Você está na página 1de 125

FIL O S O FIA P O LÍTIC A

C O NTEMPO RÂN E A
Uma introdução

W ill Kymlicka

T ra d uç ã o
L U ÍS C A R L O S B O R G E S

R e visã o d a tra d u ç ã o
M A R Y L E N E P IN T O M IC H A E L

M a rtin s Fontes
S ão P a ulo 2 0 0 6
E sta o bra f o i p u b lic a d a o rig in a lm e n te em in g lé s corn o títu lo
C O N T E M P O R A R Y P O L IT IC A L P H IL O S O P H Y - A N IN T R O D U C T IO N
p o r O x fo rd U n iv e rs ity P re ss.
C o p y rig h t © W ill K y m lic k a .
C o p y rig h t © 2 0 0 6 , L iv ra ria M a rtin s F o nte s E d ito ra L td a .,
São P a u lo , p a ra a pre s e nte e diç ã o.

1* ediçã o 2006

Tradução
L U ÍS C A R L O S B O R G E S

R evisão da tradução
M a ry le n e P in to M ic h a e l
A com pa nh am e nto e d ito ria l
L u z ia A p a re cid a dos S a ntos
R evisões grá fic a s
M a u ro de B a rro s
D a n ie la L im a A lv a re s
D iñ a rte Z o rz a n e lli d a S ilv a
Produção grá fic a
G eraldo A lv e s
P agin a çã o/F otolitos
S tu d io 3 D e s e n vo lvim e n to E d ito ria l

D ados Interna cionais de C atalogação na Publicação (CIP)


(C âmara B ra sileira do L ivro , SP, Bra sil)

K ym lick a , W ill
F ilo sofia p olític a contemporâne a : um a introd uç ã o / W ill
K y m lic k a ; tradução Luís C arlos B orge s; re vis ão d a tra dução
M aryle n e P into M icha el. - São P a u lo : M a rtin s Fontes, 2006.
- (Justiça e d ire ito )

T ítu lo o rig in a l: C onte m porary p o litic a l p hilo so p h y : an


in tro d u ctio n .
B ibliogra fía .
IS B N 85-336-2255-4

1. P olític a - F ilosofia 2. P olític a - H istória - S éculo 20 I. T í


tu lo . II. Série.

06-1755____________________________________ C D D-320.50904
ín dic e s p ara catálogo siste m á tico:
1. F ilosofia p olític a contemporâne a : S éculo 20 :
H istória 320.50904

Todos os d ire ito s desta edição p ara o B ra s il re serva dos à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
R ua C ons e lh e iro R am alho, 330 0 13 25-00 0 São P a ulo S P B ra sil
T el. (11) 3 2 41.36 7 7 F a x (1 1) 3101.104 2
e -m a il: info @ m a rtin sfo n te s.co m .br http:IJ z tm no .m a rtinsfon te s.com .br
ÍN D IC E

1. In tro d u ç ã o ............................................................... 1
2. U tilit a ris m o ............................................................. 11
3. A igu ald a d e lib e r a l.................................................. 1x3
4. O lib e rta ris m o ......................................................... "119
5. O m a rxis m o ............................................................. *203
6. O c o m u n ita ris m o .................................................... *253
7. O fe m in is m o ............................................................ '30 3

B ib lio gra fia .................................................................... 375


índice re m issivo.......................... 393
6. O c o m u n ita ris m o

1. O in d iv id u a lis m o lib e r a l e a n e u tr a lid a d e d o E sta d o

C o m e xceçã o d a c orre n te p e rfe c c io n is ta d o m a rx is m o ,


to d a s as te oría s qu e e x a m in a m os até a q u i c o m p a rtilh a m u m
im p o rta n te p re s s u p o s to . E m b ora d is c ord e m q u a n to à m a
n e ira de d e m o n s tra r ig u a l p re o c u p ã ç l’5 p e lo s inte re ss e s das
pe ssoas, elas conc ord a m e m com o c a ra cte riz a r estes in te re s
ses ou, p e lo m e n os , c o n c ord a m em u m a ç a ra cte rís tic a .c e n -
_trál d é stã c a íá rte riz a ^ q f o d a s a cre d ita m qu e pro m o v e m o s!
os intere ss e s d a s pessoas ao d e ix a r qu e é scõlh ã rn p o r si m e s|
m a s qu e tip o de v id a qu ere m co n d u z ir. E las discord a m qu arvj
to ao p a co te d e d ire ito s e re cursos qu e m e lh o r c a p a c ita as
pessoa s a p e rs e g u ir suas pró pria s conc e pçõ e s d o b e m . C o n
cord a m , to d a via , e m qu e n e g a r às pessoas esta a u to d e te rm i
n a ç ã o é d e ix a r de tra tá -la s co m o ig u a is .
A in d a n ã o d is c u ti a im p o rtâ n c ia d a a u to d e te rm in a ç ã o (é
u m a das qu e stõ e s qu e d e ix e i d e la d o n o c a p ítu lo 3 ao a d ia r a
discuss ão do p rin c íp io da lib e rd a d e de R a w ls). S im p le s m e n-j
te pre ssup us qu e te m os u m a com pre e n s ã o in tu itiv a d o q u a
s ig n ific a te r a u tod e te rm in a ç ã o e de p o r qu e se p ensa qu e esta
é u m v a lo r im p o rta n te . Pre cisam os, poré m , e x a m in ar a ques J
tã o m a is d e tid a m e n te , p ois o j c o m u n itá rio s .d e s a fia m m u ito s
dos
Ja a u to d e te m iifla ç ã íJ /E m p a rtic u la r, os c o m u n itá rio s a rg u
m e n ta m qu e os lib e ra is in te rp re ta m e rro n e a m e n te nossa c a-
254 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

p a rid a d e de a u to d e te rm in a ç ã o e n e g lig e n cia m as p re c o n d i-


ções socia is sob as q u a is e sta c a p a cid a d e p o d e s er e x e rcid a
s ig n ific a tiv a m e n te . E x a m in a re i e sta s du a s obje çõ e s in d iv i
d u a lm e n te , d e p o is de e x p o r a d e s criç ã o lib e ra l d o v a lo r d a
a u to d e te rm in a ç ã o .
_____ * * -Loyajor
é tã o e vid e n te qu e n ã o e xig e q u a lq u e r d efe s a . P e rm itir qu e
as p essoas te n h a m a u to d e te rm in a ç ã o , d iz e m ele s, é a ú n ic a
m a n e ira de re sp e itá -la s co m o seres p le n a m e n te m ora is. N e
g ar a a u to d e te rm in a ç ã o a u m a pessoa é tra tá -la a nte s com o
u m a cria nç a o u c om o u m a n im a l d o qu e co m o m e m bro p le
n o da c o m unid a d e . Isso, poré m , é pre cip ita d o d e m ais. S abe
m o s qu e a lg um a s p essoas n ã o e stã o b e m e quip a d a s p a ra li
d a r com as d e cisõ e s d ifíc e is qu e a v id a re qu er. F ias com e te m
erro s a re s p e ito d e suas vid a s, e scolh e ndo_ coisa sJ ô a ^ d S i .
gra d a nte s e a té m e sm o p re ju d ic ia is iS e d e v e m os m o s tra r in
tere ss e p e la s pe sso a s, p o r q u e n ã o d e v e m o s im p e d i-la s de
co m e te r ta is e rro s? . Q u a n d o a s p e sso a s sã o m c a p a z e s de li-
d a r co m a v id a de m o d o efic a z , re sp e ita r ajsu a a u to dete rm i
n a ç ã o pod e e q u iv a le n n a prá tic a , a a b a n d o n á -la s a u m -dest i-
n o in fe liz . D iz e r qu e d e v e m os re s p e ita r a a u to d e te rm in a ç ã o
das pessoas sob estas circu nstâ ncia s to m a -s e um a expressão
a nte s de in d ife re n ç a qu e d e in tere s s e . D w o rk in d iz q ue é " o |j
m a l d e fin itiv o d e u m a d is trib u iç ã o g e n u in a m e n te d e sigu a l,
de re c urs o s " a lg um a s p essoas "te re m s id o ta p e a d a s n o qu e t]
se re fe re à ch a nc e qu e o u tro s tiv e ra m d e fa z e r a lg o v a lio s o lj
de suas v id a s " (D w o rk in , 1 9 8 1 :2 1 9). M a s e a qu ele s qu e s ã o |
inc a p a z e s d e fa z e r a lg o v a lio s o d e suas v id a s m e sm o q u a n -'
d o tê m ch a nc e ? N ã o te m os obrig a çõ e s ta m b é m n e ste caso?
O s lib e ra is , n a tu ra lm e n te , d e ix a m esp a ço n a sua te o ria
p ara a tos d e p a te rn a lis m o - p o r e x e m plo , na s nossas re la
ções com as cria n ç a s, os d e m e n te s e os in c a p a cita d o s te m
p ora ria m e n te de o u tra s m a n e ira s 1. O s lib e ra is , c o n tu d o , in -

1. C ertos atos de p a t ern a lis m o que e nv olv e m a du ltos co m p e te nte s p o


d e m ser ju stific a do s q u a n d o somos c o n fro n t a d o s c om casos claros de fra q u e
z a de vo nta d e . P or e x e m plo , a m a ioria das pessoas sabe qu e o g a nh o e m se-
O C 0 M U N IT A R 1SM 0 255

siste m e m qu e .todo, co m p o n e n te a d u lta d e v e .s e rp .rp yid o .d e


urn a e sfera d e a u to d e te rm in a çã o qu e d e v e s e r.re sp e ita d a p e -
io s o u tro s . C o m o disse M ill, é d ire ito e p re rro g a tiv a d e cada
pesso a , a ssim qu e ch e g a à m a turid a d e de seus anos, in t e r
pre ta r p o r si m e sm a o sig n ific a d o e o v a lo r de suas e x p e riê n
cias. P ara os q u e a d e ntra m o li m ia r d a id a d e e d a c o m p e té n -
cia m e n ta l, o d ire ito d e te r a u to d e te rm in a ç ã o n a s d e cisõ e s
im p o rta n te s da vid a é in v io lá v e l.
M a s p o r qu e d e ve m os v e r a a u to d e te rm in a ç ã o e m fu n -
„ ç |o .d e ta l lim iar? A lg u m a s 'a á s^ e s s o a s 'q ü e 'é s tá o a lé m da
"id a d e d a ra z ã o " e q u e p o s s u e m u m a c o m p e tê n c ia m e n ta l
a cim a d o m ín im o a cord a d o a in d a fa z e m e scolh a s ru in s so
bre com o c o n d u z ir suas vid a s. S er u m " a d u lto c o m p e te n te ",
n o s e n tid o de n ã o ser m e n ta lm e n te d e ficie n te , n ã o é g a ra n
tia de s er b o m n o fa z e r de sua v id a a lg o v a lio s o . E ntã o , p o r
qu e o g o v e rn o n ã o d e v e d e c id ir qu e tip o d e v id a é m e lh o r
p a ra os seus cid a d ã os?
O p e rfe c cio n is m o m a rxista é u m e x e m plo de ta l p o lític a ,
p o is p ro íb e as p essoa s de a d o ta r u m a e s colh a qu e e le vê
co m o ru im - is to é, e scolh er d e dic a r-s e a u m tra b a lh o a lie n a
do . A rg u m e n te i qu e esta p o lític a n ã o é a tra e nte , p o is ela se
v a le d e u m a d e scriç ã o d o b e m m u ito re d u z id a . E la id e n tifi
ca noss os b e n s co m u m a ú n ic a a tiv id a d e - o tra b a lh o p ro
d u tiv o - com ba se n o fu n d a m e n to d e qu e só e la n o s to rn a
d is tin ta m e n te h u m a n o s. C o n tu d o , n e m to d a s as p o lític a s !
p a te rn a lis ta s o u p e rfe c cio nista s b a s e ia m -s e e m ta l d e s criç ã oj
im p la u s ív e l d a b o a v id a . C o n sid e re u m a p o lític a qu e su b si-f
dia o te a tro a o m e sm o te m p o e m qu e trib u ta a lu ta p ro fis s io
n a l. O s d e fe n sore s de ta l p o lític a n ã o pre cis a m d iz e r qu e o
te a tro é o ú n ic o o u m e sm o o m a is im p o rta n te b e m n a vid a .
S im ple s m e nte a firm a m qu e , d esta s du a s opçõ e s, co m o e xis-

gura nç a v a le o e sforço de colo c a r o c in to de se gura nça q u a nd o e stamos no


a u tom óv e l. A in d a assim, m uita s pessoas d e ix a m q u e a in c o n v e niê nc ia m o
m e ntâ n e a supere sua ra z ã o. A le gisla ç ã o do cin to de s e gura nç a o brig a tório
ajud a a sup era r esta fra qu e z a da vo nta d e , d a n do às pe ssoas u m in c e n tiv o a
m ais p ara qu e fa ç a m a lg o qu e já possu em ra z ã o suficie n te p ara fa z er.
256 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Á N E A

te m n o pre s e n te , o te a tro é m a is v a lio s o . P od e m te r v á rio s


a rg um e n to s d ife re n te s a fa v or d a a firm a ç ã o . O s e studos p o -i
d e m re v e la r qu e o te a tro é e s tim u la n te , ao pa sso qu e a lu ta ]
p ro d u z fru s tra ç ã o e d o c ilid a d e , o u qu e os fã s da lu ta m u ita s |
v e z e s v ê m a se a rre p e n d e r d e suas a tiv id a d e s pa ssada s, a o!
p a sso qu e os fre q ü e n ta d ore s d e te a tro ra ra m e n te a rre p e n j
d e m -s e das sua s; ou e n tã o qu e a m a io ria das pessoas q u ^
e x p e rim e n ta ra m a m b a s as form a s d e e n tre te n im e n to p re fe
riu o te a tro . N e sta s circu n stâ n cia s, a a firm a ç ã o de qu e o te a
tro é e n tre te n im e n to m e lh o r d o qu e as lu ta s te m c erta p la u -
s ib ilid a d e . P or qu e , e ntã o, o g o v e rn o n ã o de v e e n cora ja r as
pessoas a fre q ü e n ta r o te a tro e p o u p á -la s d e d e sp e rdiç a r
su a s vid a s com as luta s?
¡ O s lib e ra is v ê e m ta is p o lític a s , n ã o im p o rta q u ã o p la u -
j ¡ível seja a te o ria d o b e m subja ce nte , com o um a re striç ã o ile -
I p tim a da a u to d e te rm in a ç ã o. Se h á pessoas qu e q u ere m p a r-
ic ip a r das lu ta s e p e ssoa s q u e q u e re m a s s is tir a ela s, e n
tã o , a p o lític a an tilu ta é u m a r e s ¿ i^ ^
liv re m e n to n s c o lh id o da s pessoa s. C o m o os lib e ra is p o d e m
d e fe n d e r a im p o rtâ n cia de as pessoas sere m livre s p ara esco
lh e r seu p ró p rio la z er? V is to qu e o a rg u m e n to a fa v or d o p e r
fe cc io n is m o d e p e nd e do pre s sup o sto d e qu e as pessoas p o
d e m c o m e te r erros q u a n to a o v a lo r d e suas a tiv id a d e s ,jjrD a -.
possív e l lin h a d e d e fe sa é n e g a r qu e as pessoas p ossam e s ta r.,
."erra da s no s seus jíp g á m e n to s d o q u e é v a lio s o.m a -vid a f O s
d e fe nsore s da a u to d e te rm in a ç ã o p o d e ria m a rg u m e n ta r que
os ju íz o s d e v a lo r, a o c o n trá rio dos ju íz o s d e fa to , são s im
p le s m e n te as expre ssõ e s d e nossas pre fe rê n cia s e a versõ es
s u bje tiv a s. E stas escolha s são, e m ú ltim a a n á lis e , a rb itrá ria s ,
inca p a z e s d e ju s tific a tiv a o u crític a ra c io n a l. Todas e sta s es
colh a s são ig u a lm e n te ra c io n a is e. p orta ndo , o E sta do n ã o
te m n e n h u m a ra z ã o p a ra in t e rfe rir nela s- M u ito s p e rfe c c io
nista s supusera m que este tip o de c e ticism o a re sp e ito dos ju í
zos de v a lo r te m de s er a po siç ã o lib e ra l, p o is , se re c o n h e
c em os a p o s s ib ilid a d e de as pe ssoa s c o m e te re m erro s , e n
tã o , c erta m e nte , o go v e rn o de ve e n cora ja r os m o d os corre tos
de v id a e d e s e n cora ja r o u p ro ib ir os e rra d o s (U n g e r, 1984:
52, 66-7; Ja ggar, 1 9 8 3:1 9 4 , 174; S u lliv a n , 1982: 3 8-4 0).
O C O M U NIT A RISM O 257

O s lib e ra is , p oré m , n ã o e ndoss a m o c e ticis m o . U m a r a


z ão é qu e o c e ticis m o , d e fa to , n ã o a p ó ia a a u to d e te rm in a
ção. Se as pessoas n ã o p o d e m c o m e te r e rro s n a s suas esco-
lh a s, e n tão-, os-gov ern a s ta m p o u c o p o d e m . Se to d a s as m a
n e ira s de v id a são ig u a lm e n te v a lios a s, e ntã o, n in g u é m p o d e
re cla m a r q u a n d o o g o v e rn o e scolh e u m m o d o d e v id a e sp e
cífico p ara a co m u nid a d e . P orta n to , o c e ticis m o d e ix a a q u e s
tã o p o r so lu c io n a r.
C o m o os lib e ra is d e fe n d e m a im p o rtâ n c ia d a a u to d e
te rm in a ç ã o ?f Precisam os e x a m in a r m a is d e ta lh a d a m e nte esta
id é ia . A a u to d e te rm in a ç ã o e n v o lv e d e c id ir o q u e fa z e r com
.nossas vidas-. C o m o to m a m o s ta is d ecisõ e s? N q n ív e l m a is
.g era l, n o sso o b je tiv o é te r u m a b o a v id a , t e r as cois a s q u e
u m a b o a v id a c o n té m . C o lo c a d a n u m n ív e l a ssim g e ra i, a
a firm a ç ã o n ã o p are ce o fe re c e r m u iía in fo rm a ç ã o . C o n tu d o ,
te m c o n s e qü ê n cia s im p o rta n te s . P ois, co m o v im o s n o c a
p ítu lo 2 , te r u m a b o a v id a é d ife re n te d e te r a v id a q u e n o
pre s e nte a cre dita m o s ser bo a (cap. 2, seção 2c a cim a ). Reco-fa
n h e c e m o s qu e p o d e m o s e sta r e rra d o s q u a n to a o v a lo r da s*
nossas pre se nte s a tivid a d e s. P od e m os v ir a p erc e b e r q u e e s -f
tiv e m o s d e s p e rd iç a n d o nossas vid a s , p e rs e g u in d o o b je tiv o s
triv ia is qu e h a vía m os e rro n e a m e n te c o n sid e ra d o d e gra n d e
im p ortâ n c ia . Tfofp á ftm a le õ a l d o s gra n d e s ro m a n c e s - a cr i-
.s e da fé .P oré m , ^s u p o s iç ã o d e q u e isso p o d e ria a co nte c e r a
to d o s nó s, e n ã o a p e n a s a T ie ro ín a trá g ic a , é n e c e ss ária p ara
qu e sé e nte n H ã á m a rte íra co m o d e lib era m o s a re s p e ito d e .
d e cisõ e s im p o rta n te s d a noss a v id a /D e lib e ra m o s c u ic fa d o-
“li ã m ê r^ ^ qu e po d ere m o s to m a r d e cisõ es e r
rad as. E n ã o a p e n a s n o s e n tid o d e p re v e r e rro n e a m e n te o u
d e c a lc u la r in c e rte z a s. P ois d e lib e ra m o s m e sm o q u a n d o sa
b e m o s o qu e v a i a co n te c e r e p o d e m o s n o s a rre p e n d e r de
nossa s d e cisõ e s m e sm o q u a n d o as cois a s sa em co m o p la n e
ja m o s. Posso te r sucesso e m m e to rn a r o m e lh o r jo g a d o r d e
pushpin d o m u n d o , m a s p erc e b e r qu e pre g a r p erc e v e jos n ã o
é tã o im p o rta n te q u a n to po e sia e a rre p e n d e r-m e d e te r e m
b a rc a d o n e ste p ro je to .
A d e lib e ra ç ã o , e n tã o , n ã o a ssu m e a p e n a s a fo rm a d e
p e rg u n ta r q u a l curso d e ação m a x im iz a u m v a lo r e sp e cífico
258 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O NT EM P O R ÂN E A

qu e é s u ste nta d o s em q u e s tio n a m e n to . T a m b é m q u e stio n a


m os, e nos pre o cu p a m o s co m isso, se o v a lo r re a lm e n te vale
a p e n a ser busc a do . C o m o d iz R a w ls:

T 'o m o pesso as livre s, os cid a d ã os reconhece m =&e-mu


tu a m e nte com o possuidore s do p o d e r m ora l de te r um a co n
cepção do b prry Isso signific a que eles n ã o se vê em com o in e -
vitàvé Tm ente lig a do s à busca da concepção e spe cífica de be m
e de seus o bje tiv o s fin a is qu e a bra ç a m e m q u a lq u e r te m po
d a do. E m ve z disso, com o cid a d ã os,^¿ crim xisid e ra d os,_e ni
5o com.
^b a s e e m iund a m e ntos ra zoáveis e ra cion ais. A ssim , é consid e
ra do p erm issív e l os cidadã os separarem-se das concepções de
b e m e fa z ere m o le v a nta m e n to e a a v a lia ç ã o de seus v á rio s
o bje tivo s fin a is (R a wls, 1980: 544).

P od e m os " n o s s e p a ra r" d e nossos pre s e n te s o b je tiv o s!


e q u e s tio n a r o v a lo r qu e ele s tê m p ara nós. A pre ocup a ç ã cf
com a q u a l fa z e m os e ste s ju lg a m e n to s , e m c e rto s m o m e n
tos de nossa vid a , só fa z s e n tid o com base n o pre ssupo sto de
que nosso intere ss e e ssencial está e m v iv e r um a b.P a .vid a , n ã o
a v id a qu e a tu a lm e n te a cre dita m o s s e r b o a /N ã o ap en a s fa
z e m os ta is ju lg a m e n to s , m a s nos pre o cu p a m o s e, às ve z es,
no s a n g u stia m o s p o r causa d ele s - é. im p o rta n te p a ra n ós
qu e m ã o con du z a m o s noss as v id as com base e m fa ls as cre n
ças a re sp e ito d o v a lor de- nossas a tivid a d e s (R az, 1986; 30 0-2).
A id é ia de qu e a lgu m a s cois a s re a lm e n te v a le m a p e n a
s er fe ita s e o u tra s n ã o v a i m u ito fu n d o e m noss a a u to c o m -
pre e ns ã o . C o n sid e ra m o s s e ria m e n te a <
.d a d e s-va lie sa s e- triv ia is * m e sm o qu e n e m s e m pre t e n h a m o s
c erte z a .d e q u a is cois a s são o qu ê . A a u to d e te rm in a ç ã o , em
gra nd e p a rte , é a ta re fa de fa z e r estes ju lg a m e n to s d ifíc e is e
p o te n cia lm e n te fa lív e is , e noss a te o ria p o lític a de ve le v a r em
c o nta esta d ific u ld a d e e esta fa lib ilid a d e .
D e v e m o s, p o rta n to , ser p e rfe c c io n is ta s , a p o ia n d o p o lí
tic a s e s ta ta is qu e d e s e n cora je m a tiv id a d e s triv ia is às q u a is
as p essoas e ste ja m e rro n e a m e n te a p e ga d a s? N ã o n ece ssa
ria m e n te . Para com e ç ar, n in g u é m p o d e e star e m m e lh o r p o -
o C O M U N TT ARISM O 259

siç ã o d o qu e e u p a ra co n h e c e r o m e u p ró p rio b e m . M e sm o
que n e m s e m pre eu e ste ia c e rto , á m a is p ro v á v e l qu e eu e s
te ia c e rto d o qu e q u a lq u e r o u tra p e ssoa . M ill d e fe n d ia um a
v ers ã o d e ste a rg u m e n to ao a firm a r qu e ca da pe sso a c o n ti
nh a u m a p e rs o n a lid a d e ú n ic a c u jo b e m era d ife re n te d o b e m
de q u a lq u e r o u tra . A e x p e riê n cia dos o u tro s , p o rta n to , n ã o
forn e c e n e n h u m fu n d a m e n to p ara s o bre p u ja r o m e u ju lg a
m e nto., Isso é o .o p o sto d o p e rfe c cio n ism o m a rx ista - o nd e os
m a rxista s d iz e m q u e o b e m d e ca da p e sso a en c o n tra -s e n a
c a p a cid a d e qu e. cla c o m p a rtilh a com to d o s os o u tro s h u m a
nos, M ill d iz qu e se e n c o n tra e m algo. q u e .fila .n ã o c o jn p a rti-
lh a com m a is n in g u é m . ,£ o m c erte z a , p oré m , a m bos os e x
tre m o s e stã o e rra dos . N osso b e m n ã o é n e m u n iv e rs a l n e m
ú n ic o , m as e stá lig a d o de m a n e ira s im p o rta n te s às prá tic a s
c u ltu ra is qu e c o m p a rtilh a m o s c om os o u tro s e m noss a c o -
m u n id a d e . C o m p a rtilh a m o s co m os o u tro s a o no sso re d o r o
s uficie n tg p a ra qu e u m g o v erno p e rfe ccio n ista b e m -in te n c io
n a d o pud e sse , v a le n d o-s e d a s a b e doria e d a .e xp .e riê nd a .dos
o u tro s , ch e g ar a u m c o n ju n to ra z o á v e l d e crença s a resp.ei.tP
d o b e m de seus cid a d ã o s. N a tu ra lm e n te , p o d e ría m o s d u v i
d a r qu e os g o v e rn o s te n h a m as in te n ç õ e s o u as c a p a cid a
des corre ta s p a ra e x e cu ta r ta l pro gra m a . E m p rin c íp io , p o
ré m , n a d a e x clu i a p o s sib ilid a d e de qu e os g o v erno s poss a m
id e n tific a r e rro s n as conc e pçõ e s d e b e m da s pessoas.
P or qu e , e ntã o, os lib e ra is se opõ e m ao p a te rn a lis m o es
ta ta l? P orqu e , a rg u m e nta m eles, n e n h u m a v id a s erá m e lh o r^
p o r s er v iv id a e x te riorm e n te ,, s e g u n d a ^a lore sjq u e ^a jp e s s o a ''
n ã o e n d o s s a :'M in h a vid a só será m e lh o r se e u a e stiv e r c o n
d u z in d o in te rio rm e n te , s e g und o m in h a s cre nça s a re s p e ito
d e v a lo r. R e z ar a D e us p o d e s er u m a a tiv id a d e v a lio s a , m as
te n h o de cre r qu e é u m a cois a qu e v a le a p e n a ser fe ita - qu e
te m a lg u m s e n tid o qu e v a lh a a pe n a . P ode m os co a gir a lgu é m ji
a ir à igre ja e fa z e r os m o v im e n to s físic o s c orre to s , m as n ã o l
to m a re m o s sua v id a m e lh o r d e ste je ito . N ã o v a i fu n cio n a r,^
m e sm o qu e a pe sso a co a gid a e ste ja erra d a e m sua cre nç a de
que re z a r a D e us é p e rd a d e te m p o , p orq u e um a vid a v a lios a ,
260 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

^ e » u i e ^ £ pr\d u z id a ^p _m te 4 o i? /U m a p o lític a p e rfe c c io n is


ta qu e v io la e sta " lim ita ç ã o do e n do s s o " te n ta n d o e v ita r o u
ig n o ra r as cre nça s da s pessoas a re s p e ito de v a lore s d e rro ta
a si m e sm a (D w o rk in , 1 98 9:4 86-7). Pode te r sucesso e m c o n
s e g u ir q u e as p essoa s b usq u e m a tivid a d e s v a lio s a s, m a s fa z
isso sob co n diçõ e s e m qu e as a tivid a d e s d e ix a m d e te r v a lo r
.. p a ra os in d iv íd u o s e n v o lvid o s . Se n ã o v e jo o s e n tid o de u m a
a tiv id a d e , n ã o g a n h a re i n a d a com e la . P orta n to , o p a te rn a
lis m o cria o p ró p rio tip o d e a tiv id a d e s e m o b je tiv o qu e fo i
p ro je ta d o p a ra im p e d ir.
P orta nto , te m os dua s pre con diçõ e s p a ra a concre tiz a ç ã o
de nosso in te re s s e e ss e ncia l de c o n d u z ir u m a v id a q u e seja
bo a . Lím a d qu e con du z a m o s nossa vid a do in te rio r, e m c o n-
fo rm id a d e co m noss as cre nç a s a re s p e ito d o qu e d á v a lo r à
vid a ; a o u tra é qu e s eja m os livre s p ara q u e stio n a r estas ere n-
ças, p a ra e x a m in á -la s à lu z de q u a isqu er inform a çõ e s, e xe m
plo s e a rg u m e nto s qu e nos s a c u ltu ra possa no s pro p o rc io
n a n A s pessoas, p o rta n to , de v e m te r os re cursos e lib e rd a d e s! 2

2. O caso do c ulto re lig io s o forç a d o fo i u m e x e m plo f a v orito dos lib erais,


de L oc k e a R a wls. N ã o está cla ro q u e o c u lto re lig io s o poss a ser g e n era li z a do
de sta m a n e ira , j á que h á u m re q u isito e pistê m ic o p ara a pre ce qu e n e m se mpre
está pre s e nte e m o u tro s casos. C ontud o , a cre dito qu e a " co a ç ã o ao e ndos so " é
a plic á v e l à m a iori a das form a s valios a s e im p ort a n t e s da a tivid a d e h u m a n a
(D w o rk in , 1989:484-7; Ra z, 1986:291-3, m as cf. D a nie ls, 1975:266). A lg u n s l i
b erais a rgu m e nta m qu e a coação ao e ndosso fa z co m qu e o p erfe ccio nis m o
n e c e ss aria m e nte d e rrote a si m e sm o. P ois, m e s m o qu e o E sta do possa e n co
ra j a r o u o b rig a r as pessoas a busc ar os m od o s d e vid a m ais v a lorosos, ele nã o
pod e forç a r as pessoas a bus c á -los p e la s ra z ões correta s. A lg u é m qu e m ud e
seu e stilo de v id a p a ra e v it a r a p u niç ã o do E sta do o u p a ra cons e guir subsídios
e statais n ã o é g uia do p o r u m a com pre e ns ã o d o v a lor g e n uín o d a n ov a a tiv i
da d e (W a ldro n , 1 98 9:1 145-6; L om a sk y, 1987: 253-4). Jlsta é u m a id é i a v á lid a
^contra form a s co erciv a s e m a n ip ula d ora s d e p e rf e c c io n is m q J Ç ã a e xclui, j j o ;
-ré m , a in te rv e n ç ã o e statal de curto pra z o d e stin a d a a a pre s e ntar, .à s pessoas
m o do s d e vid a v aliosos. U m a m a n e ira d e cons e gu ir qu e as pessoas b usq u e m
algo p ela s ra z õe s corre ta s é fa z er co m que o b usq u e m p ela s ra z ões in corre ta s
e t e r esp era nç a de qu e p erc e b a m o seu v e rd a d e iro v a lor. Isso n ã o é in e re n t e
m e nte in a c e itá v e l e o corre com b a sta nte fre qü ê ncia n o m erc a do c ultura l. P or
ta n to , o a rg u m e n to d a coação ao endosso, p o r si, n ã o po d e e xcluir tod a s as
form a s de p e rf e ccion is m o e statal.
O C O M U N IT A RIS M O 261

n ec e ss ários p a ra le v a r suas vid a s d e a cord o com suas cre n


ças a re s p e ito d e v a lo r, s em s ere m ^ n ã I í z ã 3 a ^ > o r prá tic a s
re lig io s a s o u s e xua is h e te rod o x a s e tc T D iT a pre ocup a ç ã o l i
b e ra l tra d ic io n a l com as lib e rd a d e s civ is e p e sso a is J E p s in
d iv íd u o s d e v e m te r a s -c o o d ic o e s e u llu ra is n e c e ssária s pum
i& f f ir ir u m a c o n ^ ê n d a .d a s iiife x e n .te s jid s õ e s a re s p e ito da
b o a vid a e a d q u irir um a ca pa cid a d e de e x a m in a r estas visõe s
com in te lig ê n c ia ..D a í a pre ocu p a ç ã o lib e ra l tra d ic io n a l com
a e duc açã o, a lib e rd a d e de expressão, a lib e rd a d e da im p re n
sa, a lib e rd a d e a rtís tic a etc. E stas lib e rd a d e s c a p a cita m -n o s
a ju lg a r o qu e é v a lio s o n a v id a d a ú n ic a m a n e ira qu e p o d e
m os ju lg a r ta is coisa s - is to é, e x p lo ra n d o d ife re n te s a sp ec
tos de noss a h era n ç a c u ltu ra l c o m p a rtilh a d a .
E sta d e scriç ã o do v a lo r da a u to d e te rm in a ç ã o fo rm a a
base d o p rin c íp io de lib e rd a d e de R a w ls. S e g un d o ele , a li-J
b erd a d e d e e scolh a é n ec e ssária ju sta m e n te p ara qu e e n c o n-f
tre m o s o q u e é v a lio s o n a v id a - fo rm a r, e x a m in a r e re v e *
nossas cre nça s sobre v a lo r3. A lib e rd a d e a ju d a -n o s a c o n h e l
c e r o nosso b e m , a "ra s te a r a c o n diç ã o d e m e lh o r" , n a e x
pressão de N o z ic k (N o z ick , 1 9 81:3 1 4 ,4 1 0-1 ,4 3 6-4 0 ,4 9 8-5 0 4;
cf. D w o rk in , 1983: 2 4 -3 0 )/C o m o te m o s u m intere ss e e sse n
c ia l e m c o n s e g u ir e stas cre nç a s c erta s e e m a tu a r co m base
n e la s, o g o v e rn o tra ta as p esso as co m ig u a l inte re ss e e re s-
p e ito p ro p o rc io n a n d o a cad a p essoa as lib e rda d e s e re cursos
n e ce ss ários-p ara e x a m in a r e ü tu a r c o m ba se n e sta s.crenç a s.
R a w ls a rg u m e n ta qu e e sta d e scriç ã o da a u to d e te rm in a
çã o de v e no s le v a r a e nd oss a r u m " E s ta d o n e u tro " - is to é,
u m E sta d o qu e n ã o ju s tific a suas ações co m base n a s u p e -

3. A im p ort â n cia d a po ssib ilid a d e d e re vis ã o de nossos fin s d e s e m p e


n h o u u m p a p e l m ut á v e l n a te oria de R awls. E m seus a rtigos m a is rec e nte s,
R¿2 xls_gu a lific o u ip a ^ v á s ã o j a n g ^ ^ d iz qu e .d e v ería m os a c e it ar -esta
vis ã o p ara fin s d e d e term in a ç ã o de nossos dire ito s e re spo ns a bilid a d e s p ú b li
cos, s e m ljè c è s s a ria m e n t e a c e it á-la co m o u m re tra to pre cis o de nossa. a uto-
çom pre e ns ã o priv a d a (R a wls, 1980:545; 198 5:2 4 0-4; cf. B uch a n a n, 1 98 2:138-
44). Ir e i m e c o n c e ntra r n a a pre s e nta ç ã o orig in a l de R a wls, e m p a rte p orq u e é
a qu e m a is obte v e re sposta dos c o m u n it á rio s e e m p arte porq u e a cre d ito que;
sua vis ã o m a is re c e nte n ã o é b e m suc e did a (K y m lic k a , 1989a: 58-61).
262 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

rio rid a d e o u in fe rio rid a d e in trín s e c a de conc e pçõ e s d a bo a


v id a e qu e n ã o te n ta d e lib e ra d a m e nte in flu e n c ia r os ju íz o s
d e v a lo r da s pe sso as sobre esta s d ife re n te s conc e pçõ e s4/ E le
c o n tra sta isso com as te oria s p e rfe c cio n ista s , qu e in c lú e m
u m a vis ã o e sp e cífic a , o u le q u e d e visõ e s, q u a n to a q u a is são
os a trib u to s qu e m a is v a le m a p e n a se r d e s e n v o lv id o s . O s
p e rfe c c io n is ta s e xig e m qu e os re c urs o s s e ja m d is trib u íd o s
de m a n e ira qu e e ncora je este d e s e n v o lv im e n to . O qu e um a
p e ssoa cons e gu e d e p e n d e d e q u a n to e la pre cis a p ara b u s
c ar e sta v is ã o p re fe rid a d a bo a v id a o u d e q u a n to ela c o n tri-

4. P ara outra s form ula çõ e s im p ort a n t e s d a n e u tra lid a d e lib e ra l, v e r A c


k e rm a n (1 980:1 1, 61); L a rm ore (1987: 44-7); D w o rk in (1978:127; 1985: 222).
O ' Ñ e u tr a lid a a i/j a o d e n ã o s.er a. m e lh o r p a la vra p a ra d e s cre w r. a .p o lític a _ e m
-tq u e s lâ £ k . O ftró prio R a wls e vito u o t e rm o p o r c ausa d e seus signific a dos m ú l
tip lo s e fre q ü e n t e m e n t e eng a nosos. A n e u tr a lid a d e n o uso c o tid ia n o re fere -s e
m u it a s ve z e s a nt e s às cons e qü ê ncia s d as ações qu e às ju s tific a tiv a s p a ra elas
(Ra wls, 19 88:260 ,26 5; cf. R a z, 1986: cap. 5). U m a p olític a " n e u tr a " , n este sen-t
tid o cotid ia n o , s eria um a qu e assegurasse que to d a s as conc epçõe s d o b e m t i
v ess e m curso ig u a lm e n t e b o m n a socie d ade, n ã o im p ort a qu ã o disp e n dios a s !
e p ouc o atra e nte s foss e m. A lg u n s críticos con sid e ra ra m q u e R a wls d e fe nd e a
n e u tra lid a d e n e ste s e ntid o c otid i a n o (por e x e mplo , R a z, 198 6:117). C o n tu do , *
este tip o de n e u tr a lid a d e é ln t e ir a m e rttg não lib e r a l iá qu e r e s trin g iri a a lib e r-
dad e de e scolh a e v i o l a ri a p j£ q u is it o j| e q u e as pessoas a c e it e m a re spo ns a bi
lid a d e p elos custos de suas escolhas:' Q u a lq ü ê í Sôcíé dade qu e p e rm it a qu e
m o d o s d e v id a dif e re n t e s e n tre m e m c o m p e tiç ã o p e la livr e fid e lid a d e das
pessoas e qu e e xija qu e as pessoas p a gu e m p e los custos de suas escolh a s co
loc ará e m s éria d e s v a nta g e m m od o s de v id a dis p e n dio sos e s e m a tra tivos.
O s lib e ra is a c e it a m e, n a v e rd a d e , v a lori z a m estas cons e qü ê ncia s de sigu ais
f i a s lib e rd a d e s civis e da re sp o ns a bilid a d e in d iv id u a l. P ort a n to , a n e u tra lid a -
fp e lib e ra l - isto é, a exig ê ncia de qu e o E sta do lib e ra l n ã o hie ra rquiz e o v a lor de
S n o d o s de v id a dif e re nt e s - é dif e re n t e e, n a v erd a d e , op õ e-s e à n e utra lid a d e
'jh o s e ntido c o tid i a n o (cf. K y m lic k a , 1989b: 883-6). P ara e vit a r esta po ss ív e l j n -
terpre ta ç ã o erra d a , R a wls uso u o t e r m o rtirio rid a d e d o d ir e ito a nt e o b e m *
M a s isso t a m b é m possui s ig n jf c a d g A J B Ú ltip lo s ^ ê ^ ã n o s p g t J á p i116 é u s a dp
/ p 6 rJ í a tfis p M a fi e s a e v e tt e j[il Q _ a a fin n a ç ã o d a n e utra lid a d e ante o p e rf e c d o n is-
r n a q u a n t o A a firm a ç ã a d a . d fim t o L Q ^ a i2 u ã S E Q l9 S â . Estas qu e stõe s pre c i
sa m s er m a ntid a s distin t a s e n e n h u m a delas, vista p o r si só, é cham a da , com
pro v e ito , u m a qu e stã o da " prio rid a d e d o d ir e ito " , .V er. K v m lick a (1988b: 173-
90) p ara um a crític a de R a wls ao uso de ^ priorid a d e do d ir êrtcff. D a d a a a u
sê ncia de qu a lq u e r p ossib ilid a d e e vid e nt e m e n t e sup erior, c o ntin u a re i a us ar o
t e rm o " n e u tra lid a d e " .
o COMUNITARISMO 263

buí para essa visão. A s pessoas, p orta n to , n ão são livre s para


e scolher sua pró pria concepção de boa vid a e o E stado te m
a re s p on s a bilid a d e de e n sin a r seus cid a d ã os a re sp e ito de
um a vid a virtu o s a . E le a ba ndon a esta re spons a bilid a d e aos
seus cidadãos se custeia, ou m esm o, ta lv e z , se tolera , pla nos
de vid a com visõ es m a l concebidas a re sp e ito da excelência
hum ana.
Para R awls, p or o u tro la do, nossos interesses essenciais
s ã opre judic a dos p or te nta tiv a s de im p or às pessoas um a v i-
^ Q £ s p e ç ffic a ji£ M a M a.>Ê lé dá pre ferê ncia à d is trib u iç ão
dos bens prim á rio s, base ado e m u m a -te o ria rasa do h è riri',
que possa ser usada para pro m o v e r,m uito s m odos d e v jçia
difere n te s (cf. cap. 3, seção 3, a cim a). Se só te m os acesso a
re cursos que são ú te is p ara u m p la n o de vid a , e ntã o, sere
mos incapa z es de a gir com base em nossas crenças a re sp ei
to de v a lor se vierm os a crer que um a concepção pre ferid a de
boa vid a é errône a. (O u, de qu a lqu er m an eira , seremos in c a
pazes de fa z ê -lo sem sofrer a lgum a p e n a lid a d e q u a nto aos
b enefícios sociais.) C om o a vid a te m de ser condu zid a do in
terior, o interesse essencial de um a pessoa em le var um a vid a
que seja boa n ão é pro m o vid o qu a ndo a sociedade p e n a liz a
ou discrim in a os proje to s que, ao re fle tir, ela se nte serem os
m ais v aliosos p ara si. D is trib u ir recursos se gundo um a "te o
ria rasa do b e m ", ou o que D w ork in d e nom in a "re cursos no
s e ntido m ais a m p lo ", ca pacita as pessoas da m e lh or m a n e i
ra para a tu ar com base em suas crenças e e x am iná-las qu a n
to ao v a lor, e esta é a m a n e ira m ais ade quada de prom o v ei
o interesse e ssencial das pessoas em te r um a boa vid a .

2 0 c o m u n ita ris m o e o b e m c o m u m H

O s co m u nita rista s opõ e m -s e ao E sta do n e utro .^A cre-


dita m que ele deve ser abandonado p or um a " p o lític a do be m
If l P fr J f c Z t ta y ió r. 1986)- E ste contra ste'
e ntre a " p o lític a da n e u tra lid a d e " e a " p o lític a do b e m c o
m u m " do c o m u nita rism o pod e ser enga noso. H á u m "b e m
264 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O NT E MP O R Â N E A

c o m u m " pre s e n te ta m b é m n a p o lític a lib e ra l, já qu e as p o


lític a s de u m E sta d o lib e ra l a lm e ja m p ro m o v e r os in te re s
ses dos m e m bro s d a c o m u n id a d e . O s proc e s so s p o lític o s
e e c o n ó m ic o s p e lo s q u a is as p re fe re n c ia s in d iv id u a is são
co m bin a d a s e m um a fu n ç ã o de e scolh a so cia l são m od os l i
b era is de d e te rm in a r o b e m co m u m . A firm a r a a e u tra M a d e .,
do E stado, p o rta n to , n ã o é re je ita r a id é ia d e um be m com um ,
m a s, a nte s, p ro v e r u m a in te rp re ta ç ã o d e la (H o lm e s , 1989:
2 39-4 0). E m u m a socie d a d e lib e ra l, o b e m com u m é o r e s u ll
ta do de u m proce sso de co m b in a r pre ferê ncia s, tod a s as q u a il
são c on sid era d a s ig u a lm e n te (se c o m p a tív e is com os p rin c íf
p io s de ju s tiç a ). T od a s as pre fe rê n cia s tê m p e so i gu a l, "n ã dl
n o s e n tid o d e qu e h á u m a m e d id a p ú b lic a a cord a d a d e v a -
lo r o u s a tisfa ç ã o in trín s e c a e m re la ç ã o à qu a l tod a s estas
conc e pçõ e s re s u lte m ig u a is , m a s no s e n tid o d e q u e a b s o lu
ta m e n te n ã o são a v a lia d a s a p a rtir de u m p o n to d e v is ta [p ú
b lic o ]" (R a w ls, 1982 b : 172). C o m o v im o s , e sta in s is tê n c ia
a n tip e rfe c c io n is ta n a n e u tra lid a d e d o E sta d o re fle te a cre n
ça d e q u e \p in tg x £ s s e .d â s ^
é p ro m o v id o q u a n d o a socie d a d e d is c rim in a os p ro je to s que
ê T á á ã cfê díta m ser m a is v a lio so s p ara sy P orta ntQ ,ja b e m ca-_
jm um .e m -u m a -s o c ie d a d e -lib e ra l..á .a ju sta d o .p a ia s e ,e nc a ix a r
n o p a drã o de pre fe rê ncia s e conce pçõ e s d e b e m .su ste nta clos
p e lo s in d iv íd u o s .
E m u m a socie d a d e c o m u n itá ria , p oré m , o b e m co m u m
é c o n c e b id o c o m o u m a conc e pçã o s u b sta n tiv a d a bo a v id a
q u e d e fin e o " m o d o d e v id a " d a c o m u n id a d e . E ste b e m co
m u m , e m v e z d e a ju sta r-s e ao p a drã o das pre fe rê n c ia s das
p e sso as, pro v ê u m p a drã o p e lo q u a l estas pre fe rê n c ia s são
a v alia d a s. O m o d o de v id a d a c o m un id a d e fo rm a a base p ara
u m a hie ra rq uiz a ç ã o p ú b lic a d e conc e pçõ e s d o b e m e o p e so
d a d o às p re fe rê n c ia s de u m in d iv íd u o d e p e n d e d o q u a n to
ele se co n form a co m o b e m c o m u m o u e m q u e m e d id a c o n
trib u i p a ra e s te ..A busc a p ú b lic a dos o b je tiv o s c o m p a rti-
lh a d o s qu e d e fin e m o m o d o d e v id a d a c o m u n id a d e n ã o é.
p o rta n fò ) d e n e u tra lid a d ® 'E la te m
pre c e d ê n cia sobre o d ir e ito dos in d iv íd u o s aos re curso s e li-
o C 0M U N 1T A R IS M 0 265

b erd a d e s n e c e ss ários p a ra qu e bu sq u e m sua s p ró pria s c o n


cepções d o b e m . U m E sta do c o m u n itá rio p o d e e d e v e e n c o-
ra jar as pessoas a a d o ta r concepçõfí.s .de.h em qu e se a ju ste m
j. o m o d o-d e v id a d a c o m u n id a d e , a o m e sm o te m p o e m que
iie s e n e o ra ia is n e e p sfífis . d o b e m q u e e n tre m e m c o n flito com
aquela s. U m E sta do c o m u n itá rio , p orta n to , é u m E sta do p e r
fe c c io n ista , já qu e e n v o lv e u m a h ie ra rq u iz a ç ã o p ú b lic a do
v a lo r de d ife re n te s m od os de vid a . C o n tu d o , a o passo qu e o

do u m a d e scriç ã o tra n s -h is tó ric a do b e m h u m a n o , o .c o m n -


n ita ris m o os h ie ra rq u iz a s e gund o sua c o n fo rm id a d e com
a s.prá tic a s e xiste nte s.
P or qu e d e ve m os p re fe rir e sta " p o lític a d o b e m c o m u m "
à n e u tra lid a d e lib e ra l? Jps lib e ra is d iz e m qu e a n e u tra lid a d e
do E sta do é e x ig id a p a ra qu e seja re sp e ita d a a a u to d e te rm i
nação das pessoas. O s ço m u n ita rista s, p oré m , o põ e m -s e ta n
to à id é ia lib e ra l d e a u to d e te rm in a ç ã o q u a n to à s u p .o sta .li-
gacão e n tre a uto d e te rm in a ç ã o e n e u tra lid a d e / C o n sid e ra re i
estas du a s obje çõ e s in d iv id u a lm e n te .

3. 0 e u d e s o n e ra do

N a vis ã o lib e ra l do e u, os in d iv íd u o s são co n sid e ra d os


liv re s p a ra q u e s tio n a r su a p a rtic ip a ç ã o n a s prá tic a s so cia is
e xiste n te s e o p ta r p o r s a ir d e la s se lh e s p a re c e r qu e n ã o v a
le m m a is a p e n a . C om o re s u lta d o , o s in d iv íd u o s n ã o são d e -
.fin id o s p e la sua c o n d iç ã o de m e m bro s d e q u alq u e r r e la ç ã o
e conôm ic a , rè E giosa , s e xu al o u re cre a tiv a e sp e cial, já qu e são
livre s ”p S fã "q u e s íiõrià r e re je ita r q u a lqu e r re la ç ã o e sp e cífic a .
R a wls re sum e e sta vis ã o lib e ra l d iz e n d o qu e o-isu e a nte n c
(R a w ls, 1971: 560), c o m }
o q u e p re te n d e d iz e r qu e s e m pre p o d e m o s s a ir d e q u a lq u e r
p ro je to e sp e cífico e q u e stio n a r se qu e re m o s c o n tin u a r a e m
pre e n d ê -lo . N e n h u m fim está is e n to de u m a possív e l re vis ã o
p e lo e u. E sta é m u ita s v e z e s ch a m a d a a v is ã o " k a n tia n a " d a t
e u, p o is K a n t fo i u m dos m a is vig oro s o s d e fe nsore s da vis ã c f
266 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O NT EM P O RÂ N E A

d e qu e o eu é a n te rio r aos seus p a p é is e re la çõ e s socia lm e n-|


te d a dos e de qu e é liv r e a p e n a s se fo r capa z d e d is ta n c ia r-s á
desta s c ara cterístic a s d e su a situ a ç ã o socia l e ju lg á -la s s e gúnI
do os d ita m e s d a ra z ã o (T a ylor, 1979: 7 5 -8 ,1 3 2 -3 ).
O c o m u n ita ris m o a cre dita qu e esta é um a vis ã o fa ls a do
e u. E la ig n ora o fa to de qu e o e u está " in s e rid o " o u '^situ a d o "
n a s p râ trc a s s orra ís e xis te n te s,, qu e n e m s e m pre p o d e m o s
re cu a r e o p ta r p o r s a ir d e la s/ N ossos p a p é is e re la çõ e s sociais
ou, p e lo m e nos, a lg u n s d éle s, d e v e m ser con sid era d os com o
d a do s p a ra fin s d e d e lib e ra ç ã o p e sso al. C o m o d iz M a c ln ty -
re , ag. d e c id ir-c o m o c o n d u z ir nossa s vid a s , "to d o s d e ve m os

u m a id e n tid a d e s o cia l e s p e c ífic a .!...] P orta n to , o qu e é b e n^j


p ara m im te m d e s er o b e m p ara u m a pe ssoa qu e h a b ite es-j
te s p a p é is " (M a cIn tyre , 1981: 2 0 4-5). A a u to d e te rm in a ç ã d j
p o rta n to , é e x e rcid a a nte s d e n tro d e ste s p a p é is socia is dò
qu e fo ra d e le s. E , p o rta n to , g_E sta do re s p e ita nossa a u to d e -
te rm in a çã o n ã o a o n o s ca p a c ita rp ã râ T ã ir d e liõ s s o s p a p é is

m a is p ro fu n d a d e ste s, c o m o a p o lític a d o b e m c o m u m b u s-

Õ s c o m u nita rista s tê m v á rio s arg um e n tos d ife re nte s con


tra a d e scriç ã o lib e ra l d o e u e d e seus fin s . C o n sid e ra re i trê s,
qu e p o d e m s er re s u m id o s d e sta m a n e ira : a v is ã o lib e ra l d o
e u (1) é v a z ia , (2) v io la noss a p e rc e p ç ã o d o eu e (3) ig n o ra
noss a in s e rç ã o na s prá tic a s c o m u n a is 5.

5. H á a in d a o u tra obje ç ã o qu e m ere c e m e nç ã o, refe re nte à ne c e ssid ad e


de c o n firm a ç ã o socia l de no ssos ju lg a m e n to s in d ivid u a is . S e g undo alguns
c o m u n itá rio s , e m b ora possa s er im p o rt a n t e qu e os in d iv íd u o s e n doss e m i n
t e riorm e n t e o v a lor de suas a tivid a d e s, é ig u a lm e nte im p ort a n t e , se n ã o m a is,
qu e ou tra s pessoas c o n firm e m este ju lg a m e n to d o e xte rior. S e m confirmação?;,
e xte rior, p e rd e m o s nosso se nso de a u to-re s p e ito , nossa c o nfia nç a no v a lo r d e |
noss os ju lg a m e n to s. U m E sta do c o m u n it á rio , p ort a n to , lim it a ri a a re striç ã o!
do " e ndo ss o in d iv id u a l " d e D w o r k in q u a nd o ele am e a ça in d e v id a m e n t e a l i
m it a ç ã o da " c o n firm a ç ã o s o c ia l" dos c o m u n it á rio s . D is c u to is to e m K y m lic k a
(1988a: 195-7); cf. W illi a m s (1985: 16 9-70); S m ith (1985: 188-92); D w o rk in
(19 8 7:1 6-7).
o C O M U N IT A RIS M O 267

P rim e iro , o a rg u m e n to d o vázTçS S er liv re p a ra q u e s tio


n a r to d o s os nossos p a p é is s o cia is é u m a c o n d iç ã o q u é *d e r
rota a si m e sm a, d iz C h arle s T aylor, p orq u e " a lib e rd a d e c o m -
jp le t a s e ria u m v á c uo n o q u a l n a d a v a le ria a p e n a s er ie ito ,
n a d a m e re c e ria s er co n sid e ra d o p a ra cois a n e n h u m a . O e u
que ch e g ou à lib e rd a d e c o lo c á n d o le la d o to d o s os o b stá c u
los e in tru s õ e s e xte riore s n ã o te m p e rso n a lid a d e e, p o rta n to ,
n e n h u m p ro p ó s ito d e fin id o " (T aylor, 1 979:1 57). A v e rd a d e i-j
ra lib e rd a d e d e ve s er " s itu a d a " , a rg u m e n ta T a ylor. O de s e jo
d e s u je ita r to d o s os a sp e ctos d e noss a situ a ç ã o so cia l à n o s
sa a u to d e te rm in a ç ã o é v a z io p orq u e a e xig ê n cia d e te r a u to
d e te rm in a ç ã o é in d e te rm in a d a . E le " n ã o p o d e e s p e c ific a r
n e n h u m c o n te ú d o p ara noss a ação fora de u m a situ a ç ã o que
e sta b ele c e o b je tiv o s p ara nós, a q u a l, d e sta m a n e ira , c o n fe
re u m a fo rm a à ra c io n a lid a d e e pro v ê u m a in s p ira ç ã o p ara
a c ria tiv id a d e " (T a ylor, 197 9:1 5 7). D e v e m o s a c e ita r o o b je ti-
vo qu e noss a situ a ç ã o " e sta b e le ce .p a ra n á s " - se n ã o o-fiz e r-
jx io s , a b usc a p e la a u to d e te rm in a ç ã o c o n d u z irá -a o n iilis m o
n ie tz sc hia n o , à re je iç ã o de to d o s os v a lore s co m u n a is .COfao,
n o fim , a rb itrá rio s : " U m a pós o u tro , os h o riz o n te s d a v id a
pro vid o s d e a utorid a d e , cristã o s e h u m a nista s, s erão a tira d o s
fora com o grilh õ e s d a v o n ta d e .iR e stará a p e n a s a v o n ta d e de
T a ylor, 1 9 7 9 :1 5 9). Se n e g a rm o s qu e os v a lore s co-f
m u n a is são " h o riz o n te s p ro v id o s de a u to rid a d e " , e le s s u ri
g irã o co m o lim ite s a rb itrá rio s à noss a v o n ta d e e, p orta n te ^
noss a lib e rd a d e e x ig irá a re je iç ã o d e to d o s ele s (M a cln tyrq ,
1981: cap. 9).
Isso, p oré m , in te rp re ta e rro n e a m e n te o p a p e l qu e a l i
b e rd a d e d e s e m p e n h a na s te oria s lib e ra is . S e gu nd o T a ylor,
os lib e ra is a firm a m qu e a lib e rd a d e de e s co lh e r nossos p ro
je to s é in e re n te m e n te v a lios a , a lg o a s er busc a do p o r si m e s
m o, u m a a firm a ç ã o q u e T a ylor re je ita com o v a z ia . E m v e z
dis so, d iz e le , te m de h a v e r a lg u m p ro je to qu e v a lh a a p e n a
s er bu sc a do , a lg u m a ta re fa qu e v a lh a a p e n a c u m p rir. C o n
tu d o , a pre o cu p a ç ã o com a lib e rd a d e d e n tro d o lib e ra lis m o
n ã o to m a o lu g a r de sta s ta re fa s e p ro je to s . P elo c o n trá rio , a
d e fe s a lib e ra l d a lib e rd a d e e n c o n tra -s e ju s ta m e n te n a im -
268 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

p o rtâ n d a deste s proje to s. O s lib e ra is n ã o diz e m qu e d e ve m os


te r a lib e rd a d e de s e le cio n a r nossos p ro je to s p o r s i m e sm os
p orq u e a lib e rd a d e é a coisa m a is v a lio s a n o m u n d o . E m ve z
disso , nossos p ro je to s e ta re fa s são a s.cois a s m a is im p o r
t a n t e s em nossa s v id as e é .p orq u e são tã o im p orta n te s qu e
d e v e m os s er liv re & ^ a r a re v ê -la s se v ie rm o s a cre r qu e n ã o .
v a le m a pe na ., N ossos pro je to s são as coisa s m a is im p o rta n
te s nas nossas vid a s, m as, com o nossas vid a s tê m de ser co n
d u z id a s d o in te rio r, e m c o n form id a d e com noss as cre nç as a
re s p e ito d e v a lo r, d e v e m os s er livre s p a ra fa z e r e re v e r n o s
sos pla n o s d e v id a e a tu a r com base n ele s. A lib e rd a d e de es
c o lh a n ã o é busc a d a p o r si só, m a s com o u m a pre co n diç ã o
p a ra a busca dos pro je to s qu e são v a lo riz a d o s p o r si sós.
A lg u n s lib e ra is e nd oss a ra m a p o siç ã o qu e T a ylor c r itic a l
c o rre ta m e n te co m o v a z ia . Is a ia h B e rlin a a trib u i a M ill, p o rlf
e x e m plo (B e rlin , 1 969:1 92; m as cf. L a d e n so n, 1 983:1 49-5 3).
A firm a r qu e a M berdade de e scolh a é in trín s e c a m e n te v a lio
s a p od e p a re c e r u m a m a n e ira e fic a z d e d e fe n d e r u m a m p lo
le qu e d e lib e rd a d e s lib e ra is .'A s im p lic a ç õ e s d e sta a firm a ç ã o ,
p oré m , e n tra m e m c o n flito com a m a n e ira com o c o m pre e n
d e m os o v a lo r e m nossas vid a s de, p e lo m e nos, du as m a n e i-
fa s : (1) D iz e r qu e a lib e rd a d e d e e scolh a é in trín s e c a m e n te

£ y a lio s a sug ere q u e q u a n to m a is e xerc e m os nossa c a p a cid a -


e d e e s colh a , m a is liv re s so m os e, p o rta n to , m a is v a lio s a s
io as nossa s vid a s . Isso, p oré m , é fa ls o e, n a v erd a d e , d e -
s a rra z o a d o . C o n d u z ra p id a m e n te à vis ã o e x is te n c ia lis ta d e
qu e d e v e m os d e s p e rta r a c a d a m a n h ã e d e c id ir n o v a m e n
te qu e tip o d e p e sso a d e v e ría m o s ser. Isso é d e s arra z o a do
p orq u e u m a v id a v a lio s a é u m a v id a ch e ia de co m pro m iss os
e rela çõ es. E stes d ã o p ro fu n d id a d e e p e rso n a lid a d e a nossas
!J dd a s. E o qu e os to m a co m prom isso s é ju sta m e n te o fa to de
iq u e n ã o são o tip o de cois a q u e qu e stio n a m o s to d o s os dia s.
N ã o s u p om o s qu e a lg u é m q u e se case v in te v e z e s le v e , de
a lg u m a m a n e ira , u m a v id a m a is v a lio s a do qu e a lg u é m qu e
n ã o te n h a n e n h u m a ra z ã o p a ra q u e s tio n a r sua e scolh a o ri
g in a l. U m a v id a com m a is e scolh a s c on ju g a is n ã o é sequer,
ceteris paribus, m e lh o r d o qu e u m a v id a co m m e no s de sta s
o C O M U N IT A K IS M O 269

escolh as. (2) D iz e r qu e a lib e rd a d e d e e scolh a é in trín s e c a -


ffig n ie -x a lio s iL S H ^rC ^^ i^L S ?®?.38
a rõ es é a lib e rd a d e , n ã o o v a lo r in e re n te à a tiv id a d e e m si.
E sta suge stão é e ndossa d a p o r C a ro l G o u ld . E la d iz que, e m
bora pare ç a qu e a tu a m os e m n om e dos p ro p ó sito s in te riore s
de u m d a d o p ro je to , a a tiv id a d e v e rd a d e ira m e n te liv re te m
a p ró p ria lib e rd a d e com o o b je tiv o fin a l: " P orta n to , a lib e rd a
de n ã o é a p e n a s a a tiv id a d e qu e cria v a lo r, m a s a qu e la em
n o m e d a q u a l to d o s e stes o u tro s v a lore s são busc a d os e,
p o rta n to , e m re la çã o à q u a l eles se to m a m v a lio s o s " (G o u ld ,
1 9 78 :1 1 8).
Isso, p oré m , é fa lso . P rim e iro , com o obs erva T a ylor, d i
z er às pessoas qu e a tu e m fiv r e m e ntg n a g ih e s d k q u a is .ações
e sp e cífic a s v a le m a p e n a :/C o n tu d o , m e sm o qu e isso o fe re
cesse u m a orie n ta ç ã o d e te rm in a d a , a in d a a pre s e nta ria u m a
vis ã o fa ls a de nossas m otiv a çõ e s. Se e sto u e scre ve ndo u m l i
vro , p o r e x e m plo, m in h a m otiv a ç ã o n ã o é ser livre , m as d iz e r
a lg o qu e v a le a p e n a s er d ito . N a v e rd a d e , se e u re a lm e n te
n ã o quise sse d iz e r n a d a , e xc e to n a m e d id a e m qu e isso fo s
se u m a m a n e ira d e s er liv re , e ntã o , m in h a e s crita n ã o s e ria
s a tis fa tó ria . O qu e e com o e scre ve r to rn a r-s e -ia m o re s u lta
d o d e e scolh a s a rb itrá ria s e, p o r fim , in s a tis fa tó ria s . P ara qu e|
e scre ver se ja in trín s e c a m e n te v a lio s o , te n h o de m e im p o rta n
co m o qu e e sto u d iz e n d o , te n h o d e cre r qu e e scre v e r v a le ai
p e n a p o r si só. Se quis e rm o s c om pre e nd e r o v a lo r que as p e s-f
soas v ê e m e m se us p ro je to s , te m o s d e a te n ta r p a ra os fin s
in te rio re s d e la s. N ã o e m pre e n d o m in h a e s crita p o r a m or à
m in h a lib e rd a d e . P elo c o n trá rio ,, e m pre e n d o m in h a e s crita
e m n o m e d e la m e sm a ,, p o rq u e h á cois a s „q.u,e. m e re c e m .s e r
r íit a s . À lib e rd a d e é v a lio s a p o rq u e m e p e rm it e d iz ê -la s T
A m e lh o r d e fe s a d a s lib e rd a d e s in d iv id u a is n ã o é n e
c e ss aria m e nte a m a is d ire ta , m as a qu e m e lh o r se h a rm o n iz a
co m a m a n e ira co m o as p esso as, ao re fle tire m , c o m p re e n
d e m o v a lo r de suas vid a s . E se e nc a rarm o s o v a lo r d a lib e r\
d a d e d e sta m a n e ira , e n tã o , p a re c e rá qu e a lib e rd a d e d e es4
c o lh a , a p e s ar d e c e n tra l p a ra u m v id a v a lio s a , n ã o é o v a lo r]
c e n tra l busc a do e m t a l vid a . 1
270 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

N in g u é m d is c ord a q u a n to a o fa to d e q u e os p ro je to s
tê m de ser noss a pre ocu p a ç ã o p rim á ria - iss o n ã o fa z d is tin
ção e ntre o lib e ra l e o c o m u n itá rio . O d e b ate re a l n ã o é q u a n
to a d e te rm in a r se pre cis a m o s o u n ã o d e ta is ta re fa s , m a s
q u a n to a d e te rm in a r c om o as a d q u irim o s e ju lg a m o s s eu
v a lo r. T a ylor pare ce a cre d ita r qu e po d e m os a d q u irir estas ta -
reta s a pena s tra ta n d o os v a lore s com un a is c o m o 1
Te a u to rid a d e " , q u e " e sta b e le c e m o b je tiv o s p ara
n ó s " (T a ylor, 1 9 7 9 :1 5 7 -9). O s lib e ra is , p o r o u tro la d o , in s is
te m e m qu e te m o s u m a c a p a cid a d e de n os d e s vin c u la r de
q u a lq u e r p rá tic a so cia l e sp e cífic a . N e n h u m a ta re fa e s p e c ífi
ca é e sta b e le cid a p a ra nó s p e la socie d a d e , n e n h u m a p rá tic a
esp e cífica te m a u torid a d e qu e e steja a lé m d o ju lg a m e n to in
d iv id u a l e d a possív e l re je iç ã o. P od e m os e d e v e m os a d q u irir
nossa s ta re fa s p o r m e io d e ju lg a m e n to s p e sso ais liv re m e n
te fe ito s a re s p e ito d a e s tru tu ra c u ltu ra l, d a m a triz de c o m -
pre ensõe s e p o ssibilid a d e s tra n s m itid a s a nós p e la s gerações
a n te riore s, que nos oferec e p o s sibilid a d e s qu e po d e m os a fir
m a r o u re je ita r. N a d a é " e sta b e le cid o p a ra n ó s "; n a d a é p rc M
v id o d e a u to rid a d e a nte s d e nosso ju lg a m e n to de se u v a lo f®
N a tu ra lm e n te , a o fa z e r este ju lg a m e n to , d e v e m os c o n
s id e ra r a lg o c om o u m " d a d o " - p e rg u n ta m o s o qu e é b o m
p a ra nós agora, d a do o nosso lu g a r n a escola, n o tra b a lh o ou
n a fa m ília . A lffu é m .q u e n ã o seja n a d a a lé m de u m ser ra c io
n a l liv re n ã o t e ria n e n h u m a ra z ã o p a ra e sc olh e r u m m o d o
d e v id a a o u tro (S a nd e l, 1 9 8 2 :1 6 1-5 ; T a ylor, 1 9 7 9:1 5 7; C ro
w le y , 1987: 2 0 4-5). O s lib e ra is , p oré m , a cre dita m qu e o qu e
coloc a m os n o " d a d o " p ara fa z e r ju lg a m e n to s s ig n ific a tiv o s
p o d e n ã o a p e n a s ser d ife re n te e n tre in d iv íd u o s , m a s p o d e
m u d a r n a v id a d e u m in d iv íd u o . Se, e m u m a oc a siã o, fa z e
m os e scolh a s a re s p e ito d o qu e é v a lio s o d a do o nosso c o m
pro m is s o co m c e rta v id a re lig io s a , po d e m o s p o s te riorm e n te
ch e g ar a q u e s tio n a r esse c o m pro m is s o e p e rg u n ta r o qu e é
v a lio s o , d a d o o no sso c o m pro m is s o co m noss a fa m ília . A
q u e stã o , e n tã o , n ã o é se d e v e m os ou n ã o c o n s id e ra r a lg o
com o d a d o a o fa z e r ju lg a m e n to s a re s p e ito d o v a lo r d e n o s
sa a tiv id a d e . A n te s , a q u e stã o é s a b er se u m in d iv íd u o p o d e
o C OMÜNITAR1SM O 271

q u e s tio n a r e ta lv e z s u b s titu ir o qu e e stá n o " d a d o " o u se o


d a d o te m de s e r e sta b e le cid o p a ra nó s p e lo s v a lore s d a c o-

lore s co m u n a is d ev e m e sta r, s u ie ito s à a v a lia ç ã o in d iv id u a l

P od e m os e n fra q u e c e r a obje ç ã o c o m u n itá ria a rg u m e n


ta n d o qu e , m e sm o qu e pud é ss e m os c o n s e g u ir nossos p ro
p ó sito s d e sta m a n e ira , n ã o e sta b e le cid a p e la c o m u n id a d e ,
de vería m os, n ã o obsta nte , tra ta r os o bje tiv o s com un a is com o
p ro vid o s d e a u to rid a d e /b e v e ría m o s fa z e r isso p orq u e a v i
são lib e r a l v a le -s e de um a fa ls a d e scriç ã o d o e u. A v is ã o M
b eral, com o vim o s , é a de qu e " o e u é a n te rio r aos seus fin s " !
n o s e n tid o d e qu e re s erv a m os o d ire ito d e q u e s tio n a r m es-j
m o as noss as convicçõ e s m a is p ro fu n d a m e n te su ste nta d a ^
q u a n to à n a tu re z a da bo a v id a . M ic h a e l S a nd e l, p oré m , a r
g um e n ta qu e o eu n ã o é a n te rio r a seus, m as c o n s titu íd o p o r
eles - n ã o p o d e m o s (ü s tín g u tir^ e a ^ ^
N ossos eus são, p e io m ie riõ s , p a rcia lm e n te c o n s titu íd o s p o r
o b je tiv o s qu e n ã o e scolh e m os, m a s, a nte s, d e s co brim os e m
v irtu d e de e starm os in s e rid o s e m a lg u m c o n te xto socia l c o m
p a rtilh a d o (S a n d e l, 1982: 5 5 -9 , 1 5 2-4). C o m o te m o s estes
fin s c o n s titu tiv o s , nossa s vid a s v ã o m e lh o r n ã o p e la poss e
d as c o n d iç õ e s n e c e ss ária s p a ra s e le c io n a r e re v e r nossos
p ro je to s , m a s p e la posse das con diçõ e s ne cessária s à o b te n
ção de u m a co ns ciê n cia d e ste s o b je tiv o s c o n s titu tiv o s c o m
p a rtilh a d o s . U m p o lffic a d b ^ flW M i» U fflu ^ .^ ® í e j
n bp pfiv n s ro n stitn h v Q s xom p a rtilh a d o s . c a p a cita -n o s a " c o
n h e c e r u m b e m e m co m u m que n ã o p od e m os co nh e c e r so-
z i'r m õ 3 ^ ã h ”d é T ;i9 g 2 :183).
S a n d e l te m d o is a rg u m e nto s a fa v o r d e sta a firm a ç ã o ,
qu e ch a m a re i a rg u m e n to d a " a u to p e rc e p ç ã o " e do " e u in s e
rid o " . O p rim e iro a rg u m e n to é o s e g u inte : a jd s ã a d e R awls,
d o.-" e u: d e s o n e ra d o " n ã o corre s p o n d e à n ossa " a u to çja m -
pre e ns ã o m a is p ro fu n d a " , n o s e n tid o de noss a a u to p e rc e p-
ç ã o m a is pro fu n d a .S .e g u n d o S a n d e l/ s e o e u é a n te rio ra s e u s
o b je tiv o s , d e v e ría m os, e ntã o , p e la intro sp e c ç ã o , s er capa z es
272 FILO S O FIA P O LITIC A C O N T E M P O R ÂN E A

de e nxerg ar, p o r in te rm é d io de nossos o b je tiv o s p artic ula re s,


u m e u d e son era do.jP oré m , observa S a nd el, n ã o p erc eb em os
nossos eus com o d e son era dos: a vis ã o de R a w ls d o e u com o
um " d a d o a n te rio r aos seus o b je tiv o s , u m s u je ito de p u ra
açã o e poss e , e ra re fe ito ao fim " , e stá " e m ra d ic a l c o n tra d i
ção com nossa n oç ã o m a is fa m ilia r de nós m esm os com o se
res 'd e nso s d e c ara cterístic a s e s p e cífic a s'" (S a nd el, 1982: 94,
100). N a vis ã o de R a wls, " id e n tific a r q u a is q u e r c a ra c te rís ti
cas com o meus o b je tiv o s , a m biçõ e s, d e s e jos etc. é s e m pre
i in f e rir u m s u je ito , 'e u ', p o r trá s d eles, a c erta d is tâ n cia " (S a n
d e l, 1984a: 86 ). T eria de e x is tir e sta cois a - u m eu qu e p o ssui
c e rta form a , se b e m qu e u m a form a , p o r fim , ra re fe ita - qu e
fic a a trá s de n ossos o b je tiv o s , a c erta d istâ n c ia . P ara a c e ita r
R a w ls, e u te ria d e m e v e r com o e sta coisa sem p ro p rie d a
de s, c o m o u m o b je to u m ta n to fa n ta s m a g óric o n o e spa ço,
o u , com o R o rty d iz , u m a e sp é cie d e " s u b s tra to " lo c a liz a d o
" a tr á s " d e m e u s o b je tiv o s (R orty, 1985: 217). P or c o n tra s te ,
S a nd el d iz qu e n o ssas a utop e rc e pçõ e s m a is pro fu n d a s s e m
pre in c lu e m a lgu m a s m o tiv a çõ e s , o qu e d e m o n stra qu e a l
gun s o b je tiv o s sã o c o n s tru tore s d o e u.
C o ntu d o , a qu e stã o d a p erce pçã o é e nga nosa ne ste caso.
O qu e é c e n tra l n a vis ã o lib e ra l n ã o é o fa to de qu e p o d e m os
p e rc e b e r u m e u a n te rio r aos se us fin s , m a s o d e qu e n os
com pre e nd e m os com o a n te riore s aos nossos fin s n o s e n tid o
de que n e n h u m fim o u o b je tiv o está is e n to de possíve l re e x a-
m e . P ara q u e o re e x a m e seja c o n d u z id o de m a n e ira s ig n i
fic a tiv a , d e vo s er c a pa z d e m e v e r o n e ra d o p o r m o tiv a ç õ e s
d ife re n te s da s qu e a gora te n h o , p a ra qu e poss a te r a lg u m a
ra z ã o p a ra e scolh er u m a à o u tra com o m a is v a lios a p a ra m im .
M e u e u, n e ste s e n tid o , é p e rc e bid o a nte s de seus fin s , is to é,
s e m pre p q s O T .in tu k .a ie u je u . se m seus presentes; fin s /Is s o ,
p oré m , n ã o re q u e r qu e e u poss a a lg u m a v e z p erc e b e r u m e u
d e son e ra d o de qu a is q u e r fin s - o proce sso do ra cio c ín io prá
tic o é s e m pre u m proc e sso d e c o m p a ra r u m e u p o te n c ia l
" o n e ra d o " com o u tro e u p o te n c ia l " o n e ra d o " . S e m pre d e ve
h a v e r a lg u n s fin s d a dos com o eu q u a n d o e m pre e nd e m os ta l
ra c io c ín io , m as disso n ã o d e corre qu e q u a isq u e r fin s e sp ecí-
o C O M U NIT A RIS M O 273

ficos d e va m s er s e m pre c onsid e ra d os com o d a dos com o eu.


g o m o disse a nte s, p are ce q u e o qu e é d a d o com o e u p od e
m u d a r n o d e c orre r de urn a v id a . A s sim , h á u m a a firm a ç ã o
qu e S a n d e l d e v e e sta b e le c er: ele de ve d e m o n s tra r n ã o a p e
na s qu e n ã o p o d e m o s p erc e b e r u m e u to ta lm e n te d e son e
ra d o, m as qu e n ã o p od e m o s p e rc e b e r no s so e u o n e ra d o p o r
u m d ife re n te x o n ju n to d e fin s . Isso re q u e r u m a rg u m e n to d i-
J e re n te , q u e c h a m a re i a rg u m e n to d o e u in s e rid o .
E ste te rc e iro a rg u m e n to c o n tra s ta a vis ã o c o m u n itá ria
do ra cio c ín io p rá tic o c o m o a u to d e s co b erta com a vis ã o lib e
ra l d o ra cio c ín io p rá tic o com o ju lg a m e n to . P ara os lib e ra is , a
qu e stã o a re s p e ito d a b o a v id a re qu e r que faç am os u m ju lg a
m e n to a re sp e ito d o tip o d e p e sso a q u e d e s e ja m o s s er o u n o s .,
to rn a r. Para os c o m u n itá rio s , p oré m , a gu e s tã o re q u e r qu e
d e s a dora m os.o q u e-já .som o s. P ara os c o m u n itá rio s , a qu e s
tã o re le v a n te n ã o é " O qu e e u d e v e ria ser, qu e tip o de v id a
eu d e v eria le v a r? ", m as " Q u e m sou e u? ". O e u "c h e g a " a seus
fin s n ã o " p o r e s c o lh a " , m a s " p o r d e s c o b e rta ", n ã o " e s c o
lh e n d o a q u ilo qu e já está d a do (isso s eria in in te lig ív e l), m as
re fle tin d o sobre si m e sm o e in v e stig a n d o su a n a ture z a c ons
titu tiv a , d is c e rn in d o suas le is e im p e ra tiv o s e re c o n h e c e n d o
com o seus os seus o b je tiv o s " (S a nd el, 198 2:58). P or e x e m plo,
S a n d e l c ritic a a d e scriç ã o de c o m u nid a d e d e R a wls p orq u e ,
" e m b ora R a w ls re conh e ç a q u e o b e m da com u n id a d e -p o d e
ser in te rn o a p o n to d e e m pre g a r os o b je tiv o s e v a lore s d p eu,
n ã o p o d e s e r tã o con su m a d o a p 9 n t 0 .de ijtra p a s s a r as m a -
tiv a cõ e s p a ra o s u je ito d a s m o tiv a çõ e s " (S a nd e l, 1 9 8 2 :1 4 9).
E m u m a d e scriç ã o m a is a d e q u a d a , a firm a S a n d e l, os v a lo
res c o m u n a is n ã o são a p e na s a firm a d o s p e lo s m e m bro s d a
c o m u n id a d e , m a s d e fin e m a sua id e n tid a d e . A busc a c o m
p a rtilh a d a de u m o b je tiv o co m u n a l " n ã o é u m a re la ç ã o que
eles e sco lh e m (com o e m u m a a ssocia ç ã o v o lu n tá ria ), m as
u m a p e g o qu e d e sco bre m , n ã o m e ra m e n te u m a trib u to ,
m as u m c o n s titu in te de sua id e n tid a d e " (S and e l, 1 9 8 2:1 5 0).
O b e m p a ra ta is m e m bro s é e n c o n tra d o p o r u m proc e sso
d e a u to d e s c o b e rta - a lc a n ç a n d o a c on sciê n c ia dos v á rio s
a p e gos qu e " e n c o n tra m " e re c o n h e c e n d o os seus d ire ito s .
274 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

N o caso, poré m , certa m e nte é S andel que está vio la nd o


nossas autocom pre e nsõe s m ais profund a s. Pois n ã o pens a
mos que esta a utode scoberta substitu a ou exclua julg a m e n
tos sobre com o c on du z ir nossa vid a . N ã o nos considera m os
a prisiona dos p or nossos pre sentes apegos, incapa z es de ju l
g ar o v a lor dos o bjetivos que herdam os ou escolhemos a nte
riorm e nte . R e alm ente nos enco ntra m os em v ários re la ciona
m e ntos, m as n e m se m pre gosta m os do que de scobrim os.
N ã o im p orta quã o profu n d a m e nte im plic a d os nos e ncon
tre m os em um a prá tic a social, s e ntim o-nos capazes de ques
tio n a r se a prá tic a é v a lio s a ou n ã o - um q u e stio n a m e nto
que nã o é sig n ific a tiv o n a descrição de S andel. (C om o não
pod e ser v a liosa , já que o b em para m im é apenas ch eg ar a
um a a utoconsciê ncia m a ior dos vínculo s em que m e e n-
fcontro?) A id é ia de que a d elib era çã o é com ple ta d a p o r este
Jprocesso de a utode scob erta (e n ã o p or juíz os do v a lor dos
í apegos que d e scobrim os) parece b asta nte sim plista .
H á tre chos em que S andel a dm ite que o ra ciocínio prá
tic o nã o é apenas um a que stão de autode scoberta . E le diz
que as fro n te ira s do eu, apesar de co n stitu íd a s p elos seus
fin s , são, n ã o obsta nte , fle xív e is e pod e m ser retra çada s, in
corpora ndo novos fin s e e xcluindo outros. E m suas palavras,
" o suje ito é ca pa cita do a p a rticip a r d a c o nstituiç ã o da id e n-
. tid a d e do eü7r; ria sua descrição, "os lim ite s do eu [são] a ber
tos e a id e n tid a d e do s u je ito (éj antes o pro d u to que a pre
missa de sua a ção" (S andel, 1982:152). O sujeito pode, a fin a l,
fa z e r escolhas a re sp e ito de quais dos "possív e is pro pósito s
e fins, todos v io la n d o in discrim in a d a m e nte sua id e ntid a d e " ,,
ele buscará e qua is nã o (S andel, 1982:152). O eu, constituí-»
do pelos seus fin s, pod e ser "re c o n s titu íd o ", p or assim d iz e rll
de m o d o que a a utod e scob erta nã o seja suficie n te . N e s te j
p o n to , porém , n ã o está claro se a distinç ã o e ntre as duas v i
sões nã o é d e sm onta d a .
H á diferenças e videntes n o caso. S andel a firm a que o eu
é c o n stitu íd o p elos seus fin s e que as fro n te ira s do eu são
fluid a s, ao passo que R a wls d iz que o eu é a n te rior aos seus
fin s e suas fro n te ira s são fix a d a s com a nte c e d ê ncia . Estas
O C O M U NITARISM O 275

duas diferença s, poré m , oc ulta m um a id e n tid a d e m a is fu n


d a m e nta l; a mbas a ce ita m que a pessoa é a n te rio r aos seus
fin s. D iscorH a m 'qü a nto ao p on to em que, na pessoa, devem
ser traçadas as fro n te ira s do " e u "; esta questão, poré m , se é
re alm ente um a questão signific a tiv a ,.cabe à filoso fia da m e n
te, n ã o à filo s o fia ./'Pois, na m e did a e m que S a ndel
a dm ite que a pessoa pod e re e x a m in ar seus fin s - m esm o os
fin s c o n stitu in te s de seu " e u " ele fracassou em ju s tific a r a
p o lític a c o m u n itá ria . E le d e ixou de d e m on stra r p o r que osJ
in divíd u os n ão devem re ceber as condiçõe s adequadas p a r J
este re exam e, com o parte indispe nsá vel da conduçã o da m e j
lh o r vid a possível. E e ntre estas condiçõe s devem e star as g á *
ra ntia s lib e ra is de in d e p e nd ê ncia pe ssoal nece ssária s para
fa z e r o ju lg a m e n to livre m e nte . S a ndel a prov e ita-s e de um a
a m bigüid a d e n a visã o da pessoa, que ele usa ao d e fe nd er a
p olític a com unitá ria . A afirm a çã o forte (de que a a utod e sco
berta su bstitui o julg a m e nto) é im pla usív el, e a afirm ação fra
ca (que p erm ite que u m eu co nstitu ído p elos seus fin s possa,
não obstante, ser re constitu ído), apesar de atra ente , deixa de
d is tin g u i-lo da vis ã o lib e ra l6.

6. C o n c e n tre i-m e nos e scritos de S a nd el, m as a m esm a a m b ig üid a d e n a


te o ria c o m u n itá ria do e u ta m b é m pod e ser e n co n tra d a e m M a cIn tyre (1981:
20 0-6) e T a y lo r (19 79 :1 5 7-6 0). V e r K y m lic k a (1989a: 5 6-7) p ara um a discuss ão
de stes a u tore s. A a firm a ç ã o de S a nd el de que a vis ã o d o e u de R a w ls v io la j
nossa a utoco m pre e ns ã o conse gue m u ito da sua forç a p o r e sta r lig a d a à a f ir l
m a çã o a d ic io n a l d e qu e R a w ls v ê as pessoas co m o seres e ss e ncia lm e n te d e f
sin corp ora do s. S e gundo S a nd e l, a ra z ã o p e la q u a l R a w ls n e g a que as pessoas
te n h a m d ir e ito às re com p e ns a s a u fe rid a s do e x ercício de seus ta le n to s n a tu
ra is é p orq u e e le n e g a qu e os ta le n to s n a tura is s e ja m u m a p a rte e sse ncial de
nossa id e n tid a d e pe sso a l. Eles são m era s posses, n ã o c o n s titu in te s d o eu
(S a n d e l, 1982: 72-94; L a rm ore , 1987: 127). E sta, p oré m , é u m a in te rp re ta ç ã o
errôn e a . A ra z ã o p e la q u a l R a w ls n e g a qu e as p essoas te n h a m d ir e ito a os fru -|
to s do e x e rcício d e seus ta le n to s n a tura is é o fa to d e n in g u é m m ere c e r seu lu 4
g ar n a lo te ria n a tu ra l, n in g u é m m erece ta le n to s n a tura is m a iore s d o qu e q u a l-j
q u e r o u tra pe ssoa (ca p. 3, seção 2 a cim a). E sta p osiç ã o é in te ira m e n te co m p a -‘
tív e l com a a firm a ç ã o d e qu e os ta le n to s n a tura is são c o n s titu in te s d o e u. O
fa to de os ta le n to s n a tura is sere m c o n s titu tiv o s do eu n ã o c o n trib u i em n a d a
p ara d e m o n s tra r q u e um a cria nç a d ota d a m ere ce u na sc er com m a is ta le n to
d o qu e um a cria nç a c om u m . M u ito s lib e ra is n ã o a c e ita ria m a a firm a ç ã o d e
276 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O R Â N E A

S andel diz que o lib e ra lism o ignora a m a n eira como es


tam os ins e ridos nos nossos papé is sociais. Ele e nfa tiz a que,
com o "sere s a uto-in te rpre ta d o re s ", pode m os in te rpre ta r o
sig nific a d o destes apegos c o n stitu tiv o s (S andel, 1984a: 91).
'Á que stão, p oré m , é saber se pod e m os re je itá -lo s in te ira
m e nte caso ch eguem os a v ê -lo s com o triv ia is ou d e gra d a n
tes. E n u im a interpre ta ç ã o do com u nita rism o , nã o podemos.,
ou, de qu a lqu er m a n eira, nã o devemos. N e sta visão, não_es: ,.
colh e m os n e m re je ita m os estes apegos; antes d e scobrim o-
aos*nê E S 7N õss6s o bje tivo s nã o v ê m p or escolha, m as p or
a utode scoberta. U m a don a-d e-ca sa cristã , em um casam en
to h eteross e xu al m onog â m ico, pod e in te rpre ta r o que sig
n ific a ser u m cristã o ou um a don a-d e-c a sa - ela pod e in t e r
pre ta r o sig nific a d o destas prá tic a s religios a s, econômicas e
se xuais com p artilh a d a s. N ã o pod e , p oré m , re cu ar e d e c id ir
que não qu er ser cristã ou don a-d e-ca sa . Posso in te rpre ta r o
sig nific a d o dos p apéis em que m e e ncontro, m as não posso
re je ita r os pró prio s p apéis, ou os o bje tivo s in te rno s deles,
com o sem v a lor. C om o esses o bje tivos são c o n stitu tiv o s de
m im m esm o com o pessoa, tê m de ser considera dos comd,|
da dos ao d e cid ir o que fa z er com m in h a vid a ; a que stão d o |
b em na m in h a v id a só pod e ser um a questão de com o in t e r-j
pre tar da m e lh or m a n e ira o seu signific a do. N ã o fa z n e nl
s e ntid o d iz e r qu e eles n ã o tê m n e n h u m v a lor p ara m im , já
que não h á n e nhu m " e u " p a rirá s deles, n e nhum eu a nte rior
a estes apegos c o nstitu tivo s.
N ã o está claro q u a l c o m u nitá rio , se é que a lgu m , sus
te nta esta visã o com coerência. N ã o se tra ta de um a posição
pla usíve l, já que pod e m os e conse guim os e nte nd er as ques
tões não apenas a re sp e ito do signific a do dos papéis em que

qu e to d o s os nossos a trib u to s n a tura is são c o n s titu in te s d o e u (p o r e x e m plo,


D w o rk in , 1983: 39) e eu m e sm o n ã o te n h o c e rte z a de ond e tra ç a r e sta fro n t e i
ra (cap. 4, seção 5 a cim a). C o n tu d o , ond e q u e r q u e a tra c e m os, as m a n e ira s p e -.j
la s qu a is som os fisicam ente incorporados, de m o d o e sse ncia l, n ã o co n trib u e m
e m n a d a p a ra s u s te nta r a conc e pç ão d e S a nd e l sobre os m od os p e lo s q u a is
som os socialmente inseridos. ?
o C O M U NIT A RIS M O 277

nos e ncontra m os, mas ta m b é m a re sp eito de seu v a lor. T al


ve z os c o m u nitá rio s não pre te n d a m n e g ar isso; ta lv e z sua
Id é ia de. nossa inserção n ã o seja in c o m p a tív e l com nossa
rejeiç ã o dos a pe gos em que nos e ncontra m os. M as, entã o,
"o contra ste a nuncia do com a vis ã o lib e ra l é u m d e s a pon
ta m e nto, pois o s e ntido em que os c o m unitá rio s nos vê em
com o in s e ridos em papéis com unais in corpora o s e ntido
em que os lib e ra is nos vê em com o ind e p e nd e nte s deles, e
o s e ntido em m e n s c o m u n itá rio s v ê e m o ra cio cínio prá tico
m m o um processo de " a utod e scob erta " in corp ora o s e ntid o
em. que o slib e tâ is o-v ê e m x o m o n m processo de julg a m e n to
e e s c olh a /A s difere nç a s s eria m m era m e nte s e m â ntica s. E,
assim que concord a m os em que os in d iv íd u o s são capa zes
de qu e stio n a r e re je ita r o v a lor do m odo de vid a da c o m u ni
dade, e ntã o, a te nta tiv a de dese ncorajar ta l qu e stion a m e nto
p or m e io de um a "p o lític a do be m com um " parece um a re s
triç ã o in ju s tific a d a da a utod e term in a ç ã o das pessoas.

4. A te se s o cia l

M uito s com unitários critic a m o lib era lism o, não pela sua
descrição do eu e de seus interesses, m as p or n e glig e n ciar as
condiçõe s sociais e xigidas para a concre tiz a çã o efica z destes
interesses: Por e xe m plo, T a ylor a firm a que m uita s f e o ria s li-
berais baseiam-se n p " a to m is m o "/ em um a "p sico lo g ia m o
ral com ple tarn e pte .sim plista "7s e gundo,a q u a l o sinrfiv íd u o s
"~sã oãTrfõTsufíci en te s fora d a sociedade. O s indivíduos, se gun
do as te oria s a tom ista s, nã o tê m n ece ssida de de n e n h um
conte xto co m u n a l para d e s e nvolv er e e x ercitar sua ca pa ci
dade de a utod e term in a ç ã o. T a ylor argum e nta , inv e rs a m e n
te , a fa v or da "te s e s o c ia l", que d iz que e sta c a p a cid a d e só,
pode ser exercida em certo tip o de sociedade, com certo tip o
H e am biente social (Taylor, 1985:190-1; cf. Jaggar, 1983: 42-3;
W olga st, 1987; cap. 1).
Se este fosse re a lm e nte o debate, tería m os de concord ar
com os co m unitá rio s, p ois a "te s e s o cia l" é clara m e nte v e r-

&
!
278 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O RÂ N E A

d ad eira. A vis ã o de que podería m os exercer a capacidade de


a utod eterm in a ç ã o fora da sociedade é absurda. C ontudo, l i
berais com o R a wls e D w o rk in nã o n ega m a tese social. Eles
re conh e c e m que a a uto n o m ia in d iv id u a l nã o pod e e x is tir
fora de um a m bie nte social que forne ça escolhas s ig n ific a
tiv a s e que sustente o d e s e nvolvim e nto da capacidade de es
colh er e ntre elas (p or exem plo, R awls, 1971: 563-4; D w orkin ,
1985: 230-3).
T aylor acredita, porém , que a tese social re quer que aban
don e m os a n e utra lid a d e lib e ra l, pois u m E stado n e utro não
pod e prote g er a dequa dam ente o a m bie nte social necessário
para a a utode term in a ç ã o V A . tese socia l nog d iz que a ca pa-7

7. J a y lp r d iz q u e ^ s tá x n tk a n d Q a d o u trin a .da " p rim a z ia dos d ire ito s((,


com o qu e q u e r se r e f e rir á a firm a ç ã o d e q u e os d ire ito s in d iv id u a is tê m g ri-
m a z ia sobre o u tra s noçõ e s m ora is, c o m o os d e vore s in d v id u a is , ¿ b e m ^ ç o -
m u m , a v irtu d e etc. S e gundo T a ylor, e sta d o u trin a pod e s er e n co ntra d a . em_
fío b b e s , L o ç k e e N o z ic k . N ã o a cho ú til este esqu em a , p ois n e n h u m a de stas
noçõ e s m ora is , in c lu s iv e os d ire ito s in d iv id u a is , é d o tip o c e rto p a ra s er m o
ra lm e n te p rim á ria . (O bs erv e , p o r e x e m plo, qu e H o bb e s e N o z ic k são a m bos
te óric o s da " p rim a z ia dos d ir e ito s " n o e sque m a d e T a ylor. V is to , p oré m , que
N o z ic k a firm a o qu e H o bb e s ne g a - is to é, qu e os in d iv íd u o s tê m posiç ã o m o
ra l in e re n te - q u a lq u e r co nc ord â n cia e n tre eles a re s p e ito dos d ire ito s in d iv i
d u a is d eve s er d e riv a tiv a , n ã o m o ra lm e n te p rim á ria : cf. ca p. 4, seção 3 a cim a .)
O d e b ate q u e T a ylor d e s e ja co n sid e ra r é p e rs e g uid o da m e lh o r m a n e ira n ã o
p e rg u n ta n d o se os d ire ito s e m g e ra l tê m p rim a z ia a n te os de vere s e m g era l,
m as se h á d ire ito s , d e v ere s, v irtu d e s e tc. e sp e cífico s q u e se ja m in a d e q u a d a
m e n te re co n h e cid o s n a s te o ria s lib e ra is o u (com o T a y lo r as d e scre ve) " u ltr a -
lib e ra is " . E , se e n c a rarm os o d e b a te d e sta m a n e ira , u m dos a rg um e n to s d e i
T a y lo r é o de qu e a n e u tra lid a d e d o E sta do po d e sola p a r as co ndiçõ e s s o c ia is f
n e c e ss ária s p a ra a a u to n o m ia in d iv id u a l. E sta a firm a ç ã o , se v e rd a d e ira , te m j
im p ortâ n c ia p ara as te oria s lib e ra is e lib e rtá ria s , e ndosse m ela s o u n ã o a d o u
trin a da " p rim a z ia d os d ire ito s " .
A lg u n s c o m u n itá rio s c o n sid e ra m qu e a tese so cia l sola p a o lib e ra lis m o $
de u m a m a n e ira m a is fu n d a m e n ta l, m in a n d o o seu in d iv id u a lis m o m ora l. Q u
in d iv id u a lis m o m o ra l é a vis ã o d e qu e os in d iv íd u o s são a u n id a d e b á sic a do
_ V a lo r m ora l, de m od o qu e q u a is q u e r d e v ere s m ora is p ara com un id a d e s m a io
re s (p o r e x e m plo, a c o m u n id a d e ) de v e m s er d e riv a d o s d e nossas obrig a çõ e s
p ara com os in d iv íd u o s . |la s , os c o m u n itá rio s a rg um e nta m , se re je ita rm o s a
vis ã o a to m is ta d e qu e os in d iv íd u o s são pessoas a u to-o rig in a d o ra s , e n tã o , d e
v e m os ta m b é m re je ita r a a firm a ç ã o d e R a w ls d e que som os " fo n te s a u to -o ri-
O C O M U N IT A RIS M O 279

cidade de escolher um a concepção do bem só pode ser exerci


da em um tip o e sp ecífico de co m unid a d e , é,‘ T a ylor a rg u
m e n ta, este tip o de com unid a d e só pod e ser suste nta do p or
um a p o lític a do b e m com um . E m outra s palavras, são e xig i
dos a lguns lim ite s à a uto d e term in a ç ã o para pre s erv ar as
condições sociais que ca pacitam a a utode term in a ç ão. C o n si
d erare i trê s v ersões desta afirm a çã o: um a a re sp e ito da n e
cessidade de suste ntar um a e strutura c u ltura l que forn e ç a às
pessoas opções sign ific a tiv a s, um a se gunda , a re sp e ito da
necessidade de fóruns com p artilha dos, nos quais sejam ava
lia da s estas opções, e um a terce ira , a re sp e ito das pre co n d i-
ções para a le g itim id a d e p olític a . E m cada caso, o s com uni-
_tários e voca m a te s e socia l p a ra d e m on s tra r co m o u m in
teresse p e la a uto d e te rm in a ç ã o a nte s su ste nta qu e e x clu i a
jp o lític a co m u nitá ria .

(a) D everes de prote g er a e strutura c u ltur a l

Escolhas signific a tiv a s refere ntes aos nossos projetos e xi


gem opções signific a tiva s e (a tese social nos diz) estas opções
vê m de nossa cu ltura . A n e utra lid a d e lib e ra l, poré m , é in c a -|
pa z de assegurar a e xistê ncia de u m a cultura ric a e div e rs a l
que forn e ç a ta is opções. A a utod e term in a ç ã o re qu e r o p lu -f
ra lism o , no s e ntid o de um a div e rsid a d e de m odos de vid a
possíveis, mas

gin a d ora s de d ire ito s v á lid o s " (R a w ls, 1980: 543). Isso, poré m , é um non sequi-
tur. A a firm ação de R a w ls de que som os fo n te s a iitn -n rig in a d o ra s d e -d ire ito s
y á lid o s -n ã e -é ^w w ^fiu ^ ç ã e ^ü Ó Q lé S c a ^b re çom p jo s jie s e im J iK in a s ^ É
„u m . a firm a ç ã o m o ra l a .ie sp .e itp. d ^lo c ã lÍz a ç ã o .,d o .-v a k » ''m o ra l. ’ G om o d iz
G a lsto n , " e m b o ra o p o d e r fo rm a tiv o d a socie d a d e c e rta m e n te s eja d e cisivo ,
são, n ã o o b sta nte , os indivíduos que e stã o se ndo form a dos. Posso c o m p a rtilh a r
tu d o com os o u tro s . M a s sou eu qu e c o m p a rtilh o com eles - um a consciê ncia
in d e p e n d e n te , u m locus se p ara do de p ra z e r e d or, u m s er d e m a rc a do, com in
teresses a sere m p ro m o vid o s o u s u p rim id o s " ( G a lsto n , 1986: 91). E m bora 1
m e u b e m seja so cia lm e n te d e te rm in a d o , a in d a é o m e u b e m qu e é a fe ta d o p e la
v id a so cia l, e q u a lq u e r te o ria p o lític a p la u s ív e l d e v e a te n ta r ig u a lm e n te p a ra |
os intere ss e s de ca d a pessoa.
280 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

q u a lq u e r te n ta tiv a co le tiv a de u m E stado lib e ra l de pro te g e r


o p lu ra lis m o seria, ela pró pria , u m ro m p im e nto dos prin cip io s
lib e ra is de ju stiç a . O E sta do n ã o te m d ire ito de in t e rfe rir n o
m o vim e n to do m erca do c u ltu ra l, e xceto, n a tura lm e n te , p ara
a ssegurar que cada in d iv íd u o te n h a um a p arc ela ju sta dos
m eios necessários disponív e is para exercer seus pod eres m o
rais. 0,Jb e m -e starqu o d esapare cim .e nto-d e conce pçõ e se spe-
cíficas do b em e, p orta n to , o bem -e sta r ou o desa parecim e nto
de uniõ e s.spciãis 3 e,um cará ter espe cífico não são da conta do.
E stado (C ra gg, 1986: 47).

O s lib e ra is a cre dita m que um E stado que in terv é m no 1


m erca do c u ltura l para e ncorajar ou d e se ncora jar q u a lq u e r |
m o do de vid a e spe cífico re strin g e a a u to d e te rm in a ç ã o d a sf
pessoas. C ontudo, se o m ercado cu ltura l prosse guir sozinho, |
acabará p or m in a r a e strutura socia l que sustenta o p lu ra lis
m o. C om o diz Joseph Raz: " A p o ia r form a s de vid a v a liosas
é nm a .qu e stã o a ntes socia l q ue in d iv id u a l [...] os id e ais p e j-
fe ccipnista s exigem ação p ú b lic a p ara serem viá v e is. O a n-.
.tip erfe ccio nism o , n a prá tic a , c o n d u z iria não m era m e nte a
u m a fa sta m e nto p o lític o do a poio a concepções valiosas do
bem . M in a ria as chances de sobre viv ê ncia de m uito s aspec-
tos acalentados p or nossa c u ltura " (Raz, 1986:162). A n e utra
lid a d e lib e ra l, p orta n to , d e rrota a si m esm a.
E sta é um a objeçã o im p orta n te . M u ito s lib e ra is sile n
cia m de m a n eira surpre e nd e nte q u a nto à p ossibilid a d e de
que "a s a tivid a d e s cu ltura is essenciais que to m a m co nc e b í^
v e l para as pessoas um a grande diversid ad e [possam] com e-|
çar a ce d er". C om o diz Taylor, " é com o se condições de um aj
lib e rd a d e cria tiv a e d iv e rsific a d ora foss em dada s p ela n a
ture z a " (T aylor, 1985: 206 n. 7). R awls te nta re spond er a esta-
pre ocupa çã o a firm a n d o que bons m odos de v id a irã o , n a
v erda de, suste ntar a si m esmos no m ercado c ultura l, sem as
sistê ncia estatal, porqu e , em condições de Übercfa3e,'ás p e s-
soas cons eguem re conh e c er o v a lor dos bons m o d os d e vid a
e irã o a poiá-los (Rawls, 1971: 331-2; cf. W aldron, 1989:113*8)'.
Isso, poré m , é ina de qua do. O s interesses que as pessoas tê m
p or um bom m odo de vid a , e as form a s de apoio que oferece-
O C O M U NIT A R1SM O 281

rã o volu nta ria m e n te , n ã o e nvolv e m n ec essaria m ente sus


te nta r sua e xistê ncia para gerações futura s. M e u intere sse
em um a prá tic a social v alios a pod e ser pro m ovid o da m e
lh o r m a n e ira p e lo esgota m e nto dos recursos que a prá tic a
re quer para sobre viv er além do m e u te m p o de vid a . C on si
dere a preservação de arte fa tos e sítios históricos ou de áreas
selvagens n aturais. O desgaste causado p e lo uso co tidia n o
destas coisas im p e d iria as futura s gerações de e xp erim e n-
tá-la s, n ão fosse a proteção estatal. P orta nto, m esmo que s e i
possa co nfia r n o m ercado cultura l para assegurar que as pes-J
soas e xiste nte s possam id e n tific a r m odos de vid a v a lio so s,!
não se pod e co n fia r n ele p ara assegurar que as pessoas dc
fu tu ro te n h a m u m le qu e v a lio so de opções.
P ortanto, a dm ita m os o argum e nto de Raz, de que o
a poio e sta tal pod e ser ne ce ssário para assegurar a .sobrevi
v ência de u m le qu e ade quado de opções para os que a ind a
n ão form a ra m seus obje tivos na vid a- Por que isso re qu er a
reje içã o da n e utra lid a d e ? C onsidere dua s p olític a s cultura is
possíveis: no prim e iro caso, x> governo assegura um le que de
opções ad e qu a do p ro p orc io n a n d o cré dito s fisc a is a m d iv T "
duos que façam contribuiçõ e s para o a poio à cultura , em con
form id a d e criflrB C T S ld é ãls p e ri^ a dnistã s p essõãiS.' Q E gfa-
do atua para assegurar que haja um le qu e a de qua do de o p
ções, mas a avaliação dessas opções ocorre na sociedade civil,
fora do a p arato do E stado (cf. D w o rk in , 1985: cap. 11). N o
s egundo caso, a avaliação das difere nte s concepções do bem
tom a-s e um a questão política , e o governo interv é m , n ão sim
ple sm e nte para assegurar um le qu e a de qua do de opções,
m as para prom ov er opções específicas. O argum e nto dç j^a z .
d e m onstra q u a u m a ou outra d estas polític a s deve ser im ple -

...jju er um a razã.o,.,para^que se p re fira um a p o lítica à o u tra .


D a í a e xistê ncia de deveres re fere nte s à prote ç ã o da es
tru tura cu ltura l não ser in com p a tív e l com a n e utra lid a d e . N a
v erd ad e, D w o rk in e nfa tiz a nosso de v er de prote g er a e s tru
tura c u ltura l contra " a vilta m e n to ou d e teriora ç ã o" (D w orkin ,
1985:230). C om o T aylor, ele fala sobre com o a capacidade de

i
282 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

conceb er im a gin a tiv a m e nte conce pções da boa vid a exige o


debate e sp e cia liz a do e ntre inte le ctu a is que te nte m d e fin ir e
esclarecer as outra s p ossibilid a d e s que tem os dia nte de nós
ou a pre sença de pessoas que te n te m re viv e r a cu ltura do
passado na arte d o pre se nte ou que suste nte m o im p u lso
para a inova çã o c ultura l, e sobre como o E stado pode e deve
prote g e r estas a tivid a d e s cultura is essenciais (T aylor, 1985:
204-6; D w ork in , 1985:229-32). E, e m bora R awls n ã o in clu a
o a poio e statal à cultura e m sua te oria de justiç a , já que p e n
sa que a operação dos dois princípios prote g eria , n a v erd ad e,
estas pre condiçõe s de u m a c u ltu ra div e rs a ,-n ã o h á n e n h u
m a ra z ão p ela qua l d ev eria re je itar ta l a poio se não fosse este
õ cáSQ (R á W ls7T97Í: 331, 441-2, 522-9). C om o D w orkin , eíe
sim ple sm e nte in s istiria em que não é tra b alho do E stado hie -
ra rquiz ar o v a lor re la tivo das v ária s opções d e ntro da cultura .
U m E stado c o m u n itá rio p od e ria te r esperanças de p ro
m ov er a qu a lid a d e das opções das pessoas e ncora ja ndo a
su bstituiç ã o de aspectos m e nos v a liosos dos m odos de vid a
da com unid a de p or m odos m ais v aliosos. A n e utra lid a d e liM ;
b eral, p oré m , ta m b é m te m esperança de pro m o v e r o le qu é
de opções das pessoas. A lib e rd a d e de discurso e associação ,
p e rm ite a cada grupo buscar e a nunciar seu m od o de vid a ,
e os m o dos de vid a qu e são in d ig n o s terã o d ific u ld a d e de
a tra ir adeptos. C om o os in d ivíd u o s são livre s para escolher
e ntre visões riv a is de boa vid a , a n e u tra lid a d e lib e ra l cria um
m erca do de id é ia s, p or assim diz er, e o gra u de sucesso que
u m m o d o de vid a te m n este m erc a do d ep e nd e dos bens
que pod e ofere cer a adeptos pote nciais. P orta nto, sob condi
ções de lib erd a d e , m odos de vid a s a tisfa tórios e v a liosos te n
derão a e xpulsar os que são in s a tisfa tório s, O s lib e ra is e n-
dossam em p arte as lib erd a d e s civis ju sta m e nte porqu e elas
torn a m possív e l "q u e o v a lo r de difere nte s m odos de vid a
seja prov a do na p rá tic a " (M ill, 1974: 54).
O s lib e ra is e com unitários alm eja m assegurar o leque de
opções a p a rtir do q u a l os in d iv íd u o s fa z e m suas escolhas
a utônom a s. Sua discord â ncia é q u a nto ao p o n to em que os
id e ais p erfe ccionista s devem ser invocados. É m ais prov á v el
o C O M U NIT A RIS M O 283

que os bons m odos de vid a e stab eleçam seu v a lor qua ndo
são avaliados no m ercado cultura l da sociedade c iv il ou qu a n
do a preferê ncia p or m odos de vid a difere nte s tom a-s e um a
questão de defesa p olític a e ação estatal? A disputa í p orta n-
to, Çalvez deva ser v is ta com o um a escolha, n ã o entre o p e r
fe ccio n ism o e a n e u tra lid a d e , m as e ntre o p erfe ccio nism o
social e o p erfe ccionism o e sta ta l - pois o o posto da n e u tra -
lld a de estatsTe o a poio ao pa n el dos ide ais p erfe ccionista s na
sociedade civil.

(b) A n e utra lid a d e e as deliberações coletivas

A lg u n s c o m u nitá rio s argum e nta m que a pre ferê ncia l i


b era l p e lo m erc a do c u ltura l em d e trim e n to do E stado com o
arena adequada para a avaliação de diferentes m odos de vid a
origin a -s e de um a crença a tom ista de que os julg a m e ntos a
re sp eito do b e m só são a utônom os q u a ndo fe ito s p or in d i
víduos isolados, prote gidos da pressão social. O s lib erais p e n-t
sam que a a utonom ia é prom ovid a quando os julg a m e ntos af
re sp e ito do b e m são tira d os do d om ínio p o lític o . N a re alida-J
de, poré m , os julg a m e ntos in d ivid u a is re querem o co m p arti
lh a m e nto das experiências e das troca s da delib eraçã o c ole ti-
va^ O s ju lg a m e ntos in divid u a is a re sp eito do b e m dependem
¿ a .avaliação cole tiv ajd e p á tic a s com p artilh a d a s. H a&saiQ S-
n.am m a téria de c a pricho s u bje tivo e a rb itrá rio s e fore m se-
paradaídas d eliberações coletiva s:

A a uto-re a liz a ç ã o e m e sm o a d e te rm in a ç ã o da id e n tid a


de pessoal e de um senso de orie nta ç ã o no m un d o d ep ende m
de u m e m pre e nd im e n to co m un a l. Este proce sso co m p a rti
lh a d o é a vid a cívic a e sua ra iz é o e n v o lvim e n to com outro s:
o utra s gerações, o utros tip o s de pessoas cujas difere nç a s são
sig nific a tiv a s porqu e contribu e m para o to d o do qu a l depe nde
nossa percepçã o e specífica do eu. P orta nto , a inte rd e p e n d ê n
cia é a noçã o fu n d a m e n ta l da cid a d a nia [...] F ora de um a c o
m u n id a d e lin g ü ís tic a de prá tic a s c o m p a rtilh a d a s , e x is tiria o
Homo sapiens bio ló g ic o com o a bstraçã o lógic a , m as n ã o s eria
284 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

possív el e x is tir seres hum a nos. E ste é o sig n ific a d o do dictum


gre go e m e die v a l de que a com unid a d e p o lític a é o rto ló g ic a
m e nte a nterior ao in d iv íd u o . A p ólis é, lite ra lm e nte , a quilo que
to m a o ho m e m possív e l com o s er h um a n o (S u lliv a n , 1982:
158, 173).

O u, com o d iz C rowle y, o p erfe çciQ nism a e sta tal é

um a a firm a ç ã o da noçã o desque um co nte xto no qu a l os h o


m ens viv a m em um a com unid ad e de experiê ncias e lingu a ggjn
co m p a rtilh a d a s é o ú nico e m qu e o in d iv íd u o e a socie dad e -
p od e m d e sc o brir .e te sta r ^e ua v a lore s p on m e io das r t üdda»
d es e s e n cia lm e n te polític a s da discussão, da critic a , dn e x e m -
p lo e da e mulaçã oj É p or m e io da e xistê ncia de espaços p ú b li
cos organiz ados, nos quais os hom ens oferecem e te stam idéias
confronta nd o-s e [...] que os hom ens vê m a com pre end er um a
p arte de qu e m são (C row le y, 1987: 282; cf. B e iner, 1983:152).

O E stado é a arena adequada para a form ula ç ã o de nos


sas visões do b e m porqu e estas visõe s re quere m a in v e stig a
ção com p artilh a d a . E las não pode m ser buscadas, ou sequer
conhe cidas, p o r in d iv íd u o s solitá rio s.
Isso, p oré m , in te rpre ta errone a m e nte o s e ntido em que
R awls a firm a que a avaliação de m odos de vid a não deve ser
um a preocupação públic a . A n e u iia lid adfij jb e ra l n ã o re s tfflfa
ge o á m bito dos id e a is p erfe ccionistas á s a tivid a d e s coletiva s
dos in d iv íd u o s & grup o s^A a tivid a d e cole tiv a e as e xp eriê n
cias c o m p a rtilh a d a s re fere nte s ao bem estã o no ám a go da
"v id a in te rio r livre das v ária s com unid a d e s de interesses nas
quais as pessoas e grupos buscam a tingir, em modos de união
socia l com p atív e is com a ig u a l lib e rd a d e , os fin s e e xce lê n
cias p ara os qu a is são a tra íd o s ". O a rg um e n to de R a wls a
fa vor da priorid a d e da lib e rd a d e é fund a m e nta do na im p o r
tâ ncia desta " liv re u niã o social com os ou tro s " (R awls, 1971:
543). E le sim ple sm e nte nega que " o a p a re lh o co ercivo do
E sta do " seja u m fóru m ad equ a do p ara estas d elib era çõe s
e e xperiências:
O C O M U N 1TA RISM O 285

E m bora a ju stiç a com o e qüid ad e p e rm ita qu e os v a lore s


da e xcelência sejam re conh e cidos em um a sociedade bem o r
denada, as perfeições hum anas devem ser buscadas d e n tro dos
lim ite s do p rin c íp io da liv re associação [...] [A s pessoas] não
usam o a p a re lho co ercivo do E stado p ara c o nquista re m p ara
si um a lib erd a d e m a ior ou parcela s d is trib u tiv a s m aiore s com
base no fa to de suas a tivid a d e s te re m m a ior v a lo r intrín s e c o
(R a wls, 1971: 328-9).

Infe liz m e nte , os com unitários raram ente distingu e m e n


tre a tivid a d e s cole tiv a s e a tivid a de s p olític a s. N a tura lm e nte ,
é verdade que a p articip a çã o em práticas lingüístic a s e c u ltu
ra is co m p a rtilh a d a s é o que capa cita os in d iv íd u o s a tom a -
< e m d ecisões in te lig e n te s a re sp eito da b o a vid a , M as p or
que ta l p articip a ç ã o d e veria ser org a niz a da p o r m e io do E s
ta d o e nã o p or m e io da liv re associação dos in d ivíd u o s ? É
v erd a d e qu e d e v ería m os " c ria r o p ortu nid a d e s para que os
hom e ns e xprim iss e m o que d e sco brira m a re sp e ito de si
m esmos e do m u ndo e persuadissem os outros de seu v a lo r"
(Crowley, 1987:295). Um a sociedade lib e ra l porém , re a im e n-
te cria op Q ilunid a d e s-.para q u e as. pessoas -expressem estes
aspectos sociais da d e lib e ração in d ivid u a l. A fin a l, a lib erd a d e
3 e^§ ê iriW é là T dÍscürso e associação são d ire itos lib e ra is fu n
d a m e ntais. A s op ortun id a d e s de inv e stig a ç ã o c ole tiv a s im
ple sm e nte ocorrem dentre e entre grupos e associações a bai
xo do n ív e l do E stado - a m igos e fa m ília , em p rim e ira in s
tâ ncia , mas ta m b é m igre ja s, associações c ultura is, grupos
pro fissio n a is e sindic a tos, u niv ersid a d e s e os m eios de co
m unica çã o de massa. O s lib e ra is nã o neg am que " a exibiçã cfí
p ú blic a de caráter e ju lg a m e n to bem com o a troc a de e x p e - j
riê n cia e d is c e rn im e n to " sejam nece ssária s p ara se fa z e i
ju lg a m e n to s in te lig e n te s a re sp e ito do b em ou para que se
m ostre aos o utro s que eu "su ste n to [m in h a ] noçã o do bem
re spons a v e lm e nte " (C row le y, 1987: 285). N a verd a d e , estas
afirm ações ajustam-se conforta v elm e nte a m uita s discussões
lib e ra is sobre o v a lo r do liv re discurso e da livre associação
(p or e xe m plo, S canlon, 1983:141 -7).JD que o lib e ra l nega é
que eu deva ofere c er ta l descrição de m im cio Estadd)
286 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O RÂ N E A

S im ilarm e nte , d eixar de considerar o pap el d is tin tiv o do


E stado e nfra qu e ce as crític a s ra dic ais da n e utra lid a d e lib e
ral, com o a de H aberm as. H aberm as quer que a avaliação dos
difere nte s m odos de vid a seja um a questão p olític a , m as, ao.
cq ntrá rio dos com u nitá rio s, ele não tem .£sp erança dm qu e ,
esta de Hberação p o lític a sirv a p ara prom o v er a inserç ão das....
pessoas nas prá tica s existentes: N a verd ad e , ele pensa que a
delibera çã o p o lític a é e xigida justa m e nte porqu e, na sua a u
sência, as pessoas tend erã o a a ceitar com o especificadas as
prá tica s e xiste nte s e^cnm-isso. a p erp e tu a r as necessidades
. falsas e a consciê ncia fals a que a com pa nha estas prá tic as
históric a s^ A pen a s qua ndo m odos de vid a existentes são "os
obje tos da form a ç ã o de vo nta d e d is c ursiv a " é que a co m
pre ensã o que as pessoas tê m do b em pod e estar Üvre de e n
gano. A n e u tra lid a d e não exige a apuraçã o destas prátic a s
e, p orta n to , n ão reconhece o interesse e m a ncip a tório que as
pessoas tê m em escapar de necessidades falsas e distorçõ e s
id e ológic a s.
M as p or que a avaliação das concepções de bem das pes
soas deve estar vin cula d a a seus d ire ito s de justiç a e, p orta n
to , ao E stado?
p o lític a , in te ira , grupos e associações de y arios»ta m a nhos
p o d e ria m ser fóru n s m ais a de quados p ara estas form a s de
"form a ç ã o da vonta d e discursiv a ", que envolv e m a avaliação
do. b em e a interpre ta ç ã o d e nossas necessidades genuín as.
E mbora H aberm as re je ite a tend ência com unitária de e ndos
sar a critic a m e nte as prá tic a s sociais e xiste nte s com o base
p ara as deliberações p olític a s a re sp eito do bem, ele com p ar
tilh a sua te nd ê ncia de pre ssupor que q u a lq u er coisa que
n ã o seja politic a m e nte deliberada é, desta m aneira , deixada a
um a vonta d e in d iv id u a l inc a p a z de ju lg a m e n to ra ciona l. 8

8. H a b e rm a s pare ce e ndossar esta posiç ã o q u a nd o d iz qu e a necessidad e


de um a "d e s so lid ific a ç ã o d iscursiv a d as in te rpre ta ç õ e s (em bo a p a rte c o n tro la
das e xte riorm e n te ou fix a d a s tra d ic io n a lm e n te ) de nossas n e ce ssida de s" e stá
n o â m a go de sua d iscord â n cia com R a wls (H a b erm a s , 1 9 7 9:1 9 8-9). C o n tud o ,
ele a gora re je ita a id é ia de a v a lia r p o litic a m e n te as concepçõ es d o b e m d as p e s
soas (H a berm as, 198 5:2 14-6; cf. B e nh a bib, 1986: 332-43; F unk, 1988: 29-31).
o C O M U N IT A RIS M O 287

P orta nto, a n e u tra lid a d e lib e ra l n ã o n e g lig e n cia a im


p o rtâ n cia d e um a cu ltura com p artilh a d a para opções in d i
vid u a is sig n ific a tiv a s ou do co m p a rtilh a m e n to de e xp e riê n-
d as para a avaliação in d iv id u a l sig nific a tiv a destas opções./ A
n e utra lid a d e lib e ra l n ão nega estas exigências sociais da a u
to no m ia in d iv id u a l, m as, antes, forn ece um a interpre ta ç ã o
delas, um a interpre ta ç ã o que se vale antes de processos so
ciais que de processos políticos. N a da disso prov a que a n e u
tra lid a d e deva ser endossada. A n e u tra lid a d e re quer certa fé /
na operação de fórun s e processos n ã o estatais para o ju l- f
g am ento in d iv id u a l e o d e se nvolvim e nto cu ltura l e um a des-4
confia nç a da operaçã o de fórun s e statais n a a valiação d ql
b em . N a d a do que disse m ostra que este o tim is m o e des-í
confia nça sejam justific a dos. N a verdade, a ssim m m o o dorí
ficos da n e utra lid a de não co ns e guira m d e fe nd e r sua fé na
p o lític a, os lib e ra is n ão conseguira m d e fe nd er sua fé eí f ilo -
cun.s não estatais.
N a verd ad e , parece que cada la do do debate da n e u tra
lid a d e n ã o conse guiu a pre nd er a liç ã o ensina da p e lo o u tro
la do. A p e s ar de séculos de insistê ncia lib e ra l na importância® !
da distinç ã o e ntre E stado e sociedade, os com u nitários a in d a ||
parece m su por que qu a lqu er coisa que seja a d e q u a d a m e n-ij
te social deve torn a r-s e d o m ín io do p o lític o . Eles não c o n -f
fro n ta ra m a pre ocupação lib e ra l de que a a utorid a d e to t a li
z a nte e os m eios coercivos que caracteriz am o E stado faç am
d ele u m fó ru m e spe cialm e nte in a d e qu a do para o tip o de
d e lib era ç ã o e com prom isso g e nuin a m e nte com p artilh a d os
que desejam . A p e s ar de séculos de in s istê n cia com u n itá ria
na n a ture z a h istoric a m e nte frá g il de nossa c ultura e da n e
cessidade de consid erar as condiçõe s sob as qua is uma.C u l
tura livre p o d e se suste ntar, os lib e ra is a inda , te nd e m a te r
j com o c erta a e xistê ncia de. u m a c u ltu ra to le ra n te e d iv e r
sa, como algo que surge e se sustenta n a tura lm e nte , cuja ex
p e riê n cia co ntínu a é, p orta n to , sim ple sm e nte pre ssuposta
em um a te oria de ju stiç a . O s c o m u n itá rio s estão certos ao
in s is tir em que um a cultura de lib erd ad e é um a conquista h is
tóric a , e os lib e ra is precisa m e xplic ar p or que o m erca do c u l-
288 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

tu ra l n ão ame aça esta conquista ao d eixar de lig a r as pessoas


de m a n e ira forte a suas prá tic as com un a is (com o tem e m os
c om u nitá rios) ou, invers am e nte , ao d eix ar de d e svincula r as
pessoas de m a n e ira s uficie nte m e nte forte das e xpe ctativas
das prátic as e id e ologia s existentes (com o te m e H a berm as).
U m a c u ltura que suste nta a a uto d e te rm in a ç ã o re qu er u m l
m isto de exposição às prática s corre nte s e lig a ç ã o com ela s,|
b e m com o distâ ncia e div e rg ê ncia delas. A n e u tra lid a d e li-fl
b era l pod e pro v e r esta m istura , m as isso não é obvia m e nte
v erd a d e e pod e ser v e rd a d e iro apenas em c ertos te m pos e
lug ares. P orta nto, ambos os lados pre cisam nos oferecer um a
com p ara çã o m ais a bra ng e nte das o p ortu nid a d e s e p erigos
presentes em fóru ns e proc e dim e ntos e statais e nã o estatais
n a a valiação do bem.
A rg u m e n te i em o utra p arte que, antes de in voc ar o E sr
ta do com o a aren a para a av alia çã o de concep ç õ es do bem,
d evería mos prim e iro a prim ora r os fóru n s da sociedad e c iv il
p ara o debate não p olitiz a d o , de m odo que assegure que to
dos os gru p o s na socie da de te n h a m acesso genuin a m e nte
liv re e ig u a l ao m erc a do cultura l- que os lib e ra is v a loriz a m
ta n to (K ym licka , 1989b). C ontudo, e nqu a nto esta questão
p erm a ne ce e m a berto, deve fic a r claro que é im pro v á v e l
que ch egu e m os a alg um a re sposta se co n tin u a rm os a v ê -
la com o um deb ate e ntre o " a to m is m o " lib e ra l e a "te s e so-

Í
ia l" com unitarista . S egundo os com unitários, os lib erais d e i-
am de re conh e cer que as pessoas são seres n atura lm e nte
ociáis. O s lib e ra is, supostam ente , p ens am que a sociedade
baseia-se em u m c o ntra to socia l a rtific ia l e que o p od e r
e sta ta l é necessário para m a n te r ju n ta s na sociedade pe s
soas n a tura lm e nte associais. H á , poré m , u m se ntid o em que
o oposto é v e rd a d e iro -.o s lib e ra is a cre dita m q u e a s p e s .-
soas form a m e p a rticip a m n a tura lm e nte de relações e fó r
runs sociais, n osxp a is.y ê m a com pre e nd er e a buscar o b em .
Õ E stado não é necessário para forn e c e r esse conte xto co
m u n a l e é prov á v el que distorç a o processo n orm a l de d e li
berações e d e s e n volvim e nto c u ltu ra l cole tiv os. S ão os co
m u n itá rio s qu e p are ce m p e ns a r que os in d iv íd u o s d e riv a -
O C O M U NIT A R1SM O 289

rão p ara u m iso la m e nto a nô m ico sem que o E stado os un a


a tiv a m e nte p ara a v a lia r e busc ar o b e m 9.

'(c) A le gitim id a d e p olític a

H á o utra questão suscitada pela tese social. A s escolhas


in d ivid u a is re qu ere m u m conte xto c u ltura l s e g u ip^m ^ T H if
conte xto c u ltura l, p or sua v e z , re qu e r um conte xto p o lític o
seguro. Seja qu al fo r o pa pe l adequado do E stado na p ro te
ção do m ercado cultura l, ele só pod e c u m p rir esta funç ã o se
as in s titu iç õ e s p úb lic a s fore m estáveis, e isso, p or sua ve z,
requer que elas te nh a m le gitim id a d e aos olhos dos cidadãos.
T a ylor a cre dita que as in stituiçõ e s p olític a s governadas p e lq
prin c íp io da n e u tra lid a d e serão incapa z es de su ste ntar a l e |
gitim id a d e e, p orta nto, incapa z es de suste ntar o conte xto so-l
ciai re q u e rid o para a a utod e term in a ç ã o. I
S egundo Taylor, o E stado n e utro m in a anp asep e ãocam-
p.a rtilh a d a do bem com um que é e xigida pelos —ui—niriifT
cidadãos para
- ,,,,
que a c e ite m Q S..sacrificios e xigidos p e lo E stado de b e m -e star
socia l/O s cidadãos só se id e ntific a rã o com o E stado e a c eita
rão suas exigências como le gítim a s qua ndo houv er um a " fo r
m a com um de v id a " que "s eja vista com o um bem supre m a
m e nte im porta nte , de m odo que a sua co ntinuid a d e e flore s
cim e nto te n h a im portâ n cia para os cidadãos p or si m esmos,
não apenas in stru m e n ta lm e nte p ara os seus diversos bens
in d iv id u a is ou com o a som a to ta l destes bens in d iv id u a is "
(T aylor, 1986: 213). E sta percepção do be m com um , poré m ,
fo i m in a d a , em p arte porqu e agora te m os um a cu ltura p o -

9. A suge stã o d e qu e a a tivid a d e n ã o p o lític a é in e re n te m e n te s o litá ria


e stá im p líc ita e m m u ito s e s crito s c o m u n itá rio s . P or e x e m plo , J ja n d d jfirm a
qu e, sob a p o lític a c o m u n itá ria , ''p o d e n ip s , C Q n b fic e ra rm ie m .e m ^ta n u m ^u e -.
n a õ pod e m o s c on h e c e r s o z in h o s " (S a nd el, 1 98 2:1 8 3). E S u lliv a n a firm a que o
p e rfe ccio nism o e sta ta l é n e ce ssário p ara asse gurar que n in g u é m seja " e x c lu í
d o " das de lib era çõ e s cole tiv a s (S u lliv a n , 1982:15 8). Q s lib e ra is .fa z e irta s u p o si
ção c o n trá ria , de qu e n ã o se re q u e r.q u e cjE sta d o cond uz a os in d iv id u o s a asa a-
ciaçÕ es e d elib e ra çõ e s co le tiv a s (M a c e do, 1 98 8:1 2 7-8; F ein b erg, 1 98 8:1 05-1 3).
290 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

lític a de n e u tra lid a d e e statal, na qu a l as pessoas são livre s


para escolher seus objetivos ind e p e nd e nte m e nte desta " fo r
m a com um de v id a " e sobre pujar a busca deste bem com um
se ele vio la r seus dire itos. E nqu a nto um E stado c o m u nitá rio
prom overia um a id e ntific a ç ã o com a form a com um de vida , o

modelo de direjrtos vai muito bem com uma consciência mais


atomíãta; ná qual compreendo minha dignidade, como a dig-
mcfaâe de um portador individual de direitos; N a verdade - e,
aqui, a tensão aflora entre as duas - não posso estar m uito
disposto a sobrepujar a decisão coletiva em nome dos direitos
individuais se já não me distanciei em certa medida da comu
nidade que toma estas decisões (Taylor, 1986: 211).

...Este "d is ta n cia m e nto ", da form a de vid a c o m p a rtilh a d a


d a com unid a d e s ig n ific a que passamos a estar pouco dis
postos a sup orta r os fardos da justiç a lib e ra l. C om o re su lta
do, as d em ocracias lib e ra is estão passando p or um a "cris e
de le gitim a ç ã o " - p ede-se aos cida dã os que se s a crifiqu e m
cada ve z m a is em nom e da justiç a , m as eles co m p a rtilh a m
cada ve z m e nos coisas com aqueles p elos qu ais estão se sa
crific a n do . N ã o há n e n hum a form a de v id a co m p artilh a d a))
subjace nte às exigências do E stado n e utro . f
R awls e D w o rk in , p or o u tro la do, a cre dita m que os c i- ’
dadãos a ceitarã o os fardos da ju stiç a m esmo nas suas re la
ções com pessoas que possuem concepções b e m difere nte s
do b em . U m a pessoa deve ser livre para e scolher qu a lqu en
concepção da boa vid a que não v io le os prin c ípio s da ju s ti-f
ça, não im p orta o q u a nto ela d ifira dos outros m odos de vid a
na com unid a d e . Tais concepções co nflita n te s pod e m ser to |
leradas porqu e o re co nh e cim e nto p úb lico dos prin c ípio s de
justiç a é suficie nte p ara assegurar a e stabilidade m esm o d ia n
te de ta is c o n flito s (R a wls, 1985: 245), Pessoas com conc e p
ções dife rentes do b em re sp e itarã o os iE re ito s "d õs o utro s,
n ã a p orq u e isso prom ov a um m odo de vid a compartilh a d o ,
m as porqu e os cida dãos re conh e ce m que cada pessoa te m
um dire ito igu a l à consideração. P orta nto, a base .para a le g iti-
mldá de do E stado é um a percepção, com p a rtilh a d a de justiça ,
o C0 M U N IT A R 1SM 0 291

não um a percepção com p a rtilh a d a do bem . O s lib era is bus


cam sustentar um a sociedade justa através da adoção públic a
de princípios de justiç a , sem requ erer e, na verdade, e x cluin
do a adoção públic a de certos princ ípios da boa vid a .
T a ylor a cre dita que isso é so ciologic a m e nte in g ê n uo: as
pessoas n ão re speitarã o os d ir e it o ^
sejam obrig a d a s p or concepções com p artilh a d a s do bem, a
m enos que possam, se id e n tific a r com um a p olític a do be m
.comym...Ele descreve "du a s soluçõ e s-p a cote qu e surg em da s
brum as do proble m a de suste ntar um a polític a m od ern a v iá
vel em fin s do século X X ", que corre spond em , grosso m odo,
ao m od elo co m u nitá rio e lib e ra l, e diz que há "gra ve s d ú v i
das" a re sp e ito da via b ilid a d e a lo n g o pra z o do m od e lo lib e
ra l. A o im p o r os dire ito s in d ivid u a is e a n e utra lid a d e estatal,
um E stado lib e ra l e xclui a adoção p ú b lic a de p rin c íp io s do
bem, mas T a ylor p ergunta: " A pm ssã u crescente sobre ns d i
r eitos com o dom in a nte s dia nte das decisões coletivas, no fim ,
ve m m in a r a p ro p ria le g itim id a d e d a .nrd e m d e m ocrá tic a ? "
(T aylor, 1986: 225).
P or qu e u m m odo de vid a c o m p a rtilh a d o é re q u e rid o
para a suste nta çã o da le gitim id a d e ? T aylor não oferece n e
nhu m a e xplica çã o d is tin ta p ara a necessidade de um a p o lí
tic a e sp e cífic a m e nte c o m u nitá ria 10. C o n tud o , um a re sposta
que está im p líc ita nos escritos com u nitá rio s e ncontra-s e em
um a versão rom a ntiz a d a de sociedades a nteriore s em que a
le g itim id a d e se baseava na busca efica z de fin s c o m p a rtilh a
dos..O s co m un itá rio s sugerem que recuperaría m os o sengp
de fid e lid a d e presente nos te m pos passados se aceitássemos
um a p o lític a do b em com um e encorajá ssem os todos a par-

10. T a y lo r re a lm e nte sug ere algu m a s pre ç o n diç õ e s de le g itim id a d e , a s ,


q u a is, e le ã o ê B B E ijrS õ são a te n d ld a s ,n a .n e u tra lid a d e lib e r a l - em p a rtic u la r, a
n e c e ssid a d e de p a rticip a ç ã o dos cid a d ã os, (p or e x e m plo , T a ylor, 1986: 225;
1 9 8 9:1 7 7-8 1). E le , p oré m , n ã o e x plic a a d e qu a d a m e nte p o r qu e a n e u tra lid a
d e lib e r a l n ã o p o d g s e tv ir esta e xig ê ncia . S eu a lv o re a l, p e nso , é rp rtp |jp n de
<f?íitp)a qu e .su h ordirm a .p o lítira .d e m o c rá tifflja o .d o m ín io d e es -
pe .çia!iste £ (T a y lor, 1 9 8 9:1 8 0). E ste pro b le m a , p oré m , n ã o é um pro b le m a d is
tin ta m e n te lib e ra l.
292 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

iicip a re ra .livx e m e nte d ela. E xem plos com uns de tais socie
dades do passado são as d em ocra cia s re public a n a s da G ré
cia a ntig a ou os governos m u n icip a is da N ov a In g la te rra no
século X V m .
Estes exem plos histórico s, poré m , ign ora m u m fa to im
porta nte . O s governos m unicip a is da N ova Ingla terra de a n -j
tig a m e n te pod e m te r tid o m u ita le g itim id a d e e ntre seusI
m e m bros em v irtu d e da busca e fica z de seus fin s comp ar-J
filh a do s. Isso, poré m , porqu e , p e lo m e nos em p arte , as mu-J
lheres, os ateus, os ín dio s e as pessoas sem proprie d a d e es-
tava m e xcluídos com o m e m bros. Se lh e s fosse p e rm itid o
serem m e m bros, não te ria m se im pre ssion a do com a busca
do que m uita s ve zes era um "b e m com um'" ra cista e sexista.
A m a n e ira com o a le g itim id a d e fo i assegurada e ntre todos
os m e m bros fo i e x clu ir alguns da condiç ã o de m e m bros.
O s co m u nitá rios conte m porâne ps..não estã o a dvoga n-
^ 9 H S Í li^ ^ ^ ^ Õ s s a ^ ^ s s e g u ^ d â i Q Ê g 6»d Q a co n
dição de m e m bros a estes grupos da com unid a d e que não
p articip ara m historic a m e nte da form aç ão do "rn pd o.d e vid a
co m u m ". O s co m u nitá rio s a cre dita m que há certas prática s
com unais que todos pod e m endossar como a base p ara um a
p o lític a do b e m com um . M as qu ais são estas prá tica s? O s
com unitários m uita s ve zes escrevem como se a exclusão h is
tóric a de certos grupos das v ária s prá tic a s sociais fosse ape
nas a rb itrá ria , de m odo que agora pud éssem os in c lu í-lo s e
s e guir a dia nte . M a s a exclusão das m ulh ere s, p or e xem plo,
não fo i a rb itrá ria . F oi fe ita p or um a ra z ão - a saber, que o s j
fin s que estavam s endo buscados era m sexistas, d e fin id o s!
p or hom ens p ara s ervir aos seus interesses. E xigir que as m u 4
lh ere s a c eite m um a id e n tid a d e que os hom e ns d e fin ira m
para elas n ã o é um a m a n eira prom issora de a um e ntar seu
senso de fid e lid a d e . N ã o pod e m os e vita r este pro ble m a d i
z e ndo, com S andel, que as id e n tid a d e s das m ulh ere s são
c o n stitu íd a s p elos p a p é is e xiste nte s. Isso é sim ple sm e nte
falso: as m u lh ere s pod e m re je ita r e re je ita ra m estes papéis,
que, de m uita s m an eiras, op era m p ara n e g ar sua id e ntid a d e
separada. Isso ta m b é m era verd a d e na N o v a In g la te rra do
o C O M U N TT A RISM O 293

século X V III, mas a le g itim id a d e a li fo i preservada p e la ex


clusão das m ulheres como m em bros. D e vem os e ncontrar a l
gum a outra m a n e ira de assegurar a le g itim id a d e , rim a m a : _
“n eifa que não co ntinu e a d e fin ir grupos e xcluídos em funçã o
de um a id e n tid a d e que outros criara m p ara eles.
S andel e T aylor diz e m que há fin s c om p a rtilh a do s que
pode m s ervir com o a base p ara um a p o lític a do bem com um
que serão le g ítim o s para todos os grupos da sociedade. N ã o
oferecem, poré m , n e nhum ex em plo de tais fin s - e, com cer
te z a, p arte da ra z ão é que nã o há n e nh um . F.les diz e m que_
estes fin s co m p artilh a do s de ve m ser e ncontra d os e m noss a s..
prá tic a s históric a s, m as não m e ncion a m qu e e sta s .prática s
fora m d e finid a s p qr um a p equ e n a seção da sode d ad e - h.o-
m ens brancos, d e te ntore s d e pro prie d a d e .- para s e rvir aos
intere ss e s de hom e ns bra ncos que tê m pro prie d a d e s ,-Es
tas prá tica s são codifica da s p or gên ero, raça e classe, m e smo
qu a ndo m ulh ere s, ne gros e tra b a lh a dore s tê m p erm iss ã o
para p a rtic ip a r delas. T e ntativa s de pro m o v e r estes tip o s de
fin s re du z e m a le g itim id a d e e ainda e xclu e m grupos m a rg i
naliz a dos. N a verdad e, é justa m e nte u m a p erd a de le g itim i
dade assim que parece e star o corre nd o e n tre m u ito s e le
m e ntos da sociedade norte -a m eric a n a - n egros, gays, mã es
solteira s, n ã o; c n s fã õ ? -a’ m e did a que a d ire ita f e g t a im p lfc .
m e nta r sua agenda b a s e a da h a f à n m a p ã fn ifc ã l cristã u M ui-
tos com u nitá rios, sem dúvid a , não gosta m da vis ã o do bem
com um da M a io ria M ora l, m as o proble m a d a e xclusão de
grupos historic a m e nte m argin a liz a dos é e nd ê m ico e m re la
ção ao pro je to com unitá rio. C om o observa H irsch, "q u a lq u e rf
're nova ç ã o' ou forta le cim e n to do s e ntim e nto de com unid a d
de n ã o conse guirá na da para estes gru p o s ". P elo c o n trá rio f
nossos s e ntim e ntos e tra diçõe s históric a s são "p a rte do pro
ble m a , n ã o p arte da soluç ã o " (H irsch , 1986: 424).
C onsidere um dos poucos e xe m plos concretos de p o lí
tic a c o m u n itá ria que S andel oferece - a re gula m e nta çã o da
p orn o gra fia ,S a n d e l argum e nta que ta l re g ula m e nta çã o por
um a c o m u n id ade lo c a l é p e rm issiv e ! "s o bre o fu n d a m e n-
to de que a p orn ogra fia ofe nd e seu m o do de v id a " (S andel,
294 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

1984b: 17). Para consid erar quã o e xclusivo este argum e nto
pode ser, contra ste -o com as rece nte s discussões fe m inista s
da porno gra fia . M u ito s grupos de m u lh ere s e xig ira m a re ^t
gulam e ntaçã o da p orno gra fia sobre o fun d a m e nto de que aál
m ulh ere s fora m e xcluídas do proce sso de d e finiç ã o das vi-J
sões tra dicio n a is de se xu alid a d e . A porn o gra fia , a rg u m e n lf
ta m algum a s fe m in ista s , d e se m p e nh a u m p a p e l crític o nã
prom oç ã o da violê ncia co ntra as m ulh ere s e na p erp e tu a^
ção da subordin a ç ã o das m u lh e re s a id é ia s de s e xu a lid a de
e p ap éis de g ê n ero d e fin id o s p e los hom e ns (p o r e xe m plo,
M a ckinn on , 1987: cap. 13-4). Este argum e nto é c o n tro v e rti
do, mas, se a porn o gra fia re a lm e nte d esem penha este p a p e l
na subordin a çã o das m ulh ere s, d e s e m p e nh a -o nã o porqu e
ela "ofe nd e nosso m odo de v id a ", mas justa m e nte porqu e ela
se a justa aos nossos e stere ótipos c u ltura is a re sp e ito da se-
jx u a lid a d e e do p a p e l das m ulh ere s. N a verdad e , com o ob-
iserva M a ckinn on , de um p o n to de vista fe m inista , o pro b le -
fm a com a p orn o gra fia não é o fa to de que ela v io la padrões
id a com unid a de , m as de que ela os reforça .
O argum e nto de S andel está em c o n flito fun d a m e nta l
com este a rgum e nto fe m in ista . O pro ble m a com a vis ã o de
S andel pode ser visto considera ndo a regulam entaçã o da h o
m osse xualida de . A ho m oss e xu a lid ade é " o fe n siv a a o m odo
de v id a " de m u ito s am eric a n os, Na. v e rd a d e , m e d id a p or
qu a lqu er p adrã o pla usív e l, m ais pessoas s e nte m-s e ofendi»*
das p ela hom osse xu alid a d e do que p e la pornografia»: S an
de l, p orta n to , p e rm itiria que com unid a de s loc a is c rim in a li
zassem as rela ções hom osse xuais ou a a firm a çã o p úb lic a da
hom ossexualidade? C aso não p erm ita , o que as distingu e da
pornogra fia ? Para os lib e ra is, a difere nç a é que a hom oss e A
xu a lid a d e n ã o pre judic a os outro s e o fa to de que os o u tro s j
se sinta m o fe ndidos p or ela n ão te m n e n hu m peso m ora l.f
A m a ioria em um a com unid a d e lo c a l (ou n a cion a l) n ã o te m
o d ire ito de im p o r suas pre ferê ncia s e xteriore s no que diz
re sp eito às prá tic a s das pessoas que estão fora do m od o de
vid a d om in a n te (D w ork in , 1985: 353-72; cf. cap. 2, seção 5
a cim a). M a s isso é ju sta m e nte o que S andel n ã o pod e diz er.
O C O M U NIT A RIS M O 295

E m seu argum e nto, os m e m bros de grupos m a rg in a liz a do s


devem a justar suas p erson a lid a d e s e pra tic a s de m odo qué
sejam inofe nsivos para os valores d o rn ih a h fe s lS com tm ld a -
de. N a da no argum ento de S andel dá aos m e mbros de grupos
m a rgin a liz a do s o p od e r de re je ita r a id e n tid a d e que o u
tros d e fin ira m historic a m e n te para eles11.
D a m e sm a m a n eira , n o caso da pornogra fia , S andel não
está a firm a n d o a im p orta n c ia de d ar às m ulh e re s a c a p a ci
dade de re je ita r a visã o m a sculin a da se xualid ad e e de d e fi
n ir sua pró pria s e xu alida de. P elo c o ntrá rio , ele está diz e n d o
que a p orno gra fia pod e ser re gula m e nta d a sempre que um a
vis ã o de s e xu alid a d e de d e fin iç ã o m a sculin a (a dos p orn ó -

d e finiç ã o m a sculin a (o "m o d o de v id a " da com u nid a d e). E


na da g ara nte que os hom e ns que se s e nte m ofe ndido s p e la
porn o gra fia n ã o terã o um a vis ã o dife re nte , m as ig u a lm e nte
opressiva, da sexualidade fe m inin a (por exem plo, a visão fu n
d a m e n ta lists de que a se xualid a d e das m ulh ere s deve ser
m a ntid a e strita m e nte re prim id a). Seja o que fo r que a com u-i
nid a d e re solva d e cidir, as m ulh ere s, com o todos os gru po s
m argin a liz a do s, terã o de ajustar seus obje tivo s p ara que se-J
ja m in o fe n sivo s a u m m o d o de v id a em cuja d e fin iç ã o e la l
tiv e ra m u m p a p e l m e n or ou n e nh u m pa p el. E sta nã o é u m l

11. E m u m a rtig o re c e nte , S a nd el sug ere qu e as le is a m eric a n a s c o n tra a


sodom ía d e v e ria m ser a n ula d a s com base n o fu n d a m e n to d e qu e algum a s re
la çõe s hom oss e xu ais a lm e ja m os m esm os fin s s u b sta n tiv o s qu e c a ra cte riz a m
os c a s a m e ntos h e teross e xu a is, que , tra d ic io n a lm e n te , re c e b era m pro te ç ã o do
S upre m o T rib u n a l (S a nd e l, 1 9 8 9:3 4 4-5). M a s p o r qu e a lib e rd a d e dos h o m o s
s e xuais d e v e ria d e p e n d e r d a busca d os m e sm os o b je tiv o s e a spira çõ e s dos h e
terosse xu ais? M u ito s gru p os de d ire ito s dos gays n e g a ria m qu e eles tê m a
m esm a vis ã o (re s tritiv a ) d e in tim id a d e e s e xu a lid a d e qu e c a ra cte riz a os c a s a l
m e nto s h e teross e xu a is tra d ic io n a is . E se, co m o a rg u m e n to u o S upre m o T r if
b u n a l - e m u m caso re c e nte e m qu e fora m pre s erv a d a s as le is a n ti-s o d o m ia - ,
os d ire ito s dos gays am e aça ssem a s a n tid a d e p e rc e b id a da fa m ília h e tero ss e
xu a l? D e q u a lq u e r m o d o , S a nd e l n ã o e x p lic a com o se u n o v o a rg u m e n to , de
que as le is a n ti-s o d o m ia são in c o n s titu c io n a is , e nc a ix a -s e e m sua a firm a ç ã o
a n te rio r a re s p e ito d a lib e rd a d e da s co m u n id a d e s lo c a is de re g u la m e n ta r a ti
vid a d e s qu e o fe n d a m seu m o d o d e vid a .
296 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O R Â N E A

m a n eira de d e s e nvolv er s e ntim e ntos de le g itim id a d e e ntre


m e m bros de grupos m argin aliz a dos.
O s cpro-xm itirio s gosta m de d iz e r que;a te oria p o lític a
d everia pre star m ais atenção à h istória de cada c u ltura. E n o -
tá vel, poré m , quão rara m e nte os pró prio s com u nitá rios e m
pre end em ta l exam e de nossa cultura . Eles desejam fa z er uso
dos fin s e prá tic a s de nossa tra diç ã o c ultura l com o base para
um a p o lític a do b e m com um , m as n ã o m e ncion a m que es
tas prá tic a s fora m d e finid a s p or u m p e qu e no se gm e nto da
popula ç ã o. Se e xa m inarm os a h is tó ria de nossa socie da d e ,!'
a n e utra lid a d e lib e ra l c erta m e nte terá a gra nde va nta g e m d e i
seu caráter in clu sivo po te ncia l, sua negação de que os gruH|
pos subordin a dos d evam ajustar-s e ao "m o d o de v id a " qu®
fo i d e fin id o pelos grupos d om ina nte s. O s com unitários s im -j
ple sm e nte ig n ora m este p e rig o e a h is tória que o torn a tão
d ifíc il de e vita r12.
S andel co nclui seu liv ro diz e nd o que, qu a ndo a p olític a
v a i bem, "p od e m os conh e c er um b e m e m com um que nã o
pode m os conhec er so zinhos " (S andel, 1982:183). M as, dada
a div ersid a d e das sociedades m od ern a s, deveríam os, ao in
vés, diz er que a polític a v a i bem justa m e nte qua ndo n ão a do
ta um a id e olo g ia do "b e m c om um " que só pod e s e rvir p ara
e x cluir m u ito s grupos. A u m e n ta r o n ív e l de le g itim id a d e do
E stado pod e m u ito b e m e xig ir m a ior p articip a ç ã o cívica de
todos os grupos da sociedade, m as, com o observa D w o rkin ,
só fa z s e ntido convid ar as pessoas a p a rticip a r da p olític a (ou
que as pessoas a ceite m este convite) se elas fore m tra ta d a s

12. S obre as te n d ê n cia s e xclusiv a s d o c o m u n ita ris m o , v e r G u tm a n n


(1985: 31 8-22); H e rz o g (1986: 48 1-9 0); H irs c h (1986: 4 3 5-8); R os e nblum
(1987: 178-81). A rg u m e n te i em o u tra p a rte que m u ita s d estas consid era çõ e s
ta m b é m a rg u m e n ta m c o n tra form a s n ã o c o m u n itá ria s de in te rv e n ç ã o p e rfe c
c io n is ta n o m e rc a d o c u ltu ra l. M e sm o q u a n d o n ã o a lm e ja d e lib e ra d a m e n te
jro m o v e r o m o d o d e v id a d a c o m u nid a d e , o p e rfe c cio n is m o e sta ta l te n d e ria a
iis to rc e r a liv re a v a lia ç ã o dos m od o s de v id a , a e nrije c e r os m od os de v id a d o -
n in a n te s , in d e p e n d e n te m e nte d e seus m é rito s in trín s e c o s , e a e x c lu ir in ju s ta -
n e n te os v a lore s e a spira çõ e s d e gru p o s m a rg in a liz a d o s e d e sfa vore cidos
d e ntro de noss a socie d a de (K y m lic k a , 1989b: 900-2).
o C0 M U NIT A R 1S M0 297

com o igu a is (D w ork in , 1983: 33). E isso é in c o m p a tív e l com


a*3 efiniçã o das pessoas em funç ã o de p ap éis que elas não
m old aram n em endossaram. A le gitim id a d e não será a d qu i
rid a forta le c e ndo prá tica s com unais que fora m d e finid a s p or
outros e para outros. Será nece ssário d ar p od er aos o p rim i
dos p ara que d e fin a m seus pró p rio s o bje tivo s. O lib e ra lis
m o pod e n ã o fa z er o suficie nte neste aspecto, mas, com o diz
H erzog, se o lib e ra lis m o é o proble m a , com o o co m u nita ris-
m o pod e ser a solução? (H erz og, 1986: 484).
Se a p o lític a lib e ra l re a lm e nte suste ntaria um senso de
le g itim id a d e p u blic a é -d ifíc il d e term in ar, já que os„pxm a pios
lib e ra is co n tin u a m a ser a d e qu a d a m e nte im p le m e n ta do s.
“ C re io, poré m , que a n e u tra lid a d e lib e ra l é o p rin c íp io com
m ais prob a bilid a d e de assegurar o a sse ntim e nto p ú blico em
sociedades com o a nossa, que são div ersific a d a s e h is toric a
m e nte e xclusivas. É im pro v á v e l que c o nvid a r as pessoas a
p a rticip a r da polític a com .has a em qu a lqu er outra cox a pre e n-
„são4e nha sucesso. C om o disse M ill, u m s e ntim e nto de com
pro m isso com um a filo s o fia p ú blic a com um é um a pre co n-
diç ã o de um a c u ltura livre , e a "ú n ic a form a e m que esse
s e n tim e n to te m pro b a b ilid a d e de e x is tir d a q u i em d ia n te "
é u m apego aos "princíp io s da lib erd ade in d ivid u a l e da ig u a l
dade p olític a e social, como concretiz ad a em instituiçõ e s que,
até o m om e nto, n ão existem em n e n h um lu g a r ou que exis
te m apenas em estado ru d im e n ta r" (M ill, 1962:122 3). Estes
prin c íp io s co ntin u a m , em boa p arte , nã o concre tiz a dos na
prática , mas são, m ais do que nunca , a única base viá v e l para
a le g itim id a d e p úb lic a 13.

13. R a w ls c ita a n e c e ssid a d e d e le g itim id a d e p ú b lic a co m o fu n d a m e n


to a n te s p a ra s u ste n ta r a n e u tra lid a d e q u e p a ra o p o r-s e a e la . E le a firm a qu e
o p e rfe c c io n is m o a m e aça o cons e nso p ú b lic o p o rq u e as p e ssoas n ã o a c e ita
rã o a le g itim id a d e da s p o lític a s do E sta do b a se ad a s e m u m a con c e pç ã o do
b e m qu e ela s n ã o c o m p a rtilh a m . R a w ls p a re c e p e n s a r qu e isso s erá v e rd a
d e iro p a ra q u a lq u e r socie d a d e e m qu e os cid a d ã o s e ste ja m d iv id id o s p o r
conc e pçõ e s c o n flita n te s do b e m . E xpre ssa d a n e ste n ív e l g e ra l, a a firm a ç ã o de
R a w ls é c e rta m e n te fa ls a . C om o d e m o n s tra R a z, é jjo s s ív e l q u e as pessoas
298 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O RÂ N E A

O s co m u n itá rio s estão certos ao e n fa tiz a r a im p o rtâ n


cia da tese social e, p o rta n to , a im p ortâ n c ia de um co nte x
to social s e guro para o e xercício de nossas capa cida des de
escolha. E estã o c ertos ao a firm a r que isso, p or sua ve z, e n
volv e a necessida de de p articip a ç ã o cívic a e le g itim id a d e
polític a . Todas estas são de im p ortâ n cia in q u e stion á v e l. M as
é ju sta m e n te este o pro ble m a . N in g u é m qu e stion a sua im -

Í
>ortância. O s lib e ra is e os c o m u n itá rio s discord a m , nã o
[u a nto à tese social, mas qu a n to ao p a p e l a de qu a do do E s-
ado. O p a p e l do E stado é prote g er " a livre vid a in te rn a das
vária s com unid a de s d e in te re ss e s nas qu ais pessoas e g ru -’
p o s buscam alc a nç ar p ara os qu a is
são a tra íd o s " (R awls, 1971:543) ou ta m b é m deve ser a pro-
pria r-s e p a rcia lm e nte d esta vid a social, im p o n d o um a h ie
rarquiz a ç ã o p úb lic a dos fin s e excelências para os quais eles
são atraídos? Para s im p lific a r (em excesso), os lib e ra is e co
m u n itá rio s discord a m , n ã o q u a nto à d e p e nd ê ncia do in
d ivídu o p era nte a sociedade, mas qu a nto à d epe nd ê ncia da
socieda de p era n te o E stado. É u m de bate im p o rta n te , mas
não é um deb ate e ntre os que a c eita m e os que n ã o a ceita m
a tese social. N a verda d e , são v ários debates, e cada u m deT*
les deve ndo ser considera do p or si só e re qu ere ndo m ais ar-fj
gum e nta ç ã o e m píric a do que q u a lq u e r dos la dos se s e n tiúj
disp osto a forn e c e r14. !

com fin s confl_ita rü& a c Q ncord e nu ,n ã Q ,9b5 ia n tg , co m u m p rocesso p a ra ch e


g a r a u m a h ie ra rq u iz a ç ã o p ú b lic a d o v a lo r dos d ife re n te s m o d o s .(fe y jd a OM..
ta lv e z , à c ê ífè m u m ã lú ê rS fq u ^^ co m a q u a l discord a m ,,
m as a q u a l, n ã o o b s ta n te , v ê e m cqm o u m a s e gund a m e lh o r o p in iã o d e p a is
d a ju a u tra lid a d e (R a z, 1 9 8 6:1 2 6 -3 2). N ã o h á n e n h u m a lig a ç ã o in e re n te e ntre
n e u tra lid a d e e le g itim id a d e do E sta do. C o n tu d o , os tip o s de fin s c o n flita n te s
na s d e m o cra cia s m o d e rn a s , e a h is tó ria su b ja c e nte a e la s, sã o ta is qu e o p e r
fe c c io n is m o d a v a rie d a d e c o m u n itá ria c e rta m e n te é u m a a m e a ça à le g itim i
da de d o E sta do .
14. P ara te n ta tiv a s ú te is de d e co m p or o d e b a te e m qu e stõ e s e m p íric a s
d ife re n te s , v e r B u ch a n a n (1989) e W a lz e r (1990). P a ra u m a te n ta tiv a filo s o
fic a m e n te in fo rm a d a d e fo rn e c e r a p o io e m p íric o à p o siç ã o c o m u n itá ria , v e r
B e lla h et a í (1985); m as cf. M a c e do (1988); S to u t (1986).
O C O M U NITA R1SM O 299
,/
/ 5. A p o lític a d o c o m u n ita ris m o

A te oria co m u nitá ria de um a p o lític a do bem com um


origin a-s e de a lgum a s pre ocupaçõe s prá tic a s im p orta nte s.
E nqu a nto a te oria lib e ra l pod e re conh e c er a d ep e nd ê ncia
da escolha in d iv id u a l e m relação ao conte xto c u ltura l, os l i
berais, na prá tic a , conc e ntrara m seu intere sse na lib e rd a d e
in d iv id u a l de escolha p ara n e glig e nciar o acesso das pessoas
à cultura . O rganiz ações lib era is como a U niã o A m e ric a n a de
Lib erd a d e s C ivis pre ocup aram -se com as ame aças ao d ir e i
to de livre discurso, com o re striçõ e s à lite ra tu ra de ó dio e a
m a teria l obsceno. C erta m ente , poré m , o fa to de que de z p or
ce nto dos a dultos são ana lfa be tos fu n cion a is é um a ameaça
m ais séria p ara a p articip a ç ã o livre no m erca do c u ltura l do
que as re striçõ e s à obsce nida d e . E o fa to de que a p ro p rie
dade dos m e ios de com unica çã o é tã o conc e ntra d a que v á
rios pon tos de vista são siste m a tica m ente sile ncia dos é um a
ame aça m ais séria à livre troc a de inform a çõ e s do que re s
triçõ e s à lite ra tura de ó dio. O s lib e ra is m u ita s ve z es op e ra-l
ra m com priorid a d e s confusas na área da cultura . j
D adas estas omissões em assegurar que tod os te nh a m
acesso sig n ific a tivo às conquistas cultura is e deliberaçõ es co
le tiv a s d a com unid a d e , o de sejo c o m u n itá rio de cria r um a
lin g u a g e m e um a prá tic a de p o lític a do b e m com um é com
pre e nsíve l. In fe liz m e n te , ta l ling u a g e m e t a l prá tic a são, na
m e lh or das hipóte ses, irrele v a nte s p a ri às rn õ d im ã s^ ê m o ^
eradas e, na p io r das hipóte se s, in to le ra n te s . N a verd a d e,
ta n to os lib e ra is com o os co m u nitá rios ign ora ra m as qu e s
tões re ais e nvolvid a s n a criação das condiçõe s cu ltura is para
a a utod e term in a ç ã o.
C onsidere a questão da língu a . T anto com unitários como
lib e ra is opera m , im p líc ita ou e xplícita m e nte , com o pre ssu
p osto de que todos os E stados são " E sta dos-n a çõ e s " - que
toda s as pessoas, em cada país, co m p a rtilh a m a m esm a n a
cion alid a d e e, p orta nto , fala m a m esm a líng u a e pod e m p a r
tic ip a r de u m d eb a te s ig n ific a tiv o sobre a cu ltura . E m sua
m a ioria , p oré m , os países são E stados m u ltin a c io n a is que
300 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O RÂ N E A

contê m duas ou m ais com unid a d e s lin g üístic a s. N o C an a-


| dá, p or e xe m plo, há o francê s e o in glê s, alé m das língu as
|n a tiv a s conservadas p elas com unid a de s de índ ios e e squi-
j mós. D e vem os te n ta r cria r a hom og e n eid a de lin g ü ístic a no
interess e da igu a ld a de lib e ra l ou do b e m com um co m u nitá
rio? A lg u n s lib e ra is e co m u nitá rio s supuseram que este era
o o bje tivo e d efe nd era m program a s de assimila çã o das m i-
nonas lin g ü ís tic as. O utros, poré m , opusera m-se à a ssim ila
ção com o a lgo p a te nte m e nte in ju s to (p or que os franceses
ou os índ io s d e v eria m ser a ssimila dos p ela lín gu a ingle sa ,
espe cialm e nte se fo r le v a do em conta qu e chegaram lá a n
tes dos inglese s?). M as, se p e rm itim o s que e xistam cultura s
m in oritá ria s , que d ire ito s elas tê m no que diz re sp e ito a sua
língu a ? T anto a popula ç ã o de lín g u a fra nce sa qu a nto os in
dígenas do C anadá possue m d ire ito s especiais d e stin a dos a
prote g e r suas cultura s d istin ta s - p or e xem plo,_o d ire ito à
educação p úb lic a em sua pró pria lín gu a e o d ire ito de usar
sua língu a no tra to com o governo e os tribu n a is. A lé m disso,
eles tê m o pod e r de im p o r re striçõ e s aos d ire ito s de líng u a
de in d ivíd u o s n ão fra ncófono s e n ã o indíg e n a s que se des
lo q u e m em suas terra s. T am bém e xiste m d ire ito s e/ou in s ti
tuiçõ e s separadas p ara os grupos lin g ü ístic o s m in o ritá rio s
dos E stados U n id o s (p or e x e m plo, p o rto -riq u e n h o s e in
díg e na s), p ara as popula çõ e s a boríg e n e s da A u s trá lia e da
N o v a Z e lâ n d ia e para os grupos lin g ü ístic o s m in o ritá rio s
da B élgica, Suíça e m a ior p arte dos países d o S egundo e do
T erceiro m undos.
E m todos estes países, a questão de q u a l lín gu a deve
ser usada p e lo E stado nas escolas, trib u n a is e burocra cia s é
um a questão im p orta n te e que causa divisõ es. N a verdad e,
esta questão fo i fo n te p rim o rd ia l de c o n flito em m uito s
destes países. N ã o obsta nte , é em vã o qu e procuram os
um a únic a discussão da questã o e ntre lib e ra is e c om unitá rios
conte m porâ n e os. E les d e b a te m qu a l p a p e l o E stado deve
d e s e m p e nh a r na prom oç ã o de "su a c u ltu ra " e no e n ri
qu e cim e nto de "su a lin g u a " (p or e xe m plo, D w ork in , 1985:
230-3; S ulliv a n, 1982: 173), mas nunca p ergunta m a cultura
o C O M U N IT A RIS M O 301

de quem e qual língu a . D e ba te m se as escolas devem p ro


m over concepções específicas do bem , m as nã o p ergunta m
que língu a as escolas dev eria m usar. Se começassem a fa z er
estas p ergunta s básicas, boa p arte do que passa p or sabe
doria leg ada q u a nto à relação e ntre E stado e c ultura lo g o se
to m a ria o bsole ta . N a verd a d e , a rg u m e n te i em o u tra oca
sião qu e boa p arte d a sa b e doria leg ada n o que se refere ao
sig nific a do de d ire ito s igu ais e a ntkliscrim in a ç ã o ta m bé m
deve ser a ba ndon a d a nos E stados m u ltin a cio n a is 15. O fa to é
que não sabemos n e m o que a n e utra lid a d e lib e ra l n e m o
que cTEèm com um c õ fio im tá rio e xige m nos E stados m u lti
n a cio n a is .,E ste ta lv e z seja o e x e m plo m a is oste nsivo dé
com o a ênfase c o m u n itá ria n a tese socia l to m o u-s e d es
vin c ula d a de q u a lq u e r exam e e fe tivo das lig a çõ e s e ntre o
in d iv íd u o , a cu ltura e o E stado.

15. A suposiç ã o de qu e a co m u n id a d e p o lític a é c u ltu ra lm e n te h o m o


gê n e a está pre s e n te e m m u ita s pa ssa ge ns e m R a w ls e D w o rk in (R a w ls, 1978:
55; D w o rk in , 1985: 2 3 0-3). E m b ora a re vis ã o d e sta s uposiç ã o pud esse afe
as co nclusõ e s qu e d e p ois e xtra e m a re sp e ito dos d ire ito s da s pessoas, R a w ls í
D w o rk in n u n c a d is c u te m qu e m ud a nç a s s e ria m n e c e ss ária s e m pa íse s c u ltu -’
ra ím e n te p lu ra lis ta s . N a v e rd a d e , p are c e m n ã o re c o n h e c e r qu e q u a isq u e
m ud a nç a s s e ria m e xigid a s. F orn e ço u m a te o ria lib e ra l dos d ire ito s de c ultura l
m in o ritá ria s e m K y m lic k a (1989a: caps. 7-1 0); cf. V a n D y k e (1975).
I

J
I

I
?

I
'
f-
I
1
7. O fe m in is m o

A te oria p olític a fe m inista é e xtrem am e nte diversa , ta n


to nas pre missa s com o nas conclusõe s. E m c erto gra u, isso
ta m b é m é v e rd a d e iro para as outra s te oria s que e x a m in e i.
J .§ ta .d iy e is id a d e .,p o ré m ,é m u k ip lic a d a d e n tro d o fe m in is
m o, p ois cada u m a de stas outra s te oria s está re pre s e nta d a
d e n tro do fe m in is m o . A ssim , te m os o fe m in is m o lib e ra l, o
ie m in is m o so cia lista e até m esm o 0 fe m in is m o lib e rtá rio .
A lé m disso, h á u m m o vim e n to s ig n ific a tiv o d e n tro do fe
m in is m o ru m o a form a s de te oriz a ç ã o , com o a te o ria p s i-
c a n a lític a ou a p ó s-e s tru tura l, que se e n co ntra m fora da
corre nte do m in a nte da filo s o fia p olític a a nglo-s a xônic a . A li
son Jaggar d iz que ucncomproiT H S S ocie e lim in a i a s u b or
din a ç ã o das m u lh ere s u n ific a as diversa s corre nte s da te o-
jj£ Ê n ü n S ã Ã (J a ^ a r/ 1983: 5). M a s (com o observa Jaggar)
esta con cord â ncia lo g o se dissolv e em descriçõ es ra d ic a l
m e nte difere nte s desta subordin a ç ã o e das m e did a s re qu e
rid a s para que seja e lim in a d a .
S eria pre ciso u m liv ro separado p ara d is c u tir cada um a
destas corrente s da te oria fe m in ista 1. E m ve z disso, vou me
conc e ntrar em trê s crítica s fe m inista s sobre a m a n eira com o
à ^te õ n âs põlític a s dom in a nte s atende m , ou deixam de a te n-

1, j? a ra in tro d u ç õ e s a estas div ers a s corre n te s d o p e ns a m e nto fe m in is ta ,


v e r Jagg ar (1983); N y e (1988); Ç h a rv e t (1982); T o n g (1989).
304 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O R Â N E A

der, aos interesses e preocupações das m ulheres. A rgum e nte i


que um a m plo le qu e de te oria s p olític a s conte m porâ n e a s
com p a rtilh a m um "p la tô ig u a litá rio " , u m com prom isso com
a id é ia de que to d o s os m e m bros da co m u nid a d e deve m
ser tra ta do s com o igu ais. C o n tud o , até b e m re c e nte m e nte i
a m a ior p arte da filo s o fia p o lític a d om in a nte defe nd e u o u i
p elo m enos, a ceitou a discrim in a çã o sexual. E, em bora as v i-!
sões tra dicio n a is a re sp e ito da discrim in a ç ã o sexual te nh a m
sido progressiva m e nte abandonadas, m uita s fe m inista s acre-
d ita m que os prin c ípio s , q u e fora m d e s e n volvido s-e o a u a
e xp eriê ncia e os interesse sjdqs hom ens e m _m e nte^ã a in£ â -
paz es de re conh e c e r a de qu a d a m e nte as n e cessidades das
m ulh ere s o u de in c orp ora r as e xp eriê ncia s das m ulh ere s.
'C o n sid e ra re i trê s destes argum e ntos. O p rim e iro conc e n
tra se na descrição da discrim in a ç ã o sexual "n e u tra qu a nto
ao g ê n e ro "; o se gundo conc e ntrars e na distinç ã o p ú b lic o -
priv a d o . E stes dois arg um e ntos a firm a m qu e a sp ectos im
porta nte s da concepção líb e ra l-d è m o crã fiç llê m pre d isposi
ção m a sculin a . O terc e iro a rgum e nto, p o r o u tro la do, a firm a
que a p ró p ria , ê nfase na ju stiç a .re fk ta .u m a .p x e d is p o siç ã o
m a s culin a e que qu a lqu e r te oria re c e p tiv a aos in te re s ses e
e xperiê ncias das m ulh ere s s u bs titu irá a ênfase na justiç a p or
um a ênfase no cuidado. Estes três argum e ntos oferecem ape
nas um a id é ia lim ita d a do â m bito da te oria fe m in ista rec e n
te, mas suscitam questões im p orta nte s que qu a lqu er d e scri
ção da igu a ld a d e sexual deve e nfre ntar, e re pre s e nta m trê s
dos ponto s de c o nta to m ais suste nta dos e ntre o fe m in ism o
e a filo s o fia p o lític a d om in a nte . 1

1. A ig u a ld a d e s e x u a l e a d is crim in a ç ã o

A té bo a p a rte do sé culo passado, a m a ior p arte dos


te óricos hom e ns, de todos os p on tos do espe ctro p o lític o ,
a ceitava m a crença de que h a via um "fu n d a m e nto n a n a tu
re z a " p ara o c o n fin a m e nto das m ulh ere s à fa m ília e p ara a
"suje iç ã o le g a l e costum eira das m ulh ere s aos seus m a ri-
o F E M INIS M O 305

dos" na fa m ilia (O kin , 1979: 200)2. D izia-s e que as restriçõ


aos dire itos civis e políticos das m ulheres eram justific a d
p elo fa to de que as m ulh ere s, p o r n a ture z a, era m in a p t
para a tivid a d e s p olític a s e e conôm icas fora do larv O s teói_
cos conte m porâ n e os a ba ndon aram progressiv a m e nte esta
suposição de in fe riorid a d e n a tura l das m ulheres. A ce itara m
que as m ulheres, como os hom e ns, d evem ser vista s com o
"seres livre s e igu a is ", capazes de a utod e term in a ç ã o e de
senso de ju stiç a e, p orta n to , livre s p ara e n tra r no d o m ín io
p ú blic o . E as d em ocracia s lib e ra is a dotara m progre ssiv a -',
m e nte e sta tutos a ntid is crim in a ç ã o com o o b je tivo de a s s e -1
gurar que as m ulh ere s te n h a m ig u a l acesso à educação, ao j
e m prego, ao cargo p ú b lic o etc.
E stes e sta tutos a n tid iscrim in a ç ã o , poré m , n ã o p ro p i
ciaram a igu a ld a d e sexual. N os E stados U nido s e no C a na
dá, está a um e nta ndo a extensão da segregação de tra b a lho
nas ocupações com p a g a m e ntos m enore s. N a verd ad e , se
as presentes te nd ência s continu are m , tod as as pessoas a b a i
xo d a lin h a da pobre z a nos E stados U n id o s n o ano 2000 se-

2. A o a c e ita r esta vis ã o v ig e n te de qu e h á " u irifu n d a m e n to m N a tu r e -


z a " p ara qu e o m a rid o com a nd e " p orq u e é o m a is ca p a z e o m a is fo rte " (L o c
k e , in O k in , 1979: 200), os lib e ra is clá ssicos cria ra m u m s é ria c o ntra diç ã o p ara
si. P ois eles ta m b é m , a rg u m e n ta ra m qu e to d o s os seres h u m a n o s são ig u a is
p o r n a ture z a , qu e a n a ture z a n ã o forn e c e n e n h u m fu n d a m e n to p a ra um a d e
sig u a ld a d e de d ire ito s , E sta, com o vim o s , era a id é ia c e n tra l de suas te oria s do
e sta do de n a ture z a (cap. 3, seção 3 a cim a). P or qu e o su p osto fa to de qu e os
ho m e n s são "m a is capa z es e m a is fo rte s " de ve ju s tific a r d ire ito s d e sigu a is
p ara as m ulh e re s q u a n d o , co m o o p ró p rio Lo c k e d iz , "d ife re n ç a s n a e xc e lê n
cia o u ca p a cid a d e das p a rte s " n ã o ju s tific a m d ire ito s d e sigu a is? N ã o ,po d e m o s
su ste n ta r s im ulta n e a m e nte a ig u a ld a d e e n tre os h o m e ns com o classe, so bre o
fu n d a m e n fó ^ ê 'q ü ê "3 ife re n ç a s de ca p a cid a d e n ã o ju s tific a m d ire ito s d ife re n
tes, e 'é c c fiffilS 'fliÜ lR K ^ C o fiK » * classe, sobre o fu n d a m e n to de qu e sã o m e nos
capa z es. §e as m ulh e re s são e xcluíd a s sobre o fu n d a m e n to de qu e a m u lh e r
m é d ia é m e no s capa z d o qu e o h o m e m m é d io , e ntã o , to d o s os h om e n s que
são m e no s capa z es d o que o h om e m m é d io ta m b é m d e ve m ser e xcluídos.
C om o d iz O k in , "p a ra qu e a base d o seu in d iv id u a lis m o fosse firm e , ele p re c i
s a ria a rg u m e n ta r qu e m u lh e re s in d iv id u a is e ra m ig u a is a h o m e n s in d iv i
d u a is, a ssim com o h o m e n s m a is fra co s era m ig u a is a h om e n s m a is fo rte s "
( O k in , 1 9 7 9:1 99).
306 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

rã o m u lh e re s o u cria nç a s (W e itz m a n , 1 9 8 5:3 50). A lé m disso,


a v io lê n c ia d o m é s tic a e a a gre ss ã o s e xu a l .estão a u m e n ta n -
fio , a ssim co m o o u tra s form a s d e v io lê n c ia e d e gra d a çã o d i
rig id a s às m u lh e re s . C a th e rin e M a c k in n o n re su m e s e u le
v a n ta m e n to dos e fe ito s d os d ire ito s ig u a is nos E sta dos U n i
dos d iz e n d o qu e " a le i d e ig u a ld a d e s e xu a l fo i in te ira m e n te
in e fic a z n o q u e d iz re s p e ito a c o n s e g u ir p a ra as m u lh e re s
a q u ilo d e q u e pre cis a m o s e q u e so m o s s o c ia lm e n te im p e
did a s d e te r com base e m u m a co n diç ã o de n a scim e n to: u m a
ch a n c e d e v id a p ro d u tiv a co m ra z o á v e l s e g ura n ç a físic a ,
a u to -e x p re s s ã o , in d iv id u a ç ã o e u m m ín im o d e re s p e ito e
d ig n id a d e " (M a c k in n o n , 1987: 32).
P or qu e isso? A d is crim in a ç ã o s e xu a l, co m o co lm a m e n
te in te rp re ta d a , e n volv e o ú so a rb itrá rio o u irra c io n a l d o g ê
n e ro n a conc ess ã o d e b e n e fício s o u posiçõ es'. S e g un d o e sta
vis ã o, as fo rm a s m a is o ste nsiv a s d e d is crim in a ç ã o sexu a l são
a qu e la s, p o r e x e m plo , e m q u e a lg u é m se re cu s a a e m pre g a r
u m a m u lh e r, a p e sar d e o g ê n e ro n ã o te r. n e n h u m a .re la ç ã o
ra c io n a l co m a ta re fa a s er e xe cuta d a . M a c k in n o n ch a m a isso
d e " a b ord a g e m d ife re n c ia d a " d a d is crim in a ç ã o s e xu a l, p o is
v ê co m o d is c rim in a tó rio o tra ta m e n to d e sig u a l qu e n ã o p o d e
s er ju s tific a d o p o r re fe rê n cia a a lg u m a d ife re n ç a se xu a l.
A le i d e dis crim in a ç ã o s e xu a l d e ste tip o fo i m o d e la d a
c o m b a se n a le i d e d is crim in a ç ã o r a c ia l/ E , a ssim c o m o a
le g is la ç ã o d e ig u a ld a d e ra c ia l a lm e ja u m a so cie d a d e " c e g a
p a ra a c o r " , a le i d e ig u a ld a d e s e xu a l a lm e ja u m a so cie d a
d e cega p a ra o se xo. U m a so cie d a d e s e ria n ã o d is c rim in a -
d ora se a ra ç a e o g ê n e ro n u n c a e n tra ss e m n a conc e ssã o d e
b e n e fício s. N a tu ra lm e n te , e m bora seja con c e b ívpl q u e as d e
cisõ e s p o lític a s e e c o n ô m ic a s p o ss a m d e s c o n s id e ra r in t e i
ra m e n te a ra c a , é d if íc il p e rc e b e r c o m o u m a so cie d a d e p o
d e ria s e rin te ira m e n te cega p ara o sexo. U m a socie d a d e q u e
pro v ê a u x flio -m a te m id a d e o u e sp orte s s e xu a lm e nte se gre
g a d o s e stá le v a n d o o se xo e m c o n ta , m a s isso n ã o p are c e
in ju s to . E , e m b ora b a n h e iro s ra c ia lm e n te s e gre g a d o s s e
ja m cla ra m e n te d is c rim in a tó rio s , a m a io ria d as p e sso as n ã o
s e nte o m e sm o a re s p e ito d e b a n h e iro s s e xu a lm e nte s e gre -
o fe m in is m o 307

gados. P orta n to , a fs B ^ d a ^ e ia d if e r e n c ia d a ) a c e ita q u e h á


casos le g ítim o s d e tra ta m e n to d ife re n c ia l d os s e xosi E ste s
n a o sao d is c rim in a tó rio s , p oré m , n a m e d id a e m qu e h a ja
um a d ife re n ç a s e xu a l g e n u ín a qu e e x p liq u e e ju s tifiq u e o
tra ta m e n to dife re n c ia l. O s op on e nte s dos d ire ito s ig u a is p ara
as m u lh e re s m u ita s ve z e s in vo c a ra m o e s p e ctro dos e s p or
tes (ou b a n h e iro s) s e xu a lm e n te in te g ra d o s com o in d íc io de
que a ig u a ld a d e s e xu al é m a l o rie n ta d a . M a s os d e fe nsore s
d a a b ord a g e m d a d ife re n ç a re s p o n d e m q u e os casos d e d i
fere ncia ç ã o le g ítim a são s u fic ie n te m e n te ra ro s e os casos d e
dife re n cia ç ã o a rb itrá ria tã o com u ns qu e o ô n us da prov a re
cai sobre òs qu e a firm a m qu e o sexo é fu n d a m e n to re le v a n te
p ara a a trib u iç ã o d e b e n e fício s o u posiçõ e s..
Essa a bord a g e m da dife re nç a , co m o a in te rpre ta ç ã o-p a -
drã o d a le i de ig u a ld a d e s e xual na m a io ria dos países o c id e n
ta is , te v e a lg u n s sucessos. S eu " im p u ls o m o ra l" é " c o n f e rir
às m u lh e re s ace sso à q u iia a qu e os h o m e n s tê m a c e sso " e
re a lrn e n le "c o n s e g u iu q u e as m u lh e re s tiv e ss e m c e rto aces
so a o e m pre g p e à e duca çã o, às ocup a çõ e s p ú b lic a s - in c lu
sive com o a c a d ê m ica s, p ro fis s io n a is , lib e ra is e o p e rá ria s - f à
c a rre ira m ilit a r e a c e sso m a is qu e triv ia l a o a tle tis m o " (M a c
k in n o n , 1987: 33, 35). A a b ord a g e m d ife re n c ia d a a ju d o u a
c ria r a cesso o u c o m p e tiç ã o n e u tro s q u a n to a o g ê n e ro com
re la ç ã o a b e n e fício s socia is e cargos.
S eus sucessos sã o lim ita d o s , p o ré m , p o is e la ig n o ra
as d e sig u a ld a d e s d e g ê n e r a e m b u tid a s n a p ró p ria d e fin i
ção d e ste s c a rg o s. A a b ord a g e m d a d ife re n ç a v ê a ig u a l
d a d e dos se xos e m fu n ç ã o d a c a p a cid a d e d a s m u lh e re s de
c o m p e tir, sob re gra s n e u tra s q u a n to a o g ê n e ro , p e lo s p a
p é is qu e os h o m e n s d e fin ira m . A ig u a ld a d e , p oré m , n ã o
p o d e s er a lc a nç a d a p e rm itin d o qu e os h o m e n s c o n s tru a m
in s titu iç õ e s s ocia is s e gu nd o seus inte re ss e s e, d e p ois , ig n o
ra n d o o g ê n e ro dos c a n d id a to s ao d e c id ir qu e m pre e nc h e
os p a p é is n e sta s in s titu iç õ e s . O p ro b le m a é q u e os p a p é is
p o d e m s er d e fin id o s de m a n e ira qu e fa ç a m co m qu e os h o
m e n s s e ja m m a is a d e q u a dos a ele s, m e sm o n a c o m p e tiç ã o
n e u tra q u a n to ao g ê n ero .
308 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O RÂ N E A

C onsid e re o fa to d e qu e a m ai o ria dos tra b a lh o s " e xig e m


qu e a pe sso a , n e u tra q u a n to ao g é n e ro , qu e e ste ja q u a lifi
cada p ara ele s seja a lg u é m qu e n ã o é o g u a rd iã o p rim á rio de
u m a cria n ç a em id a d e p ré -e s c o la r" (M a c k in n o n , 1987: 37).
D a d o qu e a in d a se e spera qu e as m ulh e re s to m e m c o n ta dos
filh o s em nossa socie dad e , os hom e ns te n d e rã o a se s a ir m e
lh o r do qu e as m u lh e re s ao c o m p e tir p o r ta is tra b a lh o s . Isso
n ã o a conte c e p orq u e h a ja d is crim in a ç ã o c o n tra as m u lh e re s
c a n did a ta s . O s e m pre g a d ore s p o d e m n ã o d a r a te n ç ã o ao
g é n e ro dos c a n did a to s o u p o d e m , n a v e rd a d e , d e s e ja r c o n
tra ta r m a is m ulh e re s. O pro ble m a é qu e m u ita s m u lh e re s c a
re c e m de q u a lific a ç ã o re le v a n te p a ra o tra b a lh o - is to é, se
re m livre s de re s p o n s a b ilid a d e s p e lo c u id a d o dos filh o s. H á
n e u tra lid a d e q u a n to ao gê n e ro n o fa to de qu e os e m pre g a
dore s n ã o a te n ta m p a ra o g ê n e ro do s c a n d id a to s , m a s n ã o
há. ig u a ld a d e s e xu a l, p o is o tra b a lh o fo i d e fin id o sob o pre s
s u p o s to de q u e s e ria pre e n c h id o p o r h o m e n s qu e tiv e ss e m
m u lh e re s e m casa, c u id a n d o dos filh o s . A a b ord a g e m d ife
re n c ia d a in s is te e m q u e o g ê n e ro n ã o d e ve s er le v a d o e m
c o n ta a o d e c id ir qu e m de ve te r acesso ao c a rgo, m as ig n o ra
o fa to " d e qu e o d ia u m n o proce sso de le v a r e m c o n ta o sexo
fo i o d ia e m qu e as fun çõ e s d o c argo fora m e strutura d a s com
a e xp e cta tiv a de qu e seu o c u p a n te n ã o te ria re s p o n s a b ilid a
des p e lo cu id a d o dos filh o s " (M a c k in n o n , 1987: 37).
O q u e d e term in a-se a n e utra lid a d e q u a nto ao sexo gera ou
n ã o ig u a ld a d e se xu al é o fa to de o sexo te r sid o a n te rio rm e n
te le v a d o e m co n ta ou nã o. C om o d iz Jan et R a d cliffe R ich ard)

se um gru po é m a ntid o fora de a lgo p or u m p e ríod o su ficie n


te m e nte lo n go , é ava ssala dora m ente pro v á v e l que as a tiv id a
des de ste tip o se d es e nvolv a m de m a n e ira in a d e qu a d a para
o gru p o e xcluído . S abem os com certe z a qu e as m ulh e re s fo
ra m m a ntid a s fora de m u ito s tip o s de tra b a lh o e isso sig nific a
que é b e m prov á v e l que o tra b a lh o seja in a d e qu a do p ara elas.
O e x e m plo m a is ó bvio disso é a in c o m p a tib ilid a d e da m a ior
p arte dos tra b a lh o s com o p a rto e a cria ção dos filh o s; e stou
firm e m e n te co nv e ncid a de que se as m ulh e re s e stiv e ss e m
ple n a m e nte e nvolvid a s n a a dm inistra ç ã o d a socie d ade d es-
o F E M IN IS M O 309

de o in íc io elas te ria m encontrado um a m a ne ira de ord e n ar tra


b a lho e filh o s de m a n eira que se ajusta ssem m utu a m e nte .
O s h om e ns n ão tiv e ra m ta is m otiv açõ es e pod em os v er os re
sulta dos (R a dcliffe R ichards, 1 980:1 13-4).

Essa in c o m p a tib ilid a d e que os ho m e n s o rig in a ra m e ntre


a cria ç ã o dos filh o s e o tra b a lh o re m u n e ra d o te m re su lta d o s
p ro fu n d a m e n te d e sig u a is p ara as .m ulh e re s. O re s u lta d o é
n ã o ap e n a s qu e as p osiçõ e s m a is v a lo riz a d a s da socie d a d e
são ocu p a d a s p o r h o m e n s , e n q u a n to as m u lh e re s e n c o n -
tra m -s e d e s pro p o rc io n a lm e n te con c e ntra d a s n o tra b a lh o de
m e io p e río d o e co m s a lá rio m a is b a ix o , m a s ta m b é m qu e
rrtu ita s m u lh e re s torn a m -s e e c o n o m ic a m e n te d e p e n d e nte s
dos.hom e n s. Q u a n d o a m a io r p a rte d a "re n d a fa m ilia r " v e m
do tra b a lh o re m un e ra d o dp h o m e m , a m u lh e r, qu e fa z o tra -
b a lh o do m é stic o n ã o re m un e ra d o , to m a -s e d e p e n d e n te d e le
p a ra o acesso aos re curs o s , Ã i cons e qü ê n cia s d e sta d e p e n
d ê n cia torn a ra m -s e m a is e vid e n te s com o a u m e n to d a ta x a
de d iv ó rc io s . E n q u a n to os c a sais c a sa dos p o d e m c o m p a rti
lh a r o m e s m o p a drã o de v id a d u ra n te o c a s a m e nto , in d e
p e n d e n te m e n te de q u e m re ce be a re n d a , os e fe ito s do d iv ó r
cio são c a ta s tro fic a m e n te d e sig u a is. N a C a lifó rn ia , o p a drã o
de v id a m é d io dos h o m e n s sobe 42 p o r c e n to d e p o is d o d i
v ó rcio , o das m ulh e re s c ai 73 p o r c e n to e re su lta d o s sim ila re s
fo ra m e n c o n tra d o s e m o u tro s e sta d os ( O k in , 1989b: 161).
C o n tu d o , n e n h u m a d esta s con s e qü ê ncia s d e sig u a is d a in
c o m p a tib ilid a d e do c uid a d o com os filh o s e o tra b a lh o re m u
n e ra d o são d is crim in a d ora s , s e g und o a a bord a g e m d ife re n
cia d a , p o is n ã o e n v o lv e m d is crim in a ç ã o a rb itrá ria . O fa to é
qu e e sta r liv re d a s re sp o n s a b ilid a d e s re la tiv a s ao c u id a d o
das cria n ça s é u m p o n to re le v a nte p ara a m a io ria dos tra b a
lh o s e xiste nte s, e os e m pre g a d ore s n ã o e stã o s e ndo a rb itrá
rio s ao in s is tir nisso. P or se tra ta r de u m a sp e cto im p o rta n te
da q u a lific a ç ã o , a a bord a g e m dife re n cia d a d iz qu e n ã o é u m a
d is crim in a ç ã o i n s is tir n e le , in d e p e n d e n te m e n te das d e sv a nr
ta g e ns qu e cria p a ra as m u lh ere s. N a v e rd a d e , a a b ord a g e m
dife re ncia d a v ê a pre ocupa çã o c om as re spons a bilid a d e s p e lo
c u id a d o dos filh o s , m a is d o qu e com o c rité rio s irre le v a n te s
310 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

com o g ê n ero, co m o in d íc io de qu e a d is crim in a ç ã o s e xu a l fo i


e lim in a d a . N ã o cons e gu e p e rc e b e r q u e a re le v â n cia das re s
p o n s a b ilid a d e s p e lo c u id a d o dos filh o s é, e la p ró p ria , u m a
p ro fu n d a fo n te d e d e sig u a ld a d e s e xu al, um a fo n te qu e s u r
g iu da m a n e ira co m o os ho m e n s e s tru tu ra m h is to ric a m e n
te a e c o n o m ia p a ra qu e se a de qu a sse aos se us intere ss e s.
E n tã o , a nte s de d e c id ir sè o g ê n e ro d e v e s er le v a d o e m
co n sid era ç ã o , pre cis a m o s s a b er com o já fo i le v a d o e m c o n
ta . E o fa to é qu e qua s e to d o s os p a p é is e p osiçõ e s im p o r
ta n te s fo ra m e s tru tu ra d o s d e m a n e ira s m arc a d a s p e la p r e
fe rê n c ia de g ê n e ro:

v irtu a lm e n te to d a q u a lid a d e qu e d is tin g u e os h om e n s das


m ulh e re s já é a firm a tiv a m e nte com pe ns ad a n esta sociedade.
A fis io lo g ía dos h om e ns d e fin e a m a ioria dos e sporte s, suas
necessidades d e fin e m a cob e rtura dos seguros de a utom óv e is
e de sa úde, suas b io gra fia s pro je ta d a s p ara o socia l d e fin e m
as e xp e cta tiv a s de lo c a l de tra b a lh o e p a drõ e s b e m -su c e di
dos de c arre ira , suas p ersp e ctiv as e intere sses d e fin e m a qu a
lid a d e no tra b a lh o acad êm ico, suas e xpe riê ncia s e obsessões
d e fin e m o m é rito , sua obje tific a ç ã o da vid a d e fin e a arte , seu
s e rviço m ilit a r d e fin e a cid a d a nia , sua pre se nç a d e fin e a fa
m ília , su a inc a p a cid a d e de se d are m be m uns com os o u tros
- suas gu erra s e governos - d e fin e a h is tória , sua im a ge m d e
fin e D eus e seus órgãos g e nita is d efin e m o sexo. P ara cada
um a d as difere nç a s a nte a m u lh e r, está em v ig o r o qu e e q u i
v a le a u m p la n o de ação a firm a tiv a , co nh e cid o , de o u tra
m a n e ira , com o a e stru tu ra e os va lore s da socie da de a m e ri
cana (M a ckin n o n , 1987: 36).

T udo iss o é " n e u tro q u a n to a o g ê n e ro " , n o s e n tid o de


qu e as m u lh e re s n ã o e stã o e xcluíd a s a rb itra ria m e n te d a b u s
ca das cois a s qu e a socie d a d e d e fin e c o m o v a lio s a ^/M a s A
s e x is ta p o rq u e as c o is a s q u e e stã o s e n do busc a d a s-d e m a -
n e ira n e u tra q u a n to a o g ê n e ro b a s e ia m -s e n os in te re s s e s e
v a lore s dos h o m e n s . A s m u lh e re s e stã o e m d e sv a n ta g e m
n ã o p o rq u e os c h a u vin ista s fa vore c e m os h o m e n s a rb itra
ria m e n te n a concessão de tra b a lh o s , m a s p orq u e a socie d a d e
ip t ei ra fa m ira e -sis te m a tira m e o ^ ^
b a lh os, m é rito etc.
o F E M IN IS M O 311

N a v erd a d e , q u a n to m a is a socie d a d e d e fin e posiçõe s


de m a n e ira m arc a d a p e lo g ê n e ro , m e n os a a bord a g e m d ife
re ncia d a é capa z de d e te cta r u m a d e sig u a ld a d e . C o n sid ere
um a socie d a d e qu e re strin g e o acesso à contra c e pç ã o e ao
a K ñ r t i^ ^ q ’H é fin e o p a g a m e n to .d e ..tra b a lh o s .d e m a n e ira
qu e q s to rn e .in c o m p a tív e is co m o, p a rto e a cria ç ã o .d o s .fi-.
Ih os e q u e n ã o pro v ê co m p e n s a ç ã o e co n ô m ic a p e lo , tra b a -
T ho .d o m é stic o . T od a m u lh e r qu e e n fre n ta urn a gra v id e z
n ã o p la n e ja d a e q u e n ã o p od e c ria r os filh o s e te r u m tra b a
lh o re m u n e ra d o sim ulta n e a m e n te é to m a d a e c on o m ic a
m e nte d e p e n d e nte de a lgu é m que o b té m re nd a de m a n e ira
e stá v el (isto é, u m h o m e m ),. P ara .assegMxar,qne._.£Q Osiga
este a p o io , j j a d e y e torn a r-s e ..s e x u a lm e n t.e a tra e n te .p a ra
g p(£ om e n s_S a b e nd o qu e este é seu d e s tin o pro v á v e l, m u i
ta s g arota s n ã o se e m p e n h a m ta n to q u a n to os g aroto s p ara
co n s e g u ir h a bilid a d e s d e e m pre g o qu e só p o d e m s er e x e r
cid a s p e la s que e v ita m a gra vid e z . E n q u a n to os g a rotos b u s
ca m a s e gura nç a p e sso a l a u m e n ta n d o suas h a b ilid a d e s de
e m pre g o , as g a rota s busc a m a s e gura nç a a u m e n ta n d o sua
a tra ç ã o p a ra os h o m e n s . Isso, p o r su a v e z , re s u lta e m u m
sis te m a d e id e n tific a ç õ e s cu ltu r a is n o q u a l a m a s c u lin id a d e
é a ssocia d a c o m a o b te nç ã o d e re nd a e a fe m in ilid a d e é d e
fin id a erp. fu n ç ã o de s erviços s e xu a is e d o m é s tic o s p a ra os
h o m e n s e d a cria ç ã o dos filh o s . P orta nto , h o m e n s e m u lh e
res in gre ss a m n o c a s a m e nto co m p o te n cia is de obte n ç ã o de
re n d a d e sig u a is e e sta d is p a rid a d e a u m e n ta d ura n te o ca sa
m e n to à m e d id a qu e o h o m e m a dq u ire e xp eriê n cia de tra b a
lh o v a lios a . C om o a m u lh e r e n fre n ta m a is d ific u ld a d e para
se su ste n ta r d e p ois qu e o c a s a m e nto é d e s fe ito , e la é m a is
d e p e n d e nte d a m a n u te n ç ã o d o ca s a m e n to, o qu e p e rm ite
ao h o m e m e xerc er m a is p o d e r d e n tro d e le .
E m ta l socie d a d e , os h om e ns com o gru p o ex erc e m eon.-
Jro le sobre as cha nc es g era is de v id a da s m u lh e r es (p o r m e io
d e d e cisõ e s p o lític a s a re s p e ito d o a b o rto e de d e cisõe s e co
n ô m ic a s re fe re n te s a e xig ê n cia s d e tra b a lh o ) e os h o m e n s.
com o .in dm du Q s.je x erc e m ..C Q .ntrole _sobre m ulh ere s e ç o n o-
..m ic a m e nte vuln e rá v e is d e n tro dos c a s a m entos. N ã o o b sta n-
312 . FIL O S O FÍA P O LÍTIC A C O N T E M P O RÁ N E A

te , n ã o pre cisa h a v er n e n h u m a discrim in a ç ã o a rb itrá ria . Tudo


is to é n e u tro q u a n to ao g ê n e ro n o s e n tid o de q u e o g ê n e ro
de u m a pessoa n ã o afe ta n e c e ss aria m e nte o m o d o p e lo q u a l
ela é tra ta d a p e los qu e estão e ncarre g a dos de d is trib u ir m eios
c o n tra c e p tiv o s , tra b a lh o s o u p a g a m e n to d o m é s tic o . M a s,
e m bora a a bord a g e m d ife re n c ia d a c on sid e re a a us ê ncia de
d iiõ n m ln a ç ã o a rb itrá ria com o in d íc io da ~ ã uggitd'a d e d e s i-
^g u a ld a d e s é xu a l. e ía p o d e , n a v e rd a d e ,lrê rn T d íc ^^
fusã o.,É ju s ta m e nte p orq u e as m ulh e re s são do m in a d a s n e s
ta socie d a d e qu e n ã o h á n e n h u m a n e c e ssid a d e de qu e h a ja
d is crim in a ç ã o c o n tra ela s. A d is crim in a ç ã o a rb itrá ria n o
e m pre g o é n ã o a p e n a s d e sn e c e ss ária p a ra a m a n u te n ç ã o
do p riv ilé g io m a s c u lin o , m as é im p ro v á v e l qu e o c orra ,
p o is a m a io ria das m ulh e re s nu nc a e stará e m posiç ã o de so
fre r d is crim in a ç ã o q u a n to a e m pre gos. T alv e z u m a o u o u tra
m u lh e r consiga sup e rar as pressõ es socia is qu e suste nta m
õs p a p é is sexu a is tra d ic io n ais. M a s, q u a nto m a io r a d o m in a -'
ção, m e n or a p ro b a b ilid a d e de q u e q u a is q u e r m u lh e re s e s
te ja m e m p o siç ã o d e c o m p e tir p o r e m pre g o e, p o rta n to ,
m e n or o esp aço p a ra a d is crim in a ç ã o a rb itrá ria . Q u a n to
m a is d e sig u a ld a d e s e xua l h á e m u m a so cie d a d e , m a is as
in s titu iç õ e s socia is re fle te m os intere ss e s m a sculin o s e m e
nos dis crim in a ç ã o a rb itrá ria h a v e rá .
N e q h n m a d a s d e m o cr a c ia s o rí d entaisX Q nte m porâ n e a s
corre spon d e ex ata m e n te a este m o d e lo de socie d a d e p a tria r-
c a Ljm a s to d a s c o m p a rtilh a m a lg u m a s das suas ç a ra e te iís ti-
cas e sse nciais:,E , se d e v e m os c o n fro n ta r e sta s form a s de in
ju s tiç a , pre cis a m o s c o n c e itu a r n o v a m e nte a d e sig u a ld a d e
s e xu a l c om o u m pro b le m a , n ã o d e d is crim in a ç ã o a rb itrá ria ,
m as de d o m in a ç ã o . C om o M a c k in n o n d iz ,

e xig ir que um a pessoa seja ig u a l aos que e stabeleceram o p a


drã o - a queles a nte os qu a is u m a pessoa já é socia lm e nte
d e fin id a com o dife re n te - signific a sim ple sm e nte que a ig u a l
dade sexual d e stin a-s e conc e itu a lm e nte a nunc a ser alca nça
da. O s que m ais ne c e ssitam de tra ta m e n to ig u a l serão os m e
llo s sim ilare s socia lm e nte àqueles cuja situ açã o estabelece o
jp a drã o co ntra o qu a l deve ser m e dido o d ire ito da pessoa a ser
o F E M INIS M O 313

tra ta d a de m od o ig u a l. D o u trin a ria m e nte fa la ndo , os pro ble


mas m ais profu n d o s da d e sigu a ld a d e sexual n ã o e ncontrarã o
as m ulh ere s "situ a d a s sim ila rm e nte " aos hom e ns. M u ito m e-
nos as prá tic a s d a_d e ¿ igu a ld a d e_s e^a l,e K Ígirá Q _qu^ps.^tos
'sèjãm in te nrio n a lm e n te d is crim in a tório s /M a c k in n o n , 1987:
44; cf. T a ü blT S ch n e id e r, 1982:134).

A s u b ordin a ç ã o das m u lh e re s n ã o é fu n d a m e n ta lm e n
te u m a qu e stã o de dife re ncia ç ã o irra c io n a l com base n o sexo,
m as d e s u pre m a c ia m a s c u lin a , sob a q u a l as d ife re n ç a s de
gê n ero são to m a d a s re le v a nte s p ara a d is trib u iç ã o d e b e n e fí
cios, p ara d e sva nta g e m siste m á tic a das m ulh e re s (M a c kinn on ,
1987: 42; F ry e , 1983: 38).
C o m o o p ro b le m a é a d o m in a ç ã o , a s o luç ã o n ã o é a p e
nas ã a usê ncia de d is crim in a ç ã o , m as a pre s e nç a de po d er.
'A T g u a ld a d e re q u e r n ã o a p e na s ig u a l o p o rtu n id a d e de b u s
c ar p a p é is d e fin id o s p o r h o m e n s, m as ta m b é m ig u a l p o d e r
de c ria r p a p é is d e fin id o s p o r m u lh e re s ou de c ria r p a p é is
a n dró g in o s , qu e h o m e n s e m u lh e re s te n h a m ig u a l in te re s
se e m pre e nc h e r. O re s u lta d o d e t a l c a p a cita ç ã o p o d e ria s er
m u ito d ife re n te d e noss a socie d a d e ou d a socie d a d e d e in s
titu iç õ e s m a s c ulin a s co m ig u a l o p o rtu n id a d e de in gre s s o ,
p re fe rid a p e la te o ria da d is crim in a ç ã o s e xu a l c o n te m p o râ
n e a . A p a rtir de u m a p o siç ã o de ig u a l p o d e r, n ã o te ría m o s
cria d o u m s iste m a d e p a p é is so cia is qu e d e fin e os tra b a lh os
" m a s c u lin o s " co m o s u p e riore s a os tra b a lh o s " fe m in in o s " .
P or e x e m plo , os p a p é is dos pro fis s io n a is de s a úde , h o m e n s
e m u lh e re s , fora m re d e fin id o s p e lo s h om e n s c on tra a v o n ta
de das m ulh e re s d a áre a. C om a pro fis s io n a liz a ç ã o d a m e d i
cin a , as m ulh e re s fo ra m e xpuls a s de seus p a p é is tra d ic io n a is
n a s aúde com o p a rte ira s e cura n d e ira s, e re le g a d a s ao p a p e l
de e nfe rm e ira s - um a posiç ã o que é subs ervie nte ao p a p e l do
m é dico e fin a n c e ira m e n te m e nos re co m p e n s a dora . A re d e -1
fin iç ã o n ã o te ria a c o n te cid o se as m u lh e re s e stiv e ss e m e m j
posiç ã o de igu a ld a d e e te rá d e ser re p e ns a d a a gora se as m u -|
lh e re s q u is e re m a lc a n ç ar a ig u a ld a d e . f
A a c e ita ç ã o d a a b ord a g e m d a d o m in a ç ã o e x ig iria m u i
ta s m ud a nç a s n a s re la çõ e s d e g ê n e ro . M a s qu e m ud a nç a s
314 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O NT EMP O R Â N E A

e x ig iria em nossa s te oria s de ju stiç a ? A m a ioria dos te óric o s


d is c u tid o s nos c a p ítu lo s a n te riore s a c e ita im p líc ita ou e x p lí
cita m e nte a a bord a g e m difere ncia d a . Isso, poré m , re fle te um a
fa lh a e m seus p rin c íp io s o u u m a fa lh a n a m a n e ira com o es
te s p rin c íp io s fora m a plic a d o s às qu e stõ e s de g ê n ero? M u i
tas í
p rio s p rin c íp io s , qu e os te ó ric o s d a " c o rre n te m ã iç u Ê ^
(com o M a ry O 'B rie n os ch a m a), t a n t ^ j j ir e j t a ç o m o .(k e § .-__
qu erd a , in t e m ie t a m ^ ig u a ld a de de. m a n e ira s <ms.sãQ in c a -
pa z es de re c on h e c e r a su b o rd in a çã o d a s m ulh e re s.,,N a v e r
d a d e , a lgum a s fe m in is ta s a rg u m e n ta m qu e a lu ta c o n tra a
sub ordin a ç ã o s e xual e xig e qu e a b a nd o n e m os a p ró p ria id é ia
d e in te rp r e ta r a ju s tiç a e m te rm o s d e ig u a ld a d e . E liz a b e th
G ross a rg u m e n ta qu e , v is to qu e as m u lh e re s d e v em s er l i
vre s p ara re d e fin ir os .pap é is s o a m seus o b je tiv o s s lo d e s
crito s d a m e lh o r m a n e ira a nte s com o u m a p o lític a de " a u -
tq iT C lttla ,' ÜO qUg'S S tiió IitS n a ^ a d ^ic a de^ T/,ig u a ld a d è ’5:

A a uto nom ia im p lic a o d ire ito de nos v erm os em qu a is


qu e r term os que e scolherm os - o que pod e ou nã o im p lic a r
um a inte gra ç ã o ou a lia nça com outros grupos e in div íd u o s . A
igu ald a d e , p or o u tro la do, im p lic a um a m e did a se gundo um
p a drã o d ado. A igu a ld a d e é a e quiv a lê ncia de dois (ou m ais)
term os, um dos qu a is assum e o p a p e l de n orm a ou m od e lo
de m an eira s inque stion á v e is. A a utonom ia , p or contraste, im q
p lic a o d ir e ito de a c e ita r ou re je ita r ta is norm a s ou p a drõ e sj
s e gundo sua adequ ação a nossa a uto d e fin iç ã o . A s lu ta s p o |j
igu ald ade [...] im plic a m um a aceitação de p adrões dados e um a
co nform id a d e com suas e xp e cta tiv a s e e xigências. A s luta s
p or a uto n om ia , p or o u tro la d o, im p lic a m o d ire ito de re je ita r
ta is p adrõ e s e de cria r p adrõ es novos (G ross, 1986:193).

G ross su p õ e qu e a ig u a ld a d e s e xu a l de ve s er in te rp re -
ta d a e m te rm o s de e lim in a ç ã o da d is crim in a ç ã o a rb itrá ria . A
a bord a g e m d a dom in a ç ã o , p oré m , ta m b é m é u m a in te rp re
ta ç ã o da ig u a ld a d e e, se n ós a a c e ita rm o s, a a u to n o m ia to r-
n a r-s e -á p a rte d a m e lh o r te o ria d a ig u a ld a d e se xual, n ã o u m
v a lo r riv a l. O a rg u m e n to a fa v o r da a u to n o m ia das m ulh e re s
o F E M IN IS M O 315

re c orre à id é ia m a is p ro fu n d a d a ig u a ld a d e m o ra l e m v e z
He e n tra r e m c o n flito co m ela , pois ela a firm a qu e os in te re s
ses e e xp e riê n cia s das m u lh e re s d e v e m s er ig u a lm e n te im
p o rta n te s n a m q ld a g c m d a v id a so cia l. C om o d iz Z ü Ii K lif-
s e n ste in , " a ig u a ld a d e n e ste s e n tid o s ig n ific a os in d iv íd u o s
te re m ig u a l v a lo r co m o seres hu m a no s. N e sta vis ã o, a ig u a l
d a d e n ã o s ig n ific a ser co m o os ho m e n s, t a l co m o ele s são
hoje , n e m te r ig u a ld a d e com nossos opre ssore s " (E is e nste in,
1984: 253).
P orta nto , ,tj a b ord a g e m da do m in a ç ã o com p a rtil h a com
os te óric o s d a c o rre n i l ^ ^ .a
igu a lcfa dq. M a s e la é c o m p a tív e l com a m a n e ira com o os
te órico s da c orre n te d o m in a n te in te rp re ta m este c o m p ro
m isso - p o r e x e m plo, a a bord a g e m da d o m in a ç ã o a ju sta -s e
à vis ã o lib e ra l da igu a ld a d e d e recursos? M a c k in n o n a rg u -jj
m e nta qu e a a bord a g e m da d o m in a ç ã o le v a -n o s a lé m d o s i
p rin c íp io s b ásicos do lib e ra lis m o . É a ssim ? É v e rd a d e qu e os 1
te óric o s lib e ra is , co m o o u tro s te óric o s da c orre n te m a s c u li
na, a c e ita ra m a a b ord a g e m d ife re n c ia d a d a ig u a ld a d e s e
x u a l e, co m o re s u lta d o , n ã o a ta c ara m s e ria m e n te a s u b ord i
nação das m ulh e re s . P od e mos a rgu m e nta r, poré m , que os li-1
b era is (e o u tro s te óric os co n te m porâ n e o s) e stã o tra in d o s e us!
p ró p rio s p rin c íp io s ao a d o ta r a a b ord a g e m d ife re n c ia d a 3. 1

3. T a lv e z os co m u nitá rio s n ã o poss a m a c eit ar a a bord a g e m da d o m in a


ção, já qu e ela supõ e qu e as pessoas p o d e m c olo c a r seus p a p éis e m qu e stã o
de u m a m a n e ira qu e o c o m u n ita ris m o n e ga o u re pro v a (c ap. 6, seção 3 a cim a
- sobre a te ns ã o e ntre o f e m in is m o e o c o m u nit a ris m o , v e r G re schn e r, 1989;
O k in , 1989b: 41-6 2; F rie d m a n, 1989). E s c o m o o ^ l i b g rt a rios n ã o a c e it a m . a
igu a ld a d e lim it a d a de çoftdiç ã Q subja c enie u à.a .b Q rda gerrLd ajdifere nç a, m ã e s ? .,
ta o pro n to s a aceit a r a a bord a g e m da d o m in a ç a o. A s o utra s te ona s, p ore m ,
p are c e m capaz es de a dota r a a bord a g e m d a dom in a ç ã o . 'M a c k in n o n a rg u-
iflè ril â qu e a a bord a g e m d a dom in a ç ã o está alé m do alc a nce d o lib e ra lis m o
p orq u e os lib e ra is a lm e ja m um a le i " fo rm a l " o u " a b str a t a " qu e seja " tra n s p a
re n te d e s ub stâ ncia " . N ã o co m pre e nd o seu c ontra ste de " fo rm a " e " s u b s t â n
cia " n e m c om o ele se rela cio n a c om os prin c íp io s lib e ra is tra d icio n a is de
ig u a ld a d e e lib e rd a d e . M a c kin n o n m u ita s ve z e s p are c e ig u a la r o lib e ra lis m o a
u m a corre nte p a rtic u la r de inte rpre t a ç ã o co n stitu cio n a l a m eric an a .
316 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O NT EM P O R Â N E A

N a v e rd a d e , a d is ju n ç ã o e n tre a a b ord a g e m d ife re n c ia d a


e os p rin c íp io s lib e r a is é e vid e n te . O c o m pro m is s o do lib e
ra lis m o com a a u to n o m ia e a ig u a l o p o rtu n id a d e e c om u m a
d is trib u iç ã o de re curs o s s e n sív e l à a m b iç ã o e in s e n s ív e l à
C d o ta ç ã a â x c lu i as divis õ e s de g ê n e ro tra d ic io n a is . P arece n ã o
h a v e r n e n h u m a ra z ã o p e la q u a l a pro p e n s ã o p a ra o e ê cte-
fó "d0s~ p a p e T s'socia is e x is te n te s n ã o s e ria re co n h e c id a p e -
T õs T õnlrã T a n T ê s n T p o s iç ã o o rig in a l d e R a w ls co m a io n t e
d e injustiç a ;. E m b ora o p ro p n o R a w ls n a o d ig a n a d a a re s
p e ito d e com o estes c o n tra ta n te s in te rp re ta ria m a ig u a ld a
de s e xual, o u tro s a rg u m e n ta ra m qu e a ló g ic a d a co n stru ç ã o
de R a w ls - isto é, o co m pro m is s o com a e lim in a ç ã o das d e si
gu ald a de s im e re cid a s e com a lib e rd a d e de e scolh erm os n o s
sos o b je tiv o s - re q u e r re fo rm a ra d ic a l. P or e x e m plo^ K a re n
G re e n a rg um e nta qu e o interesse dos c ontra ta n te s n a ig u a l li-
b erd ade re qu er a re d istrib u iç ã o do tra b a lh o dom é stico (G re en,
P9g6: 3 1 -5 r'E 'S ü s a n O R ih a rg ü n ié n ta que os c o n tra ta n te s d e
R a w ls in s is tiria m , e m u m . a ta q u e m a is c o m p le to ao siste m a
d e dife re n c ia ç ã o de g ê n eros, e lim in a n d o a d ivis ã o d e sig u a l ,
d o tra b a lh o d o m é stic o e a o b je tifíc a ç ã o s e xu a l ( O k in , 1987:
6 7-8). G onclusõ e s s im ila re s a re s p e ito d a in ju s tiç a dos p a
p é is d e g ê n e ro tra d ic io n a is p o d e m s er o b tid a s se p e rg u n
ta rm o s se e ste s p a p é is p a ss a m p e lo te ste d e e q ü id a d e de
D w o rk in (cf. cap. 3, seção 5 a cim a).
E m b ora os lib e ra is te n h a m e ndo ss a do h is to ric a m e n te
a a b ord a g e m d ife re n cia d a , isso n ã o é o p ro d u to de prin c íp io s
fa lh o s, m a s d e a plic a çõ e s fa lh a s de ste s p rin c íp io s . Isso n ã o
q u e r d iz e r qu e os lib e ra is te n h a m sim p le sm e n te ig n o ra d o o
pro ble m a d a d e sigu a ld a d e sexual, com o qu e p o r a cid e nte . H á ,
ra z õ e s e v id e n te s d e inte re ss e p ró p rio p e la s q u a is os te ó ri
cos m a scu lin o s e vita ra m a a b ord a g e m d a d o m in a ç ã o . A lé m
disso, co m o v e re m o s, u m c o m pro m is s o com e sta d e s criç ã o
m a is forte d a ig u a ld a d e s e xu a l suscita qu e stõ e s difíc e is a re s
p e ito d a re la ç ã o e n tre o p ú b lic o e o p riv a d o e e ntre a ju s tiç a
e o c uid a d o .
o F E M IN IS M O 317

2. O p ú b lic o e o priv a d o

Q u a n d o a plic a m os a a bord a g e m d a d o m in a ç ã o à ig u a l
d a d e s e xu a l, u m a da s qu e stõ e s c e n tra is é a qu e d iz re s p e i
to à d is trib u iç ã o d e s ig u a l d o tra b a lh o d o m é stico e à re la ç ã o
e n tre re s p o n s a b ilid a d e s de fa m ília e re s p o n s a b ilid a d e s d o
lo c a l d e tra b a lh o . O s te ó ric o s d a c o rre n te d o m i n a n te , p o -
ré m , re lu ta ra m e m ’ c o n fro n ta r .as re la çõ e s fa m ilia re s e ju l
g á -la s à luz. de p a drõ e s de ju s tiç a . O s lib e ra is clá ssicos, p o r
e x e m plo , supus e ra m qu e a fa m ília (e nca be ça da p o r u m h o
m e m ) é u m a u n id a d e b io lo g ic a m e n te d e te rm in a d a e qu e a
ju s tiç a re fe re -s e às re la çõ e s c o n v e n c io n a lm e n te d e te rm i
nadas e ntre fa m ília s (F hte m a n, 1980: 2 2-4). P orta n to , a ig u a l -
d a d e n a tura l qu e disc ute m é de p a is co m o re pre s e nta nte s de
'fa m ilia s , e o c o ntra to socia l qu e d isc ute m go v e rn a as re la çõ e s
e n tre fa m ília s . A ju stiç a refere -se ao d o m ín io " p ú b lic o " , no
qu a l ho m e ns a d u lto s lid a m com h o m e n s a d u lto s e m c o n fo r
m id a d e com convençõ e s m utu a m e n te acorda da s. A s rela çõe s
fa m ilia re s , p o r o u tro la d o , são " p riv a d a s " , g ov ern a d a s p e lo
in s tin to o u solid a rie d a d e n a tura l.
O s te óric o s c o nte m p orâ n e os n e g a m qu e a pen a s os h o
m e ns s eja m capa z es de a tu a r d e n tro d o d o m ín io p ú b lic o .
M a s, e m b ora a ig u a ld a d e sexu a l seja a gora a firm a d a , a in d a
se pre ssupõ e qu e e sta ig u a ld a d e , com o n a te o ria lib e ra l clá s
sica, a p lic a se a rela çõ e s fora d a fa m ília ., O s te óric o s d a ju s
tiç a c o n tin u a m a ig n o ra r re la çõ e s d e n tro d a fa m ília , q u e se
su p õ e s e r u m d o m ín io e s s e n c ia lm e n te n a tu ra l. E a in d a
se su põ e , im p líc ita o u e x p lic ita m e n te , q u e a u n id a d e fa
m ilia r n a tu ra l é a fa m ília tra d ic io n a l e nc a b e ç a d a p o r u m
h o m e m , com as m ulh e re s e x e cuta n do o s erviço do m é stico e
re p ro d u to r n ã o re m u n e ra do . P or e x e m plo , e m bora J. S. M ill
enfatiz a ss e que as m ulh ere s era m ig u a lm e nte capaz es de re a
liz a ç ã o e m tod a s as esfera s de e m pre e n d im e n to , ele supôs
qu e as m u lh e re s c o n tin u a ria m a fa z e r o tra b a lh o d om é stic o .
E le d iz qu e a d ivis ã o s e x u a id o tra b a lh o .d e n tro d a í a m ília " já
é fe ita p o r co n s e n tim e n to ou, de q u a lq u e r m o d o r n ã o ,p e la
318 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T EMP O RÂ N E A

le t m as p e lo co stum e g e ra l" . e. . „ .d, . e. fe. n.., d e_ isso


-a...--........s.s,/., , . . . . _. x
com
_
o^ ." a.i^.mmam:
d ivis ão
ij.uujj,mL

d e tra b a lh o .m a is a d e qu a d a e n tre du a s p e sso a s":

C om o um hom e m qu a ndo escolhe um a profiss ã o, assim


ta m b é m , qu a nd o um a m u lh e r se casa, e nte nd e -s e de m od o
g era l que ela fa z um a opçã o p ela a dm inistra ç ã o de um a casa
e a cria çã o de um a fa m ília , com o a p rim e ira coisa que exig e
seus e sforços, d ura n te ta ntos anos da vid a qu a n to sejam n e
cessários p ara este p ro p ó sito ; e que ela re n u ncia , n ã o a toda s
as outra s coisas e ocupações, m as a tu d o que n ã o seja c om
p a tív e l com as exig ência s disso (M ill e M ill, 1970:179).

E m bora os te óric o s c on te m p orâ n e o s ra ra m e n te sejam


tã o e x p lícito s q u a n to M ill, eles c o m p a rtilh a m im p lic ita m e n
te e sta suposiçã o a re s p e ito do p a p e l das m ulh e re s n a fa m ília
(e, se n ã o c o m p a rtilh a m , n ã o d iz e m n a d a sobre c o m o o tr a
b a lh o d o m é stico d e v e ria ser re c om p e n s a do ou d is trib u íd o ).
P or e x e m p lo , e m b ora R a w ls d ig a qu e a fa m ília é u m a das
in s titu iç õ e s socia is a s ere m a v a lia d a s p o r u m a te o ria d a ju s
tiç a , e le s im p le s m e n te pre s s u p õ e qu e a fa m ília .tori.ic.ktix a .U ^
ju stá ”é passa p a ra a m ê a iç ã o das d istrib u iç õ e s ju sta s em fu n -
-H. T • /•/ •• •. ........................ ................. - S 1 / / I C 1 C .1 . Jf-
çao da re n d a f a m ilia r qu e pro v e m dos c h e fe s d g .fc n p ija..,
de m o d o qu e as q u e stõ e s de ju s tiç a d e n tro d a fa m iíiq,.s ã p
e x clu id a s d o trib u n a l4. Ã n e g lig ê n c ia d a fa m ília e ste v e p re
s e nte a té m e sm o e m b o a p a rte d o fe m in is m o lib e ra l, que
" a c e ito u a d ivis ã o e n tre as e sferas p ú b lic a e priv a d a e e sco
lh e u buscar a ig u a ld a d e prim a ria m e n te n o d o m ín io p ú b lic o "
(E va ns, 1 9 7 9 :1 9).
O s lim ite s de q u a lq u e r a b ord a g e m d a ig u a ld a d e s e xu a l
qu e n e g lig e n c ie a fa m ília to m a ra m -s e cada v e z m a is claros.
C om o vim o s , o re s ulta d o da "d u p la jo m a d a " de tra b a lh o das
m u lh e re s é o fa to de q u e as m u lh e re s e stã o c o nc e ntra d a s
e m tra b a lh o d e m e io p e río d o e re m u n e ra ç ã o b a ix a , o q u e ,
p o r sua v e z , as to rn a e c o n om ic a m e n te d e p e n d e nte s. C o n-

4. V e r R a wls (1 9 71:12 8 ,146). A d e scriçã o de R a wls da fa m ília é d is c uti- ti


da e m O k in (1987); G re e n (1986); E n g lis h (1977); K e arns (1983). A "res:

í/
a risto t é lic a " de tra t a r os in d iv id u o s c om o " ch ef e s de f a m ili a " c o ntin u a a
m u m n a ciê ncia p o lític a (S tie hm , 1983).
o F E MIN IS M O 319

tu d o , m e sm o qu e esta v u ln e ra b ilid a d e e con ôm ic a fosse re


m o vid a , p e la g a ra ntía d e urn a re nd a a n u a l a todos, a in d a h a
v e ria a in ju s tiç a de qu e é a pre s e nta d a às m ulh e re s um a es
colh a , e ntre fa m ília e c arre ira , qu e os h om e ns n ã o e nfre n ta m .
A a fin n a ç ã c L d e J v Ijll..d ^ u & jim ^m u lh e r^ u e L S .e x a s a . a c e ita
u m a ocup a ç ã o de te m p o in te g ra l, e x a ta m e nte com o u m h o
m e m que assum e u m a profis s ã o , é jn ota v e lm e nte in ju s t a /À fi-'
‘ n a l, os ho m e ns ta m b é m se ca sam - p o r qu e o c a s a m e nto
d ev e te r cons e q ü ê ncia s tã o d ife re n te s e d e sigu a is p ara h o
m e ns e m ulh ere s? O de s e jo d e s er p a rte de um a fa m ília n ã o
dev e im p e d ir u m a p esso a de te r u m a c a rre ira e, n a m e d id a
e m qu e isso te m cons e qü ê ncia s in e v itá v e is p a ra as c a rre ira s,
dev e s er s u p o rta d o ig u a lm e n te p o r h o m e n s e m ulh e re s .
A lé m dissot re sp^a^ue s± ã fl.E efere nte .à .ra[z ãq p e la qu a l o
tra b a lh o d o m é s tic o n ã o rece be m a io r re c o n h e c im e n to p ú -
'^ líc o ^ M e s m o qu e os h o m e n s e as m u lh e re s c o m p a rtilh e m
Ô tra b a lh o d o m é s tico n ã o re m u n e ra d o , isso n ã o s e ria c o n s i
d e ra d o com o ig u a ld a d e s e xu a l g e n u ín a se o m o tiv o d e sua
n ã o-re m un e ra ç ã o fosse o fa to de nossa c u ltura d e sv a loriz a r o
" tra b a lh o de m u lh e r" ou q u a lq u e r coisa " fe m in in a " . O se xis-
m o po d e e sta r pre s e n te n ã o a pe n a s n a d is trib u iç ã o d o tr a
b a lh o d o m é stic o , m a s ta m b é m n a su a a v a lia ç ã o , li, c o m o a
d e sv a loriz a ç ã o d o tra b a lh o d o m é stic o e stá lig a d a à d e sv a ió-,
riz S Ç ac)rriaís im p la d o tra b a lh o fe m in in o , e ntã o, p a rte d a lu ta
p or m a io'r "respeito p ara as m ulh e re s.e n vo lv e rá m a io r re s p e i
to p ela sua c o n trib u iç ã o p a ra a fa m ília , A fa m ília , p o rta n to ,
e stá n o c e n tro d a d e s v a loriz a ç ã o c u ltu ra l e d a d e p e n d ê n cia
e con ô m ic a v in c u la d a aos p a p é is tra d ic io n a is das m ulh e re s .
E o re s ulta d o pre visív e l é que os h om e n s tê m p o d e r d e sig u a l
e m quase to d o s os ca sa m e ntos, p o d e r qu e é e x ercido nas d e
cisões re fe re nte s ao tra b a lh o , ao la z e r, ao sexo, a o con su m o
e tc., e qu e ta m b é m é e x ercido, e m u m a m in o ria s ig n ific a tiv a
d e c a s a m e ntos, e m a tos o u am e aças d e v io lê n c ia d o m é stic a
( O k in , 1989Ü: 1 28-30).
. A fa m ília , p o rta n to , é u m locus im p o rta n te p ara a lu f a .
p o r igu a ld a d.e ..s e m a l' H á u m cons e nso cre sc e nte e n tre as
fe m in is ta s d e q u e à lu t a p ela ig u a ld a d e s e xu a l de v e ir a lé m
320 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Á N E A

tic o e a d e sv a loriz a ç ã o d a s m u lh e re s n a e sfera p riv a d a . ¡N a


verdade T C afoT e ta te m a n d iz qu e a " d ic o to m ía e ntre o p u b lic o
e o p riv a d o [...] é, n o fim , a q u ilo d e qu e tra ta o m o vim e n to fe
m in is ta " (F hte m a n, 1 9 8 7 :1 0 ).
C o n fro n ta r a in ju s tiç a da esfera priv a d a e xig iria m u d a n
ças su b sta n cia is n a v id a fa m ilia r. M a s q u e m u d a n ç a s exig e
das te oria s d e ju stiç a ? C o m o v im o s , o fra ca sso em co n fro n ta r
a sd e sig u_ a]d a d e sd e 4jé n e ro n a ia m ilia .p o d e
u m a tra iç ã o d os p rin c íp io s lib e ra is d e a u to n o m ia e ig u a l
' o p o rtu n id a d e . S e e u n d o a lg u m a s crític a s fe m in is ta s , p oré m ,
os lib e ra is re cu s a m -s e a in t e rf e rir n a fa m ilia , m e sm o p ara
p ro m o v e r o b je tiv o s lib e ra is d e a u to n o m ia e ig u a l o p o rtu n i
d a d e , p o rq u e e stã o c o m p ro m e tid o s c o m u m a d is tin ç ã o e n
tre o p ú b lic o e o p riv a d o , e p o rq u e v ê e m a fa m ilia c o m o o
c e n tro d a esfera priv a d a . A ssim , Jaggar arg u m e nta que, com o
o d ire ito lib e ra l à priv a c id a d e " a b ra n g e e pro te g e as in tim i
d a d e s p e sso ais d o lar, a fa m ilia , o c a s a m e nto, a m a te rnid a d e ,
a pro cria ç ã o e a cria ç ã o d os filh o s " , q u a is q u e r p ro p o s tas l i
b e ra is d e in te rfe rê n c ia n a fa m ília e m n o m e d a ju s tiç q „ " re -
pré s e n ta m u m cla ro a b a n d o n o d e sta tra d ic io n a l conc e pçã o
lib e ra l d a fa m ília co m o c e n tro d a vid a priv a d a . [. m e did a
qu e a ê nfa s e fe m in is ta lib e ra l sobre a ju s tiç a c ã a a v e z m a is
obscurece seu re s p e ito p e la ch a m a d a v id a priv a d a , p od e m os
co m e ç ar a n o s p e rg u n ta r se os v a lore s b á sico s d o lib e ra lis
m o são, n o fim , m utu a m e nte co m p a tív e is " (Jaggar, 1983:1 99).
E m o u tra s p a la vra s, os lib e ra is d e v e m re n u n c ia r ao c o m p ro
m isso c om a ig u a ld a d e s e xu al o u ao co m pro m iss o c o m .a d is-
tin ç ã o d e p ú b lic o e p riv a d o .
C o n tu d o , n ã o está claro qu e " a tra d ic io n a l conce pçã o l i
b e ra l" vê a fa m ilia " c o m o o c e n tro d a v id a p riv a d a " . H á , n a
v e rd a d e , du a s conc e pçõ e s d ife re n te s d a d is tin ç ã o d e p ú b lic o
e p riv a d o n o lib e ra lis m o : a p rim e ira , q u e te v e o rig e m co m
L ock e , é a d is tin ç ã o e n tre o p o lític o e o socia l; a se gund a , qu e
te v e o rig e m co m os lib e ra is de in flu ê n c ia ro m â n tic a , é a d is
tin ç ã o e n tre o s o c ia l e o p e sso a l. N e n h u m a tra ta a fa m ília
co m o in te ira m e n te p riv a d a n e m e xp lic a o u ju s tific a sua im u
nid a d e à re form a ju ríd ic a . N a v erd a d e , cada distin ç ã o , se a p li
cada à fa m ília , p ro v ê fu n d a m e n to s p a ra c ritic a r a fa m ília tra -
o F E MINIS M O 321

d ic io n a l. O s lib e ra is , p oré m , n ã o a p lic a ra m e stas d is tin ç õ e sf


à fa m ília e g e ra lm e n te n e glig e n cia ra m o p a p e l d a fa m ília naf
e stru tura ç ã o d a v id a p ú b lic a e d a v id a priv a d a .

(a) O Estado e a sociedade c iv il

A prim e ira ^v e rs ã o d a d is tin ç ã o d e p ú b lic o e p riv a d o d o


lib e ra lis m o é ilu s tra d a p e la d is tin ç ã o d e C o n sta n t e ntre 441.-
"B èrd a de a n tig a e a ,lib erd a d e m od e rn a # A lib e rd a d e dos a n ti
gos era sua p a rticip a ç ã o a tiv a n o e x ercício d o p o d e r p o lític o ,
n ã o a fru iç ã o p a c ífic a da in d e p e n d ê n cia p e ssoal. O s a te n ie n
ses e ra m h o m e n s liv re s p o rq u e g o v e rn a v a m a s i m e sm os
co le tiv a m e nte , e m bora carecessem de in d e p e n d ê n c ia e de l i
b erd a d e s c iv is p e sso a is e foss e e sp e ra do qu e s a crific a s s e m
seus pra z ere s e m n o m e d a p ó lis . A lib e rd a d e dos m od e rno s,
p or o u tro la d o , e n c o ntra -s e n a d e s im p e d id a busc a de f e lic i
d a d e e m suas ocup a çõ e s e a pe gos p e ssoa is, o qu e re q u e r l i
b erd a d e a p a rtir d o e x ercício d o p o d e r p o lític o . E n q u a n to os
an tig o s sacrific a v a m a lib e rd a d e priv a d a p ara pro m o v e r a vid a
p o lític a , os m o d e rn o s v ê e m a p o lític a co m o u m m e io (e, e m
c e rta m e d id a , u m s a c rifíc io ) n e c e ss á rio p a ra p ro te g e r sua
v id a p riv a d a . O lib e ra lis m o expre ssa seu co m pro m is s o com
a lib e rd a d e m o d e rn a s e p ara ndo n itid a m e n te o p o d e r p ú b li
co do E sta do das re la çõ e s priv a d a s da socie d a d e c iv il e e sta
b e le c e n do lim ite s e strito s à ca p a cid a d e d o E sta do de in te rv ir
n a v id a priv a d a .
C rític o s fiz e ra m , m u ita s ve z e s, obje çõ e s a e sta d istin ç ã o
de p ú b lic o e p riv a d o b a se a dos n o fu n d a m e n to de q u e a ê n -
fase do lib e ra lis m o sobre a v id a priv a d a é a n t is o cia b S e gún-
do M a rx , p o r e x e m plo , os d ire ito s in d iv id u a is e n fa tiz a d o s
p e los lib e ra is s ão as lib e rd a d e s de " u m h o m e m tra ta d o co
m õ d ím a m ó n a d a is o la d a e fe c h a d a e m s i m e sm a [...1 o d i-
re ito d o h o m e m à lib e rd a d e n ã o é b a se a do na u n iã o d e h o
m e m c om h o m e m , m as n a s e para çã o d e h o m e m e h o m e m .
t o d ire ito a esta se p ara çã o " (M arx, 1977fc>: 53). A vis ã o lib e ra l,
p oré m , pre ssupõ e e fe tiv a m e n te noss a s o c ia b ilid a d e n a tu
ra l. C o m o obs erv a N a n c y R o s e n b lu m ,
322 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O NT EMP O RÂ N E A

esta fro n te ira e ntre esferas n ã o im p lic a que a vid a priv a d a seja
ra dic a lm e nte a p o lític a ou a n ti-s o c ia l. V id a priv a d a sig n ific a
vid a na sociedade c iv il, n ão a lg um e stado pré -so cia l da n a tu
rez a ou a condição a nti-socia l do isola m e nto e do desapego [...]
a lib e rd a d e priv a d a ofere ce um a esca pa tória à sup ervis ã o e à
in te rfe rê n cia dos fu nc io n á rio s pú blico s, m u ltip lic a n d o possi
T ãilidades de a ssociações e com bin a çõe s priv a d a s [...] L o ng e
de co nvid a r a a p atia , supõ e-s e que a lib erd a d e priv a d a e nco
raje a discussão p ú b lic a e a form a ç ão de grupos que ofereça m
aos in d iv íd u o s acesso a conte xtos sociais m a is a m plos e ao
gov erno (R os e m blum , 1987: 61).

Q u a n d o o E sta d o d e ix a as pessoa s na 'fin d e p e n d ê n cia


p e rfe ita " da v id a priv a d a , n ã o os d e ix a e m is o la m e n to , m as,
_a nte s, liv re s p a ra fo rm a r e m a n te r " a s socia çõ e s e côm B i-
n a çõ e s ", o u o qu e R a w ls c h a m a í^ ^ r^ S Co
m o som os a n im a is socia is, òs" in d iv íd u o s u s arã o su a lib e r
d a d e p ara ju n ta re m -s e a o u tro s n a busc a d e fin s c o m p a rti
lh a d o s . A lib e rd a d e , p a ra os lib e ra is clá ssicos , b a s e a v a-se
re a lm e n te n a " u n iã o d e h o m e m co m h o m e m " , m a s eles
a cre d ita v a m qu e a u n iã o de h om e n s qu e surg e d a liv re a s
socia çã o n a so cie d a d e c iv il é m a is g e n u ín a e m a is liv r e d o
qu e a u n id a d e c o a gid a das a ssociaçõ e s p o lític a s . O id e a l l i
b e ra l de v id a p riv a d a n ã o era p ro te g e r o in d iv íd u o d a so
cie d a d e , m a s lib e rt a r a socie d a d e d a in te rfe rê n c ia p o lític a .
E m a is pre c is o v e r o lib e ra lis m o n ã o c om o a n ti-s o c ia l, m as
co m o " a g lorific a ç ã o d a Jsocie d a d e " , p o is os lib e ra is "d a s s ifi,-
cavam a vida ..social com o a form a m a is eleva da de re aliz a çã o
h u m a n a e a c o n d iç ã o v it a l p a ra o d e s e n v o lv im e n to d a m o
ra lid a d e e da ra ciona hdade ",_enctuaiito,a politic.Q „epa re d u z h
do a o " s ím b o lo ru d e d a co erç ã o n e c e ssária p a ra s u s te n ta r as
tra ns a çõ e s so cia is o rd e ira s " (\ V olin , 1960: 363, 369, 291; cf.
H o lm e s , 1989: 248; S c hw a rtz , 1979: 245).
A qu e stã o bá sic a n a a va lia ç ã o d e sta v ers ã o da d ivis ã o de
p ú b lic o e p riv a d o n ã o é e m qu e m e d id a os in d iv íd u o s re
q u e re m a socie d a d e p a ra a sua lib e rd a d e , m a s e m q u e m e
d id a os in d iv íd u o s so cia is pre c is a m d o E sta d o p a ra a sua
lib e rd a d e . C o m o v im o s n o c a p ítu lo 6, isso fo i ob s cure cid o
p ela s crític a s co m u n itá ria s d o " a to m is m o " lib e ra l (cap. 6, se-
o F E M IN IS M O 323

ção 4 a cim a). C o n tu d o , q u a n d o A ris tó te le s d is s e q u e ps h o


m ens eram-zôon p ólitik M .1n ã o quis d iz e r sim ple s m e nte qu e os
H om e ns são a n im a is sociais. P elo c o n trá rio , " o c o m p a n h e i
ris m o n a tu ra l m e ra m e n te socia l da e spé cie h um a n a fo i c o n
sid e ra do u m a lim ita ç ã o im p o sta a nós p e la s n ec essida d es da
vid a b io ló g ic a , qu e são as m e sm a s p ara o a n im a l h u m a n o e
p ara as o u tra s form a s de v id a a n im a l" (A re n d t, 1959: 24). A i
vid a p o lític a , p o r o u tro la d o , era d ife re n te de nossa v id a m e
ra m e n te s o c ia l e s u p e rio r a ela . I
F ora m fe ita s v ária s te n ta tiv a s de d e rru b a r a g lo rific a ç ã o
lib e ra l d a s ocie d a d e e de re in s ta u ra r a p o lític a co m o form a
s u p e rior de v id a . A vis ã o lib e ra l, p oré m , im pre g n a a era m o
d ern a e é com p a rtflK a cja im p ü c ita ro e n te m e sm o p e lo s seus
crític o s m a is ra dic a is (W olin , 1960: 290, 4 1 4-6). E n q u a n to os
gre gos s e n tia m qu e " s o b n e n h u m a c ircu n stâ n cia a p o lític a
p o d e ria s er a p e n a s u m m e io de p ro te g e r a s o cie d a d e ", os
te ó ric o s m o d e rn o s sim p le s m e n te d is c ord a m q u a n to a q u a l
tip o d e so cie d a d e a p o lític a d e v e s e rv ir - " u m a socie d a d e
dos fié is , co m o n a Id a d e M é d ia , u m a socie d a d e , de p ro p rie
tá rio s, com o e m Lo ck e , um a socie d a d e in c a n s a v e lm e n te d e
dic a d a a u m proc e sso d e a quisiç ã o , c o m o e m H ob b e s, u m a
socie d a d e de pro d u tore s , co m o e m M a rx, um a socie d a d e de
d e te n tore s de e m pre gos, com o e m noss a socie d a d e , o u um a
socie d a d e de tra b a lh a d o re s , co m o em p a ís e s s o cia lis ta s e
co m unista s . E m to d o s estes casos, é a lib e rd a d e [...] d a socie.-
d a d e qu e re q u e r e ju s tific a a co n te n ç ã o d a a u torid a d e p o lí-
tic a . À lib e rd a d e lo c a liz a -se n o d o m ín io d o so cia l e a forç a o u
v io lê n cia to rn a -s e o m o n o p ó li o d o g o v e rn o " (A re n d t, 1959:
31). E ste é u m dos casos, co m o o c o m pro m is s o com a ig u a l
d a d e m o ra l, e m qu e o c a p ita lis m o s im p le s m e n te v e n c e u o
d e b a te h is tó ric o , e to d o o d e b a te s ub s e q ü e n te o c orre , em
c e rto s e n tid o , d e n tro da s fro n te ira s dos co m pro m is s o s lib e
ra is b á sicos.
. E sta é a p.rim£Íra-forma.dajdisíin.cãQ. d e público e priv a d o
^ o lib e ra lis m o . A s fe m inista s fiz e ra m obiccõ e s a ela com base
jg m A S rio s fu n d a m e n to s ; A o bje ç ã o m a is p re m e n te é qu e a
m a io ria da s d e scriçõ e s lib e ra is d o d o m ín io socia l fa z p are c e r
qu e e le c o n té m a p e na s h o m e n s a d u lto s (e fis ic a m e n te c a-
324 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O NT EM P O RÂ N E A

p a z e s), n e g lig e n c ia d o o tra b a lh o n e c e ss ário p a ra c ria r e n u


tr ir estes p a rtic ip a n te s , tra b a lh o qu e é e x e cuta do p rin c ip a l
m e n te p e la s m u lh e re s , p rin c ip a lm e n te n a fa m ília . C o m o
obse rv a P a te m a n , " o lib e ra lis m o c o n c e itu a a socie d a d e c iv il
a b s tra in d o-a d a vid a dom é stic a a trib u tiv a " e, p o rta n to , " e sta
p erm a n e c e 'e s q u e cid a ' n a discussão te óric a . A se paração e n - j
tre p ú b lic o e p riv a d o é, a ssim , [a pre s e nta d a ] co m o u m a d i- j
vis ã o dentro [...] do m u n d o dos hom e ns. A separação, e ntã o, é \
expressada de m u ita s m a n e ira s d ife re nte s, n ã o ape na s c o m o '
priv a d o e p ú b lic o , m as ta m b é m , p o r e x e m plo, com o 's o cie
d a d e ' e 'E s ta d o ', 'e c o n o m ia ' e 'p o lític a ', 'lib e rd a d e ' e 'c o e r-
ç ã o', o u 's o c ia l' e 'p o lític o '" (P a te m a n, 1 9 8 7 :1 0 7), to d a s as
q u a is são d ivisõ e s " d e n tro d o m u n d o dos h o m e n s ".
A v id a d o m e s tic a , p o rta n to , te n d e u a se r cla ss ific a d a
fora d o E sta d o e d a socie d a d e c iv il. P or qu e a fa m ília é e x
clu íd a d a socie d a d e c iv il? J ^ p ^ o d m o j._ r e ^ o n d e r qu e .£Ía .

p ro b le m a , n o ca so, é ju s ta m e n te qu e e la n ã o é v is ta c om o
piarte d o d o m ín io p riv a d o , qu e é o d o m ín io d a lib e rd a d e }i-
“b e rã l E sta e xclusã o d a fa m ília é s urpre e n d e nte , e m u m s e n
tid o , p o is a fa m ília p are c e u m a in s titu iç ã o p a ra d ig m á tic a
m e n te social, p o te n cia lm e n te ba se a da ju sta m e n te n o tip o de
coop era ç ã o qu e os lib e ra is a d m ira v a m n o re s to d a s ocie d a
de , a in d a qu e h o je e ste ja a tola d a ju s ta m e n te n o tip o de re s
triç õ e s a trib u tiv a s qu e os lib e ra is a b o m in a v a m n o fe u d a
lis m o . N ã o o b sta n te , os lib e ra is pre o cu p a d o s e m p ro te g e r
a v id a so cia l, e o acesso dos h o m e n s a ela , n ã o se pre o cu p a
ra m e m a sse gurar qu e a v id a d o m é stic a fosse org a n iz a d a de
a cord o com os p rin c íp io s de ig u a ld a d e e c o n s e n tim e n to ou
qu e os a rra n jo s d o m é stic o s n ã o im p e ç a m o acesso das m u
lh e re s a outra s form a s de v id a socia l. P or qu e os lib e ra is , qu e ,
se o p u s e ra m à h ie ra rq u ia atrib u tiv a n o d o tiffp ip çte c iê n r
'cT â Tcli re lig iã o , d a c u ltu ra e d a e conom ia , n ã o m o stra ra m n e
n h u m in te fé s s e é m fa z e r o m e sin o p e la e sfera dom é stic a ? 5

5. U m a e xplic a ç ã o é qu e os lib e ra is su ste nta v a m a m e sm a p o stura de re


je iç ã o qu e os a ntigos p ara co m o d o m í n io dom é stic o. A s sim com o os a ntigos
via m a esfera do m é stic a com o a lgo a ser tra n sc e n d ido p a ra qu e os h om e n s li-
o F E M IN IS M O 325

A e x plic a ç ã o ó b via é que os filó s o fo s h o m e n s n ã o t i


n h a m intere ss e e m q u e s tio n a r u m a d ivis ã o sexu al d o tra b a
lh o d a q u a l se b e n e ficia v a m . Isso fo i ra c io n a liz a d o n o n ív e l
d a te o ria p o r m e io d a ^s u p p £ jç ã Q jd e q u e £ § 4 2 ^^
cos são fix a d o s b io lo g ic a m e n te , u m a sup osiç ã o fu n d a m e n
ta d a e m a firm a ç õ e s ’ da in fe rio rid a d e das m u lh e re s o u na
íd e o T õ jp F ^ s e n tim e n ta l, que d iz qu e o
v in c u lo s e n tim e n ta l qu e surg e n a tu ra lm e n te e n tre m ã e e f i
lh o é in c o m p a tív e l com os tra ços de c a rá ter n e ce ss ários p a ra
\ v id a so cia l o u p o lític a ( O k in , 1981). M a s, e m bora os te ó
rico s lib e ra is te n h a m in v o c a d o u m a o u o u tra d e sta s s u p o s i
ções, elas n ã o são visõ e s d is tin ta m e n te lib e ra is e n ã o h á n e
n h u m a lig a ç ã o ló g ic a o u h is tó ric a e n tre ela s e a a c eita ç ã o da
d is tin ç ã o lib e r a l de E sta d o e socie d a d e .
O tris t e fa to d a q u e stã o é qu e qu a se t o do s os t e óric o s
p o lític o s d a tr ^ d ic ã C L ^ ^ foss e m s u a s .
vis õ e s s o bre a d is tin ç ã o , d e E sta d o e so cie d a d e , a c e ita ra m
u m a o u o u tra de stas ju s tific a tiv a s p a ra s e p ara r a vid a dpm é s-,
tic a d o re s to d a socie d a d e e p a ra re le g a r as m u lh e re s a ela .
C o m o o b s e rv a m K e n n e d y e M e n d u s , " e m qua se to d o s os
a sp e ctos, as te o ria s de A d a m S m ith e H e g e l, d e K a n t e M ill,
d e R ouss e a u e N ie tz s c h e e stã o m u itís s im o d is ta n te s , m a s,
n o seu tra ta m e n to das m ulh e re s, estes filó s o fo s , qu e d iv e r
g e m e m o utro s p o n to s, a pre s e nta m um a fre n te surpre e n d e n
te m e n te u n id a " . O s te óric o s de to d o s os p o n to s d o e sp e ctro
p o lític o a c e itara m qu e " o c o n tin a m e n te da s m u lh e re s à e sfe-
ra p riv a d a ídom e s tic a te ju s tific a d o p o r re fe rê n cia à n a ture z a
p a rtic u la ris ta , e m o c io n a l e n ã o u n iv e rs a l das m u lh e re s . V is-
to que e la só conh e ce os v ín c u lo s d o a m or e d a a m iz a d e , será
u m a pe ssoa p e rig o s a n a v id a p o lític a , pre p a ra d a , ta lv e z , p a ra

vre s p ud e ss e m p a rtic ip a r da v id a po lític a , p s lib e r a is , v ira m a M d a jip j a é &tic a


com o a lg o a ser d o m in a d o p ara que fic a sse m livre s p ara a v id a social. Isso p a
rece e xplic ar parda Jm eijJte.p o r qu e M ili e M a rx n ã o con sid e ra ra m a re pro du
ção u m d o m ín io d e lib erd a d e , e fius tiç a / Eles v ia m o p a p e l tra d ic io n a l d a m u
lh e r c o m o u m p a p e l m era m e n te " n a tu r a l " , inc a p a z de d e s e nv olvim e n to c u l
tur a l (cf. Jaggar, 1983: cap. 4; O k in , 1979: cap. 9).
326 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

s a c rific a r o in te re ss e p ú b lic o m a is a m p lo a a lg u m v ín c u lo
p e sso al o u pre fe rê n cia p riv a d a " (K e n n e d y e M e n d u s , 1987:
3 -4 ,1 0 ). E m o utra s p ala vra s, os lib e ra is e ndossara m a d is tin
ção de p ú b lic o e d o m é stico p e la s m e sm a s ra zõ e s q u ç o s a n ti-
11'berais a e ndo ss a ra m , n ã o p o r a cre d ita re m e m u m a d is tin -

; qu e re je ita ra m a d istin ç ã o de
p ú b lic o e p riv a d o te n d e ra m a a gu ç a r a d iv is ã o tra d ic io n a l de
d o m é stico e p ú b lic o . P or e x e m plo , e m bora os gre gos a n tig o s
n ã o tiv e ss e m n e n h u m a conce pçã o d o tip o de e sfera priv a d a
qu e os lib e ra is pre fe re m , fa z ia m u m a n ítid a d is tin ç ã o e n tre

6. M u it a s f e m in ista s d iz e m qu e a distin ç ã o de dom é stico e p ú b lic o s u r


g iu com a s epara çã o da s esfera s pú b lic a e priv a d a d o lib e ra lis m o o u fo i re fl e ti
da p o r ela (p or e x e m plo , N ic h o ls o n , 1986: 201; K e n n e d y e M e nd us , 1987: 6-7;
C olth e a rt, 19 86:112). Isso, p oré m , é h istoric a m e n te in e x a to , p ois " a a tribuiç ã o
de espaço p ú b lic o aos h om e ns e de espa ço [d om é stic o] às m ulh e re s é c o n tí
nu a na h istóric a o c id e n t a l" (E is enste in , 1981: 22). O lib e ra lis m o h e rd o u, na
v erd a d e , criou , esta d istinç ã o de p ú b lic o e do m é stico . P od e ser ve rd a d e que,
ao e n fa tiz a r a d istin ç ã o e n tre p ú b lic o e priv a d o d e n tro d a socie da de civil, os li
bera is obscure c era m a d istin ç ã o m ais fu n d a m e n t a l e ntre p ú b lic o e do m é stico
(P ate m a n, 198 7:109). M a s, se fo r assim, é um a distin ç ã o pr é -lib e r a l e n tre d o
m ínios m a s culino s e f e m in in o s qu e e stá s e ndo obs cure cid a ( E is enstein, 1981:
223; cf. G re e n , 1986: 34; N ic h o ls o n , 1986:161).
P or qu e esta c om pre e ns ã o lib e ra l o rig in a l d a esfera priv a d a se p e rd e u,
de m od o qu e " f a l a r de u m id e a l de m u n d o p riv a d o d e n tro do con te xto da so
cied a d e a m e ric a n a con te m porâ n e a é fa lar a re s p e ito da f a m ili a " ( E lshta in ,
1981: 322; cf. Berrn e G a us, 1983: 54)? T a lv e z porqu e as pessoas s up onh a m que
" p ú b lic o " e " p riv a d o " d e v e m m arc ar um a divis ã o n o espaço. Se fo r assim, e n
tã o, o lo c a l m a is pla u sív e l d o e spaço p riv a d o é a re sidê ncia da fa m ília . M a s a
distinç ã o lib e ra l de p ú b lic o e p riv a d o n ã o é u m a distin ç ã o e ntre dua s áre as f í
sicas, já q ue a socie d a de e a org a niz a ç ã o po lític a são e ss e ncia lm e nte c o n tí
guas. É u m a distinç ã o e n tre do is o bje tiv os e re sp on s a bilid a d e s difere nte s.
A g ir p u b lic a m e n t e é a c e itar re s po ns a hilid a rie p ri a fm om n c S a d n b e m cofftu m .
d e fin id o e m fun ç ã o d o intere ss e im p a rcia l p e lo s intere ss e s de cada pessoa. A o
a tu arm os priv a d a m e n te , n ã o se e xige qu e a tu e m os im p a rc i a í m e p f^'rq S js o -
m os livre s p ara busc ar nossos pró prio s fins, com p a tív e is corn os dir e itos dos
outro s, e p a r a nos u n irm o s a ou tro s n a busca de fin s c om p artilh a dos; A m b a s
as a tivid a d e s p o d e m o c orre r e m qu a lqu e r p arte d a socied ade . O fa to d e s a ir
m os a p ú b lic o n ã o signific a qu e som os re sponsá veis p or a tu a r im p arcia lm e n-
te ou o brig a dos a pre st a r conta s de nossas ações. O fa to de e starm os e m casa
n ã o nos is e nta de re sp e it ar os d ir e ito s das outra s pessoas.
O F E M IN IS M O 327

a esfera d o m é stic a e o d o m in io p ú b lic o , o qu e c ond e n a v a as


m üIR è fé fT à T m dsibilid a d e p ú blic a (E lsh ta in , 1981: 22; A re n d t,
1959: 24; K e n n e d y e M e nd u s , 1987: 6). L o n g e d e n e g a r a d i
vis ã o de d o m é stic o e p ú b lic o , " n o a pog e u da cons ciê ncia p o
lític a greg a e n c o n tra m o s urn a clare z a e u m a a rtic u la ç ã o in i
guala d as n a d e scriçã o de sta d is tin ç ã o " (A re n d t, 1 959:3 7). D e
m a n e ira s im ila r, e m b ora R ouss e a u se opuse ss e à se paraçã o
lib e ra l de p ú b lic o e priv a d o , ele a pre s e n to u sua vis ã o d e um a
s ocie d a d e in te g ra d a " c o m o se fosse e de ve sse ser in t e ir a
m e n te m a s culin a , suste n ta d a p e la e s tru tura fa m ilia r fe m in i
n a priv a d a " (E ise nste in, 1981: 77; cf. E lshta in , 1981:165; R ate-
m a n , 1975: 4 6 4 )/N a v e rd a d e , ele e nd oss ou a vis ã o gre g a de
qu e , q u a n d o as m ulh e re s se casavam, "d e s a p a re cia m da vid a
p ú blic a ; d e n tro das q u a tro p ared e s d e seu la r, elas se d e dic a
v a m a os c uid a d o s dos n e g ó c io s d o m é stic o s e d e suas fa m í
lia s . E ste é o m o d o de vid a pre s crito p ara as m ulh e re s, ta n to
p e la n a ture z a c o m o p e la ra z ã o " (R ouss e a u, in E is e n s te in ,
1981: 66). F in a lm e nte , e m bora H e g e l re je ita ss e a "s e p ara ç ã o
ra d ic a l" das esferas p ú b lic a e priv a d a do lib e ra lis m o , sua te o
ria " lõ rn e c e o e x e m p lo m a is v iv id o d a m a n e ira co m o a v id a
' d o m e stic a 's e n tim e n ta l fo i us a d a p a ra ,d e fin ir as. c a p a cid a d e s
d a s m u th e re s e ju s tific a r sua s u bordin a ç ã o, fa lta d e in stru ç ã o
e e xclus ã o dos d o m ín io s p ú b lic o s do m erc a d o , d a cid a d a n ia
e cía v id a in te le c tu a l" (E ls h ta in , 1 9 8 1:1 7 6; O k in , 1981: 85).
P o rta n to , a d is tin ç ã o de p ú b lic o e p riv a d o dos lib e ra is
é d ife re n te da d is tin ç ã o d e d o m é s tic o e p ú b lic o . H á fu n d a
m e n to s fe m in is ta s p a ra re je ita r a d is tin ç ã o lib e ra l d e E sta do
e socie d a d e , u m a v e z qu e a d is tin g u im o s d a d ivis ã o de d o
m é stico e p ú b lic o ? M u ita s fe m in is ta s c o nte m porâ n e a s a c e i-l
ta m as c a ra cte rístic a s e ss e ncia is d a vis ã o lib e r a l d a re la ç ã o!
e n tre E sta do e socie d a d e e, p o rta n to , e n tre p ú b lic o e priv a d o!
n e ste sentido?: P ara com e çar, a eleva ção gre g a do p o lític o b a -l 7

7. H á crítica s fe m in ist a s à d ivis ã o lib e r a l de E sta do e socie dade , m e sm o


qu a n do é d is tin g u id a d a divis ã o p a tria rc a l de do m é stic o e p úblic o. P a te m an ,
p o r e x e m plo , d iz que, ao co n trá rio dos críticos re public a no s, qu e bus c a m a p e
na s "re in s t a u ra r o p o lític o n a v id a p ú b lic a " , as crític a s fe m in ista s " in sis t e m
328 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

se ia-se e m u m ....... d u a lis m o de n a ture z a e c u lt u ra ju st a m e n t e do


t ip o qu e as f e m xnist a s a rg u m e n t a ra m e s t a r n a ra iz -d a .des
v a loriz a ç ã o c u lt u ra l das. m u lh e re s e m m n s s a .s p p ie d a d^
corre n t e im p o rt a n t e n a d e sv a loriz a ç ã o d o tra b a lh o das m u
lh ere s, p a rtic u la rm e n t e n o p a rt o e n a cria ç ã o dos filh o s , é a
id é ia de que ele é m e ra m e n t e n a tu ra l, um a qu e st ã o a nt e s d e
in s t in t o b io ló g ic o d o qu e d e c o n h e c im e n to c u ltu ra l. A s sim ,
as m u lh e re s são associad a s às fu nç õ e s m e ra m e n t e a n im a is
d o tra b a lh o d o m é stico , ao passo qu e os ho m e ns c o n q uist a m
vid a s v e rd a d e ira m e n t e h u m a n a s ao e s colh ere m a tivid a d e s
s e gu n d o o b je tiv o s c u ltu ra is , n ã o s e g undo in s tin t o s n a tura is .
A a firm a ç ã o d e q u e a p o lític a é u m a f o rm a d e v id a su
p e rio r b a s e ia -s e m u it a s v e z e s n a vis ã o de q u e a v id a socia l,
co m o a v id a d o m é stic a , e st á a to la d a n o d o m ín io h e t e rô n o -
m o d e n e c e ssid a d e , in t e re s s e e d e s e jo e s p e c ífico s " (Y oung,
1989: 253). S e g un do o p e n s a m e n to gre go , ,a v ii a ^ d a L p e r ^
m a n e c e " n o c írc u lo p re s crit o da n a ture z a : e sforço.e d e sc a n
so, tra b a lh o ' é c on su m o , com a m e sm a re g u la rid a d e s a tis
f e it a e se m o b je tiv o com q u e d ia e n o it e e v id a e m o rt e se
s e gu e m " (A re n d t, 1 9 59:1 06). E sta "re g u la rid a d e sem o b je ti
v o " d a v id a c o tid ia n a é, p o r f im , in s ig n ific a n t e , d e stin a d a a
p e rd e r-s e n o p ó d e o n d e v e io . A p e n a s a p o lític a é " g a ra n tia
c o n tra a f u tilid a d e d a v id a in d iv id u a l" dos cid a d ã o s (A re n d t,
1959: 56). C o m o a p o lít ic a J e n ± a ..im n s c e ^
n a t u re z a " , " e ra e v id e n t e qu e o d o m ín io da s n e c e ssid a d e s
da v id a na e sf e ra d o m é stic a era a c o n d iç ã o p a ra a lib e rd a
n t e id a p ó lis e xist e e m n o m e d a 'b o a
v id a ' n a p ó lis " (A re n d t, 1959: 30-1, 37). Ñ a v erd a d e , " n e n h u -

e m qu e u m a a lt e rn a t iv a à conc e pç ã o lib e r a l de ve a bra ng e r t a m b é m a rela ç ão


e ntre a vid a p ú b lic a e a vid a d o m é st ic a " (P at e nt a n, 198 7:108). Ela, p oré m , n ã o 1
e xplic a p o r qu e as f e m in ist a s qu e r e je it a m a dist inç ã o de p ú b lic o e dom é stic o
d e v e m int ere ss a r-s e t a m b é m p e la dist inç ã o lib e ra l de p ú b lic o e priv a d o. Seus
pró p rio s c om e nt ários sug ere m que n ã o t e m os n e n h u m a id é ia clara sobre a
m a n e ira c om o a in t e gra ç ã o d a p o lít ic a à socie d a de civ il a f e t aria a oposiç ã o de
p ú b lic o e do m é st ico (P a t e m a n, 1987: 120). F rances O ls e n of ere ce u m a crític a
f e m in is t a da d ist inç ã o e ntre E st a do e socie d a de v a le n d o-s e dos c om e nt ários
de M a rx sobre a a lie n a ç ã o (O ls e n, 1983:1 561-4).
O F E M IN IS M O 329

m a a tiv id a d e qu e s erviss e a pe n a s o p ro p ó s ito de g a n h a r a


v id a , d e s u ste n ta r a p e na s o proc e sso v it a l, tin h a p e rm is s ã o
p a ra e n tra r n o d o m in io p o lític o " (A re n d t, 1959: 37). É d if í
c il im a g in a r u m a conce pç ã o de v id a p ú b lic a e m m a is n ítid a
o p o siç ã o à d e scriç ã o de A d rie n n R ic h d o tra b a lh o fe m in in o
com o " p ro te ç ã o d o m u n d o , pre s erv a ç ã o d o m u n d o , re p a ro
d o m u n d o [...] o te c e r in v is ív e l d e u m a v id a fa m ilia r p u íd a e
s urra d a " (R ich , 1979: 205). f
A lé m disso, c om o a p rio rid a d e da p o lític a a nte a so cie
d a d e m u ita s ve z e s se b a s e ia e m s eu c a rá te r a le g a d a m e n te
u n iv e rs a l o u c o m u m , a pro te ç ã o de ste c a rá te r u n iv e rs a l re
q u e r qu e ^ o lí t ^ s ^ i^ ê £ ã f ã 3 ã ^ Õ ^ õ ír iIr u 5 ,'d ã 'e ^ p ic Ilic i-
~dã 3ê T é ~issoirw a ria v e lm e n te sig n ific o u s e p ar á -la das p r é o :
cüp ã ço é s d om é stic a s! C o m o obs erv a Iris Y oung, O '

ao e x a lta r as v irtu d e s da cid a d a nia com o p a rticip a ç ã o e m um


d o m ín io p ú b lic o u niv e rs a l, os hom e n s m o d e rno s expre ssa
ra m um a fug a da difere nç a s e x u a l.... A e xalta çã o de um d o
m ín io p ú b lic o de virtu d e e cid a d a nia m a sculin a s com o in d e
p e n d ê ncia , g e n e ra lid a d e e ra z ã o d e s a p a ixo n a d a .rn o tív e u-a
cria çã o da esfera priv a d a da fa m ília com o o lu g a r n o qu a l d e-
S ^ ^ r o n fin a d t J ^ ^ m o ç ã t^ - ü s e ntim e n to e as' necessidades
corporats; Á'ge'fle fâ T id ãd e' dò p ú blic o , p orta n to , de pe nd e da
e xclusão dãs m ulh ere s (Y oung, 1989: 253-4).

A o c o n trá rio dos gregos, qu e v a loriz a v a m a p o lític a com o


a tra n s c e n d ê n cia d a n a ture z a , e dos h e g e lia n o s , qu e v a lo ri
z a v a m a p o lític a com o a tra n s c e n d ê n c ia d a e sp e cificid a d e ,
fe m in is ta s e lib e ra is c o m p a rtilh a m u m c o m pro m is s o b á sico
d e v e r o p o d e r p ú b lic o c o m o u m m e io d e pro te ç ã o de in t e
resses e n e c e ssid a d e s e sp e cífica s.
Isso n ã o d e m o n stra qu e fe m in ista s e lib e ra is concord a m
e m to d o s os a sp e ctos da re la ç ã o e_
-___________________ n tre
. lis ta d o e socie d a d e .
M e sm o q ú c ip n iç prd c m o s e m qu e o p o d e r p ú b lic o de ve ser
ju s tific a d o e m fu n ç ã o da pro m o ç ã o dos inte re ss e s priv a d o s
Y ú f socie d a d e c iv il, h á m u ita s áre as de disc ord â n cia p o te n cia l.
P rim e iro , p o d e ría m o s p e n s a r q u e a vid a s ocia l n ã o é tã o e s
tá v e l n e m tã o a u to -a ju s tá v e l co m o supõem_os. lib e ra is > P or
330 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T EMP O R Â N E A

e x e m plo, pod e ría m o s p e n s ar que os in d iv íd u o s n ã o irã o , p o r


si m esm os, s u s te n ta r a re d e d e re la çõ e s socia is le g a d a a eles.
E le s o p ta rã o p o r e n tra r e s a ir d e to d o s os v ín c u lo s so cia is
com ra p id e z tã o e sto n te a n te qu e a socie d a d e irá se d e s in te
gra r, a m e n os qu e o E sta do in te rv e n h a a tiv a m e n te p a ra e n
cora ja r os grupos sociais. E sta é a m e ns a g e m fin a l dos c o m u
n itá rio s , um a m e ns a g e m qu e , a pesar de sua ê nfa se n a socia
b ilid a d e h u m a n a , pre s su p õ e e fe tiv a m e n te qu e as pe sso as
pre cis a m ser orie n ta d a s p e lo g o v ern o p ara a v id a socia l (cap.
6, seção 4 b a cim a). T ra ta-s e , poré m , de u m a pre ocup a ç ã o le
g ítim a e p o d e m o s q u e re r qu e o g o v e rn o e n cora je a m a n u
te n ç ã o de c e rto s v ín c u lo s socia is, e n tre ele s os fa m ilia re s , e
to rn e a e xtin ç ã o de ste s v ín c u lo s m a is d ifíc il.
S e gundo, po d e ría m o s q u e stio n a r a fé do lib e ra lis m o , em
qu e , "se to d o s tiv e re m acesso liv re e e q ü ita B v 5 ^ 5 T m S c « a è
e > p fé 's s a ^ v é rç tã ^
‘fa ls id a d e , e a co m pre e n s ã o sobre o p re c o n c e ito , s e m .,q u e o.
g o v e rn o te n h a de m o n ito ra r estes d e s e n v o lvim e n to s c u ltu e ,
ra is. O s lib e ra is te n d e m a cre r q u e a o pre ss ã o c u ltu ra l n ã o
p o d e s o bre viv e r sob co ndiçõ e s de lib e rd a d e c iv il e ig u a ld a d e
m a te ria l. M a s p o d e h a v e r a lg um a s re pre s e nta çõ e s c u ltu ra is
fals a s e p e rn icio s a s qu e se ja m in v u ln e rá v e is à crític a socia l,
qu e so bre viv a m e até m e sm o flore s ç a m e m u m a lu ta liv re e
ju s ta com a v e rd a d e . A p orn o g ra fia e o u tra s re pre s e n ta çõ e s
c u ltu ra is das m u lh e re s são u m e x e m plo . O s l i b era is a cre d i-
ta m qu e , se a p o rn o g r a fia n ã o pre ju diç a .a s ,m ulh e re .st>, a i& l-
síctãcte d e su a re pre s e nta ç ã o da s e xu a lid a d e nã o. é fu n d a -
m e n to p a ra que. s e ja re s trin g id a , n ã o p o rq u e as id é ia s jilp
te n h a m p o d e r, m a s p orq u e a lib e rd a d e d e disc urso e a ssocia
ção n a s ocie d a d e c iv il é u m -c a m p o d e te ste m e lh o r p a ra as
id é ia s d o qu e o a p a re lh o c o e rciv o d o E sta do . Para a lg u m a s
pessoa s, iss o p a re c e rá u m a in g e n u id a d e in ju s tific a d a a re s
p e ito d o p o d e r d o liv re d is c urs o , n a socie d a d e c iv il, p a ra
e rra d ic a r a opre s s ã o c u ltu ra l n a socie d a d e c iv il. C o m o d iz
M a c k in n o n , se o liv r e d is c urs o a ju d a a d e s c o b rir a v e rd a d e ,
" p o r q u e e sta m os a gora - co m m a is p o rn o g ra fia d is p o n í
v e l d o qu e a n te s - e n te rra d o s e m to d a s e stas m e n tira s ? "
O F E M IN IS M O 331

(M a c k in n o n , 1 9 8 7 :1 5 5). HIa a rg u m e n ta qu e e sta íé n o livre


discurso m ostra que " a m orü id a d e lib e ra l n ã o p od e lid a r com
flu s õ e f '^ € ç m s fífu p n a re a lid a d e " (M a c k in n o n , 1 9 87 :1 6 2).
E m b ora estas áre as de p o ss ív e l d is p u ta e n tre lib e ra is e
fe m in is ta s seja de p rim e ira im p o rtâ n c ia (e e n vo lv a a lg um a s
das qu e stõ e s e m p íric a s a re sp e ito do E sta do e da c u ltu ra que
s u s cite i n o fim do ú ltim o c a p ítu lo ) ela s e stã o lo c a liz a d a s e m
u m c o m pro m is s o c o m p a rtilh a d o co m a p rio rid a d e d a v id a
socia l a n te a p o lític a .

(b) O pessoal e o socia l: o d ire ito à priv a cid a d e

A d ivis ã o lib e ra l o rig in a l de p ú b lic o e p riv a d o fo i s u p le


m e n ta d a nos ú ltim o s ce m a nos p o r um a s e gu nd a d istin ç ã o ,
que s e para jo p e sso a l ou ín tim o do p ú b lic o , n a q u a l o " p ú b li
c o " in c lu i E sta d o e so cie d a d e c iv il, E sta s e g u n d a d is tin ç ã o
s urg iu p n m â riã m é n te e ntre os ro m â ntic o s , n ã o os lib e ra is , e,
n a v erd a d e , s urg iu , e m p a rte , e m op osiç ã o à g lo rific a ç ã o l i
b e ra l d a socie d a d e . E n g u a n ta os, lib era ls- c lá s s ico s-e n fa tiz a -
va m a jQ á a d a d ^ .c o m a a d ^ d a jife e rd a d e p e s
so a l, os ro m â n tic o s e n fa tiz a v a m os e fe ito s d a c o n form id a d e
s e xu al sobre a in d iv id u a lid a d e . A in d iv id u a lid a d e era a m e a
ç a d a n ã o a p e n a s p e la c o e rç ã o p o lític a , m a s ta m b é m p e la
pre ssão a p a re n te m e nte o nipre s e nte das e xp e cta tiv a s sociais.
P ara os ro m â n tic o s , " p riv a d o " s ig n ific a

d e svincula ç ã o da e xistê ncia m un d a n a [e] é a ssocia do com o


a uto d e s e nvo lvim e n to , a a uto-e xpre ssã o e a cria çã o a rtístic a .
[...] N o p e n sa m e nto lib e ra l clá ssico, p o r contra ste , '(priv a d o "
re fe re -se à socie da de, n ã o ao re tiro pesso al, e a sociedade^ é
. u m d o m ínio de a tivid a d e ra cio n a l livre , n ã o de li cença expre ss
á y a ,;Õ lib e ra lis m o prote g e esta esfera re strin g in d o o exercício
do pod er gov e rn a m e nta l e e num era ndo as lib erd a d e s civis. O
ro m a n tis m o p uro e o lib e ra lis m o co nv e ncion a l estã o se para
dos n ã o apenas p elas suas noçõ es de vid a priv a d a , m as ta m
b é m p elas suas m otiv a çõe s p ara d e sign a r u m a e sfera priv a d a
p riv ile g ia d a (R ose m blum , 1987: 59).
332 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

Q s ro m â n tic o s in c lu íra m a v id a s o cia l n o d o m ín io p ú -


b lic o p orq u e as lig a çõ e s da socie d a d e c iv il, ap esar de n ã o p o -
E ticà U 'a ifid á s u je ita m os in d iv íd u o s ão ju lg á m e n tõ ê a p õ s s í-
v 3 x é n s u ra ^ o s .-o u tro s / A pre s e nç a dos o u tro s p o d e d is tra ir,
d e sc on c e rta r o u sim p le s m e n te ca nsar. O s in d iv íd u o s p re c i
sa m de te m p o p a ra si, lo n g e d a v id a p ú b lic a , p ara c o n te m
p la r, e x p e rim e n ta r id é ia s im p o p u la re s , re g e n e ra r â f o rç a .e
a lim e n ta r as re la çõ e s ín tim a s . N e sta s qu e stõ e s, a v id a socia l
p o d e s er tã o e xig e n te q u a n to a v id a p o lític a . N a v e rd a d e , " a
priv a cid a d e m o d e rn a , nas suas fu nçõ e s m a is re le va nte s, para
a brig a r o ín tim o , d a g g fe -
ra p o lític a , m a s da s o c ia l" (A re n d t, 19 59:3 8; cf. B e nn e G a us,
1983: 53). P orta n to , qs ro m â n tic o s via m c om o p ú b lic a s " t o
das as associações form a is com outros , e xceto as rela çõ es ín
tim a s co m o a a m iz a d e e o a m o r" (R os e nb lu m , 1987: 67).
E m bora esta s e gund a d is tin ç ã o de p ú b lic o e p riv a d o te
n h a s urgid o e m oposiç ã o ao lib e ra lis m o , vos lib erais, m o d e rno s __
a c e ita ra m b o a p a rte d a vis ã o ro m â n tic a e te n ta ra m in te g ra r
sua ê nfa se sobre as pre ssõ e s so cia is à ê nfa s e lib e ra l clá ssica
sobre a lib e rd a d e so cia l. A ê nfa s e ro m â n tic a sobre a p riv a
cid a d e , n a v e rd a d e , c o in c id ia co m os te m ore s lib e ra is a re s
p e ito do p o d e r c o e rc iv o qu e os gru p o s e x e rcia m sobre seus
p ró p rio s m e m bro s nas associações p ro fis sio n a is , sin dic a to s,
in s titu iç õ e s e d u c a c io n a is e tc., e a re s p e ito d a pre ss ã o m a is
g e n e ra liz a d a p e la u n ifo rm id a d e socia l, c o ntra a q u a l a p lu ra
lid a d e de associações e o m erc a do d e id é ia s forn e c ia m pouc a
pro te ç ã o à in d iv id u a lid a d e . C o m o re sulta do ,^Jb.fi]:ã lÍS ín Q
m o d e r n o js t^

n io ih tè rp ^ ^ e m -p riv a ã a lio q u a l os in d iv íd u o s poss a m te r


privacidade. A v id a p riv a d a , p a ra os lib e ra is , s ig n ific a a gora
e n v o lv im e n to a tiv o n a s in s titu iç õ e s d a socie d a d e c iv il, com o
e n fa tiz a v a m os lib e ra is clássicos, e o iso la m e n to p esso al a nte
a v id a so cia l ord e n a d a , co m o e n fa tiz a m os ro m â n tic o s 8.

8. E sta vis ã o ro m â n tic a da priv a cid a d e to m o u-s e tã o in te gra d a ao lib e


ra lis m o m o d e rn o qu e a lgum a s pe ssoas a co n sid e ra m c om o a conc e pç ã o l i
b era l orig in a l (por ex e mplo, B e nn e G aus, 1983:5 7-8). C o ntudo , e mbora a id é ia
O F E M IN IS M O 333

E sta s e gund a form a de distin ç ã o de p ú b lic o e priv a d o do


lib e ra lis m o m u ita s v e z e s é d is c u tid a sob seu le g ítim o d is fa r
ce de um " d ir e ito à p riv a c id a d e " . C o m o a p rim e ira d is tin ç ã o j
de p ú b lic o e p riv a d o , e la se to rn o u a lvo da crític a fe m in is ta . I
A de cis ã o qu e d e u status c o n s titu c io n a l, ao d ire ito à p riv a c i
d a d e nos E sta dos U n id o s , G riswold contra C onnecticut (381
U 5 "4 79 [19 65]) fo i v is ta .in ic ia lm e n te com o u m a v itó ria p a ra
as m u lh e re s , já qu e d e te rm in a v a qu e le is q u e n e g a sse m o
acesso à contra c e p ç ã o a m u lh e re s casadas v io la v a m o d ir e i
to de priv a cid a d e . C o n tu d o , de sde e ntã o, torn o u-s e claro que
este d ire ito , com o in te rpre ta d o p e lo S upre m o T rib u n a l A m e
ric a n o , ta m b é m p o d e ser u m im p e d im e n to p ara a re fo rm a
a d ic io n a l d a opre ss ã o d o m é stic a da s m u lh e re s . A id é ia de
u m d ire ito à priv a c id a d e fo i in te rp re ta d a com o s ig n ific a n d o
que q u a lq u e r in te rfe rê n c ia e x te rior n a fa m ília é u m a viola ç ã o
d a priv a cid a d e . C om o re s u lta d o , s e rviu p a ra im u n iz a r a fa
m ília c o n tra re form a s d e stin a d a s a pro te g e r os intere ss e s das
m u lh e re s - p o r e x e m plo, a in te rv e n ç ã o e sta ta l qu e p ro te g e
ria ás m u lh e re s c o n tra a buso, qu e c a p a c ita ria as m u lh e re s
a m o v e r u m a aç ão p o r fâ lta d e p a g a m e n to de p e n s ã o a li
m e n tíc ia o u re c o n h e c e ria o fic ia lm e n te o v a lo r d o tra b a lh o
d o m é stico (T aub e S chn e id er, 1 9 82:1 2 2). O d ire ito à p riv a c i
d ade "re fo rç a a divis ã o e n tre p ú b lic o e priv a d o qu e [...] m a n
té m o p riv a d o a lé m d o a lc a n c e da co m p e ns a ç ã o p ú b lic a e
d e s p o litiz a a s uje iç ã o da s m u lh e re s d e n tro d e le " (M a c k in -
n o n , 1987: 102).
P o rta n to , e sta s e gu nd a d is tin ç ã o de p ú b lic o e p riv a d o '!
re forço u a te n d ê n cia d e is e n ta r as rela çõ es fa m ilia re s d o te s te i
d a ju s tiç a p ú b lic a . H á , poré m , a lgo in c o m u m a re sp e ito da in - f
terpre ta ç ã o de d ire ito à priv a cid a d e d a d a p e lo S upre m o T rib u -

de re tira r-s e da socie d a de possa ser e nc ontra d a e m lib e ra is clá ssicos (por
e x e m plo , a C arta da tolerância d e Lock e), ela é p rim a ria m e n t e u m a posiç ã o l i
b eral adota d a . V e r a priv a cid a d e e m funç ã o do a b a ndo no de to d os os pa p éis
da socie d a de civil, lo n g e de ser a posiç ã o lib e ra l orig in a l, sign ific a qu e jlu p e s s
so ai e o._ pri^ a i o r a r ru iiaa QdadQ S:de virtu a lm e n U - torio a m b ie nt e In s til a d o -
n a l. O re su lt a do é u m cola pso dra m á tico d a d istin ç ã o lib e ra l tra d icio n a l e ntre
p ú b lic o e priv a d o c o m o e n tre g ov e rno e s od e d a d é 'T(R os e nblum , 1987: 66).
334 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Á N E A

n a l, p o is e la d e fin e a p riv a c id a d e in d iv id u a l e m fu n ç ã o d a
p riv a c id a d e c o le tiv a d a f a m f l i a . ^ j f i r e f i ^ r i Y ^ a d ^
c o n s id e ra d o v in c u la d o às f a m ilia s c o m o u n id a d e s, n ã o a
c a d a ü ifT d e se us m e m b ro ^ C o m o re s u lta d o , os in d iv íd u o s
n ã o tê m n e n h u m d ir e ito à p riv a c id a d e d e n tro d a fa n a íjia . Se
dü ৠp'éssóãs se "casam, o d ire ito à p riv a c id a d e g a ra n te q u e o
E sta do n ã o in te rfe rirá n as d ecisõ e s d om é stic a s do casal, M a s,
se a m u lh e p n ã p fiv e r p riv a c id a d e d e n tro d o casam en to , p ara
com e ç ar, e n e n h u m p o d e r n a e la b ora ç ã o d e sta s d e c isõ es,
este d ire ito de priv a cid a d e fa m ilia r n ã o lh e forn e c e rá n e n h u -
m á p riv a cid a d e in d iv id u a l e, n a v e rd a d e , e le im p e d e o E s
ta d o d e a g ir p a ra p ro te g e r a su a p riv a c id a d e .
H á a lg u n s casos e m qu e o T rib u n a l re c o rre u e x p líc ita
m e nte à priv a c id a d e in d ivid u a l d a m u lh e r, m e sm o d e n tro d a
fa m ília . M a s e le s p a re c e m s er a e xce ção à re gra (E ich b a u m ,
1979). P or qu e as re la çõ e s fa m ilia re s n ã o fo ra m suje ita d a s ao
te ste d a priv a cid a d e in d iv id u a l? A re sposta n ã o p o d e ser a de
que a fa m ília é v is ta c o m o o â m a go d a v id a priv a d a , p orq u e
? p ro b le m a , n o caso, é ju s ta m e n te o fa to d e q u e a n o ç ã o d e
iriv a cid a d e a p lic a d a e m o u tro s casos n ã o é a p lic a d a às re la
t e s fa m ilia re s . C o m o d iz June E ic h b a u m , a id é i a d e p riv a c i
d a d e b as e a d a n a fa m ília c o n tra d iz to d o o s e n tid o d e u m d i-
j e it o à priv a cid a d e : " u m d ire ito d e priv a cid a d e qu e prote g e o
intere ss e d e u m a u nid a d e cole tiv a , a fa m ília , à cu sta d a a u to
n o m ia in d iv id u a l ig n o ra in te ira m e n te a n e c essid a de h um a n a
d e p riv a c id a d e e o b scure c e n e c e s s a ria m e n te o s ig n ific a d o
m a is p ro fu n d õ H ã p n v ã a d â n é ^d E c h b a u m , 1979: 368). P ro
t e g e r^ 'fa m ília d à in te rv e n ç ã o " e sta ta l n ã o g a ra n te n e ce ssa
ria m e n te às m u lh e re s (o u aos filh o s ) u m a e sfera p ara o is o
la m e n to p e sso a l d a pre s e n ç a de o u tro s o u d a pre ss ã o p e la
c o n fo rm id a d e às e xp e cta tiv a s do s o u tro s .
P or qu e o S u pre m o T rib u n a l in te rp re to u a p riv a c id a d e
co m o base ad a n a fa m ília ? A re sposta p arece e n co n tra r-s e n a
in flu ê n c ia p e rsiste n te d e id é ia s p ré -lib e ra is a re s p e ito d a n a
tu ra lid a d e da fa m ília tra d ic io n a l. Isso é e vid e nte n a lo n g a tr a i
diç ã o d e d efe sas ju d ic ia is d a s a n tid a d e da fa m ília , d a q u a l I
" d ir e ito à priv a cid a d e " é apen a s o ú ltim o e pisó dio . A p rim e if
ü F E M IN IS M O 335

ra d ef e s a da priv a cid a d e ba se ada n a f a m ília f o i a d o u trin a


do pater fa m ilia s , na q u a l " o s a ssuntos f a m ilia re s era m c o n
c e bidos c a m p u m a e xt e ns ã o d a p e rso n a lid a d e d o pater fa m b
U a fj, d e m o d o q u e " in t e ry irn o s jie g á c io s f a m ilia re s , d a u m
hom e m erg u m a in v a s ã o d e sua esfera priv a d a pe sso al j...| n a
e ssê ncja . n ã o d if e re n t e d e e x ig ir qu e to m a s s e b a n h o com
m ais fre q ü ê n cia " (B e nn e G a us, 1983: 38). S ob esta d o u trin a ,
as m u lh e re s t o rn a ra m -s e pro prie d a d e do m a rid o n o ca sa
m e n to , d e ix a ra m de s er pessoa s sob a le i e tiv e ra m seus in
teresses d e fin id o s p e la f a m ília e s u b m e rg id o s p o r ela , o qu e
era co n sid e ra d o s er sua p o siç ã o n a t u ra l. C o m o re c o n h e c i
m e n to gra d u a l dos d ire it o s de o u tro s m e m bro s d a f a m ília ,
h ou v e d e s a fios à a utorid a d e d o p a i. M a s a le g itim a ç ã o da f a
m ília tra d ic io n a l pro p orc io n a d a p e la d o u trin a d o p a te rfa m i
lia s f o i re a firm a d a p o r trib u n a is con s erv a dore s p o r m e io de
u m a d o u trin a d a " a u t o n o m ia f a m ilí á r C 'n a d é c a da de 1920.
E m b ora a f a m ília n ã o f e s s e p ro prie d a d e d o p a i, a e s tru t u ra
b á sic a d a f a m ília tra d ic io n a l p e rm a n e c e u im u riè a r e f orm a
da_ civilizaçã£L£
'u m a |^ f é c o n 3 1 c ã o p ara a .e s t a b ilid a d e s o c ia l (p o r e x e m plo ,
M e yer contra Nebraska, 262 U S 390 [1 923]).
C o m a m ud a nç a da vis ã o d e f a m ília n a d é ca da de 1960,
a d o u trin a d a a u t o n o m ia f a m ilia r f o i, p o r sua v e z , d e s a fia d a ,
e o trib u n a l pre cis o u d e urn a nov a ju s t if ic a t iv a p ara d e ix a r a
f a m ilia e m p a z . A ê nf a s e e m erg e n t e sobre a priv a cid a d e era
u m s u b s t it u t o t e n t a d o r, p o is a pre o c u p a ç ã o lib e r a l c o m a
in t im id a d e in d iv id u a l s o bre p u n h a -s e p a rc ia lm e n t e à p re o
cup a ç ã o co n s e rv a d ora co m a a u t o n o m ia f a m ilia r e o f e re cia
c ert a le g itim id a d e m o d e rn a a e st a p o lít ic a a n tig a . A m u d a n
ça, p oré m , f o i m a is cosm é tic a q u e re a l, p o is o que o T rib u n a l
d e s ig n o u co m o priv a c id a d e era n o t a v e lm e n t e s im ila r ao q u e '
se d e sig n a v a a n t e rio rm e n t e co m o pater f a m ilia s o u a u t o n o -
m ia f a m ili a ri. N a v e rd a d e , o S u pre m o T rib u n a l A m e ric a n o

9. É n ot á v e l c o m o polít ic a s qu e era m ju stif ic a d a s co m base no f u n d a


m e n t o d e qu e a f a m íli a era a proprie d a d e priv a d a d o h o m e m são a gora ju s t i
fic a d as s obre o f u n d a m e n t o de qu e ho m e n s e m ulh e re s t ê m ig u a l d ir e it o à
336 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O RÂ N E A

n ã o n e go u qu e se u d ir e ito à priv a c id a d e b a se a do n a fa m ília


foss e u m a c o n tin u a ç ã o da a n tig a d o u trin a d a a u to n o m ia
fa m ilia r. (^ T rib u n a l ju s tific o u s u a ê nfa s e sobre a .p n v a d d a -
d e c o nju g a l a c e ntu a n do " o a n tig o e s agra do c a rá ter do casa-
m ê n fo c õ m o a b a s e d e suas d e cisõ e s " (G re y, 1980: 8 4-5 ; cf.
'b íc b b b u m , r9 7 9 : 372). In v e rs a m e n te , o T rib u n a l n e g o u a té
m e s m o os co m p o n e n te s m a is b á sicos d e u m a con c e pç ã o l i-
b è ra í da p riv a cid a d e in d iv id u a l qu e nã&~ e stiv ere m lig a d o s
à e s tru tu ra f a m ilia r tr a d ic io n a l - p o r e x e m plo , o S u pre m o
T rib u n a l c o n tin u a a s u s te n ta r le is qu e c rim in a liz a m as r e
la çõ e s hom oss e xu a is conse nsu ais e ntre a d u lto s em suas p ró
pria s casas, e a n e g a r qu e e stas le is s e ja m u m a v io la ç ã o do
(d ire ito à priv a c id a d e de q u a lq u e r pessoa (Bowers contra H ard
wick, 478 U S 186 [1 9 8 6]).
P orta n to , o id e a l ro m â n tic o d e priv a c id a d e a d e n tro u a
le i fu n d id o com o id e a l cons e rv a dor d a fa m ília h eteross e xu a l,
o fic ia lm e n te org a niz a d a , c om o b a stiã o d a socie da de . E m b o
ra o trib u n a l in vo q u e a lin g u a g e m da d istin ç ã o lib e ra l de p ú
b lic o e p riv a d o , está, n a v e rd a d e , in v o c a n d o u m a d is tin ç ã o
n ã o lib e ra l de p ú b lic o e dom é stico , u m a d istin ç ã o qu e su b o r
d in a a p riv a c id a d e in d iv id u a l à a u to n o m ia fa m ilia r. M a c-
k in n o n obs erva qu e

prov a v e lm e nte , n ão é coincid ê ncia que as pró pria s coisas que


o fe m in is m o consid era c e ntra is na suje iç ã o das m ulh ere s - o
p ró p rio lu g a r, o corpo; as pró pria s rela ções, h eterosse xuais;
as pró p ria s a tivid a d e s, in te rcurs o e re produç ã o; e os pró prio s
s e n tim e nto s, ín tim o s - form a m o-â m a go do. aue é abra ng id o
_ p e la d o u trin a ria priv a cid a d e . A p a rtir desta p ersp e ctiv a , o
conc e ito ju ríd ic o de priv a cid a d e pod e pro te g e r e prote g e u o

priv a cid a d e (ver, p o r e x e m plo , B e n n e G a us, 1983: 38). C o m o o bs e rv a m T aub


e S chn e id er, " o fra ca sso do E sta do e m re gu la m e n t a r a esfera dom é stic a a gora
é m uit a s ve z e s ju s tific a d o c o m base no fu n d a m e n to de qu e a le i n ã o dev e in
t e rf e rir e m rela çõe s e m o cio n a is e nv olvid a s n o d o m í n io da f a m ília p orqu e é
m u ito severa. [...] A im p ort â n ci a de sta pre ocupaçã o, poré m, é re b a tid a p e lo fa to
de que o m e sm o re s u lt a d o f o i ju s tific a d o a n t e riorm e n t e p o r ficçõ e s jurídic a s ,
c om o a m ort e c iv il das m ulh e re s n o c a s a m e nto " (T a ub e Schne id er, 1982:122).
O F E M IN IS M O 337

lug ar do espancam ento, do e stupro co njug a t e do tra b a lho


explorado das mulheres; preservou as instituiçõ es centrais pe
las quais as m ulheres são privadas de id entid a d e, a utonomia ,
controle e a utod e finiçã o. [...j.E ste d ire ito à priva cid a d e é um
d ire ito dos h om ens de "sere m d eixa dos e m p a z^xtara o p ri-
m ir as mulheres, uma p or vez. [...] Ele m antém alguns homens
fora dos quartos de outros homens (M ackinnon, 1987:101-2).

A ra z ã o p e la q u a l n ã o é u m a c oin cid ê n cia q u e o d ire ito à


priv a cid a d e te n h a im u n iz a d o a esfera d o m é stic a n ã o é o fa to
de qu e a priv a cid a d e lib e ra l acarre te a prote ç ã o da d o m e stici
dad e , m as, antes, o fa to de qu e os pro te tore s d a d o m e sticid a
de a d o ta ra m a lin g u a g e m d a p riv a cid a d e lib e ra l.
U m a ve z d e slig a d a s das id é ia s p a tria rc a is d e a u to n o m ia
fa m ilia r, cre io q u e a m a io ria d as fe m in is ta s c o m p a rtilh a as
m o tiv a çõ e s lib e ra is b ásicas a fa v o r d o re s p e ito à p riv a c id a
d e - is to é, o v a lo r d e te r c e rta lib e rd a d e d ia n te d a d e s a te n
ção e d as in c e ss a nte s e xig ê n cia s d o s o u tro s , e o v a lo r d e
te r e sp a ço p a ra e x p e rim e n ta r id é ia s im p o p u la re s e n u trir
re la çõ e s ín tim a s (A lle n , 1988). (Ç p n sid e re .a c o n h e cid a a fir-
m a ç ã o d e V irg in ia W o o lf de qu e tod a s as. m ulh e re s d e via m
te r " u rn q u a rto so p a ra si^.) D e q u a lq u e r m o d o , a conc e pç ã o
d e priv a cid a d e d o lib e ra lis m o , co m o su a d is tin ç ã o d e E sta
d o e s o cie d a d e , n ã o é u m a d e fe s a d a d iv is ã o d e d o m é s tic o
e p ú b lic o . P ois a in tim id a d e pre cis a d e d efe s a fo ra d a fa m í
lia , e a s o lid ã o pre cis a s er d e fe n d id a d e n tro d a fa m ília /1A
lin h a e n tre p riv a d o e n ã o -p riv a d o , p o rta n to , v a i a lé m d a
d is tin ç ã o d e p ú b lic o e do m é stico . E m b ora te n h a m o s e sp e-,
ra nça d e qu e a fa m ília form e u m " d o m ín io d e priv a cid a d e e
is o la m e n to p e s so a l", p ara m u ita s p e sso a s, a f a m ília é, ela|
p ró p ria , u m a in s titu iç ã o d a q u a l d e s e ja m p riv a c id a d e e a|
açã o e s ta ta l p o d e s e r n e c e ss ária d e n tro d a e sfera d o m é s ti-i
ca p a ra p ro te g e r a priv a cid a d e e im p e d ir o a b u so 10. ¡

10. A lg u m a s f e m inist a s lib e ra is com e ç ara m a d e s afiar a f a m íli a tra d ic io


n a l. A c ara cteriz a ç ã o d o f e m in is m o lib e r a l c o m o int ere s s a d o ap e n a s n o aces
so ã esfera p ú b lic a " to m o u -s e cada v e z m a is pro ble m á tic o . A s f e m in is t a s libe-,
rais, co m o m u ita s o utra s, c o nc e ntrara m re g u la rm e n t e sua a t e n ç ã o n a v id a
338 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O RÁ N E A

D a d o o c ará ter c e ntra l d a f a m ilia p ara o siste m a de d e si


gu a ld a d e s exual, é cru cia lm e nt e im p ort a n t e qu e as t e oria s de
ju stiç a pre s t e m a te nç ã o n o s e fe ito s d a org a niz a ç ã o f a m ilia r
p ara as vid a s das m ulh ere s . A re cusa das te oria s da c orre nte
d o m in a n t e e m f a z er .isso m u it a s v e z e s.é e xplic a d a d iz e n d o
se qu e a f a m íli a fo i re le g a d a a o d o m ín io priv a dos M a s, e m
c e rto s e ntid o , isso s ub e stim a o pro ble m a . A f a m ília .n ã o foi
t a n to rele g a d a a o d o m í n io priv a d o qua ntQ ..simple sm e nte igv.
n ora d a p o r i n t e ir o / E os intere ss e s das m u lh e r e s são p re ju
dic a dos p e la omiss ã o d a t e oria p o lític a e m e x a m in a r a f a m í
lia , q u e r nos seus co m po n e n te s pú b lic os, q u e r nos priv a dos.

È
is os p a p é is dos g ê n eros a ssocia dos à f a m ília tra d ic io n a l
tão e m c o n flito , n ã o ap e n as com os id e a is p ú blic o s de d i
to s e re cursos ig u a is , m a s t a m b é m com a c o m pre e n s ã o
era l das c on diçõ e s e v a lore s da v id a priv a d a .

3. U m a é tic a d o c u id a d o

U m a c on s e qü ê ncia da d is tin ç ã o de p ú b lic o e d o m é s ti


co e d o b a n im e n to das m u lh e r e s p ara a esfera d om é stic a é1

1 d a ^m u U je .re § " A N ich olso n, 1986: 22-3; cf. W e n d e ll, 1987). P ar a dox a l
m e nte , q u a n d o os lib era is e ndoss a m a re form a d a fa m ília , são m u ita s ve z es
a cusa dos de " d e s v a loriz a r a esfera priv a d a " (E lshtain, 1981: 243; cf. N ic ho ls on ,
1986: 24). Jean E ls hta in a firm a que o " im p e r a tiv o lib e ra l " é " to rn a r to t a lm e n
te p o lític a ou p ú blic a a esfera p riv a d a " ( E lshtain , 1981: 248). A o to m a r a cria -
. ção dos. filh o s u m a Ç é sp on s a bilid a d e pú blic a , o lib er a lism o , " d e sp iria a esfera^
priv a d a d a ra z ã o c e h tra l de. su a e xistê ncia e de sua prin cip a l f o rt e d e e moç ã o
e v a lor hu m a nos . S im ila rm e n t e , e x te rioriz a r tod a s as ativid a d e s de a d m in is
tra ç ã o da casa, to m á -l a s a tivid a d e s públic a s, seria v icia r o d o m ín io priv a d o
a in d a m ais. 'T od a s as pessoas, n a m e did a do possív el, s eria m tra nsform a d a s
e m pe ssoas pú blic a s, e o ro m p im e n to das form a s d e v id a socia l inicia d a s p ela
in d u s tria li z a ç ã o s eria c o n cluíd o p e la a bsorç ão d o priv a d o , tã o c o m p le t a m e n
te q u a n to possív el, p e lo p ú b lic o .' E sta é a con clus ã o d o im p e ra tiv o lib e ra l "
( E lshta in , 1981: 248, c ita n d o R. P. W o lff). P ara u m a discussã o das pr e o cu p a
ções fe m inista s rec e ntes a re sp e ito da i j i h p p ií S a çap (p or e x e m plo ,
a_extensão do p e ns a m e n to-co n tra tu a i-a a ca sa me nío.e .à fa m ília ), v er, de m in h a
a utoria , " R e th in k in g th e F a m ily " , Philosophy and Public A ffa irs, v o l. 20 (1991).
O F E M INIS M O 339

qu e os h o m e n s e m ulh e re s p a ss ara m a ser associados co m


m o d o s d if e re n t e s d e p e n s a m e n to e s e n tim e n to . A o lo n g o
de to d a a h is toria da filo s o fia o c id e n t a l, e n c o ntra m o s t e ó ri
cos p o lític o s qu e d is tin g u e m as disp o siç õ e s p a rtic u la ris t a s
e m o cio n á is e in tu itiv a s , qu e d iz e m s er e xigid a s p ara a ,vid a
dom é s tic a d a m u lh e r, e o p e ns a m e nto im p a rc ia l, .de a a B a x Q -.,
n a H o e rlc í o n ai, qu ê d iz e m s er e xigido p a ra a vid a , p ú b lic a d o
. h o m e m . A m ora lid a d e

é fra g m e nta d a em um a "d iv is ã o de tra b a lh o m o ra l" s e gundo


as lin h a s d o g énero. [...] A s tare fa s de govern ar, re g ula m e nta r
a ord e m socia l e a d m in is tra r outra s in stitu iç õ e s " p ú b lic a s "
fora m m on opoliz a d a s p elos hom e ns com o seu d o m in io p ri
vile g ia d o e as tarefa s de su ste nta r as relaçõ e s socia is p riv a ti
z adas fora m im posta s ou deixad as às m ulh e re s. Os g ê n ero s!
p orta n to , fora m conce bidos em term os de proje to s m orais es4
p e cia is e d is tin to s . A ju stiç a e os d ire ito s e s tru tu ra ra m n o r4
m as, v a lore s e v irtu d e s m ora is m a s culin os, ao passo qu e o
cuid a d o e a re c e ptivid a d e d e fin ira m norm a s, v alore s e v irtu
des m ora is fe m in in o s (F rie dm a n 1987a: 94).

E stes d ois " p ro je to s m or a is " fora m vis to s c o m o fu n d a


m e n t a lm e n t e difere nte s, n a v erd ad e , con flita n te s , d e t a l m o
do qu e as disposiçõ e s p artic ula rista s das m ulh ere s, ap esar de
fu n c io n a is p a ra a v id a f a m ilia r, são vista s co m o subv ersiv a s
e m re la ç ã o à ju s tiç a im p a rc ia l e x ig id a p a ra a v id a p ú b lic a .
P orta n to , fo i d ito qu e a sa úd e d o p ú b lic o d e p e n d e d a e xc lu
são das m u lh e re s ( O k in , 1990; P ate m a n, 1980).
C o m o este con tra ste fo i us a do h is toric a m e n t e p ara ju s
tific a r o p a tria rc a d o , as p rim e ir a s f e m in is t a s , c o m o M a ry
W o lls to n e cr a ft, a rg u m e n t a ra m qu e a n a ture z a e m o c io n a l
p a rtic u l a ris t a da s m u lh e r e s era s im p le s m e n t e o re s u lt a d o
do f a to d e qu e às m u lh e r e s era n e g a d a a o p o rtu n id a d e de
d e s e n v o lv e r p le n a m e n t e suas c a p a cid a d e s ra cion a is. Se as
m u lh e re s p e n s a v a m ap e n a s na s n e c e ssid a d e s das pe ssoas
a su a v o lt a , ig n o r a n d o as n e c e ssid a d e s d o p ú b lic o g era l,
era p o rq u e e la s e ra m forç o s a m e n t e im p e d id a s de a c e itar
re spons a bilid a d e s públic a s (P atem an, 1980: 31). A lg u m a s f e -
340 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

m in is t a s c o n t e m p or â n e a s a rg u m e n t a m q u e to d a a tr a d i
ção de d is tin g u ir m ora lid a d e " m a s c u lin a " e m ora lid a d e " f e
m in in a " é u m m it o c u ltu r a l q u e n ã o t e m n e n h u m a base
e m p m c a J g á , p oré m , u n ia . x o ii e n t e -s ig m fk a tÍ¥ a ., d o f e m i
n is m o c o n t e m p or â n e o qu e a rg u m e n t a q u e d e v e m o s c o n -
's id e r a r s eria m e n te a m o r a lid a d e d if e r e n t e d a s m u lh e r e s -
d e v í a m o s v ê -l a c o m o u m m o d o d e ra c io c ín io m or a l, n ã o
_s im p le s m e n t e c o m o u m .s e n tim e n to in t u it iv o , e .e opm iiiy i a
^m ie a ie n ii^ e rn im e m o m Q x a l,-n ã o tsimple§m.ente.,comq.o
re s u lt a d o a rtific i a l d a d e sig u a ld a d e s e x u a j./ O n d e os t e ó -
'ric o s h o m e n s a firm a v a m q u e as disp os içõ e s das m u lh e re s
e ra m d e n a tur e z a in t u it iv a e d e â m b ito priv a d o , a lg u m a s
f e m in is t a s a rg u m e n t a m qu e ela s são ra c io n a is e d e â m b i
to p o t e n c ia lm e n t e p ú blic o . O p e n s a m e nto p a rtic u la rist a qu e
as m u lh e re s e m pre g a m é u m a m or a lid a d e m e lh o r do qu e o
p e n s a m e n to im p a rc i a l qu e os h o m e n s e m pre g a m n a e sfe
ra p ú b lic a ou, p e lo m e nos, u m c o m ple m e n to nec e ssário p ara
ele, e s p e c ia lm e n t e a ss im qu e re c o n h e c e m o s qu e a ig u a l
d a d e s e xu a l e xig e u m ro m p im e n to d a d ic o to m í a p ú b lic o -i
d om é stic o .
O re no v a do intere ss e f e m in is t a p e los m o d o s d e ra ciocí
n io m ora l das m ulh e re s orig in a -s e e m bo a p a rt e dos e studos
d e C arol G illig a n sobre o d e s e n vo lvim e nto m or a l das m u lh e
res. S e gundo G illig a n , as s e n sibilid a d e s m ora is dos h o m e n s
e das m u lh e re s r e a lm e nte t e n d e m a se d e s e nvolv e r de m a
n e ira d if e re n t e . A s m ulh e re s t e n d e m a ra c io c in a r e m u m a
" v o z d if e re n t e " , qu e ela re sum e d e sta m a n e ira :

N e sta conce pçã o, o pro ble m a m ora l surge a nte s de re s


p o n s a b ilid a d e s c o n flita n te s qu e de d ire ito s riv a is e sua so
lu ç ã o exige u m m o do de p e n s ar que seja a nte s c o n te xtu a l e
n a rra tiv o que fo rm a l e a bstrato. E sta concepção de m ora lid a
de inte re ss a d a n a a tivid a d e do cu id a d o c e ntra o d e s e n v o lvi
m e n to m ora l e m to rn o da com pre e nsã o d a re spons a bilid a d e
e das relações, assim com o a conce pção de m ora lid a d e com o
e qüida d e vin cu la o d e s e nvolvim e nto m ora l à com pre ensão de
d ire ito s e re gra s (G illig a n , 1 982:1 9).
O F E M IN IS M O 341

E st as du a s " v o z e s " f ora m c a ra ct eriz a d a s e m f uriç ã õ de


u rn a 7'é t ic a do c u id a d a " e de u rn a ”" é t ic a d a ju st iç a " , a s quais,
G üÜgan afirm a , são " f u n d a m e n t a lm e n t e inc o m p a t ív e is " ( G il-
lig a n, 1986: 238).
H á a lg u m a c ontrov é rsia q u a n t o a d e t e n n in a r se est a v o z
d if e r e n t e re a lm e n t e e xist e e, e m caso a f irm a t iv o , se est á c or
re la cion a d a sig n if ic a t iv a m e n t e com o g ê n ero. A lg u m a s p e s
soas a rg u m e n t a m qu e , e m b ora h a ja dua s v o z es m ora is’ d is -
t in t a s , de c u id a d o e ju s t iç a , .h o m e n s e m u lh e re s t e n d e m a
e m pr e g a r am b a s c o m re g u la rid a d e m a is ou m e n o s ig u a l.
O u t ro s a rg u m e n t a m que , e m bora h o m e n s e m u lh e re s m u i
t a s ve z e s f a le m c o m u m a vo z dif e r e n t e , isso obscure c e u m
e le m e n t o c o m u m subja c e nt e : " A m ora liz a ç ã o d o g ê n e ro é
m a is u m a qu e st ã o de c om o pensamos qu e ra cio cin a m o s do
qu e de c o m o e f e t iv a m e n t e r a cio c in a m o s ." "Esperamos qu e
m ulh e re s e h o m e n s e xib a m e st a d ic o t o m ia m o r a l " , e, c o m o
re sult a do, Q u a isq u er qu estõ e s m ora is e m qu e os h om e n s es
t e ja m e n v o lvid o s são c a t e goriz a d a s, e st im a v e lm e nt e , co m o
ju e s t d f s 'd e j'j'u s d g a e d j f p g ^ T ^ õ p 8 8 80 <l u e as pr e o c u p a
ções* "morais da s m u lh e r e s são con sig n a d a s às c a t e goria s
d esv aloriz ad as de 'c u id a d o e relações pe sso ais” ' ( F rie dm a n,
1987a: 96; cf. B aier, 1987a: 48). T alve z h om e n s e m ulh e re s f a
le m e m voz es dif e re nt e s n ã o porq u e seus p e ns a m e nt os e f e t i
v os dif ira m , m a s p orq u e os h o m e n s s e nt e m qu e d e v e m e st ar
int ere ss a dos e m ju s t iç a e dire it os , e as m ulh e re s s e nt e m qu e
d e v e m e st ar int e re ss a d a s e m pre s erv ar as rela ç õ e s socia is11.

11. H á t a m b é m cert o d eb at e a r e s p e it o da e xplic a ç ão da dif e re n ç a de g ê


n e ro n o ra cioc ínio m ora l. A s propost a s v ã o d a 'so cia liz a ç ã o p o r p a p e l s e x u a l/
( M e y e ^ l 9 § 7 : 142-6) à noss a ex p e riê nc ia de m a t e m a g e m ¿ ¿ p r im e ir a f i í j a n - ...
cia ( G illig a n , 1987: 20). T a m b é m h á e xplic a ções m e nos específica s q u a n t o ao
g ên ero. O s grup o s s em p o d e r m uit a s ve z e s a pre nd e m a e m p a t ia porq u e d e
p e nd e m d e ou tros p ara sua prot e ç ã o e, " c o m o sub ord in a d a s e m u m a socie d a
de d o m in a d a p e lo s ho m e ns, r e q u e r-s e qu e [as m ulh e re s] d e s e nvolv a m cara c
t erístic a s psicoló gic a s que a gra d e m o grup o d o m in a n t e e s a tisf a ç am suas ne
ce ssid ades " ( O kin , 1990:15 4). P or e x e mplo , " u m a m u lh e r qu e d e p e nd e de urr
h o m e m pod e d e s e nv olv e r u m a gra nd e h a bilid a d e e m a t e n t a r p a ra ele e cuida:
de le , e m T er' se u c o m p ort a m e n t o e a pre n d e r a in t e rp r e t a r seus est ados de es
p írit o e satisf a z er seus de sejos a nt e s que ele pre cise p e d ir" ( G rim sh a w , 1986:
342 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

Q u a is qu e r qu e s eja m as d e scoberta s e mpíric a s a re sp ei


to das difere nç a s d e g ên ero, re sta a qu e stã o de d e t e rm in a r se
há u m a a bord a g e m ba se ad a n o c uid a d o p ara que stõ e s p o
lític as que esteja e m co m p e tiç ã o com a ju stiç a e, caso h aja, se
é u m a a bord a g e m sup erior. A lg u m a s pessoa s re s p o n d e rá n^
às d e scob e rta s de G illig a n d i z e n d o qu e a é tic a d o c u id a d o ,!
a pe s ar d e ser u m a p e rsp e ctiv a m or a l v á lid a , n ã o é a p lic á v e l!
fora d o d o m í n io " p riv a d o " d a a m iz a d e e d a f a m ília . E la lida®
c o m as re s p o n s a b ilid a d e s q u e a s s u m im o s e m v irt u d e de
p a rtic ip a r d e re la çõ e s priv a d a s e sp e cífic as, n ã o das o b rig a
ções qu e d e v e m os m u tu a m e n t e c o m o m e m bro s d o p ú b lic o
(K o hlb e rg, 1984: 358; N u n n e r- W in k l e r, 1984). M u it a s f ç m i-

de in ic i a lm e n t e ji e s £ O V o M d a . n o contexto.,d a s^e la cõ e s p r i
v a das, t e m sig nific a ç ã o p ú b lic a e de ve. ser e s te n did a a os .ne
gócios p ú blic o s .
O q u e é a é tic a d o cuid a do ? C o m o fic a e v id e n te n o r e
s u m o d e G illig a n , h á m a is d e u m a d if e re n ç a e ntre as du a s
vo z e s m ora is. A s d ife re nç a s p o d e m ser e x a m in a d a s sob trê s
c a te goria s (cf. T ro n to , 1987: 648):

1 . c a pa cid a d e s m ora is: a pre n d e r prin c íp io s m ora is (jus


tiç a) co ntra d e s e nvolv er disposiçõe s m orais íru id a d ol:
2 . ra c io c ín io m ora l: re s olv er pro b le m a s busc a n d o p rin -
c ípio s qu e t e n h a m a p lic a b ilid a d e u n iv e rs a l (ju stiç a)
c ontra busc ar re sposta s qu e seja m ade qu adas ao caso
p a rtic u l a r (cuid a d o);
3. conc e itos m ora is: a te n t a r p a ra o s d ire ito s e a e q ü id a -
de (justiç a) contra a te nt a r para as re spons a bilid a d e s e
as re la çõ e s (c uid a d o).

E x a m in are i bre v e m e nte (1) e (2) acim a ante s d e m e c o n


c e ntra r e m (3), qu e, cre io, está n o c ern e d o d e b a te d e c u id a
d o e justiç a .

252). Jsso po d e e xplic ar p o r qu e os m e m bro s d e classes o u raças o prim id a s


e xib e m alg um a s m a nif e sta çõ e s d a étic a do cuid a d o (Tronto," 1987: 649-51;
H a rd in g , 1987: 307).
o F E M IN IS M O 343

(a) C apacidades m orais

Joan T ro n to d iz qu e a é tic a d o c u id a d o " e n v o lv e u m


d e s lo c a m e n to da s qu e stõ e s m ora is e ss e nciais c o n tid a s na
qu e stã o ' Q u a is são os m e lh ore s prin c íp io s ?' p ara a qu e stã o
i ' C o m o os in d iv íd u o s e starã o m a is b e m e quip a d o s p a ra a gir
m o r a lm e n t e ? '" (Tronto, 1987: 657). S er u m a p essoa m ora l é
m e nos u m a qu e stã o d e conh ec er os prin c íp io s corre tos e m ais
u m a q u e st ão d e l e r as disp osiçõ e s c o rre t a y - p o r e x e m p lo , a
disposiç ã o de p erc e b er as necessida de s das pessoas com pre
cis ã o e p ro p o r m a n e ira s im a g in a tiv a s de s atisfa z ê-la s.
É v erd a d e qu e a m a ior p a rt e dos te órico s d e ju stiç a con-t
t e m p orá n e o s c o n c e ntra -s e m a is e m d e t e rm in a r p rin c í p io s
c orre to s d o qu e e m e x plic a r c o m o os in d iv íd u o s torn a m -s e^
" e q u ip a d o s p ara a gir m ora lm e n t e " . U m a coisa, p oré m , c o n -l
d u z n a tu r a lm e n t e a o u tra , p o is j , é tic a d a j u s tiç a t a m b é m
re q u e r esta s disp o s iç õ e s m ora is . E m b ora a ju s tiç a e n v o lv a
a p lic a r prin c íp io s corre tos, " o qu e é n e c e ss ário p ara fa z e r
co m qu e ta is prin c ípio s a fe te m situa çõe s in d iv id u a is e nvolv e
qu a lid a d e s d e c ará ter e s e nsibilid a d e s qu e são, elas própria s,
m ora is e qu e v ã o a lé m d o proc e sso d ir e ito de c o n s u lt a r u m
p rin c í p io e d e p ois c o n fo rm a r noss a v o n t a d e e a ção a e le "
(Blum, 1988:485). C onsidere , p or e x e mplo, as disposiçõ e s e xi
gidas p ara qu e os jura d o s d e cid a m se a lgu é m fe z uso de " p r e
ca uçõ e s ra z o á v e is " e m casos d e n e g lig ê n c i a o u p a ra qu e
d e c id a m q u a n d o p a g a m e nto s dife re n te s p ara tr a b a lh o s tr a
d ic io n a lm e n te m a s culinos e f e m in in o s são d is crim in a tório s .
P ara a g ir d e m a n e ir a ju sta ne sta s circunstâ ncia s,, a s e n s ib ilL .
dãcTe a " F atores h is tóric o s e a possib ilid a d e s corre n te s é tã o
im p ort a n t e q u a n to " a ta re fa in t e le c tu a l de g erar o u descob r ir
o p rin c íp io . " ¡(B lu m , Í9 8 8 : 486; cf. Stock er, 1987: 60). C o m o
v e re m os, h á oed a s j r â m o ^ ^
os prin c íp io s de jus tiç a s eja m in t e rpre t a d o s com fa cilid a d e e
seus re su lta do s s e ja m f a c ilm e n t e pre vistosr E m m uit a s c ir
cu nstâ ncia s , p oré m , e xig e -s e qu e as s e n sib ilid a d e s m ora is
p e rc e b a m se os p rin c íp io s d e ju s tiç a s ão o u n ã o re le v a n te s
p a ra u m a situ a ç ã o e d e t e rm in e m o qu e estes prin c íp io s re -
344 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O NT E MP O R Â N E A

qu ere m. P orta nto, os te óricos da justiç a d e via m unir-s e a G illi-


g a n a o d e s a fia re m a " s u p o siç ã o d e qu e n ã o pre cis a m os no s
pre o c u p a r co m qu a is p aixõ e s as pessoa s tê m , c o n t a n to qu e
suas v o n t a d e s ra cion a is poss a m c o n tro lá -la s " (B aier, 198 7b:
55). M e s m o qu e a ju s tiç a e n v o lv a a a plic a ç ã o de p rin c í p io s j
a bstratos, as pessoa s só d e s e nvolv erã o u m " s e nso de ju s tiç a "
efic a z se a d q u irire m u m a m p lo le qu e d e c a p acida d es m ora is,
e ntre elas a c a p a cid a d e d e p erc e pç ã o solid á ria e im a g in a tiv a {
d a s e xig ê ncia s da situ a ç ã o e spe cífic a. I
P or q u e os t e óric o s d a ju s tiç a n e g lig e n cia ra m o d e s e n
v o lv im e n to d a s c a p a cid a d e s afe tiv a s su bja c e nte s ao nosso
s e nso d e justiç a ? T alv e z p orq u e o se nso de ju s tiç a na sç a d e
u m senso de c uid a do qu e é a pre n d id o n a f a m íli a , N ã o p o d e
rí a m o s e n s in a r as cria nç a s a re s p e ito d e e q ü id a d e , a me nos,
qu e elas já tiv e s s e m a pre n did o n a f a m í li a " c erta s çoisas-auas-
p e ito de bon d a d e e s e nsibilid a d e p a ra c o m os o b je tiv os e in -
fèíe ssê s dos o u tro s " (F la n a g a n e Jackson, 1987:635; cf. B aier,
1987a: 42). M u ito s te óricos d a ju stiç a re a lm e n te re conh e c e m
o p a p e l d a f a m íli a n o d e s e n v o lv im e n to d o se nso de justiç a .
R a wls, p o r e x e m plo, t e m u m a lon g a discuss ã o sobre o m o d o
p e lo q u a l o se nso d e ju s tiç a se d e s e nv olv e a p a rtir do a m
b ie n t e m o r a l d a f a m íli a (R a wls, 1971: 46 2-7 9). Isso, p oré m ,
cria u m a c ontra d iç ã o d e n tro da tra diç ã o d a justiç a . C om o diz
O k in , " a lin h a d o c om u m a lo n g a tra d iç ã o d e filó s ofo s p o lí ti
c o s " , R a wls " c o n s id e r a a f a m í li a c o m o u m a e scola de m o -|
ra lid a d e , u m a s o cia liz a d ora p rim á ri a d e cid a d ã os justos. A o |
m e sm o te m p o , ju n to c om o u tro s n a tra diç ã o , ele n e glig e n cia
a q u e stã o d a ju s tiç a o u in ju s tiç a d a pró p ria .f a m ília ,n a q u es.-
tã o dos g ê n eros, O re su lt a d o é u m a te ns ã o c e ntra l d e n tro da
T eonã Tqu e^sõ jpode s er solucion a d a a brin d o-s e a qu e stã o da
ju s tiç a d e n tro d a f a m í li a " ( O k in , 1989a: 230-1). R a wls in ic ia
sua d e scriç ão d o d e s e n v o lvim e nto m ora l d iz e n d o " d a d o que
as in s titu iç õ e s f a m ilia r e s são ju s t a s ... " (R a wls, 1971: 490).
M a s, c om o vim o s, ele n ã o fa z n a d a p ara d e m o n stra r qu e elas
são justa s. E " s e in s titu iç õ e s f a m ilia re s e strutura d a s s e g u n
d o o g ê n e ro não são ju st a s m a s, a nte s, u m a re m in is c ê n c i a
das socie da de s de castas ou fe ud ais, nas qu ais os pa p éis, re s-
O F E MIN IS M O 345

p o n s a b ilid a d e s e re cursos são d is trib u íd o s , n ã o e m c o n fo r


m id a d e c o m os d ois p rin c íp io s de ju stiç a , m a s e m c o n fo rm i
d a de co m difere nç a s in a ta s im b u íd a s d e e n orm e sign ific a do
social, e ntã o, to d a a e strutura d o d e s e n v o lv im e n to m o r a l de
R a w ls p are c e s er c o n s tru íd a sobre fu n d a m e n to s in c e rto s "
( O k in , 1989 a: 237; cf. K e arns, 1983: 34-4 0). P or e x e m plo , o
qu e a ss egura qu e os filh o s e stã o a pr e n d e n d o ig u a ld a d e , e
n ã o d e sp otis m o, o u re ciprocid a d e , e n ã o explora ç ã o? In v e s J
tig a r a ju stiç a d a fa m ília é im p ort a n t e , p ort a n to , n ã o ape n a í
com o loc a l d a d e sigu a ld a d e sexual, m a s t a m b é m c om o u m :
escola p ara o se nso de ju stiç a d e m e n in o s e m e nin a s.
E m v e z de c o n fro n t a r essas questõe s, a m a ior p art e dos
te óric o s de ju s tiç a c o n t e n to u-s e e m s im p le s m e nt e su p or
qu e as pessoas, d e c erta m a n e ira , d e s e n vo lv e ra m as c a p a ci
d a d e s re q uisita d a s. M a s, e m bora d ig a m p o u c o sobre isso,
re co nh e c e m q u e " t e r fra c a ss a do e m d e s e n vo lv e r e m si a ca
p a cid a d e d e t e r considera ç ã o p ara c o m os o utro s é t e r fra c a s
s ado m ora lm e n t e , a in d a q u e a p ena s p orq u e m u ito s dev eres
s im p le s m e nt e n ã o p o d e m ser le v a dos a c abo p o r u m a g e nte
m o r a l frio e s e m s e n tim e n to s " (S om m ers, 1987: 78).

(b) O ra cio cínio m ora l

P orta nto , os a ge nte s m ora is pre cis a m das "c a p a cid a d e s


m or a is m a is a m p l a s " qu e T ro n to d is cu t e . E stas c a p a cid a
d e s, p oré m , p o d e m to m a r o lu g a r dos p rin c í p io s ? S e gun d o
T ro n to , a é tic a d o c u id a d o d i z q u e , em vez de " a firm a r os
p rin c íp ló s m or a is " , " a im a gin a ç ã o m o r a l, o carater-e as..a q)es
d e v ê m re a g ir à com p le xid a d e de u m a d a d a situ a ç ã o " (Tron
ío, 1987: 657-8; cf. B aier, 1987a: 40). È m outra s palavras, estas
disposiçõ e s m ora is m a is a m pla s n ã o a ju d a m sim p le s m e n t e
os in d iv íd u o s a a p lic a r p rin c íp io s u n iv e rs a is; ela s to rn a m
t a is p rin c íp io s d e sne c e ss ários e, ta lv e z , c o n tra pro d u c e nt e s .
D e v e rí a m o s in t e rp r e t a r a m ora lid a d e a t e n t a n d o p ara u m a
situ a ç ã o e spe cífic a , n ã o a p lic a n d o p rin c íp io s u niv e rs a is . " A
id é ia d e u m o lh a r ju s to e a m oros o d irig id o a u m a re a lid a d e
346 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O R ÂN E A

in d iv id u a l [...] é a m arc a c ara cterístic a e a d e qu a d a d o a g e n


te m ora l" , e este tip o de " c u id a d o é tic o " n ã o d e p e nd e " d e r e -
gra ou p rin c ip io " (Iris M urd o c h , cita d a e m G rim sh a w , 1986:
234; cf. R u d d ic k , 1980: 22 3-4; N o d d in g s , 1984: 81-9 4).
O qu e, p oré m , sig nific a s im ple sm e n te a te n ta r p ara a si
tu aç ã o? A fin a l, n e m tod a s as c ara cterístic a s co nt e xtu á is são
re le v a nte s p a ra as de cisõ e s m ora is .. A p to m a rm os-d e cisõ e s
m ora is, n ã o a te n ta m o s sim p le s m e n t e p ara as d if e je x it e s x a -
ra cterísfic a s d a situ a ç ã o, m as t a m b é m ju lg a m o s seu s ig n ifi
c ado rela tivo.'®, e m b ora qu e ira m os qu e as pessoas s eja m ca
pa z e s d e a t e n t a r p ara a c o m ple xid a d e d a situ a ç ã o, ta m b é m
qu e re m os qu e s e ja m capa z es de id e n tific a r as c ara cterística s
d a situ a ç ã o qu e são m or a lm e n t e signific a tiv a s. E ls s o pare ce
s u s cit a r a nte s qu e stõ e s d e p rin c í p io q u e de s e n sib ilid a d e :
" N ã o ,n o s di.ss era m n a d a a x e s p e ito [d a é tic a d o c u id a d o j até
n os d iz e re m q u a is c ara cterístic a s d a s situ a çõ e s as pe ssoas
s e nsív e is ao c o n te x to s e le cio n a m c o m o m o r a lm e n t e d e sta
mpadas, q ü ê p ê s ó 3 a ò a égtcETcOIèrentes c ara cterístic a s etc. [...]
sim ple sm e nte pre cis a m os s aber m ais, de m a n e ira d e ta lh a d a ,
a re s p e ito de p o r q u e m e p e lo qu e as m u lh e r e s se s e nte m
re spons á v e is e a re s p e ito de c o m qu e se pre o c up a m e x a t a -
m e n t e " ( F la n a g a n e A d le r, 1983: 592; Sher, 1 987:18 0).
R u d d ic k a firm a qu e, e m bora distin g a m o s re a lm e nte ca
ra cterístic a s desta c a d as e c ara cterístic a s irre le v a nt e s das s i
tu ações m ora is, estas distinçõ e s orig in a m -s e do p ró p rio p ro
cesso de a t e n t a r p ara a situ a ç ã o, n ã o d e prin c íp io s e xternos.
A lg u é m qu e a te nte cu id a d o s a m e n te p a ra u m a situ a ç ã o es
p e c ífic a ir á v ê -l a c o m o a lg o qu e fa z e xig ê ncia s a nós. M a s,
e m b ora a lg u m a s c o nsid e ra ç õ e s m ora is pos s a m ser p r o n
t a m e n te obs erv á v e is p ara q u a lq u e r u m qu e t e n h a d e s e n
v o lv id o a c a p a cid a d e d e a t e nç ã o s o lid á ri a p ara c om u m a
situ a ç ã o e spe cífic a , h á o u tra s consid era çõ e s re le v a nte s que
são m e n os e vid e nte s. P or e x e m plo, q u a n d o as qu a lific a ç õ e s
de tra b a lh o são discrim in a tória s? C o m o vim o s , a situ a ç ã o de
tra b a lho e xiste nte pod e " e xig ir" a lgu é m qu e seja livre das re s
p o n s a b ilid a d e s p e lo c u id a d o dos filh o s o u qu e t e n h a c erta
a ltura o u forç a ] C o m o estes são crit é rio s g e n u in a m e n t e re -
O F E M INIS M O 347

le v a nte s p ara o tra b a lh o f é a pe na s d e n tro d e u m a p erspc çtj-


va sod a l m ais a m p ia qu e po d e m os v e r c o m o seu e fe ito c o m -
b in a d o é c ri a r u m siste m a d e d e s ig u a ld a d e j e x u a l/ N e s t a s
circu nstâ ncia s , sa ber q u a n d o os crit e rio s re le v a nte s são, n ã o
obsta nte , d is crim in a torio s o u q u a nd o a discrim in a ç ã o in v e r
sa é, n ã o o bsta nte , l e g ítim a , exig e m a is d o qu e ate nç ã o s o li
d á ria p ara com a situ a ç ã o específic a. P ara s a ber q u a n d o h á
u m a e xig ê ncia m ora l le g ítim a a fa vor da ação a firm a tiv a , pr e
cis a mos coloc ar a situ a çã o específica d e n tro de um a te oria de
ig u a ld a d e s exu al m a is a m pla .
A l é m disto , m e sm o qu e perc e b ê ss e m os tod a s as e xi
g ê ncia s re le v a nte s, estas e xig ê ncia s p o d e ri a m ser c o n flit a n
tes e, porta nto , a ate nç ã o d e ta lh a d a pod e ria le v ar à ind e cis ã o,
n a a us ê ncia d e prin c íp io s de n ív e l m a is ele v a do. Se som os
c o n fro n t a d o s c o m u m c o n flito e n tre as e xig ê ncia s de p r e
s e nte s c a n did a to s ho m e n s e as de fu tura s g eraçõe s de m u
lh ere s, a a te nç ã o p a c ie n te p a r a c o m a situ a ç ã o p o d e reve^
l a r qu ã o “3õlorõso" e*o~cònflit o a re s p e ito d a açã o afir m a tiv a .
C o m o obs erv a H e ld , " t e m o s re c ursos lim it a d o s p ara o c u i
d a do. N ã o p o d e m o s c u id a r d e to d o s ou fa z e r tu d o qu e um a
a bord a g e m de cuid a d o sugere. Pre cis a mos de dire triz e s m o
rais p ara ord e n a r nossas priorid a d e s " (H e ld, 1987:119; G rim -
shaw, 1986: 219).
R u d ic k e G illig a n e screv e m c o m o se r e c orre r a p rin c í
p io s e nvolv e ss e a a bstra ç ã o da e s p e cificid a d e d a situ a ç ã o.
M a s, c om o obs erva G rim s h a w , os prin c íp io s n ã o são in s tru
ções para e vita r o exa me de p artic ularid a d e s, m as, ante s, in s
truçõ e s a re sp e ito do qu e procurar._Ao c o n trá rio das "re gra s " ,
que c om o os d e z m a n d a m e n to s se d e s tin a m a sêr d ire triz e s
q u e p o d e m s e r ap lic a d a s sg m m u it a lfe fliS S q . u m p rin c í p io
" fu n c io n a d e m a n e ir a b e m d if e r e n t e < E le serve ju s t a m e n t e
para convidar à re fle x ã o " , n ã o p a ra b lo q u e á -la , p o is é " u m a
c onsid era ç ã o g era l qu e ju lg a m o s im p o rt a n t e le v a r e m c o n
ta a o d e c id ir qu a l é a cois a c erta a f a z e r " ( G rim s h a w , 1986:
2 0 7-8). T oda t e ori a m o r a l de v e p o s s u ir a lg u m a d e s criç ã o
d e t a is c on sid era çõ e s g erais, e os tip o s d e c o n sid e ra ç ã o a
qu e re c orre m os te órico s d a ju stiç a m u it a s v e z es re q u e re m
348 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O RÁ N E A

a a te nç ã o p ara c o m d e t a lh e s e sp ecíficos, e m v e z d e e n tr a r
e m c o n flito co m ela ( F rie d m a n , 1987b: 203).
A lg u n s te órico s d o cu id a d o a firm a m qu e a te nd ê n cia de
re corre r a p rin c ip io s p a ra a d ju d ic a r c o n flito s pre c e d e a t e n
d ê n cia m a is v a lio s a d e e la bora r soluçõ es n as q u a is os c o n fli
tos s e ja m sup era d o s. P or e x e m plo , G illig a n a firm a q u e , ao
c o n s tru ir pro b le m a s m ora is e m t e rm o s de ju s tiç a o u c u id a
dos, seus su je ito s " d is t a n cia v a m -s e d a situ a ç ã o e re corria m
a u m a re gra o u p rin c íp io p ara a d ju d ic a r a s re ivin d ic a ç õ e s
c o n flit a n t e s o u e ntra v a m n a situ a ç ã o e m u m e sforço de d e s
c o b rir o u cria r u m a m a n e ira d e re s p o n d e r a tod a s as ne c e ssi
d a d e s " ( G illig a n , 1987: 27). E, n a v e rd a d e , e j^ d t a m u it o s .
casos e m qu e as m e n in a s e ra m ca pa z es d e e n c o n tra r u m a
" soluç ã o qu e r e s p o n dia a to d a s as n e c e ssid a d e s d a situ a ç ã o
' espe cífica, u m a solu ç ã o q u e os m e n in o s d e ix a v a m p assar na .
j pressa d e e n c o n tra r u m a a dju dic a ç ã o pro v id a d e prin c íp io s
p ara o co n flito . N e m s empre , p oré m , h a verá u m a m a n e ira de
a co m o d a r e xig ência s c o n flit a n t e s e n ã o está cla ro q u e d e v e
m o s s e m pre t e n t a r a co m o d ar to d a s as e xig ência s. C o nsid ere
as e xig ê ncia s d e c ó dig o s d e h o n ra ra cista s o u sexistas. São
" e xig ê n c ia s " claras, m a s m u it a s d ela s são il e g ítim a s . O fate
d e qu e os h o m e n s bra n c os e sp era m ser tra t a d o s d e m a n e i
ra d if e re n c ia d a n ã o é ra z ã o p ara a c o m o d a r estas e xp e cta ti
vas. M e s m o qu e pu d é ss e m o s a com o d á-la s , p od e ría m o s pro
v o c a r u m c o n flito p ara t o rn a r clara noss a d e s a prov a ç ã o. Se
d e v e m os q u e s tio n a r estas e xig ência s, e ntã o, " a ate nç ã o n ã o
po d e estar s e mpre foc a liz a d a justamente nos d eta lh e s e n u a n -
ças d a situ a ç ã o e sp e cífic a " , m as, a nte s, de v e s itu a r estes d e
ta lh e s d e n tro d e u m a e s tru tura m a io r d e p rin c í p io s n o rm a
tiv o s ( G rim s h a w , 1986: 238; W ils o n , 1988: 18-9).

(c) Os conceitos m orais

A qu e stã o, e nt ã o , _ não é d e t e rm in a r se pre cis a m o s d e


prin c íp io s , m as se eles d e v e m ser p rin c íp io s qu e a t e n t e m
p a r a *o s d ire ito s e . a . e qiiid a d e "..ou. p a ra " a s re s p o n s a b ilid a -
O F E MIN IS M O 349

des e as rela çõ e s ". H á , p e lo m e nos, três m a n e ira s dif e re nt e s


de in t e rpr e t a r a difere n ç a e ntre estes con c e itos m ora is:

1 . a u n iv e rs a lid a d e a nte o intere ss e p o r rela çõe s e sp e


cíficas;
2 . o re s p e ito p e la h u m a n id a d e c o m u m a nte o re sp e ito
p e la in d iv id u a lid a d e d is tin t a ;
3. a re in v id ic a ç ã o d e d ire ito s a n te a a c eita ç ã o de re s
p o ns a bilid a d e s.

E x a m in a re i ca da u m a d ela s in d iv id u a lm e n t e .

(i) A universalidade ante a preservação de relações

U m a m a n e ira c o m u m de d is tin g u ir c u id a d o e ju s tiç a é


d iz e r qu e a ju s tiç a t e m c om o o b je tiv o a u n iv e rs a lid a d e ou
im p a rci a lid a d e , ao p a sso que, o c u id a d o t e m c om o ob j e tiv o
pre s erv ai, fl " re d e de rela çõ es c o n tín u a s " (B lu m , 1988: 473;
Tro nto, 1987:660). C o m o diz G illig a n , " a p a rtir d e u m a p e rs
p e c tiv a d e ju stiç a , o e u c om o ., a g e nte .m or a l coloc a-se..co m o .
a fig ura c o n tra u m fu n d o de re laçõe s sociais, ju lg a n d o a s r e i-
vipdic a çõ é s c o n flit a n t e s do e u e de o u tro s c o ntra u m p a dr ã o
de ig u a ld a d e o u ig u a l re s p e ito (o Im p e r a tiv o C a t e górico , a
R e g i ã 'd U O ü r o ) . J j. p a rt ir d e u m a p e rs p e c tiv a d e çu id a d n . a
re la ç ã o torn a -s e a fig ura , d e fin in d o o e u e os o utro s .,D e n tro
d o c o n t e x to d a rela ç ã o , o e u c o m o a g e nt e m o r a l p erc e b e e
re a ge à p erce pç ã o d a n e c e ssid a d e " ( G illig a n , 1987: 23). P or
t a n to , p a ra G illig a n , " a m or a lid a d e b a s e ia-s e e m u m a p e r
ce pç ã o d a lig a ç ã o concre t a e da re aç ã o d ir e t a e n tre pessoa s,
u m a p e rc e pç ã o d ir e t a d a lig a ç ã o qu e e xiste a n t e rio rm e n t e
às cre nça s m ora is a re s p e ito do q u e é c e rto o u erra d o, ou de
qu a is prin c íp io s ac eitar. A ação m o ra l d e v e expre ss ar e su s
t e n t a r estas lig a çõ e s com o utra s pessoas e sp e cífic a s" (B lum ,
1988: 476).
c e rt a a m b ig ü id a d e n a no ç ã o d a " re d e d e re la çõ e s
e x is t e n t e " . E m u m a vis ã o, isso se refere a rela çõe s h is to ric a
m e n t e e nra iz a d a s c o m o u tr a s esp e cífic a s. Se in t e rp r e t a d a
350 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O NT E MP O RÁ N E A

d e sta m a n e ira , p oré m , a é tica do <


c lu ir os m a is n e c e ssita d o s, j á q u e é m a is pro v á v e l qu e e ste
j a m fora d a re d fi d e rela çõ es. M u ito s t e órico s d o c u id a d o re
co n h e c e m este p e rig o . T ro n to d iz qu e " a o c o n c e n tra r-s e n a j
pre s erv aç ã o d as re la çõ e s e xiste nte s, a p e rsp e ctiv a d o c u id a -1
d o t e m u m a q u a lid a d e c o n s e rv a d ora " , e q u e a m a n e ira d e |
a ss e gurar " q u e a re d e d e relaçõ es seja t e c id a c o m a m p lid ã o
suficie n t e , p ara q u e alg u n s n ã o fiq u e m fora d o seu alcance,
c o n tin u a a s er u m a q u e stã o c e ntra l. S eja m q u a is fo re m as
fra q u e z a s d o u n iv e rs a lis m o k a n ti a n o , sua pre m is s a d o v a
lo r m ora l e d ig n id a d e ig u a is d e to d o s os sere s h u m a n o s é
a tra e nte p orq u e e vit a este p ro b l e m a " (T ro nto, 1987: 66 0-1).
C o n fia d o r a q u e stã o n ã o é sim p le s m e n t e e x plic a r como " a s
jn s titu iç õ e s sociais p o d e ria m s er ord e n a d a s p a r a e xp a n d ir

a c e ite m o s u m p r i n d p k i u n iv e rs a lis t a d e ig u a l v a lo r m o ra l.
À re sposta s urpr e e n d e nt e m e n t e p ro v is ó ria de T ro n to é qu e
" p o d e ser p ossív e l e vit a r a n e cessid ad e d e u m a a leg a çã o es
p e cia l e, ao m e s m o t e m p o , d e ter-s e a nte p rin c íp io s m ora is
u niv e rs a is: se fo r a ssim, u m a é tic a d o c u id a d o p o d e s er v i á
v e l " (T ronto , 1987: 661, 660).
O u tro s te óricos do cuid a do , p oré m , in t e rp r e t a m a "re d e
existe nte d e re laçõ e s " de u m a m a n e ira m a is exp ansiva . C o m o
Tro nto, G illig a n d iz q u e " c a d a pe sso a está in s e rid a d e n tro de
u m a re d e d e rela çõ e s co ntín u a s, e a m ora lid a d e , d e m a n e ira
im p o rt a n t e , se n ã o e xclusiv a , c on siste n a a te nç ã o, n a c o m
pre e ns ã o e n a re c e p tiv id a d e e m o c io n a l p a ra c o m os in d iv í-,
d u o s c o m os q u a is m a n t e m o s estas re la ç õ e s " (B lu m , 1988:
473). M a s, co m o obs erv a B lu m , " G illig a n p re t e n d e qu e esta
re d e a bra nja to d o s os seres h u m a n o s , n ã o a p e n a s o no sso
círculo d e co n h e cid o s " (B lu m , 1988:4 73). C o m o d iz u m a das
m u lh e re s n o e s tu d o d e G illig a n , so m o s re s p o n s á v e is p o r
" e st a coleç ão gig a nte sc a de to d o o m u n d o " , d e m o d o qu e " o
e s tra n h o a in d a é o u tra p e sso a q u e p e rte n c e a este gru p o ,
p e sso a à q u a l voc ê e stá lig a d o em virtu d e ser outra pessoa"
( G illig a n , 1982:5 7, ênfase m in h a ; cf. 1982:1 6 0). Para G illig a n ,
O F E M IN IS M O 351

o qu e un e as pe ssoa s n e sta re d e gig a nte sc a d e rgla ç Q .e a nã a.


é n e ce ssaria m e nte q u a lq u e r intera ç ã o dire ta , mas, antes, urn a
h u m a n id a d e c o m p a rtilh a d a . C o m o a conc e pç ã o da re d e d e
relaçõe s de G illig a n já in c lu i to dos, seu c om pro m iss o d e p r e
s erv ar a re d e d e relações n ã o c o n flit a c o m sua cons e qü e nte
a firm a ç ã o de qu e a m otiv a ç ã o d a é tic a d o cuid a d o é o fa to de
*q u e .to d Q & .te rã o .ie ^ a s to ^^ e ^jfld u td o s^ 4 iie ..n in guó.m
será d e ix a do s o z in h o n e m m a chuc a do "; ( G illig a n , 1982: 63).
N a tu r a lm e n t e , v is to qu e os t e óric o s d o c u id a d o d iz e m
qu e ca d a pe ssoa está lig a d a a nós " e m v irtu d e d e ser o utra
p e ssoa ", parece qu e t a m b é m eles estão c o m pro m e tid o s c om
u m p rin c íp io d e u niv e rs a lid a d e . T ã o lo g o c uid a d o e in t ere s
se " s ã o de sta cados das e xigência s de relaçõe s únic a s e h isto
ric a m e n t e e nra iz a d a s - tã o lo g o se d iz qu e elas são obtid a :
m e r a m e n t e p e la h u m a n id a d e c o m u m das p a rt e s afe ta d a s
o u p e lo f a to d e qu e tod a s estas p arte s tê m interesse s, o u p o r
qu e tod a s p o d e m s o fre r" , e ntã o, ((p erd emos c o m ple ta m e n te
o c o ntra s t e e n tre a e sp e cificid a d e d a re la ç ã o e a g e n e ra lid a
de d o p rin c ip iad P erdido o contraste, parec e mos fic a r com u m a
a b ord a g e m qu e busc a s o lu c io n a r dile m a s m ora is p o r m e io
d a id e n tific a ç ã o s olid á ria c o m tod a s as p arte s a fe ta d a s " . E
este tip o de u n iv e rs a lid a d e " e stá , p e lo m e nos, in tim a m e n t e
re la c io n a d o c om a d o c o n h e cid o o bs erv a dor im p a rc i a l e b e
n e v o l e n t e " qu e e n c o ntra m o s n a s te oria s k a n ti a n a e u t ili t á
ria (Sher, 1987:1 84). E n qu a n to G illig a n e vita a lin g u a g e m da
univ e rs a lid a d e , seus e studos " in d ic a m qu e o cu id a do e o s e n
so d e r e s p o n s a b ilid a d e p e los o u tro s das m u lh e r e s são fr e
q ü e nt e m e nt e u niv e rs a liz a d o s " ( O k in , 1990:158; cf. B ro u g h
to n , 1983: 606; K o hlb e rg , 1984: 356).
P ort a n to , o c o m pro m is s o d e " pre s e rv a r a re d e de re la
çõ e s " p o d e o u n ã o e n tra r e m c o n flito c o m o c o m pro m is s o
p ara co m a univ ers a lid a d e , d e p e nd e ndo de co m o o in t e rp r e
ta rm os. B o a p a rte d a lit e ra tura d a é tic a d o c uid a d o c e n tro u-|
se n a " t e n s ã o c o n flitu o s a m a s cria tiv a " e ntre as c onc e pçõ e s
univ ers a lista s e m a is loc a liz a d a s de noss a lig a ç ã o com os ou-í
tros (R uddick, 1984: 239). O s te óricos d o cu id a d o argum e n-f
t a m qu e "fa z e m os progre sso m ora l [...] ao e xp a ndir o â m b ito
352 FIL O S O FÍA P O LÍTIC A C O N T E MP O RÂ N E A

das injunç õ e s p ara c uid a r das liga çõ e s e m a n t ê -la s " (M e y ers,


1987:14 2), m e sm o que isso e xija " tr a n s fo rm a r " e " g e n e ra li
z a r" a lgum a s prá tic a s de c uid a d o e xiste nte s (R u ddick , 1980:
2 2 2 , 226)," T a m b é m é v erd a d e , p oré m , q u e " o se nso d e re s
p ons a bilid a d e n o cerne da p ersp e ctiv a do cuid a d o " te n t a e vi
t a r " frn p o r a im p a rcia lid a d e à custa d o a pe go c o n tín u o " (M e
yers, 1987:142). Parece que a m a ioria dos te óricos do cuid a do
a c e ita o c o m pro m is s o de G illig a n c o m u m a re d e u n iv e rs a
list a de relações, ma s pre fere e nf a tiz a r su a c o n tin u id a d e c om
a te ia d e re la çõ e s m a is lo c a liz a d a de T ro nto . C o n tu d o , c o
m o obs erva B lu m , " c o m o esta e xte ns ã o a to d a s as pessoas
de v e s er re a liz a d a n ã o fic a c la ro " (B lu m , 1988: 473)12.

(ii) O respeito pela humanidade e o respeito pela individua lid a d e

S e gund o a lgu ns t e óricos do c uid a do , o pro b le m a c om a


ju s tiç a n ã o é f a to de qu e ela re age u m v e rs a lm e nt e a to d o s os
qu e c o m p a rtilh a m noss a h u m a nid a d e c o m u m , m as o f a to de
qu e e la r e s p ond e u n ic a m e n t e a nte s à h u m a n id a d e c o m u m

12. C om o observ a O k in , os e studos de G illig a n n ã o c o n fro n t a m a qu e s


tã o de " c o m o as m ulh e re s p e ns a m q u a nd o co nfro n ta d a s co m o d il e m a m o r a lf
qu e e nvolv e u m c o n flito e n tre as nec essid ad e s ou intere ss e s d a f a m ília e a m i-í
gos ín tim o s e as ne ce ssid ad es ou intere ss e s de 'o u tro s ' m a is dist a n te s " ( O k in J
1990:158). A resposta de R u d d ick é qu e " a s mã es p o d e m [...] v ir a p erc e b er qu e
o b e m de seus filh o s está e n tre la ç a do c om o b e m de tod a s as cria nç a s " (R ud
dic k, 1984: 239; m as cf. 1987: 250-1). É du vid os o, p oré m , qu e o b e m d e u m a
cria nç a esteja lig a d o ao b e m de tod a s as criança s, p o r m ais dista nte s que este
ja m . E, m es m o q u a nd o está e ntre la ç a do , o pro b le m a é que a lig a çã o pod e ser
a nte s c o m p e titiv a qu e c o m p le m e n t ar. S eu b e m p od e e star e n tre la ç a d o de ta l
m a n e ira qu e os recursos gastos c om u m a cria nç a d e v a m ser n e g a dos a outra .
Se o m e c a n ism o para e x p a n dir a red e de rela çõ es é a p erc e pç ã o de qu e o n o s
so b e m está e ntre la ç a do com o b e m de outros, ela po d e s er u m a e xpansã o
m u ito lim it a d a . P arece irre m e d ia v e lm e n t e o tim is t a d iz e r qu e a te nt a r p a ra o u
tros dista nte s n ã o im p õ e n e n h u m custo a ap e gos co ntínu o s o u que " a in e q ü i-
da d e afeta a dv ers a m e nte amb a s as p arte s e m um a rela ç ã o d e sig u a l" ( G illig a n ,
1982: 174). A p e n a s u m co m pro m is so e xp lícito c o m o intere ss e im p a rcia l, e j
n ã o sim ple sm e n te com a pre serv a ç ã o de lig açõe s existe nte s, pod e ria s u st e n t a r!
o tip o de ge nera liz a ç ã o q u e G illig a n e R u d ick d ese jam.
O F EM IN IS M O 353

das pessoas qu e à in d iv id u a lid a d e d is tin t a das pe sso a s. O s


te óricos d o c u id a d o a firm a m qu e , p ara os te óric o s ba se ados
n a ju stiç a , " a signific a ç ã o m ora l das pessoa s c om o obje tos do
intere ss e m ora l d e corre u n ic a m e nt e do f a to de s ere m p o rt a -
d ò f á s d e cara cterístic a s signific a tiv a s ,. m a s in t e ir a m e n t e g e
rais e re p e tív e is " (B lum , 1988:475). A justiç a está intere ss a d a
n o " o u tro g e n e ra liz a d o " e n e g lig e n c ia o " o u tro co n cre to " :

O p o n to de vis ta do o u tro g e n e ra liz a d o re q u e r que v e


ja m os to d o e cada in d iv íd u o com o u m ser ra cio n a l h a b ilita d o
aos m esmos d ire ito s e deveres que desejaríam os a trib u ir a nós
m esm os. A o sup or o p o n to de vista , a bstra ím os da in d iv id u a l
lid a d e e da id e n tid a d e concreta do o utra « S u p ü m a s .q u fiu .o u|
tr o, com o nós m e sm os, é u m ser que te m n ece ssid a d e s,,. d es e
jos e a fetos.concretos,, mas o que c o n s titu is u a d ig n id a d e m o
ra l n ão é q que. nos dife re ncia u m do o u tro , m as, antes, o que
nós, com o agentes ra cion a is fa la nte s e a tu antes, te m os em co-
' rnü fn . J :, . Í Õ p o n to de v ista do o u tro co ncre to, p o r contra ste ,
re q u e r que v eja m os to d o e cada ser ra cio n a l com o u m in d i
v íd uo com um a h is tó ria , um a id e n tid a d e e um a co n s titu iç ã o
a fe tiv o-e m o cio n a l concre ta s. A o su p or este p o n to d e vista ,
abstraímos do que consid eram os nosso caráter com um [...] A o
tra tá -lo e m c o n form id a d e com as n orm a s d a a m iz a d e , do
a m or e do cuid ado, co nfirm o n ão apenas sua hum anidade, mas
sua individu alidade hu m a n a (B e nh a bib, 1987: 87; cf. M e y ers,
1 98 7:1 4 6-7; F rie dm a n, 1987o: 105-10).

C om o e nfa tiz a B e nh a b ib,ps p on to s de vista d o o u tro g e


ra l e d o o u tro co ncre to sã o p lé n a m e nt e u n iv e rs a liz a d o s (na
v erd a d e , ela os c h a m a " u n iv e rs a lis m o s u b s titu c io n a lis t a " e
" u n iv e rs a lis m o in t e r a tiv o " , re sp e ctiv a m e nte ). M a s o c u id a
do, a o c o n tr á rio d a ju stiç a , re a g e a nte s a noss a s dife re n ç a s
concre ta s qu e à noss a h u m a n id a d e a bstra ta .
E ste c o ntra ste , p oré m , p are c e e x a g era d o e m a m b a s as
direçõ es. P rim e iro , a ética do cuid a do, u m a v e z u n iv e rs a liz a
da, t a m b é m re corre h u m a n id a d e c o m u m . C o m o obs erv a
Sher, tã o lo g o se d iz qu e o cuid a do e o intere ss e "s ã o o b tid o s
m e ra m e nt e p e la h u m a nid a d e com u m das p a rte s a feta da s o u
p e lo f a to d e qu e tod a s estas p arte s t ê m intere ss e s o u qu e t o -
354 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O R ÂN E A

da s p o d e m sofre r" , eles, e ntã o, são " visto s c om o reações a de-


’ qu a d a s a c ara cterístic a s c o m p a rtilh a d a s e re p e tív e is " (Sher,
1987: 184).
S e gundo, as te oria s de ju stiç a n ã o s e lim ila in ao re s p ei-
to p e lo o u tro g e n e ra liz a d o/ Isso é cla ro n o caso d o u tilit a ris -
T fT õ 7 õ ^ ü ã ! ^ ê w ' ã f ê r it a r p a ra a p a rtic u la rid a d e p ara s a b er se
u m a p o lític a irá pro m o v e r as v ária s pre ferê ncia s das pessoas.
JFbde p a re c er m e n o s cla ro n o caso d a t e oria d e R a w ls e, n ã o
s urpre e n d e n t e m e n t e , m u it a s f e m in is ta s a p o n t a m p a ra sua
p osiç ã o orig in a l c om o u m p a ra digm a d o p e ns a m e n to d e jus-__
..tiçà,* C ó m o a p o siç ã o o rig in a l re q u e r qu e os in d iv íd u o s se
a b stra ia m de seus eus esp ecíficos, diz -s e qu e ela e x e m plific a
um a tra diç ã o n a q u a l " o e u m ora l é vis to c o m o u m ser desin
serido e desincorporado" (B enha bib, 1987: 81). Isso, poré m , re
pre s e n t a d e m a n e ira e rrô n e a a po siç ã o o rig in a l. C o m o o b
serva O k in ,

a posição o rig in a l re qu e r que, com o suje ito s m ora is, c o n s id e r


re m os as id e ntid a d e s, o bje tiv o s e apegos de tod a s as o utra J
pessoas, p o r m ais dife re n te s que possa m ser de nós, c o m i
possuindo igu a l interesse ao nosso.. Se nós, que sabemos quena
somos, devem os p e nsar como se estivéssem os na posição o ri
g in a l, d ev e m os d e s e n vo lv e r c a p a cid a de s co nsid e rá v e is de
e m p a tia e pod ere s de nos co m u nic a rm os com os o u tro s so
bre com o as d ife re n te s vid a s hum a n a s são. Já que sabemos
qu e m somos e qu a is são nossos intere ss e s e conce pçõ e s do
b em e sp e cíficos,^pre cis a m os ta m b é m de um gra nd e co m
prom isso com a b e n e volê ncia , com o cuid ar dos o utros ta n to
q u a n to de nós m e sm os..(O kin, 1989a: 246).

P ort a n to , " a t e o ria d e ju s tiç a de R a w ls é, e la p ró pria ,


c e ntra lm e n t e d e p e n d e nt e da c a pacida de das pessoas m ora is
de se intere ss are m p e los o utros e de d e m o n s tra r cuid a do p or
eles, e sp e cia lm e nte os ou tros qu e são m a is difere nte s d e n ó s "
( O k in , 1989a: 247). O s te óric o s d o c u id a d o m u it a s v e z e s d i- i
z e m qu e as soluçõe s de c o n flito s " d e v e m ser alc ança da s p or
m e io d o p e n s a m e n to c o n t e xtu a l e in d u tiv o c ara cte rístico d a 1
a doç ã o d o p a p e l d o o u tro e sp e cífic o " (H a rd in g , 1987: 297). í
M a s isso é ju s t a m e nt e o qu e a posiç ã o o rig in a l exige de nós. '
o F E M IN IS M O 355

B e n h a b ib q u e s tio n a se " a s s u m ir o p o n t o de v is t a do s
o u tro s " é v e rd a d e ira m e n t e c o m p a tív e l com o ra cio c ín io p o r
trá s d e u m v é u d e ig n orâ n cia , p orq u e a ju s tiç a é, " c o m isso,
id e n tific a d a com a p ersp e ctiv a d o o u tro g e n e ra liz a do d e s in
s erido e d e sincorpora do. [...] O pro ble m a po d e ser form u la d o
da s e guint e m a n e ira : s e g und o K o h lb e rg e R a w ls^a r e c ip ro
cid a d e m ora l e n v o lv e a c a p a cid a d e d e a s s u m ir o p o n to ã e “
-v is t a d o ou tro . He n o s . c o lo c a rm o s im a g in a tiv a m e n t e n o
d e ig n o r â n c i a ^
TcTcómo diferente do eu desaparece® (BenfiabTb, 1987:
88-9; cí. B lum , 1988: 475; G illig a n , 1986: 240; 1987: 31). Isso,
poré m , re pre s e nta e rron e a m e nte c o m o a posiç ã o orig in a l
op era . O f a to d e se p e d ir qu e as p e ssoa s r a c io c in e m a bs
tr a in d o sua p ró pri a posiç ã o socia l, t a le n to s n a tur a is e p r e
ferê ncia s p e ssoais ao p e ns a r sobre os o u tro s n ã o signific a
qu e elas d e v a m ig n o r a r as pre ferê ncia s , t a le n to s e po siç ã o
socia l espe cífic as dos outros. E, co m o vim o s, R a wls insiste
e m qu e as parte s p o r trá s d a po siç ã o o rig in a l d e v e m le v a r
esta s cois as e m c o n t a (cap. 3, seç ão 3 a cim a). B e n h a bib s u
põ e qu e a posiç ã o o rig in a l fu n c io n a p e la e xig ê n cia d e qu e
os c o ntra ta n t e s c o ns id e re m os intere ss e s dos o u tro s c o n
tra t a nt e s (qu e se to m a m to dos " o u tro s g e n e ra liz a do s " p or
trá s d o v é u de ig norâ n cia ). N a v erd a d e , p oré m , o e fe ito do
v é u é que " n ã o im p ort a m a is p ara o [c ontra ta n t e ] qu e m , n a
posiç ã o orig in a l, oc up a a p osiç ã o c o m ele, se é qu e a lg u é m o
fa z, o u qu a is são os intere ss e s d e seus ocup a nte s. O que im
p ort a p ara ele são os de sejos e o b je tiv o s d e to d o m e m bro
efetivo de sua socie d a d e , p o rq u e o v é u o forç a a ra cio c in a r
como se fôssemos qualqu er um deles" ( H a m p to n , 1980: 335).
C o m o vim o s , ç> s o lid á rio id e a l d e H a re im p õ e a m e s m a e x i
g ê ncia (cap. 2, seçã o 5b a cim a). A m b o s os d is p o s itiv o s , os
c o n tra t a n t e s im p a rcia is e os s o lid á rio s id e a is , fu n c io n a m
p o r m e io d a e xig ê n cia de qu e as pessoas consid e re m os o u
tros concretos (cf. B rou ghto n , 1983: 610; Sh er, 1 9 8 7 :184)13.

13. Iris Y o u n g ofere ce u m arg u m e n to m ais g era l a fa v or da a firm a ç ã o de


qu e " o p o n to de vista im p a rc ia l" ne ga difere nç a s: " A ra z ã o im p a rc ia l d e ve j u l
g ar a p a rtir d e u m p o n to d e vista e x t e rior às p ersp e ctiv a s específica s d e p e s-
356 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

(iii) A c eit a r a responsabilidade e re ivin dic a r direitos

C om o a m b a s as étic as são u niv ers a is e a mb a s re sp e ita m


o c aráter c o m u m e a in d iv id u a lid a d e , a d ife re n ç a (se h o u v e r
u m a) e n c ontra-s e e m o utra p arte . U m a d istin ç ã o fin a l ofe re
cid a p o r G illig a n é qu e o ra cio cin io d e ju stiç a pe ns a n o i n
teresse p e lo s o u tro s e m t e rm o s d e r e s p e it a r re iv ifid T c iç o is
d e d ir e ito s, .4 0 pa sso qu e 0 ra cio c ínio d o c u id a d o p e ns a n o
intere ss e p e lo s ou tro s e m t e rm o s de a c e ita r r e s p o n s a b ilid a
d e s . M a s a q u e e quiv a le e sta difere nç a ? U m a dife re n ç a c e n
tr a l, s e g u n d o G illig a n , é q u e a c e it a r re s p o n s a b ilid a d e p o r
o u tro s r e q u e r a lg u m intere ss e p o s itiv o p e lo seu b e m -e s ta r,
ao pa sso que os d ire ito s são e sse ncia lm e nte m e c a nism os de
a uto prote ç ã o qu e p o d e m ser re sp e ita dos s im p le s m e nt e d e i
x a n d o as o utra s pe ssoa s e m p a z. P orta n to , ela ig u a la a c o n-

soas e nvolvid a s n a inte ra ç ã o, capa z d e to t a liz a r e stas p ersp e ctiv a s e m u m


to d o o u vonta d e geral. [...] O s uje ito im p a rcia l n ã o pre cis a re c onh e c er n e n h u rrj
o u tro suje ito cuja p ersp e ctiv a d ev a ser le v a d a e m conta e com o qu a l a dis c u s*
são possa ocorrer. [...] D e ste p o n to de vista im p a rc ia l n ã o pre cis a m os c o n s u l^
ta r n e n h u m o u tro porq u e o p o n to de vista im p a rc ia l já le v a e m co nta tod a s as
p ersp ectiv a s poss ív eis " (Y ou n g, 1 9 8 7:6 2). M a s, co m o vim o s , a im p a rcia lid a d e
r a w ls ia n a consiste ju s t a m e n te n a e xig ê ncia de q u e a te nte m o s p a ra to dos os
p o nto s de vista possíveis. P arece qu e Y o u n g está c o n fu n d in d o a e xig ência
m o ra l de im p a rc ia lid a d e c o m um a e xig ê ncia e piste m oló gic a de im p e s s o alid a
de o u obje tivid a d e : " C o m o c ara cterístic a d a ra z ão, a im p a rcia lid a d e sig nific a
a lg o dif e re n te da po s tura pra g m á tic a de ser ju sto , co n sid e ra n d o as ne c e ssid a
des e de se jos da s ou tra s pe ssoas, a lé m do s nossos. A im p a rc ia lid a d e n o m e ia
u m p o n to de vista d e ra z ã o qu e se coloca s ep ara do d e qu a is q u er intere ss e s ou
de sejos. N ã o ser p a rcia l sig nific a ser ca pa z de v e r o to d o , de v e r co m o tod a s as
p ersp e ctiv a s e intere sse s e sp ecíficos e m u m a da d a situ a çã o m or a l se r e la c io
n a m e ntre si; de u m a m a n e ir a qu e , p o r causa de sua p a rcia lid a d e , cada p e rs
p e ctiv a n ã o cons e gue v e r a si p ró p ri a ._ 0 1
t3 _ ç ç á p c a -s e -fo r a .^ a ffln ^ .^ s itu a ç ã o a re sp e ito da qu a l e le jo u ela ra ciocin a ,
s e m n a d a e m jo g o n e la , ou s upo sta m e nte a d ota u m a p o stura p a ra com um a
situ a çã o c om o se estiv esse fora e a cim a d e la " ( Y o un g , 1987: 60). C o ntu d o , p o
d e m o s a ce itar os d ir e ito s m ora is d a posiç ã o orig in a l c om o u m m e c a nis m o
p ara c onsid erar os intere ss e s d is tin to s de outra s pessoas s e m a c e itar o id e a l
e pis te m o ló gic o de colo c ar-s e a cim a da situ a çã o. (Inv ers a m e nte , re j e ita r este
id e a l de im p ers o n a lid a d e n ã o g a ra nte qu e as pessoa s a t e n ta ra m p ara os in t e
resses das outra s pessoas.)
o F E M INIS M O 357

versa sobre d ir e ito s a in d iv id u a lis m o e e go ísm o e d i z quejas,


deveres para co m os o u tros b as e ados e m d ire ito s se lim it a m
à n ã o-in t e rf e rê n d a re c íproc a /( G illig a n, 1 9 8 2:2 2 ,1 3 6 ,1 4 7 ; cf.
M e y e rs , T 9 ‘8 7 : 146),
Isso, p or é m , só é v á lid o p ara as t e oria s lib e rt á ria s dos
dire ito s . Todas as o utra s te ori a s q u e e x a m in e i re conh e c e m!
de v ere s p o sitiv o s n o que d i z re s p e ito ao b e m - e s t a r do s o u -j
tros. P orta nto, e m bora a e stru tura da ju stiç a e nfa tiz e os dire i-I
tos das pessoa§, é .b a sta nte a d e qu a do d iz e r qu e estes d ire itos
im p õ e m re s p o n s a b ilid a d e s aos outros.; E , n a v erd a d e , é a s
sim q u e os e ntre vista do s de G illig a n d e scre v e m su a é tic a d o
c uid a do . Por e x e m plo , u m a m u lh e r d i z qu e " a s p e ssoa s so
fre m e isso lh e s d á certos d ire ito s e d á a você c erta re spon s a
b ilid a d e " (cita do e m B rou g hto n , 1983:605). É v e rd a d e qu e a l
gum a s m u lh e re s " p e n s a m m e n o s a r e s p e ito d a q u ilo a qu e
t ê m d ir e ito d o qu e a r e s p e ito d a q u ilo cujo p ro v im e n to é de
sua r e s p o n s a b ilid a d e " . C o n tu d o , ela s p o d e m se co n sid e ra r
responsá veis p o r pro v e r cuid a d os aos outros ju sta m e nte p o r
qu e co n s id e ra m qu e os o u tro s t ê m d ir e ito a isso - " S u p o r c
c o n trá rio s eria c o n fu n d ir a b e m suste nta d a a firm a ç ã o de qu<
as m u lh e r e s in t e re s s a m -s e m e n os qu e os h o m e n s p eL
prot e ç ã o dos d ire ito s delas p e la a firm a ç ã o , in te ir a m e nt e d i
fere nte , de qu e as m ulh e re s são m e n os in clin a d a s qu e os h o
m e ns a p e ns a r qu e as pessoas têm d ire itos (ou a suste nta r v i
sões fu n c io n a lm e n t e e quiv a le nte s a e sta )" (Sher, 1987:187).
A s s im q u e a b a n d o n a m o s a in t e rp re t a ç ã o lib e rt á ri a d e
d ire ito s c o m o n ã o-in t e rf e rê n c ia , to d o o c o ntra st e e n tre re s
po ns a b ilid a d e s e d ire ito s am e aça de s a b ar ( O k in , 19 90:1 57).
C o m o diz B ro u hg to n , " G illig a n e seus s uje itos p are c e m pre s- ,
sup or a lgo co m o 'o dire ito de todo s ao re sp e ito c om o pessoa',
'o d ir e ito d e ser tra t a d o s o lid a ri a m e n t e e c o m o u m ig u a l' e
'o d e v e r de re s p e ita r e n ã o f e rir os o u tro s " '. P orta nto , " é d i
fíc il p erc e b e r de qu e m a n e ira ela n ã o e stá re c o m e n d a n d o
d ire ito s e d e vere s m a is o u m e n o s o brig a tório s ou, ta lv e z , até
m e s m o 'p rin c í p io s ' de b e m -e s t a r p e sso a l e inte re s s e b e n e
v o l e n t e " (B ro u g h to n , 1983: 612). E, e m b ora G illig a n in sista
e m qu e as du a s é tic a s são fu n d a m e n t a lm e n t e difere n te s, ela
358 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T EM P O R Â N E A

p ró p ria parec e ind e cis a a re s p e ito de sua rela ç ã o. E la " o s c i


la e ntre as id é ia s d e qu e as du a s étic a s são a lt e rn a tiv a s m u
tu a m e n t e in c o m p a tív e is , m a s são a d e qu a d a s d o p o n to de
vista n orm a tiv o ; de qu e elas se c o m ple m e n t a m m u tu a m e n
te, e n v o lv id a s e m a lg u m tip o d e in t e ra ç ã o te ns a; e de qu e
cad a urn a é d e ficie nte s e m a ou tra e, p o rt a n to , d e v e m ser i n
te gr a d a s " ( F la n a g a n e Jackson, 1987: 628). Essas o s cila çõ e s;
n ã o d e v e m ser s urpre e n d e n t e s , u m a v e z qu e , c o m o a rg u-
m e nt e i, os co nc e ito s-c h a v e qu e G illig a n us a p a ra d is tin g u ir j
as du a s étic as n ã o d e fin e m contra ste s g e n u ín o s 14.
E m b ora d ir e ito s e re sp o ns a bilid a d e s n ã o s eja m c o n c e i
tos m or a is c o ntra st a n t e s , h á u m a d if e re n ç a no tip o de re s
p o n s a b ilid a d e q u e ca d a é tic a n os im p õ e . S e gund o S a ndra
H a rd in g , a p e squis a de G illig a n d e m o n stra qu e " a d o r s u b
je tiv a m e n t e s e ntid a p arece im o i a jj a a r a as m u lh e re s, seja ela
ju s t a o u n ã o " , ao p a sso q u e os h o m e n s " f e n d e m a a v a lia r
c o m o im o r a l a p e n a s a in ju s tiç a o b je tiv a - m d e p e n d e n t e -
m e n te d e u m a to g erar o u n ã o d o r s ubje tiv a ", (H a rd in g , 1982:
237 8; 1987: 297). P or e x e m plo , os h om e n s são m e n os in c li
n a d os a re c onh e c e r q u a lq u e r o brig a ç ã o m o ra l d e m e lh ora r
dores subje tiva s que d e corra m d a pró pria n e glig ê ncia de um a
pe ssoa , já qu e ela s s ão c ulp a sua. N o caso, .há um a d o r s u b
je tiv a , m a s n e n h u m a in ju s tiç a o b je tiv a e, p o rt a n to , os h o -
m e n s t e n d e m a n ã o r e con h e c e r n e n h u m a o brig a ç ã o m ora l.
P ara as m ulh e re s, p o r o u tro la d o , a im or a lid a d e da d o r s u b
je tiv a n ã o d e p e n d e da pre s e nç a d e in ju s tiç a ob je tiv a .
H á u m contra ste g e n u ín o e n tre c on sid e ra r dore s s ubje
tiv a s o u in ju s tiç a o b je tiv a c o m o fu n d a m e n to s dos d ire ito s

14. S e gund o a lguns com e ntarista s, a d ific uld a d e e m re c o n ciliar as duas


ética s n ão é de conc e ito, m as de d e s e nvo lvim e n to . S e g undo G illig a n , co m p o-í
n e nte s dif ere nte s d o d e s e n vo lvim e nto m o ra l estão e nra iz a dos e m exp eriencias!
de in fâ n cia fu n d a m e n t a lm e nt e div ers as - isto é, a e xp eriê ncia in f a n til de d e si-j
gu a ld a d e /fa lta de p o d e r d á orig e m à busca p or in d e p e nd ê n cia e igu a ld a d e , aoj
passo qu e a exp eriê ncia de apego e lig a ç ão pro fu n d o s dá orig e m à comp a ix ã o e
ao a m or ( G illig a n , 1987:20). Se fo r assim, então, as difere nç a s nas e xperiê ncia s:
das crianç as e m suas relações co m os pais p od e m afetar sua ca pacidade de a pre n
d e r dif ere nte s com pon e n te s da m ora lid a d e ( F la na ga n e Jackson, 1987: 629).
O F E M IN IS M O 359

m ora is. É esta a dif e re n ç a fu n d a m e n t a l e ntre c u id a d o e ju s


tiç a ? C e rt a m e n t e é v e rd a d e q u e a m a io ri a dos t e óric o s da
ju s t iç a vin c u la os d ire ito s m or a is à in ju s tiç a o b je tiv a e n ã o à
d q j s u b je tiv a 15» É m e n o s claro se a é tic a do c u id a d o d iz qu e
as dore s s u bje tiv a s fo rm a m a ba se p a ra os d ir e ito s m ora is ,
se tod a s as dore s subjetiv a s, e ape na s tais dores, fu n d a m e n
t a m os d ir e ito s m ora is. P re oc up a r-s e co m a lg u é m n ã o s ig
nific a nec essariam e nte s e n tir um a obriga çã o m ora l de ate n d e r
a to d o s os seus de sejos o u p o u p á -lo de tod a s as dore s o u
d e s a ponta m e ntos subjetivos. O s te óricos d o cuid a do , n a v e r
da de, n ã o diss era m m u ito , até agora, sobre c om o c o m pre e n
d e m a lig a ç ã o e n tre a d o r s u b je tiv a , a in ju s tiç a o b je tiv a e
os d ire ito s m ora is , e é pro v á v e l qu e conc e pçõ e s dif e re nt e s
de c uid a d o é tico ch e ga ss e m a conclus õ e s dife re nte s . P or
t a n to , é p re m a tu ro s u p o r qu e o c u id a d o e a ju s tiç a t ê m v i
sões fu n d a m e n t a lm e n t e oposta s n e sta qu e stã o.
C o n tu d o , e m b ora os p o nto s ex atos de d is c órd ia n ã o se-
j a m c laros, p are c e v erd a d e q u e os t e óric o s d o c uid a d o t e n -
'd e m á é n la tí z a r a nte s a d o r sub je tiv a qu e a in ju s tiç a ob je tiv a
c õ n à d jjf â J ^ i^ S 2 B f ir t o s m ora is. A n t e s d e co nsid era r a lg u
m a s das ra z õ e s qu e os te óric os d o c uid a d o t ê m p ara e n f a ti
z a r a d o r s u bje tiv a , e x a m in a re i a lgum a s da s ra z õ e s qu e os
t e órico s da ju stiç a t ê m p ara pre f e rir a in ju s tiç a o bje tiv a com o
base p ara os d ire ito s m ora is. A rg u m e n t a r e i qu e a ê nfa s e n a
in ju s tiç a o bje tiv a , a pe s ar de in ic i a lm e n t e pla u s ív e l, só é l e
g ítim a e m c e rto s c o nt e x to s - a saber, as in t e ra çõ e s e n tre
a d u lto s co m p e t e n t e s . N a v e rd a d e , p o d e s er le g ítim a a p e
n a s q u a n d o noss a s in t e r a çõ e s c o m a d u lto s c o m p e t e n t e s
e stã o n itid a m e n t e s epara das d e noss a s in tera ç õ e s co m d e
pe nd e nte s. Se fo r assim, entã o, o d e b a te e ntre o ra cio cínio do
c u id a d o e o ra c io c ín io da ju s tiç a torn a -s e in e xtric a v e lm e n t e
lig a d o ao d eb a te sobre a distinç ã o e ntre dom é stic o e pú blic o .
Por qu e os t e óricos da ju s tiç a p e ns a m qu e é im p o rt a n t e
lim it a r nossa re spons a bilid a d e p e los o utro s às re ivindic a çõ e s

15. C o n tu d o , a m a ior p a rte dos te óric os d a ju stiç a re conhe c e as o brig a


ções de b o m s a m a rit a n o qu e n ã o estão re l a cion a d a s c om a in ju s tiç a obje tiv a
(cap. 2, n . 9 a cim a).
360 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O NT EMP O R Â N E A

d e justiç a ? Se a d o r s u bje tiv a s e m pre dá o rig e m a d ire ito s


m ora is, e ntã o, posso e sp erar le g ítim a m e n t e , c o m o qu e stã o
de c uid a do ético, qu e o utro s a t e n t e m para todo s os m e us i n
teresses. M a s, p ara os te órico s da jus tiç a , isso ig n or a o fa to
de qu e eu d e v eria a c e ita r u m a re s p o n s a b ilid a d e ple n a p or
a lguns dos m e u s p ró prio s interess e s. N a p ersp e ctiv a d a ju s
tiç a , po s so e sp erar le g ítim a m e n t e , com o qu e stã o de e q ü i
dad e, qu e o u tro s a t e n t e m p a ra alguns dos m e us intere ss e s,
m e sm o qu e isso lim it e a busca de seu p ró p rio b e m . .N ão p o s
so, p oré m , e sp e ra r l e g ítim a m e n t e q u e as p e ssoas a t e n t e m
p a ra to d o s os m e us interess e s, pois h á a lg uns intere sse s qu e
c o n tin u a m a s er d e m in h a p ró p ri a r e s p o n s a b ilid a d e e s e
ria erra do e sp erar qu e o u tro s re n u ncia ss e m a o seu b e m para
a t e n t a r p ara coisas qu e são d a m in h a re spo n s a b ilid a d e .
C on sid e re u m a pe ssoa qu e é g en eros a c om seu t e m p o e
d in h e iro q u a n d o os a m ig o s p a ss a m p o r n e c e ssid a d e , m a s
qu e t a m b é m é m u ito d e sc uid a d a com seus gastos. C om o re
s ulta do , ela .m u it a s v e z e s s e e n c o n tr a (d e sn e c e ss aria m e nte)
n e c e ssita d a d e ajuda, e v a le -s e dos o u tro s p ara s ér po u p a d a
das cons e qü ê ncia s d e su a i m p ru d ências E la t e m u m a e xpe c
t a tiv a le g ítim a de qu e os outros a a jud e m - d e v e m os nos s e n
t ir m or a lm e n t e o brig a d o s a p o u p á -la dos re su lta d os d e sua
f a lt a de c uid a do ? A a bord a g e m da d or subje tiv a d iz qu e so
m o s irre s pons á v e is se n ã o a te n ta m o s p a ra o seu so frim e nto .
Se e la s e nte u m a d o r su bje tiv a , e ntã o , e xig e-s e qu e a t e n t e
m o s p ara ela, e m b ora a d o r seja o re s u lta d o d e s é ü p la n e ja
m e n to d e s cuid a d o o u e xtra v a g â ncia »-A é tic a d a ju stiç a , p o
ré m , d iz qu e ela é irre s po n s á v e l ao e sp erar qu e a p o u p e m o s
de q u a lq u e r s o frim e n to . Suas ações são sua p ró p ria re s p o n
s a bilid a d e e é im o r a l f a z e r com qu e os o u tro s p a g u e m p e los
custos de sua f a lt a d e cuid a d o .
V is to d e sta m a n e ira , o d e b a te e n tre dore s s ub je tiv a s e
in ju s tiç a o b j e tiv a é u m d e b a te g e n u ín o p o is h á posiçõ e s de
im p ort â n c ia s d ife re n te s q u e p o d e m o s a d o t a r n a qu e stã o da
re s p o n s a b ilid a d e p e lo nosso b e m -e st a r. P ara os te órico s d o
cuid a d o , a ê nfa s e n a in e q ü id a d e s ubje tiv a s a ncion a u m a a b
dic a ç ã o d a re s p o n s a b ilid a d e m or a l p orq u e ela lim it a noss a
O F E M INIS M O 361

re s p o n s a bilid a d e p e los o utro s a a firm a çõ e s de in e q ü id a d e e,


com isso, p e rm it e qu e as pessoas ig n o r e m o s o frim e n to e vi-
tá v e l. Para os te órico s da ju stiç a , a ênfa s e n a s dore s s u b j e ti -1
vas s a n cion a u m a a bdic aç ã o d a re sp o n s a bilid a d e m or a l p o r
qu e ela n e g a qu e o im p ru d e n t e d e v a p a g a r p e lo s c usto s de
suas e scolh a s e, c o m isso, re co m p e n s a os irre sp o n s á v e is ac
m e s m o t e m p o e m q u e p e n a liz a os qu e a g e m c o m r e s p o n
s a bilid a d e .
O d e b a te e n tre c uid a d o e ju stiç a , p o rt a n to , n ã o é e ntre
re sp o n s a b ilid a d e e dire itos. P elo c o n trá rio , a r e s p o n s a bilid a
d e é c e ntra l p ara a é tic a d a ju stiç a . A ra z ã o p e la q u a l m e u d i
re ito s obre o utra s pessoas é lim it a d o à e q üid a d e n ã o é o f a to
d e qu e elas tê m dire ito s , m a s o d e qu e eu t e n h o re sp o n s a bi-

tros i m p lic a a a c eita ç ã o d a re s p o n s a b ilid a d e p e lo s m e u s d e -


se jos e p e lo s c usto s d e m in h a s e scolh a s. C o m o d iz R a w ls,
su á T e oria " b a s e i a -s e e m u m a c a p a cid a d e d e s u p o r a r e s
p o n s a b ilid a d e p e los nossos fin s " (R a wls, 1982b: 169), In v e r
s a m e nte , os.qu e ..Y Íncula m .obrig a ç õ e s m ora is antes,.a dores,
subje tiv a s qu e à in e q üid a d e o bje tiv a d e v e m n e g a r qu e somos
a g e nte s re spons á v eis: d e v e m a rg u m e n t a r " q u e n ã o é ra z o á
v e l, o u m e sm o ju sto , co n sid erar £as pessoas], re spons áv eis p e
las sua s p re f e rê n cia s e e x ig ir qu e elas se s a ia m d a m e lh o r
m a n e ira p o s s ív e l" (R a wls, 1982b: 168). C o m o R a w ls p e n s a
qu e te m os a c ap acid a de de sup or esta re spons a bilid a d e , sua
te oria re q u er qu e as pessoas viv a m d e a cordo com seus m e io s,
qu e a ju s te m seus p la n o s à re n d a q u e p o d e m e sp erar l e g iti
m a m e n te . C o m o re sulta d o, u m a p e sso a d e sc uid a d a e e x tra
v a g a nt e n ã o p o d e e sp erar q u e os q u e fo ra m m a is re sp o n s á
v e is p a g u e m p e lo custo de su a im pru d ê n c ia : " é co n sid era d o
in ju s to q u e ela s a g ora d e v a m t e r m e n o s p a ra p o u p á -l a d as
co n s e q ü ê n cia s d e sua f a lt a d e p re vis ã o e a u to d is c ip lin a "
(R awls, 1982b: 169). Se form o s obrig a do s a p o u p a r as pessoas
d e to d a s as dore s s u bje tiv a s , e n tã o te re m o s q u e e x ig ir qu e
os qu e c u id a r a m r e sp o ns a v e lm e nte d e se u p ró p rio b e m -e s
t a r fa ç a m sa crifícios c ontín uo s p ara a ju d ar os qu e fora m irre s
pon s a v e lm e nte d escuid a dos ou extrav ag antes, e isso é inju sto .
362 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

A vis ã o d e q u e as d ore s s u b je tiv a s s e m pre d ã o o rig e m


a d ir e ito s m ora is n ã o é a p e n a s in ju s t a , ela p o d e o c u lt a r a
opre ss ã o. A s dore s su b je tiv a s e stã o lig a d a s a e xp e cta tiv a s,
e socie d a d e s in ju s t a s cria m e xp e cta tiv a s in ju s t a s . C o n s id e
re as re la çõ e s c o nju g a is tra d ic io n a is , n as q u a is " o s h o m e n s |
n ã o s e rv e m as m u lh e r e s c o m o as m u lh e re s s erv e m os h o - |
m e n s " (F iye , 1983: 9, 10; cf. F rie d m a n , 1987a: 100-1; G r im - f
sh aw, 1986: 2 1 6-9). O s h o m e n s e sp e ra m q u e as m u lh e re s
c u id e m d e suas n e ce ssid ad es e, p ort a n to , s e nte m-s e s u b je ti
v a m e n te m a go a dos s e m pre qu e se re q u e r que c o m p a rtilh e m
os fardos, d a vid a d om é stic a . N a v erd a d e , " e m tod a s as t e n t a
tiv a s d e m o d ific a r re la ç õ e s e x p lo ra tó ria s o u opre ssiv a s, a l
g u é m será p riv a d o d e a lg o . P od erá ser p riv a d o d e a lg u m a
a te n ç ã o , s erviço o u a m e n id a d e aos q u a is e ste ja a c o s tu m a
do. P od erá p a ss ar p o r a lg u m a priv a ç ã o o u d ific u ld a d e e e x
p erim e nt ar isso com o u m a falta de ate nç ã o " (G rimsh a w , 1986:
218). O s opressore s s e ntirã o a g u d a m e nte q u a lq u er p erd a de
p riv il é g io , a o p a sso q u e os o p rim id o s s ão m u it a s v e z e s so
cia liz a d o s p ara q u e n ã o s in t a m d o r s u bje tiv a p e la sua o pre s
são. C o m o re s u lt a d o , a c o n c e ntra ç ã o n as dore s s u bje tiv a s j
c o m o fu n d a m e n to s p ar a d ir e ito s m o ra is to rn a a opre ss ã o 1
m a is d if í c il d e s er vis ta . N a p e rs p e c tiv a d a ju s tiç a , p o r o u - f
tro la d o , as d ore s s u b je tiv a s d o s opre ss ore s n ã o t ê m n e
n h u m p e so m or a l, j á q u e se o rig in a m d e e xp e ct a tiv a s i n
ju s t a s e e goísta s. O s d ir e ito s d e ju s tiç a são d e t e rm in a d o s
p e la s e x p e ct a tiv a s l e g ítim a s d a s p e sso a s, n ã o p e la s sua s
e xp e cta tiva s efetiva s. (Isso e xplic a p o r qu e os te órico s d a jus-jj
tiç a d iz e m n ã o a p e n a s q u e as dore s s u bje tiv a s c are c e m d e
s ig nific a do m ora l, n a ausência d e in ju s tiç a o bje tiv a , m as t a m
b é m qu e a in ju s tiç a o b je tiv a é im o r a l m e s m o q u a n d o nãc >
a c o m p a n h a d a p e la d o r su b je tiv a , c o m o q u a n d o as p esso a i
são socializ a d as p ara a ce itar sua opre ssã o - cf. H a rdin g , 1987:
297.) N e st e s e n tid o , " fo rm a s m o r a lm e n t e v á lid a s de c u i
d a d o e c o m u n id a d e p re s s u p õ e m c o n diçõ e s e ju lg a m e n to s
d e ju s tiç a p ré v io s " (K o h lb e rg , 1984: 3 0 5)16.

16. A lg u n s com e ntaristas a rg u m e nta m qu e G illig a n , ao n e glig e ncia r a


qu estã o das relações opressivas, corre o risco do " es se ncialismo m ora l" . Ela " s e-
O F E M INIS M O 363

H á o u tro pro b le m a e m us ar a d o r su bje tiv a c o m o a base


d e d ir e ito s m ora is. E m b ora ela im p o n h a m u it o p ouc a re s
p o n s a b ilid a d e p e lo nosso b e m -e star, im p õ e u m a re s p on s a
b ilid a d e m u ito gra n d e p e los ou tros . Se a d o r s u bje tiv a s e m
pre p e d e u m a re s p osta de c u id a d o , p a re c e n ã o h a v e r n a d a
^ u e ^ ttfl S l C n o s s a o brig a ç ã o d è a t e n t a r p a ra os o u tro s ./ÍT a
' s e m pre a lg o m a is qu e p od e m o s f a z e r p e lo s o u tro s , se a t e n
t a rm o s c u id a d o s a m e n t e p a ra os seus d e s e jos - s e m pre h á
a lg u m d e s e jo fru s tr a d o q u e p o d e m o s a ju d a r a s a tisfa z er. E
isso acaba p or re forç a r a si m e sm o, pois, q u a n d o u m a pessoa
sabe qu e e sta m os a t e n t a n d o p ara ela, p ass ará a e sp erar n o s
sa ate nç ã o e, e ntã o , v a i s e n tir-s e m a is f e rid a a in d a se nossa
a te nç ã o fo r re tira d a . C o m o re s ulta d o , o a g e nte s e m pre e n
fre n t a re ivind ic a ç õ e s m ora is a seu t e m p o e e n ergia , r e iv in d i
cações que n ã o d e ix a m espaço p ara a livre busc a de seus p ró
prio s proje tos.
P ort a n to , a id é ia d e q u e as dore s subje tiv a s d ã o orig e m
a dire ito s m ora is am e aça a justiç a e a a u ton o m ia . M u ito s t e ó-
ricos d o cu id a d o re con h e c e m este p rob le m a e te nt a m coloc ar
lim it e s ao qu e .os o u tro s p o d e m e s p era r l e g ítim a m e n t e de
nós. A lg u n s t e óric o s d i z e m q u e os pro v e d ore s de c u id a d o
d e v e m a t e n t a r p a ra sua p ró p ri a n e c e ssid a d e d e a u to n o m i a
o u qu e o c uid a d o g e n u ín o e n volv e a lg u m tip o d e re c ip ro c i
dad e , de m o d o qu e h á lim it e s a re sp e ito de q u a n to os o u tro s
p o d e m e sp erar de nós s e m nos a jud a re m e m troc a (R uddick,
1984:238; G illig a n , 1982:149; N o d din g s , 1984:105). D estas e
de o utra s m a n e ira s, os t e óricos d o c uid a d o dist a n cia m -s e de
q u a lq u e r e qu aç ã o sim ple s d e .dor su b je tiv a e d ire ito s m or a i»;
Q u a n t a a u to n o m ia , poré m , p o d e m o s r e iv in d ic a r p ara
nós e q u a nt a re cipro c id a d e p o d e m o s e x ig ir dos o u tro s s em
n e glig e n c ia r irre s p o n s a v e lm e nt e a d o r su bje tiv a dos o utro s?

p ara as qu alid a de s d o cuid a d o e d a lig aç ão d o seu co nte xto de de siguald a de e


opress ão e exige qu e seja m consid era dos isola da m e nte , s e gundo seu m érito in
tríns e co " (H ouston, 1988:176). C om o obs erva Tronto , "s e a pre serva çã o de u m :
rede de relações é a pre missa in icia l de um a ética do cuida do, entã o, há pouc:
base p ara u m a refle xã o crítica d e stin ad a a d e te rm in ar se estas relaçõe s são boas
saudáveis o u dign a s de pre serva ção" (Tronto, 1987:660; cf. W ils o n , 1988:17-8).
364 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O NT E M P O R Â N E A

A lin h a d o s c o m sua m e to d o lo g ia g era l, os te óricos do c u id a


d o diz e m qu e o c o n flito e n tre a u to n o m ia e re s po ns a bilid a d e
p e los o utro s d ev e ser d e cid id o c o n t e x tu a lm e nte . A o c o n trá
rio de u m dos h o m e n s e ntre vista d o s p o r G illig a n , qu e disse
qu e d e v ería m os tra ta r este c o n flito co m o u m a " e qua çã o m a
t e m á tic a " cuja s oluç ã o se e n c o n tr a e rr^ y m a fó rm u l a com o ,
h im q u a rt o p ara os o u tros e tr ê s qu arto s p ara n ó s " ( G illig a n ,
1982: 3 5 , 37)7õs te óric os do cuid a d o d iz e m que d ev e m os j u l
g ar a a de qu a ç ã o de q u a lq u e r e xig ê ncia de a uto n o m ia ou re
c ipro c id a d e " c o m b a s e n o s fu n d a m e n to s d o q u e é r a z o á v e l
e sp erar do ser d e q u e m se cuid a , ju n t a m e n t e com o qu e d e -
v e ria s er e sp era do d e ta l in d iv íd u o , d a d a a n a ture z a d a r e la
çã o de c u id a d o e m q u e st ã o "' (W ils o n , 1988: 20). O s t e óric o s
d o cuid a do, ao c o n tr á rio dos t e óricos da ju stiç a , n ã o t e n t a m
s olucion a r estas qu e stõ e s d e s e nvo lv e ndo u m siste m a a bra n
g e nte de re gra s a bstra ta s qu e a tro p e la a e s p e cificid a d e das
pe ssoas e de suas relações.
C o n tu d o , e ste é u m dos lu g a re s e m qu e a a b stra ç ã o é
u m a v irtu d e im p o rt a n t e . Se nosso o bje tiv o é ass egurar qu e a
livre busc a de nossos proje tos n ã o seja in te ira m e n t e s u b m e r
g id a p ela s e xig ê ncia s d o c uid a d o é tic o, e ntã o , n ã o pre cis a
m os sim p le s m e nt e d e lim it e s p ara nossas re spons a b ilid a d e s
m ora is; pre cis a m os d e lim it e s previsíveis. P re cis a m os sab er
antecipadamente d e qu e p od e m o s nos v a le r e p e lo qu e somos
re spons á v e is se tiv e rm o s de f a z e r p la n o s d e lo n g o pra z o.
N ã o é d e gra n d e v a lia diz e re m -n o s , n o ú ltim o in s ta n te , qu e
n ã o pre cis a m de noss a a ju d a m o ra l h oje e qu e e sta m os l i
vre s p ara tira r, p o r a ssim diz er, u m fe ria d o m ora l. Só p o d e
m os tir a r v a n t a g e m das féria s se p o d e m o s p la n e já -la s e isso
re qu er qu e possa mos d e te rm in a r agora qu ais são os interesses
p elos quais sere mos considera dos responsá ve is posteriormente.
E isso p o r sua v e z re q u e r que, ao d e cidirm os , nessa d a ta p o s
terior, qu e m é respons áv el p e lo a te n dim e n to aos outros, n ã o
tom e m o s u m de cisão ple n a m e nte sensível ao conte xto.
P or e x e m plo , q u a n d o m e u d ia d e féria s d o s erviço c h e
ga, n ã o p e rg u nt a m o s q u e m é m e no s n e c e ss ário n o e scritó
rio . P e rgu nta m os de q u e m é a v e z s e gun d o o siste m a d e re -
o F E M IN IS M O 365

gras. O re s u lta d o po d e ser qu e a lg u m a pe sso a sofra a fru s


tra çã o d e d es ejos q u e u m proc e sso d e d e cis ã o m a is c o n t e x
tu a l t e ria s a tisf e ito (a a us ê ncia d e o u tra s p e sso as n o e s critó
rio re a lm e n t e seria m e n o s s e n tid a ). M a s , se q uis e rm o s ser
capaz es de a ss um ir c om prom issos g e nu ínos com nossosja rq-
“ jè to s , è tilã õ^riõ s s o sid íf ê T to s d e v e m s er is o l a d o s , a té .c e rt o
' p o n to , dos desejos, c o n tin g e n t e s dos q u e e stã o a n ossa v o l-
ta.,R egras a bstrata s forn e c e m c erta se gura nç a dia n te dos d e -
s e jo s jn u t á v e is d e o utro s .
/ ‘ N a tu ra lm e n t e , os t e óric o s d o c u id a d o e stã o c e rto s ao
d iz e r qu e a lg u n s tip o s de rela çõ e s d e v e m in v o c a r p a drõ e s
dife re nte s p ara e q u ilib ra r a u to n o m ia e re spo ns a bilid a d e . Por
e x e m p lo , n ã o p o d e m o s e sp erar q u e as cria n ç a s t e n h a m o
m e s m o re s p e ito p e la a u to n o m i a e a re c ip ro c id a d e q u e os
a d u lto s (r e to m a r e i a isso a b aixo). M a s, p ara in te ra ç õ e s e n
tr e a d u lto s com p e te nte s, u m a m a n e ira im p o rt a n t e de r e c o n \
c ilia r re s p o n s a b ilid a d e e a u to n o m i a é c o d ific a r a lg u m a s de
nossa s re s p o n s a bilid a d e s a nte s d e situ a çõ e s esp ecíficas, e m
v e z d e d e t e rm in á -l a s p o r m e io d a a v a lia ç ã o e re a v a lia ç ã o
c o nsta nte s d e situ a çõ e s esp ecífica s.
E ste re curso a re gra s a bstra ta s s ig n ific a qu e a ju s tiç a i g
n ora noss a " in d iv id u a lid a d e d is tin t a " ? É v e rd a d e q u e a ju s
tiç a , n e ste c o nt e xto , n ã o re q u e r qu e a ju ste m os noss a n o ç ã o
" d o q u e é ra z o á v e l e s p e ra r" às n e c e ssid a d e s e sp ecífic as dos
qu e e stã o a noss a v olt a . N o ssos d ire ito s e obrig a ç õ e s n e ste s
co nte xto s são fix a d o s a nt e cip a d a m e nt e p o r re gra s abstrata s,
n ã o p o r a v alia çõ e s s ensív eis ao c o nt e x to das n e c e ssid a d e s
dos qu e e stã o a noss a v o lt a . Isso, porém,._n ã q d e ve ser vis to ,
c o m o u m a e vid ê n cia d e u m a in s e n s ib ilid a d e à qu ela s n e c es-
jid a d e s específic as. Po is o r e s u lt a d o lí q u id o d e sta a bstra ç ã o
d a p a rtic u l a rid a d e é p ro te g er a e s p e cific id a d e m a is p l e n a
m e n te . Q u a n to m a is nossos d ire ito s são d e p e n d e nte s de c á l
culos se nsív eis ao c o nte xto dos d e sejos e sp e cíficos de to d o s,
m a is v u ln e rá v e is são n ossos p ro j e to s p e sso ais aos d e s e jos
m u t á v e is dos o u tro s e, p ort a n to , m e n o s c a p acid a d e t e re m o s
d e a ssu m ir co m pro m is so s de lo n g o pra z o. A a u to n o m i a s ig
n ific a tiv a re q u e r a pre v is ib ilid a d e e a p re v is ib ilid a d e re q u e r
c e rto is o la m e n to d a s e n sib ilid a d e ao c o nte xto .
366 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

Isso a in d a d e ix a a p o s s ib ilid a d e d e qu e a lg u m a s p e s
soas t e n h a m fort e s d e s ejos fru s tra d o s p e la a plic a ç ã o de re
gras abstrata s. M a s, co m o vim o s , a étic a da justiç a supõ e que
a dultos com p e te nte s s eja m capa z es d e a justa r seus fin s à lu z
d e p a drõ e s públic os. S u p o n d o qu e as re gra s s eja m c o n h e ci
das p u b lic a m e n t e , e c o n c e n tra n d o noss a a te n ç ã o, p o r ora ,
n o s a d u lto s co m p e t e n t e s , e n t ã o , as p e sso a s q u e s ofre rã o
c o m a a plic a ç ã o d e re gra s a bstrata s s erã o as que, p e la e xtra
v a gâ ncia e fa lta d e cuid a do , conc e b era m de sejos qu e n ã o p o
d e m ser s a tisfe itos d e n tro d e seus m e ios le g itim a m e n t e d is
trib u íd o s . Pode h a v e r ta is pe ssoas e m q u a lq u e r s itu a ç ã o es-l
p e c ífic a e seu s o frim e n to p o d e s er m e n o s n o t a d o e m umq|
socie d a d e qu e re corre a nte s a regra s a bstra ta s qu e a a v alia-f
çõe s s e nsív e is ao c o n t e x to d e n e ce ssid a de s específic as. Mas!
isso é d e sua p ró p ri a re s p o n s a b ilid a d e e n ã o é ju s to p e d ir
qu e o utro s fa ç a m s a crifício p a ra p o u p á -la s de sua irr e s p o n
s a bilid a d e .
^ A d ific u ld a d e d e d e lim itar„ oJ:e .rre no p a ra . a . a u to n o m ia
p e s^o ã rri ã e t í ca d o c u id a d o le m bra u m p ro b le m a s im il a r n o
u tilit a ris m o (cap. 2, seção 3 a cim a). E m a m bos os casos, o
a g e n f é 'm o f á l e n fr e n t a u m a " r e s p o n s a b ilid a d e " a p a re n t e
m e n t e " ilim it a d a " p o r " a g ir p e lo m e lh o r re s ult a d o e m u m a
e strutura c ausai form a d a , e m gra u consid erá ve l, p e los p ro j e
to s [dos o u tro s ]" . A s d e cisõ e s d o a g e n te to rn a m -s e " u m a
fu n ç ã o de tod a s as satisfa çõ es qu e ele p o d e a fe ta r de o nd e
está: e isso sig n ific a qu e os pro je to s dos outros, e m u m gra u
im e n s u ra v e lm e n t e gra nd e , d e t e rm in a m sua d e c is ã o " , d e i
x a n d o po u c o espaço p ara a busc a in d e p e n d e n te d e seus p r ó
prio s de sejos e convicçõ e s (W illia m s, 1 9 7 3 :115)17. E ste p a ra -

17. P ort a nto , é in t e ir a m e n t e e ng a noso d iz e r q u e G illig a n co m p a rtilh a a


crenç a de W illi a m s de q u e ^J m p a rç ia lid a d e é " m u it o e x ig e n te " o n.su a . e sp e-
ra nç a de que , a a e n fa tiz a r a im p ort â n c ia d o " p o n to d e v ist a p e s so a l" , possa
m os liv ra r os proje to s pessoais da s lim ita ç õ e s d a m ora lid a d e (contra A d le r,
1987: 226, 205; K itt a y e M e y e rs, 1987: 8). C o m o observ a B lu m , os intere ss es
p essoais são visto s p o r W illi a m s " c o m o le g ítim o s n ã o t a n to do p o n to de vista
d a moralidade, m as d o p o n to d e vis t a m ais a m plo da ra z ã o prá tic a . E m c o n
tra ste , G illig a n a rg u m e nta [...] qu e o cu id a do e a re s pon s a bilid a d e na s relaçõe s
o F E M IN IS M O 367

le lo n ã o d eve ser surpre e nd e nt e , pois, e m b ora os t e óricos do


cuid a d o re je it e m o c o m pro m is so u t ilit á rio co m a m a xim iz a -
ção, am ba s as t e oria s t e n d e m a f u n d a m e n t a r os dire it o s m o
rais n a d o r e n a f e licid a d e subje tiv a s, e m v e z d e n a injus t iç a
obje tiv a . C o m o re sult a d o, a mbas as t e oria s in t e rpre t a m o i n
t ere sse p e lo s o u t ro s p rim a ri a m e n t e c o m o u m a qu e st ã o de
re sp on d e r a suas n e ce ssida de s já pre ssupost a s. C o nt u d o , só
pod e m o s pro t e g e r a ju s t iç a e a a u t o n o m i a se v irm o s o in t e
resse pelò“s õ ü t ró s n ã o apèrias e m t e rm os de re sp on d e r a pr e
f e re n cia s pre e xist e nt e s , m a s c o m o a lg o qu e d e v e e n t r a r n a
p ró p ri a f orm a ç ã o d e nossas pre f e rê n cia s. E m v e z d e le v a r
e m con t a os o bje t iv o s e sp e cíficos das pe sso as a o d e c id ir so
bre d is t rib u iç õ e s just a s , as pe ssoa s d e via m le v a r e m c o nt a
prin c íp io s d e ju s t iç a ao d e c id ir sobre seus o bje t iv o s e a m b i
ções. C o m o d iz R a wls, n a é tic a da ju s t iç a , os in d iv íd u o s são
re spons á v e is p o r f orm a r^'s e us o b je t iv o s e a m biç õ e s à lu z do
qu e p o d e m ra z o a v e lm e nt e e sp erar" . O s qu e d e ix a m de f a z ê-
lo s o fre m a fru stra ç ã o d e d e s ejos f ort e s, m a s as pe ssoa s sa
b e m q u e " o p e so d e seits d it e it o s n ã o é d a d o p e la f orç a o u
in t e n s id a d e d e suas n e c e ssid a d e s e d e s e jo s " (R a wls, 1980:
545). P ort a nt o, p a ssa mos da d or o u f e licid a d e subje tiv a s para
a in ju s t iç a o b je t iv a c o m o bas e p a ra os d ire it o s m ora is.

pesso ais co n s t it u e m u m im p ort a n t e e le m e n t o da pró p ria m ora lid a d e , g e n u i


n a m e n t e d is t in t o d a im p a rcia lid a d e . P ara G illig a n . c ada pessQ a.estáJaseada»
e m u m a re de de rela çõe s cont ín u a s, e a m or a lid a d e consist e , de m a n e ira im
p ort a n t e , a in d a q u e -n ã » e xclu siv a , n a a t e nçã o, n a . C Q t n p re g o ã 9 X lja .r e ç e p t i-
viria d p e m o cio n a l p ara ro m os in d iv íd u o s c o m 0 8 qu a is n o s m c o n t í a m o s n e s -
t as relações. [...] A s noçõ es-d e d o m ínio pessoal de N a g e l e W illi a m s n ã o c a pt a m
n e m a bra ng e m (ap es ar de N a g e l e W illi a m s às ve z e s s ug e rire m qu e se d e s t i
n a m a f a z ê -lo) o f e n ô m e n o do .cuid ado, e d a re sp o ns a b ilid a d e n a s . rela çõ e s
p e sso ais e n ã o e x p lic a m p o r q u e o c u id a d o e a r e s p o n s a b ilid a d e n a s re l a
çõe s são f e nô m e n os d ist in t a m e n t e m ora is " , (B lu m , 1988: 473). B lu m co n clui
qu e ã crític a d e G illig a n é " im p o rt a n t e m e n t e d if e re n t e " da crític a de W illi a m s
da im p a rcia lid a d e , m as " n ã o est á em c o n f lit o " c o m ela (B lum , 1988: 473). Isso,
poré m , a in d a a t e nu a o pro ble m a , já qu e W illi a m s qu e r c la r a m e n t e jyríg t iz a r o ,
y ü o rjw o -m o m l d o s pro je t o s p e s s o a is e .qú e r c o n t e rn m or a lid a d e de m o d o que
p ro t e ja est es v alore s n ã o m ora is. G illig a n qu er m o ra liz a r os p ró p rio s ap egos
qu e W illi a m d iz n ã o t e re m im p ort â n cia m ora l.
368 FILO S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R ÂN E A

P od e m os a gora p e rc e b er o c ern e de v e rd a d e s u bja c e n


te aos do is contra ste s a nt e riore s e ntre c u id a d o e justiç a . S e
g u n d o T ronto , a justiç a -e n f a tiz a o a pre n diz a d o de regras_em_
d e trim e n to d o ^ a pre nd iz a d o de s e n sib ilid a d e s m ora is , e a
a plic a ç ã o de prin c íp io s a b stra to s. e m d e trim e n to de av a li a 1'
çoes s ensív eis a o c o n t e xto de ne ce ssid a de s específica s. É ste
d e b a te q u a nto à a bstra çã o e à s e n sibilid a d e ao co nte xto e m
noss as c a p a cid a d e s m ora is e e m ra cio c ínio m or a l m uit a s v e
z es é a pre s e n t a d o c o m o d is tin to d o d e b a te q u a n to aos d i
re ito s e re s p o n s a b ilid a d e s c o m o c o nc e ito s m ora is . M u it a s
v e z e s é v is to c o m o u m d e b a t e e p is t e m o ló g ic o , c o m o se os
t e óricos da ju stiç a p e nsa ss e m qu e os prin c íp io s a bstra tos são
m a is " o b j e tiv o s " o u " ra c io n a is " , ao passo qu e os te óricos do
c u id a d o r e je it a m noçõ e s de o b je tiv id a d e c o m o e pis t e m o ló
gic a m e nte infun d a d a s (por e x emplo, Jaggar, 1983:357; Young,
1987: 60). A rg u m e n t e i a n t e riorm e n t e qu e to d o o c ontra ste é
ex agerado, já qu e o tip o de abstra ção e n v o lv id o n o ra cioc ínio
da ju stiç a n ã o com p e te n e ce ss aria m e nte c om a s e nsibilid a d e
ao conte xto (p or e x e m plo, a s e n sibilid a d e m o r a l é necessária
p a ra s ermos u m b o m jura d o). M a s a gora p o d e m o s p erc e b er
qu e, m e sm o qu a n do a justiç a c m e nos sensív e l ao c onte xto, a
e xplic a ç ã o é m ora l, n ã o e pis te m oló gic a . A ra/. ão p e la q u a l a
ju stiç a e nfa tiz a o a pre ndiz a do e a a plic a çã o de re gras é o fa to
de qu e isso é e xig id o p a ra a ju s tiç a e a a u to n o m ia . Se d e v e
m os te r a uto n o m ia g e nuín a , d e v e mos s aber a nt e cip a d a m e n
te qu a is são noss as re sp on s a b ilid a d e s e estas a trib uiç õ e s de
re spon s a bilid a d e s d e v e m ser isola d as, e m c erto grau, de a va
lia çõ e s s e nsív eis ao c o n t e x to d e d es e jos e spe cíficos. C o m o
re sulta do, a lgu m a s dore s subje tiv a s d e v e m s er d esconta d a s.
E, se a lgum a s dores subje tiv a s n ã o d ã o orig e m a dire ito s m o
rais, e ntã o as pessoas pre cis a m s aber a nte cip a d a m e nte qu ais
são, p ara qu e pos s a m a jus ta r seus o b je tiv o s a d e q u a d a m e n
te. Por ambas as ra zões, pre cis a mos de regras qu e s ejam m a is
a b stra ta s e m e n os s e nsív eis ao c o n t e x to 18./P orta n to , q u a is-

18. O a rgu m e n to a fa v or de p a drõ e s p úb lico s t a m b é m é re le v a n te p a ra a


de mocra cia . A a firm a ç ã o d a étic a d o c uid a do, d e qu e os pro b le m a s m or a is d e -1
v e m ser re v olvido s n ã o p e lo re curs o a regras ou prin c íp io s p úblico s, m a s p o r]
O F E MINIS M O 369

q u er difere nç a s qu e e xista m n o qu e d iz re sp e ito à im p o rt â n


cia da s e nsibilid a d e ao c o n t e xto e m nossas c a p a cida de s m o
rais e ra c io c ínio m o ra l são d eriv a d a s d e d ifere nç a s m a is f u n
d a m e nta is re fere nte s à im p ort â n c ia d a ju stiç a e da re spon s a
b ilid a d e p e sso al c o m o conc e itos m ora is. O s dois prim e iro s
c ontra ste s são s u b pro d u to s do terc e iro .
N ã o é s urpre e nd e n te qu e esta noç ã o de re s p o n s a b ili-j
d a d e p e los nossos fin s seja a d ife re n ç a fu n d a m e n t a l e n tre oi
c u id a d o e a ju stiç a , d a d a a d ifu s ã o d a d is tin ç ã o d e público»
e d om é stic o e m nosso p e n s a m e n to. A suposiç ã o de qu e so-j
m os re spons á v e is p e los nossos fin s é p la u s ív e l ju s t a m e n t e
n a m e did a e m que e xcluím os do â m b ito da ju stiç a o cu id a do
p or o u tro s d e p e n d e n te s . R a wls r e je it a a vis ã o de qu e os d e
sejos s ubje tivo s são o p a drã o d e d ire ito s m ora is sobre o f u n
d a m e n to de qu e " a rg u m e n t a r isso pare ce pre s s u p or qu e as
pre ferê ncia s do s cid a d ã os e stã o a lé m d e se u c o n tro le , c o m o
prop e nsõ e s e a ns eios que sim ple sm e nt e a conte c e m " (R awls,
1982b: 168-9). M a s este pre ssuposto , n a tura lm e n t e , é in t e i
ra m e n te v e rd a d e p ara m u it a s pessoas. A re je iç ã o de R a wls
d a d o r s u bje tiv a c o m o base p ara d ir e ito s m ora is é p la u s ív e l
c o n t a n to qu e p e ns e m os ape nas e m a d ulto s (fisic a m e nte c a
pa z es e m e n t a lm e n t e c om p e te nte s) in t e ra g in d o n a v id a p ú
blic a , a o passo qu e os do e nte s, os ind e fe so s e os jo v e n s são
m a n tid o s s e g ura m e n t e fora d a vis ã o 19. R a wls d iz qu e as in -

m e io d o e x ercício d e s e nsibilid a d e s m ora is p e lo a g e nte m ora lm e n t e m a d uro ,


te m u m a forte se m elh a nç a com os arg um e ntos cons erv a dore s de que os líd ere s
p olític os n ã o d e v e m ser con sid e ra do s m u ito re spons á v e is n o proce sso d e m o
crá tico (p or e x e m plo , O a k e shott, 1984). O s líd ere s p olític os pru d e n te s d e v e m
re ce be r con fia nç a , n ã o ser inv e s tig a dos , pois s eu ra c io cí nio é fre q ü e n t e m e n
te t á c ito e im p os sív e l d e a pre s e n ta r siste m a tic a m e nte . C o m o a conte c e c om
as regra s de jus tiç a , po d e m o s qu e rer qu e os líd ere s p o lític o s e m pre gu e m p a
drõ e s pú b lic o s d e ju stiç a claros, n ã o p orq u e s e ja m m ais ob je tivo s , m as p o r
qu e são m ais d e m o crá tico s. V e r D ie t z (1985) p ara u m a crític a do p e n s a m e n to
m a te rn a l p a ra ig n or a r v a lore s p o lític os c o m o a d e m ocra cia .
19. O u tra s te oria s, c om o as de R a wls e D w o r k in , re conh e c e m que t e
m os o brig a çõ e s p ara c om o utro s d e p e n d e nte s (cap. 3, s. 4 b a cim a). M a s eles
escre ve m c om o se estas obrig a çõ e s fos se m u m a qu e stã o de a ss egurar qu e
u m a p arc e la e q ü ita tiv a d e re cursos seja d e stin a d a às cria nça s e aos in v á lido s.
E les n ã o disc u te m noss a o brig a ç ã o d e pro v e r c u id a d o p ara os d e p e nd e nte s.
370 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E M P O R Â N E A

teraçõe s e ntre a d ulto s fisic a m e nte cap a z es são o " c a so f u n


d a m e n t a l" da justiç a . M a s, a ssim q u e o lh a m o s p ara a lé m da
e sfera p ú blic a , e nt ã o , o " c a s o fu n d a m e n t a l " m ud a , pois,**
c o m o d i z W ill a rd G a y lin , " to d o s nós, in e v it a v e lm e n t e , p a s
s a m os noss a v id a e v o lu in d o d e u m a e ta p a in ic i a l p ar a u m a
e ta p a fin a l d e d e p e n d ê n cia . Se som o s a fortu n a d o s o s u fi
c ie n t e p ara c o n q u is t a r p o d e r e re l a tiv a in d e p e n d ê n c i a n o
c a m in h o , tra ta -s e d e u m a g lóri a fu g a z e p a ss a g e ira " (cita do
e m Z are tsky, 1 9 83:1 9 3).
P or o u tro la d o , a supo siç ã o de qu e as dore s su bje tiv a s
d ã o orig e m a d ir e ito s m ora is é pla u s ív e l n a m e d id a e m qu e
g e n e ra liz a m os a p a rtir das rela çõe s d e c u id a d o e n v olvid a s
n a cria ção dos filh o s . U m be bê n ã o é a b s oluta m e n te r e s p on-
s á v el p e la s su as n e c e ssid a d e s e n ã o se p o d e e sp e ra r q u e .
. a te nte p a ra o b e m - e s t a r de seus p a is: " As. cria nç a s n ã o p o
d e m r e trib u ir o c u id a do ig u a lm e n te , elas e xig e m u m gra u de
e go ísm o e a te nç ã o qu e é e sp e cífico d e la s. " M as, ju sta m e n t e
p o r esta ra z ão, o p a p e l de u m p a i " p o d e fre q ü e n te m e n t e r e
q u e re r qu e ele to le re , ac eite e te n te n ã o se m a g o a r c o m u m
c o m p ort a m e n to q u e s eria in t e ir a m e n t e in to l e r á v e l o u c a u
s aria ra iv a n a m a io r p a rt e das rela çõ e s a dulta s. [...] V er " v ir
tu d e s " ou priorid a d e s f e m in in a s co m o orig in á ria s prin c ip a l
m e n t e d e re la çõe s c o m os filh o s p o d e le v a r à te n d ê n c ia de
a t e nu a r as m a n e ira s p ela s qu a is a fl e x ib ilid a d e to rn o u-s e r e
sign a ç ão e a ceita çã o, a a te nç ã o to rn o u-s e a nsie d a de crônic a
e o c u id a d o e a re c e p tivid a d e a uton e g a ç ã o crô n ic a " ( G rim -
s h a w 1986: 251, 253).
D e v e rí a m os d i z e r qu e o c u id a d o a plic a -s e a rela çõ es
c om d e p e n d e n t e s , ao p a sso qu e a ju s tiç a se a p lic a a r e l a
çõe s c om a d u lto s a utô no m o s? U m pro ble m a é qu e a d is tri
buiç ã o de c uid a do é, ela pró pria , u m a qu estã o de justiç a . O s |
te óric os da ju s tiç a t e n d e ra m a s u p or qu e a lgum a s pessoas !
(mulh eres) desejarão " n a tura lm e n t e " cuid a r dos outros, c o m o f
p a rt e de seu p la n o d e vid a , de m o d o qu e o tr a b a lh o de cui-J*
d a r dos d e p e n d e nt e s n ã o é a lg o qu e im p o n h a o brig a ç õ e s
m ora is a tod a s as pessoas. M a s, c om o a rg u m e nta B aier, não!
p o d e m o s v e r o c u id a d o c o m o s im ple s m e n t e u m p l a n o de
O F E M IN IS M O 371

vid a possív el, e m v e z de c o m o u m a re s triç ã o m o r a l a to d o


pla no de vid a , pois " o e n cora ja m e n to p ara qu e a lg u ns o cul-1
tiv e m e o u tros n ã o o fa ç a m p od e ria f a cilm e n te le v ar à e x p lo-j
ra çã o dos prim e iros . O b via m e n te fo i b a sta nte conv e nie nte*
para a lguns, n a m a iori a das socie d a d e s, qu e o utro s a ssu
m is s e m as re spons a b ilid a d e s p e lo cuid a do (dos doe nte s, dos
indefe sos, dos jo v e ns), d e ix a n d o-o s livre s p ara busc a r seus
bens m e nos a ltruísta s " . E, n a tura lm e n te ,J la p n ole ta ria d o m.Q;
ra l lo n g a m e n t e ig n ora do fora m os tra b a lh a dore s dom ésticos,
e rfis ü a m a io ri a m u lh e re s " (B aier, 1987b: 4 9-50). Se q u is e r-
m õs' asse gurar qu e a " liv re a tivid a d e " para a lgum a s pessoas
n ã o " d e p e n d a n e m e xplore a a fe tivid a d e g era lm e nte n ã o l i
vr e " dos qu e c uid a m de d e pe nd e nte s, entã o, nossa te oria p o
lític a " n ã o p o d e c o n s id e ra r o inte re ss e p o r n ov a s e fu tura s
pessoas c om o u m a c arid a d e o p cio n a l d e ix a d a aos qu e t ê m
gosto p o r ela. Para qu e a m ora lid a d e qu e a te oria e ndossa se
suste nte , ela de ve pro v e r seus pró prio s c ontinu a dore s, n ã o
apena s to m a r e m pre sta do u m in s tin to m a te rn a l cuid a dos a
m e n t e e ncora ja do " (Baier, 1987b: 53-4; 1988: 328).
A l é m disso, c o m o vim o s , a e lim in a ç ã o d a d e s ig u a ld a d e
s e xu a l re q u e r ,não a .p en a s a r e d is trib u iç ã o d o tr a b a lh o d o
m é s tic o , m a s t a m b é m u m a ru p tu r a n a n í tid a d is tin ç ã o c n -
T rê p ú b lic o e d o m é stic o . Pre cis a m o s e n c o n tra r m a n e ira s de
in te gr a r a v id a p ú blic a e a c ondiç ã o d e pais, p o r e x e m plo, e m
v e z de s e gre g ar a cria ç ão dos filh o s a u m a esfera se parada.
C o n tu d o , e m b ora esta in te gr a ç ã o de p ú b lic o e d o m é s tic o
seja re q u e rid a p e la ju stiç a se xual, ela a m e a ça m in a r os pre s
supostos d o ra c io c ín io d a justiç a . Pois a ju s tiç a n ã o a pe na s
pre ssupõ e qu e som os a dultos a utôno m o s, c om o pare ce pre s
s u p or qu e som os a d u lto s que não são provedores de cuidados
a dependentes. N o m o m e n to e m qu e as pessoas são r e s p o n
sá veis p o r s u p rir as ne c e ssid a d es (im pre vis ív e is) de d e p e n
d e nte s, ela s d e ix a m de s er ca pa z e s d e g a ra n tir sua pró p ri a
pre v is ib ilid a d e . T alve z to d o o re tra to da a u to n o m i a co m o l i
vre b usc a de pro j e to s form a d o s à lu z d e p a drõ e s a bstra to s
pre s s u p o n h a qu e o c u id a d o p o r o u tro s d e p e n d e n te s possa
ser d e le g a do a a lg u m a o u tra pe ssoa o u a o E sta do. E in t e re s-
372 FIL O S O FIA P O LÍTIC A C O N T E MP O R Â N E A

s a nte obs erv ar qu ã o p o u c o os te órico s do c uid a d o f a la m s o


bre o tip o de a u to n o m i a qu e os te óric os h o m e n s dis c u te m
d e t a lh a d a m e n te - o e sta b e le cim e nto de ob je tiv o s pe ssoais,
o c o m pro m is s o c o m pro j e to s p e ssoa is. S e g u n d o B a ier, a
p e rsp e ctiv a do c u id a d o " n ã o to m a a a u to n o m i a s e qu er u m
id e a l. [...] C e rto tip o de lib e rd a d e é u m id e al, a saber, a lib e rr
d a d e d e p e n s a m e n to e e xpre ss ã o, m a s n ã o é p ro v á v e l qu e
'v iv e r noss a p ró p ri a v id a d e nosso p ró p rio m o d o ' esteja e n
tre os o bje tiv os das p e sso a s " (B aier, 1987a: 46). D a m e sm a
m a n e ira , R u d d ic k d i z qu e o p e n s a m e n to m a t e rn a l e n vo lv e
" u m a p o stura m e ta físic a fu n d a m e n t a l " , qu e e la ch a m a " h o l
din g " [segurar, a bra ç ar], " g o v e rn a d a p e la p riorid a d e do c o n
servar a nte o a d q u irir " , n a qu a l pre s erv ar os vín c u lo s exis
te n te s t e m pre c e d ê n cia d i a n t e da busc a de nov a s a m biçõ e s
(R uddick, 1980: 217; 1987: 242). N e sta s visõ es, o c o m pro m is
so co m a a u to n o m i a n ã o é u m c o m pro m is s o c o m a d e lirn i -
ta ç ã o d o t e rre n o p ara a busc a de pro je to s pesso ais, liv re das
m utâ v è fs he ce s*sid ã d é s~d e õütròs in d iv íd u o s , m a s u m co m -.
pro m is s o d e s a tisf a z e r essas n ê õ S s id a d e s d e m a n e ir a cora -
jo s a e im a g in a tiv a , n ã o de u m a m a n e ira s ervil o u d ife re n ci a
da . Q u a lq u e r n oç ã o m a is e xp a nsiv a d e a u to n o m i a só po d e
s urg ir a o pre ç o do a b a n d o n o de noss a s re s p o ns a b ilid a d e s 20.
P od e m os c u m p rir noss a s r e s p o n s a b ilid a d e s p a ra c o m
o u tro s d e p e n d e nt e s se m r e n u n c i a r ao re tr a to m a is ro b u s to
d a a u to n o m i a e às noçõ e s de re s p on s a b ilid a d e e ju stiç a qu e

20. P or e x e m plo , L e sli W ils o n d iz q u e a ra z ã o p e la qu a l o " e u é tic o de


u m a pessoa re q u e r c erta e spécie de a u to n o m ia " é o fa to de qu e ela nos ca p a
cita " a nos to rn a r o tip o de pessoa qu e p o d e ser g e n u in a m e n t e u m pro v e d or
d e c uid a dos ú n ic o " . P ort a nto , u m a pe ssoa a u tô n o m a e x ercita sua a uto n o m ia
" t e n t a n d o d e t e rm in a r m a n e ira s p e la s qu a is pod ería m os n os to rn a r m e lhore s
pro v e d ore s de c uid a d os " (W ils o n, 1988: 21-2). D a m e sm a m a n e ira , R ud d ic k
diz qu e a ra z ã o p e la q u a l o a m o r a te ncioso re q u e r " a utopre s erv a ç ã o re a lista "
e m v e z de " a uto n e g a ç ã o crô n ic a " é qu e p o d e m o s nos to rn a r m e lhore s in d iv í
duos prov e dore s de c u id a d o d e sta m a n e ira (R uddic k, 1984: 238). Isso está a¡
c erta dis tâ n cia do re tr a to tr a d ic io n a l d a a u to n o m ia c om o a liv r e busc a de p ro -f
je to s qu e tê m im p ort â n c ia p o r si só p ara a pe ssoa e qu e o c a s io n a lm e nte c o m -l
p e te m p or t e m p o e e n e rgia com nossas obrig a çõ e s m ora is . I
O F E MINIS M O 373

a to rn a m possív e l? É m u ito c e do p a ra diz er. O s te óric o s d a


justiç a c o n s tru ír a m e difícios im pre s sio n a n t e s ao re fin a r .n a
ções trâ d íçm n á is d e ju s tiç a e re sp o n s a b ilid a d e . C o n tu d o , ao
c o n tin u a re m com a n e g lig ê n cia c e nt e n á ria d as qu e stõ e s b á
sicas da cria ç ã o dos filh o s e dos cu id a d o s aos d e p e nd e n te s ,
estas c o n q uis ta s in t e le c tu a is e stã o b ase ada s e m u m f u n d a
m e n to n ã o e x a m in a d o e p e rig os a m e n t e in s e guro. Q u a lq u e r
t e oria a d e qu a d a d a ig u a ld a d e s e xua l d e v e c o n fro n t a r estas
qu estõ e s e as concepçõ es tra dicio n a is de dis crim in a ç ã o e p ri
v a cid a d e q u e as o c ult a ra m .

Você também pode gostar