratam ento
(sangrias, purgações, banhos frios e quentes, etc.), mas im pôs o trata­
m ento moral, que consistia em um a espécie de reprogram ação ra­
cional da experiência humana, por meio de um am biente com regras
rígidas, dirigido pessoalmente pelo alienista, colocado com o a encarna­
ção da lei viva e da imagem de racionalidade, induzindo à introjeção
pelos alienados de um a vontade racional que lhes faltariam , que
lhes propiciaria reentrar na vida social ordenada e racionalizada.13
Se cam inharm os para além da m era descrição das ideias ex­
postas diretam ente por Pinei, para apreenderm os o seu significado
teórico, histórico e político, com os olhos de hoje, cerca de d u zen ­
tos anos depois, podem os dizer que:
,J “A esperança bem fundamentada de devolver à sociedade homens que pare­
cem perdidos para ela deve excitar a supervisão mais assídua e infatigável sobre a classe
numerosa de convalescentes ou daqueles que se encontram em intervalos lúcidos;
classe que se deve isolar com cuidado em local particular do hospício, para evitas todas
as causas ocasionais de recaídas, e submetê-los a uma espécie de educação moral pró­
pria a desenvolver e fortalecer as faculdades do entendimento; mas quanto é preciso de
circunspeção, luzes e sabedoria para conduzir homens, em geral m uito penetrantes,
muito suspeitosos e de caráter irascível!" (Ibidem, p. 199).

58 | O materialismo iluminista francês e sua psicologia


à) P inei realizou uma reconceituação profunda da experiência da
loucura, retirando-a de sua exclusão ontológica e dogmática, e reinse-
rindo-a em um a nova concepção de homem marcada pelo otimismo
ilum inista, racionalista e revolucionário'.
C o m Pinei, a loucura deixa de ser considerada, com o até
então, um a “condição estática, irreversível, e apenas passível de cor­
reções superficiais. D eixa de ser um a lesão anatôm ica, apenas pas­
sível de tratam en to «sintom ático» e passa a ser um desequilíbrio,
um a distorção na natureza do hom em a ser corrigida” (Pessoti, 1996,
p. 72). O louco e sua loucura agora não são mais vistos com o subs­
tancialm ente diversos do hom em sadio, mas apenas com o “um a
possibilidade hum ana, de qualquer ser racional. A função da psi-
copatologia é, basicam ente, a de distinguir entre um estado e o u ­
tro. E a tarefa do alienista é assegurar ao doente m ental o reencon­
tro da plena racionalidade” (Ibidem , p. 73). N esta concepção reativa,
psicogênica e social/m oral da doença m ental, que desorganiza a
razão e os afetos, o louco ainda conservaria um potencial de racio­
nalidade, hum anidade e cidadania. N este sentido, Pinei marca o
fim de um a exclusão ontológica e dogm ática do louco.
b) A abordagem p in e liana dosfenômenos psicológicos, aos olhos de
hoje, éproblem ática e passível de m uitas observações críticas’.
Se puderm os avaliar com olhos atuais, tam bém com base em
Pessoti (1996), a abordagem teórica dos fenôm enos psíquicos de
Pinei para além dos pontos positivos identificados acima, sem d ú ­
vida algum a em ergiriam enorm es problem as e limitações, entre eles
os seguintes pontos principais:
— A abordagem pineliana, com base na psicologia de C o n ­
dillac e sua ênfase absoluta na percepção correta e em bases racio­
nais da realidade externa, ignora qualquer realidadeprópria da psicose
e seus efeitos, como os delírios e alucinações, como expressão simbólica e
cifrada de um a existência positiva, no sentido filosófico desse termo, que
devesse ser escutada em sua lógica própria, e como manifestação de uma
singularidade pessoal a ser valorizada. Sua proposta de tratam ento
im plica m odelar as novas experiências do alienado, tornando o p en ­
sam ento delirante insustentável, absurdo ou no mínim o, supérfluo
e desvantajoso.
Omaterialismo ilum inista francês e sua psicologia | 59
— Pinei tende a identificar sintomas com causa, em um a rela­
ção sim plista e imprecisa, pois muitos dos fatores etiológicos indi­
cados acima, com o os desregram entos e excessos em ocionais, hoje
seriam considerados mais um a forma de expressão da loucura do
que causa dela. A lém disso, vários dos episódios existenciais são
relatados com o se fossem suficientes para produzir a loucura, sem
levar a um a investigação de outras possíveis razões precedentes.
— E sta identificação do sintom a com a causa parece ser d e­
term inada na abordagem pineliana pela sobrecarga de sua motivação
m oralizante, “com o se o mau hábito acarretasse o castigo, assim
com o a virtude atrai a bênção”, de forma que a nova ênfase ju stifi­
casse o tratam ento m oral e a m udança dos costumes do alienado
(Pessoti, 1996, pp. 97-8). Essa preocupação moralizante teve sua
intenção libertadora coerente com o projeto hum anista ilum inista,
com o profilaxia das paixões, que, quando controladas, enriquecem
a criatividade e a lucidez dos homens.
c) Com Pinei\ a medicina m ental substitui a abordagem ju ríd ica
e/ou policial anteriory e se insere como dispositivo privilegiado de incul-
camento de uma ética e de uma normalização mais a?npla na nova
sociedade burguesa:
O novo tratam ento põe o médico na posição de pedagogo,
que guia e corrige os excessos dos alienados, bem com o de autori­
dade m oral única e exemplar indiscutível na instituição p siq u iátri­
ca (Pessoti, 1996, p. 128), mas com efeitos em toda a sociedade.
A ssim , o novo projeto hum anista para a loucura exige, de outro
lado, que o alienado só poderia ser resgatado por um a relação de
tutela, não mais m arcada pelos antigos laços de fidelidade e sub­
missão feudais, mas sim pelos valores racionais da nova sociedade
contratual que em ergia com a revolução e que eram im postos pela
regularidade, pela obediência e pelo trabalho, buscando u m a cura
que im plicasse na reconquista da autonom ia racional, da liberdade
jurídica e na reinserção dos reclusos no circuito da ética e d a n o r­
m alidade da nova sociedade em ergente (Castel, 1978).
d) A p a rtir de Pinei\ a segregação e institucionalização asilar e
autoritária da loucura ganhou corpo com nova face, sob autoridade
médica e chancela científica'.
60 | Omaterialismo iluminista francês e sua psicologia
P inei associou o projeto terapêutico do alienado com base
nos procedim entos de observação e rigor científico, marcado por
traços de o tim ism o revolucionário e filantropia, com o mandato
social de tutela de segregação d o louco, gerando instituições totais
que em pouco tem p o ficaram abarrotadas e tiveram de inevitavel­
m ente abusar das práticas repressivas, com o forma de im por a or­
dem e a disciplina institucional, im plicando um verdadeiro geno­
cídio em tem pos de paz. E n tretan to , seu carisma e a sustentação
posterior dada pelo discurso científico da psiquiatria legitimaram
o asilam ento psiquiátrico sem contestação sistem ática por pelo
m enos quase duzentos anos, o que começou a ocorrer apenas no
final do século XX.
A ntes de term in ar esta seção, é im portante lembrar que a
influência de P inei se difundiu para além do campo propriam ente
m édico, atingindo de form a pervasiva toda a sociedade europeia
durante pelo m enos a prim eira m etade do século XIX, incluindo a
A lem anha, sendo por exem plo reconhecido e citado por Hegel, na
Enciclopédia, com o verem os m ais à frente neste trabalho. Assim, a
análise dos avanços e das contradições do pensam ento de Pinei e de
seu tratam en to m oral constitui um a referência im portante para a
avaliação com parativa de certos traços similares com o pensamento
marxiano, e esta análise será desenvolvida no próximo volume, quan­
do será tentada um a prim eira sistem atização exploratória dos de­
safios e dificuldades das concepções de M arx no campo da subje­
tividade hum ana.
C onsidero então que, do p o n to de vista do presente trabalho,
podem os encerrar no m om ento esta revisão sintética da psicologia
sensacionista, para adentrarm os em outra perspectiva filosófica e
cultural, o rom antism o, que em vários aspectos se afirma em uma
perspectiva inteiram ente oposta a esta última, e que por isso tam ­
bém nos indica problem as e questões adicionais relevantes em re­
lação à psicologia sensacionista.

Omaterialismo ilum inista francês e sua psicologia | 6 I


Capítulo 5
O movimento romântico e suas
implicações nas ideias
psicológicas

O s estudiosos da história das ideias e particularmente das ideias


psicológicas apresentam um a visão relativamente consensual de que
o m ovim ento rom ântico representa um a das mais importantes ma­
trizes históricas do pensam ento psicológico contemporâneo, parti­
cularm ente das vertentes que desaguaram nas correntes compreen­
sivas e nas teorias do inconsciente. D a mesma forma, alguns autores
m arxistas, com o Lõw y e Sayre (1995), reconhecem no romantismo
um a das fontes esquecidas do próprio marxismo. Assim, este movi­
m ento m erecerá neste volum e um investim ento significativo para
sua sistem atização, buscando apreender em um primeiro momento
sua significação histórico-cultural e política mais ampla no contexto
europeu, com suas principais características e correntes, para poder
introduzir o seu principal autor de referência, Rousseau, chegando
então ao rom antism o alemão e seus principais representantes de
suas ideias psicológicas, incluindo G oethe, no campo da literatura.

5.1. Contexto histórico, características e principais


tendências na Europa

5.1.1. A emergência do capitalismo e suas repercussões


socioculturais

As raízes históricas do pensam ento social e revolucionário


m oderno e do m ovim ento rom ântico devem ser buscadas no novo
m undo capitalista em form ação na Europa e EUA, particularmen­
te a p artir da segunda m etade do século XVIII. Podemos de forma
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas \ 6 3
bem resum ida dizer que esse contexto é m arcado pela acumulação
prim itiva do capital, por meio da desapropriação das terras com uni­
tárias e pelas políticas colonialista e m ercantilista, pelo crescim ento
da população urbana, pela concentração gradativa dos meios de p ro ­
dução, em paralelo com a revolução industrial e a introdução g ra­
dativa da m aquinaria na indústria. São bem conhecidos os efeitos
deste processo: a ascensão da burguesia com o classe social com p re ­
tensões hegem ónicas, que acabam realizando as grandes revoluções
burguesas nos E U A e na França (e pela expansão napoleônica, em
praticam ente toda a E uropa O cidental), em nom e do liberalism o e
do Ilum inism o, sendo m arcada pelo racionalism o individualista e
por um a concepção enfaticam ente mecanicista do cosmos, da n atu ­
reza e do hom em . As implicações sociais desse processo tam bém são
bem conhecidas: a formação de um a força de trabalho pauperizada
sem acesso a formas autónom as de sobrevivência, tendo como única
alternativa seu subm etim ento a form as aviltantes de exploração do
trabalho assalariado e baixíssima remuneração, concentrada nas cida­
des em péssimas condições de vida, em um contexto de com pleta
ausência de direitos básicos do trabalho e de cidadania social, só esbo­
çados mais tarde, de forma gradativa, a partir do final do século XIX.
Nas classes populares, esse contexto gera forte e difusa sensação
de perda profunda para os indivíduos, para as com unidades locais,
cidades e nações, e para a hum anidade em geral, o que constituirá a
base histórica e cultural para o m ovim ento que expressará de form a
m ais incisiva esta sensação, o rom antism o: “a visão rom ântica é
caracterizada pela convicção dolorosa e melancólica de que 0 presente
carece de valores humanos essenciais que foram alienados” (Lõw y &c
Sayre, 1995, p. 40).

5.1.2. A s principais características da reação e da crítica


romântica no contexto europeu com o um to d o

Em bora a caracterização dos traços centrais do ro m an tism o


seja bastante com plexa,1 dependendo do co ntexto específico e dos

1 Nesta subseção buscaremos sintetizar as características c tendências política


principais do movimento romântico europeu seguindo a trajetória de análise realizada

64 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


vários estudiosos, Lõw y 8c Sayre (1995) e Loureiro (2002) se pro­
põem a indicar as principais linhas temáticas da crítica romântica à
sociedade e à cultura da época, particularm ente na França, na In­
glaterra e na A lem anha, a partir da segunda metade do século XVIII
e du ran te o século X IX . E ntre elas, os autores destacam as seguin­
tes linhas:

a) Crítica ao dcscncantamcnto do mundo: há forte interesse para


com as tradições místicas, religiosas, esotéricas, para com o mundo
da noite, do sonho, do fantástico, da fantasia e da imaginação, do
m ito, da poesia, da arte e das manifestações da cultura popular.
E n tretan to , Lõw y 8c Sayre nos alertam para evitar as interpreta­
ções que associam linearm ente rom antism o com religião, porque
existem correntes rom ânticas não religiosas e até mesmo antirreli-
giosas, bem com o o reencantamento do mundo pode se dar por vários
outros cam inhos propriam ente não religiosos indicados acima. Um
exem plo im portan te é o fascínio pela noite, que traz o mistério e a
magia, e que se opõe à luz, imagem símbolo do iluminismo racio-
nalista. O u tro exem plo central é a valorização do m itoy como um
reservatório inesgotável de símbolos, alegorias, fantasmas, mons­
tros, dem ónios e deuses, na maioria das vezes com perda de sua
substância religiosa, em um a estratégia profana de reencantamento
do m undo. A lguns autores, como Friedrich Schlegel (1772-1829),
um dos principais representantes do rom antism o alemão, não pre­
tendem restaurar os mitos arcaicos, mas criar livremente uma nova
m itologia, poética e não religiosa. C om o assinalam Lowy e Sayre,

por Michael Lõwy ô t Robert Sayre (1993, 1995, bem como Lõwy sozinho, 1990), e
portanto em uma perspectiva bem mais próxima do pensamento marxista. Portanto,
recomendo fortemente estas obras ao leitor interessado cm se aprofundar no assunto.
Para uma avaliação do marxismo de Lõwy, realizada por vários comentadores, principal-
mente marxistas, ver Jinkings ôc Peschanski (2007). Em francês, uma das referências
mais reconhecidas sobre o romantismo alemão é a obra de Ayrault (1961). E para uma
visão histórica mais geral e das várias vertentes filosóficas c estéticas do movimento no
conjunto dos países europeus, em português, sugiro enfaticamente o sério e sistemático
trabalho organizado por J. Guinsburg (2002). Para os leitores interessados em se aprofundar
no tema do romantismo alemão e de suas ligações com as teorias do inconsciente, sugiro
os trabalhos de Andrade (2000) e de Loureiro (2002), que são a meu ver leituras
imprescindíveis em português para o assunto, e que constituíram as fontes centrais na
elaboração das seções abaixo sobre o romantismo alemão e suas ideias psicológicas.

M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 6 5


en q u a n to a m itologia antiga estava mais próxim a do m undo sensí­
vel, a nova m itologia de Schlegel deveria ser constituída a partir das
profundezas mais íntim as do espírito, a partir de si mesm o, em
u m a m itologia “m itopoética” proveniente das profundezas h u m a­
nas, em um reino oriundo da “bela desordem da im aginação”, do
“caos originário da natureza hum ana”, e q u e “escapa sempre à cons­
ciência”. Schlegel ainda indica que a redescoberta dessa força divi-
natória pelos hum anos nos perm itirá “u m a ampliação incom ensu­
rável” do espírito e reconhecer “os polos da hum anidade inteira”.2
P ara nós, leitores de hoje, não é preciso m uito esforço para perce­
b er que estam os m uito próxim os aqui da ideia de inconsciente,
indicando a im portância do rom antism o no nascim ento da psica­
nálise de Freud e particularm ente da psicologia analítica de Jung.
b) Crítica à quantificação, aos excessos do cálculo racional e ao u tili­
tarismo'. Esses valores, oriundos da difusão da cultura dos livros de
contas dos comerciantes, passam a reger as relações hum anas e a rela­
ção com a natureza: o envenenam ento da vida social pelo dinheiro,
em paralelo com o envenenam ento do ar pela fum aça da fábrica; o
declínio de todos os valores e vínculos hum anos qualitativos; a m orte
da imaginação; a uniformização e a rotina enfadonha da vida, fatigan­
te e uniform e, etc. N a literatura crítica romântica, o espaço e o tem po
acabaram perdendo toda a diversidade qualitativa e cultural, to rn a n ­
do-se um a estrutura única e repetitiva m odelada pela m áquina.
c) Crítica à concepção mecanicista do m undo e dos homens', os
rom ânticos dem onstram um a hostilidade p ro fu n d a a tu d o que é
mecânico, construído e artificial, ao ver com nostalgia os progressos
da m aquinaria, da conquista violenta do m eio am biente e da m eca­
nização in terio r do próprio ser hum ano, de sua cabeça, coração e
mãos, em textos que, segundo Lõwy 6c Sayre, tiveram p rofunda
repercussão na form ação e foram reapropriados criticam ente p a rti­
cularm ente nos textos de juventude de M arx e E ngels, mas ta m ­
bém nos G rundrisse e ríO capital. Para os ro m ân tico s, a fábrica
capitalista lhes parecia com o um lugar infernal cheio d e co n d en a­

2 Lõwy &. Sayre (1995, pp. 57-8), com citações entre aspas de expressões
trechos do próprio Schlegel.

66 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


dos, os operários. T am bém o Estado e os políticos modernos têm
características sem elhantes, como artificiais, inorgânicos, sem vida,
baseados no individualism o, na propriedade, no contrato, na admi­
nistração burocrática racional, e da mesma forma, as instituições
são m ecânicas, frias e impessoais. Em oposição, passa-se a valorizar
o natural, o dinâm ico e as várias formas de contato direto com a
vibração da natureza e da vida. N este campo, se dá uma procura de
rcencantam ento da natureza, como oposição à visão cstritamcntc
instrum ental e utilitária da exploração do meio ambiente, com co­
notações psicológicas, dadas as analogias entre a alma humana e a
natureza, espírito e paisagem, tem pestade interna e externa.
d) Crítica à abstração racionalista: para M ax W eber (1864-
-1920, a civilização burguesa m oderna é marcada principalmente
pela racionalidade instrum ental e burocrática. A crítica romântica
assum iu quase sem pre um retorno ao concreto. Segundo Lõwy 6e
Sayre, esse com ponente está presente tam bém em Marx, na crítica
à fetichização gerada pela universalização da mercadoria enquanto
apenas trabalho e valor abstrato. N os românticos alemães, valoriza-
-se a oposição entre a liberdade e os direitos naturais abstratos e a
liberdade e os direitos concretos, históricos, tradicionais de cada
país ou região, ou entre doutrinas universalistas e as tradições nacio­
nais ou locais, traço fundam ental do rom antism o que tanto influen­
ciou a em ergência da antropologia moderna. Às vezes, esta volta ao
concreto se dá pela redescoberta e valorização da história, no histo­
ricism o acadêm ico e nos romances históricos. De enorme interesse
no cam po da subjetividade, essa oposição à abstração racional pode
exprim ir-se tam bém na revalorização de emoções e com portam en­
tos não racionais ou não racionalizáveis, como no caso do amor,
em oção pura e irredutível ao cálculo e aos casamentos arranjados
por interesse. Valoriza-se tam bém a intuição, as premonições, sen­
tim entos, instintos, e a própria loucura, essa última como ruptura
radical com a razão socialmente instituída. Algumas correntes ro­
m ânticas levarão esta tendência ao irracionalismo, ao culto das li­
deranças carism áticas, da raça, da nação, como no caso de algumas
tendências que levaram ao nazismo. Entretanto, Lõwy 6c Sayre,
neste ponto, cham am a atenção para o erro grosseiro de reduzir
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 67
to d a a cultura rom ântica ao irracionalism o, sem levar em conta a
d iferen ciação necessária entre a negação program ática da racio­
n a lid a d e e a d elim itação de esferas p síq u icas não red u tív eis à
razã o , e ignorando as correntes rom ânticas originadas diretam ente
d a tradição racionalista e do ilum inism o (Lõw y ôc Sayre, p. 67).
é) C rítica à dissolução e deterioração dos vínculos sociais: o capi­
talism o, particularm ente nos am bientes urbanos, gera indiferença,
solidão e isolam ento insensível de cada pessoa no seu interesse
privado, destruindo as antigas formas “orgânicas” e com unitárias
d a vida social anterior. A reação expressa-se na busca nostálgica da
com unidade autêntica, de resgate de u m a experiência de p le n itu ­
d e e de reunificação, que pode inspirar-se em experiências concre­
tas da história hum ana, bastante diversificadas entre os vários autores
rom ânticos e suas várias origens étnicas e culturais, com o tam bém
exprim ir-se em um a idealização abstrata e desterritorializada, como
no caso do estado natural de Jean-Jacques Rousseau3 (1712-1778),
reconhecido com o a principal m atriz teórica do rom antism o político.
N esse cam po, com o assinalam Lõwy &, Sayre (Ibidem , p. 45), tor-
na-se im p o rtan te nos aprofundar um pouco mais na reação ro m ân ­
tica, que se contrapõe ao indivíduo capitalista frustrado, racional e
frio, voltado para funções socioeconômicas, e que, q u ando busca
sua individualidade subjetiva, entra em contradição com um universo
padronizado, reificado e pouco imaginativo da atitude m ercanti-
lista da m odernidade. N esse terreno, o espírito rom ântico expressa
a revolta da subjetividade e da afetividade reprim idas, canalizadas
e deformadas. Esses autores ainda chamam a atenção para a diferença
essencial entre o “individualism o” dos românticos e o individualism o
liberal m oderno, já apontada p o r G eorg Simm el (1858-1918): os
prim eiros enfatizam o caráter único e incomparável de cada p erso ­
nalidade, co n d u zin d o logicam ente à com plem entariedade e a m e­
lhor com unicação dos indivíduos, de um lado, em um to d o o rg ân i­
co, com o universo inteiro ou a natureza, e, de o u tro , com o universo
hum ano, com a coletividade dos seres humanos e a sua com unidade

3 Uma sistematização mais direta do pensamento rousscauniano no campo d


idéias psicológicas será realizada mais à frente.

68 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


orgânica, revelando p ortanto uma dimensão transindividual. Em
oposição, o princípio capitalista da exploração da natureza e do
trabalho dos dem ais seres hum anos em busca do lucro privado está
em contradição com a aspiração romântica de viver em forma har­
m oniosa com a natureza e de recriar a comunidade humana em
h arm onia social e sem classes. Lõwy &, Sayre nos alertam, todavia,
para a existência de vertentes românticas, e sobretudo neorromân-
ticas, com o em alguns trabalhos de M ax Stirner (1806-1856) ou
Paul Valéry 1871-1945), de cunho fortemente individualista, que
ten tam absolutizar a consciência e vontade individual, converten­
do-se p o rta n to em clara encarnação do espírito capitalista moder­
no. A m eu ver, essa possibilidade tam bém é im portante para anali­
sarm os hoje certas correntes de psicoterapia contemporânea.

5 .1.3. A s diferentes tradições românticas, do ponto de vista


político

O im p o rtan te trabalho de Lõwy &c Sayre (1995) também


realiza um am plo m apeam ento das diferenças tendências do ro­
m antism o, particularm ente tendo em vista suas dimensões políti­
cas, indo grosso modo da direita para a esquerda. A reação ao capita­
lism o industrial e à sociedade burguesa pode tom ar rumos muito
diferenciados, e os autores tentam configurar “tipos ideais” no sen­
tido w eberiano, para descrever tais tendências, mas observando que,
às vezes, um a expressão cultural pode encaixar-se em mais de um
tipo, ou pode transm utar-se e deslocar-se no percurso da história.

a) Rom antism o restituísta: É marcado pela nostalgia de um


estado pré-capitalista, e aspira a sua restituição ou retorno. G eral­
m ente identifica-se com a sociedade agrária tradicional, quase sem­
pre feudal e medieval, e se m anifesta notacam ente na A lem anha,
com o por exem plo no escritor alemão Novalis4 (1772-1801).
b) Rom antism o conservador. Não visa a reconstituição de um
passado longínquo, mas m anter o statu quo anterior à Revolução
Francesa, co n tra a m odernidade capitalista. U m dos principais *

* Pseudónimo do poeta e filósofo alemão Georg Friedrich Philipp, barão von


Hardenberg.

M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 69


representantes no cam po da filosofia alemã é Friedrich W ilhelm
Joseph von Schelling5 (1775-1854).
c) Rom antismo fascista: O nazism o foi favorável à grande in ­
dústria, à técnica e a um a certa organização racional d a sociedade,
mas sua recusa do capitalism o se expressa na condenação da dem o­
cracia parlam entar e de um a coloração antissem ita: os capitalistas
ricos são transvestidos em judeus. A crítica da racionalidade é leva­
da ao lim ite pela glorificação do irracional, do instinto e da agres­
sividade no estado puro, em louvor da força e da crueldade. H á
ênfase nas com unidades rurais primitivas e seu organicism o, trans-
vestido em nacionalism o e espírito do povo, e H itle r às vezes é
representado como um cavaleiro medieval.
d ) Rom antism o resignado'. E mais proem inente n a segunda
m etade do século XIX, e é marcado pela sensação de irreversibilidade
da industrialização m oderna e pela perda da esperança na restauração
das relações com unitárias pré-capitalistas, em bora ainda m antenha
a nostalgia e alguns elementos críticos na avaliação da realidade atu­
al. O sociólogo alemão Ferdinand T õnnies (1855-1936), autor da
célebre obra Gemeinschaft und Gesellschaft (1887) (Comunidade e socie­
dade) pode ser considerado um representante típico dessa tendência.
é) Romantismo reformador, nesta corrente, encontra-se um co n ­
traste entre a radicalidade das críticas à sociedade m oderna e a tim i­
dez das soluções propostas, limitando-se a reformas legais, crescimento
da consciência das classes dirigentes, etc. D urante a Revolução F ran ­
cesa, os girondinos m oderados representavam um exem plo típico.
f ) Romantismo revolucionário e/ou utópico', é um grande grupo,
com várias subtendências. E m geral recusám o retom o puro ao passado,
e aspiram à abolição do capitalismo ou ao advento de um a utopia
igualitária que refletiria valores desejáveis das sociedades anteriores.
f 1) Rom antism o jacobino-democrático', d u ran te a R evolução
Francesa, os jacobinos eram os representantes m ais radicais do
Terceiro Estado, as classes populares, e foram m arcados p o r sua

5 Esta característica dc Lõwy c Sayre a respeito de Schelling precisa ser con


textualizada no tempo e no contexto histórico, pois o conservadorismo emerge mais
claramente após a invasào napoleónica na Alemanha em 1806, atingindo os principais
integrantes do grupo de Jena, como veremos a seguir.

70 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


intransigência co n tra os inim igos da revolução e pela rejeição a so­
luções m oderadas. O s clubes jacobinos se difundiram depois por
toda a E uropa; M arx se vinculou a eles na A lem anha, em sua ju ­
ventude. R epresentavam o fervor de grupos revolucionários radi­
cais de “fazer com o na França”, de destruir, com todo o vigor, as
relações sociais conservadoras, sendo geralm ente associados a uma
ideologia austera, com o em um a ditadura da virtude, para sanar os
dilaceram entos sociais. Essa corrente é herança direta do iluminismo,
quase sem pre m ediante Rousseau. Além dele próprio, acham-se
vários de seus seguidores, com o Philippe Buonarroti (1761-1837),
François N oél B ab eu f (1760-1797), H en ri Beyle, dito Stendhal
(1783-1842) e A lfred de M u sset (1810-1857). N a Alemanha, é
im portante lem brar de Friedrich H õlderlin (1770-1843) e H ein ­
rich H eine (1797-1856), este últim o amigo pessoal de M arx e sua
família. N a Ing laterra, Percy Bysshe Shelley (1792-1822) via o
fiituro não com o um a recriação do passado real, mas a plena fruição
de todas as qualidades, um a realização total que nunca antes existira.
f.2 ) Rom antism o populista: esta tendência anticapitalista opõe-
-se à m onarquia e à servidão, mas deseja restaurar as formas de vida
e produção com unitária pré-m odem as. O m elhor exemplo são os
populistas russos, que viam na com una rural eslava a via especifica-
m ente russa para o socialismo e a superação do czarismo e do capi­
talism o ocidental. N a últim a etapa de sua vida, M arx dem onstrou
interesse crescente p o r este m ovim ento, buscando aprender a língua
para ter contato direto com a literatura russa. Fez enorm e esforço
para entender as especificidades das relações sociais form alm ente
pré-capitalistas, m as que se com binavam e se com plementavam
com as relações capitalistas, para poder visualizar as particularida­
des do processo revolucionário nesse país.
f.2 ) Rom antism o utópico-humanista: nesta tendência, a crítica
anticapitalista é feita não em nom e de um a classe (como o prolcta
riado), m as da hum anidade sofredora. Estão entre eles estão C h a r­
les Fourier (1772-1837), Pierre Leroux (1798-1871) e particular-
m ente M oses H ess (1812-1875), socialista judeu alemão do tipo
messiânico, e crítico severo da propriedade privada e do dinheiro,
que teve influência form adora em M arx e Engels.
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 7 1
fA ) Rom antism o libertário', corresponde às correntes anarquistas
e anarcossindicalistas, que identifica no E stado e n as formas de
p o d er centralizado a principal alienação hum ana, buscando fun­
d ar u m a federação descen tralizad a de co m u n id ad es locais au-
togeridas.
f.S ) Rom antism o m arxista: Segundo Lõw y (1990), M arx ape­
nas ap aren tem en te nada tem a ver com o rom antism o. Essa sua
im agem antirro m ân tica tem suas razões, pois em suas obras princi­
pais rejeitava com o reacionário qualquer sonho de reto rn o a formas
de organização social precedentes, exaltando o papel historicam ente
progressista do capitalism o. Isso se manifesta no papel que este
tem de:
— d estru ir as form as anteriores de exploração do trabalho e
de classes;
— desbloquear o desenvolvim ento das forças produtivas;
— criar um processo de cooperação e universalização neces­
sário, pela am pliação sem lim ites das relações m ercantis, com o co n ­
dição para a futura hum anidade socialista;
— in tro d u zir form as brutais de exploração que favorecem o
desenvolvim ento d a consciência de classe.
E n tretan to , um a análise mais rigorosa das fontes de M arx e
Engels assinalará, segundo Lõwy, presença significativa de autores
rom ânticos, particularm ente na crítica das calam idades e d a d e-
sum anização no capitalism o. H á um a série de autores que foram
lidos e explicitam ente apreciados intelectualm ente pelos dois p e n ­
sadores:
— no cam po da econom ia política rom ântica, Jean C h arles
Leonard Sim onde de Sism ondi (1773-1842) é co n fro n tad o e c o m ­
parado com D avid R icardo (1772-1823) nos escritos d e M arx;
— o populista russo N ico lai-o n ,6 com quem se co rresp o n d e­
ram por vinte anos;
— os escritores C harles D ickens (1812-1870) e H o n o ré de
Balzac (1 7 9 9 -1 8 5 0 );
— filósofos sociais com o T h o m as C arlyle (1 7 9 5 -1 8 8 1 );
6 Pseudónimo de Nikolai Danielson (1844-1918), tradutor d ’O capital em lí
gua russa.

72 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


entre os historiadores, G eorg Ludwig von M aurer (1790-
1872), B arthold G eorg N iebuhr (1776-1831) e Lewis H enry M or­
gan (1818-1881), dos quais tam bém herdaram o interesse pelas
com unidades rurais primitivas;
— os socialistas rom ânticos, como Charles Fourier (1772-
1830) e M oses H ess (1812-1875).
A ssim , Lõw y conclui de forma enfática que "na verdade, o
a n tic a p ita lism o ro m ân tico é a fonte esquecida de M arx, fonte
tão im p o rta n te p ara o seu trabalho quanto o neo-hegelianismo
alem ão o u o m aterialism o francês” (Lõwy, 1990, p. 43). Não te­
m os ainda todos os elem entos para aprofundar esta discussão neste
volum e, mas o tem a será retom ado nos tomos seguintes.
C o m base nesta rápida revisão das principais características e
tendências do m ovim ento rom ântico no campo político, podemos
agora p artir para explorar algumas de suas implicações no campo
das ideias psicológicas, partindo de seu principal expoente, Rousseau.

5.2. Rousseau e suas ideias psicológicas: o uso da


imaginação para fins positivos e para o conhecimento
de si, seus pontos positivos e suas dificuldades

C o m o vim os, um a das características centrais do romantismo


foi um a reação à visão m ecanicista do ser hum ano induzida pela
sociedade capitalista, bem com o por vasta vertente do pensamento
ilum inista, no qual se inseria a psicologia sensacionista, como vi­
m os na seção anterior. Se essa últim a procurou controlar a imagi­
nação, pelo m enos um dos autores matrizes das ideias iluministas
tom ou um a perspectiva mais positiva e produtiva em relação a ela.
Je a n -Ja c q u e s R o u sseau (1712-1778) realizou um trabalho que
G o ld stein (2005, pp. 77 e ss.) cham ou de “contrafóbico” em re­
lação à im ag in ação , estim u lan d o a ida ao seu encontro e o seu
uso de fo rm a co n tro lad a, para o próprio crescimento e autoco-
n h e c im e n to pessoal, visando retirar o sujeito hum ano do lugar
da passividade, o n d e foi colocado pela teoria sensacionista.
N osso interesse no autor tam bém se dá pelas afirmações de
D elia Volpe (1963) e C olletti (1974), que viam em Rousseau um
M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 73
dos m arcos genealógicos do pensam ento d e Marx, e essa possibili­
dade nos indica a necessidade de co n h ec er um pouco m elhor as
principais concepções de Rousseau em relação às ideias psicológi­
cas e à noção de indivíduo, dentro dos objetivos deste capítulo,
m esm o que de form a sintética e apenas indicativa.7
A n tes de seguir, é im p o rtan te reconhecer logo de início a d ifi­
culdade d a tarefa de alinhavar as principais linhas do pensam ento
deste au to r em relação à tem ática. E m prim eiro lugar, pela própria
m ultiplicidade de sua obra, dado que escreveu música, rom ances,
textos sobre filosofia e educação, bem co m o autobiográficos. E m
segundo lugar, com o já assinalamos, pela existência em seu p en sa­
m en to d e fortes oposições e aporias, que não o deixam escapar,
com o fo rm a de ten tar conciliar os extrem os, de forte am biguidade.
E im p o rtan te tam bém assinalar que sua obra é m arcada de form a
m uito particu lar p o r seus dilem as biográficos. Seus principais li­
vros, E m ílio e O contrato social, escritos a p artir de 1757 e p u blica­
dos cinco anos depois, foram considerados ofensivos às autoridades
francesas, levando ao ord en am en to de sua prisão, e Rousseau teve
de se exilar na Prussia. Seus textos autobiográficos constituem um a
ten tativ a de explicar sua vida e seu pensam ento à sociedade, b u s­
cando sua reabilitação, mas têm tam bém enorm e im p o rtân cia no
cam po das ideias psicológicas, com o verem os. N esse en fren tam en -
to, desenvolveu delírios de perseguição, algo que tam b ém tem p r o ­
funda im p o rtân cia no cam po das ideias psicológicas.
A base principal da estrutura de seu p en sam en to está assen ta­
da em Sobre as ciências e as artes, redigido em 1749, e Sobre as origens
da desigualdade, de 1755, que afirm am a an títese e n tre a n a tu re z a
o rig in a lm e n te b o a d o ser h u m a n o , em sua v id a p rim itiv a , e os

7 Para quem queira aprofundar-se no tema, além dos próprios textos de Rousse
cujas indicações são feitas ao longo da seção, sugiro uma primeira leitura introdutória
de C hauí (1978), mas particularm ente o exame de um trabalho mais recente cm
português, publicado por Reis (2005), como resultado de sua tese de doutoram ento
realizada em São Paulo e Paris, e que serviu de suporte principal para a construção
desta seção. Para quem queira ainda lidar com outras sistematizações consideradas
clássicas de seu pensamento, em francês, as indicações podem ser dos trabalhos de
Burgelin (1 9 5 2 ), que, em bora relativam en tc d atad o e m arcad o p o r sua visão
existencialista, ainda é referência no campo; e dos estudos am plam ente reconhecidos
de Starobinsld (1971) e de Raymond (1966).

74 | M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas


acréscim os da civilização, responsável pela degeneração dos ho­
m ens. O hom em natural seria dotado de livre-arbítrio e sentido de
perfeição, mas são plenam ente estabelecidos apenas nas comuni­
dades locais e familiares, que são fortem ente idealizadas em seu
pensam ento.
Essa base de sua trajetória sustenta, em primeiro lugar, a sua
“pedagogia”, expressa em seu ensaio-rom ance Em ílio, obra que faz
do autor, do p o n to de vista do cam po psicológico, um dos precur­
sores da educação, da psicologia do desenvolvimento e da psicope-
dagogia, pois proclam a a diferença do não adulto e do adulto, que
exige um am b ien te e um a estratégia educacionais próprias, e de­
senvolve as linhas m ais gerais de um a educação e de um proces­
so pedagógico progressivos voltados para as necessidades indi­
viduais e para as sucessivas etapas de desenvolvimento da criança,
respeitando a liberdade e as características inatas e boas do estado
natural, com o direitos inalienáveis d o ser humano, e fazendo exi­
gências graduais no devido tem po. Isso é construído no decorrer da
obra por um a perspectiva negativa, ou seja, pela indicação do que
não deveria ser feito.
Em segundo lugar, o reto rn o perm anente ao estado natural
e a m em ória da pureza do estado e da consciência natural cons­
titu e m d ev er de to d o ser h u m an o , com o exigência de autoco-
n h e c im e n to , m as esse cam inho n ão deve ser balizado pela ra­
zão, m as sim pelo sentim ento, com o o cam inho mais verdadeiro
para tal exploração da in terio rid ad e, que o leva, com o suporte
da im aginação, aos estados de acesso à imensidão, à universali­
dade dos seres, ao sentim ento íntim o da vida e à consciência da
liberdade, concepção que constitui, sob sua influência, um dos
e lem en to s-c h av es do esp írito do rom antism o. Nesse sentido,
Rousseau se diferencia e se distancia claramente de uma outra no­
ção de im portância da natureza com o fonte de conhecimento, de­
fendida pelos em piristas e demais enciclopedistas, mas pela qual a
natureza é vista fundam entalm ente como exterioridade, matéria
objetiva, m ovim ento ou m áquina mecânica.
Esse cam in h o do autoconhecim ento e autotransformação,
com o nos descreve Reis (2205), é desenvolvido por Rousseau
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 75
p articu la rm en te em suas cartas e tex to s autobiográficos (com o
D evaneios de um caminhante solitário, de 1776, e Confissões, escrito
no período entre 1782 e 1789, e publicado em 17918), com o um
processo com plexo de “entrar em si m esm o ”, com m uitas n u an ­
ças, entre as quais podem os citar o uso da solidão, da con tem p la­
ção, da rem em oração, e os estados de langor e devaneio {reverie'),
para perm itir to rn ar audível a voz interior. Tais dispositivos p erm i­
tem o que cham ou de “conversão”, algo baseado em um a experiên­
cia de inspiração súbita vivida concretam ente pelo próprio R ous­
seau, pela qual reconhece algumas características particulares: a
visão m o m en tân ea de outras dim ensões do m undo e d a existên­
cia, com o um a ilum inação, revelação e dissolução das confusões
m en tais; in tu ição ou reconhecim ento d o s elem entos re sp o n sá ­
veis pelo mal; processo de reform a e transform ação in terio r, que
im plica envolvim ento da vontade e esforço de posse de si m e s­
m o, de busca de coerência entre as palavras c as obras, e de saber
en co n trar o am or e a fruição de si m esm o. O processo tem ta m ­
bém seu m ovim ento para fora, dirigido aos outros e ao m undo,
além de um a consciência gradual da singularidade provocada pela
experiência. Esse processo deve ser seguido p o r um a te ste m u n h a
ou supervisor, com o um exemplo e corretor de cam inhos, com o já
sugerira o filósofo estóico rom ano Lúcio A neu Sêneca (c. 4 a.C -6 5
d.C . C ontudo, Rousseau acentua que, acima de tu d o , a cada um
cabe saber encontrar, dentro de si mesmo, os p ró p rio s recursos e a
força, e assim que a supervisão só é válida se servir p ara o co n h eci­
mento de si próprio.
Entretanto, é im portante n otar que sua trajetó ria de autoco-
nhecimento é claram ente m arcada pelo seu exacerbado o tim ism o
em relação à natureza hum ana. C o m o nos lem b ra Reis (2005),
Rousseau conhecia bem as principais obras d o s m oralistas d o sécu­
lo anterior e as dificuldades, assinaladas por eles, in e re n tes ao p ro ­
cesso de conhecim ento de si, indicadas acim a. C o n tu d o , não se

8 As confissões prenunciam as características estéticas do romance de formação


Bildungsroman (que será discutido cm mais detalhes na seção sobre G o eth e , mas
adiante): narrativa em primeira pessoa, uso de trechos de correspondência pessoal e o
caráter memorialisra e confessional da autobiografia.

76 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


cansava d e d efen d er a pureza, a transparência original do coração
d o h o m e m , e a possibilidade de o am or a si próprio não comprome­
ter a vontade de autoconhecim ento. Seus textos autobiográficos mos­
tram o in v estim en to que realizou na defesa desse ponto de vista.
N essa direção do autoconhecim ento, Rousseau desenvolve uma
visão m u ito particu lar da atividade filosófica, um a vez que a habi­
lidade de raciocínio e argum entação está associada à relação neces­
sária e d ireta d este saber com o sujeito que reflete, em suas neces­
sidades, interesses e tom adas de posição que com prom etem toda a
sua vida e a sua pró p ria felicidade, tom ando o sentim ento interior
com o c ritério ú ltim o de aceitação ou rejeição de um a crença. P a­
rad o x alm en te, p ara ele, nesse m ovim ento de en trad a na esfera
sin g u lar d a existência, se m an tém e se afirm a o seu alcance u n i­
versal, com o m ed id a da reflexão e fundam entação sobre a n atu ­
reza h u m a n a em geral e de suas relações com a particularidade e
com as idiossincrasias.
A m eu ver, nesta trajetória no cam po filosófico, não há dúvi­
das de que R ousseau prefigurou, no século X V III, todos os p rin ­
cipais elem en to s que in teg ram o processo psicoterapêutico, na
form a com o desenvolvido pelas teorias e práticas psicológicas cor­
rentes d o século XX. A lém disso, Rousseau tam bém intuiu, na
perspectiva já esboçada p o r M ichel de M ontaigne (1533-1592), a
a titu d e etn o g rá fica co n tem p o rân ea, enfatizando a necessidade
de alargar e enriq u ecer ao m áxim o “o horizonte m oral” e a expe­
riên cia q u e se te m de si m esm o p ara m elh o r com preensão e o
ju lg a m e n to dos o u tro s seres hum anos, tam bém como form a im ­
prescindível de lidar com as distorções do preconceito. Isso lhe
valeu, segundo Reis (2005, p. 71), o reconhecimento feito por Lévi­
-Strauss com o “fundador das ciências do homem”.
O u tra contribuição fundam ental de Rousseau no cam po das
ideias psicológicas está no esboço da noção de caráter (ou com o
cham aríam os hoje, de personalidade), que está em butida no esfor­
ço rousseauniano de autoconhecim ento, bem como de se represen­
tar e dar-se a conhecer para os outros, em seus textos autobiográfi­
cos, para perm itir m elhor sustentar o julgam ento de sua pessoa.
Em seus Dialogues, de 1771, Rousseau indica que se pode ju lg ar as
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 77
• a :„irr4-la ein conexão com a
ações de uma pessoa, mas outra coisa é j g ^ é reaim en-
ideia de caráter de um a pessoa, ou seja, sob M - 0_
te. Nesse processo, indica que há características que na
ciadas à vontade do indivíduo nem aos efeitos a e u c ç
sociedade, como qualidades constitutivas, naturais, que cor
o temperam ento, como um componente mais singu ar e ca a
divíduo, e marcado por uma certa fixidez, continui a e, uni a e e
identidade. Rousseau também nos indica, nas obras auto íogra 1
cas, pelo menos duas estratégias de acesso ao caráter, o autorre
trato, em um a analogia pictórica, e a história,^em que o caráter
emerge no encadeam ento da “história da alma , que perm ite ex
pressar m elhor a sua complexidade e singularidade.
Entretanto, como já assinaláramos no capitulo anterior, a obra
de Rousseau é marcada de profundas dificuldades e aporias, e isso
também se expressa no cam po da subjetividade. Por um lado, te ­
mos a valorização do autoconhecim ento, da autonom ia e da li­
berdade natural do indivíduo, que deve interpelar p erm anente­
mente as forças de resgate da natureza. Por outro, temos a noção de
vontade geral, que não significa a soma dos interesses particulares,
como no liberalismo clássico, mas a ideia da afirmação de um a
sociedade fundada nas práticas de pacto social, de autogoverno e
na soberania popular, no sentido de uma esfera pública que con­
densa o interesse comum da coletividade, expresso na lei. E n tre ­
tanto, cada indivíduo deve subm eter-se à vontade geral, até m es­
mo com o condição de escapar ao arbítrio das vontades alheias
particulares. C om o assinala Carlos Nelson C outinho, conhecido
cientista político marxista brasileiro:

“Para Jean-Jacques Rousseau, a vontade geral não é um


potenciam ento ou um aprofundam ento das vontades p arti­
culares, mas o seu oposto, de tal modo que os indivíduos d e­
vem deixar de lado (ou reprimir) sua vontade particular caso
queiram atuar efetivam ente segundo a vontade geral. Valen-
do-se m etaforicam ente de um conhecido conceito de Freud,
dina que, na obra de Rousseau, é como se a relação en tre a
vontade geral, entendida com o «superego», e a vo n tad e p ar-
78 | Mov,mento romântico e implicações nas ideias psicológicas
ticular, e n te n d id a com o u m «inconsciente» rebelde, fosse
u m a relação de repressão o u recalque d o segundo pelo p ri­
m eiro. O ra, com o tam bém diz Freud, o «recalcado» retorna
e, q u ando o faz, isso ocorre por meio da neurose, da quebra
d a personalidade. Falando m enos m etaforicam ente, [. . .] o
sistem a rousseauniano reconfirm a a dilaceração do hom em
entre esses dois polos de u m a dicotom ia insuperável” (C ou-
tin h o , 1999, p. 232, ênfases do autor do presente ensaio).

C o m esta rápida revisão das principais intuições de Rousseau


no cam po das ideias psicológicas, creio que podem os agora cam i­
n h ar para o rom an tism o alem ão e suas especificidades.

5 .3 . O romantismo alemão

5.3.1. Contextualização histórica9

U m a com preensão m ais profu n d a d o significado histórico e


cultural do rom an tism o alem ão requer um conhecim ento de al­
guns m arcos e traços fundam entais do país no período clássico e
particularm ente m oderno. A história do que hoje cham am os de
A lem anha é m arcada p o r processos e tendências determ inados no
âm bito mais geral d o co n tin en te europeu, mas que são mediadas
por particularidades m arcantes d a realidade económ ica, política,
social e cultural d o país.
A u n ific a ç ã o p o lític a d o p aís d eu -se ap en as n a seg u n d a
m etade d o século X IX , e até este período o que cham am os hoje
de A lem an h a era ap en as u m co n ju n to de principados com am pla
au to n o m ia local para funções político-adm inistrativas, com forte
com petição en tre eles e instabilidade política. A R eform a P ro tes­
tante (1517-155 5 ), que incluiu guerras internas e revoltas cam po­
nesas, som ou a essa instabilidade política a diferença religiosa entre
católicos e protestantes. A G u e rra dos T rin ta A nos (1618-1648),
que se alim entou dessa diferenciação, gerou enorme devastação tanto
interna com o nos países vizinhos.
9 Para os interessados no tema, recomendo o trabalho organizado por J. Guinsburg
(2002), que constituiu a principal referência para esta subseção.

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 79


D u ran te o século X V III, a ampliação gradual mas subalterna
da acum ulação m ercantil, m anufatureira e industrial, ainda sob o
regim e dos principados, gerou um a burguesia débil, com acessos
aos bens culturais, mas sem ainda poder participar da vida política.
A ssim , a vida cultural e artística passa então a rep resen tar um a
sublim ação das energias intelectuais desta burguesia ascen d en ­
te que, ao m esm o tem po que ouvia os ecos da agitação liberal,
ilum inista e revolucionária das experiências norte-am ericana e fran­
cesa, tin h a em seu país o exercício da política restrito à autocracia
particularista dos príncipes e suas cortes. E im portante lem brar
ainda que a fusão entre E stado e igrejas cristãs im plicava o poder
desses príncipes de d itar a vida religiosa aos seus habitantes. Tais
com ponentes da vida social e cultural no país m arcaram p ro fu n ­
d am en te o m ovim ento rom ântico alem ão, com suas característi-
cas de idealism o, espiritualism o e m etafísica.10
A burguesia e a intelectualidade progressista alem ã acom ­
panharam com aprovação e expectativa a em ergência do processo
revolucionário da vizinha França, mas os ânim os com eçaram a se
arrefecer com os eventos mais radicais da fase do T error e p articu ­
larm ente com os prim eiros m ovim entos de N apoleão B onaparte
de conquista do restante da Europa. A invasão napoleônica em
1806 im plicou, de um lado, a d esm o n tag em das en g ren ag en s
políticas do até então Sacro Im pério R o m an o -G erm ân ico , a li­
bertação dos servos e o início das reformas na estru tu ra m ilitar e
administrativa. E n tretan to , na direção oposta, o esforço de resis­

10 Não temos ainda todos os elementos para indicar o que, cm minha opiniã
particular, dentro do romantismo alemão, penso ser um efeito paradoxal que se des­
dobra no plano cultural, artístico c subjetivo, efeito este que cria as condições de forte
investimento na investigação dos fenômenos psíquicos mais profundos. Assim, ao mes­
mo tempo que implicou tal tendência ao idealismo, ao misticismo e à metafísica que
marcou o romantismo alemão, esse efeito possibilitou a emergência, no campo da
literatura, da filosofia e da história das idéias psicológicas, de autores e obras que
realizaram enorme avanço na exploração e sistematização da psique hum ana, nota-
damente dos processos inconscientes. A revisão dos principais autores que realizaram
esse caminho na primeira metade do século XIX na Alemanha, a seguir neste capítulo,
possibilitará ao leitor compreender um pouco melhor esse fenômeno, mas no entanto,
maior inteligibilidade das implicações teóricas e epistemológicas desse efeito só poderá
emergir no desdobramento dos demais capítulos e volumes desta obra.

80 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


tê n c ia e mobilização para a guerra de libertação do país significou,
ju n ta m e n te com os anseios de autodeterm inação, a interpelação
d o s elem entos anti-ilum inistas, nacionalistas, de identidade da
c u ltu ra e da língua alemã, com forte apelo nostálgico à ideia de
c o m u n id ad e cam ponesa anterior e da vida ju n to à natureza, que
ta m b é m tinha um a inspiração inequívoca na obra de Jean-Jacques
Rousseau.
C om a derrota napoleônica e os Tratados de Paris e de Viena,
em 1815, a Restauração trouxe de volta a antiga ordem m onárqui­
ca, e na A lem anha se constitui então um a confederação de 39 E s­
ta d o s independentes, com exceção da política externa, exercida sob
liderança da Á ustria, e apenas mais tarde, em 1834, em um a união
aduaneira. D e form a sim ilar em toda a Europa, a m onarquia e as
igrejas cristãs voltam nesse m om ento reforçadas e mais fortem ente
prevenidas contra a agitação liberal, republicana, secularista, jaco­
bina ou popular. N o continente, esse papel de contenção política
conservadora é liderado pela Á ustria, que cria um sistema de espio­
nagem e repressão co n tra qualquer sinal de agitação revolucionária,
ten dência que resultou internam ente, na Alem anha, em um cres­
cente controle da vida política, censura à im prensa e vigilância ri­
gorosa da vida universitária. C om o avanço do capitalismo e o agra­
vam ento das condições económ icas e de vida dos trabalhadores em
geral, os vários ciclos de revoltas populares durante a primeira metade
do século X IX , p articularm ente nas conjunturas de 1815-1816,
1830 e 1848, conseguem apenas concessões e avanços liberais e
constitucionais em alguns Estados, e para as classes populares e
suas agrem iações políticas, particularm ente na Alem anha, provo­
cam um a forte e massiva repressão.
A s características particulares de tal conjuntura histórica e
política, m esm o que apresentadas de form a tão sintética, são fu n ­
dam entais e constituem um prerrequisito necessário para m elhor
com preensão d a natureza do rom antism o alemão. A credito que
agora tem os m elhores condições para passar às particularidades fi­
losóficas e culturais que tam bém influenciaram a conformação mais
específica desse m ovim ento.

Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 8 I


5.3.2. Características principais do movimento romântico
alemão, na direção de uma história das ideias psicológicas

O m ovim ento rom ântico alemão constitui um fenôm eno fi


losófico, cultural, estético, social e político complexo, cuja in ter­
pretação exige enorm e investim ento de leitura e avaliação detalha­
da, impossível de ser realizada no âm bito deste trabalho. Entretanto,
algumas de suas características devem necessariamente ser indica­
das aqui, com a finalidade de auxiliar uma compreensão um pouco
mais clara das obras que prefiguraram muitas das ideias psicológi­
cas que serão assumidas mais tarde pela psicanálise, pela psicologia
analítica e pelo existencialismo.
C om base na obra de Ayrault (1961), é possível indicar que o
m ovim ento rom ântico alemão teria em sua origem quatro crises
principais que se desdobraram no século X VIII:

a) A crise filosófica foi induzida pelo pensam ento kantiano,


tendo como herdeira a filosofia da natureza de Johann G ottlieb
F ichte (1762-1814) e Friedrich Schelling,11 que se to rn o u um
dos princípios fundam entais do rom antism o alemão. E n q u an to
K ant negara qualquer im anência da finalidade natural em si, afir-
m ando-a apenas como conclusão subjetiva, Schelling defendeu que
a própria matéria seria dotada de um a tcleologia e um a vida in ter­
na e im anente aos seres e objetos da natureza, agindo em função
dessas causas internas, na direção de um m onism o ontológico e
epistemológico. Tal postulado im plica não mais opor espírito e
natureza, mas apontar para a existência de um a inteligência in ­
consciente na matéria, em um a continuidade entre os elem entos
mais simples da natureza até o mais complexo e elevado, no alto *

!i Schelling foi membro ativo do conhecido grupo de Jena, matriz do pensamen­


to romântico alemão, juntamente com Friedrich von Schiller (1759-1805), os irmãos
Friedrich (1772-1829) e August Wilhelm von Schlegcl (1767-1845) e suas respecti-
vas esposas, Dorothea e Caroline, além de Novalis, Friedrich Schleiermacher (1768-
1834), Ludwig Ticck (1773-1853), entre outros. O projeto do grupo foi resumido em
uma cana manifesto de 1797, de autoria dos irmãos Schlegel, c que dá as linhas gerais
da revista Athenàum (O Ateneu), que teve apenas seis números, entre 1798 c 1801.
Esta revista é considerada a principal expressão do movimento romântico alemão.

82 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


dessa escala, onde se encontra o homem, em uma aproximação da
filosofia ao m .stic.sm o metafísico. Nessa dinâmica evolutiva, a atra­
ção e a repulsão seriam as forças determinantes, uma im pulsionan­
do para a frente, e a o u tra na direção contrária, a da fonte. Assim, a
natureza seria caractenzada por um equilíbrio instável e perma-
nente, que se encontra na base de todos os seres existentes.
b) A crise política, como indicado acima, foi gerada pela as­
censão económ ica e social da burguesia intelectualizada, que podia
ter acesso à cultura, m as não à vida política e a empregos n o con­
texto do regim e aristocrático (tema que indicaremos à frente a res­
peito do personagem W ilh elm Meister, de Goethe). Para além do
G ru p o de Jena, com sua visão mais cosmopolita e tam bém mais
reflexiva, o descontentam ento na Alem anha com os rumos violen­
tos da Revolução Francesa e particularm ente com a invasão napo-
leônica da A lem anha, gerou um movimento conservador em dire­
ção aos aspectos mais irracionais da cultura, contra os princípios
ilum inistas franceses, prom ovendo-se um espírito nacionalista que
valorizou a língua e a cultura popular alemãs em relação ao francês
e suas expressões culturais, pelos quais se expressara o llum inism o.
c) A crise religiosa tem suas origens na especulação filosófi­
co-teológica da virada do século X III para o XIV, com o teólogo e
m ístico M e stre E c k h a rt (Jo h an n es E ckhart, 1260-1328) e no
m ovim ento pietista, d o século X V II, de descontentam ento em re­
lação aos rum os tom ados pelo protestantism o e pela ortodoxia lu­
terana, buscando um a regeneração que, sem gerar um cisma, va­
loriza a subjetividade e a fé do próprio fiel, com a preponderância
d a in terio rid ad e e espiritualidade de cada indivíduo sobre as au ­
toridades eclesiásticas externas e os valores religiosos m ais dog­
m áticos, bem com o a edição de novos textos bíblicos adaptados
acrescidos de com entários enciclopédicos, e valorização de sua her­
m enêutica (interpretação). Por exemplo, o pecado passa a ser visto
com o u m a conotação positiva de cam inho para a salvação (tem a
que é tam bém explorado por Johann W olfgang von G oethe (1749-
-1832) em Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister, a ser discutido
à frente, na figura do abade pietista, bem como na aliança com o
dem ónio em Fausto). A ssim , o pietista deveria estar em perm anente
M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 8 3
escuta e análise de si m esm o, através da introspecção, processo
intrinsecam ente associado à busca de Deus. Em sua versão eiga, a
busca de si acontece de form a independente da re ígião, p o r m eio
da experiência estética rom ântica, indicada a seguir, e, mais ta r e,
pela psicanálise pessoal.
d) A crise estética estabeleceu-se com a crítica da concepçã
de im itação dos clássicos, baseada na fixação de um corpus e um
canon clássicos, baseada na m im ese dos modelos estéticos gregos, o
que passou a ser reconhecido com o um recalque da individualida­
de do artista. O s rom ânticos, ao contrário, ab an d o n aram os m o ­
delos externos e prontos, e valorizavam a invenção de si p ró p rio ,
ou a ideia de form ar o seu sen tid o íntim o, com o form ulara Schle-
gel.12 A nova perspectiva valorizava a fantasia e a im aginação cria­
dora e, portanto, a obra de arte com o a expressão da subjetividade
do autor, particularm ente de quem realiza a sua Durcbbrucb, ou
seja, M
a penetração em direção ao seu centro, apropriando-se e crian ­
do-se a sua própria verdade” (A ndrade, 2000, p. 55), que co m p u ­
nha a concepção mais am pla da Bildung (form ação) rom ântica, e
daí a im portância do Bildungsroman (rom ance de form ação), com o
veremos a seguir. Nesse m ovim ento, há um a valorização d a m ito ­
logia em geral, e nela dos elem entos do n o tu rn o , in fern al e d e ­
m oníaco, o que im plicava um a direção inversa à trad ição racio-
nalista e ilum inista, que elim inara do cam po da razão os “desvios”
da im aginação e da fantasia, e seus anjos e dem ónios: “o m al, se

12 Schlegel, como indicamos acima, foi um dos fundadores do grupo de Jena


Segundo Seligmann-Silva, um dos brasileiros mais credenciados no estudo da literatu­
ra alemã, Schlcgcl gerou “uma verdadeira revolução na teoria de identidade”, que mais
tarde foi valorizada por W alter Benjamin cm sua tese de doutorado, escrita entre
1917-1919 (Benjamin, 1917-1719/2002, traduzida pelo próprio Seligmann-Silva),
por sua “concepção do Eu como um jogo de constante autodivisâo, diferenciação e
síntese”, como uma estrutura reflexiva típica da noção de formação "como constante
saída de si (ou seja, como tradução de si mesmo)”. Trata-se, de acordo com Seligmann-
- Silva, de uma teoria autopoiética do ser, “como jogo infinito de construção, de autodi-
fercnciação de si” e “jogo das diferenças” (Seligmann-Silva, 2008, pp. 37-8). Nesse
movimento, há forte valorização da poesia e da fantasia, cm que o pensamento deve
caminhar não em linha reta, como na lógica clássica, mas cm constante dinâmica de
criação c destruição. Como indicado, essa fase de seu pensamento mais inovadora e
cosmopolita, entre 1789 e 1805, foi eclipsada após a ocupação napóleônicã e a onda de
nacionalismo germânico que gerou. Em 1813, Schlegel passa até mesmo a colaborar com
o governo conservador do príncipe de Metternich-W inneburg (1773-1859) na Áustria.

84 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


m al existia, n ao era o riu n d o senão d a desordem social, portan to
p assageira (Ib id em , p. 58). D e form a sem elhante, ^ m ulher ê
fem in in o sao reabilitados e estetizados, com o sím bolos da valo-
rizaçao d o coraçao e da afetividade, em contraposição à centrali-
dade um ca d o m asculino da razão ilum inista, chegando-se ao ideal
da an d ro g en ,a do espirito n a fosâo ideal dos dois S£xos do
to, a razao e a afetividade o que tam bém aludia à nostalgia da
unidade original perdida, de um saber absoluto.
C o m esses traços, o rom antism o alemão assentou os elementos
básicos para a construção gradual de um a investigação mais siste­
m ática acerca d a din âm ica psíquica inconsciente, que mais tarde
d esag u aria n a psicanálise d e F reu d e na psicologia analítica de
Ju n g . E n tre os elem entos que em ergiram dessa investigação e que
foram valonzados nas duas correntes contemporâneas, destacam-se:
— a valorização dos princípios d a contradição e da am bi­
valência, pelos quais elem entos opostos e antagónicos estão sim ul­
tân ea e necessariam ente presentes, influenciando os indivíduos, e
cada um se posiciona com o espaço de mediação dessas forças e de
c o n sta n te recriação de sua id entidade;
— a fusão dos opostos, na figura do andrógino, fusão do
m asculino e fem inino, da necessária união entre afeto e razão, pro­
fano e sagrado, sublim e e infernal, atração e repulsão, etc.;
— na dinâm ica de atração e repulsão de Schelling, estão pre­
figuradas as noções freudianas da dinâm ica entre as pulsões de
vida e as pulsões regressivas de repetição e m orte;
— apesar d a am bivalência e dessa cisão trágica de opostos,
em erge aí a noção d a possibilidade de um sujeito e de um a subje­
tividade unificada, de um eu que busca a si mesmo, penetrando
em sua interioridade e nestes elem entos opostos que fazem parte
de si, que é capaz d e refletir sobre seu cam inho e sua produção, e
que expressa os frutos dessa trajetória em sua obra de arte. C om o
indicam os, ta l busca foi reapropriada mais tarde na noção de pro­
cesso psicoterapêutico;

13 É interessante que isto também está presente em Os anos de aprendizagem de


Wilhem Meister, na personagem M ignone, a menina que se vestia como menino. A
discussão sobre este importante livro de Goethe será realizada mais abaixo.

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas 85


— a aproxim ação entre a estética e a psico ogia, u
que a poesia e a dinâmica das artes em geral, nas quais se u
fusão dos opostos, é associada ao dinam ism o psíquico mais ge ,
— a valorização do noturno, como lugar das fusões, meio de
sínteses e de retorno à unidade original, implica o cam in o contrá
rio da estética iluminista, marcada pela luz que separa, ssocia e
torna possível a análise racional, e nesta direção, o sonho se a irm a
com um dos temas centrais da estética rom ântica, e portanto, se
aproxima diretam ente do tem a do inconsciente.
É im portante relembrar que essas formulações em ergem de
forma mais intensa, além de G oethe, das publicações da prim eira
fase do m ovim ento rom ântico, centrado fundam entalm ente no
grupo de Jena, formado em 1796, até a ocupação napoleônica, em
1806. Após a derrota, o país “busca no apego à tradição um con­
trapeso diante da influência estrangeira, encetando um gesto de
resistência cultural. Surgia assim a segunda fase do R om antism o
alemão, em que despontaram o fascínio pela Idade M édia, o esfor­
ço pelo resgate da herança popular e o culto à natureza” (R edondo,
2008, p. 45).

5.3.3. Goethe: o espírito romântico, a tensão permanente


dos opostos, as forças cósmicas do desejo,
e o romance de formação (B ild u n g s r o m a n )

Johann W olfgang von G o eth e (1749-1832) é, reconheci­


damente, um dos grandes nomes da literatura universal, o fundador
original de um gênero literário, o Bildungsroman (romance de form a­
ção), e um dos principais inspiradores literários das bases estéticas
do romantismo alemão e de suas ideias psicológicas. A lém de sua
relevância própria, seu papel-chave no presente estudo se deve ta m ­
bém à forte presença na biografia de Karl M arx. E n tre as principais
e permanentes fontes literárias de M arx, estavam, além de Shakes­
peare, as numerosas obras de G oethe, que cita regularm ente em
seus escritos e correspondência, além de ser objeto de leituras cons­
tantes em sua vida familiar. G o eth e teve forte influência pessoal e
cultural sobre M arx, particularm ente em sua ju ventude (Prawer,

8fi | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


1976 e Lifschitz, 1982), e essa relação é im portante de ser resgata­
da, com base em um a visão sucinta de alguns elementos biográfi­
cos e de sua obra, do ponto de vista de sua ligação orgânica com o
m ovim ento rom ântico alemão e suas concepções implícitas de sub­
jetividade, o que sera realizado cm um dos próximos volumes N o
presente texto, nos cabe promover um a revisão dos principais ele­
m entos que caractenzam a vida e a obra de G oethe particularm en­
te em suas im plicações no campo das ideias psicológicas 1415
Q u an d o G o eth e nasceu, em 1749, como indicamos acima, o
Sacro Im pério R om ano-G erm ânico era tão som ente um conjunto
fragm entado de principados, ducados, Estados e cidades-Estados
D u ran te a G uerra dos Sete A nos (1756-1763), G oethe assistiu a
sua cidade ser invadida pelos franceses e sua casa ser transform ada
em quartel-general das tropas de ocupação, e este convívio o pôs
em contato com o Ilum inism o francês,14 que admirou por toda a
vida, em contraposição ao conservadorismo estamental germânico.
Seus estudos em Leipzig, que lhe estimularam seu projeto de dedi­
cação às artes, tiveram de ser interrom pidos por um a grave crise
espiritual e debilitam ento físico, com fortes implicações na trajetória
existencial e literária do autor, tam bém para a concepção de um
processo de autoform ação assumido pelo sujeito hum ano (Bi/dung),
subjacente a sua obra. C oncluindo seus estudos, a partir de 1775,
segue a carreira jurídica e política nas cortes mais esclarecidas do
im pério, particularm ente em W eim ar, em paralelo à sua produção
literária e tam b ém científica (particularm ente no campo da física,
chegando a pro d u zir um volume dedicado à Doutrina das cores,
escrito no período de 1790 a 1810). D e form a comum com a m aior
p arte da intelectu alid ad e em praticam ente toda a E uropa, sua
14 A subseção inicial sobre os principais dados biográficos de Goethe e as carac-
terísticas mais gerais de sua obra em relação à subjetividade foi baseada nos vários
ensaios de críticos literários, estudiosos de literatura alemã ou de sua obra, reunidos na
publicação sobre G oethe organizada por Manuel da Costa Pinto (2006), além das
demais referências bibliográficas indicadas ao longo do texto. No entanto, as demais
seções implicaram investimento mais amplo, que incluiu a leitura de Os sofrimentos do
jovem Werther e Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, passagens do Fausto, bem
como várias outras referências secundárias de comentadores de amplo rcconhecimcn
to, que serão indicados no próprio texto.
15 Segundo Maas (2000, p. 69), há várias passagens dos trabalhos de Goethe
em que este denota um contato direto, por exemplo, com a obra de Rousseau.

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 87


adm iração pelo republicanismo revolucionário francês arrefeceu-se
após os episódios mais radicais da fase do Terror, colocando-o em
um program a político de aliança entre a aristocracia ilustrada e as
camadas populares, com o alternativa à corrupção e im obilism o das
m onarquias europeias e à violência revolucionária jaco ina.

5.3.3.1. Goethe e subjetividade: alguns traços mais gerais de sua


obra, incluindo o Fa usto

D e form a sucinta, podem os identificar na obra de G o eth e os


seguintes elem entos e traços de um a concepção rom ântica da su b ­
jetividade humana:

a) D esde cedo, G oethe admirava a obra de S h a k e sp e a re /


pela sua ousada com binação de conteúdos e personagens históricos,
de elem entos cómicos da cultura popular e a sutileza das análises e
dramas psicológicos, das delicadezas da alma até os seus excessos,
apresentando características similares em seus trabalhos. A ssim , n o
autor alemão, há um convite para um a “viagem” em regiões das
mais diversas, em um a transição perm anente entre céu e terra, e n ­
tre m undo real e mitológico, com o forma de trazer à to n a os d ile ­
mas da subjetividade hum ana, da história e da vida social. O s p a ­
noramas criados constituem um universo anim ado p o r espíritos,
dem ónios, bruxas e forças cósmicas, que podem em ergir com o p la n ­
tas, tem pestades e indivíduos hum anos. Esses vários elem entos são
representados com o “figura” (Gestalt), com o um a configuração m ó ­
vel de elem entos transform ando-se em perm anente m etam orfose,
sem distinção entre objeto científico e literário, fu n d in d o im a g i­
nação p o ética com in teresses cien tífico s e e x p e rim e n ta is. E m 16

16 Esta admiração é expressa na trama de algumas de suas obras principais,


como em Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meisfer, cm que Wilhelm, o protagonista,
passa a ter contato e admirar o teatro de Shakespeare (Goethe, 1795-1796/2006, pp!
194-5). Lukács, mais tarde, escreveria em seus estudos sobre o autor clássico alemão
que “Shakespeare é, para ele, um grande educador para uma humanidade c persona­
lidade total mente desenvolvidas; seus dramas são, para ele, modelos do modo com o o
desenvolvimento da personalidade atingiu a plenitude nos grande períodos do hu-
manismo e de como esse desenvolvimento deve se completar no presente” (Lukács,
1936/2006, p. 583).

88 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


relação aos seres hum anos, isso se expressa pelo gosto pela sutileza,
pelo qu al descreve pequenos signos e sím bolos, os leves traços
de c o m p o rtam e n to , gestos, sen tim en to s, expectativas e angústias
de cada personagem , para ir co n stru in d o gradualm ente, ao longo
de cada obra, u m q uadro mais com plexo do caráter e dos sen ti­
m en to s m ais p rofundos, bem com o os abism os m ais radicais da
existência h u m a n a que cada um destes personagens encarnam .
b) D o p o n to de vista cultural, Os sofrimentos dojovem Werther,
escrito em 1774, foi talvez a obra de G oethe de m aior ênfase ro ­
m ântica e de m aior im pacto im ediato, com inúm eros suicídios atri­
buídos a sua influência (Backes, 2006). C o m forte conteúdo auto­
biográfico, o rom ance epistolar (na form a de cartas), em prim eira
pessoa, retrata um jovem que não se adapta às norm as das classes
sociais dom inantes e da nobreza, busca na natureza (um tem a cla­
ram ente rousseaniano) e nas artes o seu refugio, sofre com um a
paixão im possível e não correspondida, o que o leva a um crescente
isolam ento e ao suicídio. H á um abism o entre o m undo social
externo, m arcado pelas inúm eras lim itações,17 e seu m undo inter­
no, representado pelo coração, seus sentim entos e sofrim entos, e
sua busca de plenitude. O livro constitui um dos pilares do espí­
rito rom ântico e do m ovim ento intitulado Sturm u n d Drang,™ como
um a co n tra p o siç ã o ao racio n alism o frio e m ecânico do Ilu m i-
nism o , da separação en tre a esfera intelectual e o m undo da cul­
tu ra po p u lar, que en fatizav a o m u n d o da im aginação, dos sen ­
tim e n to s , d a e s p o n ta n e id a d e e d as forças criad o ras do gên io
c o m o v a lo re s p r e d o m in a n te s , e q u e teve fo rte in flu ên cia no

17 Neste aspecto, Lukács tem uma avaliação bastante otimista da obra:


“O jovem Goethe não era politicamente um revolucionário plebeu [. . .]
[mas] todo o Werther é uma confissão ardente do homem novo nascido no curso
da preparação da revolução burguesa, proclamação da nova hominização, do
novo despertar d a unilateral atividade do homem produzida pela sociedade
burguesa e por ela tragicam ente condenada à ruína. A configuração deste
homem novo se produz pois em permanente contraste dramático com a socie­
dade estam ental e tam bém contra a vulgaridade moral pequeno-burguesa”
(Lukács, 1968, p. 80).
,g Sturm und Drang é traduzido correntemente como “Tempestade e ímpeto”,
titulo de um a peça de Friedrich Maximilian von Klinger (1752-1831), de 1776, que
deu nome a um movimento literário e cultural da época na Alemanha, concebido pelo
filósofo, poeta e crítico literário Johann Gottfried von Herder (1744-1803).

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 89


desenvolvim ento da ideia de pulsão e de inconsciente, com o ve­
remos na sequência deste capítulo.
c) N a obra que muitos consideram a mais im portante, Fausto
(dividida entre um prim eiro volume publicado em 1806, e um
segundo volume, em 1826), G oethe transform a um a antiga lenda
popular, centrada em um pacto realizado com o dem ónio. Essa
obra tem , na sua estrutura, um complexo ensaio sobre o desejo
hum ano, que nunca é com pletam ente satisfeito. E m bora inicial­
m ente marcado pela ânsia de conhecim ento e desm edida, F austo
ultrapassa nesse m ovim ento seu m undo lim itado e percorre vários
destinos terrenos e cósmicos, as idiossincrasias do amor, casam ento
e filho, m ostrando um espírito insaciável. N a realidade, ele realiza
um a burla no pacto com o dem ónio, pois tinha plena consciência
de que nenhum dos gozos providenciados por ele o satisfará. N a
direção inversa, a condenação ao inferno para os hu m an o s pode
ser interpretada com o a estagnação do desejo, com o a p erd a da
ânsia por m ovim ento, por novas possibilidades e objetos d o d e­
sejo. A epifania final de Fausto sendo elevado aos céus celebra essa
disposição de quem , apesar dos excessos, perseverou na busca deste
cam inho e não podia ser condenado.
d ) Na prim eira parte do Fausto, a ênfase é posta na dim ensão
mais individual, no âm bito microcósmico, com o exem plo da subje­
tividade hum ana, em seu desejo desm edido de conhecim ento sobre
o mundo. Na segunda, em erge um a dim ensão mais am pla e m acro-
cósmica, menos diretam ente ligada às paixões, pela qual o d ram a
hum ano é coletivizado, atingindo o conjunto dos hom ens, pelas
vicissitudes do capitalismo, do dinheiro e da técnica. E sta e stru tu ­
ração em duas partes, com abordagens opostas, que ao final e n ­
contra uma forma mais m ediada, revela intenso diálogo e in te ra ­
ção necessária e inexorável en tre o p articu lar o u n iversal, e n tre
fragm ento (representado so b retu d o pela su b jetiv id ad e) e a to ­
talidade (projetada na so ciedade com o u m to d o ), n a q u a l n e ­
nhum dos polos pode ser absorvido pelo o u tro ou a n u lad o .
e) Essa valorização da p o larid ad e e d a ten são dos o p o sto s
por Goethe se corporifica tam bém , particularm ente no Fausto, em
uma relativização da dicotom ia b em -m al. E le m esm o escreve, em
90 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas
1771, o que pensava: “O que chamamos de mal é apenas a outra
face d o bem e é tão necessário para a existência deste como para o
conjunto”. E m 1808, ele escreve novamente: MNós e os objetos/L uz
e trev a ,/C o rp o e alm a,/duas alm as,/Espírito e m atéria/D eus e o
m u n d o ,/P en sam en to e extensão,/Ideal e real,/Sensibilidade e ra­
zão, /F a n ta sia e entendim ento,/S er e anelo./D uas metade do cor­
p o ,/d ireita e esquerda,/Respiração,/Experiência física: imã”.19 Essa
concepção da natureza é m odulada pela filosofia romântica e de
ciência do rom antism o alemão, já indicada acima, e da qual G oethe
participou de form a direta, com algumas obras diretam ente cientí­
ficas. D o p o n to de vista da ideia implícita de subjetividade, ela teve
en o rm e influência na conform ação e no esboço explícito da ideia
de in c o n sc ie n te p o r autores alem ães já na prim eira m etade do
século X IX , que serão resenhados a seguir, bem como nos formu-
ladores m ais sistem áticos da virada do século XIX para o XX, como
F reud20 e Ju n g .21
f ) N o capítulo anterior, já assinaláramos a dívida de M arx
com G o eth e, na inspiração sobre a práxis (G oethe, 1808-1831/
1985, vol. I, pp. 65-6). Fausto representa aquele que quer superar
o co n h ecim en to contem plativo, para experim entar o m undo ati­
vam ente, o que significa u m a certa renúncia de um saber im edia­
to ou divino, p o r um conhecim ento m ediado no contato com o
m undo e com os ou tro s hom ens, o que confirma, portanto, esse
com ponente materialista, no sentido filosófico, de sua obra.
g) Sua análise psicológica da subjetividade de gênero apre­
senta alguns elem entos m uitos finos e sugestivos. Por exemplo,
G oethe projeta sobre as imagens do fem inino uma concepção quase

19 Textos citados por Moura (2006, p. 32), sem especificação das fontes em
Goethc, mas dado o poder de síntese do pensamento do autor, foi incorporado aqui.
20 Na biografia autorizada de Freud, realizada por Jones (1989), há inúmeras
passagens (por exemplo, às págs 41-2; 56, 323, entre outras), indicando essa enorme
influência de Goethe em seu pensamento. Da mesma forma, em várias passagens de A
iníerprttaçào dos sonhos, Freud relata sonhos seus em que Goethe aparece “como símbolo
do pai" (Freud, 1980, vol. V, p. 377). As vicissitudes dessa relação de Freud com o
romantismo alemão será discutida mais à frente.
2: Jung indica claramente, em sua autobiografia intitulada Memórias, sonhos e
reflexões, a importância de Goethe para a sua formação. Diz literalmente que a leitura
do Fausto “foi um bálsamo para a minha alma”, e que “Goethe foi para mim um profeta”
(Jung, 1961/1975, pp. 63-4).

Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas \ 9 I


pagã de Eros, marcadas por forte am bivalência em suas id en tid a­
des eróticas. Personagens com o M ignon, em Os anos de aprendiza­
gem de Wilhelm Meister (G oethe, 1795-1796) e O tilia, em A fin i­
dades eletivas (1809) despertam fascínio erótico por meio de um a
indefinição sexual, já antecipando as figuras freudianas da bisse-
xualidade psíquica.

5.3.3.2. Os a n o s d e a p r e n d iz a g e m d e W ilh e lm M e is t e r
e o romance de formação ( B ild u n g sro m a n )

O significado do conjunto da obra de G oethe para a concep­


ção moderna e contem porânea de subjetividade, e a meu ver tam ­
bém para o jovem M arx, só pode ser com preendido integralm ente
com a noção de romance deformação, gênero que o autor inaugurou
com seu livro Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, publica­
do nos anos de 1795-1796 (G oethe, 1795-1796/2006), e que
passou a ser considerado com o fiindante e canónico para o para­
digm a desse gênero para toda a literatura m undial.22
O livro conta a história de vida de um filho de com erciante e
sua trajetória de busca de um a formação universal e de aperfeiçoa­
m ento de suas qualidades por meio do teatro, até a sua inserção em
esferas dominantes. As principais questões de fundo da obra con­
vergem para as possibilidades de formação e desenvolvim ento mais
universal de um jovem burguês, em um a sociedade ainda aristocrá­
tica e absolutista, para além dos limites estreitos de um a educação
para a continuidade dos negócios da família, tendo em vista seus
objetivos de emancipação social e de contribuir mais am plam ente
para a sociedade como um todo.
A noção de Bildungsroman em alemão não é fácil de ser tra ­
duzida. Reúne a ideia de Bild (im agem ), em sua form a verbal bilden
(formar), que implica um a concepção de form ação m ais am pla,
dirigido ao “saber viver”, do que propriam ente ao desenvolvim ento

22 Para esta seção, as fontes bibliográficas principais foram Mazzari (2006),


Lukács (2006) e principalmente Maas (2000), além das demais obras citadas ao longo
do texto e dos textos citados do próprio Goethe. Considero os três trabalhos acadêmicos
acima imprescindíveis para a entrada mais qualificada do leitor interessado no tema.

92 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


de qualidades específicas ou dirigida para fases determinadas da
v id a prática e especializada (Ausbildung). Significa então um pro­
c e s s o de fo rm ação e desenvolvim ento das características pes­
so a is com o a cognição, virtudes e valores éticos, bem como dos
c o m p o rta m e n to s sociais, com o fruto de influências sociais e do
p ro c e sso esp o n tân e o e estim ulado de autoinvestigação e auto-
c o n h e c im e n to das potencialidades pessoais.
D e form a com plem entar, o Roman (romance), termo de ori­
g em latina indicando um a narrativa longa, tinha até então pouco
reco n h e cim e n to no contexto alemão,23 quando o gênero dom i­
n a n te era ainda a epopeia, apenas ganhando prestígio na Alem a­
n h a nas três décadas finais do século X V III, também em virtude
do im p acto de Werther. C onstitui então um texto de forma realista
que retrata o hom em com um , mediano, em sua busca de em anci­
pação. N a literatura ocidental, o gênero coincide com a descober­
ta e valorização da vida privada, das questões individuais e fam i­
liares, em um texto reflexivo do indivíduo sobre si m esm o e sobre
as rela çõ es que estabelece com as in stitu iç õ es da vida social.
A ssim , a passagem da epopeia para o rom ance de formação tem,
a meu ver, im portância significativa para além da historiografia li­
terária, não só para uma história das abordagens das ideias psicoló­
gicas, com o tam bém para nosso estudo sobre Marx, como será dis­
cutido m ais tarde neste trabalho: a epopeia m ostra o herói em sua
ação para o exterior, provocando alterações significativas na rea­
lidade, ao passo que no rom ance tem os um a interação mais com ­
plexa, em que o am biente atua sobre o personagem e este avalia
e reflete sobre essa influência, revelando seu processo form ativo
e o que está p o r trás de suas ações e obras na realidade externa.
E m bora a obra de G oethe tenha sido marcada por um contexto
histórico e cultural específico, a historiografia literária constituiu o

23 Maas (2000, p. 53) assinala que havia na literatura alemã poucas obras que
poderiam ser identificados claramente como pertencentes ao cânone de romance de
formação antes de Wilhelm Meister. Parzival (1200-1210) de Wolfram von Eschenbach
(c. 1170-C.1220); Simplicissimus (1668), de Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen
(c. 1620-1676); Geschite des Agathons (1776-1777) de Christoph M artin W ieland
(1733-1813); Hesperus (1795), de Jean Paul (1763-1825); e Herman und Ulrike (1780),
de Johann Karl Wezel (1747-1819).

Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 9 3


rom ance de form ação com o u m cânone e u m a instituição atem ­
poral, com o reconhece M aas (2000, p. 23). Podem os interpretar a
análise desta autora com o apontando para a ideia de que o gênero
literário e a noção de B ildung passam a representar um a das fa­
cetas fun d am en tais de um a co n q u ista em an cip ató ria do gênero
hum ano m ais am pla que se abre com a sociedade burguesa, com
profundas im plicações no cam po da subjetividade: a passagem
da antiga cultura do m érito herdado, associado ao direito aristo­
crático da posse e da herança, para um a cultura m ais igualitária
do m érito pessoal conquistado, p articu larm en te n o processo de
socialização da educação. Esta passagem pressupõe, em um pri­
m eiro nível, o tran sb o rd am en to da educação para além da esfera
dom éstica e privada e o advento da escola com o espaço cada vez
m ais de cará ter público, e ao m esm o tem p o particu larizad o , já
que separa a criança e o adolescente do ad u lto e lhes d á tra ta ­
m en to diferenciado, dadas as características próprias do processo
de formação de sua personalidade.24 A dicionalm ente, em nível mais
elevado, essa passagem enfatiza um a noção de natu reza h u m an a
com o passível de m u d an ça e aperfeiçoam ento, que levam p o r­
ta n to ao processo gradual de reconhecim ento da im p o rtân cia de
a sociedade e de o E stad o financiarem políticas públicas de ed u ­
cação universal, com o direito social de todos os cidadãos.
O rom ance de G o eth e tem outros m éritos e questões im p o r­
tantes para o presente estudo, e apesar de nos propor o dilem a de
um a seção mais longa, não podem ser esquecidos:

a) A obra contém o que pode ser enten d id o com o um m a ­


nifesto p ro g ram ático do rom ance de form ação,25 indicando seus

24 Além da influência de G oethe, esse reconhecimento se deve também ao


trabalho pioneiro de vários educadores e filósofos, como o próprio Rousseau, com
Emílio, de 1762, como vimos anteriormente, mas também dc Johann Heinrich Pestalozzi
(1746-1827), com suas idéias principais reunidas na obra Como Gertrudes ensina suas
crianças* de 1801, além de Johann Bernhard Basedow (1723-1790), reformador educa­
cional alemão, que resumiu suas idéias em Elementarwerk, de 1774. A presença marcante
das obras de Goethe e de Rousseau na formação da ideia de educação revela, por outro
lado, o papel fundamental da literatura neste processo.
25 Isso se dá na carta ao cunhado Werner, após receber a notícia da morte do pai,
no capítulo 3 do Livro V, que expressa as ideias centrais do romance. Na edição aqui
usada (Goethe, 2006), se encontra nas páginas 284 a 287.

94 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


elem entos principais, como a autonom ia (formar a si mesmo),26
totalidade (no sentido de uma formação plena, abrangendo todas
as esferas da vida) e a harm onia (formação harmónica das po­
tencialidades artísticas, intelectuais e físicas). Entretanto, a estru­
tura do rom ance m uda ao longo da obra, de uma concepção limi­
ta d a m e n te in d iv id u a lis ta e su b jetiv ista para um a interação
dinâm ica do “eu” com o m undo, da esfera particular para o con­
ju n to da sociedade, na esfera pública.27 Não é aleatório que o
livro mereceu um a série de elogios, também de Lukács, tanto em
sua Teoria do Romance (1914-1915/1979), um texto de sua ju ­
ventude, com o tam bém em outros textos mais maduros, como este
de 1936:

“A relação entre o ideal da humanidade e a realidade


está determ inada em W ilhelm M eister por essa fé [. . .] na
capacidade da hum anidade de se regenerar por suas forças
próprias, de rom per por suas próprias forças os grilhões que
um a evolução social forjou, [que] é mais forte que nunca em
sua vida. A ideia educativa do W ilhelm Meister é a desco­
berta dos m étodos com a ajuda dos quais se despertam essas
forças adormecidas em cada indivíduo, que preparam para a
atividade fecunda, o conhecimento da realidade, o conflito
com a realidade, que fomentam aquele desenvolvimento da
personalidade” (Lukács, 2006, p. 594).

26 A questão da autonomia no processo formativo diz respeito à concepção


pedagógica, e é posta de forma polêmica pelo romance. A concepção usada pela
Sociedade da Torre, a associação de homens sábios organizada de forma similar à
maçonaria, que se revela para Meister no final da obra, combina a intervenção ativa e
autoritária em sua vida com uma educação pelo erro, que permite ao educando entre­
gar-se a seus equívocos, relembrando nesse segundo aspecto a ideia de uma educação
liberal, pela qual o educando detém poder de decisão.
27 Particularmente a partir de Livro V, o herói percebe que o teatro é insuficien­
te para sua Bildung, não como equívoco, mas como etapa limitada mas necessária de
sua trajetória. Na mesma direção, a autorrevelação da Sociedade da Torre mostra a
existência de dois personagens (Jamo, o abade, e Lothario) que personificam a consciên­
cia e a militância social e política imprescindível ao processo. Como reconhece Lukács,
“Lothario viajou pelo mundo, mas lutou, concomitantemente, na América, ao lado de
Washington, na guerra da libertação; quando toma posse de seus bens, leva a termo a
liquidação voluntária dos privilégios feudais” (Lukács, 2006, p. 586).

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 9 5


De forma similar, Habermas reconhecerá mais tarde o pro-
pósito autoformativo e a “necessidade de «ser uma pessoa pu ca e
agradar e atuar num círculo mais amplo»” (expresso por M eister
em sua carta-síntese do romance) como uma representação im ­
portante do processo de formação histórica da esfera pública na
sociedade burguesa m oderna (Habermas, 2003, p. 27).
ò) O romance de formação e a autobiografia, influenciados
pelo romantismo, implicam um ato de interpretação da vida, que,
ao mesmo tempo que o autor a recria, desenvolve um processo de
autotransformação. Esse movimento sem dúvida alguma estim u­
lou a em ergência da teoria herm enêutica m oderna, a p artir da
obra de Daniel Friedrich Ernst Schleiermacher (1768-1834), p rin ­
cipalmente por seu livro Hermenêutica e critica (1836/2005).
c) Finalmente, em minha opinião, a concepção de Bildung
prenuncia a concepção contem porânea de processo p sico tera-
pêutico e das form as de individuação induzidas p o r ele, com o
expresso nas principais teorias clínicas da psicologia do século XX,
tais como a psicanálise e a psicologia analítica, a fenom enologia e o
existencialismo, a teoria da Gestalt> entre outras. Isso se dá particu­
larmente pelas seguintes características:
c. 1) Wilhelm Meister consagra a afirmação da singularidade
de cada processo pessoal de formação. Nas histórias de vida pré-
-românticas, se tratava de afirmar a fé religiosa ou im itar os g ran ­
des modelos, como os próprios fundadores das religiões ou os
grandes sábios humanistas. A partir da ideia de Bildung> cada um
deve percorrer seu próprio cam inho, marcado pelas próprias p o ­
tencialidades e escolhas, fazer suas incursões pelas artes, tendo
objetivos em aberto e construindo seu próprio estilo, com o único e
singular.
c.2) Ligada ao tem a anterior, o processo parte do reco n h eci­
m ento dos próprios talentos e habilidades latentes (“aperfeiçoar-
-me, a partir do que realmente sou”, conform e a carta-program a de
Meister), que sustentam os desenvolvimentos posteriores, o que
significa um com ponente hum anístico e dem ocrático de sua co n ­
cepção, já que as potencialidades estão presentes potencialm ente
em todo o ser hum ano, independente de sua origem . Essa noção
96 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas
tam bém antevê a trajetória da psicologia vocacional contemporânea,
que parte das aptidões psicológicas de cada indivíduo.
c.3) D e form a semelhante, a formação pessoal é representada
com o um processo aberto e inacabado, sem fim, em “eterno” d e­
vir, com o se constituísse um ideal do qual se pode aproximar, mas
nunca realizá-lo.
cA) A própria estrutura narrativa em prim eira pessoa implica
um a consciência mais ou menos explícita do protagonista, com o
indica M aas (2000), de que ele não percorre um a sequência aleatória
de aventuras, mas um processo encadeado de autodescobrim ento
e de o rien tação n o m u n d o , em que tem ele u m papel m ais ou
m enos ativo, com o sujeito, e que pode até implicar reconhecim ento
de deficiências e enganos, bem com o de avaliações equivocadas,
mas que podem e devem ser corrigidas no transcorrer da formação.
c.5) A inda com base na análise detalhada de M aas, o proces­
so tende a incluir sem pre experiências típicas, que a m eu ver p o ­
dem ser literais ou simbólicas, tais como:
— a negação das expectativas e planos originais dos pais ou
do m eio social com o projeto de vida;
— a separação concreta ou simbólica em relação à casa paterna;
— a realização de viagens e contatos com terras, povos, cultu­
ras e, ou, pessoas diferentes do meio social original do indivíduo;
— a atuação de m entores, educadores ou pessoas sábias (ou
um a relação m estre-aprendiz);
— o reco n h ecim en to dos lim ites da form ação ad q u irid a
apenas com a cultura livresca ou voltada somente para um a ativi­
dade económ ica, profissional ou utilitarista especializada (Ausbild-
ung), em bora nas fases mais avançadas do processo a formação in ­
clua u m fecham ento d o foco para um a atividade particular e útil
para a sociedade, m as agora de form a já m ediada pela universa­
lid ad e;28

29 Mazzari (1999) nos chama a atenção de que este tema constitui na verdade
uma tensão inerente entre Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister e seu volume
seguinte, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, publicado trinta anos depois do
primeiro, e que acentua a idéia de Ausbildung. Nesse período, se desenrolou integral­
mente a Revolução Francesa e se acelerou a Revolução Industrial, e daí, segundo ele,
o redirecionamento de Goethe.

M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 97


— a realização de atividades artísticas, com desenvolvimento
da expressividade estética;
— a aprendizagem inesperada e, ou, insights a partir do con­
tato com pessoas simples;
— as experiências eróticas e amorosas e suas implicações pro­
fundas;
— o contato com a esfera pública.
É interessante notar como essas experiências típicas vividas
pelos protagonistas centrais dos romances de formação recuperam
as experiências tam bém consideradas típicas das estórias e m itos
de herói, presentes nas várias culturas, em suas diversas formas dis­
cursivas e literárias, como nos relatos míticos de transm issão oral,
nas diferentes formas de epopeia, nos contos de fadas e textos reli­
giosos. N o século XX, esses vários tipos de relatos heroicos foram
investigados pela tradição da psicologia analítica de Ju n g (com for­
te inspiração em G oethe, como vimos) e elevados à categoria de
experiências arquetípicas, ou seja, vivências simbólicas carregadas
de forte energia psíquica e que fazem parte da estrutura dinâm ica
da personalidade hum ana presente em todos os seres hum anos.
Portanto, segundo a tradição junguiana, as vivências do herói ta m ­
bém descritas no romance de formação representam , de form a sim ­
bólica, várias das diversas etapas ou fases do p ró p rio processo de
individuação psíquica que todo ser hum ano é cham ado a realizar
como exigência de seu am adurecim ento psicológico (Jung, 2005;
Campbell, 1997), e que recebe roupagens diferenciadas segundo a
cultura, como por exemplo as características de m aior ou m enor
nível de individualização ou inserção em sistemas culturais hierár-
quicos/holistas (Vasconcelos, 2008b).
Terminadas essas indicações sobre G oethe, m esm o que sin­
téticas, penso que agora temos condições de passar aos autores ale­
mães do início do século X IX que realizaram as investigações mais
radicais na direção do inconsciente (e que p o rtan to tiveram papel
fundamental na conformação das principais teorias sobre o tem a
na abertura do século XX, com os trabalhos de F reu d e Ju n g ), e
que já tiveram suas obras principais publicadas no p erío d o da for­
mação universitária de M arx e na década de 1840.
98 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas
5.3.4. G H Schubert, a simbólica do sonho
e o esboço de uma metapsicologia

G o tth ilf H einrich von Schubert (1780-1860), filho de pastor


pietista, fez curso de teologia, mas foi como médico e naturalista
que m ais se destacou profissional e academicamente. Foi fortem en-
te influenciado pelo pensam ento romântico alemão, particularmente
por J. G . H erder, G oethe, Novalis e Schelling, como tam bém pelas
ideias do m édico austríaco Franz M esm er (1734-1815), considera­
do o principal precursor da ideia de m agnetism o animal e das técni­
cas de hipnose.29 C hegou a Jena em 1801, ano de dissolução do
grupo fundador do m ovim ento alemão, e buscou fundam entar
em piricam ente as especulações do grupo e particularm ente da filo­
sofia da natureza de Schelling. Em bora algumas de suas intuições
sejam hoje consideradas geniais pelos historiadores da psicanálise
(A ndrade, 200130), com o veremos a seguir, elas emergiram em obras
cujo conjunto é extrem am ente polêmico, e era considerado, já na
época, por autores românticos mais rigorosos, como pueril e místico.
Particularm ente em Considerações sobre o lado noturno das ci­
ências naturais, oriundas de um a série de conferências proferidas
em 1808, que o fizeram mais conhecido, realiza um a análise dia-
crônica do desenvolvim ento da natureza. Tendo com o fonte poesias
e m itos das diferentes culturas, Schubert concebe um a prim eira
fase de plena harm onia entre o ser hum ano e a natureza, que ele
expressa na noção de “idade de ouro”. U m a segunda fase teria sido
m arcada pela ideia de queda e clivagem entre os hum anos e a n atu ­
reza, pela recusa dos prim eiros a se subordinarem à segunda, e que
os obriga a desenvolver suas capacidades intelectuais para sobreviver,
mas alienando-o cada vez mais da natureza. Para a terceira fase,

29 Na medicina romântica, as ideias do movimento mesmerista foram muito


bem acolhidas, já que o magnetismo animal foi visto como se integrando ao magnetis­
mo terrestre e constituindo uma evidência da manifestação imanente do espírito na
natureza.
Como indicado, esta obra de Andrade (2001) é a principal referência para a
elaboração desta seção sobre Schubert e Cams. As expressões originais de Schubert
inseridas no texto acima foram retiradas de Andrade, pp. 92 e ss.

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 9 9


denom inada de m om ento cósmico, Schubert sugere a possibilidade
de retorno da “idade de ouro”, em que os hum anos p o d e m m tra n s -
cender os seus limites e buscar a flisão com a totalidade, para c jo
acesso o sonambulismo e o sonho seriam os estados que mais in ­
tensificam a nossa percepção e a sensibilidade.
Em 1814, G . H . von Schubert publicou A simbólica do sonho,
escrito em apenas um ano, portanto apresentando várias limitações
e contradições, que o autor tentou corrigir nas edições subsequen­
tes, mas que de qualquer forma se tornou um bestseller. Nessa
obra estão indicadas intuições que foram fundam entais para con­
formação da ideia de uma dinâmica metapsicológica, de incons­
ciente e dos mecanismos oníricos com o uma de suas principais
manifestações:31

d) A especificidade e a im p o rtân cia da linguagem d o so-


nho: diferentem ente das noções racionalistas, que viam o sonho
com o uma linguagem perturbada e inferior, a linguagem do sonho
é “feita de abreviações e hieróglifos”, form ada de imagens, de n atu ­
reza metafórica, apresentadas de form a simultânea, rápida e suces­
siva, similar à linguagem do delírio, mas com organização própria,
condensada, dissociada dos limites tem porais, e mais apropriada,
rica e expressiva para descrever os mecanismos do espírito do que a
linguagem consciente. D o ponto de vista diacrônico, o sonho re­
presenta uma reminiscência da linguagem harm ónica da idade de
ouro e a via de acesso a esta harm onia primeva.
b) A linguagem do so n h o com o p refig u rativ a d o d e te r-

Andrade (2001) faz um detalhado e rigoroso rastreamento das ideias de


Schubert na obra e na própria biblioteca de Frcud, que possuiu a quarta edição de A
simbólica do sonho, de 1862, e que foi sublinhada em vermelho e azul pelo próprio
fundador da psicanálise, em vários pontos significativos. Entretanto, Freud, que nor­
malmente buscava identificar rigorosamente suas fontes, cita muito rapidamente essa
obra tão importante, que já prefigurara as principais ideias cm relação aos sonhos e à
sua metapsicologia, presentes em seu principal livro de fundação da psicanálise, A
tn/íTP” srào dos sonhos' de 1900. Na interpretação de Andrade, é compreensível a difi­
culdade de Freud em admitir sua inspiração em um pensador místico pietista, dada a
sua formação médica e o contexto de ampla hegemonia do cicntificismo positivista.
Para uma referência razoavelmente curta m as rigorosa dessa tensão teórica e
epistemológica presente no pensamento de Freud, vale a pena a leitura de Renato
Mezan (2000).

I 00 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


m in ism o das forças d o psiquism o profu n d o : para S chubert, a
linguagem do sonho tem enorm e “poder sobre as forças do eu
íntimo”.
c) A universalidade da linguagem do sonho: esta intuição
está na base da noção de universalidade dos complexos básicos de
form ação da personalidade em Freud, com o da noção de incons­
ciente coletivo em Jung.
d ) A noção de u m psiquism o dividido, com duas regiões
d istin tas, com lin g u ag en s d iferentes, que n o rm alm en te não se
co m unicam e que estão em contradição perm anente: do ponto
de vista fisiológico, as funções inconscientes seriam ligadas ao sis­
tem a ganglionar, e a consciência estaria ligada ao cérebro. O p ro ­
gresso civilizatório exigiu a dom inação do sistema cerebral, mas há
situações nas quais essa dinâm ica é invertida: nos ataques de lou­
cura, de dupla personalidade, na revelação religiosa, na inspiração
artística, no sonam bulism o e no sonho. Vemos aqui um a clara pre­
figuração dos m odelos m etapsicológicos de Freud.
é) O conflito e a am bivalência com o características da n a­
tureza hum ana: S chubert representa esta noção através d e um a
analogia m ítica, a das duas faces de Jano, divindade grega dos
cam inhos e encruzilhadas, em que um a das faces ri, enquanto a
outra chora, e as duas faces reivindicam o seu direito de existência
e nenhum a delas está disposta a ceder à outra: “o que o prim eiro
deseja é um veneno para o outro”; “m esm o quando fala a voz do
mais puro am or, a sensualidade a mais vil se faz tam bém ouvir”.
f) A p re se n ç a d o s d esejo s sexuais e c rim in o so s n a lin ­
guagem do sonho e n o sistem a ganglionar, tam bém com o fonte
do conflito en tre as d u as regiões: aqui encontram os em Schubert
um a m arca pietista, m oralista e m aniqueísta, que associa a sua ideia
do sistem a ganglionar ao dem oníaco e ao mal, e que é mais m ar­
cante nos acréscimos realizados nas sucessivas edições do livro.
D epois de Schubert, na sequência histórica dos autores ro ­
m ânticos alemães que prefiguraram a noção de aparelho psíquico e
de inconsciente, está certam en te Karl G ustav C am s (1789-1827),
que será objeto de nossa atenção a seguir.

M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 101


5.3.5. Karl Gustav Carus e o reconhecimento explícito da
existência do inconsciente e de sua dinâmica metapsicológica

A m igo de G oethe, o alemão Karl G ustav C arus foi hom em


de m uitas facetas, com prática sistem ática e obras em vários cam ­
pos: m edicina, filosofia, biologia, pintura, estética e psicologia filo­
sófica. É bastante conhecido por ter proposto, no cam po da biolo­
gia, o conceito de arquétipo do vertebrado, um a noção im portante
para o desenvolvim ento de evolução de D arw in. Seu pensam ento
filosófico e psicológico foi fortem ente influenciado por Schelling,
G o eth e e Schubert.
C arus deixou cerca de 400 quadros e 1.000 desenhos, e é
reconhecido com o artista im portante no conjunto dos pintores ro ­
m ânticos alemães. Sua pintura tem com o tem a principal as paisa­
gens naturais, que A ndrade (2001) afirm a ser um a p intura do su­
blime e do inconsciente^ na direção apontada por K ant da arte e da
representação estética com o forma privilegiada de se aceder ao su­
jeito, ao sublim e e à própria razão. N este enquadram ento, a n atu ­
reza é vista tendo papel fundam ental de estim ular a im aginação e a
sensibilidade, para p oder ter acesso ao sublim e, princípio que os
pintores rom ânticos assum iram , em confronto com a p in tu ra reli­
giosa e histórica hegem ónica no século X V III. A ssim , na represen­
tação rom ântica, o ser hum ano se fusiona à natureza e ao universo
cósmico. E m suas reflexões no cam po da estética, C arus indica que
a verdadeira pin tu ra é a capaz de captar os reflexos dessa unidade
do hom em com a natureza. Para conseguir isso, ele sugere o artista
seguir a introspecção: “Feche o olho de teu corpo para que possa
ver teu quadro inicialm ente pelo olho do espírito. C oloque então
em tua tela o que viste na obscuridade”32 (apud: A n d rad e, 2001,
p. 118). E para com pletar esse argum ento da p in tu ra carusiana
com o busca da representação do inconsciente, a noção de incons­

i2 Andrade (2001) nos lembra que esta é uma metáfora presente no próprio
mito do Édipo, que coloca a cegueira do olho físico cm Tirésias e, no final do mito, no
próprio Édipo, como forma de acesso ao mundo das forças divinas, ou seja, do incons­
ciente.

102 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


ciente é explicitada por ele exatamente como esta presença da na­
tureza no espirito hum ano: o “inconsciente é a expressão subjetiva
que designa o que objetivamente nós conhecemos sob o nome de
natureza” (apud: A ndrade, 2001, p. 116).
Suas obras de m aior interesse para a psicologia foram uma
série de conferências publicadas em 1830, em livro intitulado Con­
ferências sobre psicologia, ideias que mais tarde foram amadurecidas
no livro Psique — sobre o desenvolvimento da alma humana, publica­
do em 1846. Seis anos depois, em 1853, publicou A simbólica da
form a humana. Esses livros terão mais tarde enorme influência na
form ação de um pensam ento mais sistemático sobre o inconscien-
te, em Freud e Jung. Suas ideias principais são:

d) A fo rm u lação explícita da existência do inconsciente


( U nbewufitseins) com o in stân cia d o m in an te da alm a hum ana:
C arus form ula essa ideia claramente no livro de 1846:

“O prim eiro olhar sobre a nossa vida interior observa


que grande parte de nossa vida psíquica permanece no reino
do inconsciente. Se, em um m om ento preciso, estamos cons­
cientes apenas de algumas representações ( Vorstellungen)ynós
criam os, continuam ente, milhares de outras que são, estas,
com pletam ente inconscientes, desconhecidas para o m omen­
to mas cuja existência é reconhecida. Isto é portanto uma
indicação de que a m aior parte da vida psíquica permanece
na noite do inconsciente. Q uando retraçamos a evolução re-
marcável de um a ideia, podem os observar que a vida psíquica
pode ser com preendida e considerada como um grande rio,
pleno de sinuosidades, e iluminado pelo sol apenas durante
um a pequena parte de seu curso” (Carus, 1846, apud: A n­
drade, 2001, p. 120).

Para ilustrar de outra forma a dimensão inconsciente da psi­


que, C arus evoca outra analogia imagética: a da comparação de um
iceberg com um a catedral gótica. Ela nos chama a atenção pelas
altas e detalhadam ente ornam entadas agulhas brilhantes, mas so
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 103
pode alcançar aquela altura por ter alicerces profundos sob a terra,
no reino do inconsciente. _
b) A génese da consciência com o geradora da noção de bem
ou de mal: contornando o problema deixado por Schubert de um
inconsciente possuidor de duas essências (um a divina e outra dia­
bólica), que tinha um cunho moralista, C arus indica que a am bi­
valência moral não existe no inconsciente, posição mais tarde assu­
m ida de form a similar por Freud.
c) A diferenciação do inconsciente em instâncias conform e
a possibilidade de interação com a consciência: entre elas, existi­
ria um “inconsciente absoluto”, cujos conteúdos jam ais chegarão à
consciência, e que com andam toda a vida instintiva e os elem entos
com uns da evolução individual presentes em toda a espécie, e um
inconsciente relativo, que já se tornou consciente, mas que pode
tom ar-se inconsciente.
d ) A ligação do inconsciente com a totalidade do processo
hum ano e à dim ensão divina: pelo que cham ou de “lei da gene­
ralização”, é por meio do inconsciente que o indivíduo se liga ao
todo. D e forma semelhante, em sua concepção mística, é tam bém
por meio do inconsciente que cada hom em se liga à “fagulha di­
vina”. D aí que, no ato criador do artista ou intelectual, estes de­
vem reter no inconsciente as ideias de base de sua obra, em um
m ovim ento de retorno, que desenvolve, reforça, em beleza e au­
m enta a am plitude das representações e intuições criativas do in­
d ivíduo.
é) A associação do inconsciente com o fem inino e m aternal,
uma ideia mais tarde assum ida por Jung.
/ ) U m esboço da ideia de pulsão: no sono, há um m ergulho
da consciência no inconsciente, em um m ovim ento de regressão ao
núcleo pulsional (Keim u n d Trieb) original. A s transform ações so­
fridas nas representações neste m ergulho dependem da energia
psíquica (psychischen Energie) concentrada em cada um a delas. Essa
ideia, já esboçada nas “C onferências” de 1830, foi mais tarde assu­
m ida por Freud em seu modelo m etapsicológico económ ico.
g) O conteúdo dos sonhos com o expressão dos se n tim e n ­
tos inconscientes.

I 04 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


h) U m esboço da noção de defesa entre o consciente e o
inconsciente: o desaparecimento das representações do inconsciente
do sonho nos estados de vigília sc dá pela existência de um M véu
espiritual , como na deusa ísis, que deixa passar apenas poucas
representações.
0 A aplicação do m odelo metapsicológico” para fins tera­
pêuticos: esta noção já está esboçada na obra de 1846, mas será
m ais bem desenvolvida no livro de 1853. Carus indica que o reco­
nhecim ento das forças inconscientes da personalidade perm ite a
cada sujeito reelaborar seus conflitos, alcançar um a vida melhor,
mais rica, utilizando todas as suas potencialidades.
j ) A ideia d a form a corporal como expressão simbólica da
alm a hum an a e do divino: dada sua filiação à filosofia da natureza
de Schelling, de um a fusão e perfeita congruência entre a alma e o
corpo, C arus desenvolve em seu livro de 1853 que todas as partes
deste são vistas com o expressão simbólica das características da alma,
e po rtan to , passíveis de um a herm enêutica.33
C o m o o leitor com algum conhecim ento de psicanálise e psi­
cologia analítica poderá notar, C arus esboça, já no período entre
1830-1846, as principais noções que mais tarde serão apropriadas
pela psicanálise ou pela psicologia analítica, tais como:
— a de um aparelho psíquico, com suas regiões ou instâncias
do prim eiro modelo metapsicológico de Freud, com o inconsciente
e o sistem a pré-consciente/consciente, mediados pela censura aná­
loga ao véu de Ísis;
— a do m odelo económ ico, centrado na quantidade de ener­
gia psíquica associada a cada representação.
— a da dinâm ica e funcionam ento dos sonhos;

33 Neste ponto, Carus, embora a criticasse como uma teoria puramente intuiti­
va e limitada, esteve bastante próximo da concepção de frenologia desenvolvida parti­
cularmente por Franz Joseph Gall (1758-1828), médico alemão, por volta de 1800,
que buscava ver nas formas anatômicas humanas as características de personalidade,
até mesmo dos traços supostamente criminosos. Apesar do dedínio em sua credibilidade
no Final do século XIX, a frenologia criou as bases para as teorias eugènicas que
prosperaram e geraram tantos genocídios e práticas racistas e autoritárias no século
XX, tanto pelas formas mais extremas do nazismo, como timbém em formas menos
radicais nos Estados Unidos e países europeus ocidentais, particularmente na Es­
c a n d in á v ia .

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 105


— a do inconsciente coletivo de Jung, dada a sua similarida
de com a ideia carusiana da lei de generalização, que esboça a ideia
de um inconsciente cósmico;
— a do necessário retorno ao inconsciente como forma de
desenvolver e reforçar o ato criativo do artista ou do intelectual,
elemento presente tanto em Freud como em Jung;
— a intuição de processo psicoterapêutico, pelo reconheci­
m ento das forças inconscientes em si mesmo.
Apesar de todas as semelhanças em relação ao prim eiro m o­
delo metapsicológico formulado por Freud, faltaria a C arus a no ­
ção do conflito entre forças, que representou, de acordo com A n ­
drade (2001), a grande novidade e contribuição específica freudiana.
A ndrade cham a a atenção para as diferenças entre os dois autores
em suas bases ontológicas e epistemológicas, que tornam possível
com preender m elhor as bases do rom antism o alemão. Carus, na
linha indicada pela filosofia da natureza de Schelling, fusiona a
ciência à religião e à metafísica, e estabelece um m onism o ontoló­
gico que rejeita todo dualismo, uma vez que os opostos se fusiona­
riam e as antinomias se eliminariam. Nessa ontologia, a concepção
de um a dualidade dinâmica de forças opostas, com o na m etapsico-
logia freudiana, não poderia emergir. Segundo A ndrade, isso ta m ­
bém ajuda a explicar o reconhecim ento diferenciado da obra de
Carus por Freud e Jung, em seus escritos.34

34 Jung refcrc-sc explicitamente a Carus, como nos lembra Andrade (2001),


pelo menos quinze vezes cm seus escritos, rcconheccndo-o como o primeiro a estabe­
lecer uma filosofia explícita do inconsciente, lembrando que sua obra foi retomada
mais tarde por Karl Robert Eduard von Hartman (1842-1906), em sua livro  filosofia
do inconsciente, publicada pela primeira vez em 1869. Hartman, por sua vez, no prefácio
desta obra, reconhece a enorme influência de Carus para o seu pensamento. Freud, no
entanto, nio faz sequer uma referencia explícita a Carus, embora possuísse, cm sua
biblioteca particular, o livro de Hartman e os dois principais livros de Carus, edições de
1846 c 1853, respectivamente, com marcas e anotações, que foram examinadas com
cuidado por Andrade. Em sua avaliação da ausência de referência a Carus no texto
freudiano, ele levanta duas hipóteses interessantes: as possibilidades de aplicação de
algumas idéias de Cams no campo da eugenia, e o próprio terreno epistemológico no
qual Carus se situou, em sua tentativa monista de integrar ciência c pensamento
místico, ao passo que Freud, em um contexto de clara hegemonia positivista, fazia
questão explícita de mostrar sua filiação ao campo científico, tendo os dados da expe­
riência clinica como fonte.

106 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


5.3.6. O bservações finais sobre o romantismo alemão e suas
implicações no campo da subjetividade

C om o vimos particularnente na contextualização desta seção,


o rom antism o alemão constituiu um movimento filosófico e cultural
com plexo e variado, com vários grupos, tendências e mom entos
históricos diferenciados. Assim, qualquer tentativa séria de avaliação
global e sintética do movimento está fadado ao insucesso. Entretanto,
para efeito de fecham ento desse tem a neste texto, penso ser possível
indicar algumas linhas reflexivas sobre algumas de suas característi-
cas fundam entais, que nos permitam compreender um pouco melhor
a trajetória que fizemos, alguns dos significados de seus represen­
tantes aqui revisados, bem como os seus desdobram entos e contra­
posições históricas posteriores no cam po da subjetividade humana:

d) Momentos e atores mats significativos do movimento no campo


filosófico e literário: podem os considerar que o m ovim ento rom ânti­
co alemão teve m om entos e atores diferenciados. N esta caracteri­
zação, seguirem os as indicações que considero bastante equilibra­
das de L oureiro (2002), que avaliou cuidadosam ente a literatura
crítica do m ovim ento. Assim , entre seus principais m om entos e
atores, podem os destacar algumas ênfases particulares:
— O m ovim ento literário Sturm u n d Drang (tempestade e ím ­
peto), ocorrido pelos anos 1770-1780, contando com nomes como
Jacob M ichael R einhold L enz (1751-1792), Friedrich M aximilian
von Klinger (1752-1831), o jovem G oethe (antes da mudança para
W eim ar) e o jovem Schiller. A maioria dos comentadores, segundo
Loureiro, indica algum as características praticam ente consensuais:

“individualism o, revolta contra a hierarquia e a ordem social


vigentes, contestação da hegem onia francesa nas arte e cons-
tum e alemães, anticlassicismo, preocupação com a especifici­
dade do povo alem ão, culto exacerbado do sentim ento e da
originalidade, elogio da autenticidade, titanism o (exaltação
d o infinito), e naturism o (forte influência do pensam ento de
Rousseau) [. . .]. M as se fôssemos eleger um term o que m elhor
M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 107
representasse o espírito Sturner, o irracionalismo despontaria
como forte candidato” (Loureiro, 2002, p. 176).

Em síntese, o Sturm u n d Drang tem uma faceta predom inan­


te, segundo a autora, de um a ofensiva individualista, burguesa e
liberal contra o antigo regime aristocrata alemão.
— N o grupo de Jena, entre os quais se destacam Schlegel,
Novalis, T ieck, Schleierm acher e Schelling, tem os um período
marcante entre os anos de 1798 e 1806, antes da invasão napoleô-
nica. Segundo Loureiro (2002, pp. 186 e ss.), o grupo tem um a
cosmovisão idealista, mas universalista e cosmopolita, com um a
concepção universal do wE u ” que se volta para o todo, em um h o ri­
zonte am plo e aberto que busca a totalidade, onde não cabe a ca­
racterização de irracionalismo, pois ao mesm o tem po que valoriza
a intuição e o desejo de expressão, tam bém estimula o com edi­
m ento e o caráter autorreflexivo, filosófico, crítico e racional.
— Q uanto a G oethe, segundo Loureiro, particularm ente após
sua mudança para W eim ar em 1775, temos uma dificuldade enorm e
de alinham ento e caracterização. Em bora avalie que sua obra possa
ser incluída dentro do que denom inou mais globalm ente com o
“espírito rom ântico”, apresenta um caráter híbrido com o classicis
m o de W eimar, com suas características de “helenismo, h um anis­
mo, literatura universal, m oderação, equilíbrio formal, etc.” (L o u ­
reiro, 2002, p. 179). A inda segundo ela, G oethe, ao m esm o tem po
que pressupõe o Sturm und Drangy tam bém o dom ina.
— Após a dispersão do grupo de Jena, se form am vários ag ru ­
pam entos locais posteriores, que se espalham pelo território ale­
mão. A pesar da diferenciação entre os vários círculos baseados nas
principais cidades, a tendência predom inante, com o afirm am os,
foi de que a dom inação napoleônica estim ulou o nacionalism o, o
interesse conservador e m enos cosm opolita pelo passado alemão,
ao mesm o tem po que valorizou a cultura popular, a m itologia e os
estudos filológicos. E n tretan to , houve exceções, com o o grupo de
Berlim, que m anteve o universalismo do grupo de Jena.
b) Alguns traços adicionais do movimento romântico que tiveram
implicações posteriores importantes para o campo da subjetividade’, no
I 08 | Movimento romântico e implicações nas ideias psicológicas
decorrer desta seção sobre o romantismo alemão, já pudemos assinalar
as principais consequências que os mais notáveis autores do movi­
m ento tiveram para o campo da subjetividade. Entretanto, alguns
traços im portantes do m ovim ento ainda não puderam ser caracte-
rizados de m aneira mais conclusiva e de forma que deixasse mais
claro seus desdobram entos posteriores, o que faremos a seguir:
E m bora o rom antism o tenha como marca central a busca
do reencantam ento do m undo e a restituição de um a experiência
de plenitude e unidade, segundo Loureiro (2002, pp. 193 e ss.),
tem os algumas variações nesta ênfase: por um lado, havia posições
mais ou m enos céticas em relação à possibilidade efetiva de reuni­
ficação entre hom em e natureza, entre objeto e sua representação,
entre antigo e m oderno, etc. Por outro, posições mais confiantes,
que apostavam que os hiatos e rupturas podiam ser obturados. D e
qualquer form a, segundo G erd B ornheim , filósofo brasileiro estu­
dioso do rom antism o, falecido recentem ente, “o conflito entre a
limitação do real e a infinitude do ideal é constitutivo do movimento
rom ântico, e perm ite com preender o sentido da exigência de uni­
dade. [. . .] a reconquista da unidade, do infinito sempre distante,
determ ina a nostalgia rom ântica” (B ornheim , 2002, p. 92). Vimos
no início desta seção sobre o rom antism o, particularm ente pelos
trabalhos de Lõwy e Sayre, que o m ovim ento tem am pla inspira­
ção e várias dim ensões políticas e sociais, mas neste m om ento é
interessante tam bém retom ar sua significação mais especificamen-
te filosófica. Nesse sentido, podem os dizer tam bém , desta vez com
Schaeffer (1992, p. 89), outro expoente no estudo do rom antism o
alemão, que não só os rom ânticos, mas tam bém os pensadores do
idealism o objetivo, com o H egel, têm como alvo com um a crítica e
a superação de K ant, em seu m ovim ento de trancafiar a ontologia e
de ter tornado inacessível à especulação filosófica o acesso ao ser. As
saídas rom ântica e hegeliana repõem em voga os grandes sistemas
m etafísicos, em direções diferenciadas: a prim eira retom a as con­
cepções m onistas anteriores do universo (como em Plotáno, B õh-
m e, L eibniz e Spinoza), reinterpretando-as em um a perspectiva
subjetivista; a segunda busca a unidade de forma mais com plexa e
universalista, pela perspectiva histórica e racionalista. E n tretan to ,
M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 109
há claramente um elem ento comum subjacente: a busca de uma
unidade e reunificação ontológica do m undo. O s rom ânticos ten­
dem a buscá-la por meio de um acesso subjetivo, intuitivo, místico
ou poético aos mistérios do ser, perspectiva que terá mais tarde
um a relativa linha de continuidade nos trabalhos de Jung, ao passo
que Freuc tom ará um a direção mais cética, de um a contradição e
clivagem insolúvel na psique hum ana. Por sua vez, em H egel, te­
mos a busca de um a realização final do Espírito A bsoluto no d e­
senrolar dialético e gradual da Razão na própria história real, tam ­
bém com forte dim ensão política, centrada no desejo de realização
da liberdade e da emancipação racional do ser hum ano nas insti­
tuições concretas da sociedade e do Estado. E de nossa parte, p o ­
dem os nos perguntar, na linha de interpretação de Lõwy, se a p o ­
derosa força dessa problemática expressa no rom antism o não estende
ainda seus tentáculos tam bém sobre M arx — apesar de todo o seu
esforço ds evitar o idealismo filosófico — , em sua projeção de um a
emancipação com pleta do gênero hum ano no futuro com unista,
particularm ente nos escritos da década de 1840, com enorm es
implicações para o cam po da subjetividade hum ana. E ntretanto,
esse será assunto apenas para o próxim o volume desta coletânea,
quando poderemos desenvolver com mais liberdade esta discussão.
— A defesa de ideias rom ânticas mais ortodoxas de um a co n ­
cepção inteiram ente m onista do ser, de um a integração direta entre
todas as esferas da existência hum ana e a natureza, e de um a liga­
ção linear entre pensam ento/cognição e corpo, sem dúvida alguma,
favoreceu o desenvolvim ento das teorias frenológicas35 e eugê-
55 A frenologia defendia a ideia de que cada faculdade mental se localizaria em
uma parte específica do córtex cerebral, e o tamanho de cada uma dessas partes seria
diretamente proporcional ao desenvolvimento da faculdade correspondente. Assim, o
exame externo da forma c tamanho de cada parte externa do crânio seria indicativo das
faculdades mentais do indivíduo, bem como de eventuais propensões para patologias e
crimes. As práticas derivadas de tais ideias eram claramcnte etnocêntricas e racistas,
gerando verdadeiras ondas de exames em massa em populações inteiras, para demonstrar
as “capacidades cranianas” de diferentes grupos étnicos e sociais. Para uma análise
histórica da difusão da ideia frenológica na Inglaterra e no resto da Europa no século
XIX, sugiro a leitura das obras de Scull (1981) e de Kcmp & Wallace (2000). O tema
da freno logia vai merecer uma discussão mais aprofundada nos próximos volumes,
dada a descoberta, já no processo de revisão do presente volume, de indícios de uma
relativa influência destas ideias em Marx, Engels c demais exilados alemães em Lon­
dres, na década de 1850.

I I O | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


nicas36 e sua difusão mais ampla na cultura europeia e norte-am e­
ricana durante o século XIX, com suas claras implicações racistas e
genocidas. Teorias similares já tinham sido sistematizadas desde a
G récia Clássica, como no tratado De Physiognomia, atribuído a Aris-
tóteles (K em p Sc W allace, 2000, p. 94 e ss.), que serviu de refe­
rência para inúm eros outros trabalhos na Idade M édia e Clássica,
incluindo os estudos de desenho de Leonardo da Vinci. E n tretan ­
to, foi no século XIX, no contexto da expansão do capitalismo e da
crescente urbanização da população, com seus complexos proble­
mas associados à exploração do trabalho e à miséria crescente, que
tais ideias foram formuladas de m aneira mais sistemática, como
estratégia de individualização e naturalização dos antagonismos
sociais e étnicos e de moralização das classes populares, considera­
das com o “perigosas” portadoras de males hereditários.
— Por outro lado, é im portante relembrar que, com Schubert
e C am s, a m edicina e psicologia filosófica rom ântica alemã conse­
guiram form ular um esboço m uito claro das ideias de um aparelho
psíquico, do inconsciente, de pulsão e de defesa, que mais tarde
desaguaram na psicanálise de F reu d e n a psicologia analítica de
Ju n g , com todos os seus desdobram entos no campo da subjetivida­
de hum ana. Este m e parece constituir o que cham ei anteriorm ente
de efeito paradoxal das condições sociais e políticas que d eter­
m inaram a em ergência do rom antism o, particularm ente em sua
versão alemã. Por um lado, a autocracia política alemã do período
determ inou a im possibilidade de investir os impulsos renovadores
do psiquism o na vida política e social concreta, particularm ente
tendo em vista o clim a de agitação ilum inista e revolucionária na
vizin h a F rança, provocando o que identificam os com o a forte
34 As ideias eugênicas foram expressas de forma mais sistemática logo após a
publicação da teoria da seleção natural e da hereditariedade de Darwin, particular­
mente pelo inglês Francis G alton, meio-primo de Darwin, em seu livro Hereditary
genius, publicado em 1869. O movimento cugcnico pregava que os traços psíquicos e
morais dos indivíduos eram repassados de geração a geração pela hereditariedade, e
portanto a eventual superioridade da civilização ariana europeia teria fundamento
biológico, gerando políticas explícitas de discriminação racial até o genocídio em mas­
sa, como no caso dos judeus executados pelo nazismo alemão. Além dissu, a origem dos
problemas sociocconòmicos e morais da população não estariam na organização social,
mas eram atribuídos aos próprios indivíduos, provocando um processo de individualização
e naturalização da miséria e da pobreza, bem como das diferenças interétnicas.

M ovim ento romântico e implicações nas ideias psicológicas | 111


tendência ao idealismo, ao misticismo e à metafísica que marcou o
rom antism o alemão, com o avaliou com propriedade Lukács a res­
peito do contexto de G oethe. N o entanto, nos reduzir apenas a
essa análise significaria desqualificar as possibilidades que o ro ­
m antism o abriu no cam po propriam ente psicológico, criando as
condições para um forte investimento na investigação dos fenôm e­
nos psíquicos mais profundos e possibilitando a em ergência, no
cam po da literatura, da filosofia e da história das ideias psicológi­
cas, de autores e obras que realizaram um enorm e avanço na explo­
ração e sistem atização da psique humana, particularm ente dos p ro ­
cessos inconscientes.37
— Portanto, podem os dizer claram ente que no tem p o de
M arx, as ideias de um aparelho psíquico e do inconsciente já eram
correntes na sociedade alemã, e de certa m aneira fizeram parte da
form ação e da cultura difusa em que M arx viveu. Sabem os que
ele valorizou a cultura e a trajetória rom ânticas na juventude, te n ­
tando construir um projeto pessoal de vida com o poeta e escritor
de teatro. A passagem para um a visão de m undo antirrom ântica e
racionalista se iniciou em 1837, durante seu curso universitário,
com forte crise pessoal. C o ntudo, esse tem a só será explorado nos
volumes dedicados a tem as de caráter mais biográfico, com avalia­
ção mais acurada do im pacto e da significação do pensam ento e da
psicologia rom ânticas em sua vida.
A ssim , tendo exposto estas últim as características do m vi-
m ento rom ântico, considero encerrada esta seção e convido o leitor
para passar ao próxim o tópico, sobre o pensam ento racionalista e
universalista de H egel.

J' Neste ponto do nosso estudo, não temos ainda todos os elementos históricos c
teóricos que permitam avaliar melhor as características desse efeito paradoxal c suas
implicações no campo das ideias psicológicas, tema que será mais bem sistematizado
no próximo volume.

I I 2 | M ovimento romântico e implicações nas ideias psicológicas


Capítulo 6
A contraposição racionalista e
dialética: as ideias psicológicas
na obra de Hegel

6.1. Advertências metodológicas preliminares

A tarefa de m apear qualquer elem ento particular em obra


tão com plexa com o a de H egel, centrada na totalidade e na im por­
tância do sujeito percorrer toda a sua trajetória para compreender o
m ovim ento interno de seus conceitos, já a constitui como um ob­
jeto de estudo extrem am ente com plicado e longo. Hegel produziu
um a das obras mais difíceis e complexas da história da filosofia
ocidental, e seu estilo e linguagem são extremam ente intricados,
cheios de nuanças, sem contar as dificuldades de sua tradução em
outras línguas,1 levando a que sua com preensão, na seriedade e
rigor que m erecem , encerre, com o indica M enezes, um de seus
principais tradutores e intérpretes para o português, um a verda­
deira arm adilha: “ninguém consegue captá-lo sem se fazer, enquanto
o estuda, hegeliano tam bém , ao refazer em si mesmo o movimento
do conceito hegeliano” (M enezes, 2003, p. 8). D aí, segundo M e­
nezes, as constantes leituras apressadas e m al-entendidas, incapa­
zes da captar as sutilezas de seu pensam ento.*2

'• Segundo Inwood, autor do Dicionário Hegel, “as complexidades do alemão de


Hegel são difíceis para deslindar para os que falam a língua alem*. Mat as dificuldades
são multiplicadas para os que falam outras línguas” (Inwood, 1997, p. 28).
2 Daí, para o leitor interessado, mas não familiarizado com o texto hegeliano, a
importância de se iniciar primeiro com textos explicativos e de introdução ao seu
pensamento. Assim, antes de se adentrar nos textos originais, sugiro percorrer as obras
introdutórias de seus principais sistematizadores franceses, Kojève (2002) e Hyppolite
(1971 e 1974), sem deixar de lembrar dos principais estudiosos brasileiros sobre sua
obra e legado, como o saudoso Padre Vaz (1981, 1982 e 2002), Aiantes (1980) e

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 113


Além disso, cabe assinalar o meu desconhecim ento d e estu­
dos mais sistemáticos, pelo menos em português, do co n ju n to das
ideias psicológicas de Hegel. Sabemos da im portância, p o r exem­
plo, que a Fenomenologia do espírito, de 1807, particularm ente da
seção sobre a dialética do senhorio e da escravidão, teve p ara a obra
do psicanalista francês Jacques Lacan, mas não pude identificar
estudos mais sistemáticos sobre o conjunto da obra hegeliana, par­
ticularm ente que incluísse a Enciclopédia das Ciências Psicológicas,
de 1830, que me parece tam bém extrem am ente relevante. Assim,
a pretensão de produzir uma m odesta seção de revisão com o esta,
da form a que é possível no contexto deste trabalho mais am plo, ou
seja, em um a releitura de alguns de seus textos originais m as sem
disponibilidade d e tem po maior, que perm itisse sua sedim entação
e a necessária interlocução com estudiosos do cam po, m e parece
irrem ediavelm ente fadada à superficialidade. N essa direção, a ati­
tude mais coerente seria negar a sua realização.
E ntretan to , sabemos da relação fundam ental de M arx com a
obra e a dialética hegelianas, e a negação de fazê-lo im plicaria dei­
xar de ilum inar um aspecto fundam ental da obra m arxiana. As
ideias psicológicas e no cam po da subjetividade de M arx, que já
tivemos a oportunidade de revisar com base nas fontes marxianas
prim árias, no volum e anterior, têm profundas raízes no pensam en­
to de seu predecessor, de forma am plam ente reconhecida pelo p ró ­
prio M arx e por teóricos marxistas de peso, com o pudem os co n sta­
tar naquele m om ento. Resta então a enorm e tarefa, d en tro do
presente volume, de considerar no pensam ento hegeliano outros
elementos que porventura não foram reconhecidos ou indicados
explicitamente p o r M arx, mas sobre os quais poderíam os levantar
hipóteses de presenças, ausências, contraposições, rupturas e pontos
de corte significativos em suas ideias psicológicas, e que nos ajuda­
riam a interpretar m elhor suas concepções sobre os fenôm enos da
subjetividade hum ana e seus dilemas pessoais e biográficos.
Menezes (1992 e 2003), este último o tradutor de seus principais livros para o portu­
guês, no Brasil. Para uma perspectiva mais sócio-histórica ao seu pensamento filosófi­
co, sugiro também o livro de Marcuse (1969). Além disso, recomendo tam bém o
Dicionário Hegel, elaborado por Inwood (1997), que, apesar de limitado, permite uma
entrada na obra desse autor a partir de suas principais categorias e conceitos específicos.

I 14 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


A ssim , penso que não há outra opção senão correr o risco
indicado acima e buscar produzir a presente seção, da melhor m a­
neira possível e nas condições de trabalho que tenho para conduzir
a presente investigação, reconhecendo suas limitações e o seu cará­
ter provisório, com o um a prim eira aproximação a indicações analí­
ticas que m erecerão certam ente estudos mais aprofundados e rigo­
rosos no futuro.

6.2. Algumas notas introdutórias sobre a relação


entre a vida e a obra de Hegel, e o campo das ideias
psicológicas

A prim eira observação que nos cabe constatar aqui é que a


obra de H egel é polissêm ica e apresenta várias “camadas” de cons­
trução ou de significação, em relação aos diversos campos de co­
nhecim ento, da form a com o os vemos a partir do século XX. A s­
sim , em sua obra, podem os constatar as contribuições em várias
direções:

d) no cam po filosófico, se destacam várias linhas de aportes


fundam entais, mas gostaria de destacar as seguintes principais:
— no cam po da lógica, em que H egel é sem dúvida alguma o
principal autor da lógica dialética m oderna, já que os conceitos
operados sem pre seguem um a rigorosa estrutura dinâmica dos vá­
rios m ovim entos e m om entos do processo dialético;
— no cam po da filosofia do conhecim ento, se destaca a Fe-
nomenologia, um a vez que descreve um a longa trajetória de busca
do conhecim ento de si e do m undo, na busca de um a objetividade
superior e de um a universalidade efetiva;
— no cam po da antropologia filosófica ou da ontologia, ou
seja, no terreno da concepção de ser hum ano e de sua relação com
os seres e objetos da natureza, com a própria história e a cultura,
reú n e conhecim entos de todos os campos que hoje são particulari­
zados nas ciências hum ans e sociais.
b) A ssim , da m esm a form a em que até a prim eira m etade do
século X IX toda a reflexão sobre as várias dimensões dos fenôm enos
Ideias psicológicas na obra de Hegel | I I 5
hum anos e sociais estava subsumida ao campo filosófico, podem os
afirmar que a obra de H egel apresenta enorm es contribuições para
os diversos cam pos das ciências hum anas e sociais. N este vasto
terreno, gostaria de salientar duas áreas específicas de interesse par­
ticular para este trabalho:
— a prim eira é o cam po sócio-histórico, político e ético,
um a vez que em H egel há tam bém um a vasta reflexão histórica
explícita, que busca conhecer as condições para um a eticidade no
campo social e político, como por exemplo em sua Filosofia do direito\
— a segunda é constituída pelo próprio cam po psicológico.
H á duas direções claras de sua produção nesse sentido. U m a delas
está na Fenomenologia, pelo fato de que a trajetória de busca de um
conhecim ento hum ano mais efetivo significa tam bém e necessaria­
m ente um processo de autorreconhecim ento e form ação do filóso­
fo ou sujeito do conhecim ento, no sentido m esm o de um a Bi!dung}
como inaugurado por G oethe, mas enriquecido com profundas
ampliações na caracterização dos processos subjetivos envolvidos,
com alcance universal, como iremos exemplificar a seguir. A segun­
da está na Enciclopédia, em que a preocupação é ainda mais univer­
sal, no sentido de sistem atizar e com entar criticam entc as ideias
psicológicas existentes, bem como expor suas próprias.
O term o exemplificar usado no últim o item logo acima não
foi aleatório, e penso ser im portante explicar a razão. O texto hege-
liano é extrem am ente rico, complexo e essencialm ente aberto a
novas interpretações, e p o rtan to penso ser im possível qualquer
pretensão de esgotar as várias características e possibilidades de sua
significação, m esm o quando nos lim itam os a apenas um a dessas
camadas.
D o exposto acima, as obras de H egel que me parecem mais
relevantes para o cam po das ideias psicológicas, na linha tem ática
que estamos expondo aqui, são a Fenomenologia do espírito e a E n ­
ciclopédia das ciências filosóficas, particularm ente seu to m o III (“A
filosofia do espírito”), em sua prim eira seção. Estas serão as obras
visitadas nas próximas seções.
E ntretanto, antes disso, cabe ainda destacar alguns elem entos
biográficos de H egel que m e parecem extrem am ente relevantes
I I 6 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
para a com preensão de sua contribuição teórica neste cam po, e que
serão tam bém fundam entais para entender mais tarde, nos próxi­
mos volum es, o processo de apropriação de suas ideias por M arx.
O próprio H egel viveu fases de crise psicológica, e isso trans­
parece em seus prim eiros escritos e nos indícios biográficos a que
tem os acesso.3 Sua mãe faleceu quando tinha treze anos, e seu pai,
funcionário ligado ao D ucado de W urtem berg, desejou para ele a
carreira de pastor protestante, encam inhando-o a um seminário
em T iibingen. Esse período, ao contrário, possibilitou o contato
com o pensam ento crítico de sua época, inspirado em K ant e R ous­
seau, e um claro questionam ento do cristianism o. N essa fase, asso­
ciou a religião com o despotism o vigente no país, projetando um a
radical crítica à tutela realizada pelas instituições e pelo E stado e
visualizando a possibilidade da realização de um m undo ideal a
p artir das concepções subjetivas do sujeito.4 Essa insistência na
liberdade individual radical era acom panhada de forte separação
da vida ordinária, de isolam ento pessoal, de estranham ento com o
m undo, e proxim idade com a natureza. Essa perspectiva era coe­
rente com a atm osfera rom ântica do contexto germ ânico do final
do século X V III, mas ainda estava m arcada po r um com ponente
fortem ente classicista, que difundia um a convicção de que teria
havido um m undo em que o hom em chegara a viver em harm onia
e unidade, o m undo da cultura grega clássica. Essa visão estava
presente de certa m aneira em G o eth e, mas tam bém em Schiller e
especialm ente em H õlderlin e Schelling, dois amigos pessoais de
H egel na época.

} Para uma introdução à biografia dc Hegcl, recomendo os seguintes autores:


Taylor (1975), Plant (1973), e particularmente, para os aspectos relacionados à esfera
dc sua vida subjetiva, ver Kaufmann (1965), que assinala os sinais da crise de Hegel a
partir de sua correspondência com Schiller, e o capítulo de Seigel (1993) dedicado a
Hegcl.
4 “A primeira ideia 6 naturalmente a concepção do «eu mesmo», como um ser
absolutamente livre. Juntamente com o ser livre e autoconsciente, um mundo inteiro
se avança a partir do nada — a única, verdadeira e pensável criação a partir do nada”.
O resultado seria então a “absoluta literdade de todos os seres espirituais, aqueles que
carregam o mundo intelermal em si mesmos c que nlo piocuram nem Deus nem a
im ortalidade fora de si mesmos” (Hegel. Erstes Systemprogramm des Deutschen
idealismus. In: Johannes Hoffmeister (ed.). Dokumente su Hegels Entv:icklung, Stuttgart,
1936, apud: Seigel, pp. 21-2).

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 117


Segundo a análise dessa trajetória sistematizada p o r Kauf-
mann (1965) e Seigel (1993), essa visão está claramente exposta
em Cartas sobre a educação estética do homem, publicada por Schiller
em 1794. C ontudo, neste autor, essa concepção não é apenas nos­
tálgica, mas projetada na evolução histórica hum ana, um a vez que
a harmonia grega clássica precisou ser quebrada para progredir para
níveis mais altos de conhecim ento e conquista, reconstituindo no
futuro a harm onia em nível mais elevado, que assimilaria a diversi­
dade pós-clássica.
Nos escritos de 1796, H egel projetava um a reform a da filoso­
fia que partia dessa concepção da liberdade e autoconsciência hum a­
na do sujeito, e que visava a restauração dessa unidade, com base
em um a arte poética que poderia ensinar o cam inho filosófico de
uma liberdade autoconsciente, m ediante um a nova m itologia. D e
acordo com Seigel, os escritos dessa época transitavam facilm ente
destas ideias exaltadas da liberdade individual e do futuro, para
uma forte e temerosa ansiedade, ou mesm o depressão,5 o que parece
ter inspirado H egel em seus escritos posteriores da Enciclopédia sobre
o estado de hipocondria da juventude, que serão descritos à frente,
nos quais “coisas esplendorosas brilham em todo lugar, mas próximas
a abismos” (Hegel, apud: Seigel, 1993, p. 23). O s indícios existentes,
de acordo com Seigel e K aufm ann, apontam que este período de
isolamento, solidão e im produtividade intelectual duro u cerca de
dois anos, até o final de 1799, quando um pequeno m anuscrito de
Hegel se inicia com a declaração de que os dois lados de um a contradi­
ção crescente estavam se aproximando um do outro, sendo estes lados
representados por dois tipos de homens: os que vivem vidas ativas
mas que desejam algo desconhecido para além dos limites d e suas vi­
das, e os que elaboraram a ideia da natureza em si m esm os, mas que
não possuem um a forma de vida real que corresponda a esta visão.6

5 Kaufmann (1965, p. 306) cita uma carta dc Schelling a Hcgcl, datada de 20-
-6-1876, em que o primeiro faz comentários à indecisão e depressão de Hegel. A carta
original deste último, a que Schelling responde, foi perdida.
6 “A necessidade dos primeiros de conquistar a consciência do que os mantêm
aprisionados, e seu desejo de receberem o desconhecido, corresponde à necessidade dos
segjndos de partir de suas ideias para dentro dc suas vidas” (manuscrito de Hcgcl pu­
blicado pela primeira vez em Hegel Leben por Karl Rosenkranz, apud: Seigel, 1993, p. 25).

I I 8 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


Assim , segundo Seigel (1993, p. 25), “a necessidade de procurar
cam inho para sua vida no m undo existente dissolveu a determ ina­
ção de H egel de se m anter separado do m undo”. Esse processo de
reconciliação no plano pessoal e filosófico tem um a faceta histórica
concreta: a possibilidade de transform ar o m undo social e político,
que acontecia no país vizinho, processo aberto pela Revolução Fran­
cesa, m ostrava que a dinâm ica de desenvolvimento interno da pró­
pria história criava as condições de superação das situações particu­
lares, em direção à universalidade.
E ntretanto, tam bém de acordo com Kaufmann e Seigel, Hegel
ainda faria referências a este sentim ento de separação do m undo e
de hipocondria como durando até a idade de trinta e seis anos, quando
escreveu a Fenomenologia do espírito. Um pouco mais tarde, em car­
ta para a sua esposa datada de 1811, logo após o casamento, aos
quarenta anos, relata que a via com o “uma cura e transformação em
sua m ente de qualquer resíduo de ceticismo em contentam ento”, e
com o “reconciliação de m inha verdadeira natureza interior com o
m odo que eu sou” (apud: Seigel, p. 27).
A ntes de term in ar esta seção de notas introdutórias, é im por­
tante indicar que o tem a, na trajetória do presente trabalho, apre­
senta especial relevância. E m prim eiro lugar, porque m ostra e rei­
tera a relação ín tim a entre a vida subjetiva de H egel e suas ideias e
produção intelectual, um a das linhas fundam entais que tam bém
estamos explorando nesta coletânea em relação a M arx. Em segundo,
e de form a similar, porque reitera a im portância das crises pessoais,
com seu forte com ponente subjetivo, como um ponto nodal para a
com preensão das decisões tom adas nas encruzilhadas existenciais e
políticas, pelas grandes lideranças da história do pensam ento. E
em terceiro lugar, p o r revelar os traços de rom antism o que ainda
sobrevivem no universo intelectual de Hegel. Se po r um lado seu
racionalism o historicista e universalista tem visível com ponente
antirrom ântico, sua im agem da possibilidade de realização últim a
da Razão na história ainda m ostra a presença de claro com ponente
rom ântico de unidade e reconciliação em seu pensam ento, m esm o
que projetado para o final do desenvolvimento histórico. A ssim ,
concluídas essas notas, acredito que temos agora plena condição de
Ideias psicológicas na obra de Hegel | 119
iniciar a descrição de algumas de suas principais ideias presentes
em sua obra mais im portante, a Fenomenologia do espírito.

6.3. A F e n o m e n o lo g ia d o espírito

Esta obra de H egel foi publicada pela prim eira vez em 1807,
quando tinha trinta e sete anos, após seis anos de sua chegada a
Jena, em cuja universidade passa a lecionar ao lado de im portantes
filósofos românticos, e um ano depois da tom ada napoleônica da
cidade, que acom panhara com entusiasm o. O livro constitui sua
principal e mais sistem ática entrada no cam po filosófico, tendo
com o objetivo claro de se posicionar e se confrontar com os g ran ­
des autores alemães de referência em filosofia na época, com o Kant,
Fichte e Schelling. A té então, tinha publicado pequenos artigos e
trabalhos, de m aior relevância no cam po social e político, que, em ­
bora sejam im portantes de um ponto de vista mais próxim o da
perspectiva sócio-histórica,7 tinham m enor estatuto no cam po es-
pecificamente filosófico.
Em uma prim eira aproximação, podem os dizer que a obra
tem profunda significação histórica e política, na defesa do racio-
nalismo e da tradição ilum inista não só para todo o O cidente, mas
tam bém e particularm ente para um a sociedade alemã tão atrasada
e dom inada pelo obscurantism o e particularism o m onárquico, e
que convivia com a servidão. Nessa direção, busca em prim eiro
lugar um a reposição do prim ado da razão ante os ataques dos em -
piristas, que lim itaram o ser hum ano ao que é dado, p o r privilegi­
arem como fonte do conhecim ento apenas a fragm entação da ex­
periência sensível, im possibilitando fundam entos mais seguros para
um a ordem social em bases racionais e universais.8 E n tretan to , o
problem a se p u n h a tam bém na tradição alem ã, em relação aos ro ­
m ânticos (como Schelling, com o qual o ro m p im en to é assinalado
no prefácio do livro), mas principalm ente em relação a K ant.

7 Para uma visão introdutória das primeiras obras dc Hegel, sugiro a leitura d
já indicado livro de Marcuse (1969), bem como o de Honneth (2003), outro autor da
Escola dc Frankfurt, mas dc uma geração mais tardia que a de Marcuse.
H Na Fenomenologia, a crítica ao em pirismo está concentrada no capítulo V
(“Certeza e verdade da razão”).

I 20 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


Para o Padre Vaz(1921-2002), sem dúvida o mais sistemático
intérprete de sua obra entre nós, brasileiros, essa obra deve ser en ­
tendida principalm ente como resposta à aporia explicitada por Kant
na Crítica da raxão práticay no contexto de idealismo alemão, de
um a cisão entre a ciência do m undo como fenômeno, obra do E n ­
tendim ento, e o conhecim ento do absoluto ou do incondicionado
— da coisa-em -si — que permanece como ideal da Razão” (Vaz,
2002, p. 14). K ant, em sua crítica da metafísica, impossibilitara
um a ciência do m undo, colocando-a no dom ínio da razão prática,
que envolvia a subjetividade do sujeito do conhecim ento. Assim,

“com a Fenom enologia do Espírito, H egel pretende situar-se


para além dos term os da aporia kantiana,9 designando-a como
m om ento abstrato de um processo histórico-dialético desen­
cadeado pela própria situação de um sujeito que é fenômeno
para si m esm o por portador de uma ciência que aparece a si
m esm a no próprio ato em que faz face ao aparecim ento de
um objeto no horizonte de seu saber. E m outras palavras,
H egel in ten ta m ostrar que a fundam entação absoluta do sa­
ber é resultado de um a génese ou de um a história cujas vicis­
situdes são assinaladas, no plano da aparição ou do fenômeno
ao qual tem acesso o olhar d o Filósofo (ou para nós na term i­
nologia hegeliana) pelas oposições sucessivas e dialeticamente
articuladas entre a certeza do sujeito e a verdade do objeto”
(Vaz, 2002, p. 14).

N essa trajetória, H cgel te n ta m ostrar que a abstração operada


pelas ciências naturais, em que o objeto aparece em -si, sem histó­
ria, constitui apenas um m o m en to de um processo que tam bém
coloca o sujeito do conhecim ento para si mesmo como fenôm eno e
enigm a a ser tam bém decifrado, dissolvendo as certezas com que o
sujeito te n ta fixar seu próprio objeto e a si mesmo:

“A partir daí, o movimento dialédeo da Fenomenologia pros­


segue com o aprofundam ento dessa situação histórico-dialética *

* No livro, a crítica a Kant também se encontra principalmente no capítulo V.

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 121


de um sujeito que é fenôm eno para si m esm o no próprio ato
em que constrói o saber de um objeto que aparece no h o ri­
zonte de suas experiências. Assim, Hegel transfere para o p ró ­
prio coração do sujeito — para o seu saber — a condição de
fenômeno que K ant cindira à esfera d o objeto” (Vaz, 2002,
P. 14).

Após essa rápida introdução, penso que podem os exem plifi­


car então, de forma muito sintética, alguns dos elementos e temáticas
da obra que considero mais im portantes para o cam po das ideias
psicológicas. A apresentação incluirá aqui alguns trechos curtos
mas chaves da obra,10 sem o recurso de apresentá-los em nota de
rodapé, como forma de evidenciar a fidelidade ao pensam ento o ri­
ginal do autor e de perm itir ao leitor um breve acesso ao estilo
majestoso do discurso hegeliano. N o entanto, buscará fazê-lo de
uma forma o mais didática possível, e tentando fazer um esforço
de manter a sequência temática original de sua em ergência no texto:

a) H egel apresenta um a concepção in teiram en te dialética


do ser, tanto como objeto com o sujeito, ou seja, com o m ovim ento
contínuo de afirmação, negação, suprassunção e nova afirm ação, e
que desvanece qualquer pretensão de sua apreensão na sua im edia-
ticidade e em uma tom ada isolada de seus m om entos, e que só
pode ser efetivamente conhecido na finalização de todo o processo,
na totalidade de suas experiências e determinações:

“Vemos, pois, nesse indicar só um m ovim ento e o seu


curso — que é o seguinte:
“1) indico o agora, que é afirm ado com o verdadeiro;
mas o indico com o o-que-já-foi, ou com o um suprassum ido.
Suprassumido com a prim eira verdade, e:
w2) agora afirmo com o segunda verdade o que ele foi>
que está suprassumido.

10 Nas citações da Fenomenologia, o uso de colchetes significa inclusão de trcchoj


pelo próprio Menezes, principal tradutor da edição em português que utilizo, para
acrescentar referencias que se tornam chaves para sua compreensão.

122 Ideias psicológicas na obra de Hegel


“3) M as o-que-foi não é. Suprassum o o ser-que-foi ou
o ser-suprassum ido — a segunda verdade; nego com o isso a
negação do agora e retorno à prim eira afirm ação de que o
agora é ” (H egel, 1807/2002: par. 107, p. 91; ênfases do tex­
to original).

“É isso o m ovim ento da consciência, e nesse m ovim ento


ela é a totalidade de seus m om entos. A consciência deve igual­
m ente relacionar-se com o objeto segundo de suas d eterm i­
nações, e deve tê-lo apreendido conform e cada um a delas.
Essa totalidade de suas determ inações faz do objeto em si a
essência espiritual; e isso ele se torna em verdade para a cons­
ciência, m ediante o apreender de cada determ inação sua sin­
gular com o o Si, ou pelo relacionam ento para com elas, acima
m encionado” (Ibidem , par. 788, pp. 530-1).

b) O au to r indica na Fenomenologia um conceito de força


que já esboça, em term os psicanalíticos contem porâneos, um a n o ­
ção energética ou económ ica da dinâm ica psíquica, e que a m eu ver
tem algum a sim ilaridade com a noção de pulsão:

“Pois esse m ovim ento é aquilo que se cham a força. U m


de seus m om entos, a saber, a força com o expansão das «m até­
rias» indep en d en tes de seu ser é sua exteriorização; porém a
força com o o ser-desvanecido dessas «matérias» é a força que,
de sua exteriorização, foi recalcada sobre si, ou aforça propria­
mente dita. M as em prim eiro lugar, a força recalcada sobre si
tem de exteriorizar-se; e em segundo lugar, na exteriorização
ela é ta n to força em -si m esm a essente, quan to exteriorização
nesse ser-em -si-m esm o ” (Ibidem , par. 136, p. 110; ênfase do
texto original).

c) H egel tam b ém esboça um a noção bastante clara d o fu n ­


cio n am en to do que hoje a psicanálise de Lacan cham a de im ag i­
nário, ao considerar a função d o devaneio com o p reen ch im en to do
vazio do ser. E m m in h a opinião, este conceito será fu n d am e n tal

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 1 2 3


p a ra a concepção de alienação religiosa de Feuerbach. Este concei­
to tam b ém vem sendo desdobrado em vários campos das ciências
sociais e da psicossociologia, e um a das im portantes apropriações, a
m e u ver, está na filosofia social de C astoriadis (1982):

“Se nada mais houvesse a fazer com o interior e o ser-


-co n clu íd o -ju n to com ele através do fenôm eno, som ente res­
taria ater-se ao fenôm eno, isto é: tom ar por verdadeiro algo
q ue sabem os não ser verdadeiro [para preencher este vazio].
U m vazio que veio a ser, prim eiro, com o o esvaziam ento das
coisas objetivas, mas que sendo esvaziamento em si deve ser
to m ad o com o esvaziam ento de todas as relações espirituais e
diferenças da consciência com o consciência. Para que haja
algo nesse vazio total, que tam bém se denom ina sagrado, há
que preen ch ê-lo , ao m enos com devaneios: fenômenos que a
p ró p ria consciência para si produz” (Ibidem , par. 145, p. 117-
-8 ; ênfase d o texto original).

d) U m a co n ce p ção do sab er e da su b jetiv id ad e h u m a n a


c o m o u m p rocesso in teg ralm en te intersubjetivo, na relação com
a a lte rid a d e :

“a conciência-de-si só alcança sua satisfação em uma outra cons-


ciência-de-si [. . .] Porém o objeto da consciência-de-si é tam ­
b ém in d ep en d en te nessa negatividade de si m esm o e assim é,
para si m esm o, gênero, universal fluidez na peculiaridade de
sua distinção: é um a consciência-de-si viva” (Ibidem , par. 175-
-6 , p. 1 4 1 -2 ; ênfase do texto original).

é) U m a concepção de que a consciência e o agir h u m an o s,


n a relação in tersu b jetiv a, são essencialm ente desejo, o que, dada
a in d e p en d ên cia dos sujeitos, estabelece um a relação de co n flito
e s tr u tu ra l:

“D e fato, a essência do desejo é um O u tro que a consciên-


cia-d e-si; e através de tal experiência essa verdade v eio-a-ser
para a consciência. Porém , ao m esm o tem po, a consciência-
I 24 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
-de-si é tam bém absolutam ente para si, e isso som ente através
do suprassum ir do objeto; suprassum ir que deve tornar-se
para a consciência-se-si sua satisfação, pois ela é a sua verdade.
E m razão da independência do objeto, a consciência-se-si só
pode alcançar satisfação quando esse objeto leva a cabo a nega­
ção de si m esm o, nela; e deve levar a cabo em si tal negação de
si m esm o, pois é em si o negativo, e deve ser para o O utro o
que ele é” (Ibidem , par. 175, p. 141; ênfase do texto original).

f) Este conflito entre duas consciências e seus desejos marca


um a lu ta m ú tu a de vida e m o rte p o r reconhecim ento, marcada
pela desigualdade histórica, exem plificada pela dom inação entre
senhorio e escravo. E sta caracterização marca tam bém posições
ontológicas, éticas e psicológicas diferenciadas, por se colocarem
em diferentes m om entos e possibilidades do ser, em um pólo de
negação, independência ou de gozo na relação com o O utro, mesmo
que de form a apenas im ediata, e do outro, de um a trajetória mais
difícil e desafiante, mas mais capaz de conduzir a um a consciên-
cia-para-si mais autêntica. A q u i, adentram os a seção mais conhe­
cida e, a m eu ver, a mais bela d a obra, com o tam bém , seguramente,
um a das mais belas e elegantes páginas de toda a filosofia ocidental.
E m bora ten h a im plicações tam b ém claras nos campos ontológico,
histórico, político e pedagógico,11 esta seção constitui tam bém a
parte mais rica do p o n to de vista psicológico, em que mais clara­
m ente se explicita a Bildung necessária do desejo enquanto proces­
so psíquico constitutivo da form ação hum ana, inspirando autores
de várias correntes da psicologia, mas tendo na psicanálise,1112 em

11 Uma influência significativa da Fenomenologia no campo pedagógico, entre os


intelectuais no Brasil, mas com ampla repercussão internacional, pode ser encontrada
em Paulo Freire, particularmente em sua principal obra, Pedagogia do Oprimido (1970/
/1987). Neste livro, Freire combina a dialética das consciências com outras aborda­
gens teóricas e um significativo tom existencialista e humanista, configurando um
esboço de uma pedagogia social comprometida com os trabalhos de educação popular,
com forte influência particularmente nos anos 1970 no Brasil, e posteriormente, no
exterior (Vasconcelos, 2003). Para um a visão mais abrangente da obra de Paulo
Freire, ver a biobibliografia produzida por Gadotti (1996).
12 A principal referência aqui é sem dúvida alguma Jacques Lacan, assíduo
participante dos seminários de Kojève em Paris nos anos de 1930, que, inspirado na
Fenomenologia do espirito e particularmente nesta seção, esboçou a sua teoria do estágio

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 125


m inha opinião, um a das formulações mais extensas e sistemáticas.
Vejamos alguns dos trechos mais significativos da seção:

“Essas consciências ainda não se apresentaram, um a para


a outra, com o puro ser-para-siy ou seja, como co n sciên cia-^-
-si. Sem dúvida, cada um a está certa de si mesma, mas não da
outra; e assim sua própria certeza de si não tem verdade algu­
ma, pois sua verdade só seria se seu próprio ser-para-si lhe
fosse apresentado com o objeto independente ou, o que é o
m esm o, o objeto [fosse apresentado] com essa pura certeza de
si m esm o. M as, de acordo com o conceito de reconhecim en­
to, isso não é possível a não ser que cada um leve a cabo essa
pura abstração de ser-para-si: ele para o outro, o outro para
ele; cada um em si mesm o, m ediante seu próprio agir, e de
novo, m ediante o agir do outro” (Ibidem , par. 186, p. 145;
ênfase do texto original).

“D evem travar essa luta porque precisam elevar à verdade,


no O utro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só m edian­
te o pôr a vida em risco, a liberdade [se com prova]; e se prova
que a essência da consciência-de-si não é o sery nem o m odo
imediato com o ela surge, nem o seu subm ergir na expansão da
vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para
ela m o m en to evanescente; que ela é som ente puro ser-para-si.
O indivíduo que não arriscou sua vida pode bem ser reconhe­
cido com o pessoa; mas não alcançou a verdade desse reco­
nhecim ento com o um a consciência-se-si independente” (Ibi­
dem , par. 187, pp. 145-6; ênfase do texto original).

do espelho, como um processo psíquico e ontológico de constituição do bebé na relação


de identificação dialética com o outro, a função materna, seu semelhante e referência
para a formação de sua unidade psíquica e corporal (Roudinesco, 1988). Lacan também
utilizou o arcabouço hegeliano para operar uma completa revisão da teoria original de
Freud em relação à estrutura do aparelho psíquico, dos complexos básicos, das etapas
de desenvolvimento da personalidade e de sua teoria do desejo. Antes de adentrar dire­
tamente sua obra, sugiro se iniciar por leituras introdutórias, como Garcia-Roza (1987),
que tem a vantagem de partir das teorias originais de Freud; Fages (1975) e D or
(1992). Para uma entrada a partir de nomes de autores relevantes e principalmente de
conceitos, também retomando o sentido original de Freud, recomendo o Dicionário de
Psicanálise de Roudinesco 8c Plon (1998).

I 26 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


g) A inda nesta seção, H egel propõe um a dialética do desejo
e do gozo, com o eterno m ovim ento da apropriação da imediatici-
dade do objeto ou da eliminação ou reconhecim ento unilateral do
O utro, em um a mediação inacabada, incapaz de gerar satisfação ou
independência. A lém das implicações no cam po especificamente
psicanalítico, já indicadas, autores marxistas utilizaram estas noções
para analisar criticam ente a dinâmica das sociedades que universa­
lizaram o fetichism o da m ercadoria.13

“Ao contrário, para o senhor, através dessa mediação, a


relação im ediata vem-a-ser com o a pura negação da coisa, ou
com o gozo — o qual lhe consegue o que o desejo não conse­
guia: acabar com a coisa, e aquietar-se no gozo” (Ibidem , par.
190, p. 148; ênfase do texto original).

“O que se torna, pois, no prazer desfrutado, objeto da


consciência-se-si com o sua essência, é a expansão dessas es-
sencialidades vazias, — da pura unidade, da pura diferença e
de sua reação. A lém disso, o objeto que a individualidade
experim enta com o sua essência não tem conteúdo n enhum ”
(Ibidem , par. 363, p. 258; ênfase do texto original).

h) H egel introduz tam bém nesta seção a im portância do tr a ­


balho, com o m ovim ento para fora de si ou objetivação, e ta m ­
bém com o ato form ador do objeto e de si m esm o, g eran d o sen ­
tido próprio e singularidade, mesm o quando parece gerar apenas
um sentido alheio. E impossível não ver aqui um a das principais
noções que fizeram parte das inspirações de Marx:

“O trabalho, ao contrário, é desejo refreado, um desvane­


cer contido, ou seja, o trabalho form a. A relação negativa para
com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo permanente,
porque justam ente o objeto tem independência para o trabalha­
dor. Esse m eio-term o negativo ou agir formativo é, ao m esm o

13 Um exemplo significativo estl nos estudos realizados por Marcuse (1978)


sobre a sociedade de consumo, particulirmente a norte-americana.

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 127


tempo, a singularidade, ou o puro ser-para-si da consciência,
que agora no trabalho se transfere para fora de si no elemento
do permanecer; a consciência trabalhadora, portanto, chega
assim à intuição do ser independente, com o [intuição] de si
mesma” (Ibidem , par. 195, p. 150; ênfase do texto original).

“Assim, precisamente no trabalho, onde parecia ser ape­


nas um sentido alheio, a consciência, m ediante esse reencon­
trar-se de si por si mesma, vem -a-ser sentido próprio’ (Ibidem,
par. 196, p. 151; ênfase do texto original).

í) A inda nesta seção, o autor intui a im portância da vivência


e d a capacidade de suportar a angústia e o m edo neste processo
de Bildung, elem ento fundam ental apropriado pelos processos
psicoterapêuticos e da clínica psicológica em geral na contem po-
raneidade:14

“Sem o formar, permanece o medo como interior e mudo,


e a consciência não vem -a-ser para ela mesma. Se a consciên­
cia se form ar sem esse medo absoluto prim ordial, então será
apenas um sentido próprio vazio. Pois sua form a ou negativi-
dade não é a negatividade em si, e seu formar, portanto não
lhe pode dar a consciência de si com o essência. Se não supor­
tou o m edo absoluto, mas som ente alguma angústia, a essên­
cia negativa ficou sendo para ela algo exterior. Sua substância
não foi integralm ente contam inada por ela” (Ibidem , par. 196,
p. 151; ênfase do texto original).

j ) É interessante notar a posição crítica de H egel em relação


à a b o rd ag e m em p irista e à ff enologia e fisiognom ia.15 E m relação

14 Uma análise desta temática em Hegel, do ponto de vista de um psicanalista fi­


liado à perspectiva teórica da psicanalista inglesa Melanie Klein, é o volume VII da co­
leção de Sandler (2003) dedicada à história das ideias psicanalíticas na filosofia ocidental.
15 Com o vimos anteriormente, a frenologia e a fisiognomia são doutrinas em
m oda na época de Hcgcl, que pregavam a relativa isonomia entre as características
anatômicas externas do corpo, particularmente das formas do crânio, com as caracte­
rísticas cognitivas e da personalidade, o que permitiria supostamcnte identificar os
indivíduos anormais e com tendências criminais, e que mais tarde também serviram de
inspiração às doutrinas eugênicas.

I 28 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


a todas elas, a crítica mais geral de H egel é de que apreendem o seu
objeto na sua estaticidade, sem captar o m ovimento e portanto a
verdadeira natureza do ser. Por exemplo, em relação ao empirismo,
Hegel indica que “o que se cham a «sinais característicos essenciais»
são determinações em repouso: quando apreendidas e expressas as­
sim, como simples, não apresentam o que constitui sua natureza,
que é a de serem momentos evanescentes do m ovim ento que se
redobra sobre si mesmo” (Ibidem , par. 248, p. 184; ênfase do texto
original). N a relação com a frenologia e fisiognomia, ele valoriza a
exteriorização do espírito, mas m ostra o caráter lim itado e estático
da forma corporal em relação à totalidade do indivíduo, seu pro­
cesso de formação, seu interior, e principalm ente, a sua obra, o agir,
em seu m ovim ento (Ibidem , pp. 222 e ss.).
k ) H egel faz um a diferenciação im portante entre um a in ­
tencionalidade consciente voltada para o bem da hum anidade e
seus resultados práticos (e que pode até mesmo se sustentar au-
tenticam ente na sublim ação do prazer im ediato), na possibilidade
do que cham a de presunção e d o desvario, como uma projeção
para fora de um a estru tu ra ín tim a pervertida. H á aqui claramen­
te um esboço de mecanismos psíquicos inconscientes, tem a que ele
desenvolveu m elhor na Enciclopédia, com o mostraremos a seguir.
O interessante é que neste contexto, seu foco é diretam ente psicos­
sociológico, voltado para fenôm enos coletivos:

“Sendo assim, a individualidade já não é a frivolidade


da figura anterior, que som ente queria o prazer singular; mas
é a seriedade de um alto desígnio, que procura seu prazer na
apresentação de sua própria essência sublimada, e na produ­
ção do bem da hum anidade. [. . .] Por conseguinte, o que
para essa figura da consciência-de-si resulta como o verda­
deiro de sua experiência contradiz o que ela é para si, [. . .]
D essa m aneira, é a essencialidade duplicada e oposta que essa
consciência pertence — contraditória em si mesma e dilacerada
no que tem de mais íntim o. [. . .] O pulsar do coração pelo
bem da hum anidade desanda assim na furia de um a presun­
ção desvairada; no furor da consciência para preservar-se de
Ideias psicológicas na obra de Hegel | 129
sua destruição. Isso, porque ela projeta fora de si a perversão
que é ela mesma, e se esforça por considerá-la e exprimi-la
com o um O utro. Perversão inventada e exercida por sacerdo­
tes fanáticos, por tiranos devassos com a ajuda de seus servi­
çais, que hum ilhando e oprim indo procuram ressarcir-se de
sua própria hum ilhação” (Ibidem , trechos entre pp. 261 a
265; ênfase do texto original).

/) É fundam ental ainda lembrar um a indicação hegeliana do


tem a da alienação de si, particularm ente de u m a m odalidade de
vivência religiosa, que mais tarde será mais extensam ente desen­
volvido por Feuerbach e M arx: “O que aqui se considera não é
portanto a consciência-de-si da essência absoluta, tal como é em si
e para si; nem é a religião, mas a fé, enquanto fuga do m undo
efetivo, e assim não é em si e para si (Ibidem , par. 487, p. 339;
ênfase do texto original).
C om o afirm am os antes, poderíamos desdobrar ainda muitos
elem entos im portantes desta obra para a história das ideais psico­
lógicas, mas dadas as limitações do presente trabalho, creio que
podem os nos lim itar às indicadas dadas, considerando tam bém o
seu caráter apenas exemplificador, com o explicamos acima.
E ntretan to , de um outro ponto de vista, é fundam ental lem ­
brar que a Fenomenologia vem sendo objeto de profundas críticas e
avaliações no decorrer da história. N o volume anterior desta coletâ­
nea, já pudem os revisar as principais linhas da crítica de M arx ao
idealism o alem ão e principalm ente a H egel, m ostrando a apropria­
ção m aterialista do prim eiro da concepção hegeliana de determ i­
nação histórica, mas invertendo a sua noção de objetivação do E s­
p írito A bsoluto e da razão na história, em que a lógica dialética
hegeliana original é aplicada na perspectiva d a m aterialidade con­
creta dos m odos de produção, do trabalho e da práxis hum ana, mas
m an ten d o a estrutura dialética de seus m ovim entos internos razoa­
velm ente intacta.
A lém disso, m esm o se tom ada apenas do po n to de vista co m ­
parativo com as obras anteriores do próprio H egel, particularm ente
no cam po da ética e da política, a Fenomenologia, apesar d o m aior
I 30 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
rigor metodológico, apontaria, segundo M arcuse (1969) e H onneth,
para um aprofundam ento de seu idealismo, um a vez que

“a constituição da consciência hum ana deixa de ser integrada


no processo de construção de relações sociais éticas como uma
dimensão constitutiva, e, inversamente, as formas de relacio­
nam ento social e político dos homens passam a ser som ente
etapas de transição do processo de formação da consciência
hum ana que produz os três media [arte, religião e ciência] de
autoconhecim ento do espírito” (H o n n eth , 2003, pp. 70-1).

D e meu ponto de vista, contudo, a crítica ao idealism o de


H egel e particularm ente da Fenomenologia não pode ser apenas
totalizante, mas deve ser construída distinguindo a especificida­
de de cada um a das camadas, dos campos e objetos de conheci­
m en to , identificados acima, já que possuem autonom ia relativa
dentro de seu pensam ento e no conjunto da filosofia e das ciências.
Podem os exemplificar isso lem brando que a crítica da filosofia do
conhecim ento, da ontologia e das concepções sociais e políticas de
H egel por M arx não o impossibilitou de se apropriar, praticam en-
te de form a intacta, de sua lógica dialética. D e forma sem elhante, a
avaliação do cam po das ideias psicológicas deve ser realizada levan­
do em contas suas especificidades e autonom ia relativa, principal­
m ente quando constatam os que a inteira subordinação ao cam po
filosófico na época foi superada a partir do final do século, fazendo
em ergir um cam po próprio dentro das ciências humanas. A m eu
ver, essa tarefa, pelo m enos na bibliografia publicada em língua
portuguesa, ainda está por ser realizada de form a mais sistem ática.
É possível apresentar pelo menos um exemplo disso. Se a prio ­
ridade da Fenomenologia está na filosofia do conhecim ento, a ênfa­
se da obra está sem dúvida alguma na realização com pleta da B il-
dun g à o sujeito deste conhecim ento, na sua capacidade de apreensão
da totalidade de seus movim entos e no desvelamento pleno da ra­
cionalidade na história e em si próprio. Esta ênfase m aior no p ro ­
cesso do conhecim ento, em que os polos da to talidade, da u n i­
versalidade e da racionalidade, em d etrim ento dos particulares,
Ideias psicológicas na obra de Hegel | 13 1
bem com o no que ele cham ou de ardil da razão>que sem pre p ro ­
je ta p ara os desdobram entos do futuro os frutos do sacrifício da
felicidade e do trabalho individual, pode estabelecer, no cam po
psicológico, u m a inevitável indiferença pela realidade co n creta
dos espaços de relativa au to n o m ia para m udanças pessoais nas
esferas privadas e sociais m ais im ediatas atuais, b em com o em
relação ao sofrim ento de cada um dos seres h u m an o s singulares
no presente, que dem an d a um a intervenção e m udanças u rg en ­
tes. E m m inha opinião, isso representa com certeza um polo im ­
p o rtan te de dificuldades para a constituição de um a psicologia teó ­
rica e clínica eticam ente com prom etida com o sofrim ento hum ano.
O m esm o pode acontecer em sua filosofia da história. E m bora não
seja obra sob análise, nas Lições sobre afilosofia da história universal,
publicadas postum am ente em 1837, H egel chega a afirm ar: “Pode
ser que tam b ém o indivíduo seja vítim a da injustiça; mas isto não
im p o rta à razão universal, à qual os indivíduos servem com o meios
para o seu desenvolvim ento” (H egel, 1837/1985, p. 37). Esse com ­
p o n e n te não passa despercebido para alguns de seus co m en tad o ­
res,16 m esm o entre os mais balizados, com o H yppolite (1974, p.
243): “A hu m an id ad e com o tal não é, para H egel, o fim suprem o.
[. . .] H e g e l nos fala certam ente de um sentido da história, da ideia
absoluta, m as esta ideia não é o hom em ”.
A p esar d o caráter sem pre aberto a novas considerações da
Fenomenologia, p enso que d en tro das condições lim itad as e do
âm b ito do presente trabalho, podem os agora passar para a Enciclo­
pédia das ciênciasfilosóficas.

16 O utro com entador de Hegel, com publicações em espanhol, Sana (1983),


apresenta uma avaliação semelhante:
“Hegel se vê obrigado a aceitar cada partícula da realidade como condição
necessária para o passo a uma fase superior. [. . .] Aceitar a realidade em todos
os seus momentos e manifestações é indiferenciá-la, depojá-la de toda possível
diferenciação axiológica. [. . .] Afirmar o futuro como categoria suprema signifi­
ca desvalorizar o presente, a realidade concreta do aqui e agora. A deificação do
porvir conduz inevitavelmente à relativizaçào do presente. [. . .] É difícil, com
efeito, passar à margem da indiferença absoluta que Hegel sente pela realidade
concreta do homem, do indivíduo de carne e osso” (Sana, 1983, pp. 108-12).
E m português, há um trabalho de Bombassaro (2007), professor da Universida­
de de Caxias do Sul, que caminha nessa direção, apontando para estas e outras fontes
com pontos de vista similares.

I 32 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


6.4. A E n c ic lo p é d ia d a s c iê n c ia s filosóficas
e sua seção sobre a alma

Esta obra com posta de três volumes teve sua prim eira publi­
cação em 1817, apesar de algumas de suas partes constitutivas já
tivessem sido publicadas anteriorm ente. N este ano, H egel foi no­
m eado professor titu lar na Universidade de Heidelberg, e um ano
depois, na U niversidade de Berlim, atingindo portanto o mais alto
posto de docência na carreira universitária alemã, sendo sobrepujado
apenas por sua eleição com o reitor dessa universidade em 1829.
E ntretanto, dois anos depois, veio a falecer, acom etido de cólera.
O segm ento da obra que nos interessa mais de perto, em m i­
nha opinião, é o volum e III, em sua sua prim eira seção, intitulada
de “O espírito subjetivo”, e nesta, particularm ente a prim eira seção,
“A ntropologia”, que tem p o r objeto a alma, pois a segunda, “A
fenom enologia do espírito”, já teve sua tem ática contem plada no
livro de 1807, e a terceira, “Psicologia”, trata mais de funções cogni­
tivas e práticas, que não correspondem ao nosso interesse im ediato
aqui. A sistem atização abaixo não tem nenhum a pretensão de exaus-
tividade e de cobrir todos os passos da obra, o que exigiria estudo
próprio e certam ente m uito mais longo e complexo.
A abordagem realizada aqui sobre esta obra parte tam bém de
nossa perspectiva de estudo de M arx, não só p o r sua apropriação
m eram ente teórica, mas particularm ente pelo seu significado pes­
soal e subjetivo concreto. M arx leu a Enciclopédia em um m om en­
to-chave de sua trajetória de vida, em 1837, em plena crise exis­
tencial, em que teve com o prescrição médica fazer um a pausa em
seus estudos em Berlim e passar um tem po no cam po para descan­
sar.17 O sofrim ento de M arx não era só físico, mas tam bém psí­
quico, pois seus projetos pessoais até então, o estudo de direito, de
filosofia, e particularm ente a carreira como poeta, estavam em cri­
se, e eram exatam ente o objeto central de seus conflitos com o pai,

17 O relato desse episódio encontra-se cm carta escrita por Marx a seu pai, a
única dedicada a ele preservada para a posteridade, escrita na noite entre 10 e 11 de
novembro de 1837.

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 13 3


pessoa que tanto considerava. A análise mais detalhada desse período
será naturalm ente realizada nos próximos volumes, mas cabe aqui
m ostrar os pontos de H egel que nos parecem mais significativos
para esta abordagem . A lém disso, é im portante relembrar que o
próprio Hegel teve suas dificuldades psicológicas e existenciais, como
indicam os antes, e essa experiência parece ter influenciado parti­
cularm ente a construção de sua teoria do ciclo e das fases da vida
hum ana exposta nesta obra, e que M arx leu durante esse episódio
particular e chegou a com entar em outros m om entos de sua vida.
N este terceiro volum e da Enciclopédia, e particularm ente na
seção sobre a alma, o estilo do texto hegeliano diferencia-se um
pouco do da Fenomenologiaycom estrutura mais descritiva de apre­
sentação e discussão de temas e um estilo um pouco menos herm éti­
co, tom ando sua leitura mais acessível, como o leitor poderá com pro­
var nos trechos arrolados abaixo. O texto apresenta intuições a m eu
ver geniais, com elaborações fundamentais em relação às ideias psico­
lógicas da época, e que serão fundam entais para nosso trabalho. As
citações providas neste segm ento, apesar de mais longas e detalhadas
em com paração às dem ais seções do presente texto (e por esta razão
serão apresentadas prioritariam ente como notas de rodapé), são a
m eu ver extrem am ente relevantes, não só por que m ostram a genia-
lidade e originalidade de H egel nessa tem ática, como tam bém nos
perm itirão mais tarde esclarecer aspectos centrais de nosso estudo
sobre as concepções e vivências de M arx sobre o tema.
D o p o n to de vista da história das ideias psicológicas, em m i­
nha opinião, podem os indicar, entre os temas e as contribuições
mais relevantes levantadas por H egel na sessão indicada dessa obra,
os seguintes tópicos:

á) A p rim eira im pressão que tem os na leitura dessa seção


sobre a alm a, particularm ente nas prim eiras cinquenta páginas da
seção, é de que a abordagem hegeliana apresenta categorias polares
correntes do cam po psicológico hum ano, propondo u m a p sico lo ­
gia racion al, o p o sta à psicologia em pírica, que dá a im p ressão de
ser cla ra m e n te a n tirro m â n tic a (H egel, 1 817/1995, par. 3 7 7 , p.
9). N este início do livro, o m estre alemão parece privilegiar u m
I 34 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
conhecim ento totalista da história h u m an a em detrim en to das
particularidades contingentes dos hom ens singulares (Ibidem ),
enfatizando as categorias associados à racionalidade, universa-
lidade/totalidade e adultez. N o entanto, essa aparência inicial se
dissolve quando observamos todo o conjunto de conceitos da obra.
Conform e o próprio H egel indica, "enquanto alma, o espírito tem
a forma de universalidade abstrata; enquanto consciência, a à ip a r ­
ticularização-, enquanto espírito essente para si, a da singularidade”
(Ibidem , par. 387, p. 39). E m outras palavras, a alma, objeto da
antropologia, tem o caráter de im ediaticidade; o espírito m ediati-
zado, para si, é objeto da fenomenologia do espírito; e a psicologia
tem como objeto o espírito que se determ ina em si mesmo, en­
quanto subjeito para si (Ibidem , p. 37). O decorrer de todo o pro­
cesso perm ite vislum brar a im portância das categorias de particu­
laridade e singularidade como m om entos im portantes da totalidade
do processo de acesso à verdade do sujeito.
b) H egel parte das dificuldades com que as duas principais
tradições filosóficas anteriores, o racionalism o e o materialismo,
pensavam a relação en tre alm a e corpo com o oposição. H egel
busca dissolver esta aporia no que se refere aos diversos m om en­
tos lógico-dialéticos da alma e do espírito, partindo da im ediaticida­
de indeterm inada, não particularizada, em direção à singulariza-
ção. Esse processo com preende, em sua fase inicial, as determinações
universais do gênero hum ano, como qualidades naturais, que incluem
as particularizações realizadas pela diversidade geográfica, racial,18
física, espiritual e nacional, passando tam bém pela diferença dos
sexos e pelas idades da vida, para mais tarde perm itir à alma retom ar
a sua unidade consigo m esm a. Inclui tam bém a diversidade de
tem peram ento, talento, caráter, fisionom ia e outras disposições que
distinguem as famílias e os indivíduos singulares (Ibidem , par. 395,

18 A representação que Hegel faz das diversas raças tem claramente um viés
etnocêntrico e altamente discriminatório, e um exemplo particular está nos traços que
atribui aos negros africanos. As diferenças raciais implicam espíritos locais, ou seja
maneiras próprias de viver, ocupações, disposições corporais, e nas tendências a apti­
dões interiores resultantes do caráter intelectual e ético dos povos (Ibidem, p. 61).
Para uma análise crítica mais abrangente sobre Hegel e o etnocentrismo europeu, ver
o recentíssimo trabalho de Buck-Morss (2009).

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 135


p. 67). O temperamento é uma qualificação mais fluida e indeter­
minada, e sofre mais influência da cultura, ao passo que o caráter
implica um aspecto mais fixo e efetivam ente diferenciador dos h o ­
mens, compreendendo a energia vital e a coerência com que busca
seus próprios fins, bem como a vontade. N este ponto, H egel esbo­
ça suas ideias iniciais em um cam po que no século XX foi cham ado
de psicologia diferencial, ou seja, daquilo que diferencia cada in ­
divíduo dos demais em suas determ inações naturais e psicológicas.
c) N o passo seguinte, H egel estabelece sua teorização sobre o
curso das idades de vida, com o um a im posição natural e um p ro ­
cesso de diferençiação que incide no tem po sobre um m esm o indí-
viduo, temática que mais tarde, no século XX, conform ou um campo
específico de conhecim ento cham ado de psicologia d o desenvol­
vim ento. Para H egel, esse processo depende dos influxos corporais
e fisiológicos, mas não totalm ente, com o no caso de talentos que
desenvolveram seus dons intelectuais e artísticos com precocidade.
H egel distingue tres grandes etapas: a criança, o hom em e o ancião.
À infância corresponde quatro subetapas:
— a não nascida, em que não há nenhum a individualidade;
— o nascim ento (estado de separação e busca de autonom ia)
e a criança recém-nascida, em que mostra um a dependência e carên­
cia bem m aior que os animais, mas que é capaz de exprim ir sua dor
ruidosam ente; o andar e o falar como um processo de apreender as
coisas com o universais e ter acesso à noção de “eu”; a im portância do
brincar;
— a etapa do m enino, m arcada pela im itação d o adulto e do
esforço de conhecer, no qual entre as preocupações relativas à educa­
ção, na form a de gerir os seus processos associados de disciplina e
instrução;
— o tornar-se jovem pela entrada na puberdade, q u an d o apa­
recem os ideais mais universais e a força-de-agir, buscando transfor­
m ar o m u n d o , em um a discussão que atinge o cam po da ética.
H egel se alonga mais, de form a surpreendente, na discussão dos
conflitos dessa passagem, em que o jovem pode sen tir que seus
ideais e sua personalidade não são reconhecidos pelo m un d o ou que
tom ar-se adulto significa um a dolorosa passagem à vida de filisteu.
I 36 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
Nesse m om ento, podem aparecer humores doentios, que se mani­
festam por meio do que cham ou de hipocondria, bem como de ou­
tros sintomas. H egel retom a aqui o tem a do ardil da razãojá exposto
na Fenomenologia do espírito, indicando a im portância da aceitação
dialética do m undo como ele é, “concluído quanto ao essencial” (Ibi­
dem, par. 396, p. 79), buscando agir de m odo racional ao se “renun­
ciar ao plano de um a com pleta transformação do m undo; e ao esfor­
çar-se por efetivar seus fins, paixões e interesses pessoais unicamente
em seu entrosam ento com o m undo” (Ibidem , pp. 79-80).
H egel é bem mais económ ico em relação à adultez e a velhi­
ce, dedicando um parágrafo para cada etapa, mas é interessante
notar que sua caracterização dessas duas etapas ainda continua a
discussão iniciada sobre o jovem , na aceitação das relações objetivas
e suas tarefas, e seu ajustam ento ao m undo objetivo. A m eu ver,
não há dúvida algum a de que, ao escrever tão longam ente sobre
esse tem a, que assume a centralidade de sua reflexão sobre as fases
da vida, H egel tinha com o inspiração a crise por que passara no
período entre 1876 e 1879.
d) N a sequência do livro, H egel passa às relações en tre sono
e vigília, com o estados que se alternam até o infinito, seção onde
chega a esboçar um análise sobre os processos m entais durante o
sono, que podem os hoje dizer ser bastante próxim a de um a noção
intu itiva de inconsciente. O prim eiro consiste no “estado do sub­
m ergir-se da alm a em sua unidade indiferenciada” (Ibidem , par.
398, p. 85). É interessante n o tar sua aceitação do sono e dos so­
nhos com o outras form as do espírito, mas diferentes do pensar
propriam ente dito na vigília, já que nelas “nossas representações
não são governadas pelas categorias do entendim ento”, pois “no
sonho tu d o flui para fora um do outro, se entrecruza em desordem
selvagem”, e nos quais “os objetos só entram em um a relação to tal­
m ente superficial, contingente e subjetiva” (Ibidem , p. 88).
é) H egel enfatiza a im portância da corporeidade, centrando-a
p rin cip alm en te nos cinco sentidos hum anos, em um trecho que
provavelm ente teria inspirado diretam ente M arx mais tarde, em sua
abordagem do tem a nos Manuscritos de 1844. Entretanto, de form a
paradoxal e surpreendente, tendo em vista sua perspectiva mais geral
Ideias psicológicas na obra de Hegel | 137
antirromântica, o tratam en to dado po r H egel ao tem a é m u ito m ais
amplo e complexo, realçando a sua dim ensão sim bólica, com um a
clara dinâm ica consciente/inconsciente, e a p o n ta n d o para o que,
em term os mais contem porâneos, cham am os de processos psicos­
somáticos. O autor destaca a centralidade do “sistem a do sentir inte­
rior, em sua particularização que se corporifica”, com o algo que “seria
digno de desenvolver-se e de tratar-se em um a ciência própria, em
um a fisiologia psíquica , que trataria não só das sim patias (“sensações
de agradável/desagradável,f), com o tam bém “a com paração determina­
da no simbolizar das sensações” e as “determinações espirituais, particu­
larm ente enquanto afetos” (Ibidem , par. 401, p. 95; ênfases do texto
original). O texto dá vários exemplos de associações de órgãos, dos
prantos, da voz, da palavra, do riso, do suspiro, e suas associações
simbólicas,19 visualizando processos com um a clareza tal que só e n ­
contram os no O cid en te20 em sistem atizações psicológicas m uito

19 “As vísceras e os órgãos são tidos na fisiologia como momentos apenas no


organismo animal, mas formam ao mesmo tempo um sistema de corporificaçõcs do
espiritual, e recebem por isso uma interpretação completamente diversa. [. . .] Ao
contrário, para a antropologia filosófica torna-se importante a relação das sensações
externas com o interior do sujeito que sente. Esse interior não é algo totalm cnte
indeterminado, indiferenciado. [. . .] O que temos a considerar nesse lugar é única e
exclusivamente o relacionar-se inconsciente da sensação externa com o interior espiri­
tual. Mediante essa relação, nasce em nós aquilo que chamamos de humor, um fenô­
meno do espírito, do qual se encontra um análogo nos animais, [. . .] [mas que] tem ao
mesmo tempo um caráter propriamente humano; e além disso, no sentido mais estrito
por nós indicado, se toma algo antropológico, porque é algo que ainda não é sabido pelo
sujeito com plena consciência. [. . .] Esse efeito é produzido pela sensação externa,
enquanto se une com ela uma significação interior imediatamente, isto é, sem que
precise aí colaborar a inteligência consciente. Por essa significação, a sensação externa
torna-se algo simbólico (Ibidem, par. 401, pp. 95 a 100; ênfase do texto original).
20 Aqui é necessário fazer algumas observações sobre a história da medicina psi­
cossomática. Embora houvesse já indicações sobre a histeria na medicina grega, foram os
árabes que realizaram as sistematizações mais extensas sobre a abordagem psicossomá­
tica ainda no século X, quando se destacam nomes como o de al-Bakini (morto em 934),
al-Majusi (994) e Avicena (Ibn Sina, 970-1037). No Ocidente, foi a medicina românti­
ca alemã que retomou a temática, com destaque para Johann Christian August Heinroth
(1773-1843), médico e professor da Universidade de Leipzig a partir de 1806, sob a
influência do pensamento de Herder. Heinroth publicou livros sobre o assunto em 1810
e anos seguintes, e, portanto, suas obras poderiam ser do conhecimento de Hegel no
momento de escrever a Enciclopédia, mas a rejeição de Hegel da cosmovisão romântica e
seu novo enquadramento do tema mostra visível originalidade neste terreno, já que sua
trajetória parte de outra perspectiva. Ele deixa entrever por seus exemplos que sua
inspiração principal foi no campo das artes, particularmentc pelo simbolismo das cores,
mas há intuições também a partir da observação dos costumes, como na análise das cores
do vestuário e sua significação antropológica, como, por exemplo, no uso do preto no luto.

I 38 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


posteriores. H egel avança a discussão do tem a chegando até a noção
de exteriorização e corporificação simbólica das sensações interi­
ores, como um claro esboço da ideia de sintom a somático.21
f ) H egel introduz tam bém , em sua sistematização sobre as
sensações, um esboço de um a psicopatologia e de possíveis es­
tratégias terapêuticas, que passam pela expressão das em oções,
ta n to pelo que enten d em o s hoje com o catarse, com o tam bém
pela “linguagem articulada”.2223 O tem a da catarse é apresentado
por meio do conceito de extrusão, em uma abordagem m uito pró-

2} Segundo Hegel, a corporificação possibilitaria a alma a “adquirir, por isso, um


scr-aí imediato, cm que a alma vem-a-ser para si mesma. [. . .] Só mediante a corpo-
rificaçào das determinações exteriores o sujeito vem a senti-las. [. . .] O corporificar des­
sas multiformes determinações internas pressupõe um círculo de corporeidade no qual
ele se efetua. Esse círculo, essa esfera limitada, é meu corpo. [. . .] Por meio dessa natu­
reza de meu corpo, torna-se possível e necessária a corporificação de minhas sensações
— os movimentos de minha alma tornam-se imediatamente movimentos de minha
corporeidade. Ora, as sensações internas são de duas espécies: 1.*) as que concernem à
minha singularidade imediata, encontrável em qualquer particular conjuntura ou situação.
Delas fazem parte, por exemplo, cólera, vingança, inveja, vergonha, arrependimento;
2.*) as que se referem a algo em si e para si universal, ao direito, eticidadc, religião, ao
belo e ao verdadeiro. [. . .] Mas justamente na medida em que nas sensações interiores
o singular cede ante o universal, elas se espiritualizam, e por isso sua exteriorização perde
cm corporeidade fenomênica” (Ibidem, par. 401, pp. 102-03; ênfase do texto original).
22 “De modo geral, pode-se fazer notar que as sensações internas, tanto da alma
como de todo o corpo, podem ser, por uma parte, proveitosas, por outra, nocivas e mesmo
perniciosas. Serenidade de ânimo conserva a saúde; aflição a subverte. O bloqueio que
nasce na alma pela aflição e dor, ao trazer-se à existência de maneira corporal, quando
ocorre subitamente e atinge certo excesso, pode levar à morte ou à perda de entendi­
mento. [. . .] Porém, mesmo quando essa corporificação não atua em um grau destruidor,
excitando ou deprimindo, ela vai apoderar-se mais ou menos imediatamente do organismo
todoy pois nele todos os órgãos e todos os sistemas se encontram em viva unidade uns com
os outros. Contudo, não há que negar que as sensações internas, segundo a diversidade de
seu conteúdo, têm ao mesmo tempo um órgão particular, em que se corporificam primeiro
e preferencialmente. [. . .] À ciência, porém, incumbe mostrar a relação necessária que
reina entre uma sensação interior determinada e a significação fisiológica do órgão em
que a sensação se corporifica” (Ibidem, par. 401, p. 104; ênfase do texto original).
23 “Em todas as corporificações de espiritual acima consideradas, só ocorre aquele
exteriorizar-se dos movimentos da alma que é necessário para que eles sejam sentidos, ou
que pode servir para mostrar o interior. Mas esse exteriorizar-se só se realiza plenamente
por tomar-se extrusâoy por tomar-se eliminação das sensações interiores. Tal corporificação
extrusante do interior mostra-se no rir, mais ainda porém no chorar, no gemer e soluçar, de
modelo geral, na voz, já ainda antes que seja articulada, ainda antes que se torne
linguagem. [. . .] no pranto se exterioriza o dilaceramento interior de quem sente, provo­
cado por algo negativo; [é] a dor. As lágrimas são a erupção crítica da dor, portanto não
apenas a exteriorização, mas ao mesmo tempo a extrusão da dor, por isso, nos sofrimen­
tos importantes que ocorrem na alma, as lágrimas agem sobre a saúde de modo tão
benéfico, quanto a dor que não funde em lágrimas poder vir-a-ser prejudicial para a
saúde e para a vida” (Ibidem, par. 401, pp. 105-7; ênfase do texto original).

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 139


xima do modelo económ ico de Freud,23 e conclui o argum ento
salientando a im portância da linguagem articulada com o estraté­
gia terapêutica, até m esm o p o r m eio da expressão poética.24
g) É m uito interessante notar ainda a aproximação realizada
por Hegel ao que mais tarde foi identificado por Freud com o os
mecanismos de introjeção e, ou, de repressão dos conteúdos in d e ­
sejáveis e sua conservação no inconsciente in tem poral, para além
do pré-consciente.25 C o n tu d o , em alguns m om entos da análise,
Hegel parece perceber a am biguidade e a distância de suas intuições
sobre o inconsciente de seus objetivos racionalistas, e busca então
inseri-las em um a luta de libertação da alma em relação a esta esfe­
ra, para “tornar-se perfeitam ente dona de si m esm a” (Ibidem , par.
402, p. 112), e nesse processo, indica três graus:
— o sonhar, no “pressentir a vida natural, concreta [. . .], ob­
jeto de atenção universal no tem po m oderno”;
— o desvario, isto é, “a alm a cindida em si m esm a, enquanto
de um lado já é dona de si, e d o outro ainda não o é, e sim m antida
presa em um a particularidade singular”. N ota-se que H egel dis­

24 “O homem porém não fica nesse modo animal de seu extcriorizar-sc: cria a
linguagem articulada pela qual as sensações interiores se tornam palavra., exteriorizam-
-se em todas a sua determinidade, tornam -se objetivas para o sujeito, e ao mesmo
tempo exteriores c estranhas para ele. Por isso, a linguagem articulada é a suprema
maneira como o homem se extrusa de suas sensações interiores. [. . .] Mas a poesia, em
especial, tem o poder de libertar dos sentimentos que acabrunham; assim, Goethe, por
exemplo, mais de uma vez restabeleceu sua liberdade espiritual ao derramar sua dor
em um poema" (Ibidem, par. 401, p. 108; ênfase do texto original).
25 “Assim também a alma mesma é uma totalidade dc determ in idades distintas
infmitamente múltiplas, que nela se reúnem cm algo único", de modo que nelas a alma
permanece em si infinito ser-para-si. Nessa totalidade ou idealidade, porém, nesse interior
indiferente [e] intemporal da alma, as sensações, que se deslocam umas às outras, não
desaparecem sem deixar absolutam ente vestígios; mas permanecem ali enquanto
suprassumidas, recebem ali suas subsistência como um conteúdo inicialmcnte apenas
possível, o qual de sua possibilidade só alcança a efetividade enquanto esta vem-a-ser para a
alma, ou que esta vem a ser, no conteúdo, para si mesma. A alma retém assim o conteúdo
da sensação, se não para si, pelo menos em si [mesma]. Esse conservar, que se refere somente
a um conteúdo para si interior, a uma impressão de mim, situa-se longe ainda da rememoração
propriamente dita, pois esta procede, da intuição de um objeto posto exteriormente, para
algo que deve ser interiorizado: objeto que ainda não existe para a alma, como já foi
notado. [. . .] Assim o homem jamais pode saber quantos conhecimentos tem de fato
dentro de si, embora deva tê-los esquecido: não pertencem à sua efetividade, nem a sua
subjetividade, mas só a seu ser essente em si. Esta interioridade simples é, e permanece,
a individualidade em toda a determinidade e mediação da consciência, que mais tarde
é posta nele” (Ibidem, par. 402, pp. 111-4; ênfase do texto original).

140 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


tingue claram ente o desvario (que m e parece ser um a alusão ao que
hoje com preendem os com neurose, já que há apenas um a “relação
ingénua” ou “mágica”, e po rtan to “m isturável” entre a consciência e
a alm a-que-sente) da demência (que hoje cham am os de psicose, e
em que há um a “oposição direta” entre os dois term os);
— a consciência, na qual a “alma torna-se dona de sua indivi­
dualidade natural, de sua corporeidade, a qual rebaixa a um meio
que lhe obedece” (Ibidem , par. 402, pp. 112-3 e 118; ênfase do
texto original).
h) O s desdobram entos da concepção de in co n scien te em
H egel chegam à in tu ição de seu processo de desenvolvim ento,
cuja com preensão é vista com o essencial p ara o e n te n d im e n to
das doenças da alm a, do m ag n etism o an im al e de suas form as
sadias de m anifestação (sonho, vida in trau terin a e relação do cons­
ciente com o inconsciente n a vida cotidiana). Nosso autor associa o
inconsciente em prim eiro lugar à vida intrauterina e a um a form a
de com unicação não simbólica entre a m ãe e seu bebê, em que este
acolhe as “disposições da figura, da m aneira-de-sentir, do caráter
do talento, das idiossincrasias” da mãe, bem como as “disposições
para doenças”. A ssim , “no âm bito da vida consciente, refletida, e n ­
contram -se aliás exemplos e traços esporádicos dessa condição m á­
gica, eventualm ente entre am igos, em particular entre amigas fracas
dos nervos (é um a condição que pode desenvolver-se em fenôm enos
de m agnetism o), entre esposos e m em bros da m esm a fam ília” (Ib i­
dem , par. 405, p. 116). M ais tarde, no entanto, o desenvolvim ento
do inconsciente to m a u m a configuração mais intensiva d e in d i­
v id u alid ad e, de u m “fo ra-u m -d o -o u tro ”, “ser-d o -sen tim en to ”, a
que H e g e l ch am o u de gênioy ou secundariam ente de coração o u
ânim o [alm a], com característácas m uito particulares.26 E ste o u tro
dentro de nós, segundo ele, não é, portanto, “algo que-não-deve-ser,

26 “Mas aquele núcleo do ser-do-sentimento não contém apenas o natural, o


temperamento, etc., para si mesmo inconscientes, recebendo também (habitualmente,
ver adiante), em sua simplicidade envolvente, todos os laços ulteriores e todas as
relações, destinos, princípios essenciais — em geral tudo o que pertence ao caráter e
em cuja elaboração a atividade consciente-de-si tomou a parte mais importante; o ser-
-do-sentim ento é assim uma alma em si mesma plcnamente determ inada” (Ibidem ,
par. 405, p. 117).

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 141


mas antes algo que compete necessariamente tam bém ao hom em
sadio” (Ibidem, p. 120), cujas manifestações principais são:
— o sonho: tem uma “natureza inteiram ente subjetivei', “p ri­
vada da objetividade de-entendi men to”, que provê “impressões sin­
gularizadas”9 podendo atingir “um sentim ento profundo, podero­
so, de sua natureza individual total, o círculo completo do passado,
presente e futuro”, e esta é “a razão pela qual se deve tratar do
sonho na consideração da alma que sente a si mesma” (Ibidem , par.
405, pp. 120-1; ênfase do texto otiginal).
— a vida intrauterina: nela, “em vez daquela relação simples
da alma a si mesma no sonho, [o que] existe [é] um a relação a um
outro indivíduo, em que a alma do feto, a qual está nela mesma
carente-de-Si, encontra o seu Si”. Segundo Hegel, esta relação “tem
algo de prodigioso”, “um im ediato «viver-um -no-outro»”, e essa
influência não é simplesmente orgânica, pois “há um a causa psí­
quica em seu fundam ento” (Ibidem , p. 121).
— a relação do indivíduo a seu gênio: o terceiro m odo de a
alma hum ana chegar “ao sentim ento da sua totalidade” é sua rela­
ção com seu gênio (ou em linguagem de hoje, com seu inconscien­
te), ou seja, com “a particularidade do hom em , enquanto ela decide,
em todas as situações e condições do mesm o, sobre seu agir e seu
destino”. Segundo H egel, “eu sou algo duplo em m im mesm o; por
um lado, sou como eu me sei segundo m inha vida exterior e segun­
do m inhas representações universais; por outro lado, o que sou em
meu interior, determ inado de m aneira particular*'21 (Ibidem , p. 122;
ênfase do texto original). 27

27 A seguir, Hegel relativiza essa afirmação e acentua ainda mais o papel do gê


“Até mesmo a desperta consciência de-entendimento, que se move em determinações
universais, c determinada por seu gênio de modo tão imperioso que ali o indivíduo
aparece cm uma relação de não autonomia, que pode comparar-se à dependência do feto
para com a alma da mãe, ou com a maneira passiva como a alma, no sonho, acede à re­
presentação de seu mundo individual. Mas a relação do indivíduo a seu gênio, por outro
lado, se diferencia das duas relações, antes examinadas, da alma-que-sente, por ser sua
unidadr. por reunir-sc cm um só [os dois momentos, a saber] o momento, contido no
sonho natural— da unidade simples da alma consigo mesma — e o momento (presente na
relação do feto à mãe) da duplicidade da vida da alma; porque o gênio de um lado, como
a alma da mãe em relação ao feto, é um outro, dotado-se-si [selbstisches] diante do indivíduo,
e por outro lado forma com o indivíduo uma unidade tão inseparável quanto a alma com
o mundo de seus sonhos (Ibidem, par. 405, pp. 122-3; ênfase do texto original).

142 | Ideias psicológicas na obra de Hegel


t) H egel chega a esboçar u m a classificação nosológica, ou
seja, um a relação e análise das “doenças aním icas” com objetivos
sistem áticos. Sua definição de doença pressupõe um a vida efetiva­
m ente dupla e dissociada, gerando plena autonom ia entre si, da
alma em relação a seus dois lados: para com seu “m undo individual
e sua efetividade substancial”, e para com seu “m undo inserido em
conexão objetiva”. Nesse contexto, “o aním ico torna-se autónom o
ante o espírito, e até m esm o usurpa sua função” (Ibidem , par. 406,
p. 128). E ntre as doenças arroladas e descritas em detalhe em sua
dinâmica fenomenológica, estão o “sonambulismo, a catalepsia, a época
da puberdade das moças, o estado d a gravidez, tam bém a doença de
São Guido, e igualm ente o instante de aproxim ação da m orte”,28
bem com o “aquele estado que se cham ou de magnetismo a n im a r
(Ibidem , p. 129; ênfase do texto original). E m relação à dem ência,
que mereceu um parágrafo próprio, H egel diz que o sujeito “en-
contra-se na contradição entre sua totalidade sistem atizada na sua
consciência e a determ inidade particular que nela não é fluida nem
coordenada e subordinada” (Ib id em , par. 408, p. 148; ênfase do
texto original). A inda em relação a ela, nosso autor elogia em mais
de um a ocasião o p o n to de vista d e P hilippe Pinei, principal lide­
rança da psiquiatria ilum inista e revolucionária francesa, p o r “ter
captado esse resto de razão, presente nos loucos e nos delirantes”
(Ibidem , par. 408, p. 164), porque “pressupõe o doente com o [um
ser] racional” que “ainda contém saúde dentro de si” (Ibidem , p.
150), bem com o reitera os m esm os princípios do tratam en to m o ­
ral praticados por ele.
C ertam ente que a Enciclopédia e os dem ais trabalhos de H egel
m erecem análise mais detalhada e novos estudos, mas para o âm bito

28 Os comentários do autor acerca de cada uma dessas modalidades sào interes­


santes, mas é impossível tratá-los em detalhes no âmbito deste trabalho. Porém, é
interessante notar ainda que Hegel, em bora sem entrar em pormenores, indique o
instante da aproximação da morte como um fenômeno em que o “saber anímico [. . .]
chega cada vez mais ao domínio absoluto” (Ibidem, par. 406, p. 129). Na Fenomenologia,
a aceitação do risco da morte faz parte integral da Bildung da consciência, mas em
sentido mais heroico. O tema da morte e a angústia que gera será mais tarde extensa­
mente discutido pelo existencialismo, principalmente por Heidegger, em Ser e tempo,
de 1926, na qual coloca a enfrentamento desta angústia como o principal caminho na
conquista de uma vida autêntica.

Ideias psicológicas na obra de Hegel | 143


deste estudo e na perspectiva das ideias psicológicas pelas quais
optamos, penso que já temos arrolados acima boa parte dos princi­
pais temas levantados pelo filósofo alemão neste trecho da obra.
Essa trajetória sobre o pensamento hegeliano, no âm bito desta
revisão, mostrou em primeiro lugar que, a despeito da perspectiva
mais enfaticamente racionalista e universalista do autor, sua geniali-
dade possibilitou paradoxalmente ampla e detalhada investigação
e sistematização dos processos subjetivos e singulares do ser hum ano,
adiantando vários elementos que só mais tarde na história das ideias
psicológicas puderam receber tratam ento mais sistem ático. Além
disso, em paralelo com o movimento rom ântico, a filosofia raciona­
lista e dialética, representada aqui por H egcl com o sua figura central
até aquele m om ento da história, já apresentara tam bém no início
do século X IX um a concepção relativam ente com plexa e d etalh a­
da da subjetividade hum ana, particularm ente em relação às fases
do desenvolvim ento psicológico e à ideia de aparelho psíquico,
do inconsciente, e dos seus m ecanism os de fu ncionam ento e de
form ação da personalidade hum ana. Em terceiro lugar, o universa-
lismo enciclopédico de H egel o leva a um a perspectiva pouco reco­
nhecida de sua concepção de totalidade: além da totalização his­
tórica universal, que integra suas dim ensões tem poral, geográfica e
político-institucional, as relações entre os polos do universal, do
particular e da singularidade assumem tam bém dim ensões sutis da
alma e da subjetividade. Podem os nos perguntar se em H egel as
mediações lógicas e teóricas entre estes e a sua filosofia da história,
que enfatiza o todo, estão claram ente explicitadas. C o n tu d o , este
reconhecim ento da com plexidade própria e específica da subjeti­
vidade hum ana não significaria que, ainda no início do século X IX ,
ele não estaria prevendo a necessidade de um a perspectiva m u ltid i­
mensional e interdisciplinar para o conhecim ento do ser hum ano,
com o um a tarefa do próprio processo de totalização? C ertam en te,
este tem a representa um desafio para a tradição m arxista e retornará
nos próxim os volumes desta coletânea.
D e qualquer forma, esse m ovim ento inaugurado por H egel na
vertente dialética ainda teve outro representante im portante antes
de K. M arx, na figura de Ludw ig Feuerbach, tem a da próxim a seção.
144 | Ideias psicológicas na obra de Hegel
Capítulo 7
A crítica do idealismo racionalista
alemão antes de Marx:
precursores (Schopenhauer e
Kierkegaard) e Feuerbach, com
sua análise da alienação religiosa

7.1. Precursores da crítica ao racionalismo hegeliano:


Schopenhauer e Kierkegaard

Q u alq u er h istó ria das ideias psicológicas sobre a prim eira


m etade do século X IX não pode deixar de pelo m enos assinalar a
presença de dois autores europeus que, a despeito de não com par­
tilharem da interlocução e d a form ação de K arl M arx, objetivo
central deste estudo, tiveram influência no pensam ento psicológico
posterior: o alem ão S chopenhauer e o dinam arquês K ierkegaard.
A pesar de co m partilhar de alguns elem entos com uns com o ro ­
m antism o, am bos os autores não podem ser considerados ro m ân ti­
cos, razão pela qual não se deve inseri-los no capítulo anterior so­
bre o tem a. A m eu ver, o traço com um e principal dos dois autores
é sua reação ao racionalism o hegeliano, o que justifica a sua coloca­
ção à parte e posterior à o b ra do p en sad o r dialético alemão.

7.1.1. Schopenhauer

C o m o já assinalam os acim a, A rth u r S chopenhauer (1788-


-1860) não pode ser considerado com o um autor rom ântico nem
com partilha da interlocução de K arl M arx, devido a seu claro viés
antirracionalista. E n tre ta n to , sua im portância no conjunto da h is­
tória das ideias psicológicas no contexto alemão, com o mais um
dos precursores das ideias que desaguaram na psicanálise e n a psi­
cologia analítica, bem com o sua influência posterior mais am pla na
Schopenhauer, Kierkegaarde Feuerbach | 145
filosofia europeia, particularm ente no p en sam en to d e N ietzsche,
X L pelo menos um a breve referência aqui, na sequencia h istó ­
rica da primeira m etade do século X IX e d a reaçao ao hegeliam s-
mo Em bora com ungue vários elem entos com o ro m an tism o ale­
mão, como o gosto pela aventura subjetiva individual, o escapism o
interior, a franca oposição ao racionalism o de H e g e l (com o qual
Schopenhauer conviveu e com petiu na U niversidade de B erlim ) e
a simpatia pela m itologia e espiritualidade o rien tal, sua obra exce­
de o rom antism o particularm ente pelo seu caráter fo rtem en te pes­
simista e, até m esm o, pelo seu fascínio pelo desesp ero .1
Para Schopenhauer, particularm ente em O mundo como von­
tade e representação, de 1819, o elem ento p rim o rd ial nos seres hu­
manos é a vontade, sendo o intelecto apenas secundário, um m ero
instrum ento a serviço da vontade, que colore e distorce não só o
julgamento, mas tam bém a percepção original das coisas. Pelo fato
de que a vontade opera in d ep en d en tem en te d e nossa representa­
ção consciente da realidade, podem os cred itar a ela desejos, propó­
sitos e sentim entos não conscientes que co ntrolam a vida hum ana,
pondo Schopenhauer com o um dos precursores centrais das con­
cepções posteriores de inconsciente, da prim azia d a sexualidade^
sobre nosso com portam ento, bem com o da ideia freudiana de re­
pressão, pelo qual se suprim e da consciência certos conteúdos in ­
suportáveis, o que pode gerar até m esm o a insanidade.
E curioso notar a relação de Freud com Schopenhauer, uma
vez que o prim eiro reconhece a coincidência d e suas ideias com as
de seu precedente, mas desenvolve um a clara estratégia de distan­
ciamento, afirm ando um a leitura apenas tardia, para evitar a acusa­
ção de estar fazendo filosofia e não ciência.12 D e o u tro lado, Jung
1 Para os interessados em breve introdução panorâmica à vida e ao pensamento
de Schopenhauer, sugiro os trabalhos dc apresentação do autor, de Janaway (2003) e
de Birnbacher (2000), que serviram de referência principal para as poucas linhas
acima sobre a obra do autor.
2 É interessante retomar este trecho de Freud, de 1925 (Um estudo autobiográ­
fico):
Mesmo quando me afastei da observação, evitei cuidadosamente qual- j
quer contato com a filosofia propriamente dita. [. . .] O alto grau em que a
psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer — ele não somente afirma j
o domínio das emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também |
estava até mesmo cônscio do mecanismo da repressão — não deve ser remetida

146 | Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach


reconhece ab ertam en te a leitura do filósofo a p a rtir de seus dezes-
sete anos, ou seja, n a d écada de 1890.
D o p o n to de vista só cio -h istó rico e político, S ch o p en h au er
pode ser considerad o um irracionalista radical, pois vê o p red o m í­
nio d a v o ntade com o in cap az de gerar q ualquer m eta ou finalida­
de, causando inevitavelm ente d o r e sofrim ento. A s únicas saídas
para o ser h u m a n o seriam , em caráter provisório, a contem plação
estética e o ascetism o religioso, m as m ais fu n d am en tal e de form a
mais definitiva, a ren ú n cia q u ietista ao eu e ao m u n d o , ao desejo,
pela aceitação integ ral d o so frim en to com o característica principal
da vida, u m a ideia que tam b ém tem inspiração no budism o, mas
em u m a versão b astan te p essim ista e conservadora.
A ssim , d o p o n to de vista d o p resen te trab alh o e de seu autor,
a concepção de S ch o p en h au e r c o n stitu i um dos exem plos mais
cristalinos da possibilidade real d a ideia de in co n scien te p o d er g e­
rar, se levada ao extrem o, a u m a concepção pessim ista, irracionalis­
ta e conservadora d a vida h u m a n a, social e política.

7.1.2. Kierkegaard

S õren A sbye K ierkegaard (1 8 1 3 -1 8 5 5 ) nasceu em um a D i­


nam arca ainda m o n árq u ica e teo crata, o n d e o cristianism o ainda
ditava incólum e o co m p o rtam e n to e as leis m orais para a p o p u ­
lação, e era tam b ém fo rtem en te m arcada pela influência do p e n ­
sam ento hegeliano. Sua obra, nesse sen tid o , p ode ser considerada
como um a reação e crítica ao luteranism o pietista e moralista im posto
por sua fam ília e sociedade, n a direção de um a espiritualidade cen ­
trada na p rio rid ad e da existência p ró p ria de cada individualidade,
a m inha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde
em m inha vida” (Freud [XX], 1925, pp. 75-6).
E ntretanto, como notam os com entadores de suas obras standard, há várias
referências à obra do filósofo desde 1917, até mesmo a “uma passagem intensamente
comovente” e “palavras de inesquecível impressividade” de um trecho de O mundo como
vontade e representação, trecho que é também reproduzido em suas obras completas (in:
Freud [XIX], 1923-1925, p. 277). M esmo que acreditemos que a leitura do filósofo
por F reud ten h a sido realm ente tardia, Janaw ay salienta que “a atenção dada a
Schopenhauer na vida acadêmica e cultural durante esse período foi um im portante
fator em termos de tom ar possível a obra de Freud, quer ele tenha ou não dado conta
disso” (Janaway, 2003, p. 154).

Schopenhauer, Kierkegaarde Feuerbach | 147


como um enigma a ser decifrado e vivido, em suas contradições e
paradoxos.3
A partir de sua crítica ao hegelianism o, particularm ente das
obras finais de H egel, que subordinavam a experiência individual
à lógica da história e dos desdobram entos da razão, Kierkegaard
propõe que a existência e a vida subjetiva não pode ser objetivada
por qualquer tipo de saber, particularm ente a filosofia. Para ele, a
interioridade hum ana, em sua infinitude, encontra-se para além
da linguagem, como um a aventura que cada indíviduo deve viver
na sua relação com os outros, com D eus e particularm ente consigo
mesmo, em suas experiências da paixão, do prazer, e das emoções
em geral, mas sobretudo do tédio, da dor, da ansiedade, da angústia
e do desespero, como vivências contraditórias inerentes à condição
humana. E ntretanto, a saída indicada por Kierkegaard não é cética,
aética ou hedonista. Pelo contrário, sua filosofia acentua a res­
ponsabilidade ética em sua ênfase na noção de ‘‘escolha”, núcleo
fundam ental do dilem a hum ano, que não pode ser garantida p o r
quaisquer razões lógicas, mas sim pelo sentim ento. Nesse sentido,
para o autor, as funções psíquicas da em oção/sentim ento e da fan­
tasia têm a mesmo peso hierárquico do pensam ento e da inteli­
gência. E ntretanto, a conduta ética tam bém tem seus limites, e a
perspectiva de saída proposta p o r ele estaria na experiência religio­
sa, mas entendida tam bém com o intrinsecam ente paradoxal e co n ­
traditória em si mesma, e ainda m arcada pelo angústia e desespero.
Nesse sentido, Kierkegaard m antém um a noção dialética da subje­
tividade em sentido m uito próprio, um a vez que sustenta que existir
é m anter o contraditório e o paradoxal com o realidade p erm an en ­
te, em todas as suas dimensões e etapas. Por essa trajetória, exposta
em várias obras escritas sob pseudónim o, é considerado pela m aio ­
ria dos historiadores e filósofos com o o m aior precursor das ideias
existencialistas que em ergiram no século XX, particularm ente de
H eidegger e Sartre.

3 Para uma rápida introdução à vida e ao pensamento de Kierkegaard, sugiro os


artigos de apresentação de Chauí (1979) e Hcnningfcld (2000).

148 | Schopenhauer.; Kierkegaard e Feuerbach


7.2. Feuerbach e o contexto mais geral
de sua vida e obra

A trajetória biográfica de Ludw ig A ndreas von Feuerbach


(1804-1872) tem alguns elementos em comum com Marx. A o aden­
trar a vida universitária, simpatizou-se com o pensam ento hegeliano,
deslocando-se para a Universidade de Berlim, onde participou do
grupo dos Jovens Hegelianos, de esquerda. Contudo, além da presen­
ça racionalista de H egel, sua formação foi m arcada tam bém pela
influência de G iordano Bruno e Espinosa, que o aproximou de uma
concepção m onista da filosofia e m undo, constituindo este um ele­
m ento bastante singular e presente no conjunto de sua obra. Seu
prim eiro trabalho, Pensamentos sobre a morte e a imortalidade, publi­
cado originalm ente sob pseudónim o em 1830, ao advogar que a
crença na imortalidade esvaziara a vida humana de sentido e ao atacar
a vida hipócrita do clero, teve sua autoria logo descoberta, levando
a a u to c ra c ia alem ã a e x p u lsá -lo do p o sto de p ro fe s s o r da
Universidade de Erlangen e lhe fechar qualquer o utra possibilidade
na carreira acadêmica, destino com um tam bém para os dem ais jo ­
vens hegelianos David Friedrich Strauss, Bruno Bauer, M ax Stim er,
A rnold Ruge e o próprio M arx. Após alguns anos de luta e atividade
filosófica independente» Feuerbach casou-se com uma proprietária
de um a pequena fábrica de cerâmica localizada em Bruckberg, perto
de N urem berg, em am biente inteiram ente rural, afastando-se ainda
mais da atividade política direta. Sua obra, durante os anos 1830,
revela um a gradual sistem atização da herança filosófica que o an te­
cedera, nos livros A história dafilosofia de Bacon a Espinosa, de 1833,
e Uma crítica da filosofia hegeliana, de 1839, e não só m arcou sua
posição contra a filosofia idealista, como traçou sua própria id e n ti­
dade e posição neste quadro. O s limites do presente trabalho im p e­
dem qualquer pretensão de um a avaliação mais sistem ática do co n ­
ju n to de sua o bra4, mas não podem os evitar de revisar as principais

4 Para o leitor interessado no aprofundamento descritivo e crítico sobre sua vida


e obra, sugiro a leitura dos seguintes trabalhos: em português, Bertrand (1989), que
mostra a relação de suas intuições com as de Marx, Giannotti (1966), que analisa suas

Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 149


ideias psicológicas presentes em A essência do cristianismo, de 1841,
que constituiu seu livro mais im portante e influente, e cujas ideias
tiveram profunda repercussão no pensamento de Marx.

7.3. O contexto e a significação mais geral de


A e ssê n cia d o cristia n ism o

U m a com preensão m elhor do significado dessa obra nos re­


quer, antes, relem brar e recom por alguns de seus elementos con­
textuais e filosóficos. U m prim eiro aspecto diz respeito ao contexto
político alemão no período da Restauração, em que a m onarquia e
as igrejas cristãs voltaram reforçadas e fortem ente prevenidas contra
a agitação liberal, republicana, secular, jacobina ou popular, con­
centrando a vida política na nobreza e proibindo qualquer forma
de participação política, bem como utilizando abertam ente a censu­
ra à im prensa e à vida acadêmica. A contestação política tomava
assim a forma deslocada e abrandada de crítica teórica e cultural,
principalm ente à cultura religiosa oficial, o que necessariamente tinha
tam bém seus riscos no contexto repressivo, pois levava a seus auto­
res ao ostracism o acadêmico e na imprensa. Nesse contexto, a obra
de Feuerbach tin h a clara e direta significação e dim ensão política.
D o p o nto de vista filosófico, essa obra de só pode ser mais
bem com p reen d id a se tom ada como um a dupla contraposição: a
prim eira, ao idealismo de Hegel, até então considerado o ápice da
filosofia alemã, e que apesar de forte presença na própria formação
mais geral de Feuerbach e em vários de seus principais conceitos,
constitui seu principal objeto de oposição; e a segunda, àpsicologia
sensacionista e racionalista, de cunho iluminista, tam bém já revisada
acima. E m relação à prim eira, sua trajetória e seus principais ele­
m entos serão indicados adiante, mas, em relação à segunda, é n e­
cessário reto m ar algumas questões mais fundam entais para se e n ­
ten d er a trajetória proposta por Feuerbach.

ideias presentes nas obras do período entre 1838 e 1843, Philonenko (1993) e o
próprio Engels (1886/1975). Para uma análise mais sistemática de sua biografia e
obra, em inglês, ver também W artofsky (1982) e Kamenka (1969). Estas foram as
referências de interlocuçào para a escrita da presente seçào, além da própria leitura de
A essência do cristianismo.

I SO | Schopenhauery Kierkegaard e Feuerbach


Lem brem os que a psicologia sensacionista significava um es­
forço efetivo do ilum inism o francês em com preender o processo de
formação da subjetividade dos indivíduos e das massas populares,
como forma de superação da passividade e alienação provocada pelas
perspectivas metafísicas, religiosas e obscurantistas impostas pelo
clero e pela aristocracia “através da imaginação”, m ostrando a possi­
bilidade de conhecer esse processo em bases racionais e científicas.
N o entanto, essa concepção ainda implicava aporias e dificuldades,
colocadas pela sua inspiração hegem onicamente empirista, de cunho
atomista e mecanicista, que concebia a subjetividade e a racionali­
dade hum ana construída pelo somatório e combinação das experiên­
cias sensíveis, gerando portanto o risco de fragm entação e relativis-
mo na base do conhecim ento hum ano, com dificuldades de gerar
um conhecim ento crítico e racional em relação a esta própria reali­
dade que o formara, bem com o possibilitar um a universalização
efetiva e sustentável de suas teses. Vimos com o as contribuições de
K ant e de H egel visaram dar respostas a essa problem ática por d i­
ferentes cam inhos, e é interessante lem brar que o esforço desenvol­
vido por H egel apostava na racionalidade da própria história e em
sua apreensão pela consciência filosófica e política intelectualizada
e crítica. Nesse contexto, podem os dizer que A essência do cristianis­
mo retom a essa problem ática fundam ental da psicologia sensacio­
nista, ou seja, a da imaginação e da alienação das massas, mas m edian­
te um a terceira viay até então original, tentando superar o idealismo
de H egel por um a retom ada do viés materialista, buscando co n tu ­
do não repetir as mesmas dificuldades da psicologia sensacionista.
E m outras palavras, para Feuerbach, a ilusão e a alienação
religiosa não constituem apenas um fenôm eno social, e não é cons­
truída apenas pelo som atório cum ulativa de experiências sensíveis
e de inform ações/aprendizagem racional durante a vida dos indiví­
duos, em que a im aginação participaria apenas como função fragili-
zadora e que tornaria os indivíduos mais passíveis à alienação social
e religiosa. A im aginação, para ele, tem origens tam bém psicoló­
gicas e sua dinâm ica envolve m ecanism os psicológicos coletivos
e individuais com plexos, que precisam ser conhecidos para p o d er
em basar um projeto de desalienação. O autor parte da noção d e
Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 151
que os seres humanos individuais são clivados, separados de sua
essência hum ana, dadas as condições históricas lim itadas, as priva­
ções e o sofrim ento vividos, que im põem a necessidade histórica
da ilusão, que implica então um processo psicológico, que pode
ser mobilizado em m aior ou m enor escala pelas circunstâncias so­
ciais. C ontudo, existe um desejo dc reunificação com esta essên­
cia, que m obiliza prim ordialm ente o desejo, a própria im agina­
ção e o sentim ento, e que projeta na figura divina o n ip o ten te as
próprias qualidades do gên ero h u m a n o , em um processo alie-
nante e em um prim eiro m o m en to apenas negativo, com o des-
pojador das qualidades hum anas. C o ntudo, o fenôm eno tam bém
tem facetas positivas, de produzir realidades, já que cum pre fu n ­
ções de com pensação im aginária das lim itações psicológicas es­
truturais e sócio-históricas de cada indivíduo concreto. E sta ob-
jetivação projetiva, se devidam ente reconhecida, pode tam bém gerar
um processo de desalienação e co n stitu ir a base para o conheci­
m ento da riqueza e m ultiplicidade das qualidades psicológicas e
antropológicas do ser hum ano.
Dessa forma, diversam ente da ênfase hegem ónica de H egel
sobre o espírito histórico-racional e sobre a consciência filosófica
das elites intelectuais que apreendem o fenôm eno, Feuerbach reto ­
ma a busca das características ontológicas do ser hum ano, m as prio-
riza em sua trajetó ria os p ró p rio s m ecanism os psicológicos as­
sociados à alienação religiosa vividos pelas massas populares, ou
seja, o desejo, a im aginação e o sen tim en to (anteriores p o rtan to
às funções cognitivas e racionais elaboradas) com o as principais
funções psicológicas que conectam im ed iatam en te os seres h u ­
m anos às qualidades m ais gerais do gênero hu m an o .
Assim, não é preciso m uito esforço para com preender a im por­
tância e a centralidade que essa obra de Feuerbach atribui ao cam ­
po psicológico e a seus m ecanism os específicos, mais precisam ente
a duas áreas específicas que mais tarde, no século X X , identificaría­
mos como o da psicanálise e da psicologia social. D essa forma, pode­
mos dizer que a contribuição de Feuerbach para a história das ideias
psicológicas é essencial. Sem dúvida algum a, em Feuerbach já está
esboçada um a teoria psicológica b astan te rica e com plexa da d ia­
I 52 | Schopenhauer,; Kierkegaard e Feuerbach
lética do desejo e do im aginário, que adianta muitos dos aspectos
das formulações contem porâneas sobre o fenôm eno, com fortes
implicações no cam po da cultura, da m itologia e das representações
sociais, com amplo uso atual na m ídia e na propaganda, e que tam ­
bém corresponde a um tem a teórico pouco desenvolvido por M arx.
Em posse dessas considerações mais contextuais e teóricas,
podem os agora considerar as intuições específicas de A essência do
cristianismo.

7.4. As principais proposições de A e ssê n cia d o


cristia nism o no campo psicológico

D entro da estrutura mais geral da obra, as principais propo­


sições em relação ao mecanismo da alienação religiosa se encon­
tram nos dois capítulos iniciais, que com põem a introdução do
livro, e as duas partes mais longas dizem respeito às teses e caracte-
rísticas projetadas sobre a figura divina e sistematizadas pela teolo­
gia, que Feuerbach pretende trazer para um a antropologia do p ró ­
prio ser hum ano m ediante o estudo dos fenômenos religiosos e das
elaborações teológicas.
Para um a abordagem descritiva da dinâm ica da alienação re­
ligiosa de Feuerbach, m inha proposta é inspirada inicialm ente no
esquem a analítico proposto por Bertrand (1989), que a sintetiza
em três m ovim entos-chave: no prim eiro, há um a clivagem, pois o
ser hum ano não pode realizar a sua essência e a sua universalidade
em sua vida concreta; no segundo, projeta esse desejo para fora de
si, objetivando-o, atribuindo as suas qualidades essenciais ao ser
divino e onipotente; e no terceiro e últim o, há um a inversão, em
que o sujeito hum ano vira objeto deste O utro ideal projetado, e
este, p o r sua vez, se torna o sujeito da equação. Assim , wa religião
pode ser interpretada com o e esforço do hom em em su p rim ir o
sofrim ento que provém da clivagem, e em ser restaurado na sua
unidade. E este desejo essencial e fundam ental que está na fo n te
de to d a a crença” (B ertrand, 1989, p. 17). E ntretanto, utilizarem os
esse esquem a analítico baseado em movimentos, m an ten d o os três
já indicados p or ele, mas acrescentarem os a seu esquem a m ais dois
Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 15 3
movimentos, o da dialética do desejo e suas funções sócio-históricas
e psicológicas; e com o últim o, o do reconhecim ento da projeção
como movimento de desalienação, com a descoberta das qualidades
psicológicas e antropológicas humanas. Elaboraremos então a seguir
um detalham ento abaixo dos argum entos e teses centrais do livro e
de cada um desses m ovim entos,5 repassando algumas citações que
consideramos centrais, da m esm a form a realizada para com outros
autores im portantes, co m o estratégia de evid en ciar a fid elidad e ao
pensam ento original do autor e ilustrar-lhe o estilo para os leitores.

7.4.1. O s argumentos e teses centrais do livro

N o prefácio à segunda edição, Feuerbach já sintetiza a tese


central do livro:

“A religião tom a a essência aparente e superficial da


natureza e da hum anidade por sua essência verdadeira e inte­
rior e por isso im agina a essência verdadeira e esotérica da
mesma com o um a essência estranha e especial, que, portanto,
a religião, nas determ inações que ela atribui a D eus, [. . .]
apenas define ou objetiva a verdadeira essência da palavra
hum ana. [. . .] A religião é o sonho do espírito hum ano. M as
no sonho não nos encontram os no nada ou no céu, mas sobre
a terra — no reino da realidade, apenas não enxergam os os
objetos reais à luz da realidade e da necessidade, mas no bri­
lho arrebatador da im aginação e da arbitrariedade” (Feuer­
bach, 1841/1997, p. 31).

Para essa trajetória, o autor cham a a atenção para um pressu­


posto teórico fundam ental de seu argum ento, sobre a n atu re za

s É interessante o leitor notar pela paginação das citações que esses movimentos
não são encadeados de forma tão linear por Feuerbach, que reitera ou aperfeiçoa por
inúmeras vezes os seus argumentos dentro do livro. Assim, essa ordem dc apresentação
por movimentos encadeados, sugerida por Bertrand e aqui expandida, segue o processo
de génese e desenvolvimento ontológico e psicológico do fenômeno descrito, bem como
revela preocupação didática de contribuir para melhor compreensão do autor pelos
leitores.

I 54 | Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach


simbólica dos objetos e rituais religiosos, em cuja produção en­
tram prioritariam ente a imaginação e a fantasia.6
Se esse elem ento da dim ensão simbólica já estava presente
tam bém em H egel, um a outra característica da abordagem de
Feuerbach, já brevem ente indicada cima, dem arca um a contrapo­
sição clara a ele: no conjunto das funções psicológicas mobilizadas
pela religião, a razão e a racionalidade estão presentes, mas como
u m a q u alid ad e ap en as d a essência objetiva h u m an a: “A razão
considera com o m esm o entusiasmo a pulga, o piolho e, com o im a­
gem de D eus, o hom em . A razão é «a indiferença e a identidade
absoluta» de todas as coisas e seres. [. . .] [Ela] afirma a essência do
hom em , mas a essência objetiva, o ser que se relaciona com o objeto
pelo objeto” (Ibidem , p. 89). E m oposição está o hom em concreto,
em que as dem ais funções subjetivas, com o a im aginação/fanta-
sia, o desejo, a a fetiv id a d e/sen tim en to são a m arca p re p o n d e ­
rante: “U m D eus que expressa som ente a essência da razão não
satisfaz, então à religião, não é o D eus d a religião” (Ibidem , p. 88).
D o ponto de vista dos campos do conhecimento, um dos objeti­
vos centrais dessa obra de Feuerbach é propor um a transform ação
da teologia em antropologia e psicologia: “N ossa m eta é exatam en­
te m ostrar que a teologia é apenas um a psicologia oculta a si mesma,
a patologia, a antropologia e psicologia esotérica, e que por isso a an­
tropologia, a patologia e a psicologia real têm m uito mais direito
sobre o nom e teologia do que a própria teologia, pois esta nada mais
é do que um a psicologia e um a antropologia fictícia” (Ibidem, p. 132).

7.4.2. O prim eiro movimento:


o ser humano e sua clivagem essencial

Inicialm ente, Feuerbach parece considerar esta clivagem com o


fenôm eno mais superficial, de natureza consciente ou semiconsciente:

6 “Assim é também o objeto da religião no sentido desta obra, i.é, compreendido


no sentido antropológico, um objeto infinitamente mais fecundo e mais real da teoria
e da prática do que no sentido da teologia; porque, como aquele que é ou deve ser
comunicado na água, no vinho e no pão, como algo diverso desses elementos naturais,
como algo da imaginação, da fantasia” [. . .]. [Por exemplo], “a água do batismo —
objeto de minha análise — é simultaneamente a própria água e uma água alegórica e
simbólica” (Ibidem, pp. 32-3).

Schopenhauery Kierkegaard e Feuerbach | 155


“U m a limitação que reconheço como a m inha limitação, esta me
humilha, me envergonha e me intranquiliza. Então, para me libertar
desse m ovimento de vergonha, dessa intranquilidade, faço das lim i­
tações da m inha individualidade as limitações da própria essência
hum ana” (Ibidem , pp. 48-9). E ntretanto, ao avançar a obra, a na­
tureza desta divisão assume um caráter cada vez mais estrutural,
como na polaridade entre falta/lim itação e com pletude/ilim ita-
ção:7 “A consciência de m inha limitação está em contradição como
instinto de m inha pessoa de exigir ilimitação” (Ibidem , p. 126).
E ntretanto, já no início do capítulo III, essa clivagem passa
a ser abertam ente ontológica: “O que deve ser dem onstrado en­
tão que esta oposição, que esta cisão entre D eus e o hom em , com a
qual se inicia a religião, é um a cisão do hom em com sua própria
essência” (Ibidem , p. 77). U m a prim eira faceta dessa cisão ontoló­
gica entre D eus e os seres hum anos, e portanto interna aos últim os,
está na polarização en tre razão/universalidade e sen tim en to /p ai-
xão/singularidade.8 C o n tu d o , essa cisão ontológica ganha no de­
senvolver do texto outras facetas e polaridades:
— lim itação e corporalidade versus ilimitação e espirituali­
dade;
— passividade, destituição de vontade, ser-para-o-outro e ob­
je to versus au tonom ia, independência, liberdade, ser-p ara-si e
sujeito;
— finitude, diferença, individualidade e gênero versus u n i­
dade entre existência e essência, identidade a si m esm o, incom en-
surabilidade e princípio suprem o de todas as hierarquias;

7 É interessante lembrar que esta oposição falta/completude representa exata­


mente a base da dialética do desejo na obra dc Lacan.
8 “A razão nada sabe dos sofrimentos do coração; não tem anseios, paixões,
necessidades e por isso máculas c fraquezas como o coração. Homens puramente ra­
cionais, homens que para nós simbolizam e personificam a essência da razão, ainda são
isentos de angústias, paixões e excessos dos homens sentimentais; não se prendem a
nenhum objeto finito, i.é, determinado de maneira passional; não se empenham, são
livres. [. . .] A razão é a própria faculdade do gênero; o coração representa os casos
especiais, os indivíduos, a razão, os casos gerais; ela é a força e a essência sobre-humana,
i.é, a força ultra e impessoal do homem. [. . .] Por isso os antropomorfismos religiosos
contradizem a razão; ela os retira de Deus, ela os nega. Mas este Deus desantropo-
morfizado, implacável e frio nada mais é do que a própria essência objetiva da razão”
(Ibidem, pp. 78-9)

I 56 | Schopenhauer,; Kierkegaard e Feuerbach


— nulidade moral, ser realm ente existente, pecado, “carne e
sangue” versus perfeição moral, o que se deve ser, desconhecim ento
e ausência do pecado.

7.4.3. O segundo movimento:


a objetivação e projeção da essência em um O u tro

Nesse segundo m ovim ento, Feuerbach inspira-se diretam en­


te na categoria de objetivação hegeliana.9 C o ntudo, essa objetiva­
ção em Feuerbach não é apenas abstrata, reflexiva ou racional, mas
principalm ente espontânea, necessária (Ibidem , p. 71) e de caráter
essencialm ente pessoal.10
Nesse m ovim ento de projeção, Feuerbach assim reconhece a
im portância da esfera da em oção e do sentim ento: “É o sentim ento
o órgão essencial da religião, então nada mais expressa a essência de
D eus a não ser a essência do sentim ento. [. . .] som ente o senti­
m ento é tido com o o órgão do divino. [. . .] a única coisa que po­
des objetivar, declarar com o infinita, definir com o sua essência, é
apenas a natureza do sentim ento” (Ibidem , pp. 50-2).
Nesse sentido, sua abordagem avança e vai além da concepção
hegeliana. A objetivação em Feuerbach m ostra vinculação m uito es­
treita com o desejo, o sentim ento e a im aginação; as características
são projetadas sobre um ser im aginário com características antropo­
mórficas e pessoais, e constitui um fenôm eno que de certa forma
adianta um a antecipação do gozo e da compensação imaginária pela

9 “O homem nada é sem objeto. [. . .] Mas o objeto com o qual um sujeito se


relaciona essencial e necessariamente nada mais é que a essência própria, objetiva
deste sujeito. [. . .] Por isso o homem toma consciência de si mesmo através do objeto:
a consciência do objeto é a consciência que o homem tem de si mesmo. Através do
objeto conheces o homem; nele a sua essência te aparece; o objeto é a sua essência
revelada, o seu Eu verdadeiro, objetivo. [. . .] O ser absoluto, o Deus do homem é a sua
própria essência. [. . .] Por isso, qualquer que seja o objeto de que tomemos consciên­
cia fará simultaneamente que tomemos consciência da nossa própria essência. Não
podemos confirmar nada sem confirmarmos a nós mesmos” (Ibidem, pp. 46-7).
10 “Mas os predicados divinos são, por um lado, gerais, por outro lado, pessoais.
Os gerais são os metafísicos, mas estes servem apenas na extrema coerência ou no
fundamento; não são as qualidades características da religião. Somente os predicados
pessoais são os que fundamentam a essência da religião [. . .]. Mas para a religião é
Deus o pai real, vivo, pessoal; suas verdadeiras qualidades são por isso também quali­
dades vivas, pessoais” (Ibidem, pp. 66-7).

Schopenhauery Kierkegaard e Feuerbach | I S 7

i
dura realidade vivida pelo sujeito. Essas particularidades m ostram
claramente os avanços efetuados por Feuerbach na análise de um fe­
nôm eno que mais tarde a psicanálise cham ará de projeção, como um

“m odo de defesa prim ário [. . .] pelo qual o sujeito projeta


num o utro sujeito ou num objeto desejos que provêm dele,
mas cuja origem desconhece, atribuindo-lhe um a alteridade
que lhe é externa” (Roudinesco 8c Plon, 1998, p. 603), e que
têm profundas relações com a satisfação narcísica: “Consciência
é autoconfirm ação, autoafirm ação, am or-próprio, co n ten ta­
m ento com a própria perfeição. [. . .] A própria vaidade h u ­
m ana confirm a esta verdade. O hom em se m ira no espelho;
ele se agrada com a sua figura. E ste agrado é um a consequên­
cia necessária, espontânea da perfeição, da beleza de um a
im agem . [. . .] C ertam ente, to d o ser am a a si m esm o, a sua
essência, e deve am á-la” (Feuerbach, op. cit., p. 48).

7.4.4. O terceiro movimento: a inversão sujeito-objeto


entre o ser humano e o O u tro projetado, com o negação e
empobrecimento das características humanas

A qui, a objetivação/projeçâo efetuada apresenta um caráter


de despojam ento das características ideais do ser hum ano: “O ho­
mem afirma em Deus o que ele nega em si mesmo9 (Ibidem , p. 68;
ênfase do próprio autor). H á tam bém aqui u m a inversão do par
sujeito/atividade e objeto/passividade: “O hom em — e este é o
segredo da religião — objetiva a sua essência e se faz novam ente
um objeto deste ser objetivado, transform ado em sujeito, em pes­
soa; ele se pensa, é objeto para si, m as com o objeto de um objeto,
de um outro ser” (Ibidem , p. 71).
O m ovim ento de projeção seguido de inversão das im agens
inclui p o rta n to um processo sim u ltân eo de en riq u ecim en to da
im agem de D eus e de em pobrecim ento d o ser h u m a n o .11 D essa
11 “Assim, na religião nega o homem a sua razão: nada sabe de Deus, seus
pensamentos são apenas materiais, terrenos, só pode crer no que Deus lhe revela. [. . .]
Em resumo, o homem nega a Deus pelo seu saber c pensar para estabelecer em Deus
o seu saber c pensar. O homem renuncia à sua própria pessoa, mas em compensação é
para ele Deus o ser onipotente e ilimitado, um ser pessoal [ . . . ] . A religião nega em

I 58 | Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach

i
forma, o processo de divisão ou splitting põe na esfera do sagrado
todas as características positivas*12 (como o pensar, o conhecimento,
a onipotência, a pessoalidade, o bem moral, a atividade com o sujei­
to, a eternidade, etc.) e do outro lado, na esfera hum ana, todas as
características negativas (a ignorância, o mal moral, a limitação, a
passividade, a transitoriedade, etc): “D eus e o hom em são extre­
mos: D eus é o unicam ente positivo, o cerne de todas as realidades,
o hom em é o unicam ente negativo, o cerne de todas as nulidades”
(Ibidem , p. 77). A lém disso, essa polarização tem não só um claro
sentido negativo, de extração/negação, como também de um jogo de
inversão das intensidades, pelo qual o crescimento em um polo gera
necessariam ente perda equivalente no outro.13
Assim , tam bém aqui devemos atentar para as especificidades
introduzidas por clc na análise do fenôm eno. A projeção im aginá­
ria para Feuerbach não é apenas m ovim ento de imagens, mas en­
volve um a espécie de econom ia de energia psíquica m uito sem e­
lhante ao prim eiro m odelo metapsicológico elaborado por Freud,
que conserva ou potência a energia reprim ida ou recalcada, que se
m anifesta em outro lugar ou de outra form a, por m eio de processos
diretam ente sensoriais ou de gozo efetivo: “Q uanto mais o sensorial

seguida o bem como uma qualidade da essência humana: o homem é perverso, cor­
rompido, incapaz do bem, mas em compensação somente Deus é bom, o bom ser”
(Ibidem, p. 69).
12 E importante notar, a meu ver, que aqui os termos polares positivo/negativo
usados podem ter dois sentidos que neste terceiro movimento se complementam. O
primeiro sentido diz respeito ao campo da moral, ou seja, da relação entre o bem e o
mal, ou do enriquecimento e empobrecimento das qualidades humanas. O segundo
sentido está mais associado ao campo ontológico/histórico, em que significam afirma-
ção/objetivação/positivaçào ou extração/recalcamento de uma realidade no campo
histórico, antes de qualquer consideração ou avaliação moral. No quarto e quinto mo­
vimentos, o uso desses termos refere-se apenas ao segundo sentido, o que me parece
apontar para um dos objetivos da desalienação religiosa em Feuerbach: o de recuperar,
afirmar e objetivar no ser humano, agora de forma integrada, tanto as suas qualidades
morais positivas quanto negativas.
,J “Deus é a essência do homem mais subjetiva, mas própria, separada e abstraí­
da, e assim não pode ele agir de si, assim todo bem vem de Deus. Q uanto mais
subjetivo, quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem de sua
subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado,
mas do qual ele se apropria novamente. [ .. .] Na sístole religiosa expulsa o homem a
sua própria essência para fora de si, ele expulsa, repreende a si mesmo; na diástole
religiosa acolhe ele novamente em seu coração a essência expulsa. Somente Deus é o
ser que age de si” (Ibidem, p. 72).

Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 159


é negado, tan to mais sensorial é o D eus ao qual o sensorial é sacri­
ficado” (Ibidem , p. 68). O u ainda: “Para enriquecer D eus deve o
hom em se to rn ar pobre para que D eus seja tudo e o hom em nada.
[. . .] T u d o o que o hom em se priva, que ele dispensa em si mes­
m o, só goza ele em D eus num a intensidade incomparavelmente
m aior e mais rica” (Ibidem , p. 68).

7.4.5. O quarto movimento: a dialética do desejo e do


imaginário com o produção positiva de realidades sócio-
-históricas e psicológicas

Se no m ovim ento anterior essa divisão e polarização ontoló­


gica em erge apenas de forma espúria e negativa, como despojamento
e em pobrecim ento do ser hum ano, neste próxim o m ovim ento ela
em erge tam bém em sua forma positiva, com o produtora de reali­
dade e com funções concretas no cam po sócio-histórico e psico­
lógico. C o m o vimos, Feuerbach visa traduzir o cam po ontológico e
teológico para o psicológico e antropológico, e nesta direção, a reli­
gião tem eficácia social e psicológica, busca um preenchim ento
im aginário dessa divisão e incom pletude ao m esm o tem po estru­
tural da essência hum ana, como tam bém histórica, adiantando um a
satisfação que não pode realizar-se nas condições sociais concretas.14
A ssim , Feuerbach já esboça uma dialética do desejo que só
bem mais tarde seria explicitada com toda a riqueza e rigor por
Sigm und Freud — com seus modelos metapsicológicos e sua n o ­
ção de pulsão, regida pelo princípio do prazer, em oposição à cons­

14 “Na religião, o homem quer se satisfazer” (Ibidem, p. 88). O u em outras


palavras: “Deus nasce do sentimento de uma privação; aquilo dc que o homem se sente
privado (seja esta uma privação determinada, consciente ou inconsciente) é para ele
Deus. Assim, o desesperado sentimento do vazio e da solidão necessita de um Deus no
qual exista sociedade, uma união dc seres que se amam intim am ente” (Ibidem, p.
116). Ou ainda em outra formulação: “Na religião o homem se liberta das limitações da
vida; aqui deixa ele desaparecer o que o oprime, trava e impressiona negativamente.
[. • .) Na personalidade dc Deus o homem festeja o sobrenaturalismo, a imortalidade,
a independência e a ilimitação da sua própria personalidade" (Ibidem, pp. 140-1).
Este processo inclui também os rituais religiosos concretos: “O que é então a oração
senão o desejo do coração expresso na confiança da sua realização. [. . .] Na oração o
homem se esquece que existe um limite para os seus desejos e sente-se feliz neste
esquecimento” (Ibidem, pp. 163-4).

160 | Schopenhauer,; Kierkegaard e Feuerbach


ciência e ao E u, regidos pelo princípio da realidade — , bem co m o
p o r Jacques L acan .15
D e form a sem elhante, há aqui tam bém um esboço de u m a
te o ria do im aginário, que opera tan to a esfera da ilusão com o ta m ­
b ém a da superação e d a criação, naquilo que C astoriadis (1982)
cham aria mais tarde de im aginário radical, que expressa funções
in stitu in tes na vida pessoal e social: “E u am plio o m eu horizonte
sensorial através da fantasia; eu concebo na ideia confusa da to ta li­
dade todas as coisas, até m esm o as ausentes espacialm ente e estabe­
leço essa ideia que me eleva acima do ponto de referência sensorial
lim itados, que me toca beneficam ente, com o um a essência divina”
(Ibidem , p. 257).

7.4.6. O quinto movimento: o processo de desalienação,


com o reconhecim ento da projeção e das características
psicológicas e antropológicas da essência humana

A pesar do caráter enfático da denúncia da alienação religiosa,


ela ainda se constitui com o um a possibilidade de autoconheci-
m e n to e re c o n h e c im e n to .*16
E n tre ta n to , este p ro cesso d a d esalien ação não se dá a u ­
to m a tic a m e n te , m as p assa p o r d ife re n te s passos e m o m en to s
parciais. O prim eiro seria a do ateísm o, de um a negação da religião
e das qualidades projetadas: “A negação de predicados determ i­
nados, positivos da essência divina nada mais é do que um a nega­
ção da religião que, en tretan to , ainda conserva um a aparência de

,s É interessante comparar a abordagem lacaniana com o seguinte trecho: “O


desejo não se prende a nenhum obstáculo, a nenhuma lei, a nenhum tempo; ele quer
ser realizado sem demora, imediatamente. [. . .] O milagre é um objeto da imaginação
e exatamente por isso é afetivo (porque a fantasia é a atividade correspondente à
afetividade), porque se liberta de todas as limitações, de todas as leis que ferem a
afetividade e assim objetiva para o homem a satisfação imediata, ilimitada de seus
desejos mais subjetivos” (Ibidem, pp. 170-2).
16 “O sagrado é objeto para mim apenas como oposição à minha personalidade,
mas como unidade com a minha essência. O sagrado é a repreensão aos meus pecados;
reconheço-me nele como um pecador, mas nele me repreendo, reconheço o que não sou,
mas que devo ser c que, exatamente por isso, o que posso ser conforme a minha essência
(. . .]. Quando conheço o bem como minha qualidade, como minha lei, conheço-o, seja
consciente ou inconscientemente, como minha própria essência” (Ibidem, p. 70).

Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | I ô I


religião, de form a a não ser reconhecida com o um a negação —
não é, pois, nada mais que um ateísmo sutil, m atreiro” (Ibidem , p.
58). M as este tipo prim eiro de negação é problem ático para o pró­
prio ser hum ano, porque realiza a negação da possibilidade de um
reconhecim ento de suas próprias características essenciais: “O que
é sujeito está apenas no predicado; o predicado é a verdade do
sujeito; o sujeito [é] apenas o predicado personificado, existente.
Sujeito e predicado distinguem -se apenas com o existência e essên­
cia. A negação dos predicados é por isso a negação do sujeito” (Ibi­
dem , p. 61).
Porém , Feuerbach reconhece ainda um a outra possibilidade
interm ediária, um a form a mais dialética (no sentido da negação da
negação) e «suave» deste m ovim ento de negação de seus predica­
dos: “A ceita-se que os predicados da essência divina são qualidades
finitas, especialm ente hum anas; mas condena-se a sua condena­
ção; chega-se até a protegê-las, porque é necessário para o hom em
tecer algumas im agens determ inadas de D eu s” (Ibidem , p. 58).
A penas gradualm ente o ser hum ano pode então reconhecer a
religião com o form a de expressão possível da riqueza e diversida­
de de suas qualidades e possibilidades inerentes ao gênero h u m a­
n o , que se m anifesta na diversidade dos vários indivíduos h u m a­
nos, bem com o um a form a de am pliar a sua consciência sensorial
im ed iata:17 “M as este ser livre das limitações dos indivíduos, ilim i­
tado, nada mais é que o gênero que m anifesta a infinitude da sua
essência ao se realizar em infinitos e diversos indivíduos. A unidade
d a essência é m ultiplicidade na existência” (Ibidem , p. 198). O u
ainda: “O efeito benéfico da religião consiste nesta am pliação da
consciência sensorial. [. . .] Q uanto mais lim itado é o horizonte do
hom em , quanto m enos sabe ele de história, natureza, filosofia, tanto
mais intim am ente depende ele da sua religião” (Ibidem , pp. 257-8).
A tin g id o esse estágio, é possível investigar no próprio fenô­
m eno religioso as qualidades objetivadas da essência hum ana: “Basta

17 É muito interessante notar a similaridade entre esta perspectiva desenvolvid


por Feuerbach, particularmente neste quinto movimento, com a abordagem dos fenô­
menos religiosos sistematizada mais tarde, no século XX, pelo fundador da psicologia
analítica, o suíço Karl Gustav Jung.

162 | Schopenhauer.; Kierkegaard e Feuerbach


que invertamos as relações religiosas, que concebamos como fim o
que a religião estabelece como meio, que elevemos à questão prin­
cipal, à causa o que para ela é o subordinado, a questão secundária,
a condição, então terem os destruído a ilusão e teremos a luz não
obscurecida da verdade diante de nossos olhos” (Ibidem , p. 313).
Assim, “D eus é a intim idade revelada, o pronunciam ento do Eu
do homem; a religião é um a revelação solene das preciosidades ocul­
tas do hom em , a confissão dos seus mais íntim os pensamentos, a
manifestação pública dos seus segredos de am or” (Ibidem , p. 56).
E na realidade, para Feuerbach, se esse processo de desalienação e
redenção hum ana não for realizado, tem os o risco do fanatismo
religioso e das atrocidades cometidas em nome da religião.18
E ntre as qualidades projetadas na esfera sagrada que obje­
tivam as características hum anas essenciais e identificadas por
Feuerbach, penso que as principais são:
— o am or “com o princípio de mediação entre o perfeito e o
im perfeito, entre o ser sem pecado e o pecador, entre o geral e o
individual, a lei e o coração, o divino e o hum ano” (Ibidem , p. 91);
— “o sofrim ento do am or, a capacidade de se sacrificar pelo
bem dos outros” (Ibidem , p. 104);
— “D eus é um a vida com unicativa, vida e essência do am or
e da am izade” (Ibidem , p. 111);
— a im agem plástica e poética com o as formas mais adequa­
das de expressar visivelmente a imaginação/fantasias humanas e as
qualidades invisíveis de D eus (Ibidem , pp. 118-21);
— a diversidade e a pluralidade (Ibidem , p. 129);
— a necessária vinculação entre lu z e som bra/noite, carne/
/m aterialidade/sangue e espírito/inteligência pura (Ibidem, p. 133),
salientando o corpo e a diferença sexual (e tam bém , im plicitam en­
te , u m a certa noção de gênero, já que se refere à m asculinidade e

18 “A religião é o relacionamento do homem com a sua própria essência — ai está


a sua verdade e redenção moral — mas com a sua própria essência não como sendo sua,
mas de um outro ser diverso dele, até mesmo oposto — aí esta a sua inverdade, a sua
lim itação, a sua contradição com a razão e a moral, aí está a fonte desgraçada do
fanatismo religioso, aí o princípio supremo, metafísico, dos sangrentos sacrifícios hu­
manos; em síntese, aí está a base de todas as crueldades, de todas as cenas horripilantes
na tragédia da história da religião” (Ibidem, p. 239).

Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 163


fem inilidade) com o fundam ento da personalidade hum ana, su­
perando a noção do senso com um e da teologia convencional de
im pureza moral divina e hum ana, que reprim e o instinto sexual
(Ibidem , pp. 135-6 e 208);
— o instin to de conservação e o desejo de não m orrer (Ib i­
dem , p. 175);
— a im portância do sonho e de sua lógica oposta à vigília e
à consciência, com o um a forma de afetividade determ inada pelo
próprio Eu, mas com o se fosse determ inada por outro ser.19
N o final da trajetória, o autor conclui: “N osso propósito mais
essencial foi realizado aqui. Reduzim os a essência extram undana,
sobrenatural e sobre-hum ana de D eus às partes com ponentes da
essência hum ana com o suas partes com ponentes fundam entais. N o
fim, voltamos ao início. O hom em é o início da religião, o hom em é
o meio da religião, o hom em é o fim da religião” (Ibidem , p. 223).

7.5. Algumas observações críticas finais


sobre a obra de Feuerbach

N o volum e anterior, já tivemos a possibilidade de revisar as


principais críticas produzidas por M arx em relação ao pensam ento
de Feuerbach. Por exemplo, podem os citar alguns dos seus pro­
blemas mais conhecidos no terreno filosófico e no cam po sócio-
-histórico:
— a perm anente desconsideração de aspectos históricos asso­
ciados aos processos hum anos e religiosos, tratando-os com o um a
estrutura que se reproduz de form a im utável ao longo da história,
praticam ente sem rupturas e mudanças;
— a abstração das relações sociais, com exceção de relações
idealizadas de am or e am izade, tratando o ser hum ano com o ser

19 “A afetividade é de natureza onírica, por isso nào conhece ela nada mais
agradável, mas profundo que o sonho. Mas o que é o sonho? É a inversão da consciência
em estado de vigília. No sonho o ativo é o passivo e o passivo é o ativo; no sonho eu
apreendo as minhas autodeterminações como se fossem determinações vindas de fora,
as emoções como acontecimentos, as minhas ideias e sentimentos como entidades fora
de mim, eu sou o passivo do meu próprio ativo. [.. .] A afetividade é o sonho de olhos
abertos; a religião é o sonho da consciência desperta; o sonho é a chave para os mistérios
da religião” (Ibidem, pp. 181-2).

164 | Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach


individual e natural, com o ser da espécie, sem a determ inação his­
tórica concreta que os constrói de formas específicas, bem com o ser
ativo que pode transform ar tais condições;
— o reduzido projeto social e político im plícito, pondo-se
dentro dos limites im postos pela repressiva e autocrática sociedade
alemã do seu tem po, cujo debate político acabava reduzindo-se à
religião e à cultura, o que refletia tam bém suas limitações pessoais
de um filósofo distante da prática política direta, em um país que
já vivia m ovim entos e revoltas populares que foram inteiram ente
reprim idos;
— o idealismo, caráter contemplativo e de longo prazo de sua
proposta de desalienação, reduzida à esfera psicológica e da consciência
com o única estratégia visualizada de liberação sociopolítica hum ana,
tem a logo após assinalado por M arx em suas Teses contra Feuerbach,
na direção de um a práxis revolucionária mais concreta e urgente;
— o forte essencialismo filosófico em relação às característi-
cas do gênero hum ano, etc.
N ão cabe aqui retom ar todos esses pontos dos campos filosó­
fico e sócio-histórico já revisados, ou que foram identificados e
estão disponíveis nos textos clássicos de M arx e Engels,20 tam bém
porque serão objeto de novas discussões ao longo desta coletânea.
A despeito dessas lim itações, é im portante reconhecer que,
da perspectiva dos cam pos de conhecim ento e de suas característi-
cas epistem ológicas im plicadas, o texto feuerbachiano tem vários
níveis e cam adas, com contribuições e intervenções em várias áreas,
tendo com o exem plos mais relevantes:
— o cam po da filosofia e da filosofia da religião, que m e
parece ser o prin cip al te rre n o epistem ológico em que o au to r
constrói seu texto e sua m etodologia de investigação do fenôm eno
em foco;
— o cam po da teologia, que Feuerbach quer deslocar para as
ciências do hom em ;
— o cam po sócio-histórico e político, no sentido de que a
crítica à alienação religiosa vigente particularm ente na A lem anha
20 Esta crítica está principalmcnte nas Teses contra Feuerbach, viA Ideologia alemã
c no texto de Engels, Ludwig Feuerbach e ofim da filosofia clássica alemã (Engels, 1975).

Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 165


da época tinha implicações diretam ente políticas, bem com o de
que sua elaboração participava, mesmo que indiretam ente, da cons­
trução de um novo projeto social e político mais amplo;
— o cam po antropológico, que em bora não constituído na
época como ciência autónom a, o autor reivindica que este seja um
dos destinos mais adequados do saber teológico;
— o cam po psicológico, tam bém ainda não constituído com o
ciência autónom a, que seria outro destino da reflexão teológica,
com o sugerido explicitamente por Feuerbach.
D e maneira sim ilar ao que foi levantado em relação ao dis­
curso hegeliano, dada a autonom ia relativa dos campos de conheci­
m ento, as limitações e críticas que se podem levantar em um nível
ou cam po de conhecim ento podem ser m uito relevantes, mas não
chegam a invalidar integralm ente as contribuições nos dem ais cam ­
pos. Vejamos alguns exemplos.
N o próprio terreno filosófico, apesar das limitações identifi­
cadas, Feuerbach cum priu um papel teórico e histórico significati­
vo, ao deslocar de D eus para o próprio hom em o fundam ento do
conhecim ento, abalando os alicerces principais dos poderosos sis­
tem as de pensam ento de Rousseau, K ant e H egel, e isso não foi
pouco. M arx e Engels reconhecem explicitam ente essa enorm e
contribuição de Feuerbach, particularm ente em relação ao gigan­
tism o e prestígio do sistem a hegeliano no contexto alemão da épo­
ca, e tam bém constituindo elementos e um estágio fundam entais
na construção da própria trajetória teórica dos dois pensadores.
N o cam po psicológico e antropológico, no presente m om en­
to deste ensaio não tem os ainda todos os elem entos para avaliar de
form a mais direta a contribuição feuerbachiana, dado que o seu
contraponto com as ideias marxianas só será plenam ente sistem ati­
zada nos próxim os volum es. A pesar de que Feuerbach não consti­
tua o nosso objeto central de análise, o desdobram ento do presente
estudo certam ente possibilitará avançar algumas anotações im por­
tantes nesta direção.
E n tretan to , podem os relem brar aqui algumas das indicações
já feitas neste ensaio, com o a sua contraposição e sua busca de res­
postas às aporias in tern as da psicologia sensacionista e iluminista.
166 | Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach
Além disso, apesar da influência do pensam ento de H egel em suas
ideias, sua concepção d e subjetividade deslocou profundam ente a
m aior ênfase hegeliana n a racionalidade e na consciência para ou ­
tras funções psicológicas im portantes, com o a im aginação/intui-
ção, a fantasia e em oção/sentim ento. D a m esm a forma, mostramos
durante a presente seção os vários temas em que Feuerbach prefi­
gurou esboços significativos de teorias e conceitos que só m uito
mais tarde seriam mais bem reconhecidos e sistematizados por abor­
dagens psicológicas e psicossociológicas contem porâneas. Assim ,
apesar de suas lim itações no terreno sócio-histórico, as característi-
cas particulares e a autonom ia relativa dos campos de conhecim en­
to fazem com que tais lim itações tenham em cada um deles pesos
diferenciados, particularm ente no cam po psicológico, um a vez que
o funcionam ento do aparelho psíquico e seus mecanismos internos
têm um caráter mais universalizante e menos dependente das con­
junturas históricas e políticas específicas.
D essa m aneira, considero que podem os encerrar esta seção
sobre Feuerbach e, um a vez que alcançamos a conjuntura histórica
de passagem do jovem M arx para suas concepções teóricas mais
m aduras e definitivas, bem com o esgotam os as principais correntes
das ideias psicológicas que com puseram a sua interlocução até en ­
tão, podem os nos encam inhar para tam bém encerrar o presente
capítulo.

Schopenhauer, Kierkegaard e Feuerbach | 167


Considerações finais

Tem hora em que, de repente, o mundo


vira pequenino, mas noutro de-repente,
ela já torna a ser demais de grande, outra
vez. A gente deve de esperar o terceiro
pensamento.
— Jo A o G uim arães R o s a 1

A o final deste volume, fico com a impressão de que percorre­


mos um longo e complexo percurso, que exigiu um dem orado,
exigente e intenso trabalho de leitura e sistematização. E ntretanto,
ele foi tam bém foi m uito prazeroso e o avalio com o particular­
m ente relevante para os objetivos do estudo mais geral que estamos
realizando nesta coletânea, mas tam bém para todos os interessados
na história do cam po psicológico. Penso que pudem os identificar
os principais autores e correntes significativos da história das ideias
psicológicas que integraram a interlocução de M arx em relação às
concepções de subjetividade.
Se pudéssem os então m o n tar um quadro mais conclusivo das
correntes e autores mais im portantes e presentes no contexto da
form ação universitária de M arx, indicando sua form a de presença
e relevância em sua vida e obra, penso que teríam os o seguinte
mapa:
a) F ontes literárias: o levantam ento das fontes literárias in ­
dicadas p o r M arx m ostra um a capacidade im pressionante de lei­
tura, de cobertura da literatura m undial e de uso de referências em
seus textos (Prawer, 1976; Lifschitz, 1982), muitas vezes apropria­
das com o dispositivo para produzir passagens irónicas e de crítica à
realidade social ou a seus interlocutores. N o tocante às ideias psi­
cológicas, escolhem os dois autores, Shakespeare e G oethe, não só

1 Trecho do conto “Nenhum , nenhuma", do livro Primeiras estórias. Rio de


Janeiro: M ED IA fashion, 2008, p. 62.

Considerações finais | 169


pela im portância no conjunto da literatura m undial, mas p rin ci­
palmente porque estiveram presentes ao longo de toda a vida pes­
soal e familiar de Marx.
b) A psicologia ilum inista e sensacionista: pudem os revisar
no volume anterior a própria descrição de M arx dessa corrente fi­
losófica e psicológica, m ostrando a sua relevância para a com posi­
ção de suas ideias, particularm ente porque perm itiu visualizar a
formação dos hábitos e a im portância da educação racional nos
seres hum anos, bem como da noção de ideologia. É consenso em
toda a tradição marxista posterior a presença do que se cham ou do
“materialismo francês” na formação de M arx, como um a de suas
fontes principais. N o presente volume, pudemos apresentar de form a
mais am pla o contexto dessas ideias, seus pressupostos, algum as de
suas principais formas de continuidade, bem como alguns de seus
principais problem as e dificuldades.
c) O m ovim ento rom ântico: no volume anterior, já pudem os
indicar a im portância da filosofia política de Rousseau na form ação
das ideias marxianas, e, no presente, fizemos um a revisão mais ampla
do m ovimento romântico em geral e particularmente do rom antism o
alemão, m ostrando com mais detalhes a im portância de suas ideias
para a história das ideias psicológicas e para a psicologia co n tem p o ­
rânea. É im portante lembrar tam bém , nesta vertente, da presença
fundam ental de G oethe, do Fausto e de sua concepção de Bildungs-
roman (romance de formação). Pudem os tam bém constatar que já
nas décadas de 1830 e 1840, as principais ideias relativas ao apare­
lho psíquico, a seus mecanismos internos e ao inconsciente, mais
tarde sistem atizadas com mais rigor pela psicanálise e psicologia
analítica, já estavam razoavelmente esboçadas pelos autores ro m ân ­
ticos na A lem anha, com am pla divulgação pública. N os próxim os
volum es, poderem os avaliar com mais cuidado a relação de M arx
com essa tradição, lem brando ter sido particularm ente intensa no
período de sua formação universitária, quando ele tam bém se pro p u ­
nha um projeto de vida com o poeta, plano que foi abandonado de
form a abrupta por volta de 1837. Esta passagem foi vivida na form a
de forte crise existencial e psicológica, na qual a referência de H e ­
gel, particularm ente da Enciclopédia^ serviu de texto orientador.
170 | Consideraçõesfinais
d) A herança de H egel: A relevância e o processo de crítica e
apropriação explícita dessa herança no pensam ento marxiano já foi
descrita no volum e anterior, e é aberta e consensualm ente reconhe­
cida por M arx e pela tradição marxista. N este capítulo, pudem os
am pliar o nosso foco m ostrando de form a mais integral um con­
junto mais am plo das ideias psicológicas de H egel, m ediante um a
leitura m ais direta e detalhada de duas das obras de sua autoria
mais relevantes para o tem a, e que tam bém foram lidas e avaliadas
por M arx. M ostram os tam bém um lado que parece à prim eira
vista paradoxal na obra de H egel, dada a sua forte ênfase na racio­
nalidade e na consciência, ou seja, um a com plexa abordagem e con­
cepção dos fenôm enos psíquicos inconscientes, de aparelho psí­
quico e de seus m ecanism os internos. A lém disso, a abordagem foi
capaz de identificar o elem ento rom ântico ainda subsistente em
seu sistem a filosófico, quando projeta a realização da razão e do
Espírito A bsoluto no fim da história, com o um elem ento da nos­
talgia rom ântica de um a ideia de um a unidade e reconciliação ú l­
tim a na história, e que de certa form a orien ta teleologicam ente a
dinâm ica dialética durante to d a a trajetória da vida hum ana e social
ao longo da história m undial.
e) A h eran ça de F euerbach: E sta é o u tra fonte abertam ente
reconhecida por M arx com o fundam ental para a form ação de seu
pensam ento. D e form a sem elhante a H egel, dada a im portância
para M arx e para nosso estudo, tam bém aqui se procurou ir dire­
tam ente ao seu texto mais im portante, A essência do cristianismo.
T am bém vim os aqui a riqueza e com plexidade de sua análise dos
fenôm enos psicológicos individuais, em relação aos principais m e­
canism os d o aparelho psíquico, e particularm ente aos fenôm enos
coletivos, que sem dúvida algum a o apontam como um dos pionei­
ros das ideias psicossociológicas.
A p artir desse m apeam ento, penso ser razoável concluir que,
no co n tex to histó rico e cu ltu ral da form ação acadêm ica e d o p e n ­
sam en to de M arx , ou seja, e n tre 1835 e 1846, já se tin h a clara­
m e n te esb o çad o n o am b ie n te europeu, e n o tad am en te n a A le ­
m a n h a , as p rin c ip a is ideias e conceitos acerca da fo rm ação d a
p erso n alid ad e, do ap arelho psíquico, do inconsciente, b em com o
Considerações finais | 171
de suas principais im plicações sociais, coletivas e políticas, que
mais tarde foram apropriados pelos principais m ovim entos teóri­
cos do campo psicológico do século XX.
Estou certo de que esse m apeam ento nos perm itirá, no volu­
me seguinte, estabelecer com m uito mais rigor a form a com que
Marx teceu seu pensam ento, estabelecendo críticas e contraposi­
ções, traçando linhas de corte e se apropriando seletivam ente de
fontes específicas. Poderem os tam bém entrever, neste processo,
como tam bém deixou de lado tem as, conceitos e problem as abor­
dados pelos interlocutores que o antecederam , com o questões ava­
liadas e consideradas, em seu processo de práxis e formação, com o
não relevantes do ponto de vista epistem ológico, ontológico, sócio-
histórico, político e, é claro, tam bém do ponto de vista psicológico.
Este será o tem a do próxim o volume, para o qual convido já de
antem ão os leitores.

172 | Considerações finais


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180 | Referências
Sumário dos volumes
da coletânea já lançados e dos
temas em processo de pesquisa

K A R L M A R X E A S U B JE T IV ID A D E H U M A N A
Volume I: a trajetó ria das idéias e conceitos nos textos teóricos

Apresentação
1. O contexto pessoal e institucional deste estudo
2. A presentação da tem ática, justificativa e desafios do estudo
3. A s fontes do estudo nesta coletânea
4. O form ato e os desdobram entos de um a pesquisa e de um a
coletânea em andam ento
5. A gradecim entos

Capítulo 1
In tro d u çã o ao P rim eiro V olum e e a suas questões m etodológicas
1.1. A presentação do co n teúdo do Prim eiro Volume
1.2. T ratam en to das fontes e questões m etodológicas

Capítulo 2
A s p rin cip ais co n trib u içõ es prévias: a trajetó ria do conceito de
alienação an tes de M arx
2.1. A alienação da ordem divina no pensam ento judaico-cristão
2.2. A alienação com o vendabilidade universal operada pelas rela­
ções capitalistas
2.3. A alienação política no co n trato social que funda o E stado, e
sua base na contradição en tre vontade particular e vontade geral,
em Rousseau

Sumário dos volumes publicados | 181


2.4. A alienação/exteriorização no processo dialético de realização
da Razão na história e da consciência autocom preensiva em H egel
2.5. A alienação religiosa em Feuerbach

Capítulo 3
A alienação em M a rx em suas diversas acepções e d e sd o b ra ­
m entos, e im plicações no cam po da subjetividade
3.1. A alienação religiosa e seus mecanismos psicológicos
3.2. A alienação filosófica, sua superação pelo m aterialism o e pela
práxis, e suas implicações psicológicas
3.2.1. A apropriação da filosofia m aterialista e ilum inista francesa
3.2.2. A s noções de atividade e de práxis
3.3. A alienação política
3.4. A lienação social, ideologia e implicações subjetivas
3.4.1. C oncepção geral e enquadre histórico do fenôm eno da alie­
nação social
3.4.2. Ideologia em suas diferentes acepções c implicações subjetivas
3.4.3. A lienação social e percepção alienada da personalidade e da
individualidade
3.4.4. A superação da alienação social
3.5. A alienação/estranham ento do trabalho
3.5.1. A dimensão histórica da alienação/estranhamento do trabalho
3.5.2. A dim ensão ontológica da alienação/estranham ento do tra­
balho
3.6. A lgum as conclusões provisórias sobre o uso do conceito de
alienação nos escritos m arxiam os dos anos 1840

Capítulo 4
T rabalho, co rp o reid ad e e fin itu d e h u m a n a
4.1. C oerência e dispersão na abordagem m arxiana da tem ática
4.2. O s principais eixos da concepção de corporeidade e finitude
(m orte) h u m an a na o b ra m arxiana

Capítulo 5
As fo rm as h istó ricas d e in d iv id u a lid a d e e so c iab ilid ad e e suas
te n sõ es
5.1. Características gerais da individualidade e sociabilidade

182 | Sumário dos volumespublicados


5.2. As form as pré-capitalistas de sociabilidade e individualidade
5.3. As form as especificam ente capitalistas de sociabilidade e
individualidade(I): a mediação única pelo valor de troca e seus as­
pectos positivos
5.4. As form as especificam ente capitalistas de sociabilidade e
individualidade(II): a natureza am bígua da liberdade e da igual­
dade na sociedade regida pelo valor
5.5. A s form as especificam ente capitalistas de sociabilidade e
individualidade(III): estranham ento, coisificação e fetichism o
5.6. As form as da sociabilidade e individualidade no processo de
superação do fetichism o

Capítulo 6
A dispersão na apropriação das contribuições de M arx no cam po
da subjetividade pelas tendências m arxistas posteriores

C onsiderações finais

Referências

K A R L M A R X E A S U B JE T IV ID A D E H U M A N A
V olum e II: u m a h is tó ria de idéias psicológicas n a E u ro p a até
1850

C apítulo 1
In tro d u ç ã o ao seg u n d o v o lu m e da coletânea

C apítulo 2
A h eran ç a de dilem as h istó rico s e filosóficos nas concepções de
su b jetiv id ad e h u m a n a n a Id a d e C lássica e M o d e rn a
2.1. R acionalidade grega e a longa herança dualista en tre n atu reza/
corpo e p ensam en to /razão , e sua reiteração na m odernidade
2.2. A em ergência de u m a nova concepção de sujeito e de su b jeti­
vidade no R enascim ento e na m odernidade

Sumário dos volumes publicados | 183


Capítulo 3
A lgum as contribuições p ré-ilum inistas im p o rtan tes para a co n ­
form ação das ideias psicológicas na Id ad e M o d ern a
3.1. A “invenção do sujeito hum ano com plexo” e da “dim ensão
psicológica m oderna” na literatura, por Shakespeare
3.2. O s rudim entos da ideia e do funcionam ento do inconsciente
na filosofia m oral e na m etafísica do século X V II
3.3. U m a concepção integrada e m onista de corpo e alma, e um
esboço das ideias de inconsciente e sintom a, em Espinosa
3.4. U m outro esboço d a ideia de inconsciente, em Leibniz

Capítulo 4
O m aterialism o ilu m in ista francês e sua psicologia sensacionista
de base em p irista
4.1. A psicologia de C ondillac com o principal m atriz da psicologia
ilum inista e revolucionária francesa
4.2. U m desdobram ento central do sensacionism o: Philippe Pinei,
a em ergência da psiquiatria m oderna e o tratam ento m oral

Capítulo 5
O m ovim en to ro m ân tico e suas im plicações nas ideias psicoló­
gicas
5.1. C ontexto histórico, características e principais tendências na
E uropa
5.1.1. A em ergência d o capitalism o e suas repercussões socio-
culturais
5.1.2. A s principais características da reação e da crítica rom ântica
na Europa
5.1.3. A s diferentes tradições rom ânticas, do p o n to de vista político
5.2. Rousseau e suas ideias psicológicas: o uso da im aginação para
fins positivos e para o co n h ecim en to de si, seus pontos positivos e
suas dificuldades
5.3. O rom antism o alem ão
5.3.1. C ontextualização histórica
5.3.2. C aracterísticas principais do m ovim ento rom ântico alemão,
na direção de um a histó ria das ideias psicológicas
5.3.3. G oethe: o espírito rom ântico, a tensão perm an en te dos opos­

184 | Sumário dos volumespublicados


tos, as forças cósm icas d o d esejo, e o ro m an ce de form ação
(Bildungsroman)
5.3.3.1. G oethe e subjetividade: alguns traços mais gerais de sua
obra, incluindo o Fausto
5 3 .3 .2 . Os anos de aprendizagem de W ilhelm M eister e o romance de
formação (Bildungsrom an)
5.3.4. G . H . Schubert, a simbólica do sonho e o esboço de uma
metapsicologia
5.3.5. Karl G ustav C am s e o reconhecim ento explícito da existên­
cia do inconsciente e d e sua dinâm ica metapsicológica
5.3.6. O bservações finais sobre o rom antism o alemão e suas im pli­
cações no cam po da subjetividade

Capítulo 6
A contraposição racionalista e dialética: as ideias psicológicas na
obra de H egel
6.1. A dvertências m etodológicas prelim inares
6.2. A lgum as notas in trodutórias sobre a relação entre a vida e a
obra de H egel e o cam po das ideias psicológicas
6.3. A Fenomenologia do espírito
6.4. A Enciclopédia das ciênciasfilosóficas e sua seção sobre a alma

Capítulo 7
A crítica do idealism o racio n alista alem ão antes de M arx : p re ­
cursores (S c h o p e n h a u e r e K ierk eg aard ) e F eu erb ach , com sua
análise d a alienação relig io sa
7.1. Precursores da crítica ao racionalism o hegeliano: Schopenhauer
e K ierkegaard
7.1.1. Schopenhauer
7.1.2. K ierkegaard
7.2. Feuerbach e o contexto m ais geral de sua vida e obra
7.3. O contexto e a significação mais geral de A essência do cristianismo
7.4. A s principais proposições de A essência do cristianismo no cam ­
po psicológico
7.4.1. O s argum entos e teses centrais do livro
7.4.2. O prim eiro m ovim ento: o ser hum ano e sua clivagem es­
sencial

Sumário dos volumes publicados | 18 5


7 .4 .3 . O segundo movimento: a objetivação e projeção da essência
em um O utro
7 .4 .4 . O terceiro movimento: a inversão sujeito-objeto entre o ser
hum ano e o O utro projetado, com o negação e em pobrecim ento
das características humanas
7 .4 .5 . O quarto movimento: a dialética do desejo e do im aginário,
como produção positiva de realidades sócio-históricas e psicoló­
gicas
7 . 4 .6 . O quinto movimento: o processo de desalienação, com o re­
conhecim ento da projeção e das características psicológicas e an­
tropológicas da essência hum ana
7.5. Algumas observações críticas finais sobre a obra de Feuerbach

Capítulo 8
C onsiderações finais do volum e

Referências

K A R L M A R X E A S U B JE T IV ID A D E H U M A N A
Volum e III: balanço de co n trib u içõ es e q u estõ es teó ricas p ara
d e b a te

Capítulo 1
In tro d u ção ao terceiro volum e d a coletânea

Capítulo 2
O bservações filológicas e m e to d o ló g icas p relim in ares

Capítulo 3
A s contribuições teóricas fu n d am e n tais de M a rx e do m arx ism o
para a abordagem da subjetividade h u m a n a e d a saúde m e n tal
3.1. A concepção dialética da h istó ria h u m an a e a centralidade da
determ inação m aterial em sua dinâm ica
3.2. As categorias de exteriorização e objetivação através da ativi-

1 8 6 | Sum ário dos volumespublicados


dade, trabalho e praxis, e seus desdobram entos conceituais no campo
da subjetividade
3.3. A contribuição central do marxismo para a com preensão dos
padrões específicos de acumulação, do E stado, das políticas sociais,
do trabalho e da saúde
3.3.1. A análise d o padrão de acum ulação, da dinâm ica do E stado
e das políticas sociais nas sociedades capitalistas, e a tradição de
pesquisas avaliativas de políticas e program as
3.3.2. A econom ia política da saúde: o m ercado e o processo de
trabalho, a produção de bens e serviços em saúde, e suas im plica­
ções em saúde pública
3.3.3. O cam po d a sociologia das profissões e suas im plicações em
saúde pública
3.3.4. Possibilidades da produção do conhecim ento com o práxis
engajada nos partidos e m ovim entos sociais críticos e populares
3.4. A psicologia sócio-histórica, a abordagem m aterialista do p ro ­
cesso de desenvolvim ento cognitivo e da linguagem , e suas aplica­
ções na educação
3.5. O s desdobram entos da abordagem m arxista n o cam po d a saú­
de m ental do trabalho
3.6. O s estudos m arxistas sobre a história da loucura e da psiquiatria
3.7. A abordagem marxista da atividade, trabalho e da práxis no contexto
da reforma psiquiátrica e da atenção psicossocial em saúde mental
3.8. A análise do fetichism o d a m ercadoria e suas im plicações na
subjetividade coletiva e n a produção de produtos e serviços de saúde
3.9. A análise das estru tu ras psíquicas com o suporte dos aparelhos
de reprodução ideológica, com ênfase na fam ília e na sexualidade
3.10. A nálise das condições opressivas das m ulheres com o principais
provedoras do cuidado inform al na família, de inspiração marxiana
3.11. C onsiderações finais sobre as contribuições fu n d am en tais de
M arx e do m arxism o para a abordagem da subjetividade h u m a n a e
d a saúde m ental

C apítulo 4
Q u e s tõ e s críticas de n a tu re z a filosófica e ep iste m o ló g ic a m ais
geral em M a rx e su as im plicações n o cam po d a su b jetiv id ad e
4.1. O estatu to d a teoria m arxiana em função das características

Sumário dos volumes publicados | 187


típicas dos grandes sistemas alemães e europeus de pensam ento,
hegem ónicos no século XIX
4.2. N aturalism o e relativismo na ontologia marxiana, sua concepção
de “natureza hum ana”, corporeidade e finitude (m orte), e as im pli­
cações na abordagem dos fenôm enos subjetivos
4.2.1. A presentação inicial d o problem a
4.2.2. A polêm ica sobre a eventual autonom ização do ser hum ano
em ancipado em relação à natureza
4.2.3. A s dificuldades da concepção de corporeidade e finitude
hum ana no pensam ento e na vida de M arx, e suas im plicações
4.2.4. O otim ism o ontológico de superação histórica do m al na
natureza hum ana
4.2.5. A tensão interna na análise m arxiana dos efeitos da univer­
salização do intercâm bio social e das possibilidades a serem abertas
pela superação do fetichism o da m ercadoria
4.2.6. A irredutibilidade de algum as características qualitativas do
trabalho de cuidado h u m ano à análise clássica do v alo r-trab alh o .
4.2.7. A análise da subjetividade centrada no trabalho e no p ro d u ­
to r de m ercadorias, e p o rtan to nos indivíduos adultos (a questão
geracional e suas im plicações)
4.2.8. A projeção da B ildung (form ação pessoal) para um futuro
longínquo
4.3. A influência do m aterialism o francês e da psicologia sensa-
cionista, e a pregnância de sua m atriz em pirista no p ensam ento
m arxiano e m arxista acerca d a subjetividade

Capítulo 5
Q u e s tõ e s p o lític a s e so cio ló g icas n o p e n s a m e n to m a rx ia n o e
suas im plicações p ro b le m á tic a s n o cam p o d a su b jetiv id ad e
5.1. E stratég ia política, ru p tu ra revolucionária, em ancipação h u ­
m ana e suas im plicações subjetivas
5.1.1. A presentação do pro b lem a
5.1.2. A subestim ação d a im p o rtân cia ontológica e epistêm ica da
dem ocracia e d o pluralism o, com o exigência inexorável d a gestão
política dos coletivos h u m an o s
5.1.3. A introm issão direta d a esfera política no debate científico,
ignorando a necessária au to n o m ia relativa da vida acadêm ica

188 | Sumário dos volumespublicados


5.1.4. A abertura de espaço para processos e/ou atos de genocídio
cultural e étnico
5.1.5. A suspensão e o desperdício d a experiência e da práxis em
várias esferas humanas
5.1.6. O sectarismo entre as correntes mais ortodoxas da esquerda
5.1.7. A negação política e epistêm ica da dim ensão e dos conflitos
especificam ente psíquicos
5.1.8. O s riscos de um a dissociação psíquica entre as características
particulares e pessoais do m ilitante e sua missão universal
5.1.9. A subestim ação dos aspectos mais problemáticos da híbris
inflacionada do herói
5.1.10. A im possibilidade ou desim portância da Bildung no pre­
sente
5.2. A s limitações na análise da divisão sociotécnica do trabalho,
do patrim ónio simbólico, dos processos de burocratização, e da
gestão socializada do trabalho/necessidades sociais
5.3. Relação entre infraestrutura económ ica e superestrutura ideo­
lógica, determ inism o e as esferas do simbólico, do im aginário e das
instituições sociais
5.4. A análise centrada no m odo de produção e na luta de classes,
as dificuldades com outras clivagens sociais, com o gênero e etnia, e
suas im plicações subjetivas

C apítulo 6
D ificuldades e lim itações da abordagem m arxiana da objetávação
n o cam p o da subjetividade
6.1. A ênfase m arxiana na percepção, cognição e com portam ento,
e o silêncio em relação às dem ais funções psicológicas
6.2. A individualização capitalista, seus efeitos psicológicos e a con­
tradição expressa pela perspectiva da Bildung goethiana
6.3. A dificuldade das categorias marxianas originais em desven­
d ar as form as positivas e sutis de captura do indivíduo na socieda­
de capitalista avançada
6.4. Singularidade, a questão geracional, desenvolvimento psicoló­
gico, personalidade e a experiência da loucura
6.5. Especificidades do aparelho psíquico, do inconsciente e da
pulsão, e relação com o paradigm a sócio-histórico

Sumário dos volumes publicados | 189


6.6. O necessário reconhecim ento da B ildungy da herança psíquica
e dos vínculos hum anos mais significativos
6.7. A s funções da em oção, im aginação, desejo e inconsciente, e
sua im portância em saúde e na saúde m ental
6.8. O desconhecim ento da contradição perm anente do inconsci­
en te e os riscos de norm atização e repressão à dissidência cultural,
co m p o rtam en tal e política
6.8.1. O exem plo da psiquiatria sob o regim e soviético, e suas p rin ­
cipais características gerais
6.8.2. O desenvolvim ento histórico do uso repressivo da psiquia­
tria na U nião Soviética e sua evidência histórica e d ocum ental .
6.8.3. C aracterísticas e consequências do abuso político na psi­
qu iatria soviética

C apítulo 7
C o n sid e ra ç õ e s finais

Referências

Apêndice 1. Subjetividade: um “m apa” de seus diversos tem as, d i­


m ensões e cam pos de conhecim ento e prática
Referências

T E M A S S O B P E S Q U IS A E O B JE T O D O S P R Ó X IM O S
VOLUM ES

A pesquisa em an d am en to tem com o ob jeto vários tem as e ques­


tões, m as to d o s relacionados d iretam en te com aspectos biográficos
da vida de K arl M arx e de sua fam ília. É im possível prever neste
m om en to a estru tu ra e o fo rm ato dos próxim os volum es, m as ccr-
tam ente eles ab o rd arão os seguintes tem as:
— Juventudeyprojeto rom ântico de vida e sua negação
— Traços de personalidade, relação com dinheiro, com o corpo e com as
pessoas m ais significativas

190 | Sumário dos volumespublicados


— Subjetividade associada a gênero
— Subjetividade associada ao judaísm o e etnia
— Balanço conclusivo e consideraçõesfin a is

Para subsidiar esta análise e sua com provação docum ental, os pró­
xim os volumes tam bém conterão um levantam ento sistemático e
exaustivo de trechos de cartas e docum entos de Karl M arx e sua
família, mais significativos para a abordagem dos temas indicados
acima.

Sumário dos volumes publicados 91


Table of contents of the already
published volumes and of the
issues yet under inquiry

K A R L M A R X A N D H U M A N S U B J E C T IV IT Y
Vol I: A ro u te o f ideas a n d co n cep ts in sid e th eo retical w orks

S eries P r e s e n ta tio n

1) E ssay s p erso n al a n d in stitu tio n a l co n tex t


2) E ssay’s subject, ju stific a tio n an d challenges
3) S tu d y sources
4) F o rm a t a n d follow ing steps o f an in -g o in g research an d series
5) A ck n o w led g m e n ts

C h a p 1) In tro d u c tio n to th e firs t v o lu m e a n d its m eth o d o lo g ical


is s u e s

1.1) P re se n ta tio n to th e first v o lu m e’s co n ten ts


1.2) S ources h a n d lin g an d m eth o d o lo g ical issues

C h a p 2) M a in p re v io u s c o n trib u tio n s : th e c o n c e p t o f a lie n a ­


tio n ’s p a th b e fo re M a r x

2.1) A lie n a tio n fro m div in e o rd e r in Jew ish -C h ristian th o u g h t


2.2 ) A lie n a tio n as u n iversal v en d ib ility o perated by capitalist rela­
tions
2.3) P olitical alien atio n in th e S tate social co n tract’s fo u n d atio n ,
a n d its source in R o u sseau ’s co n tra d ic tio n betw een p articular and
g en eral w ill

Tables o f the others published u n d unpublished volumes | 193


2 4) AUenation/objectification in H eg el’s dialectical process o f
Reason accomplishment in history and o f self-u n d erstan d in g con­
sciousness
2.5) Feuerbach’s religious alienation

Chap 3) A lienation in M arx: different m eanings, u n fo ld in g co n ­


cepts and consequences for h u m an subjectivity

3.1) Religious alienation and its psychological dynamics


2.2) Philosophical alienation, its transcendence through m aterial­
ism and praxis, and their psychological implications
3.3) A ppropriation o f the French m aterialist E n lig h tm e n t p h i­
losophy
3.4) Activity and praxis
3.5) Political alienation
3.6) Social alienation, ideology and subjective im plications
3.6.1) Social alienation: general overview an d historical context
3.6.2) D ifferent m eanings o f ideology and th e ir subjective im p li­
cations
3.6.3) Social alienation and alienated p ercep tio n o f p erso n ality
and individuality
3.6.4) Social alienations overcom ing
3.7) Labour alienation/estrangem ent
3.7.1) Labour alienation/estrangem ent’s historical d im en sio n
3.7.2) Labour alienation/estrangem ent’s o n tological d im en sio n

C hap 4) Labour, corp o rality an d h u m a n p erish ab ility

4.1) Coherence and dispersion in M a rx ’s ap p ro ach o f th e subject


4.2) Key m eanings on h u m a n co rp o rality an d p e rish a b ility in
M arx’s works

C hap 5) H istorical form s o f in d iv id u ality a n d sociability

5.1) G eneral features o f individuality and sociability


5.2) Pre-capitalist form s o f sociability a n d in d iv id u ality

194 I ™ s ° f **>e others published und unpublished volumes


5.3) Specific capitalist form s o f sociability and individuality: es­
tran g e m en t, reification an d fetishism
5.4) S ociability an d in d iv id u ality form s in th e process o f over­
co m in g fetishism

C h a p 6) P o s t-M a r x ia n d is p e rs io n in th e a p p ro p ria tio n o f h is


c o n trib u tio n s o n su b jectiv ity

C h a p 7) V olum e’s fin a l c o n sid e ra tio n s

References

T able o f c o n te n ts o f th e already p u b lish e d v o lu m es an d o f th e


issues y et u n d e r in q u iry

K A R L M A R X A N D H U M A N S U B JE C T IV IT Y
Vol II: A h is to ry o f p sy ch o lo g ical id e as in E u ro p e u n til 1850

C h a p 1) I n tro d u c tio n to th e series’ se c o n d v o lu m e

C h a p 2) T h e p re v io u s h e r ita g e o f h is to ric a l a n d p h ilo s o p h ic a l


d ile m m a s in C la ssic a l a n d M o d e r n A g e s ’ c o n c e p tu a liz a tio n o f
h u m a n su b je c tiv ity

2.1 ) A n c ie n t G re e k ra tio n a lity a n d th e lo n g -sta n d in g h e rita g e o f


d u ality b etw ee n n a tu re /b o d y a n d th in k in g /ra cio n ality , a n d its ac­
tu a liza tio n in M o d e m A g e
2 .2 ) E m erg en ce o f a n e w c o n c e p t o f subject an d su b jectiv ity in
R enaissance an d M o d e rn ity

C h a p 3) I m p o r t a n t p r e - I llu m in is t c o n trib u tio n s to th e f o r m a ­


tio n o f M o d e r n A g e ’ p sy ch o lo g ical ideas

3.1) S h ak esp eare’s lite ra ry “in v e n tio n o f th e com plex h u m a n s u b ­


je c t” a n d o f th e “M o d e r n psy ch o lo g ical d im en sio n ”

Tables o f the others published u n d unpublished volumes | I 95


3.2) Sketches o f th e idea o f th e unconscious and its m echanism s
in the X V II cen tu ry ’s m oral philosophy and m etaphysics
3.3) S pinoza’s in teg rated and m o n ist concepts o f body/soul and
d raft o f th e unconscious an d sym ptom s
3.4) A n o th e r roughcast o f th e unconscious in L eibniz’s ideas

C h a p 4) F re n c h m a teria list E n lig h tm e n t an d its em piricist o ri­


e n ta te d s e n s a tio n is t psy ch o lo g y

4.1) C o n d illac’s psychology as th e m ain source o f E n lig h tm en t


psychological ideas
4.2) A n im p o rta n t u n fo ld in g o f Sensationism : P hilippe Pinel, the
em ergence o f M o d e rn psychiatry and m oral trea tm e n t

C h a p 5) T h e ro m a n tic m o v e m e n t a n d its im p lic a tio n s in psy­


ch o lo g ical ideas

5.1) H isto ric al context, features and m ain tren d s in E u ro p e


5.1.1) T h e em ergence o f capitalism and its socio-cultural conse­
quences
5.1.2) M a in features o f th e ro m an tic reaction an d criticism in th e
E u ro p ea n co n tex t
5.1.3) D iffe re n t ro m an tic political branches
5.2 ) R o u sseau ’s psychological ideas: th e use o f im a g in a tio n for
positive end s an d self-know ledge
5.3) G e rm a n R o m an ticism
5.3.1) H isto ric a l co n tex t
5.3.2) M a in features, from th e h isto ry o f psychological ideas’ p e r­
spective
5.3.3) G o e th e : th e ro m an tic sp irit, th e p e rm a n e n t te n sio n b etw een
opposites, th e cosm ic forces o f desire an d th e Bildungsrom an
5 .3.3.1) G o e th e an d subjectivity: general features o f h is w o rk , in ­
clu d in g “F a u s t”
5.3.3.2) “W ilh elm M eister’s A pprenticeship’ an d th e Bildungsrom an
5.3.4) G H S c h u b e rt, d ream sym bolism an d th e sk etch o f a m e ta ­
psychology
I 96 | Tables o f the others published und unpublished volumes
5.3.5) C G C am s and th e explicit acknow ledgem ent o f the u n ­
conscious and its m etapsychological dynamics
5.3.6) F inal notes on G erm an R om anticism and its implications
in th e field o f subjectivity

C h a p 6) T h e a n ti-ro m a n tic , ratio n alist and dialectical tradition:


H e g e l’s p sycholo g ical ideas

6.1) P relim in ary m ethodological cautions


6.2) In tro d u c to ry notes on th e relationship between H egel’s life/
w ork and his psychological ideas
6.3) “P h en o m en o lo g y o f M in d ”
6.4) “E ncyclopedia o f th e Philosophical Sciences” and its section
on th e soul

C h a p 7) T h e critiq u e o f th e G e rm a n idealist rationalism before


M arx : fo re ru n n e rs (S ch o p en h au e r e K ierkegaard) e Feuerbach,
w ith his analysis o f religious alien atio n

7.1) F orerunners o f H e g e l’s rationalism critique: Schopenhauer e


K ierkegaard
7.1.1) S ch o p en h au er
7.2.2) K ierkegaard
7.2) F euerbach an d th e general context o f his life and work
7.3) C o n te x t an d general m ean in g o f “T h e Essence o f C hristian-
ity”
7.4) M ain topics o f “T h e Essence o f C hristianity” in th e psycho­
logical field
7.4.1) T h e book’s m ain propositions
7.4.2) F irst m ovem ent: h u m a n b eing and its essential splitting
7.4.3) Second m ovem ent: externalization and th e essence projec­
tion on an O th e r
7.4.4) T h ird m ovem ent: inversion subject-object betw een hum an
beings and the projected O th e r, as denegation and im poverish­
m en t o f hu m an features.
7.4.5) F ourth m ovem ent: dialectics betw een desire and im aginary
Tables o f the others published u n d unpublished volumes | 1 9 7
as positive production o f psychological and socio-historical realities
7.4.6) F ifth m ovem ent: d e-alien atio n process, as th e acknow ledge­
m en t o f th e projection an d o f psvchological/anthropological fea­
tures o f th e h u m a n essence
7.5) S h o rt critical final notes on Feuerbach’s w ork

C h ap 8) V olum e’s fin al co n sid era tio n s

References

K A R L M A R X A N D H U M A N S U B J E C T IV IT Y
Vol III: A n ap p raisa l o f c o n trib u tio n s a n d th e o re tic a l issues for
d e b ate

C h a p 1) In tro d u c tio n to th e series’ th ird vo lu m e

C h a p 2) P h ilo lo g ic a l a n d m e th o d o lo g ical issues

C h a p 3) M a in th e o re tic a l c o n trib u tio n s fro m M a rx a n d M a rx ­


ism fo r a p p ro a c h in g h u m a n su b jectivity a n d th e m e n ta l h e a lth
field

3.2) T h e dialectical view o f h u m an h isto ry an d th e cen trality o f


m aterial d e te rm in ism in its dynam ics
3.2) T h e con cep ts o f ex ternalization and o b jectification th ro u g h
activity, lab o u r an d praxis, an d th e ir associated ideas in th e field o f
subjectivity
3.3) Im p o rta n c e o f M arx ism fo r u n d erstan d in g th e specific p at­
terns o f accu m u latio n , S tate, social policies, labour an d h ealth
3.3.1) A nalysis o f accu m u latio n p attern s, o f th e S tate an d social
policies dynam ics in cap italist societies, an d th e tra d itio n o f social
policy evaluatio n research
3.3.2) P olitical eco n o m y o f health: m ark et an d lab o u r process, the
p ro d u ctio n o f g o o d s an d services, an d th e ir im plicatio n s in public
h ealth
I 98 | Tables o f the others published und unpublished volumes
3.3.3) Sociology o f professions and its im plications in public health
3 .3 .4 ) Possibilities o f critical know ledge production as organic
praxis in leftist political parties and popular social m ovem ents
3.4) Socio-historical psychology, the materialist approach o f cogni­
tive and language developm ent, and their applications in education
3.5) M arxist unfolding ideas in the field o f mental health o f labour
3.6) M arx ist studies on h istory o f madness and psychiatry
3.7) M arx ist approach o f activity, labour and praxis in the context
o f psychiatric reform s and o f psychosocial care in the m ental health
field
3.8) C o m m o d ity fetishism and th e ir collective subjective im plica­
tions
3.9) Psychic structures as a su p p o rt for ideological reproduction
m echanism s, w ith em phasis on fam ily and sexuality
3.10) M arxist inspired studies on oppressive conditions o f w o m ­
en, as m ain providers o f inform al social care in the family
3.11) F inal considerations o n essential contributions from M arx
and M arxism for approaching hu m an subjectivity and m ental health

C h a p 4) C ritic a l p h ilo s o p h ic a l a n d ep istem o lo g ical issues in


M a rx a n d th e ir im p lic atio n s in th e field o f subjectivity

4.1) S tatus o f M arx ian th e o ry in relation to the typical features o f


th e w ide E u ro p ean an d G e rm a n system s o f th o u g h t, hegem onic
in th e X IX century
4.2) N aturalism and relativism in M arx ian ontology, his view on
‘h u m a n n atu re’, co rp o rality an d perishability (death), and th eir
im plications in subjective p h en o m en a
4.2.1) In itial descrip tio n o f th e problem
4.2.2) Polem ics on th e eventual autonom y o f em ancipated h um an
beings from nature
4.2.3) D ifficulties in M a rx ’s views and life in relation to corporal­
ity an d perishability, an d th e ir im plications
4.2.4) O ntological o p tim ism in th e historical overcom ing o f h u ­
m an evil
4.2.5) T h e in tern al ten sio n w ith in th e M arxian analysis o f th e
Tables o f the others published u n d unpublished volumes | 1 9 9
C h a p 7) V olum e’s fin al c o n sid e ra tio n s

R eferences

A p p e n d ix 1: Subjectivity: a cm ap ’ o f th e varied subjects, d im e n ­


sions an d fields o f kno w led g e an d practice

IS S U E S Y E T U N D E R IN Q U IR Y , S U B JE C T O F T H E
C O M IN G V O L U M E S

T h e re are several subjects, issues an d them es yet u n d er inquiry, b u t


all related m ore directly to biographical aspects o f Karl M arx and
his family. I t is im possible to p red ict th e next volum es’ structure
a n d form at, b u t they will certainly address th e follow ing issues:

— Y outh, ro m an tic life p ro jec t an d its d en eg atio n


— P erso n ality traits, relatio n sh ip w ith m oney, b o d y an d w ith m o st
sig n ifican t persons
— Subjectivity associated w ith g en d er issues
— Subjectivity associated w ith Jew ishness and eth n ical issues
— A conclusive appraisal an d th e series’ final co n sid eratio n s

In o rd e r to bu ild u p th is ty p e o f analysis e to provide th e need ed


evidence, th e n ex t volum es w ill include a system atic an d ex h au s­
tive coverage o f frag m en ts fro m th e existing letters a n d d o c u m e n ts
o f K arl M a rx an d his fam ily, m o st sig n ifican t to a p p ro a c h th e
issues in d icated above.

202 | Tables o f the others published u n d unpublished volum es


as positive production o f psychological and socio-historical realities
7.4.6) F ifth m ovem ent: d e-alien atio n process, as th e acknow ledge­
m en t o f th e projection an d o f psvchological/anthropological fea­
tures o f th e h u m a n essence
7.5) S h o rt critical final notes on Feuerbach’s w ork

C h ap 8) V olum e’s fin al co n sid era tio n s

References

K A R L M A R X A N D H U M A N S U B J E C T IV IT Y
Vol III: A n ap p raisa l o f c o n trib u tio n s a n d th e o re tic a l issues for
d e b ate

C h a p 1) In tro d u c tio n to th e series’ th ird vo lu m e

C h a p 2) P h ilo lo g ic a l a n d m e th o d o lo g ical issues

C h a p 3) M a in th e o re tic a l c o n trib u tio n s fro m M a rx a n d M a rx ­


ism fo r a p p ro a c h in g h u m a n su b jectivity a n d th e m e n ta l h e a lth
field

3.2) T h e dialectical view o f h u m an h isto ry an d th e cen trality o f


m aterial d e te rm in ism in its dynam ics
3.2) T h e con cep ts o f ex ternalization and o b jectification th ro u g h
activity, lab o u r an d praxis, an d th e ir associated ideas in th e field o f
subjectivity
3.3) Im p o rta n c e o f M arx ism fo r u n d erstan d in g th e specific p at­
terns o f accu m u latio n , S tate, social policies, labour an d h ealth
3.3.1) A nalysis o f accu m u latio n p attern s, o f th e S tate an d social
policies dynam ics in cap italist societies, an d th e tra d itio n o f social
policy evaluatio n research
3.3.2) P olitical eco n o m y o f health: m ark et an d lab o u r process, the
p ro d u ctio n o f g o o d s an d services, an d th e ir im plicatio n s in public
h ealth
I 98 | Tables o f the others published und unpublished volumes
3.3.3) Sociology o f professions and its im plications in public health
3 .3 .4 ) Possibilities o f critical know ledge production as organic
praxis in leftist political parties and popular social m ovem ents
3.4) Socio-historical psychology, the materialist approach o f cogni­
tive and language developm ent, and their applications in education
3.5) M arxist unfolding ideas in the field o f mental health o f labour
3.6) M arx ist studies on h istory o f madness and psychiatry
3.7) M arx ist approach o f activity, labour and praxis in the context
o f psychiatric reform s and o f psychosocial care in the m ental health
field
3.8) C o m m o d ity fetishism and th e ir collective subjective im plica­
tions
3.9) Psychic structures as a su p p o rt for ideological reproduction
m echanism s, w ith em phasis on fam ily and sexuality
3.10) M arxist inspired studies on oppressive conditions o f w o m ­
en, as m ain providers o f inform al social care in the family
3.11) F inal considerations o n essential contributions from M arx
and M arxism for approaching hu m an subjectivity and m ental health

C h a p 4) C ritic a l p h ilo s o p h ic a l a n d ep istem o lo g ical issues in


M a rx a n d th e ir im p lic atio n s in th e field o f subjectivity

4.1) S tatus o f M arx ian th e o ry in relation to the typical features o f


th e w ide E u ro p ean an d G e rm a n system s o f th o u g h t, hegem onic
in th e X IX century
4.2) N aturalism and relativism in M arx ian ontology, his view on
‘h u m a n n atu re’, co rp o rality an d perishability (death), and th eir
im plications in subjective p h en o m en a
4.2.1) In itial descrip tio n o f th e problem
4.2.2) Polem ics on th e eventual autonom y o f em ancipated h um an
beings from nature
4.2.3) D ifficulties in M a rx ’s views and life in relation to corporal­
ity an d perishability, an d th e ir im plications
4.2.4) O ntological o p tim ism in th e historical overcom ing o f h u ­
m an evil
4.2.5) T h e in tern al ten sio n w ith in th e M arxian analysis o f th e
Tables o f the others published u n d unpublished volumes | 1 9 9
Chap 7) Volume’s find considerations

References

Appendix 1; Subjectivity; a map’ of the varied subjects, dimen­


sions and fields of knowledge and practice

ISSUES YET U N D ER INQUIRY, SUBJECT O F T H E


CO M IN G VOLUMES

There are several subjects, issues and themes yet under inquiry, but
all related more directly to biographical aspects of Karl Marx and
his family. It is impossible to predict the next volumes’ structure
and format, but they will certainly address the following issues;

— Youth, romantic life project and its denegation


— Personality traits, relationship with money, body and with most
significant persons
— Subjectivity associated with gender issues
— Subjectivity associated with Jewishness and ethnical issues
— A conclusive appraisal and the series’ final considerations

In order to build up this type of analysis e to provide the needed


evidence, the next volumes will include a systematic and exhaus­
tive coverage of fragments from the existing letters and documents
of Karl Marx and his family, most significant to approach the
issues indicated above.
E d u a r d o M o u k à o V a s c o n c i íl o s é p s ic ó lo g o , c ie n t is ­
ta p o l í t i c o e p r o f e s s o r d a U FR J. F e z s e u d o u to r a d o na
L o n d o n S c h o o l o f E c o n o m ic s e p ó s - d o u t o r a m e n t o n a A n ­
g l i a K u s k in U n iv e r s it y , C a m b r id g e (U K ). T em u m a h is ­
t ó r ia d e q u a s e q u a r e n t a a n o s d e m ilit â n c ia p o lít ic a e m
m o v i m e n t o s s o c ia is , p a r t j e u la r m e n t e e m s a ú d e m e n ­
t a l. É a u t o r e o r g a n iz a d o r d e in ú m e r o s tr a b a lh o s, li v r o s e
p u b l ic a ç õ e s , e n t r e o s q u a i s s e d e s ta c a m a r e c e n te c o l e ­
t â n e a A b o r d a g e n s P s ic o ss o c ia is, c m tr ê s v o lu m e s .

Series
K .trl M a r x a n d lh o H u m a n S u b je c tiv ity
b y rd u .ir d o Mowr.m V asconcelos

vot.. i A route o f ideas and concepts inside theoretical u tn ks


vol. i A history o f psychological nleas in Lu rope until ISSO
voi.. hi A n appraisal o f contributions and theoretical issues fo r debate

TAlil.h Oh CONTENTS IN l-NGI ISII Oh T III- rilKhh AI.KIADY I'UBI ISHHD VOLUMES PROVIDED.

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