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a n t r o p o s

A APRESENTAÇÃO DO EU
HA VIDA DE TODOS OS DIAS
erving gollman

R E L Ó G I O D 'Á G U A
A Apresentação do Eu
na Vida de Todos os Dias
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*Ujl
Rua Sylvio Rebelo. n° 15
1000 Lisboa
Tel: 8474450 Fax: 8470775

© E rv in g G o ffrn an . 1959
P u blicado p o r aco rd o c n m a D o u b led ay , rep artição d a B antam
D o u b lc d a y D ell P u b lish in g G ro u p , In c.

T ítu lo : A A p resen tação d o L u na V id a d e T o d o s o s D ias


T ítu lo o rig in a l: T h e P re se n ta tio n o f S e lf in E v e ry d a y L ife
A u to r: E rv in g G o ffm a n
T rad u ção : M ig u e! S erras Pereira
C apa: F ern an d o M ateu s

© R e ló g io D Á g u a , 1993

C o m p o siç ã o e p a g in a ç ã o : R e ló g io D ’Á g u a E d ito re s
Im p re ss ã o : R a in h o & N e v e s, L d a ./S a n ta M a ria d a F eira
D e p ó sito leg al n? 6 8 0 6 1 /9 3
Erving Goffman

A Apresentação do Eu
na Vida de Todos os Dias
T ra d u ç ã o d e M ig u e l S e rra s P e rc ira

Antropos
As m á s c a ra s sâ o e x p re s s õ e s d e lib e ra d a s e e c o s a d m irá v e is do
s e n tim e n to , a o m e sm o te m p o fié is , d is c re ta s e s u p e rla tiv a s . A s
coisas: v ivas cm c o rn a d o corn o a r ad q u irem n ece ssa ria m en te u m a
cutícula» e não p o d em o s a c u s a r as cu tícu las p elo facto dc não serem
co raçõ es; co n tu d o há certo s filó so fo s q u e p a recem acu sa r as im ag en s
de n ão se re m c o isa s, e as p a la v ra s de n ào serem se n tim e n to s. A s
p a la v ra s e as im a g e n s sao c o m o c o n c h a s, p artes n ã o m en o s in te ­
g ran tes d a n atu reza do que as su b stâ n c ia s que p rotegem , m as m ais
d irig id as a o o lh a r e m ais e x p o s ta s à observ ação. N ão nie p a rec e q u e
p o ssam o s d izer q u e a su b stâ n c ia existe, p o r c au sa d a ap arên cia, ou os
rostos p o r c a u sa d a s m áscaras, o u as p aix õ es p o r c a u sa d a p o e sia e
da v irtu d e. N ã o há nada q u e a p areça na N a tu re za por c a u sa de o u tra
coisa q u alq u er; to d o s o s a sp e c to s e p ro d u to s p erten c em cm m edida
ig u a l ao ciclo da e x is te n c ia ...

G eo rg e S a n ta y a n a 1

1 S o liloqu ia in r.nglémti a n d L ater Soliloquies (Nova Jorque. Scribner's. 1922), pu.


131-32.
Agradecimentos
•w-

O estu d o q u e a se g u ir ap re se n ta m o s foi elab o rad o c m lig ação com


um trab alh o sobre a in teracção e m p re e n d id o p ara o D ep artm en t o f
S ocial A n tro p h o lo g y e p a ra o S o cial S cien ces R esearch C o m m itte e
d a U n iv ersid ad e de E d im b u rg o c co m um a in v estig ação so b re a e s ­
tratificação so cial p o ssib ilita d a p o r u m a b o lsa da F o rd F o u n d atio n ,
d irig id a p e lo p ro fe s s o r E . A . S h ilis n a U n iv e rsid a d e d e C h ic a g o .
D e v o a g r a d e c e r a q u i a s o r ie n ta ç õ e s e a p o io s c o r r e s p o n d e n te s .
T am bém g o staria de a g ra d e c er ao s m eus p ro fesso res C. W. M . H art,
H . L. W a rn e r e H. C . H u g h e s . E a in d a a E liz a b e th B o tt, J a m e s
L ittle jo h n e E d w a rd B a n fic ld , q u e m e a ju d a ra m n o in ic io d e s te
trabalho, bem c o m o ao s m eus c o le g a s de p ro fissã o da U n iv ersid ad e
d e C h ic a g o c o m c u jo a u x ílio p u d e m ais ta rd e c o n lar. D o m e sm o
m od o, se m a c o la b o ra ç ã o d a m in h a m u lh e r A n g elica S . G o ffm an .
este estu d o não p o d eria ter sid o escrito.
Prefácio

A m in h a in te n ç ã o 6 q u e e ste tra b a lh o co n stitu a u m a e sp é c ie de


m anual d elin e a n d o p o n to p o r p o n to u m a p e rsp e c tiv a so c io ló g ic a a
p a r tir da q u a l se ja p o ssív e l e s tu d a r a v id a so c ia l, s o b re tu d o e sse
g é n e ro d e v id a social q ue e n c o n tra m o s o rg an izad o no q u ad ro físico
d e um p réd io ou d e um a fáb rica. S erá d e sc rito um c o n ju n to de a s­
p e c to s q u e fo rm am e n tre si um q u a d ro de referencia q u e p o d e rá ser
ap lic a d o a q u alq u er c o n fig u ra ç ã o social correera, de o rd e m d o m é s­
tica, ind u strial ou co m ercial.
A p e rsp e c tiv a u sa d a n este e stu d o 6 a da re p resen tação teatral; os
p rin c íp io s co rresp o n d en tes são d e o rd em d ram ática. C o n sid erarei o
m o d o c o m o o in d iv íd u o cm situ a ç õ e s de trab alh o hab itu ais se ap re ­
se n ta a si pró p rio c à su a a c tiv id a d e perante os outros, as m an eiras
co m o o rie n ta e co n tro la a im p re ssã o q ue os outros form am d ele, as
d ife re n te s c o isa s que p o d erá fa z e r ou n ão fa ze r e n q u a n to d e se m p e ­
n ha p e ra n te os o u tro s o seu p a p e l. S ervindo-m e deste m odelo, não
tentarei p ô r em e v id ê n c ia o s s e u s ev id en tes pontos fracos. N o palco
as c o isa s q u e se m ostram sã o sim u lad as; na vida, p ro v av e lm e n te, as
c o isa s q u e su rg e m s ã o re a is e n e m se m p re fo ram b em e n sa ia d a s.
M a is d e c is iv a m e n te a in d a , ta lv e z , in terv ém a c irc u n s ta n c ia de no
p alco o a c to r .sc a p re se n ta r d isfa rç a d o de urna p erso n ag em d ian te das
p e r s o n a g e n s d c q u e o s o u tr o s a c to r e s sc d is f a r ç a m ; a p la te ia
c o n stitu i u m a te rc e ira p arte d a in te ra c ç ã o - um a parte q u e é e s ­
sencial e q u e n ão e sta ria p re se n te se o d esem p en h o que no p a lc o se
d e se n ro la fosse real. N a v id a real. as Lrcs partes c o n d en sam -se cm
d u a s; o p a p e l q u e um in d iv íd u o re p re se n ta re c o rta -se se g u n d o os
10 lirving (joffntan

papéis rep resen tad o s p elo s outros presen tes, sendo q u e e ste s outros
c o n stitu e m , ao m esm o lem p o . a assistên cia. O u tras in su fic iên c ias do
m o d elo te rã o o p o rtu n id ad e d e se m a n ife sta r m ais tarde.
O s m ateriais q u e este trab alh o expõe co m o ilu straçõ es são co m ­
pósito s: certo s excrnplos sao ex traídos d e resp eitáveis in v estig açõ es
em que as g e n e ra liz a ç õ e s ad ia n ta d a s se b a se ia m em re g u la rid a d es
c o n siste n te m e n te id en tificad as; o u tro s sã o to m ados de m iscelâ n ea s
de re c o rd a çõ e s in fo rm a lm e n te re d ig id a s p o r g ente m ais ou m enos
c u rio s a ; o u tro s a in d a , m u ito n u m e ro s o s , s itu a m -s e e n tre o s d o is
c a so s. A lé m d isso , u so fre q u e n te m e n te um e s tu d o q u e e u p ró p rio
re a liz e i s o b re u m a c o m u n id a d e c a m p o n e s a (e m re g im e de a g r i­
c u ltu ra de su b s istê n c ia ) d a s ilh as S h e tla n d ’ . A ju s tif ic a ç ã o d este
m o d o d e p r o c e d e r (q u e p e n s o s e r ta m b é m a j u s tif ic a ç ã o a q u e
S im m el p ro c e d e ac e rc a do seu m étodo) e s tá n o facto d e o co n ju n to
do s e x e m p lo s a p re s e n ta d o s se a rtic u la r num q u a d ro c o e re n te , li­
gan d o d iv e rso s elem en to s d a e x p e riê n c ia d o le ito r c forn ecen d o aos
interessad o s um g u ia que p o d e rá v aler a pena p ô r à p ro v a e m e s tu ­
d o s co n c re to s d o m o d o social de ex istê n c ia d as in stitu içõ es.
O q u a d ro de referên cia é ap re se n ta d o seg u n d o u m a o rd e m lógica.
A in tro d u ção e n e cessariam en te m u ito ab stracta, pod en d o o leitor, se
assim o entender, “saltar” as p áginas q ue a integram .

1 Parcialm ente incluído cm b. (JoITrn.m, “ Com m unication C onduct in an Island


Comm unity” (dissertação dc Ph. D. não publicada. Departamento de Sociologia da
Universidade de Chicago. 1953). Ao longo das páginas seguintes a comunidade cm
questão sera designada por “ilha das Shetland”.
Introdução

Q u a n d o um in d iv íd u o su rg e n u p re se n ç a de o u tro s, estes h a b itu al­


m en te p ro cu ram o b ter in fo rm a ç õ e s sobre ele ou re c o rrer a in fo rm a ­
çõ es q ue j á p o ssu am a seu resp eito . ln te re ssa r-se-ão p e lo seu esta tu to
so cio -e c o n ó m ic o global, pelo q u e o in d iv íd u o p en sa d e si p ró p rio ,
p ela su a atitu d e para co m eles, p e la sua co m p etên cia, p e lo g rau dc
co n fia n ç a q u e m erece, etc. E m b o ra p arte d esta in fo rm a ç ã o p a reç a
s e r p ro c u ra d a p o r si m e sm a , g e ra lm e n te e x iste m ra z õ e s b a sta n te
p r á tic a s j u s t i f i c a n d o a s u a a q u i s iç ã o . A s in f o r m a ç õ e s s o b r e o
ind iv íd u o aju d am a d e fin ir a situ a ç ã o , p erm itin d o aos o u tro s sa b e ­
rem d e a n tem ão o q u e esp e ra o in d iv íd u o d eles c o que p o d e rão eles
esp e ra r d o indiv íd u o . Se d isp u se re m d as in fo rm açõ es ad e q u a d a s, os
o u tr o s sa b e rã o m e lh o r c o m o d e v e m a c tu a r a fim d e o b te re m do
in d iv íd u o a re sp o sta que d e se ja m .
P a ra o s circu n stan tes, e n c o n tra m -se ac e ssív eis n u m e ro sa s fontes
d e in fo rm a ç ã o e h á n u m e r o s o s p o r ta d o r e s (ou “ v e íc u lo s d e in ­
d íc io s ” ) q u e tran sm item in fo rm a ç ã o . Se n ão c o n h e ce rem o in d iv í­
duo. os o b serv ad o res p o d erão o b ter, u p a rtir do seu c o m p o rta m e n to e
ap arên cia, p istas que lhes p e rm ita m a p lic a r a e x p eriên c ia q u e j á p o s­
su em de in d iv íd u o s m ais ou m e n o s sem elh an tes ao que se en co n tra
ag o ra à su a frente, ou. o q ue é a in d a m ais im p ortante, a p lic a r à pes­
so a d este ú ltim o e ste re ó tip o s n ão v erific a d o s. O s o u tro s p re se n te s
p o d e m ta m b é m s u p o r a p a r tir d a s u a e x p e r iê n c ia p a s s a d a q u e
p ro v av elm en te serão indivíduos d e um g é n e ro particular que se en ­
c o n tra m e m d a d o q u a d ro s o c ia l. P o d e m b a s e a r-se n a q u ilo q u e o
in d iv íd u o d iz ace rc a de si p ró p rio ou em p ro vas que ele a p resen te
12 Erving Goffman

ace rc a de si pró p rio e d aq u ilo q ue é. Se c o n h ecerem o in d iv id u o , ou


tiverem ouv id o ta la r d ele, m ed ian te urna e x p erien cia a n te rio r à in­
te ra c ç ã o , p o d e rã o b a s e a r-s e em su p o siç õ e s c o m o a p e rs is tê n c ia e
g en eralid ad e d o s asp ecto s p sico ló g ico s co m o m eio s de p revisão do
c o m p o rta m e n to actual e fu tu ro do in d iv íd u o em causa.
C on tu d o , ao lon g o do p erío d o cm q u e o in d ivíduo se en co n tra na
p re se n ç a im ed iata d o s o u tro s, p o u cas serão as co isas q u e p o d erã o
passar-se de m o ld e a fo rn ecer aos outros as in form ações co n clu d en tes
de q u e p recisam se q u iserem o rie n ta r ad eq u ad am ente a su a p rópria
activid ad e. N u m ero so s são os factos d ecisivos q ue se encontram para
lá do tem po e lugar d a interacção ou que se esco n d em no interior do
seu q u a d ro . P o r e x e m p lo , a s '‘v e r d a d e ir a s ” o u “ r e a is ” a titu d e s ,
c r e n ç a s e e m o ç õ e s d o in d iv íd u o só in d ire c ta m e n te p o d e r ã o s e r
apreciad as, através das su as co n fid ên cias ou d aq uilo q u e se m anifesta
com o um com portam ento involuntariam ente sig nificativo. D e m aneira
análoga, se o in divíduo o fe re c er ao s outros um pro d u to ou serviço,
e s te s ú ltim o s a c h a rã o m u ita s v e z e s q ue o te m p o e o e s p a ç o d a
in teracção não fo ra m su ficien tes p a ra os d e ix a r p ro v a r c o n v e n ie n ­
tem en te o bolo e a arte do co zin h eiro . S e rã o forçados a a c e ita r alguns
ac o n te c im en to s c o m o sig n o s n a tu ra is o u c o n v e n c io n a is de a lg u m a
co isa q ue nào é im ediatam ente acessível aos sentidos. N os term os de
Ich h eiser-, o indivíduo terá de ag ir de m odo a, in tencionalm ente ou
não intencionalm ente, se expressar a si próprio, ao passo que os outros
deverão ser de algum m odo impressionadas p o r e le ...
A ex p ressiv id ad e do in d iv íd u o (c. p o r co n seg u in te, a sua c a p a c i­
d a d e d e s u s c ita r im p re s s õ e s) p a rc c c im p lic a r d u a s e s p é c ie s ra d i­
c a lm e n te d ife re n te s de a c tiv id a d e sig n ific a tiv a : a e x p re s s ã o q u e
transm ite e a e x p re ssã o q u e em ite. A p rim e ira in clu i os sím b o lo s
v erb ais ou os seus su b stitu io s, que ele u sa p ro p o sitad a m e n te e a p e ­
nas a fim de v e ic u la r a in fo rm ação q u e tan lo e le p ró p rio co m o o s
o u tro s re c o n h e c id a m e n te lig a m a esse s sím b o lo s. T ra ta -se d a c o ­
m u n ic a ç ã o n o s e n tid o lim ita d o e tra d ic io n a l. A se g u n d a in c lu i o
âm bito m u ito v asto da acção q ue o s o u tro s p o d erão c o n sid e ra r co m o

! Gustav Ichheiser. "M isunderstanding in Human Relations". Suplem ento de The


American Journal o f Sociology. LV (Setembro de 1949). pp. 6-7.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Duns 13

sin to m á tic a ein relação ao actor, c o n ta n d o -se q ue tal a cç ão sc realize


por razõ es d iferen tes da in fo rm a ç ã o assim veiculada. C orno v erem os
e m s e g u id a , e s ta d is tin ç ã o te m a p e n a s u m a v a lid a d e in ic ia l. O
in d iv íd u o tra n sm ite , sem d ú v id a , fa lsa s in fo rm a ç õ e s d e m o d o in ­
ten cio n al a tra v é s d o s d o is tip o s d e co m u n icação , c o rre sp o n d e n d o o
p rim e iro à fraude e o se g u n d o à d issim u la ç ã o .
Se co n sid eram o s a c o m u n icação tanto em sentido am plo co m o cm
sentid o restrito, vem o s que. q u a n d o o in divíduo se enco n tra na pre­
sen ç a im ed iata dos outros, a s u a a c tiv id ad e assu m e um c a rá c te r de
p ro m essa. O s o u tro s ac h a rã o p ro v a v e lm e n te que d e v e rã o a c e ita r a
palavra d o indivíduo, com pensando-o adequadam ente enquanto ele se
enco n tra na sua presença, c m tro c a de alg u m a coisa cu jo verdadeiro
valor só será determ inado depois d e o indivíduo deixar de estar na pre­
sença d o s outros. (C laro, os o u tro s agem tam bém p o r m eio d e inferên­
cias em relação ao m undo físico , m as é só no m undo da interacção
social q u e os objectos acerca dos quais elaboram as su as inferências
são su sceptíveis de facilitar ou im p ed ir intencionalm ente o processo
inferencia!.) A segurança que estes ú ltim o s terão m otivo para sentir ao
p ro c e d e ra m às s u a s in fe rê n c ia s a c e rc a d o in d iv íd u o v a ria rá , e v i­
d entem en te, segundo factores c o m o a quantidade de inform ação que
j á possuem acerca dele - m as n ã o há so m a de elem en to s p assados
qu e p o ssam por co m p leto e lim in a r a necessidade d a acção baseada em
inferências. C o m o sugeriu W illia m I. T hom as:

É tam b ém da m aio r im p o rtân cia p ara nós co m p reen d erm o s que


d e facto n ã o con d u zim o s as n o ssa s e x istên cias, não to m am o s as
no ssas d ecisões nem a tin g im o s os nossos o b jectiv o s qu o tid ian o s,
seja de um p o n to de v ista e s ta tístic o , seja d e um p o n to de v ista
c ie n t í f i c o . V iv e m o s p o r m e io d e in f e r ê n c ia s . P o r e x e m p lo ,
su p o n h am o s que sou co n v id a d o d o leitor. O leito r não sabe, não
p o d e d e te rm in a r c ie n tific a m e n te , q u e eu n ão lhe vou ro u b a r d i­
nheiro ou os talheres. M as ¿ p o r inferência que acredita que eu não
farei tais co isas e é por inferência que m e aceita com o hóspede.2

- C ita d o em E. H. V o lk a rt. o rg .. S o e ia ! B e h a v io u r a n d P e r s o n a lity , A s


C o ntribuições dc W. I. T hom as para a T eoria e a Investigação S o cial. Social
Scicncc Research Council. Nova Iorque 5951. p. 5.
14 Ervi rig Goffmun

O b se rv e m o s a g o ra os o u tro s d o p onto de v ista do in d iv íd u o q u e


p e ra n te e le s se a p re s e n ta . E ste p o d e q u e re r q u e e le s fa ç a m u m a
g ra n d e ideia a seu re sp e ito , ou q ue p ensem q u e ele fa z d eles um a
g ra n d e ideia, ou q ue se d ê e m co n ta d o m odo c o m o ele re a lm e n te os
sen te, ou q u e n ão c h e g u e m a q u a lq u e r im p ressão d e m a sia d o precisa;
pode q u e re r g a ra n tir um a h a rm o n ia su ficien te p ara q u e a in tera cç ão
se m an ten h a, o u , p elo c o n trá rio , en g an á-lo s, d e so rien tá-lo s, c o n fu n ­
d i-lo s, d ese m b a ra ça r-se d eles, o p o r-se-lh es ou in su ltá-lo s. In d e p e n ­
d en te m e n te d o o b je c tiv o p a rtic u la r que o in d iv íd u o te n h a em v ista e
d o s m o tiv o s em q u e esse o b je c tiv o asse n ta , será do seu in te re sse
c o n tro la r o c o m p o rta m e n to d o s o u tro s e e sp e c ia lm e n te a m a n e ira
c o m o , re s p o n d e n d o -lh e , o tra ta m 3. Hste c o n tro lo será e m g ra n d e
m ed id a co n se g u id o a tra v é s d a in flu ên cia e x e rc id a so b re a d e fin iç ã o
d a situ a ç ã o q u e os o u tro s fo rm u lam , e o in d iv íd u o p o d e rá in flu e n ­
c ia r e s s a d e fin iç ã o a o e x p rim ir-se de m a n e ira a p ro p o rc io n a r aos
r e s ta n te s o tip o d e im p r e s s ã o q u e o s le v a r á a a g ir e m v o lu n ta ­
ria m e n te d e a c o r d o c o m o p la n o v is a d o p e lo in d iv íd u o . A s s im ,
q u a n d o um in d iv íd u o se a p re se n ta d ia n te de o u tro s, h a v e rá g e ra l­
m en te m o tiv o s q u e o lev em a m o b iliz a r os seus a c to s de m o d o a v e i­
cu la r para os o u tro s a im p re ssã o q u e ao in d iv íd u o in te re ssa veicular.
Se as c o m p a n h e ira s de q u arto de u m a jo v e m n u m in tern ato fizerem
d e p e n d e r a p o p u larid ad e d e sta do n úm ero de telefo n em as q u e ela re­
ceb e, p o d e re m o s su sp e ita r q u e cc rla s jo v e n s a rra n jarão m aneira de
re c e b e r um n ú m ero razoável de telefo n em as, to m an d o -se p rev isív e l
a o c o rrê n c ia d e u m a s itu a ç ã o a n á lo g a à d e s c o b e r ta p o r W illa rd
W aller:

É referid o p o r n u m ero so s o b serv ad o res que um a rap a rig a que é


c h a m a d a d a s in s ta la ç õ e s c o m u n s a o te le fo n e , c o m fre q u ê n c ia

• A este propósito c grande a minha dívida em rd ação a um artigo inédito de Tom


B um s da U niversidade de Edim burgo. Tom B urns su sten ta que um tios lem as
fundamentais de qualquer interacção c o desejo por parte de cada participante de
orientar c controlar as resposlas ou reacções dos dem ais presentes. Um ponto de
vista semelhante foi tambem adiantado por Jav llaley num artigo inedito e recente,
mas no que se refere a um genero especial de controlo, ligando-se à definição da
natureza dn relação dos im plicados na interacção.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 15

d e ix a rá que a ch am em v árias v e z e s an tes de atender, de m an eira a


fo rn ecer às o u tras rap arig as u m a m p lo en se jo de ou v irem o n om e
d e la 4.

D os d o is tipos de c o m u n ic a ç ã o — ex p re ssõ es tra n sm itid as c e x ­


p ressõ es e m itid as — , e ste c su id o aten d erá so b retu d o às seg u n d as, de
tip o m ais teatral e co n tex tu ai, de tip o p referen cialm en te n ão verbal e
a p a re n te m e n te n ão in te n c io n a l, te n h a sid o ou n ã o e sse m o d o de
c o m u n ic a r d elib erad am en te e sc o lh id o . C o m o ex e m p lo d o q u e te n ­
ta re m o s a n a lisa r, g o sta ria de c ita r u m p o u c o lo n g a m e n te u m e p i­
sódio rom an esco , em q u e v em os P reed y , um inglês cm férias, fa ze r a
s u a p r im e ir a e n tr a d a cm c e n a n a p ra ia d o seu h o te l e s tiv a l cm
E sp a n h a :

M as em to d o o c a so e v ito u o o lh a r de q u em q u e r q u e fo sse .
A n tes d o m ais, tin h a que d e ix a r claro ao s p o ten ciais c o m p a n h e iro s
d e fé ria s q u e s e d e s in te re s s a v a to ta lm e n te d a s su a s p e sso a s. O
o lh a r d e P reed y p assou p elo m e io deles, à volta d e le s, p o r cim a
d e le s — p erd id o no esp aço . D ir-se-ia q ue a p ra ia e sta v a d e serta.
Q u an d o p o r ac a so ap arecia u m a b o la la n çad a n a sua d irec çã o , ele
p arecia su rp reen d id o ; d eix aria d ep o is um so rriso d iv e rtid o ilu m i­
nar-lh e o rosto (P reedy S im p á tic o ), olharia à volta, esp an ta d o p o r
haver p esso as na praia, d e v o lv e ria a bola co m um so rriso para si
p ró p rio q u e não seria um so rriso para n in g u ém , e d ep o is reto m aria
a s u a insp ecção d e sp re o c u p a d a e tran q u ila do esp aç o e m redor.
M a s e ra m h o ra s de p ro c e d e r a u m a p e q u e n a e x ib iç ã o , a
e x ib iç ã o d o P re e d y Ideal. C o m g e sto s su b tis d e ix o u à v is ta de
quem q u isesse o lh ar o títu lo d o livro q ue trazia — um a tra d u çã o
e s p a n h o la dc H o m e ro , um c lá s s ic o p o rta n to , m as n ad a d e
au d a c io so nem d c c o sm o p o lita — e a se g u ir fez c u id ad o sam en te
c o m o seu ro u p ão de praia a c o m o seu saco um ú n ico v o lum e,
p ro teg en d o -o s d a a re ia (P re e d y O rg an izad o e A tilad o ), erg u eu -se
le n ta m e n te p a ra d is te n d e r à v o n ta d e o c o rp o e n o rm e (P re e d y

4 W illard W aller. “The R ating and D ating C o m p lex ". A m erican S o cio lo g ica l
Review. II. p. 730.
Ifi Erving Goffman

Grande. F e lin o ), e d eix o u c a ir p ara o la d o as sa n d á lia s (P re e d y


A fin al-D esp reo cu p ad o ).
A s n ú p cias de P reed y co m o m ar! H a v ia vários ritu a is p o ssí­
veis. O p rim e iro era o passeio q ue se tran sfo rm a em c o rrid a e um
m erg u lh o a d ireito na água. seg u id o de um craw l ro b u sto e sem
salp ico s cm d irecção a o h o rizo n te. M as, claro , não ch e g a n d o pro­
p riam en te a o h o rizo n te. D e repente, virar-se-ia e lev an taria g ra n ­
d e s jo r r o s d e e sp u m a b ran ca co m as p ern as, c o m o se in d ic asse
q u e. se q u isesse, p o d eria ter c o n tin u a d o a n ad a r para lo n g e, c d e ­
pois fic a ria p o r u m p ed aço de pé, ao sa ir d a água, para que to d o s o
v issem .
A a lte rn a tiv a a este ritual e ra m ais sim p les, e v ita v a o ch o q u e
co m a á g u a fria c o risco dc ex ib ir um e n tu siasm o ex cessiv o . E ra
tudo urna q u e stã o de se m o sta r tão h ab itu ad o ao m ar. ao M e d ite r­
rân eo , e em p a rtic u la r àq u ela praia, q u e n ão h av e ria d ife re n ç a e n ­
tre a su a m an eira de e sta r d e n tro de ág u a ou fo ra dela. C o n sistia
n u m a v a n ç o le n to d e s c e n d o em d ire c ç ã o à á g u a — se m n o ta r
se q u e r q ue c o m e ç a v a a m o lh ar os pés, p o is para ele a a re ia e a
ág u a eram a m esm a co isa! — c o m os o lh o s p o sto s no céu c o n ­
tem p lan d o in d ício s, in v isív eis p a ra os outros, do estad o do tem po
(P reed y P e sc a d o r L o cal)5

O ro m a n c ista q u er fazer-nos v e r q ue P re e d y se e n c o n tra in d ev i­


dam en te p reo cu p ad o co m as im pressões de longo a lc an ce q u e sente
que a su a m e ra a c tiv id a d e co rp o ral p ro v o c a rá no s q u e o ro d eiam .
P od erem o s to rn a r P reed y ain d a m ais rid ícu lo se p e n sarm o s que ele
age ap e n a s cm v ista de c a u s a r u m a im p ressão d e term in ad a, q u e essa
im p ressão é falsa e q u e os d em ais p resen tes o u não ficam nad a im ­
p ressio n ad o s co m ele ou, pior ainda, sen tem q u e P reedy tenta c o m a
su a a fe c ta çã o im p re ssio n á -lo s de d eterm in ad a m aneira. M as o que
nos im p o rta a s s in a la r aqui é que o tip o de im p re ssã o q u e P ree d y
p e n sa estar a ca u sa r e, d e facto, o tipo d c im p ressão que c o rre cta ou
in co rrectam en te os o u tro s reco lh em d e alg u ém q u e se e n c o n tra no
m eio deles.

-* W illiam Sansom, A Contest o f ¡¿¡dies. Hogarth. Londres 1956. pp. 230-232.


A Apresentação do F.u na Vida dc Todos os Dins 17

D isse atrás q u e , q u an d o um in d iv íd u o se m o stra p e ra n te o u tro s, as


su a s a c ç õ e s in flu e n c ia rão a d e fin iç ã o d a s iu a ç ã o co m q u e eles se
vã o co n fro n tar. P o r v ezes o in d iv íd u o a g irá dc m odo in te ira m e n te
ca lc u la d o , e x p re ssa n d o -se de u m a d e te rm in a d a m an eira a p e n a s no
in te n to de c a u s a r a o s o u tro s o tip o d c im p re s s ã o s u s c e p tív e l de
p ro v o c a r n e le s a resp o sta p a rtic u la r cm q u e o in d iv íd u o cm q u estão
está in teressad o . P o r vezes o in d iv íd u o c o n tin u a rá a c a lc u la r os seus
a c to s m as p e rm a n e c e n d o r e la tiv a m e n te in c o n sc ie n te d e o e s ta r a
fazer. P o r vozes ex p ressar-se-á in te n c io n a l e co n sc ie n tem en te d e um
m odo d e te rm in a d o , m as fa z e n d o -o so b retu d o po rq u e a tra d iç ã o do
seu g ru p o o u ca te g o ria social e x ig e m esse tipo de e x p re ssã o e não
em v ista d e o b le r um a resp o sta d e te rm in a d a (p ara lá d e u m a a c e i­
ta ç ã o ou a p ro v a ç ã o difusas), su scep tív el de ser su sc ita d a n a q u ele s
que a sua ex p re ssã o im p re ssio n a . P o r v ezes as trad içõ es lig ad a s ao
p ap el d e u m in d iv íd u o le v á -lo -ã o a c a u s a r u m a im p ressão p e rfe ita ­
m en te d eliberaria d e um tipo p a rtic u la r e. ap e sar d isso , e le pode não
e s ta r n e m c o n s c ie n te nem in c o n s c ie n te m e n te d e c id id o a c a u s a r o
tip o de im p re ssã o co rre sp o n d e n te . O s o u tro s, p o r seu turno, p o d erão
se r a d e q u a d a m e n te im p re ssio n a d o s pelo s esfo rç o s do in d iv íd u o no
se n tid o de tra n sm itir alg u m a c o is a , ou p o d erã o c o m p re e n d e r m al a
situ a ç ã o e c h e g a r a co n clu sõ es q u e n ão se ju stific a m nem pela in­
te n ç ã o d o in d iv íd u o nem p elos fa c to s. S e ja c o m o for. n a m ed id a em
q u e o s o u tro s actuem como se o in d iv íd u o tiv e sse tran sm itid o um a
im p r e s s ã o d e te r m in a d a , p o d e r e m o s a s s u m ir u m p o n to d e v is ta
fu n c io n a l o u p ra g m á tic o e d iz e r q u e o in d iv íd u o “e fe c tiv a m e n te ”
p ro je c to u u m a c e rta d efin ição d a situ a ç ã o , e “ e fe c tiv a m e n te ” p ro ­
m o v e u a in te rp re ta ç ã o o b tid a p o r u m a d e te rm in a d a s itu a ç ã o de
facto.
T rata-se d e um aspecto da re sp o sta dos outros q u e m erece aqui um
c o m e n tá r i o e s p e c ia l. S a b e n d o q u e o in d iv íd u o se a p r e s e n ta r á
pro v av elm en te a um a luz que lh e seja favorável, os o u tro s p o derão
d iv id ir em d u a s p artes aquilo de que são testem unhas; nu m a p arte,
q u e é rela tiv a m e n te fácil p ara o in d iv íd u o m anipular à su a vontade, e
q u e c o n siste so b retu d o nas suas d e c la ra çõ e s verbais, e n u m a o u tra
p arte, re la tiv a m e n te à qual ele p arece d isp o r de um m en o r co n tro lo ou
a que d á m en o s atenção, e que c o n siste so b retu d o nas e x p ressõ es que
IS Erving Coffman

em ite. O s o u tro s p o d e rã o u sar assim os a sp e c to s c o n sid e ra d o s n ã o


c o n tro lá v e is d o c o m p o rta m e n to e x p re ssiv o d o in d iv íd u o p a ra v eri­
f ic a r e m a v a lid a d e d a q u io q u e o s a s p e c to s m a is c o n tr o lá v e is
transm item . Surge aqui u m a assim etria fundam ental do p ro ce sso de
co m u n icação , com o in d iv íd u o p resu m iv elm en te c o n sc ie n te ap en as
de um d o s flu x o s d o q ue com u n ica, e co m a teste m u n h a co nsciente
d e ss e flu x o e d e um o u tro , sim u ltâ n e o . P o r e x e m p lo , n a ilh a das
Shetland, a e sp o sa de um agricultor, ao se rv ir pratos lo cais a u m visi­
tan te c h e g a d o de terra, o u v irá co m um so rriso d e lic a d o a su a a fir­
m ação de e sta r a g o star d o q u e com e; ao m esm o tem po, o b serv ará a
rap id ez com q u e o visitante se serv e da c o lh er ou do garfo, a av id ez
co m q ue lev a a com ida à b o ca e a .satisfação que e x p ressa ao m astigá-
-la, en q u a n to o u tro s tan to s sinais que co n firm am ou d esm en tem as
d eclaraçõ es d o co nviva. A m esm a mulher, a fim dc d esco b rir o que
um seu co n h ecid o (A ) “re a lm e n te '’ pensa de um o u tro seu conh ecid o
ÍB ). esp erará ate ao m o m en to em q ue 15 e ste ja n a presença d c A a
p a rtic ip a r n u m a c o n v e rsa c o m u m a te rc e ira p e sso a (C ). E n tã o o b ­
serv ará d iscretam en te as ex p ressõ es faciais de A e n q u an to este olha
pai a B a falar co m C. N ã o estan d o a falar co m B. e não sen d o d ire cta­
m ente o b serv ad o p o r ele. A afro u x ará de vez em q u an d o a c o n ten ção
habituai e as atitu d es d e co n v en iên cia, e x p ressan d o d esse m odo, m ais
livrem en te, aq u ilo que "re a lm e n te " sente em relação a B. A m u lh er
d a ilh a d a s S h e tla n d o b s e rv a a s s im , em s u m a . o o b s e rv a d o r não
observado.
P ois bem . d ad o o facto de o s o u tro s p ro v av elm en te c o n fro n tarem
os a sp e c to s m ais c o n tro lá v e is d o c o m p o rta m e n to co m os seu s as­
pectos m en o s co n tro lá v e is, c de esp erar que p o r vezes o indivíduo
tente e x p lo ra r esse c am p o d e p o ssib ilid ad es, o rien tan d o a im pressão
q u e c a u s a p a ra o g é n e ro d e c o m p o rta m e n to q u e c o n s id e ra c o m o
m ais fiável em term o s de in fo rm ação 6 . P or ex em p lo , ao se r ad m itid o
num círcu lo social fechado» o o b serv ad o r p articipante p o d erá n ão só

6 0 ^ e s t i o s muito lidos e bastante pcrspii:::/es de Stephen Potter ocupam -sc ati


corlo pinito dos sinais que podem ser utilizados para oferecer a um observador
atento às pistas aparentem ente casu ais dc que ele necessita p ara descobrir as
virtudes ocultas que o jogador de facto não possui.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 19

a ssu m ir u m a atitude de a p ro v a ç ã o ao o u v ir um o u tro q u e o in fo rm a,


co m o c u id a r de m anter a m esm a atitude de a p ro v ação en q u an to o b ­
se rv a o o u tro que o in fo rm a a c o n v e rs a r co m te rc e iro s; o s o b s e r­
vad o res d o o b se rv a d o r não p o d e rã o assim d e sc o b rir co m a m esm a
fa c ilid a d e a sua p o sição e fe c tiv a . A ilha das S h e tlan d fo rn e c e -n o s
aq u i u m ex em p lo concreto. Q u a n d o um vizinho ap arece para to m ar
u m a c h á v e n a de chá, h a b itu a lm e n te esb o ça p elo m en o s urn so rriso
ca lo ro so e ex p ectan te ao tra n sp o r o lim iar da casa. U m a vez q u e a
a u s ê n c ia de o b stácu lo s físicos f o ra de c a s a e a a u sê n c ia de luz no
in te rio r lhes to rn am possív el o b s e rv a r o v isitan te sem se re m o b ser­
vados. p o r vezes os h ab itan tes d a ilha d iv e rte m -se ven d o o v isitan te
su b stitu ir a ex p ressão q u e trazia p o r o u tra m ais sociável, no p rec iso
in sta n te em que se ap ro x im a d a p o rta. C o n tu d o , a lg u n s v isita n tes,
c o n sid e ra n d o a possib ilid ad e de u m a o b serv ação se m elh a n te, a d o p ­
tam c e g a m e n te u m a ex p ressão d e so c ia b ilid a d e ainda a g ran d e d is ­
tâ n c ia d a porta, garan tin d o assim a p ro jecção de u m a im ag em c o n s­
tante.
E sta form a d e controlo pelo in d iv íd u o d o seu papel rein stau ra a
sim e tria d o p rocesso de c o m u n ic a ç ão , e instala o palco de um a e s­
pécie d e jo g o da inform ação — um ciclo potencialm ente indefinido
de sim u la ç ã o , d esc o b e rta , fa lsa s re v e la ç õ es e re d e sc o b e rtas. D ev e
acrescen tar-se que, se não for p ro v áv el q u e os o u tro s d esco n fiem da
a p a rê n c ia d e esp o n ta n e id a d e d o c o m p o rta m e n to do in d iv íd u o , este
últim o p o d erá e x tra ir grandes v an ta g e n s d o seu co n trolo. O s o u tro s,
se m d ú v id a , p o d e rã o s e n tir q u e o in d iv íd u o e s tá a m a n ip u la r os
a s p e c to s s u p o s ta m e n te e s p o n tâ n e o s d o se u c o m p o rta m e n to , p ro ­
c u ran d o nessa m esm a m an ip u lação certo s traço.s do co m p o rtam en to
q u e o in d iv íd u o a p e sa r de tudo não len h a p o dido con tro lar. O que
leva a n o v a verificação do c o m p o rta m e n to do indivíduo, daquilo que
se p e n sa agora ser o seu c o m p o rta m e n to não controlado, de m odo a
rc sta b e lc c c r a assim etria d o p ro c e sso dc co m u n icação . A este p ro ­
pósito g o staria apenas de a c re sc e n ta r a título de sug estão que a arte
de p e n e tra r no esfo rço c a lc u la d o d e e x istir um c o m p o rtam e n to não
inten cio n al p o r parte d o in d iv íd u o parece m ais d esen volvida do q u e a
n o ssa c a p a c id ad e de m an ip u lação d o co m p o rtam en to próprio, de tal
m a n e ira que, seja qual for a fase a lcan çad a pelo jogo da in fo rm ação ,
20 Erving Goffman

a testem u n h a estará p ro v av elm en te ern vantagem sobre o actor, e a


a ssim e tria in ic ia l d o p ro c e sso d e c o m u n ic a ç ã o c o n tin u a rá a s e r o
quad ro m ais frequente.
Q u an d o p erm itim o s q ue o in d iv íd u o p rojecte u m a d e fin iç ã o d a si­
tu aç ã o em que a p arece p e ra n te os o u tro s, d ev erem o s te r em c o n ta
tam b ém q u e os o u tro s, p o r m u ito p a ssiv o que p a re ç a o seu pap el,
p ro je c ta m e fe c tiv a m e n te , tam b ém e les. um a d e fin iç ã o d a situ a ç ã o
a trav é s da m aneira co m o resp o n d em ao in d iv íd u o e das linhas d e a c ­
ç ã o q u e a d o p ta m e m re la ç ã o à su a p e sso a . H a b itu a lm e n te as d e ­
fin içõ es d a situ a ç ão projectad as p elos d iv erso s p articip a n tes sintoni-
7.am-se o su ficien te para q ue n ão o co rram c o n trad içõ es m anifestas.
N ão q u ero d iz e r co m isto que fiquem os p e ra n te o tip o de co n sen so
que em erg e q u a n d o cad a um d o s in d iv íd u o s p resen tes ex p ressa co m
ca n d u ra o q u e re a lm e n te sen te e h o n estam en te aceita o s sen tim en to s
e x p re sso s pelo s re sta n te s. E sse tip o de h a rm o n ia é um ideal o p ti­
m is ta . de m o d o a lg u m n e c e s s á r io a o f u n c io n a m e n to r e g u la r da
so cied ad e. M a is ainda, esp era-se d e um m o d o geral que cada u m dos
p a rtic ip a n te s s u p rim a o s seus se n tim e n to s im e d ia ta m e n te v iv id o s,
tran sm itin d o em vez d eles um a im agem da situ aç ão q u e sin ta q u e os
outro s p o d erão pelo m enos tem p o rariam en te c o n sid e ra r aceitáv el. A
co n se rv a ç ão d e ste ac o rd o d e su p erfície, d e sta ap arên c ia d e co n sen so ,
e p ro m o v id a pelo facto de cad a um dos p articip an tes d issim u la r as
suas próp rias ex ig ên cias p o r trás de d eclaraçõ es que afirm am valores
aos q u ais to d o s os p resen tes se sen tem o b rig ad o s a d a r u m a a d esão
v erb al. De resto, a ssistim o s, de um m odo g eral, a u m a esp é c ie de
d iv isã o do tra b a lh o da defin ição . É perm itido a cada u m d o s p a rtic i­
p a n te s te n ta r d e te rm in a r u m a re g u la m e n ta çã o o ficia l d as q u estõ es
q u e são v itais p ara ele. sem terem a m esm a im p o rtân cia im e d ia ta
para o s o u tro s — caso, p o r ex em p lo , d as rac io n a lizaç õ es e ju s tifi­
c a ç õ e s re fe re n te s às s u a s a c ç õ e s p a s s a d a s. E m tro c a d e s ta s c o n ­
c e ssõ e s d e c o rte sia , o in d iv íd u o p e rm a n e c e sile n c io so ou não in­
te rv é m n as q u e s tõ e s q u e são im p o rta n te s p a ra os o u tro s m as n ão
im e d ia ta m e n te re le v a n te s do seu p ró p rio p o n to d e vista. E te m o s
então u m a esp é c ie d e m odus vivendi in teractiv o . N o seu c o n ju n to , os
p a r tic i p a n te s c o n tr ib u e m p a r a u rn a ú n ic a d e f in iç ã o g lo b a l d a
situ a ç ã o q ue im p lic a n ão tan to um real a c o rd o so b re o q u e ex iste
A Apresentação do Hu na Vida de Todos os Dias 21

co m o um aco rd o real acerca de q u e p retensões sobre d e term in ad o s


p ro b le m a s d ev erão c o n c e n tra r te m p o ra ria m en te as atenções. E x istirá
tam bórn urn acordo efectivo so b re a co n v e n ie n c ia d c e v itar q u a lq u e r
co n flito ab erto so b re as d e fin iç õ e s da situ ação .'' R e fe rir-m e -ei a este
nível de acordo c h am an d o -lh e “c o n se n s o o p e ra cio n a l” . D eve ter-se
p re se n te q ue o co n sen so fu n cio n al in stau rad o num d ad o q u a d ro dc
in teracção será bastan te diferente, no seu co n teú d o do c o n se n so fun­
cional afirm ad o em quadros de u m tipo d ife re n te. A ssim , entre dois
a m ig o s q u e a lm o ç a m ju n to s , d e v e r á te r lu g a r u m a m a n ife s ta ç ã o
re c íp ro c a d e afecto, respeito e p re o c u p a ç ã o m útuos. N o d o m ín io da
p re sta ç ã o de se rv iç o s p ro fis s io n a is , p o r o u tro lad o , o e s p e c ia lis ta
m a n te rá co m fre q u ê n c ia u m a im a g e m d e a te n ç ã o d e s in te re s s a d a
peran te o p ro b lem a d o cliente, e n q u a n to o cliente resp o n d erá m a n i­
f e s ta n d o o se u r e s p e ito p e la c o m p e tê n c ia e in te g r id a d e d o e s ­
p ecia lista . In d ep en d en tem en te d a s d iferen ças dc co n teúdo, po rém , é
a m e sm a a fo rm a geral destes a rra n jo s funcionais.
A o a te n ta rm o s n a te n d ê n c ia d c um p a rtic ip a n te p a ra a c e ita r os
term os de definição expendidos p e lo s outros circunstantes, poderem os
a p re c ia r m e lh o r a im p o rtâ n c ia fu n d a m e n ta l d a in fo rm a ç ã o q u e o
in d iv íd u o in icia lm en te p o s s u i o u a d q u ir e a c e rc a d o s se u s c o m ­
panheiros d e situação, porque é n a base d essa inform ação inicial que o
in d iv íd u o co m eça a definir a situ ação e a traçar as linhas de acção da
su a re sp o sta peran te ela. A p ro je c ç ã o inicial do indivíduo c o m p ro ­
m ete-o co m o que ele esta a p ro p o r ser e exige dele que ponha d e lado
todas as suas pretensões de ser o u tra s coisas. À m edida que a interac­
ç ã o entre os participantes p rogride, verificam -se evid en tem en te acres­
c e n to s e m o d ific a ç õ e s neste e s ta d o in ic ia l de in fo rm a ç ã o , m a s é

■' 1’ode estabelecer-se deliberadam ente um a interacção como quadro tem poral e
espacial da expressão dc opiniões diferentes, mas em tais casos os participantes tem
de acordar entre si cuidadosamente r.ão- infringirem o tom dc voz. vocabulário e
grau de seriedade em que devem ser expressos todos os argumentos e definirem as
regras de respeito mútuo que os participantes ein desacordo deverão continuar a
m an ifestar entre eles. Esta d efinição em term os dc d eb ate ou acad ém ico s da
situ ação pode tam bém ser invocada d c súbito c ju d icio sam en te com o m eio dc
traduzir um conflito dc perspectivas serio num quadro em que a discussão possa
travar-se de maneira aceitável para todos os implicados.
Erving Goffman

essencial que os d esenvolvim entos posteriores se façam sem co n trad i­


zer as, c a p artir das, posições iniciais assu m id as p elo s diferentes parti­
cipan tes. D ir-se-ia q u e c m ais fácil p ara um indivíduo e sco lh e r a linha
de tratam en to q ue ex ig irá d o s outros e lhes ap licará no co m eço do en ­
contro d o q ue alte ra r a lin h a que se d elin eia a partir do m om ento em
que a interacção co m eça a funcionar.
N a vida quo tid ian a, sem dúvida, d ep aram o s com um a c la ra noção
d a im p o rtâ n c ia d a s p rim e ira s im p re s s õ e s . A ssim , o a ju s ta m e n to
p ro fis s io n a l na p re s ta ç ã o de s e rv iç o s d e p e n d e rá m u ita s v e z e s da
ca p acid ad e dc sc a p o d e ra r da in ic ia tiv a e de a m an ter p o r parte do
p ro fissio n al im p licad o , sen d o q u e essa c a p acid ad e e x ig irá , por seu
turn o , um a esp écie de agressiv id ad e subtil nos casos em que o pro­
fissio n a l p e rte n c e r a u m a c a te g o ria so c io -e c o n ó m ic a in fe rio r à d o
cliente. W. K W h y te sug ere o ex em p lo d a em p reg ad a de m esa:

O prim eiro ponto que ressalta é que a em pregada d c m esa que


ag u en ta bem a pressão a que está su b m etid a não se lim ita a d a r res­
posta aos clientes. A ge, isso sim , dc m odo hábil, e m vista de contro­
lar o co m p o rtam en to d eles. A p rim eira co isa q u e d ev em o s pergun­
ta r quan d o o b serv am o s a relação d ela com o cliente é a seguinte:
‘T . a em p reg ad a q u e está em v an tag em sobre o cliente ou o cliente
q u e está em vantagem sobre a e m p re g a d a ? ” A em p reg ad a de m esa
com p eten te co m p reen d e o alcance d e c isiv o da nossa p e rg u n ta ...
A e m p r e g a d a d e m e s a c o m p e t e n t e a te n d e o c lie n te c o m
se g u ra n ç a e sein h esitaçõ es. P o r e x e m p lo , pode d ar-se c o n ta dc
q u e o clien te sc scnlou antes de ela ter tid o tem p o de le v a n ta r os
prato s su jo s c m u d ar a toalha. () clien te está ag ora in clin ad o sobre
a m e sa a e s tu d a r a lista. A e m p re g a d a d á -lh e os b o n s-d ia s, d i­
zendo depois: “ P o sso lev an tar a m esa, p o r fav o r? ”, e sem e sp e ra r
p e la resposta, afasta a lista d o c lie n te de m an eira que este recua,
d e sim p e d in d o a rnesa. en q u a n to e la d e se m p en h a a sua tarefa. A
relação é m an ejad a d elicad am en te m as co m firm e za e n ã o sc põe
a q u e stã o d c q u e m m a n d a 8.

^ W. F. W hyte. "W hen W orkers anil C ustom ers M eet". Cap. VII. Industry and
Society, cd. W. K W hyte. M cGraw-Hill, Nova Iorquc. 1946. pp. 132-133.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 23

Q u an d o a in teracção in iciad a pelas “ p rim eiras im p ressõ e s" n ão é


m a is d o q u e a in te ra c ç ã o in ic ia l d c u m a e x te n s a sé rie in te ra c tiv a
im p lican d o os m esm o s p a rtic ip a n te s, falam o s d e “e n tra r c o m o pé
d ire ito ” e sentirnos q ue nisso e s tá em jo g o um asp ecto fun d am en tal.
S a b e m o s, p o r ex em p lo , o q u e d iz e m c e rto s p rofessores:

N ão p o d e m o s n u n c a d e ix á -lo s fic a r p o r cim a. c aso c o n trá rio


está ludo perdido. P o r isso, e u c o m e ç o sem pre em fo rça. N o p ri­
m eiro dia em q u e travo c o n h e c im e n to co m um a tu rm a n ova, deix o
b em c la ro q u e m é que m a n d a ... T ern o s que c o m e ç a r e m fo rca,
p a ra d e p o is ab ran d arm o s co m o tem po. Se co m eç arm o s p o r facili­
tar, q u an d o ten tam o s im p o r-n o s. eles o lh am para nós e riem -se.^

D o m e sm o m o d o . o s p ro fissio n a is d a s in stitu iç õ e s p siq u iá tric a s


p e n sam m uitas vezes q u e sc o n o v o p a c ie n te fo r p o sto no seu lu g ar
desd e o p rim e iro d ia e se se lhe e x p lic a r c m a m e n te q uem m an d a no
se rv iç o , se ev itarão num ero sas d ific u ld a d e s fu tu ra s10.
Tendo p resen te o facto de q u e o in d iv íd u o efe ctiv am en te projecta
urna d efin ição d a situ ação q u a n d o acede à presença d o s o u tro s, po­
dem o s co n sid e ra r a p o ssib ilid a d e de o corrência no in te rio r d a inte­
racção de factos q ue co n trad ig am , d esm in tam ou de outro m o d o po­
nham e m d ú v id a a projecção inicial. Q u an d o tais facto s pertu rb ad o res
aco n tecem , a p ró p ria interacção poderá to m ar-se c o n fu sa e tolhida.
A lg u m a s d a s su p o siç õ e s na b a s e d a s q u a is eram p re v ista s as r e s ­
postas dos particip an tes to m a m -se insustentáveis, c os p articipantes
desco b rem -se im plicados num a in te ra c ç ão cuja situação fora erra d a ­
m ente definida, d eixando d o rav an te de te r d efin ição . N e sse s m o m en ­
tos. o indivíduo cu ja ap resen tação foi d esacred itad a p o derá sentir-se
e n v e rg o n h a d o , e n q u a n to os re s ta n te s p a rtic ip a n te s p o d e rã o n u trir
sen tim en to s de hostilidade, e to d o s p assarão a ficar pouco à vontade.

^ E n trev ista com um p ro fesso r c ita d a por H ow ard S. B cck cr. ' S ocial C lass
Variations in the Tcach.cr-l’upi! R elationship". Journal o f Educational Sociology,
XXV, p. 459
Ilaro k ! T ax e;. "A u th o rity S tru c tu re in a M en tal H osp ital W ard ” , (esc dc
Mestrado inedita. Department of Sociology, University o f Chicago, 1953.
24 Krving Goffman

p e rd en d o o au to d o m ín io , c o n fu so s, em b araçad o s, co n fro n tad o s co m a


experien cia d o tipo de ¿momia q u e em erge q u ando soço b ra o p equeno
siste m a .social d a in teracção c a ra a cara.
A o su b lin h arm o s o facto d e a d efin ição inicial da situ ação p ro je c ­
tada p o r um in d iv íd u o len d er a asse g u ra r um plano para a actividade
c o o p e ra tiv a su b seq u en te — a o sublin h arm o s este ponto d e v ista em
te rm o s d c a c ç ã o — n ã o d e v e m o s d e s c u r a r o f a c to d e c is iv o de
q u a lq u e r d e f in iç ã o d a s itu a ç ã o p r o je c ta d a p o s s u ir ta m b é m um
c a rá c te r m oral p eculiar. N este trab alh o , será esse asp ecto m oral das
p ro jecçõ es o q u e p rin cip alm en te nos ocup ará. A so cie d ad e o rg an iz a­
-se de aco rd o co m o p rin c íp io de q ue q u a lq u e r ind iv íd u o p o ssu id o r
de ce rta s cara c terístic a s sociais tem o d ire ito m oral a esp e ra r q u e os
o u tro s o ap re c ie m e tratem d e m odo co rresp o n d en te. L ig ad o a este
p rin c íp io , su rg e um s e g u n d o , a firm a n d o d e s ig n a d a m e n te q u e um
in d iv íd u o que, de m an eira im p lícita ou ex p lícita, indica q u e possui
certas características so ciais d e v e rá ser de facto a q u ilo q u e d eclara
ser. P o r c o n se g u in te , q u an d o um in d iv íd u o p ro je cta u m a d e fin iç ã o
d a situ ação e p reten d e assim , d e m an eira im p lícita ou ex p lícita, ser
u m a p esso a de d e term in ad o gén ero , procede a u to m a tica m en te a um a
ex ig ê n c ia m o ral en d e re ç ad a ao s o u tro s, o b rig a n d o -o s a a p re c iá -lo e a
tra tá -lo d a m a n e ira q ue têm d ireito a e sp e ra r as p esso as p erten cen tes
ao tip o d e q u e e le se re iv in d ic a . A o m e sm o te m p o , o in d iv íd u o
ren u n cia im p licitam en te a to d as as p reten sõ es a ser c o isas q u e não
m o s tr o u s e r ' 1 e r e n u n c ia d e s s e m o d o ao tr a ta m e n to q u e s e r ia
apro p riad o a in d iv íd u o s d c o u tro tipo. O s outros d esco b re m , por seu
tu rno , que o in d iv íd u o o s inform ou sobre a q u ilo que é e so b re o que
eles devam e n te n d e r p o r “é ’\
N ão pod em o s av a lia r a im po rtân cia das perturbações d a d efinição
pela fre q u ê n c ia c o m q u e ac o n te c em , u m a v e z que m a n ife sta m e n te
seriam m u ito m ais fre q u e n te s sc n ão fo sse m to m a d a s c o n tra elas
p rec a u ç õ es co n stan tes. V erificam os, com efeito, que são usadas prá-

' 1 Rsic* papel da testemunha que limita aquilo que o indivíduo pode ser tem sido
sublinhado pelos existencialistas como uma ameaça profunda à liberdade
individual. Ver Jean-Paul Sartre. L'Éire a le Ncam, trad. ing. de Hazel E. Barnes,
Being and Nothingness. Philosophical Library. Nova Iorque. 1956. p. 365 c segs.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 25

ticas prev en tiv as co n stan tes c o n tra factos p erturbadores que nao foi
po ssív el ev itar co m sucesso. Q u a n d o o individuo e m p re g a essas es­
tratég ias e tácticas a fim de s a lv a g u a rd a r as suas próprias projecções,
cham ar-lh es-em o s “ práticas d e fe n siv a s"; q u an d o um particip an te as
em p reg a p ara salv ag u ard ar a d e fin iç ã o da situação pro jectad a p o r um
o u tr o p a r tic ip a n te , fa la r e m o s d e “ p r á tic a s de p r o te c ç ã o " ou de
“lacio ” . C o n ju n tam en te, as p rá tic a s de d efesa e p rotecção incluem as
técnicas u tilizadas p ara sa lv a g u a rd a r a im pressão v isada por um in­
d iv íd u o d u ra n te o seu en co n tro co m os outros. D eve acrescentar-se
que em b o ra adm itam os com facilid ad e q u e nenhum a im pressão visada
pelo indivíduo sob rev iv eria sem o uso d e práticas defensivas, talvez
ad m itam o s m enos facilm en te q u e p o u cas im p ressõ es so b rev iv eriam
se o s q ue recebem a im pressão n ã o recorressem , d u ran te a recepção,
àquilo a que cham ám os o seu “ tacto”
P ara lá d o facto dc serem to m ad as p recauções destin ad as a im pedir
a ru p tu ra das d e fin içõ es p ro je c ta d a s, p o d erem os tam bém n o tar que
um forte interesse p o r essas ru p tu ra s d esem p en h a por vezes um papel
de relevo na vida social do g ru p o . H á brin cad eiras e jo g o s so ciais que
rep re se n ta m situ açõ es d e e m b a ra ç o d e lib e ra d am en te urd id as e q u e
não d e v e m s e r lev ad as a s é r io 12. T ecem -se fan ta sia s q u e m ostram
situaçõ es de risco devastad o ras. C o n ta m -se um a e o u tra vez episó d io s
p assad o s — reais, d isto rcen d o a realid ad e ou inteiram ente fictícios —
que d escrev em m in u cio sam en te ru p tu ra s que de facto aco n teceram ,
ou que q u ase aco n teceram ou q u e , e m b o ra tenham acontecido, foram
a d m ir a v e lm e n te s o lu c io n a d a s . P a re c e n ã o e x is tir g ru p o q u e não
possua um fornecim ento com pleto destes jo g o s, fantasias e h istórias dc
prov eito e ex em p lo , u tilizado corn o reserva de hum or, escape c atá rti­
c o d a ansied ad e e san ção d e stin a d a a le v a r os indivíduos a serem m o­
desto s n as suas p reten sõ es e ra z o á v e is nas ex p ectativ as que p ro jec­
tam . O in d iv íd u o p ode revelar-se em so n h o s nos quais alcan ça situ a­
ções im possíveis. A s fam ílias fa la m dc o casiõ es em q u e um c o n v id a ­
d o tro c o u as d a ta s e a p a re c e u q u a n d o n em a c a s a n e m n in g u é m
e stav a c m co n d içõ es de o receber. Os jo rn a lista s referem -se a gralhas
terrív eis que co m p ro m etem , pelo rid ícu lo , a o bjectiv id ad e ou respei-

*2 Cjoífimm. op. cif., pp. 319-27.


26 Erving Goffman

labilid ad e do jo rn a l. O s funcionários co n tam c a so s de pessoas q u e in­


terpretaram d isp aratad am en te as questõ es de um form ulário, ap resen­
ta n d o re sp o sta s q u e re su lta v a m em d e fin iç õ e s in e sp e ra d a s ou in ­
só lita s d a situ a ç ã o 13. O s m arinheiros, c u ja v id a fo ra de c a s a .se passa
ex clu siv am en te en tre h o m en s, falam de co m p a n h eiro s que em casa
in a d v e rtid a m e n te p ed em à m ã e q u e lhes p a sse “ a m e rd a d a m a n ­
teig a” 14. O s d ip lo m atas deliciam -se. com o e p isó d io da rain h a m íope
que interro g a o em b a ix a d o r de u m a república sobre a saúde do re i1".
E m re su m o , c o n s id e ro , p o rta n to , q ue q u a n d o u m in d iv íd u o se
a p re se n ta perante o u tro s terá n u m ero so s m otivos p a ra ten tar c o n tro ­
lar a im p ressão q ue e s te s receb em da situação. E ste e stu d o ocupa-se
d e a lg u m a s d a s té c n ic a s c o m u n s q ue as p e s so a s e m p re g a m p a ra
alim en tar essas im p ressõ es e de certas c o n seq u ên cias p o r vezes d e ­
corren tes do uso das m esm as técn icas. N ào estará em an á lise aq u i o
co n teú d o co n c re to d a activ id ad e ap resen tad a pelo in d iv íd u o p a rtic i­
p an te. ou o p ap el q u e ele d e se m p e n h a nas a c tiv id a d e s in terd ep en ­
den tes de um sistem a social cm m ovim ento; o cupar-m e-ei ap en as dos
pro b lem as d ram aü írg ico s d o p artic ip a n te que a p re sen ta aos o u tro s a
su a acção. O s p ro b lem as lig ad o s à m o ntagem c e n c en açã o da peça
são p o r v ezes banais, m a s tam b ém de o rd e m m uito geral; p a rec em
v erificar-se p o r to d a a parte d a v id a em so ciedade, o fe rec en d o um a
d im e n sã o cla ra m e n te d e fin id a ã a n á lise so c io ló g ica form al.
S e rá c o n v e n ie n te c o n c lu ir esta in tro d u ç ã o p o r m eio d e alg u m a s
d e fin içõ es im p lícitas n o q u e fica d ito e req u eridas p e lo que se segue.
N o â m b ito d e ste trab alh o , a in teracção (ou seja. a in teracção frente a
fren te) pode ser g ro sseiram en te d efin id a c o m o a in flu ên cia recíp ro ca
do s in d iv íd u o s so b re a s a c ç õ e s u n s dos o u tro s n u m a s itu a ç ã o de
p re s e n ç a f ís ic a im e d ia ta . Uma in te ra c ç ã o s e r á d e fin id a c o m o a
to talid ad e da interacção, seja qual fo r o seu m om ento, e m que u m
d e te rm in a d o c o n ju n to d e in d iv íd u o s sc e n c o n tra m c o n tin u a m e n te

Peter Blau, "D ynam ics o f Bureaucracy”, dissenaeäo de I’ll, ü ., Department of


Sociology. Columbia University, no prclo. University oT Chicago Press, pp. 127-29.
W a lte r M. B eattie. Jr.. “T h e M erc h an t S eam an " (M . A. R ep o rt in e d ito .
Departm ent of Sociology. University o f Chicago. 1950}. p. 35.
l -* Sir Frederick Ponson'ny. Recollections o f Three Reigns. Nova lorque, Dutton.
1952. p. 46.
A Apresentação do Liu na Vida dc Todos os Dins 27

p re se n te s uns ao s o u tro s; o te rm o “e n c o n tro ” d e s ig n a rá a m esm a


realid ad e. () “d e se m p e n h o ” será d e fin id o com o to d a a a ctiv id ad e de
u m d e te rm in a d o p a rtic ip a n te n u m d a d o m o m en to , que tem c o m o
efeito in flu e n c ia r seja de que m a n e ira fo r alg u m dos outros p artic i­
p a n te s . T o m a n d o u m p a r tic ip a n te c o n c re to e o seu d e s e m p e n h o
com o pon to de referên cia fu n d a m e n ta l, referir-n o s-em o s ao s au to res
de o u tro s d esem p en h o s c o m o a u d ie n c ia , esp ectad o res, o b serv ad o res
ou c o -p a rtic ip an te s. O m o d elo d e acção p reestab elecid o que se d e ­
se n v o lv e ao lon g o dc um d e se m p e n h o e su sceptível d e ser a p re sen ­
tad o ou re p re se n ta d o n o u tra s o c a siõ e s será d efin id o corno "p rática
de ro tin a ” ou “papel de ro tin a” 1*. F.stes term o s relativos à situ ação
p odem se r facilm ente ligados a o s te rm o s estru tu rais co n v en c io n ais.
Q uan d o um in d iv íd u o ou ac to r re p ré se n la a m esm a “p rá tic a de ro ti­
n a ” p ara o m esm o p ú b lic o e m d ife re n te s ocasiõ es, é provável que se
fo rm e u m a relação so cial. D e fin in d o o papel social co m o o co n ju n to
d e d ire ilo s e d e v eres lig ad o s a u m a dada categ oria, p o d erem o s d iz er
q u e um p ap el social im p licará u m ou m ais “p a p éis dc ro tin a ” c que
c a d a um d esses d iferen tes tre c h o s p o d erá se r a p re sen ta d o peio a c to r
n u m a série de o casiõ es p ara os m e sm o s lipos de au d iê n c ia ou para
um p ú b lico fo rm ado se m p re p e la s m esm as pessoas.

Para alguns i:ornenlários accrca da im portância da distinção entre a rotina da


interacção e 0 caso particular cm que um a prãt:ca cc rotina c aplicada, ver John von
Neumann c O skar Morgenstern. The Ttw ory o f Games and Economic Behaviour, 2*
ed., Princeton. Princeton University Piess. 1947, p. -19.
I
Desempenhos

A c red i rar no P ró prio Desempenho

Q u an d o um in divíduo d e se m p e n h a um papel exige im plícitam ente


d o s seus esp ectad o res que le v e m a sério a im pressão que neles pro­
c u ra suscitar. É pedido ao s o u tro s que acreditem q u e a personagem
q u e estào a ver realm ente p ossui os atrib u to s que parece possuir, que
a acção q u e d esem p en h a tem a s c o n seq u ên cias q u e im p licitam en te
a firm a, e que. de um m odo g eral, as coisas sã o o que m ostram ser.
N e sta ordem d e ideias, en co n tram o s a c o n cep ção m uito difu n d id a se­
g u n d o a qual o in divíduo o rg a n iz a o seu d esem penho e ex ibição “ em
in ten ção d as outras pesso as". S erá co n v en iente co m eçarm o s o estu d o
d o s d esem p en h o s dan d o a volta a o p ro b lem a e ex am in an d o a cre n ça
d o p ró p rio indivíduo na im p re ssã o de realidade q u e lenta en g en d rar
n aq u eles en tre os q u ais se en co n tra.
N um dos ex trem o s, v e rific a m o s que o a c to r p o d erá se r c o m p le ta ­
m e n te to rn ad o p e la su a p ró p ria a c ç ã o ; p o d e rá e s ta r s in c e ra m e n te
c o n v e n c id o de que a im p ressão d e realid ad e que en cen a 6 a realidade
re a l. Q u a n d o a su a a u d ie n c ia te m a m e sm a c o n v ic ç ã o a c e rc a d a
e x ib ição a q u e o in divíduo p ro c e d e — e tal parece se r o c a so m ais
co m u m — e n tã o , m o m e n ta n e a m e n te p elo m enos, só o so c ió lo g o ou
u m o b s e rv a d o r s o c ia lm e n te in s a tis fe ito e sta rã o em c o n d iç õ e s de
d u v id a r d a “realid ad e” d o q ue se lhes ap resenta.
N o o u tro extrem o, vem o s q ue o ac to r p o d e não estar por c o m p le to
c o n v e n c id o d a re a lid a d e d a su a p rática de rotina. T ra ta -se de u m a
p o ssib ilid ad e co m p reen sív el, u m a vez q u e ninguém se e n c o n tra em
30 F.rving Goífman

p o sição tão favo ráv el c o m o o acto r em rela ç ã o ao p ap el q u e d e se m ­


penh a. A o m e sm o tem p o , o a c to r p ode ser lev ad o a o rie n ta r a c o n ­
vicção d a su a a u d ie n c ia ap e n a s co m o m eio em v ista de o u tro s fins,
não tendo q u a lq u e r in teresse essen cial na id eia que os o u tro s p o ssam
faze r dele ou da situ ação . Q uando o in d iv íd u o não a c re d ita n a sua
p róp ria re p resen tação n em tem um interesse essencial n a co n v icção
d a su a au d iên cia, p o d erem o s ch am ar-lh e c ín ico , reserv an d o o term o
“ sin cero ” para o in d iv íd u o q ue acred ita na im p ressão que. o seu d e ­
sem penho visa causar. D ev em o s en ten d er que o c ín ico , serv in d o -se
de toda a su a c a p a c id ad e p ro fissio n al, p o d erá extrair p razeres de or­
d em n ão p ro fissio n al da su a m ascarad a, e co m p raz er-se n e ssa agres-
sã o g ra tific a n te q u e c o n siste e m b rin c a r c o m a lg u m a c o is a q u e a
au d iê n c ia terá q u e lev ar a s é rio 5.
N ã o c o n sid e ra m o s, e v id e n te m e n te , q ue to d o s o s a c to re s cín ico s
e sle ja m in te re ssa d o s e m ilu d ir o s seus e s p e c ta d o re s e m v ista dos
ch am ad o s “ in teresses p esso ais” o u b e n efício s p riv ad o s. U m in d iv í­
duo c ín ic o p o d e rá ilu d ir a su a a u d iê n c ia e m v ista do q u e c o n sid era o
b e m dela. ou o b e m d a co m u n id ad e, etc. P a ra ilu stra rm o s esta situ a­
ção, não p recisam o s de re c o rre r a o rg an izad o res de e sp e c tá c u lo s tilo
triste m e n te e sc la re cid o s co m o M arco A u ré lio ou H sun T zu. S a b e ­
m os b em q ue no d o m ín io d as p restaçõ es de se rv iç o s, os p ro fissio ­
nais são por v ezes fo rç a d o s a ilu d ir os que re co rre m a o s seus se r­
v iço s u m a v e z que são estes q ue v eem en tem en te o desejam . O s m é­
d ico s que a cab am por re c e ita r p laceb o s, os e m p reg a d o s das estaçõ es
d e serv iço q ue v e rific a m u m a e o u tra vez a p ressão d o s pneus dos
a u to m ó v eis de co n d u to ra s a n sio sas, os e m p re g a d o s de sa p ataria que
v e n d e m um p a r d e s a p a to s d o ta m a n h o d e v id o , m a s d iz e n d o ao
clien te q ue o seu n ú m ero é o que ele q u e r o u v ir — e is o u tro s tantos
acto res q ue são c ín ic o s em v irtu d e de as suas au d iên c ias lhes não
p e rm itire m se r sin cero s. D e m an eira an álo g a, ex iste m ao que parece
p acien tes sim p á tic o s nos h o sp itais p siq u iátrico s, fin g in d o p o r vezes

* T alvez o verdadeiro crim c do burlão não esteja no facto dc ele ficar com o
dinheiro das suas vítimas, mas em nos ferir ¿1 todos na ciença segundo a qual n-í
maneiras e aparência da classe media são urn exclusivo das pessoas da classt: média,
Um profissional desenganado pode ser cimcamcnlc hostil à relação que o público
espera dele; o burlão conscguc desvalorizar o mundo da "legitim idade" no scu todo.
A Apresentação do í¿u na Vida tic Todos ns Dias 31

sín to m as b izarro s a firn dc q u e a s e stu d an tes de e n ferm ag em não se


s in ta m d e s a p o n ta d a s p o r urn d e s e m p e n h o d e m a sia d o s e n s a to d a
p a rte d e le s 2, ig u a lm e n te , q u a n d o as p e sso a s d e e s ta tu to in fe rio r
h o n ra m c o m e x tre m a g e n e r o s id a d e v is ita n te s de u m a c a te g o ria
su p erio r, o d e se jo e g o ísta d a p ro m o ç ã o pode n ão ser o m otivo p rin ­
cip a l d e s s a a titu d e ; a p e s s o a de e sta tu to in fe rio r p o d e esta r, c o m
g ra n d e (acto, a ten tar p ô r o in d iv íd u o de estatu to su p e rio r à vontade,
sim u lan d o o tip o de m u n d o a q u e p en sa que este ú ltim o estíí h a b i­
tuado.
Sugeri dois caso s ex trem o s: o in divíduo q u e 6 apanhado p e lo seu
p ró p rio d e sem p en h o c o in d iv íd u o c ín ic o em relação a este ú ltim o .
T ais caso s ex trem o s são m ais do q ue os term o s fin ais d c um conti­
nuum . C ada um d eles fo m e c e ao in d iv íd u o u m a posição d o ta d a das
su a s próp rias p ro tecçõ es e d e fe sa s, pelo que se v erificará, naq u eles
q u e se m o v em perto de um dos d o is pólos, a tendência para le v ar a
ló g ic a a té a o fim . A p a rtir d a f a lta d e c o n v ic ç ã o in te rio r n o seu
p ró p rio p apel, o ind iv íd u o s e g u irá e n tã o o m o v im en to n atu ral des­
crito p o r Park:

N ã o é p ro v a v e lm e n te p o r u m s im p le s a c a s o h is tó ric o q u e a
p a la v ra “ p esso a”, na s u a a c e p ç ão de origem , d e sig n a u m a m ásca­
ra. T raia-se an tes d o re c o n h e c im en to do facto d e to d a a g en te e sta r
sem p re e em to d a a parte, co m m a io r ou m enor c o n sc iên cia , a rc-

V er T axei, op. cit., p. à. H arry Slack. Sullivan sugeriu que o tacto dos actores,
institucionalizados pode tur.cionar tam bém em sentido contrario, resultando numa
saúde mental do tipo n oblesse oblige. V er a sua “Socio-Psychiatric R esearch“.
American Journal o f Psychiatry, X. pp. 987-88.
«U m escudo so b re as "re m issõ e s s o c ia is ” n o s n o ss o s g ra n d e s h o sp ita is
p siq u iá tric o s t;ns;nou-rne há alguns a n o s que os p acie n tes são m u itas v ezes
dispensados dc tratamento por terem aprendido a não manifestar os seus siniomns
perante as pessoas que os rodeiam; por outras palavras, integraram suficientemente
o am biente pessoal circu n d an te p ara ad o p tarem o p reconceito op o sto ãs suas
ilusões. Quase sc diria que se tinham tornado suficientemente avisados para seiern
tolerantes para com a imhecilidadi; que os rodeava, depois dc descobrirem que sc
tratava, de facto, não dc-. maldade, mas d c simples estupidez. Eram assim capazes dc
um co n tacto satisfatório com os o u tro s, ao m esm o tem po que continuavam a
responder a outras necessidades cm term os psicóticos.»
32 lirving G of finan

p re se n ta r um p a p e l... H nestes p apéis que nos co n h e cem o s un s aos


ou tro s; é n estes p apéis que nos co n h ecem o s a nós p ró p rio s.3

E m cerlü sentido, e na m ed id a em que a m á sc ara representa a


c o n cep ção que fo rm ám o s de nós p róprios — o papel que nos esfor­
çam o s p o r v iv e r — , e la é o nosso cu m ais v erdadeiro, o eu co m que
g o staríam o s d e nos parecer. N o lerm o do processo, a n o ssa c o n cep ­
ção do nosso papel torna-se u m a seg u n d a n atu reza e u m a parte in­
tegrante da n o ssa p ersonalidade. C heg am o s ao m undo com o indiví­
duo s. ad q u irim o s um c a rá c te r e tran sfo rm am o-nos em p e sso a s.4

T r a ta - s e de u m p o n to q u e a v id a d e c o m u n id a d e d a ilh a d a s
S h etlan d p o d e e x e m p lific a r5. N os ú ltim o s q u a tro ou c in c o an o s, o
hotel d e tu rism o d a ilh a p e rte n c ia a, e era g e rid o por, um casal de
o rig em cam p o n esa. D esde o p rim e iro m o m en to , os d o n o s do hotel
fo ra m o b rig ad o s a p ô r d e p a rte as suas p ró p ria s co n c e p ç õ es so b re
c o m o se d e v e ria viv er, o rg a n iz a n d o no h o tel u m a la rg a g a m a de
serv iço s e a c e ssó rio s típ ico s da classe m éd ia. M ais ta rd e. co n tu d o ,
rev elo u -se que o s p atrõ es se tinham to m a d o m enos c ín ic o s cm rela ­
ç ã o a o seu d esem p en h o de ac to re s; eles p ró p rios se tra n sfo rm av a m
e m m e m b ro s d a c la s s e m é d ia , a p e g a n d o - s e c a d a v e z m a is às
p erso n alid ad es q u e os c lien tes lhes atrib u íam .
Out.ro exem plo seria o do recruta inexperiente que co m eça por obe­
d ecer ao p rotocolo m ilitar para evitar punições físicas, m as m ais tarde
acaba p o r cu m p rir as reg ras para não en v ergonhar a organização a q u e
p ertence e para que os oficiais e os cam aradas de quartel o respeitem .
C o m o j á sugeri, o ciclo que vai d a d escren ça à crença p o d e ser per­
co rrid o no sen tid o oposto, p artindo d a co n v icção ou de um a aspiração
in seg u ra e te rm in a n d o no c in ism o . C ertas p ro fissõ es q u e o público
co n tem p la com relig io so tem o r p erm item m u itas vezes que os seus
recrutas p erco rram o ciclo d este m odo, e m u itas vezes os se u s recru­
tas perco rrem -n o assim não p o r co m p reen d erem pouco a pouco que

- Robert Ezra Park. Race and Culture. The Free Press. Glcncoe 111.. 3950. p. 2-19,
A_ Ibid., p. 250.
" r.sludo da ilha das Shetland.
A Apresentação do Eu no Vida de Todos os Dias 33

estão a e n g a n a r a au d iên cia — u m a vez q u e de acordo co m o s crité­


rios em vigor as suas p reten sõ es p o d e rã o ser in teiram ente válida.s —
m as porq u e passam a u sa r o c in ism o co m o um m eio d e isolarem o
seu s e r ín tim o d o c o n ta c to c o m a a u d iê n c ia . D o m e s m o m o d o .
pod em o s ale esp erar d escobrir, e m carreiras tip icam ente ligadas à fé.
in d iv íd u o s q u e c o m e ç a m p o r se c o m e te r c o m o se u d e se m p e n h o
c o m o este parece ex ig ir deles, p a ra d ep o is oscilarem rep etid am en te
e n tre a sin c e rid a d e e o c in ism o , a té c o m p le ta re m to d as a s fa se s e
in fle x õ e s de o rie n ta ç ã o p ró p ria s d e u m a p e sso a da su a c o n d iç ã o .
A ssim , os q u e freq u en taram as e sc o la s de m ed icin a referem q u e os
prin cip ian tes m ovidos pelo id ealism o acab am p o r pôr de lado por al­
gum tem po as suas asp iraçõ es relig io sas. D urante os prim eiros dois
anos, os estu d an tes debcobrem q u e o seu interesse pela m ed icin a tem
de se r p o sto de p a rle e q u e d e v e m c o n s a g ra r io d o o seu te m p o a
estudar as m atérias q ue lhes p e rm ila m p assar nos exam es. A o longo
d o s d o is a n o s s e g u in te s , e s tã o d e m a s ia d o o c u p a d o s a e s tu d a r as
d o e n ç a s p a ra se p oderem p re o c u p a r m u ito co m as p essoas doentes. É
só d e p o is d a fo rm a ç ã o m é d ic a q u e os s e u s id e a is p rim itiv o s e m
re la ç ã o ao serviço m édico terão a p o ssib ilid ad e de se r reafirm ados,6
E m b o ra p o s s a m o s e s p e ra r d e s c o b r ir u m m o v im e n to n a tu ra l de
o s c ila ç ã o e n tre o c in is m o e a s in c e rid a d e , n ão d e v e m o s p o r isso
e x c lu ir essa esp écie d e pon lo d e tra n siç ã o q u e u m p o u c o d e au to -
-e n g an o é suscep tív el d e m anter. V em os q u e o in d iv íd u o te n ta rá in ­
d u z ir a au d iê n c ia a ju lg á -lo a si p ró p rio e à situ a ção de um m odo
p a rtic u la r, sen d o p o ssív e l que ta l ju íz o s e ia v isa d o c o m o u m o b ­
je c tiv o su p rem o em si p ró p rio , ao m esm o tem p o que o in d iv íd u o não
ac red itará p o r inteiro m e recer a a p re c ia ç ã o a q ue a sp ira ou n a v a li­
d ad e da im p ressão de re a lid a d e q u e p ro cu ra garantir. U m a c o m b in a ­
ç ã o d ife re n te de c in ism o e c re n ç a é a su g e rid a p e la an á lise a que
K ro eb e r p ro ced e d o xam anism o;

Surge em seguida a v elh a q u estão d o engano. É provável q u e a


m aio r parte dos xam ãs ou c u ra n d e iro s de todo o m undo recorram

II. S. R ecker e B lanche G reer, "T h e Fate o f Idealism in M edical S ch o o l” .


A m erican Sociological Review. 23, pp. 50-56.
34 F.rving Goffman

na .sua p restação de .serviços a p restid ig itaçõ es terap êu ticas e sobre-


lu d o re la tiv a s à e x ib iç ã o d e p o d eres. E sta p re stid ig ita ç ã o é por
v ezes d e lib e ra d a ; em n u m e ro s o s c a so s ta lv e z a c o n sc iê n c ia e a
in co n sciên cia se igualem . A atitude, co m recalcam en to ou sem ele,
parece a de u m a m en tira piedosa. O.s etn ó lo gos q u e fazem trabalho
de c a m p o p are c e m , d e um m o d o g e ra l, c o n v e n c id o s de que até
m esm o o.s feiticeiros q u e têm co n sciên cia de se servirem d e cnga-
no.s acred itam ao m e sm o lem po nos seus poderes, e so b retu d o nos
p oderes dos o u tro s feiticeiros: a pro v a é que recorrem a estes últi­
m os quan d o eles p ró p rio s ou os seus filh o s ad o e ce m .7

Fachada

T enho v indo a u sa r o term o “ d e se m p e n h o " p a ra d e sig n ar q u alq u er


a c tiv id a d e d e u m in d iv íd u o q u e se v e rifiq u e d u ra n te um p e río d o
m arcad o p ela .sua p re se n ç a co n tín u a p eran te um c o n ju n to d e te rm i­
n a d o de o b s e rv a d o re s e c o m a lg u m a in flu ê n c ia so b re e ste s. S e rá
c o n v e n ie n te ro tu la r c o m o “ fa c h a d a ” e s s a p arte do d e se m p en h o do
in d iv íd u o q u e fu n c io n a reg u la rm e n te de m aneira g en éric a e fix a a
fim de d e fin ir a situ ação p ara os q u e o b serv am o d esem p e n h o . A fa ­
ch a d a . p o rtan to , é o e q u ip a m e n to e x p re ssiv o de tipo p a d ro n iz ad o ,
e m p re g u e in tencional ou in co n scien tem en te pelo ind iv íd u o d u ra n te o
seu d esem p en h o . P relim in arm en te, c o n v irá d istin g u ir e c la ssific a r o
q u e p arecem ser os e le m e n to s c o n stan tes d a fachada.
E m p rim e iro lu g a r, h á o “ q u a d r o ” , in c lu in d o o m o b iliá rio , a
d eco ração , a d isp o siç ã o física e o u tro s asp ectos d o p a n o d e fundo,
que co n stitu irã o o c e n á rio e os alicerces d o p alco p a ra o d esen ro lar
d a acção h u m an a q ue será re p re se n ta d a d ian te, d en tro ou ac im a dele.
O q u a d ro te n d e a p e rm a n e c e r, em te rm o s g e o g rá fic o s, n a m e sm a
posição , de tal m aneira q u e aq u eles q ue q u eiram u sar um q u ad ro d e­
term in a d o c o m o p arte d o seu d esem p en h o não p o d erão c o m e ç a r a
a cç ã o a n te s de se terem tran sp o rtad o para o d e v id o lo cal e serão

'' A. f_.. Krocbcr. The N ature o f C ulture. U niversity o f C hicago Press, Chicago.
1952, p. 311.
A Apresentação du Hu nu Vida de Todos os Dias 35

o b rig ad o s a term in ar o seu d e se m p e n h o q u a n d o saem d e ste últim o.


Só em c ircu n stân cias e x c e p c io n a is o q u a d ro aco m p an h a o s acto res; e
o c a so q u e o b serv am o s, po rém , n o s co rtejo s fú n ebres, nas m a n ifes­
tações c ív ic a s c n as p ro cissõ es d e s s e m u n d o de so n h o s d e q u e reis e
ra in h a s sã o feito s. N a m a io r p a rte dos c a so s, e sta s e x c e p ç õ e s p a ­
recem g a ra n tir um a esp é c ie d e p ro te c ç ã o ex tra aos seu s acto res q u e
são, ou .se to m a m m o m e n ta n e a m e n te, sag rad o s no m ais alto g rau . A s
fig u ras ilustres d ev em d istin g u ir-se . e v id en tem en te, dos a cto re s m ais
p ro fa n o s, tip o v e n d e d o r a m b u la n te , q ue d e s lo c a m o seu lo cal de
trab alh o en tre as rep resen taçõ es, ta n to m ais que freq u en tem en te não
p o d em d eix ar de o fazer. N o que se refere ao lu g a r fixo do quadro,
d ig am o s que um g o v ern an te será d e m asiad o sag rad o e um v e n d e d o r
am b u la n te d e m asiad o p ro fa n o p a ra se lh e cingir.
Q uan d o p en sam o s nos a sp e c to s cén ico s da fa c h ad a, te n d e m o s a
p e n sa r na sala d e c sia r d e fam ília e no p e q u en o n ú m ero d e actores
q u e c o m e s s e e s p a ç o p o d e m o s id e n tif ic a r p le n a m e n te . T e m -s e
p restad o p o u ca atenção a o s c o n ju n to s de eq u ip am entos de sin a liza ­
çã o que n u m ero so s a c to re s p o d e m c o n sid e ra r seu s d u ra n te b rev e s
perío d o s de tem po. É c a ra c te rístic o d o s p aíses da E u ro p a O cid en tal,
e sem d ú v id a um e le m e n to g e ra d o r d e esta b ilid ad e nestes ú ltim os,
que um g ran d e n úm ero d e q u a d ra s d e a c ç ã o lu x u osos p o ssa ser a lu ­
gado p o r q u a lq u e r p esso a d o tipo ad e q u a d o q u e d isp o n h a d o s rec u r­
sos necessário s p a ra tanto. E is u m ex e m p lo ex tra íd o d e um e stu d o
sobre os funcionários p ú b lico s su p e rio re s da G rã-B retanha:

A q u estão de sab er até q u e p o n to os hom en s q u e atin g em o topo


do Serviço P ú b lico ad q u ire m o “ lo m v ou a “c o r” de urna classe di­
ferente d a q u e la a q u e p erten cem p o r n ascim en to é um a q u e stão de­
licada e difícil. A ú n ica in fo rm ação p recisa de q u e disp o m o s são os
núm eros referentes à inscrição n o s g ran d es clubes londrinos. M ais
de trê s q uartas partes dos n o sso s fu n cio n ário s su p erio res p e rte n ­
cem a um ou m ais clubes de esta tu to elev ad o e co n sid eráv el luxo.
nos quais a jó ia pode atin g ir ou u ltrap assar os vinte guinéus, sendo
o m ontante anual das quotas u m a q u a n tia que oscila en tre os doze
e os vinte guinéus. E s ta s in stitu iç õ e s p ertencem à cla sse su p e rio r (e
não à m éd ia su p erio r seq u er) p e la s su as p osses, eq u ip am en to , e s­
36 Ervins Goff man

tilo d c vida q u e su scitam , pela su a a tm o sfera global. E m b o ra m ui­


tos dos seus m em b ro s não possam ser co n sid erad o s ricos, só um
h o m em rico p ro p o rcio n aria, sem o u tro s auxílios, a si próprio e à
fam ilia co n d iç õ e s d e esp aço , a lim en tação e beb id as, se rv iç o d o ­
m estico. c o u tro s acessó rio s de conforto d e um padrão com parável
ao s q ue en co n tram o s no U nion, no T ra v e lle r’s ou no R eform .8

U m o u tro e x e m p lo p o ssív e l se ria o q u e no s p ro p o rc io n a a e v o ­


lução recente d a p ro fissão de m édico, q u a n d o vem os que é c a d a vez
m ais im p o rtan te para o p ro fissio n al te r acesso ao e stá g io cien tífico
so fisticad o fo rn ecid o pelos gran d es ho sp itais, d e tal m an eira que são
cad a vez m enos os m édicos q u e ain d a sen tem q u e o seu qu ad ro de
acçào é um lu g ar q u e p o d em fech ar d u ran te a n o ite 9.
Se ad o p tám o s o term o “q u a d ro ” para d esig n ar o s ele m e n to s c é n i­
co s d o e q u ip a m e n to ex p ressiv o , p o d erem o s to m ar o term o ‘‘fachada
pesso al” p ara d esig n arm o s os o u tro s a sp ecto s d e sse e q u ip a m en to —
o s a sp ecto s q u e id en tificam o s m ais de p erto co m o p ró p rio a c to r e
q u e n atu ralm en te e sp e ra m o s q u e o aco m p an h em o n d e q u e r q u e ele
se e n c o n tre . C o m o p a rte s d a fa c h a d a p esso al p o d e m o s in clu ir: os
d istin tiv o s q u e in d icam a p ro fissão ou a categ o ria p ro fisio n al; o ves­
tu á rio ; o se x o , a id ad e e as c a ra c te rís tic a s ra c ia is; as d im e n sõ e s
físicas e a ap re se n ta çã o ; a atitu d e; a m aneira de falar; as e x p ressõ es
faciais; os m o v im en to s do corpo, etc. A lguns desces tran sm isso res de
sin a is , c o m o , p o r e x e m p lo , as c a ra c te rís tic a s é tn ic a s , sã o re la ti­
v a m en te fix o s e, p a ra um p erío d o de te m p o d a d o , n ão v a ria m no
m esm o in d iv íd u o en tre um a e o u tra situ ação . P o r o u tro lado, alguns
destes tran sm isso res de sinais são relativ am ente m ó v eis ou tra n sitó ­
rios, c o m o a e x p re ssã o facial, e podem m u d ar d u ra n te u m m esm o
dese m p e n h o , de um m o m en to para o outro.
P o r v ezes to rna-se co n v en ien te d iv id ir os estím u lo s que fo rm am a
fach ad a pessoal em “ ap arên cia” e “ m odo” , ou “ m an eiras” , seg u n d o a

s H. F. Dale, The Higher Civil Sen-ice o f G reat Britain. Oxford U niversity Press.
Oxford, 1941. p. 50.
9 D avid S o lo m o n . " C a re e r C o n tin g e n c ie s o f C h ic a g o P h y s ic ia n s '’, Ph. D.
dissertação inédita. D epartm ent o f Sociology, U niversity o f C hicago, C hicago,
1952. p. 74.
A Apresentação do Liu na Vida de Todos os Dias 37

fu n ç ã o d e s e m p e n h a d a p e la in fo rm a ç ã o q u e os e s tím u lo s c o r re s ­
p o n d e n te s veicu lam . A “ a p a rê n c ia ” d e sig n a rá esse s e stím u lo s cuja
função m o m en tân ea é c o m u n ic a r-n o s o e sta tu to social do actor. O s
m e sm o s e s tím u lo s in to rm a m -n o s ta m b é m so b re a s itu a ç ã o ritu a l
te m p o rá ria do in d iv íd u o , o u se ja . d iz e m -n o s se ele e stá a le v a r a
ca b o a lg u m a activ id ad e .social fo rm a l, a tra b a lh ar ou a e n treg a r-se a
um a p rá tic a recreativ a inform al, se e stá ou não a c eleb rar u m a n o v a
fase d o c ic lo d as estaçõ es ou d o se u ciclo vital. O "m o d o ” d esig n ará,
p e lo seu la d o . e sse s e s tím u lo s q u e m o m e n ta n e a m e n te fu n c io n a m
in f o r m a n d o - n o s d o p a p e l q u e o a c t o r c o n ta d e s e m p e n h a r n a
in tera c ç ão d a situ ação que se av iz in h a . A ssim , um m odo arro g a n te e
ag ressiv o d a rá a im pressão de q u e o a c to r esp e ra ser ele a in ic ia r a
in teracção verbal e a o rie n ta r o se u c u rso . U m m odo h u m ild e e re ­
c e o s o d a r á a im p re s s ã o d e q u e o a c to r se p re p a ra p a ra s e g u ir o
m o vim en to dos o u tro s ou de q ue p e lo m enos n ão será d ifícil lev á -lo
a fazer isso.
M u ita s v e z e s , e v id e n te m e n te , e s p e ra m o s q u e a re la ç ã o e n tre
a p a rê n c ia e m odo seja de c o n firm a ç ã o e c o n sistên cia; p re v e m o s que
as d ife re n ç as d e co n d ição social e n tre o s in teracto rcs se ex p ressem
d e a lg u m m o d o c o e re n te m e n te p o r d ife re n ç a s e n tre as in d ic a ç õ e s
relativ as ao p ap el e sp e ra d o na in te ra c ç ã o . R ste tip o de co e rê n cia da
fa c h a d a p o d e se r ilu stra d o p e la se g u in te d e sc riç ã o do c o n e jo q u e
ac o m p a n h a um m andarim ao lo n g o de u m a cid ad e chinesa:

L o g o a s e g u ir... a lu x u o sa c a d e ira d o m andarim , tra n sp o rta d a


p o r o ito carreg ad o res, preen ch e todo o esp aço d a rua. O m andarim
é o ad m in istrad o r d a cid ad e e, p a ra todos os efeito s práticos, o su ­
p rem o p o d e r d entro d ela. ü. um fu n cio n ário co m a ap a rê n c ia ideal,
um a v ez q ue se m o stra g ran d e e p esad o , ao m esm o tem po que tem
o a r s e v e ro e in fle x ív e l q u e s e c o n sid e ra n e c e ssá rio a u m m a ­
gistrad o q u e esp ere m an ter os seu s sú b d ito s na ordem . O seu ar ó
am e a ç ad o r e im ponente, co m o se e stiv e sse a c am in h o do local do
su p líc io p a ra a s s is tir à d e c a p ita ç ã o d e u m c rim in o so . É e s s a a
ap a rê n c ia que os m an d arin s a ssu m e m q u a n d o surgem em público.
A o longo de um a e x p e riê n c ia d e m u ito s anos, n u n ca vi n enhum
deles, do m ais ele v a d o ao m e n o s im p o rtan te, com um so rriso no
38 Hiving G off man

ro sto ou um a e x p re ssã o d e sim p atia d irig id a ao povo en q u a n to o


c o rte jo o ficial p a ssa nas ru a s .10

M a s, sem d ú v id a , a a p a rê n c ia e os m odos p odem te n d e r a co n tra ­


dizer-se. co m o c o c a so q u an d o u m actor, q u e parece de esta tu to su ­
p e rio r ao da sua a u d iê n c ia , ag e de um m o d o in e sp e ra d am en te ig u ali­
tário, ou fam iliar, ou h u m ild e, ou q u a n d o um a c to r q u e surge re v e s­
tido d a s m arcas d e u m a co n d ição e lev ad a se acha peran te um in d i­
vídu o d c esta tu to su p e rio r a o seu.
A lém d a c o n siste n c ia e sp e ra d a en tre a a p a rê n c ia e o m odo. p re­
vem os a in d a q ue u m a c e rta co erên cia se v erifiq u e e n tre o q u a d ro da
acção, a ap a rê n c ia e o m o d o 11. E sta co e rê n c ia c um tipo ideal que
n o s fo rn e c e um m e io d e e s tim u la rm o s a n o s s a a te n ç ã o e d e nos
in teressarm o s pelas ex cep çõ es. A qui o in v estig ad o r é assistid o pelo
jo rn a lista , u m a vez q u e as ex cep çõ es p rev isív eis èi co n sistê n c ia entre
q uad ro , ap a rê n c ia e modo co n stitu e m o e n c a n to e o p ican te de n u ­
m e ro sa s c a rre ira s c s ã o o isc o q u e faz v e n d e r g ra n d e n ú m e ro de
artig o s d e jo rn a l. P o r e x e m p lo , o p erfil q u e o N ew Yorker d e se n h a de
R o g e r S tev en s (o ag en te im o b iliário q ue arq u itecto u de facto a v enda
do E m p ire S ta te B u ild in g ) in s is te no fa c to e s p a n to s o d e S te v e n s
v iv er n u m a p e q u e n a c asa, ter um escritó rio m odesto e não se serv ir
n un ca d e papel tim b ra d o 1-.
P ara re c o n h e c erm o s m ais a fu n d o as relações ex isten tes en tre as
d iv e rs a s p a rle s da fa c h a d a s o c ia l, s e rá c o n v e n ie n te te rm o s aq u i
p resen te um asp ecto p e c u lia r relev an te d a in form ação veicu lad a pela
fach ad a, a saber, a su a a b stra c ç ão e generalid ade.
P o r m u ito e sp e c ia liz a d a e ú n ic a que seja u m a p rática de ro tin a, a
sua fa c h a d a so cial, co m alg u m as ex cep çõ es, ten d erá a a firm ar factos
q u e p o d e m ig u a lm e n te s e r a f ir m a d o s o u in v o c a d o s p o r o u tr a s
p rá tic a s d c ro tin a , b a s ta n te d ife re n te s . P o r e x e m p lo , n u m e ro s a s
o rg a n iz a ç õ es d c p re sta ç ã o de serv iço s p ro p õ em ao p ú b lico um d e ­

I (j J. Macgowan. Sidelights on Chinese Life. Filadcit'ia. Lippincott. 1908. p. i K7.


II c r . o comentario dc Kenneth Burke sobre a relação "cena-acç;í o - a g e r i i , cm .-i
Gnunmar o f M otives. Prenticc- Hal I. Nova torque. 1945, pp. 6-9.
I
“ E. J. Kahn. Jr.. “Closings and Openings”. The N ew Yorker, 13 c 20 dc Fevereiro
dc 195¿.
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 39

sem p en h o q u e surge ilu m in ad o p u r ex p ressõ es d ra m á tica s de asseio,


m o d e rn id a d e , c o m p e tê n c ia c in íe g rid a d e . E m b o ra , n a re a lid a d e ,
e s te s m o d e lo s a b s tra c to s te n h a m s e n tid o s d if e re n te s s e g u n d o o s
d iv erso s d esem p en h o s p ro fissio n a is a q u e se ap licam , o e sp e c ta d o r é
e n c o r a ja d o a p r iv ile g ia r e m te r m o s d e a te n ç à o as s e m e lh a n ç a s
a b stractas referid as. P ara o e sp e c ta d o r, trata-se de u m a h arm o n ia m á­
g ica, e m b o ra p o r vezes d e sa stro sa . E m vez d e te r que a lim e n ta r um
m odelo d c e x p ectativ as c d e tra ta m e n to d iferen tes perante c a d a a c to r
e c a d a d esem p en h o p o r lig eiras q u e p a re ç a m ser as suas diferen ças,
o e sp e c ta d o r p o d erá se r lev ad o a c o lo c a r a situ a ç ã o no â m b ito d e
u m a c a te g o ria g e n érica que lhe to rn a m ais fácil re co rre r à e x p e rie n ­
c ia p assa d a e a juízos e ste re o tip a d o s. O e sp e c ta d o r c o n te n ta -se assim
co m o co n h e c im e n to de u m v o c a b u lá rio re d u z id o c p o r isso fa c il­
m ente m oldável de fa c h a d a s h a b itu a is, resp o n d en d o a ca d a urna d e ­
las co m u m a prontidão que lhe p e rm ite orien tar-se num a vasta gam a
de situ açõ es. É assim q ue e m L o n d re s o fa c to de os lim p a -c h a m i­
n é s 5- e os em p reg ad o s de p e rfu m a ria ten d erem d e um m odo g eral a
u sar av e n ta is brancos su g e re ao p ú b lico a ideia d e que as d elicadas
tarefas d esem p en h ad as p o r tais p e s so a s se rea liz am dc urn m odo que
se tom o u uniform e, de u m a se v e rid a d e e fiab ilid ad e clín icas.
T e m o s m o tiv o s p a r a p e n s a r q u e a te n d ê n c ia p a r a a p r e s e n ta r
u m g ra n d e n úm ero d e a cçõ es d ife re n te s sob um n ú m e ro re d u z id o
d e fa c h a d a s c um re su lta d o n a tu ra l d a o rg a n iz a ç ã o d a so c ie d a d e .
R ad cliffe-B ro w n su g eriu -o ao a firm a r q ue um siste m a de p aren tesco
“ d escritiv o ” que atrib u a a c a d a in d iv íd u o um lugar ú n ico poderá fun­
c io n a r em co m u n idad es m uito p eq u en as, m as que, à m ed id a q u e o
n ú m e ro de in d iv íd u o s se to rn a r m aior, a se g m e n ta ç ã o e m c lã s se
to r n a r á n e c e s s á r ia c o m o m e io d e p r o p o r c io n a r u m s is te m a d e
id en tificaçõ es e fo rm as d e tra ta m e n to m enos c o m p lic a d o 14. Vcrnos
m anifestar-se a m esm a te n d ê n c ia n as fáb ricas, n o s q u artéis c noutras
o rg a n iz a ç õ e s so c ia is re u n in d o g ra n d e n ú m e ro d c in d iv íd u o s . O s
e n c a r r e g a d o s d a o r g a n iz a ç ã o d e s te s c o n ju n to s c o n s id e r a m im -

' - V er Mervyn Jones. "W hite as a Sw eep". The 'Ne.w Statesman a m i Nation, 6 <le
Dezem bro de 1952.
54 A. R. R a d d iffe -B ro w n . :iT hc S o c ia l O rg a n iz a tio n o f A u stra lia n T rib e s ".
Oceania, I. 440.
40 Erving Goffman

po ssív el fo rn ecer u m a c a n tin a particular, fo rm as d e p a g a m e n to p a rti­


cu lares. d ireito s dc férias e sp ecífico s e in stalaçõ es san itária s sep a ra ­
das a ca d a nível d e p ro d u ção , ou p o sição h ierárq u ica, m as ao m esm o
tem p o ju lg a m que os in d iv íd u o s que se d ife re n c iam p e lo seu estatu to
não d ev em se r in d iferen ciad am en te reu n id o s ou classific ad o s. N u m a
so lu ç ã o dc co m p ro m isso , a g am a d as d iferen ciaçõ es c c o ita d a num
red u z id o n úm ero de pontos d ecisiv o s, e to d o s os q u e ficam no inte­
rio r d e u m a das zon as de d iv isão o b tid as serão en tã o au to rizad o s ou
o b r ig a d o s a m a n te r a m e s m a f a c h a d a s o c ia l n u m d e te r m in a d o
n ú m ero de situações.
Para lá d o facto dc d ife re n te s p apéis de ro tina poderem u tiliz a r a
m esm a fach ad a, d e v e m o s n o ta r q ue u m a fa c h a d a social d ad a tende a
in s titu c io n a liz a r - s e n o s te rm o s d a s e x p e c ta tiv a s a b s tra c ta s e e s ­
tereo tip ad as a q u e dá lugar, e ten d e tam b ém a re c e b e r um sen tid o e
u m a e sta b ilid a d e in d e p e n d e n te s d a s ta re fa s c o n cre tas q u e m o m en ­
ta n e a m e n te p o s s a m s e r d e s e m p e n h a d a s e m seu n o m e . A fa c h a d a
tra n sfo rm a -se n u m a “re p re se n ta çã o c o le c tiv a " e num a rea lid a d e p o r
direito p ró p rio .
Q u an d o um acto r receb e um papel social definido, acab a em geral
p o r d e s c o b rir q u e foi já d e fin id a ta m b é m u m a fa c h a d a p a ra esse
papel. Q u e r a su a p re te n sã o de d esem p en h ar o papel em causa ten h a
sid o p rim a ria m e n te m o tiv a d a p o r um d e s e jo d c re a liz a r a ta r e f a
corresp o n d en te, q u e r a tenha m o tiv ad o o d e se jo d e a d q u irir a ta c h a d a
respectiva, o ac to r d esco b rirá que te rá d e fazer as d u a s coisas.
A lé m d isso , se o in d iv íd u o re c e b e r u m a tare fa q u e seja n ão só
n o v a p ara e le co m o tam b ém ain d a p o r d efin ir pela so cied ad e, ou se
te n ta r m o d ific a r a luz a que c o stu m a ser o lh ada a su a tarefa, é p ro ­
vável que d e scu b ra q ue ex istem j á diferen tes fachadas bem definidas
e n tre as q u a is te rá q u e esco lh er. P o r isso. q u a n d o u m a a c tiv id a d e
receb e u m a n o v a fach ad a raram en te se d á o caso de e s s a fa c h a d a ser
co isa n ova tam b ém .
U m a vez q u e o p ro b lem a d as fachadas ten de a .ser d e selecção e
n ã o d e c ria ç ã o , s e rá d e e s p e ra r a o c o rrê n c ia dc ru p tu ra s q u a n d o
aq u e le s q u e d e se m p e n h a m u m a d ad a ta re fa são o b rig a d o s a se le c ­
cio n a r para si p róprios u m a fach ad a co n v en ien te de e n tre u m a varie­
d ad e dc fachadas possíveis, co n sid erav elm en te d ife ren tes um as das
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 41

outras. A ssim , nas organ izaçõ es m ilitares, ap arecem c o n stan tem en te


tarefas q ue (se sen te que) re q u e re m d em asiad a au to rid ad e c co m p e­
tê n c ia p a ra se re m a sse g u ra d a s a c o b e rto da fa c h a d a dc u m a d a d a
categ o ria, m as q u e ao m esm o tem p o n ão p arecem im p licar a autori­
dad e n e m a c o m p etên cia su fic ie n te s p ara serem atrib u íd as a o grau
h ie rá rq u ic o im e d ia ta m e n te s u p e rio r. S e n d o as d ife re n ç a s e n tre os
postos de consid eráv el alcan ce, as tarefas ten d em freq u en tem en te a
parecer “d e im portância ex c e s s iv a ” ou de in su ficiente im portância.
U m ex e m p lo in teressan te d o s p ro b le m a s lev antados pela selecção
d a fa c h a d a m ais c o n v e n ie n te e n tre d iv e rsa s fa c h a d a s n ã o e x a c ta ­
m ente c o m p atív eis é o q ue h o je em d ia surge nas org an izaçõ es m édi­
cas am e ric a n as a respeito de d e c id ir a q u em c o m p ete ap lic a r a n este­
s ia s 15. E m certos hosp itais, as a n e ste sia s são ain d a ad m in istrad as por
e n ferm e iras a co b erto d a fa c h a d a que é co n sen tid o às e n ferm eiras
a s s u m ire m in d e p e n d e n te m e n te d a s ta re fa s q u e d e s e m p e n h e m
im p lican d o essa fach ad a u m a su b o rd in a ç ã o ritual aos m éd ico s e um
n ív e l de re m u n e ra ç õ e s r e la tiv a m e n te b a ix o . P o is b e m , a fim de
defin irem a a n estesia c o m o um a e sp e c ia lid a d e miSdica. alg u n s c lín i­
cos in teressad o s na q u estão têm a d v o g a d o v ig o ro sa m en te a id eia de
qu e a ad m in istra ç ã o de u m a a n e s te s ia é um a ta re fa suficien tem en te
im p o rtan te e co m p lex a p ara que se justifiq u e a atrib u iç ão aos que a
d esem p e n h a m d a im p o rtâ n c ia ritu al c fin a n c e ira c a ra c te rístic a d o s
m éd ico s. A d iferen ça en tre a fa c h a d a d e um a e n fe rm e ira c a fachada
d e um m é d ic o é g ran d e; m u ita s d as c o is a s que são a c e itá v e is e m
re la ç ã o às e n fe rm e ira s s e ria m c o n s id e ra d a s infra d ig n ita tem em
relação ao s m édicos. A ssim , h o u v e m éd ico s q u e p en saram q u e um a
e n f e r m e ir a e s ta r ia a b a ix o d a c a t e g o r i a r e q u e r id a p e lo a c to dc
a d m in istra r u m a anestesia, ao p asso que, de outro ponto de vista, os
m éd ic o s e stariam “acim a d a c a te g o ria "; se e x istisse u m a ca te g o ria
d e fin id a interm edia, alem d as e n fe rm e ira s c dos m édicos, talv ez se

15 Para uma abordagem «loba! do problema, ver Dan C. Lortic. “ Doctors without
Patients: T he Anesthesiologist, a New Medical Specialty" (tese dc M estrado inedita.
D epartm ent o f Sociology. U niversity o f C hicago 1950). V er tam bém dc Mark
M urphy, terccira parte. Perfil do Dr. R yvcnstine, “ A nesthesiologist", The. Wr-.v
Yorker. 25 dc Outubro. I dc N ovem bro c S dc Novembro dc 1947.
M Erving Goffman

torn asse m ais fácil so lu c io n a r o p ro b le m a 16. De m odo sem elh an te,


se as F o rças A rm ad as d o C a n a d á tivessem u m a p ate n te e n tre tenente
e cap itão , corn d uas estrelas e m eia em vez de d u a s ou três. o C o rp o
dc C ap itães D entistas, c u jo s m em b ro s são de o rig em é tn ic a h um ilde,
te ria m um p o sto que, ao s o lh o s d o s m ilitares, lhes co n v iria m elh o r
do q ue a q u ele, ‘‘e x c e ssiv o ” , de q ue actu alm en te gozam .
N ão p retendo su b lin h a r aqui o p o n to d e v ista de u m a o rg an ização
form al ou de u m a sociedade: o in d iv íd u o , en q u an to p e sso a que p o s­
sui um e q u ip a m e n to de sin ais lim itad o , pode tam bém p ro c ed e r a es-
coihas infelizes. A ssim , na co m u n id a d e de ag ricu lto res e stu d ad a pelo
a u to r do p resen te tra b a lh o , os an fitriõ es assin alavam com freq u ê n c ia
a visita dc um am ig o o ferecen d o -lh e um a b eb id a forte, um c o p o de
vinho, cerv eja caseira ou urna ch á v e n a de ch á. Q uanto m ais alta fo s­
se a co n d ição do visitante ou m ais ele v a d o o grau da atitude te m p o ­
rária da cerim ó n ia que m erecia, m ais p rovável se to m a v a q u e lho fo s­
se o ferecid a urna b eb id a de te o r alco ó lico p ró xim o ou id êntico ao da
p rim eira b e b id a d a lista. P o is bem . um d o s p ro b le m as desta escala do
e q u ip am en to de sin ais lig av a-se ao facto de alg u n s agricu lto res não
lerem m e io s p a ra o fe re c e r u m a b e b id a fo rte, pelo q u e a o fe rta de
vin h o era o gesto d e cortesia m áxim a a o seu alcance. M ais co m u m ,
porém , talv ez fosse a d ificu ld ad e associada à circ u n stâ n cia de c e ito s
visitan tes, d evido à su a p o sição p erm an en te ou tem porária, p o r altura
da visita, c o n su m ire m p rim e iro u m a b e b id a c o rre sp o n d e n te a um a
calegO ria su p e rio r ít sua c. d ep o is, o u tra b e b id a, c o rre sp o n d e n d o a
u m a ca te g o ria inferior. C o rria-se assim freq u en tem en te o risco d c o
visitante se sen tir um tan to o fendido ou de. na altern ativ a, o anfitrião
ach ar q ue e sta v a a g erir p erd u lariam en te um equ ip am en to de sinais
d isp en d io so e lim itado. N o q uadro d a classe m édia d á -se u m a situ a­
ção sem elh an te q u an d o u m a d ona de c a sa tem d e d e cid ir sc p o rá ou

lf? Hm certos hospitais, os internos e os alunos de Medicina desem penham tareias


"acim a da categoria” de uma enferm eira e. "abaixo da categoria” de um médico.
Prcsume-sc que essas tarefas não exigem p a n d e experiencia ou formação prática
prolongada, porque embora este estatuto intermedio dos médicos-em formação sc
encontre a título permanente nos hospitais, todos os im plicados o possuem apenas
temporariamente.
A Apresentação do F.u na Vida dc Todos os Dias 43

n ão n a m e sa os ta lh e re s d c p r a ta , o u se .será m e lh o r v e s tir o seu


m e lh o r vestido de passeio ou o sen v estid o de n o ite m enos b rilh an te.
Já .sugeri antes que a fach ad a so c ia l p o d e ser dividida cm c o m p o ­
nen te s trad icio n ais, tais co m o q u ad ro , ap arên cia e m o d o s, e q u e (um a
v ez q u e d iferen tes práticas de ro tin a podem co rresp o n d er a um a m es­
m a fac h a d a ) não d esco b rim o s u m a c o in cid en cia p erfeita en tre o c a ­
rác te r c o n c re to d c um d e se m p e n h o e a m a n e ira co m o , em term os
so ciais globais, ele se n o s ap re se n ta . C o n sid erados em co n junto, e s­
tes dois ta c to s lev am -n o s a re c o n h e c e r n ã o só q u e os a sp ecto s d e fa ­
ch a d a social de um papel d e ro tin a co n creta não surgem ap e n as nas
fachad as so ciais de u m a g am a g lo b al de práticas de rotina, m as ta m ­
bém q u e a g am a co m p leta de p rá tic a s de ro tin a em que desco b rim o s
um elem en to de c e rto e q u ip a m e n to de sinais p o d e rá d ife rir d o c o n ­
ju n to de práticas de ro tin a em q u e d esco b rirem o s um o u tro e lem e n to
da m esm a fach ad a social. D este m o d o , um a d v o g ad o poderá c o n v e r­
sa r co m u m cliente num q u ad ro so cial que u tiliza ap en as p ara esse
fim (ou c o m o escritó rio ), m as o fa to que ac h a con v en ien te v estir e m
tais o casiõ es p oderá ser tam b ém usado, com a m esm a con v en iên cia,
d u ran te u m ja n ta r co m c o le g a s o u num a ida a o teatro com a m ulher.
D e m an eira análoga, as gravuras q u e o ad v o g ad o tem nas p aredes do
escritó rio ou os tap etes q ue c o b re m o ch ão são id ên tico s aos q u e p o ­
d erem o s a ch ar no esp a ç o d e u m a c a sa de fam ília. Sem d ú v id a, ein
o casiõ es de g rande cerim ó n ia, o q u a d ro , o s m odos e a ap arên cia p o ­
d em ser único s e co n creto s, sen d o u sad o s a p en as no d esem p en h o de
um tipo ex c lu siv o de rotina, m as esta utilização ex clu siv a do e q u ip a ­
m ento de sinais co rresp o n d e m ais à e x cep ção do que à regra.

R e a li z i iç ã o D n a n á ! ¡c a

Q u an d o se e n c o n tra ria p re se n ç a d o s o u tro s, o ind iv íd u o rech eia


d e m o d o característico a su a a c tiv id a d e co m sin ais que p õem em e v i­
d ên c ia e co n fig u ram facto s c o n firm a to rio s q ue d e o u tro m odo p e r­
m an eceriam ig n o rad o s ou o b scu ro s. P o rq u e, p ara que a a ctiv id ad e
d o in d iv íd u o se to rn e s ig n ific a tiv a para os o u tro s, ele terá de m o b ili­
zar a su a activ id ad e de m odo a q u e esta ex p re sse durante a inierac-
44 Ervi iig Goffman

cão a q u ilo q ue e le p re te n d e tran sm itir. D e facto , o a c to r pode se r


o b rig ad o n ão só a e x p rim ir as cap acid ad es q u e a firm a d u ran te a inte­
racção , co m o a fazê-lo n u m a fracção de seg undo d a in teracção em
curso. A ssim , se um árb itro dc baseball q u iser d a r a im p ressão de
q u e n ã o te m d ú v id a s a c e rc a d o seu ju íz o , p re c isa rá de “ s a lta r” o
instan te de reflexão q u e o p o d e ria to m a r c e rto d esse juízo; terá de
ex ib ir um a d e c isã o in stan tân ea dc tal m an eira que os e sp ec ta d o res
fiquem certos d e q ue e le está ce rto d o seu ju íz o 1
D e v e m o s n o ta r aq u i q u e , no c a so de c e rta s situ a ç õ e s so c ia is, a
d ra m a tiz a çã o n ão p õe p ro b lem as, um a vez q ue alguns d o s a cto s q u e
são in stru m e n ta l m e n te e s s e n c ia is p a ra a re a liz a ç ã o d o n ú c le o da
ta re fa c o rre s p o n d e n te à situ a ç ã o em c a u sa se m o stra m a o m e sm o
tem p o m arav ilh o sam en te ad ap tad o s, do ponto de vista d a c o m u n ic a ­
ção, en q u an to m eios de tran sm issão v iv a d as q u alid ad es e atrib u to s
rec la m a d o s pelo actor. O s p apéis dos lutadores, dos c iru rg iõ es, dos
v io lin istas e d o s p o lícias são ex em p lo s do q ue d izem o s. A s a c tiv i­
d a d e s q u e lh e s c o rre s p o n d e m p e rm ite m u m a a u to -e x p re s s ã o tão
d ra m á tic a q ue o s p ro fissio n a is ex em p lares — reais ou fa lso s, pouco
im p o rta — se to rn a m c é le b re s e re c e b e m u m lu g a r e s p e c ia l n a s
fan ta sia s c o m e rc ia lm en te o rg an izad as da nação.
Ern n u m ero so s caso s, to d av ia, a d ram atização p o r a lg u é m do seu
próprio d e se m p e n h o p o d e co n stitu ir problem a. P o d e re m o s c ita r c o ­
mo ex e m p lo o e stu d o re a liz a d o num h o sp ital e q u e m o stra c o m o o
pesso al de e n fe rm a g em d o s serv iço s clín ico s se co n fro n ta co m um
p ro b le m a q ue n ão se c o lo c a a o pessoal d e en ferm ag em dos serviços
d e ciru rg ia:

A s coisas q ue u m a e n fe rm e ira faz com os p acien tes no p ó s-o p e ­


ra tó rio de u m a u n id a d e d e c iru rg ia são co m fre q u ê n c ia v isiv e l­
m ente im p o rtan tes, até m esm o para os p acien tes m ais estra n h o s ao
rncio hospitalar. P o r ex em p lo , o p acien te vê a e n fe rm e ira que se
o c u p a d e le m u d a r p e n so s, c o lo c a r c o rre c ta m e n te os a p a re lh o s
o rto p é d ic o s , e c o m p re e n d e q u e e ssa s a c ç õ e s têm d e te rm in a d o s

’ V er Babe P in e llí, segundo Joe King. Mr. Uinp, Wcstmiri^icr P re s s , F ila d é lfia .
1953, p. 75.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dins 45

o b jectiv o s. P o r isso, m e sm o q u e a e n fe rm e ira não possa estar ao


seu lad o em d ado m o m en to , o p a c ie n te re sp eita rá a razão de ser
das activ id ad es q ue a retêm .

O trab alh o das e n fe rm e iras d o s serv iço s clín ico s é tam b é m a lta ­
m ente q u a lific a d o ... O d ia g n ó stic o d o m edico tem que fic a r su jei­
to a u m a e sc ru p u lo sa o b s e rv a ç ã o d o s sin to m a s à m e d id a que o
tem po vai passando, ao p a sso q u e o diag n ó stico do cirurgião d e ­
pende m uito m ais de coisas v isív eis. A falta de v isib ilid a d e c ria
pro b lem as clínicos. O p a c ie n te vê a sua en ferm eira p a ra r na ca m a
vizinha e co n v ersar d u ran te u m ou d o is m inutos c o m o paciente
que a ocupa. N ão sabe que e la está a o b se rv ar a p ro fu n d id ad e da
resp iração e a c o r e to n a lid a d e da p ele d o outro paciente. Pensa
q u e e stá sim p lesm en te a fa z e r-lh e u m a visita. In felizm en te, a m es­
m a c o isa pode p en sar a fam ília d o p acien te que, n essa b ase, d e c i­
dirá q u e as e n ferm e iras não s ã o de g rande c o m p etê n cia. S e a e n ­
ferm eira d em o rar m ais te m p o ju n to a u m a cam a v izin h a d o que
ju n to à su a, o p acien te p o d e rá , co m efeito , sentir-se ig n o ra d o ...
A s enferm eiras e stã o lia p e rd e r te m p o " a m enos que se p re c ip i­
tem de um lado para o o u tro o c u p a d a s c o m coisas ta n g ív eis com o.
p o r ex em p lo , ap lic a r in je c ç õ e s 1S.

D e m o d o se m e lh a n te , o p ro p rie tá rio de um e s ta b e le c im e n to de
p restação de serviços p o d e a c h a r difícil d ram atizar aq u ilo q u e real­
m en te está a ser feito p ara o p ú b lico , p o is os m em bros deste não são
capazes de “ver” as im posições g lobais do serviço que está a ser pres­
tado. Os donos das agências fu n erarias têm assim que p edir m uito pelo
seu pro d u to bem visível — u m c a ix o te q u e foi tran sfo rm ad o n um a
um a — p orque m uitos dos o u tro s en carg o s relativos à organização de
um funeral não se p restam tanto a um a dram atização ta n g ív e l19. O s

1 ^ Kdith Lente. “A Comparison of Medical and Surgical Floors", policopiado. New


York Stale School of Industrial and la b o u r Relations. Cornell University. 1954. pp. 2-3.
19 Os materiais relativos agências funerárias utilizados por este estudo sao extraídos
de Roben \V. Habenstein, “The A merican Funeral Director", dissertação de Ph. D.
inédita. Department of Sociology. U niversity o f Chicago. 1954. Tenho urna grande
dívida para corn a análise do funeral como desempenho elaborada por Habenstein.
46 Ervins Goffman

c o m e rc ia n te s , de ig u a l m a n e ira , p e n s a m q u e d e v e m c a rre g a r nos


preço s das c o isa s q ue se afig u ram in trin secam en te d isp e n d io sa s de
m odo a co m p en sarem o seu e sta b e le c im en to dos g asto s co m outras
coisas caras, co m o os seguros, os perío d o s de q u ebra das vendas, etc.,
que não ap arecem aos olhos dos fregueses.
O p ro b lem a da d ram atização do trab alh o que alguém faz im plica
se m p re a lg o m a is d o q u e to rn a r v isív e l os e n c a rg o s in v isív e is. C)
trab alh o q ue tem de. ser feito pelos que o cu p am certa posição é por
vezes Ião mal estru tu rad o en q u an to ex p ressão de um sen tid o in ten ­
cional, que se aquele q ue é incum bido da tarefa qu iser d ram atizar o
se u p ap el, p re c isa rá d e a p lic a r n esse p ro p ó sito u m a q u a n tid a d e de
en erg ia considerável, ti essa actividade d e sv ia d a p aia a com unicação
e x ig irá m u ita s v ezes a trib u to s d ife re n te s d a q u e le s q u e e s tã o a se r
d ra m a tiz a d o s. A ssim , p ara m o b ila r a su a c a sa d e m o d o a su g erir
dignidade e sim plicidade, o proprietário p o d erá ter que c o rre r de leilão
cm leilão, reg atear com a n tiq u ário s e e sq u a d rin h ar m in u cio sam en te
todas as lojas da região à p ro cu ra d e p ap el de p ared e e de cortinas
adeq u ad o s. P ara a p resen tar u m a em issão rad io fó n ica q u e soe co m o
um a co n v ersa auten ticam en te inform al, esp o n tânea e descontraída, o
lo c u to r lerá p o r v e z e s de c o n s tru ir o seu script co m um a a ten çã o
escrupulosa, verificando frase atrás de frase, de m odo a co n seg u ir o
efeito q ue su g ira o conteú d o , o vocabulário, o ritm o e a flu ê n cia de
linguagem de todos os dias20. Igualm ente, um m odelo da Vogue, pela
roupa q u e veste, pela p o stu ra e p ela exp ressão facial que apresenta,
p o d erá fig u ra r su g estiv am en te urna co m p re e n sã o bem in fo rm ad a do
liv ro q u e tem na m ão; m as a v erd ad e 6 q u e as p e sso as que têm de
fazer o esfo rço de se m ostrar tão ex pressivas ficam com m uito pouco
tem p o p ara ler. C o n fo rm e in d ic a S artre: ‘Ö a lu n o a te n to que q u e r
estar atento, co m os olhos cravados n o professor, co m os ouvidos bem
aleita, cansa-se tanto a desem p en h ar o papel de aluno atento que acaba
por n ão o u v ir coisa nenhum a.” 21 P or isso, é frequente que os indiví­
duos se d ebatam no d ile m a en tre a exp ressão e a acção. O s que têm o

- John Hilton. “Calculated Spontaneity". Oxford Hook o f English Talk. Oxford.


Clarendon Press. 1953. pp. 399-404.
- 1 Sartre, op. cit.. p. 60.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 47

tem p o e o talento necessários p a ra d esem p en h ar bem certa actividade


po d em , por isso m esm o, não ler lem p o ou talento para ex p rim irem que
a estão a desem penhar bem . C e rta s o rganizações resolvem este d ilem a
d e le g a n d o o fic ia lm e n te a f u n ç ã o d ra m á tic a n u m e s p e c ia lis ta q u e
em preg ará o seu tem po na ex p ressão d o sentido d a tarefa sem perder
realm ente tem po com esta últim a.
S e m o d ificarm o s p o r m o m e n to s o n o sso q u a d ro de re fe rê n c ia c
nos v irarm o s dc urn d e se m p e n h o p articu lar para os in d iv íd u o s que o
m an ifestam , d esco b rirem o s um fa c to in teressan te a c e rc a d a su ce ssã o
d as d ife re n te s p rá tic a s de ro tin a q u e q u a lq u e r g ru p o ou c la sse de
in d iv íd u o s aju d a a d esem p en h ar. Q u an d o ex am in am o s u m g ru p o ou
c la s s e , v e m o s q u e o s s e u s m e m b ro s te n d e m a in v e s tir p r io r ita ­
riam en te os seus egos em c ertas p rá tic a s de rotina, in sistin d o m en o s
n o u tra s d e cu jo d e s e m p e n h o ig u a lm e n te se in c u m b e m . A s s im , o
m em b ro de um a p ro fissão liberal p o d erá g o sta r de a ssu m ir um papel
ex tre m a m e n te m odesto n a rua. n u m a loja, o u cm casa. m as. na esfera
so c ia l q u e inclui a su a d e m o n s tra ç ã o de c o m p e tê n c ia p ro fissio n a l,
preo c u p a r-se-á em m a n te r um n ív e l efic a z de ex ib ição . A o m o b iliza r
o seu co m p o rtam en to c m v ista d e s s a d em o n stração , p reo c u p ar-se-á
n ã o tanto com n seq u en cia c o m p le ta d as d iferen tes práticas d e ro tin a
que d esem penha, m as ap enas c o m aqu ela n a q u al asse n ta o seu bom
n om e p ro fissional. Foi b a se a n d o -sc neste, asp ecto q u e certos au to re s
q u ise ra m d istin g u ir os g ru p o s c o m hábitos aristo c rá tico s (seja q u al
fo r a p o sição social que o cu p em ) dos g ru p o s c a rac terístic o s d a classe
m e d ia . O s h á b ito s a r is to c r á tic o s , c o n f o r m e sc te m d ito . c a r a c ­
terizam -se pelo in v estim en to de to d a s as a ctiv id ad es secu n d árias da
ex istê n c ia q ue saem do âm b ito d a s activ id ad es sérias d as ou tras c la s­
ses, in troduzindo n elas um a e x p re ssã o de d ig n id ad e, p o d er e su p e ­
rio rid ad e de condição.

P o r m eio d e q ue realizaçõ es im p o rtan tes é o jo v e m no b re e n si­


nado a m anter a d ig n id ad e d a su a co n d ição c a to m a r-se m e rece­
d o r de um a su p erio rid ad e p e ra n te os seu s co n cid ad ão s, co m o ri­
g em no v alo r d o s seu s a n te p a ssa d o s? S erá p o r m eio do saber, p o r
m eio d a d ilig ên cia, p o r m eio d a p aciên cia, p o r m eio do e sp irito dc
sa c rific io ou p o r rncio de u m a v irtu d e de o u tra e sp é c ie ? C orno
4K Erving Coffman

to d as as su as p alav ras, c o m o io d o s os seus g e sto s são m o tivos dc


aten ção , e ie ap ren d e a c o n sid e ra r h ab itu alm en te to d o s os aspectos
d o co m p o rtam en to co m u m , e aplica-se no c u m p rim e n to d c todas
as p e q u en as o b rig açõ es q u e o aco m p an h am do m odo m ais rig o ­
ro sa m e n te c o n v e n ie n te . C o m o tem c o n sc iê n c ia d c se r in te n sa ­
m en te o b serv ad o c d o fa c to de m uita g en te e s ta r p ronta a sa tisfa ­
z e r tod as as suas in clin açõ es, ag e. nas o p o rtu n id ad es m ais in d ife­
re n te s. c o m a lib e rd a d e e a e le v a ç ã o q ue tal id e ia n a tu ralm en te
in sp ira. O seu ar. as su as m a n e ira s, a su a atitu d e, a ssin alam c o n ­
ju n ta m e n te esse se n tim e n to eleg an te e d o n airo so d e su p erioridade
d ific ilm e n te a lcan çáv el p elos que nasceram n um a co n d iç ão m enos
subida. P o r m eio desta arte co n ta p o rtan to to rn a r as p essoas m ais
facilm en te o b ed ien tes à su a au to rid ad e e g o v e rn a r as inclinações
d a re sta n te g e n te s e g u n d o o q ue m ais lhe a p raz : e n este ponto
raram en te se sen tirá d esap o n tad o . A su a arte, a p o ian d o -se no seu
esta tu to e n o to ried ad e, é f em circ u n stâ n c ias hab itu ais, su ficien te
p ara lhe g a ra n tir o g o v e rn o d o m u n d o .22

C aso estes v irtu o so s d o d e se m p e n h o d ra m a tizad o efe c tiv a m e n te


e x is ta m , s e rã o u m g ru p o d e m o ld e a o f e re c e r-n o s u m e x c e le n te
c am p o de in v estig ação d a s té c n ic a s p o r m eio das q u a is a acção se
tra n slo rrn a em esp ectácu lo .

- - Adam Smith. The Theory o f M orai Sentiments, lleno.1 B ohn. Londres, 18.53.
p. 75.
A Apresentação do llu na Vida dc To-dos os Dias 49

Ideal ização

S u g eri atrás que o d esem p en h o de u m a p rá tic a de rotina ap résen la,


p o r m eio da fachada, c ertas p reten sõ es b astan te a b stractas q u an to à
a u d iên cia, pretensões que p ro v a v e lm e n te se rã o ex p o stas ao lo n g o do
d e se m p e n h o de outras p ráticas de rotina. T rata-se dc urn d o s m odos
a trav é s d o s quais um d e se m p e n h o é “so c ia liz a d o ” , m o ld ad o e m o ­
d ific a d o d e m an eira a a d a p ta r-s e à in te rp re ta çã o e ex p e c ta tiv a s da
s o c ie d a d e em que se a p re se n ta . Q u e ro c o n sid e ra r a g o ra u m o u tro
a sp e c to im p o rtan te d e ste p ro c e s s o de so c ia liz a ção — a te n d ê n c ia
d o s a c to re s p a ra p ro p o rc io n a re m a o s se u s e s p e c ta d o re s u m a
im p re ssã o a d iversos títu lo s id ealizad a.
A id eia seg u n d o a qual um d e se m p e n n h o a p resen ta u m a im agem
id ea liz a d a d a situação é, sem d ú v id a , b astan te corrente. () ponto dc
v ista de C o o ley pode serv ir-n o s a q u i d c ex em p lo :

S e n u n c a te n tá s s e m o s p a r e c e r u m p o u c o m e lh o re s d o q u e
so m o s, corn o seríam o s ca p a z es de nos to rn a r d e facto m elh o res ou
d e ‘‘a p re n d e r de fo ra para d e n tro " ? E o m e sm o im p u lso no sen tid o
d c m o stra rm o s ao m u n d o a p a rê n c ia m e lh o ra d a ou id ealizad a de
n ó s p ró p rio s surge co m u m a e x p re s s ã o o rg a n iz a d a nas d iv e rsa s
c la sse s e p rofissões, le n d o c a d a u m a d elas a té certo p o n to u m a gí­
ria ou postura p róprias, q ue os se u s m em b ro s ad o p tam , o m ais das
v ezes, in co n scien tem en te, m as c u jo efeito se a sse m e lh a ao de um a
co n sp ira ç ã o d estin ad a a in d u z ir a c re d u lid a d e do resto do m undo.
H á u m a g íria não só d a te o lo g ia e d a filan tro pia, m as tam b ém do
d ir e ito , d a m e d ic in a , d o e n s in o e a té — ou s o b r e tu d o — da
c iê n c ia de hoje cm dia. u m a v e z q ue q u an to m ais <5 re co n h ecid a e
ad m ira d a um a certa fo rm a de m érito , m ais p rovável c q u e p esso as
in d ig n as dele tcnlcm u tiliz á -la .23

A ssim , q u a n d o o in d iv íd u o se a p re s e n ta p e ra n te o u tro s, o seu d e ­


se m p e n h o te n d e rá a in te g ra r e a ilu s tra r os v a lo re s o fic ia lm e n te

— C harles H. Cooley. Human N ature a n d the Socio! O rder. S crib n c r's. N ova
Iorque, 1922. pp. 352-53.
50 Hrving Coffman

rec o n h e c id o s pola so c ie d a d e , m ais aló, com efe ito , d o que o faz o


seu c o m p o rta m e n to glo b al.
N a m ed id a em q u e um d esem p en h o p õ e em e v id ê n c ia os valores
o ficiais co m u n s d a so cied ad e em que o co rre, pod em o s co n sid erá-lo ,
à m an eira de D u rk h eim e R ad cliffe-B ro w n , corno u m a c erim o n ia —
co m o um re ju v e n e sc im en to c reafirm ação e x p re ssiv o s d o s v alo res
m o rais da c o m u n id ad e. A lém disso , na m ed id a e m q u e a ten d ên cia
e x p re ssiv a d o s d e se m p e n h o s seja a d m itid a co m o re a lid a d e , en tão ,
aq u ilo q u e n esse m o m en to é a d m itid o c o m o rea lid a d e a ssu m irá al­
g u m as das ca ra c terístic a s de u m a celeb ração . F ic a r no q u a rto longe
do lu g ar onde é d a d a a festa, ou longe d o lu g ar o n d e um profissional
aten d e o clien te, é ficar longe d o lu g ar o n d e a rea lid ad e está a ser
d esem p e n h a d a . A v erd ad e é q u e o m u n d o é um a reu n ião .
U m a d as fon tes de d ad o s m ais ricas no q u e se re fe re à apresen ta­
ç ã o dc d e se m p e n h o s id e a liz a d o s 6 a lite ra tu ra so b re a m o b ilid ad e
social. N a m aio r p aite das sociedades, p arece ex istir um sistem a de
e s tra tific a ç ã o p rin c ip a l ou g o b al, e na m a io r p a ite d a s so cied ad es
estratificad as m anifesta-se u m a id ealização d as c a m ad as superiores e
u m a a sp ira ç ã o p o r p a rte d o s q ue o c u p a m lu g a re s m ais b a ix o s ao
acesso a posições de superioridade. (D ev em o s ler o c u id ad o de co m ­
preen d er que isto im p lica não só o d esejo de um lu gar d e prestígio,
m as tam bém o d esejo de um lu g ar q ue se situa perío do cen tro sa ­
grado dos valores com u n s de u m a so ciedade.) H ab itu alm en te verifi­
c a m o s que a m o b ilid ad e asc e n d e n te im p lica a a p re se n ta çã o de d e ­
sem penhos ad equados e que os esforços d estinados a ascender, com o
os esfo rç o s d e stin a d o s a e v ita r descer, se e x p re ssa m c m te rm o s de
s a c rifíc io s fe ito s em v ista da c o n s e rv a ç ã o d a fa c h a d a . D e p o is de
o btido o equipam ento de sinais adequado e de adquirida tam bém a fa­
m iliaridade com ele, esse eq u ip am en to p assa a p o d er se r usado para
e m b e le z ar e realçar, seg u n d o u m estilo social favorável, os d e se m p e­
nh o s q u o tid ian os d o indivíduo. T aívez o elem en to m ais im portante do
e q u ip a m e n to dc sinais asso ciad o à classe social c o n sista nos sím bolos
de p o sição através dos quais se expressa a riq u eza m aterial. Sob este
asp ecto a so cied ad e a m erican a é sem elh an te ã s o u tra s, m as parece
d e s ta e a r - s c c o m o e x e m p lo e x tr e m o d c u m a e s tr u tu r a de c la s s e
o rien tad a p ara a riqueza — tal vez p o r se en co n trarem m uito am pla-
A Apresentação do Hu nu Vida dc Todos os Dias 51

m e n te d is trib u id a s na A m e ric a a p e rm is s ã o d e u s a r sím b o lo s dc


riq u eza e a respectiva cap acid ad e financeira. A sociedade indiana, por
outro lado, é p o r vezcs citad a n ã o so com o u m caso e m que a m o­
b ilidad e se verifica em term os de c a sta s e não de individuos, m as tam ­
bém co m o um a sociedade na qual os desem penhos tendero a veicular
afirm açõ es em favor de valores d e o rdem não m aterial. U m a recente
investigação sobre a índia sugere, p o r ex em p lo , o seguinte:

O sistem a de castas e stá m u ito lo n g e d e ser um siste m a rígido


n o qual a p o sição d e ca d a e le m e n to se en co n tre d e fin itiv am e n te
Fixada. F o i sem p re possível o m o v im en to , so b retu d o nas reg iõ e s
in term ed ian de h ierarq u ia. N o e sp aço d e u m a g e ra ç ã o ou du as.
u m a ca sta in ferio r tin h a a p o ssib ilid a d e d c a sc e n d e r a um a posição
su p e rio r n a h ierarq u ia p o r m e io da ad o p ção do v eg etarian ism o e
d a a b s tin ê n c ia a lc o ó lic a e da s a n s c ritic iz a ç ã o d o s seu s rito s e
deuses. Hm sum a, adoptava, na m edida do possível, os co stu m es,
ritos e c re n ç a s d o s b râm an es e. c o m efeito, a a d o p ção do m odo de
v iv e r d o s b râ m a n e s, p o r p a rte d e u m a c a s ta in ferio r, p a re c e te r
sid o um fen ó m en o frequente, e m b o ra teo ricam en te p ro ib id o ...
A te n d ê n c ia das castas in fe rio re s p ara im itarem as su p e rio re s
fo i um fa c to r de peso na d ifu s ã o d o s ritos e c o stu m es sán scrito s c
n a realização d e um certo grau de u n ifo rm id ad e cu ltu ral, n ã o a p e ­
nas seg u n d o a e sc a la das c a sta s, m as em todas as d im e n sõ e s da
ín d ia .24

D e la c to . sem dú v id a, e x iste m n u m ero so s círcu lo s h in d u s cu jo s


m em b ro s se ach am altam en te in te re ssa d o s na in tro d u ção de ex p res­
sõ e s de riq u e z a , luxo e p o siç õ e s d e c la sse n o d e se m p e n h o d a sua
v id a d o d ia-a-d ia e q u e pouco se p re o c u p a m , en tretanto, co m a p u re­
za ascética, q ue não se dão se q u e r ao trab alh o de sim ular. D c m a­
n e ira co rre sp o n d e n te , houve se m p re g ru p o s in flu en tes na A m e ric a
c u jo s rn em b ro s p e n sa m q ue em c e rto s a sp e c to s q u a lq u e r d e s e m ­
pen h o d ev e p ô r de parte a e x p re ssã o cru a da riq ueza, p ro c u ra n d o a s-

“ ^ M. N. Srinivas. Religion and Society Am ong the Coorgs o f South India. Oxford
U niversity Press. Oxford. 1952, p. 30.
52 Erving Goffman

se g u ra r o triunfo de u m a im p ressão seg u n d o a qual o s crité rio s que


p rev alecem são o s d o n ascim en to , d a c u ltu ra ou d a rectidão m oral.
T a lv e z d e v id o à o r ie n ta ç ã o a s c e n d e n te q u e e n c o n tr a m o s nas
p rin c ip a is so cied ad es a ctu ais, te n d e m o s a p e n sa r q u e a in sistê n cia
e x p re ssiv a n um d e sem p en h o re c la m a n e cessariam en te p a ra o acto r
u m a p o sição de classe su p e rio r àq u ela que de o u tro m odo lhe seria
im p u tad a. P o r ex em p lo , n ad a tem de su rp reen d en te para nós a d e s­
c o b e r ta d o s s e g u in te s d a d o s r e la tiv o s a c e rto s d e s e m p e n h o s d e
âm b ito d o m éstico d o p assad o escocês:

U m a co isa á indu b itáv el: o laird (p ro p rietário de terras) m édio e


a sua fa m ília viv iam m u itíssim o m ais fru g a lm e n te no d ia -a -d ia do
que q u an d o receb iam . S ab iam pôr-se à a ltu ra de u m a g ran d e oca­
sião q u an d o tinham v isitas e se rv ia m en tão prato s q u e ev ocavam
os b an q u etes d a n o b re z a m edieval; m as, c o m o esse s n o b res d e ou-
tro ra, entre as lestas, “g u ard av am o seg red o d a c a s a '\ co m o co stu ­
m av a dizer-se, e viviam a lim e n ta n d o -se c o m ex trem a sim p licid a­
de. O seg red o era bem gu ard ad o . A té m esm o E d w a rd B urt, ap esar
de lodo o co n h e c im e n to dc q u e d isp u n h a a c e rc a do s H ig h lan d ers,
achava m uito difícil d e sc re v e r as suas refeiçõ es dc todos os dias.
T udo o q ue d e p reciso p o d ia d iz e r e ra que, sem p re q u e recebiam
u m ingles, a c o m id a ap arecia em q u an tid ad es e x ce ssiv a s; “c ’\ c o ­
m en tav a B u rl, “ d iz-se m u itas vezes q u e p referiam e sp o lia r os seus
ren d eiro s a p erm itirem um m au ju íz o so b re a su a casa; m as. ouvi-
-o ta m b é m de m u ita s p e sso a s que eles e m p r e g a ra m ..., e m b o ra
fossem se rv id o s à m e sa de ja n ta r por cin co ou seis c riad o s, ap esar
d e to d o e s s e a p a r a t o , c o m ia m m u ita s v e z e s , n a s r e s ta n te s
o c a s iõ e s , flo c o s d e a v e ia c o z in h a d o s de d if e r e n te s m a n e ira s ,
aren q u e salg ad o ou q u a lq u e r o u iro p rato v u lg a r e p o u co d isp e n ­
d io so " .2-''

N a re a lid a d e , se ja co rn o for, há m u ito s g ru p o s dc p e sso a s co m


n u m e ro sa s e d iv e rsa s ra z õ e s p a ra a d o p ta re m u m a atitu d e de m o-

M arjorie Plant. The D om estic L ife in Sco tla n d in the E igh teen th C entury.
Edinburgh University Prc:ss. Edimburgo. 1952. pp. 96-97.
A Apresentação do Liu na Vida dc Todos os Dias 53

d é stia s iste m á tic a e p ara d e s p re z a re m q u a is q u e r e x p re ssõ e s d e ri­


queza. cap acid ad e, fo rç a esp iritu al ou a m o r p róprio.
O s m odos indolentes, pesados d e ignorân cia c ch eio s de desp reo ­
cupação que o s negros do Sul dos E sta d o s U nidos se sentem por vezes
ob rig ad o s a afectar na su a in teracção co m os brancos ilustra a m anei­
ra co m o urn d esem p en h o pode e x ib ir v alores id eais que im putam ao
actor u m a posição inferior àquela q u e, no íntim o, ele adm ite com o sen­
do a sua. C item os u m a versão m o d ern a de u m a encenação sem elhante:

O n d e se v erifica u m a c o m p e tiç ã o e fe c tiv a acim a dos n ív eis não


q u a lific a d o s p a ra e m p re g o s h a b itu a lm e n te c o n s id e ra d o s “ p a ra
b ra n c o s” , c e rto s n eg ro s o p ta rã o p o r si p ró p rio s por a c eitar sím ­
b o lo s de p o siç ã o social in fe rio r em b o ra d e sem p e n h em ta re fa s a
q u e co rre sp o n d e u m a co tação m a is alta. A ssim , o e n c a rre g a d o da
ex p e d iç ã o de um escritório a c e ita rá o títu lo e salário dc um m oço
d e re c a d o s ; u m a e n f e r m e ir a c o n s e n tir á c m s e r tr a ta d a c o m o
e m p re g a d a d o m éstica; a p ed ic u ra e n tra rá nas casas dos bran co s à
n oite e p ela p orta d as traseiras.26

A s e s tu d a n te s u n iv e rsitá ria s a m e ric a n a s p u n h am , e sem d ú v id a


c o n tin u a m a in d a a pôr. de p a rte a s u a in te lig ê n c ia , c a p a c id a d e c
determ in ação quan d o estavam na p resen ça dos nam o rad o s, m a n ife s­
ta n d o a ssim u m a d iscip lin a p síq u ic a p ro fu n d a a p e sa r d a sua re p u ta­
ç ã o in tern acio n al de le v ia n d a d e 27. F.stas a c triz es p e rm ite m q u e os
nam o rad o s as a b o rreçam e x p lic a n d o -lh e s c o isa s q u e elas j á sabem
p e rfe ita m e n te : e sc o n d c m a su a p re p a ra ç ã o m a te m á tic a p e ra n te os
con so rtes m enos p rep arad o s do q u e elas; perdem jo g o s de p in g u e-
-p o n g u e d e propósito, nos lances Finais:

U m a d as técnicas mais refin ad as c o n siste cm e sc re v e r m al de


quan d o em v ez certas p alavras m ais co m p rid as. O m eu n am o ra d o

Charles Jplinson, Patterns o f Negro Segregation. Harper Bros.. Nova Iorque.


1943. p. 273
M imi Komarovsky, "'Cultural Concraditions and Sex Roles". A m erican Journal
o f Sociology. LII. pp. 186-88.
1

54 F.rving Gofíman

ach a m uita g raça c esc re v e -m e na resp o sta: “ Q u erid a, n ã o deves


ter m e sm o ap re n d id o a e sc re v e r."25

A tra vós de todos estes m eios, fica dem o n strada a superioridade natu­
ral do sexo m asculino e é afirm ado o papel subalterno do sexo fem inino.
A nalo g am en te, os h ab itan tes d a ilha das S hetland d isse ra m -m e que
os seu s avós co stu m av am abster-se de m elh o rar a a p a rê n c ia das suas
casas de cam p o n eses para q u e o laird não p en sasse que e sse s m elho­
ram en to s eram sinal de q u e eles estav am em condições dc p a g a r um a
ren d a m ais alta p e la s terras. E sta tradição co n h eceu u m ce rto retorno,
um pou co çin ligação co m as exib içõ es de p o b reza por vezes repre­
sentadas peran te a assistên cia social local. M ais im p o rtan te ainda: há
hoje em dia hom en s d a ilha que ab an d o n aram há m uito a agricultura
de subsistência e os estritos critérios de um trabalho interm inável, com
o seu d esco n fo rto d e toda a esp écie e a su a dieta d e p eix e e batatas,
q u in h ã o tra d ic io n a l d o s ilh éu s; co n tu d o , o s m esm o s h o m e n s usam
fre q u en tem en te em p ú b lico a ja q u e ta de là e os botins d e b o rrac h a
q u e são sím b o lo s visíveis da co n d ição d e agricultor. A p resen tam -se
assim perante a co m u n id ad e c o m o p essoas que, à m argem de tudo, se
co n serv am leais à co n d ição dos seus co m p an h eiro s de ilha. Trata-se
de u m papel d e ro tin a que rep resen tam co m sin c erid ad e , c a lo ro sa ­
m ente, serv in d o -se d o d ialecto ap ro p riad o e d an d o m ostras d e grande
d e te rm in a ç ã o . P o rém , no refú g io d as c o z in h a s d e su as c a sa s, e sta
le a ld a d e a fro u x a e os m esm o s h o m en s p e rm item -se fru ir de c ertas
co m o d id ad es m odernas a q u e se foram en tretanto habituando.
O m e sm o g é n e ro de id ealização n e g a tiv a era freq u en te, sem d ú ­
vida. d u ra n te o p e río d o de d ep ressão nos E stad o s U nidos, q u a n d o as
co n d iç õ e s de p riv ação de u m a fam ília e ra m p o r vezes sub lin h ad as
pelo s s e u s m e m b ro s d ia n te d o s p ro fissio n a is d a a ss is tê n c ia , in d i­
c a n d o q ue e m to d a a p a rte o n d e h a ja a v a lia ç ã o , h a v e rá ta m b é m ,
p ro v av elm en te, e x ib ição d a pob reza:

U m a in v e s tig a d o r a d o D P C re fe riu a lg u m a s e x p e r iê n c ia s
in teressan tes a e ste resp eito . E la era italiana, m as de pele clara e

28 ¡bid., p. 187.
A Apresentação do F.u na Vida dc Todos os Dias 55

c a b e lo lo u ro , d e c id id a m e n te d e um tip o p o u co n a c io n a l. O seu
irab alh o c o n sistia p rin c ip a lm e n te no e stu d o de fam ílias italianas
no q u a d ro F E R A . P elo facto d c não p a re c e r ita lia n a o u v ia c o n ­
versas e m italiano, rev elan d o a atitu d e d o s b e n eficiário s p e ra n te o
a u x ílio q u e llic s e ra p r e s ta d o . P o r e x e m p lo , e n q u a n to e s la v a
se n ta d a na saia a c o n v e rsa r c o m a m ãe de fam ília, e sta c h am av a
um d o s filhos para vir c u m p rim e n ta r a sen h o ra, m as av isa n d o -o de
q u e a n te s de a p a re c er d ev ia c a lç a r o s sa p a to s velhos. O u o u v ia a
m ã e o u o pai d izerem d as tra se ira s d a casa a alg u ém que esc o n ­
d esse o v in h o ou a co m id a a n te s de e la en trar.29

P o d e ría m o s ta m b é m citar c o m o ex e m p lo um estu d o recente sobre


o n e g ó c io do ferro -v elh o , cujos d a d o s in d icam o g é n e ro de im pres­
são q u e os p ro fissio n ais ju lg a m o p o rtu n o transm itir:

. . . o v e n d e d o r d e fe rro -v e lh o e s tá v ita lm e n te in te re ssa d o em


m an ter reserv ad a a in fo rm ação relativ a ao v alo r fin an ceiro e fe c ­
tivo d o ferro -v elh o a o s olhos d*t g en e ra lid a d e do pú b lico . G o sta de
p erp e tu a r o m ito seg u n d o o q u a l o ferro -v elh o não vale n ad a e o s
in d iv íd u o s que o v en d em são u n s “ falid o s" d ig n o s de dó.-50

E stas im p re ssõ e s lêm um a s p e c to id ealizad o , u m a vez q u e sc o


a c to r fo r b em s u c e d id o no seu d e se m p e n h o a p re s e n ta rá o tip o de
ce n a q u e co rresp o n d e aos m ais e x tre m o s este re ó tip o s do o b se rv a d o r
acerca d a p o b reza infeliz.
C o m o ilu stração su p lem en tar tiestas p rá tic a s de rotina idealizadas,
ta lv ez n ã o h a ja o u tras so c io lo g ic a m e n te m ais fascin an tes d o q u e as
fo rn e c id a s p e lo d e se m p e n h o d o s m e n d ig o s de rua. N a so c ie d a d e
o c id e n ta l, c o n tu d o , d esd e o d o b ra r d o sé c u lo , as c e n a s m o n ta d a s
pelos m en d ig o s p a recem ter p e rd id o u m p o u co d o s seus m érito s d ra ­
m ático s. Tloje, o u v im o s falar m e n o s d o “ex p e d ie n te da fa m ília a s­
sead a” , c o n sistin d o na exibição da fa m ília v estida de farrap o s m as

“tJ E. W ight üakke. The Unemployed Worker. Yule University Press. New Haven.
1940. p. 371.
^ J. B. R alph. “Thu Junk Business and the Junk Peddler", rd a trtrio de M. A.
inédito, Department o f Sociology, U niversity o f Chicago. 1950. p. 26.
56 Erving Goffman

c o m u m a s s e io e x c e p c io n a l, c o m a s c r ia n ç a s m o s tra n d o ro s to s
brilh an tes g ra ç a s a um a fina cam ad a dc sab ão e sp a lh a d a na peie co m
a aju d a de u m p ano m acio . D eixám os de a ssistir aos d esem p en h o s
nos q u a is u m h o m e m s e m in u se d e b a te c o m u m a c ô d e a d e p ão ,
p a re c e n d o n ã o ler fo rcas seq u er para a com er, ou às c en a s em que
um h o m em esfarrap ad o en x o ta um pardal d c um b o c a d o d c p ão, que
lim p a d e v a g a r c o m a m anga d o casaco, ten tan d o a se g u ir co m ê-lo ,
c o m o q u e in te ir a m e n te a lh e a d o d a p r e s e n ç a d o s e s p e c ta d o r e s .
Ig u a lm e n te , to rn o u -s e ta m b é m ra ro o “p o b re e n v e rg o n h a d o ” que
im p lo ra tim id a m e n te c o m os o lh o s a q u ilo q u e os seu s d e lic a d o s
se n tim e n to s p arecem im p ed i-lo de fo rm u la r p o r rneio de p alav ras.
D ig a -se d e p a ssa g e m q u e as cen as rep resen tad as pelos m endigos re­
ce b eram u m a g ran d e v aried ad e de d esig n açõ es cm in g lês c o n to
d o v ig á rio , in tru jic e , n e g ó c io , e x to rs ã o , jo g a d a e a s s a lto (grifis,
dodges, lays, rackets , lurks, pitches, and capers) — , q u e nos fo rn e ­
cem te rm o s ad e q u a d o s tam b ém à d escrição dc d esem p e n h o s d o tad o s
d e m a io r licitu d e c m e n o r arte.-*1
S c u m in d iv íd u o q u iser rep resen tar um m o d elo ideal d u ra n te o seu
desem p en h o , te rá q ue p ô r d c lad o ou e sc o n d e r q u a lq u e r a c ção que se
rev ele in co n sisten te cm re la ç ã o aos co rresp o n d en tes critério s. Q u a n ­
do um co m p o rtam en to im próprio é n o u tro s te rm o s sa tisfa tó rio — ca­
so b astan te fre q u e n te o in d iv íd u o o b te rá g eralm en te u m a esp éc ie
d e a p ro v a ç ã o tácita; n essas circu n stân cias, o ac to r p o d e rá a o m em o
tem p o g u a rd a r o b olo e co m ê-lo . P o r e x e m p lo , n a socied ad e a m e ri­
ca n a vernos q u e as c ria n ç a s de o ito an o s de idade a firm a m o seu
d e sin teresse p elo s p ro g ram as telev isiv o s d e stin a d o s ¿ios cin co e seis
anos de idade, em b o ra m u itas vezes os v ã o d issim u la d am e n te aco m ­
p a n h a n d o .1" T am bém vem o s d o n as de c a sa da elasse m éd ia que por
v ezes se servem — dc m o d o secrelo e d issim u lad o — de su cedâneos
b arato s dc c a fé . g elad o de n atas ou m an teig a; d e ssa m aneira, con se-

11 Para mais dados a respeito dos mendigos, ver Henry M ayhcw, London Labour
and the London Poor (4 vols.. Griffin. Bohn. Londres. I (1861), pp. 415-17. e IV
(1862). pp. 404-38.
Relatórios dc investigação ineditos de Social Research, Inc.. Chicago. Agradeço
a autorização concedida para a utilização destes c doulros dados no presente estudo.
A Apresentação do Üu na Vida dc Todos os Dias 57

giiem po u p ar d in h eiro , o u esfo rço s, ou te m p o , m an ten d o a im pressão


de que os g é n e ro s se rv id o s são d e q u alid ad e su p e rio r33. As m esm as
donas de c a sa sã o cap azes de d e ix a r à v ista The Saturday Evening
/}oat em c im a da m esa da sala d e estar, m as e sc o n d em ao m esm o
tem p o u m n ú m ero de True Rom ance (“ Isso foi a m ulbcr-a-clias que
d eixou p ara a f ’) no q u arto .34 H o u v e q u e m su g erisse que este m esm o
tip o d e co m p o rta m e n to , a que p o d e re m o s c h a m a r “co n su m o sec re ­
to", se en c o n tra ig u alm en te en tre o s h indus.

O b e d e c e m ao s co stu m es esta b e le c id o s q u ando o b serv ad o s, m as


a sós não se m o stra m tão e sc ru p u lo so s.35
O b tiv e in fo rm a ç õ e s dignas d e créd ito seg u n d o as quais c erto s
b râ m a n e s, em p e q u e n o s g ru p o s , v is ita m se c re ta m e n te c a s a s de
su d ra s de co n fian ça, para c o n su m ire m carn e e b ebidas fo rtes, que
então se p erm item g o z a r sem e s c rú p u lo s36.
O c o n s u m o se c re to de b e b id a s in e b ria n te s é a in d a m a is fre ­
quente do que a ingestão de a lim e n to s p ro ib id os, um a vez q u e 6
tam b ém m enos d ifícil d e ocultar. T odavia, n ão co n sta q u e alg u m a
vez um brâm an e ten h a sido v is to b êb ad o e m p ú b lico 37.

A c re sc e n te -se q ue re c e n te m en te o s re la tó rio s K insey d eram um


novo im p u lso a o e stu d o e an álise d o co n su m o secreto 38.

33 Idem.
3 ‘* Referido pelo professor W. I.. W arner da Universidade dc; Chicago durant«; o sim
sem inário de 1951
35 Abbe J. A. Dubois. Character, Manners, and Customs o f !he People o f India. 2
vols., M 'C arey & Son, ISIS, Filadélfia, I , p. 235.
36 Ibid., p. 237.
3^ Ibid.. p. 238.
3!* Conforme indicava Adam Smith, op. c it.. p. SS. Umio com o os Vícios, tam bém as
virtudes pod cm scr objccto dc dissimulação:
“Há hom ens vaidosos que se dão m u itas vezes ares de um desregram ento
elegante. embora no íntimo o não aprovem e nele tal ve/, não cheguem a incorrer.
G ostam de ser louvados por coisas que eles próprios não julgam dignas de louvor, e
têm vergonha das virtudes fora tíc m oda. que por vezes praticam cm segredo, por
cias alimentando secretam ente um maior ou m enor erau de veneração real."
58 Erving Goffman

T o m a -se im p ortan te n otar q ue q u a n d o u m ind iv íd u o ap resen ta um


seu d e se m p e n h o p o d e rá e sc o n d e r c a ra c teristic am e n te alg o m ais do
que os p razeres o u o d in h eiro , q ue se rev elo u m enos ad e q u ad o s ao
q u a d ro . In d ic a re m o s a se g u ir a lg u n s d e s s e s a sp e c to s p a ssív e is de
dissim u lação .
Hm p rim eiro lu g ar, p ara lá d o s p razeres e e co n o m ias secretas, o
a c to r p o d e estar e m p e n h a d o num a form a q u a lq u er de ac tiv id ad e lu­
cra tiv a que será esc o n d id a à au d ien cia c q u e é in com patível co m a
im a g e m d c acção q ue ele d eseja provocar. O m odelo, de u m a clareza
div ertid a, p o d eria se r aqui o d as tab acarias que tam hém fun cio n am
co m o agên cias de a p o sta s, sen d o ce rto q ue alg o do e sp írito d esses
esta b e le c im en to s p o d erá a p a re c e re m m u ito s o u tro s lo cais. É su rp re ­
en d e n te o n ú m e ro de tra b a lh a d o re s q u e p a re c e m ju s tific a r p a ra si
p ró p rio s o e m p re g o q u e o c u p a m in v o c a n d o as fe r ra m e n ta s q u e
po d em roubar, os g én ero s alim en tares ou o u tros q u e con seg u em re­
vender. ou as viagens q ue p o d em p erm itir-se in clu íd as no tem po de
serv iço , ou ain d a os co n tacto s que p o d e m conseguir, bem co m o as
in flu ên cias que estes p ro p iciam , e tc .-9 F.m to dos estes caso s, o local
d e tra b a lh o e a activ id ad e o fic ia l p arecem tra n sfo rm ar-se n u m a esp é­
c ie d e c o n c h a esco n d en d o a v erd ad eira vida d o actor.
E m se g u n d o lugar, v erificam o s q ue os erro s e en g an o s são m uitas
v ezes c o rrig id o s an tes de o d e sem p en h o te r lugar, ao m esm o tem po
q u e o s s in a is d c q u e o s e rro s fo ra m c o m e tid o s e c o r rig id o s são
ta m b é m d issim u la d o s. M an tém -se a ssim a im p ressão d e in fa lib ili­
dad e. tão im p o rtan te p a ra certas en cen açõ es. E stá m uito d ifu n d id a a
id eia se g u n d o a qual o s m édicos esco n d em os seus e n g an o s. O utro
e x e m p lo é o q u e nos s u rg e n u m a tese re c e n te so b re a in te ra c ç ã o
social em três re p a rtiç õ es do G overno, su g erin d o q u e os fu n c io n á ­
rio s tê m r e lu tâ n c ia e m d i ta r r e la tó r io s a u m a e s te n ó g r a f a , p o is
g o sta m de v o lta r a p eg ar n o s d o cu m en to s para c o rrig ir os erros antes

39 Dois escudos rcccntcs sobre os trabalhadores d o s serviços sociais adoptam o


term o “fraude externa" para designar as fontes ocultas dc- rendim ento propiciadas
pelo Clr-cago Public C ase W orker. V er h art B ogdanoff c A rnold G lass. The
Sociology o f ¡he Public Cose Worker in an Urban Area. M aster’s Report inedito.
Department o f Sociology. University o f Chicago, 1953.
A Apresentação vio Hu na Vida de Todos os Dias 59

de as e ste n ó g ra fa s ou, p io r u in d a, o s su p erio res tom arem c o n h e c i­


m ento d e le s40.
E m terceiro lugar, n as in te ra c ç õ es em q ue um ind iv íd u o a p resen ta
aos o u tro s um p ro d u to , ten d erá a só lh es q u e re r m o strar o p ro d u to
a ca b a d o , le v a n d o -o s a a v a lia re m -n o a p a rtir d e q u a lq u e r o u tra coisa,
j á p ro n ta , re to c a d a e a c o n d ic io n a d a . F m c e rto s c a so s, q u a n d o é
p eq u en o o e sfo rç o req u erid o p a ra o a c a b a m en to de um o b jec to , esse
fa c to s e rá e s c o n d id o . N o u tro s c a s o s , se rã o lo n g a s e a b o rre c id a s
horas d e tra b a lh o solitário o o b je c to d a d issim u la çã o . P o r e x em p lo ,
a am en id ad e e x ib id a p elo estilo d e c ertas o b ras eru d itas se ria in stru ­
tiv a m e n te c o m p a ra d a com o a t a feb ril su p o rta d o p e lo seu a u to r a
fim d e c o m p le ta r o s ín d ic e s r e m is s iv o s a te m p o ou c o m as d is ­
c u ssõ e s q u e e le teve co m o e d ito r cm v ista d e c o n se g u ir m aio res d i­
m e n sõ e s p a ra a p rim e ira le tra d o seu n o m e . tal c o m o a p a re c e n a
c a p a d o livro.
C itarem o s ain d a u m a q u arta d isc o rd â n c ia en tre as a p a rê n c ias e a
realid ad e. Vem os que existem , c o m efeito , n u m ero so s d e sem p e n h o s
que n ão teriam sido p o ssív eis se não tiv essem sido lev ad as a c ab o
certas tarefas sujas, q u a se ileg ais, c ru c is ou de alg u m m o d o d e g ra ­
dantes; m as e ssa circ u n stâ n c ia p e rtu rb a d o ra raram ente será e x p ressa
du ran te o d esem p en h o . N os te rm o s de H u g h es, ten d em o s a esco n d er
d a n o s s a a u d iê n c ia to d o s os in d íc io s d e “ tra b a lh o su jo ” , q u e r te ­
n h a m o s re a liz a d o p a rtic u la rm e n te e s s e tra b a lh o , q u e r o te n h a m o s
d eix a d o a um su b altern o , ao m erc a d o im pessoal, a um esp ec ialista
co m p eten te ou não q u alificad o p a ra a tarefa.
E stre ita m e n te lig ad a à ideia d c tra b a lh o sujo. há um a q u in ta d is ­
co rd ân cia en tre a ap arência e a a c tiv id a d e efectiva. Q u an d o a a c ti­
vidade d e um in d iv íd u o deve in c lu ir v ário s m odelos ideais, é p ro v á­
vel q u e a lg u n s d e s s e s m o d e io s o u c r ité r io s se ja m m a n tid o s em
pú b lic o , m e d ia n te o sacrifício e m p riv a d o d e outros de e n tre e les.
C o m freq u ên cia, sem dúvida, o a c to r sa c rific a rá os critério s c u ja a u ­
sên cia p ode scr esco n d id a e p ro c e d e rá a esse sacrifício em vista dc
c o n se rv a r criuSrios c u ja a p lic a ç ão im p ró p ria n ão pode ser d issim u ­
la d a . A ssim , e m p e río d o de ra c io n a m e n to , se o d o n o d e um re s-

40 Biau. op. a !., p 184.


60 Erving Goffman

tau rãn te, c h a rc u ta ria o u talh o q u ise r m an ter a e x ib içã o d a variedade


d c p ro d u to s hab itu al, co rro b o ran d o u m a certa im agem su a ju n to do s
c lie n te s , a s o lu ç ã o será e sc o n d e r a o rig e m ilegal do s g é n e ro s e x ­
po slo s; D o m esm o m odo, tam b ém , .ce d eterm in ad o serv iço fo r a v a ­
liad o ern lerm o s d e rapidez e q u alid ad e, a q u alid ad e p o d erá ser aíé
ce rto p o n to sacrificad a, u m a v ez q ue a m á q u a lid ad e p o d e se r o b jec­
to d e d isfarce, m as o v ag ar não. A in d a na m esm a o rd em d c ideias, sc
os e n carreg ad o s de um serv iço de saú d e m enial tiv erem c o m o d e v er
ao m esm o tem p o m a n te r a o rdem e não b a te r nos p acien tes, e esta
co m b in ação de c rité rio s fo r d ifícil de conseguir, o paciente m al c o m ­
po rtad o p o d e rá se r “e stra n g u la d o ” co m u m a to alh a m o lh ad a e lev ad o
a s u b m e te r-s e p e la fo rç a de um m o d o q u e n ão e s u s c e p tív e l d e
d e ix a r m arcas dc m a u s tratos'11. A au sen cia dc rnaus trato s p o d e ser
sim u lad a, m as a boa o rd e m d o serv iço não:

A s re g ra s, re g u la m e n to s e o rd e n s m ais fa c ilm e n te a d o p ta d o s
são os que im p lic a m indícios tan g ív eis de o b e d iê n cia ou d e so b e ­
d iê n c ia . c o m o o s r e g u la m e n to s q u e e s tip u la m a lim p e z a d o s
p avilh õ es, as portas fe ch ad as, a a b stin ê n c ia de b eb id as alcoólicas
d u ran te o serv iço , a au sên cia de m ed id as co erciv as, etc.42

N à o e sta ria ce rto m o strarm o -n o s a este p ro p ó sito ex cessiv am en te


cínicos. D esco b rim o s m uitas v ezes q ue os principais ob jectiv o s de
u m a o rg a n iz a ç ão tê m q ue ser a lcan çad o s, sc n ec essário , re le g an d o
p o r v e z e s p a ra u m a p o sição se c u n d á ria o u tro s o b je c tiv o s, em b o ra
sem q u e b ra d a im p ressão de que esses o u tro s ob jectiv o s co n tin u a m a
se r m an tid o s. F.m ta is c a so s o sa c rifíc io a tin g e n ã o os id eais m ais
v isív e is m as aq u eles c u ja im p o rtan cia leg ítim a c m aior. Tal é o que
nos m ostra o se g u in te artig o sobre a b u ro cracia d a m arinha:

Hste a sp e c to c a ra c te rístic o [o sig ilo im p o sto ao g ru p o ] n ã o é


to ta lm e n te im p u tá v e l, s e ja c o m o for, ao r e c e io p o r p a r te d o s

4 ^ Robert H. Willoughby, "H ie Aliendani in die Slate M enial Hospital”, lese de


Mestrado inédita. Department of Sociology. University o f Chicago. 1953. p. 4¿.
42 Ibid.. pp. 45-46.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Di as 6)

m em bros d e v erem asp ecto s c o n d e n á v e is ser traz id o s à lu z d o dia.


H m b o ra esse re c e io d e se m p e n h e se m p re ce rto p ap el na n ão e x ­
posição d a “im ag em in tern a” d c q u a lq u e r b u ro cracia, 6 a um traço
d a p ró p ria e stru tu ra inform al d u o rg a n iz a ç ão q u e d e v e m o s a trib u ir
m aio r relevo. P o rq u e a e stru tu ra in fo rm al c u m p re o papel im p o r­
ta n tíssim o de p ro p o rc io n a r u m canal de alternativa às re g ra s e
m éto d o s de acção fo rm a lm e n te p rescrito s. N enhum a o rg an ização
se sente em c o n d iç õ e s d e p o d e r a s su m ir estes m étodos (atrav é s
d o s q u a is , v a le a p e n a n o tá -lo . se re s o lv e m c e rto s p ro b le m a s )
o p o sto s aos o fic ia lm e n te re c o n h e c id o s e. p o rq u e re c o n h e c id o s,
caro s à trad ição do grupo"13.

P o r fim . v em os que m u itas v e z e s os acto res procuram d a r a im ­


p ressão de p o ssu írem m otivos id eais p ara a aq u isição d o pape! que
estã o a d e se m p e n h a r, de terem q u a lific a ç õ e s id eais para o d e s e m ­
p e n h o d esse p a p e l, e de não p re c isa re m de su p o rta r in d ig n id a d e s,
o fe n sa s e h u m ilh açõ es, ou de p ro c e d e rem a “ n egócios” tác ito s, em
v ista d a o b ten ção d o papel em cau sa. (E m b o ra esta im p ressão global
de u m a co m p atib ilid ad e sagrada e n tre o hom em o a função seja p ro ­
cu ra d a so b retu d o p elo s m em bros das profissões de estatu to superior,
e n c o n tr a m o s u m e le m e n to a n á lo g o em m u ita s d a s m e n o s c o n ­
siderad as.) P ara re fo rç a r estas im p ressõ es ideais, existe u m a esp éc ie
d e “re tó ric a da fo rm a ç ã o ” , g raças à qual os sin d icato s, as u n iv ersid a­
des. as asso ciaçõ es co m erciais e o u tra s co rp o raçõ es ex ig e m d o s seus
m em bros q u e assu m am um a p o stu ra m ística e um p e río d o d e form a­
ção, que se d estin am e m parte à sa lv a g u a rd a de um m onopólio e em
p a rte a su g e rire m a im p re ssã o d e q u e o p ro fissio n a l d e v id a m e n te
au torizad o é um in divíduo ren o v ad o p e la sua ex p erien cia d e ap ren­
dizag em . que o c o lo c a à p an e em relação ao s outros seres hum anos.
A ssim , um investig ad o r diz-nos a c e rc a dos farm acêu tico s q u e estes
ú ltim o s co n sid eram que o seu c u rso su p erio r de q u atro an o s. exigido
p ela p ro fissã o , 6 “p ro fissio n a lm e n te v a n ta jo so ” , m as n ão sern q u e
alg u n s deles ad m itam que um a a p re n d iz a g e m red u zid a a m eia dúzia
de m e se s p o d e ria g a ra n tir tudo o q u e é re a lm e n te n e c e s s á rio em

Charles Hunl Page, "Bureaucracy’s O ther Face". Socii// to rc e s. XXV. p. 90.


62 L-rving Goífman

le rm o s p ro p ria m e n te p r o f is s io n a is .'14 D e v e m o s a e s te p ro p ó s ito


a c re sc e n ta r q u e as F o rç a s A rm ad as a m e ric a n as d u ran te a S eg u n d a
G u erra M undial trataram in o cen tem en te activ id ad es co m o a farm ácia
e a rep aração dc relógios d c m an eira p u ram ente in strum ental, tendo
co n seg u id o fo rm ar p ro fissio n ais co m p eten tes num período dc cinco
ou seis sem an as — p ara g ran d e h o rro r d o s m em b ro s das asso ciaçõ es
pro fissionais de farm acêu tico s e relo jo eiro s. D o m esm o m odo. obser­
v a m o s q u e os m e m b ro s d o c le ro n o s d ã o a im p re s s ã o de te re m
e n tr a d o p a r a a ig r e ja d e v id o a u m a p e lo o u v o c a ç ã o v iv id o s ,
ten d en d o , no c aso am erican o , a e sco n d er assim os seus in teresses de
p ro m o ç ã o social, e, no c aso britânico, o seu em p en h am en to c m não
d e sc e r d e m asiad o na escala d as co n d içõ es sociais. A inda os ho m en s
d c ig reja tendem a d ar a im p ressão de q ue esco lh eram a co n g reg ação
relig io sa a q u e p erten cem em virtude daquilo q u e têm para lhe o fe re ­
c e r c não, co m o m u itas vezes aco n tece, d ev id o ao facto de os seus
su p erio res lhes o ferecerem u m a b oa casa ou o p agam ento integral das
d e s p e s a s c o r r e n te s . Ig u a lm e n te , as e s c o la s m é d ic a s a m e ric a n a s
te n d e m a re c ru ta r os a lu n o s c m p a rte c o m ba.se nas su a s o rig e n s
é tn ic a s , h a v e n d o ta m b é m , in d u b ita v e lm e n te , p a c ie n te s q u e lev am
esse factor cm c o n ta a o esco lh erem um m édico; m as n a in teracção
e fe c tiv a entre m ódico e paciente, cria-se a im p ressão d e q u e o m édico
só é m éd ico em v irtu d e de p o ssu ir certas cap acid ad es esp eciais e de
ter receb id o um a form ação especial. O s ex ecu tiv o s, na m esm a ord em
dc ideias, p ro jectam m uitas vezes e m d irecção aos o u tro s um a r de
com p etên cia e cap acid ad e dc g lo b a liz a r as situações, c e g an d o -se a si
e ao s d em ais p ara o facto dc terem os em p reg o s que tê m em parle
justam ente p o r p arecerem ex ecu tiv o s, e nào por fun cio n arem co m o
e x ecu tiv o s capazes:

São p o u co s os e x e c u tiv o s q u e se d ã o c o n ta d a im p o rtân cia d e ci­


siv a q u e o seu a sp e c to físico assu m e ao s o lh o s d c q u e m o s e m p re ­
ga. A nn H o ff, u m a esp ecialista cm co lo caçõ es, observ a que o s pa­
trões parecem actualm ente procurar sobretudo um “tipo H ollyw ood"

■‘ Anihiuiy W einlein. "Pharm acy jis a Profession in W isconsin", lese de Mestrado


in&liui. Department oí Sociology, University o f Chicago. 1943, p SO.
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 63

ideal. H o u v e urna co m p a n h ia q u e - rejeito u um c a n d id a to po rq u e


e le tin h a “os d e n le s m u ito q u a d ra d o s ” ; c o u tro s fo ram d e s q u a ­
lificad o s p o r terem o re lh a s de a b a n o , ou fu m arem e beb erem de
m ais d u ran te a en trev ista. N ão é raro ig u alm en te que os d ad o re s
de e m p re g o p o nham tam b ém c o n d iç õ e s e x p re ssa s de o rd e m racial
e relig io sa.45

O s acto res p o d e rã o te n ta r in c u tir a im p re ssã o de q u e a su a p o n d e ­


ração e c o m p e tê n c ia p resentes são alg o que sem pre possu íram , sem
terem tido a n ec e ssid a d e d s abrir c a m in h o ao longo de um p erío d o
de fo rm ação . N e sta atitu d e, é possív el que o a c to r seja tac ita m en te
aju d ad o pelo q u a d ro em q u e o seu d e se m p e n h o se d esenrola. A ssim ,
n u m e ro sa s esc o la s e in stitu iç õ e s a n u n c ia m p ro v a s c c o n d iç õ e s de
a d m issã o in fle x ív e is, q u an d o , e fe c tiv a m e n te , re c u sa m um n ú m e ro
red u zid íssim o de can d id a to s. P or e x e m p lo , um hospital p siq u iátric o
p o d erá e x ig ir que os candidatos ao seu q u ad ro de pesso al sejam su b ­
m etid o s a um R o rschach e a um a d e m o ra d a en trev ista, para a se g u ir
c o n tra ta r todos os q u e c o n co rrem .'16
B astan te cu rio so c n o ta r que. q u a n d o a im p o rtan cia d as q u a lific a ­
çõ es n ã o oficiais se tran sfo rm a n u m e sc â n d a lo o u assu n to político ,
a lg u n s in d iv íd u o s, q u e m a n ife sta m e n te n ã o p o ssu e m a s q u a lific a ­
çõ es in fo rm ais n ecessárias, sejam ru id o sa m e n te a d m itid o s e recebam
um p a p e l d c d e s ta q u e n u m a p ro v a d c jo g o lim p o . C ria -s c d e s te
m o d o u m a im p ressão de leg itim id ad e47.
Já sugeri que um ac to r tende a en c o n tra r ou d esp re z a r as a ctiv i­
d ades, facto s e m o tiv o s in co m p atív eis co m u m a versão id ea lizad a de
si próprio e d o s seu s p ro d u to s. A lem disso , o ac to r gera m uitas vezes
entre o s seus e sp e c ta d o res a c o n v ic ç ã o dc ter com eles um a rela ç ã o
m ais ideal d o q ue m u ita s vezes d c fa c to tem . P o d em o s c ita r a este
re sp e ito d o is e x em p o s d e ordem g eral.

4^ Perrin Stryker, “How Executives Ge? Jobs-", Fortune, Agosio tie 1953, p. 1N2.
^ W illoughby, op. cit.. pp. 22-23.
1 ' Ver. por cxcmplo. W illiam Komhauscr. "The Negro Union Official: A Study of
Sponsorship and C ontrol” . Am erican J o u rn a l o f Sociology. LVU. pp. 443-52. c
Scott Greer. "Situated Pressures and Functional Role o f Hthnic Labour Leaders".
Social Forces, XXXII. pp. 41-45
64 Crving Goffman

Hm prim eiro lugar, o s in d iv íd u o s p ro cu ram com freq u ê n cia d a r a


im p ressão de q u e a p rática dc ro tin a q ue m o m en tan eam en te rep re­
sentam é o seu ú n ico papel habitual ou pelo m enos o m ais essencial.
C o n fo rm e atrás se indicou, a ausência, p o r seu lu rao . con sid era m ui­
tas v ezes q ue o c a rá c ter projectado perante o s seus m em bros ó total­
m en te o d o indivíduo q ue ex ib e o seu d esem p en h o dianle dela. C om o
diz u m a p a ssa g e m bem c o n h ecid a de W illiam Jam es:

...p o d e m o s na p rática d iz e r que ele te m tantas p erso nalidades


so c ia is d ife re n te s q u a n to s os d ife re n te s grupos de p e sso a s c u ja
opinião lhe interessa. D e um m o d o geral, m ostra u m lad o d iferente
de si pró p rio a cad a um dos d iferen tes gru pos. H á m ais d o q u e um
jo v e m , b a s ta n te a tila d o n a p re se n ç a d e p ais e p ro fe s s o re s , q u e
p ra g u e ja e se ag ita com o um pirata na co m panhia d o s seu s jo v e n s
a m ig o s “ tu rb u le n to s ” . N ão nos m o stra m o s aos n o sso s filh o s do
m e sm o m o d o q u e a o s n o sso s c o m p a n h e iro s de c lu b e , n e m aos
nossos c lien tes c o m o aos nossos em p reg ados, nem aos nossos pa­
trões ou ch efes co m o aos nossos am igos íntim os.48

A o m esm o tem p o c o m o efeito c co m o ca u sa deste tipo dc co m eti­


m ento co m a seq u ên cia que o in divíduo está a realizar, verificam os
que se reg ista u m a “seg reg ação d a au d iên cia’'; através d a segregação
d a au d iê n c ia o indivíduo garante que aqueles peran te os q u ais d esem ­
penha u m a das su a práticas d e ro tin a não são os m esm o indivíduos
peran te os quais ele rep resen ta um a p rá tic a dc rotina diferente num
qu ad ro diferen te. A seg reg ação d a au d iên cia en q u an to m eio d c salva­
g u ard ar as im p ressõ es visad as será estu d ad a m ais ad ian te. Aqui go s­
taria ap en as de n o ta r q u e m esm o q u e o s actores ten tem ro m p e r esta
seg reg ação , e q u eb rar a ilusão atrav és d ela visada, as au d iên cias im ­
ped i-lo s-ão c o m frequ ên cia de o fazer. A au d iên cia p o d e a c h a r que é
um a g ran d e p o u p an ça de tem p o e de energias em o cio n ais o direito
q u e lhe assiste de tratar o a c to r segundo o v alor pro fissio n al m anifes­
to. co rn o se ele fosse p o r co m p leto e ex clu sivam ente aq u ilo que a sua

'** W illiam James. The Philosophy o f William Jam es. Modern Library ed.. Random
House, Novci Iorque, s. d.. pp. I2S-29.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 65

fa rd a d eclara49. A v id a u rbana to rn a r-se-ia in su p o rtav elm en te p esad a


p a ra c e rta s p e sso a s se to d o o c o n ta c to e n tre d o is in d iv íd u o s im ­
p licasse o co m p artilh ar d as p reo cu p açõ es, co n fidencias c problem as
dc cad a u n í. P o r issó , se um h o m em q u er que lhe seja p ro p o rcio n ad o
um ja n ta r repo u san te, pode p re fe rir p ara esse e fe ito um a e m p re g a d a
dc m esa à su a mulher.
E m seg u n d o lugar, os acto res te n d e m a d a r a im p ressão de que o
p resen te d e sem p en h o d a su a acção de ro tin a c a sua re la ç ã o com a
au d iê n c ia p resen te têm q ualquer c o isa d c especial e único. A q u a li­
d ad e h ab itu al d o d e sem p en h o 6 clcixada na so m b ra (o p ró p rio ac to r
se en c o n tra de m o d o c a ra c terístic o in co n scien te d a m edida em q u e a
rotina p rev alece n ó seu d e sem p en h o ) e são su b lin h ad o s os asp ectos
e sp o n tâ n e o s da s itu a ç ã o . O a c to r m e d ic o é um e x e m p lo e v id e n te .
C o m o alg u ém escrev eu :

...d e v e fin g ir b oa m em ória. C) p acien te, ch eio da c o n sc iê n c ia da


im p o rtân cia ú n ica d o q ue nele se p assa, lem b ra-se de tu d o e, no
seu p ra z e r de fa la r d isso ao m é d ic o , sofre de “ re c o rd a ç ã o in te­
g ra l“ . O p a c ie n te n ã o c o n s e g u e a c re d ita r q ue o m é d ic o não sc
lem bre tão bem c o m o ele do q u e lhe co n to u , e sen te-se p ro fu n d a ­
m en te o fen d id o sc e le lhe d er a e n te n d e r que não tem n a m em ó ria
que co m p rim id o s lhe receitou na ú ltim a co n su lta, ou em que dose
e n úm ero d e vezes p o r d ia lhos p re sc re v e u 30.

D o m e sm o m o d o . c o m o um e s tu d o a c tu a l s o b re os m éd ic o s dc
C h icag o indica, o c lín ic o geral fala d e um esp ecialista ao p a c ie n te co­
m o d a p esso a m ais indicada em term o s de co m p etência técnica p a ra o
seu caso, m as a v e rd a d e é que o e sp e c ia lista p o d e em parte le r sido
escolh id o p o r ter sid o co leg a de e stu d o s do prim eiro m edico, ou e m
virtude de um a p artilh a de ganhos co m b in ad a en tre am bos, ou dev id o
a q u a lq u e r outro arran jo bem d efin id o e n tre os dois p ro fissionais51.

^ Agradeço, a W arren Peterson esta e am ras indicações.


■^1 C. 0. M. Jöad. "O n D octors’'. The N ew Statesm an and N ation. 7 de M arço,
1953, pp. 255-56.
Solomon, op. ei!., p. 146.
66 Ervins? GolTman

N o nosso m u n d o c o m e rc ia l, e ste asp ecto do d ese m p en h o é m uitas


vezes in v estig ad o e d ifam ad o co m o “p esso alizaeão d as prestaçõ es de
serv iço ” ; n o u tro s eam p o s da existencia g ra c eja m o s acerca do “je ito ’"
do m é d ic o ou d a su a “ lá b ia ” . (E sq u e c e m o -n o s co m fre q u ê n c ia de
re f e r ir q u e . e n q u a n to a c to re s n o p a p e l d e c lie n te s , p r o c u r a m o s
h a b ilm e n te u m a re la ç ã o p e rso n a liz a d a , te n ta n d o d a r ao m é d ic o a
im pressão de q ue não estam o s a “c o m p r a r os seus serv iço s e d e q u e
não os tro caríam o s p elos d e m ais ning u ém .) T alvez seja o nosso sen­
tim e n to de cu lp a q u e o rie n ta a n o ssa a te n ç ã o p a ra e sta s zo n a s de
gro sseira '‘pseuôo-gemeinsehaft"*, u m a vez que d ificilm en te en c o n ­
trarem o s um d esem p en h o , seja em que d im en são d a e x istê n c ia for,
que n ão in sista no c o n tacto pessoal a fim d e m ag n ific ar o c a ra c te r
único das tran sacçõ es q ue têm lugar en tre o ac to r e a au d iencia. P o r
ex e m p lo , s e n tim o s um le v e d e sa p o n ta m e n to q u a n d o o u v im o s um
am ig o ch eg ad o , cu jo interesse c a lo ro so e gestos e sp o n tâ n eo s pensá­
vam os serem exclu siv o nosso, falar intim am ente co m outro dos seu s
am igos (sob retu d o se se tratar de um a m ig o qu e não con h ecem o s).
E is u m a a b o rd ag em ex p lícita deste asp ecto n u m m anual d e boas
m an eiras am erican o d o sécu lo passado:

Sc' se m ostrou d e licad o para com u m a pessoa, ou se serviu para


co m e la de u m a c o rte sia esp ecial, não d e v e ra ad o p ta r o m esm o
c o m p o r ta m e n to p e r a n te m a is n in g u é m n a s u a p r e s e n ç a . P o r
e x e m p lo , se um c a v a lh e iro o v isita r e m su a c a s a e o le ito r lhe
d isser c a lo ro sa c ex p ressiv am en te que e stá “ m uito feliz*’ p o r ele
ter ap arecid o , ele a p re c ia rá a aten ção , e p ro v av elm en te ag radecer-
-lhe-á; m as se o o u v ir d iz e r a m esm a c o is a a m ais vinte pessoas
d ife re n te s , n ã o só se d a r á c o n ta d e q u e a s u a d e lic a d e z a n ào
sig n ific a v a n a d a de especial, co m o p o d erá sen tir-se um tanto o fen ­
dido p o r de início se te r d eix ad o ilu d ir52.

Ou: “pseudocomunidadc". (N.T.)


- - The Canons o f Good Breeding: o r the Handbook o f she Mon o f Fashion. Lee and
Blanchard, Filadélfia. 1839. p. 87.
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 67

A M anutenção do Controlo Expressivo

Já sugeri q u e o a c to r p o d erá e s p e ra r q ue sua aud iên cia aceite c e r ­


tas in d icaçõ es m en o res co m o sin al d e a lg o de im p o rtan te em relaç ão
ao desem p en h o . E ste asp ecto v a n ta jo so tem um a c o n se q u ê n c ia d e s­
vantajosa. D evido ã m e sm a te n d ê n c ia q ue m o stra no sen tid o d a acei­
tação dos sinais, a a u d iê n c ia p ode in terp retar mal o sen tid o q u e u m
ind ício se d estin a a v e ic u la r, ou p o d e id en tificar um sen tid o e m b a ra ­
çoso em gestos ou ac o n te c im en to s acid en tais, resu ltan tes da in ad v er­
tê n cia ou d o acaso e n ão visados pelo a c to r e n q u a n to veícu lo s tra n s­
m issores de q u a lq u e r sentido.
E m resp o sta a e sta s v icissitu d es d a co m u n icação , os actores habi­
tualm ente ten tam p ro m o v er um a espécie de responsabilidade por si-
nédoque. garan tin d o que. tanto q u an to possível, os asp ecto s m enores
do d ese m p e n h o , p o r in stru m e n ta lm e n te in c o n seq u en tes que sejam ,
ocorram de m odo a não cau sar q u a lq u e r im p ressão ou a c a u sa r u m a
im pressão c o m p a tív e l e c o n sisten te c o m a d efin ição global visad a pa­
ra a situação. Q u an d o sabem os q u e a au d iên cia é secretam en te c é p ­
tic a q u an to à realidade c u ja im pressão p ro cu ram o s tran sm itir-lh e, 6
provável que p o ssam o s in terp retar a sua ten d ên cia para in sistir sobre
deslizes irrelevantes que co n sid erará c o m o p ro v as d e que a e x ib içã o é
g lo b a lm e n te fa lsa ; m a s, e n q u a n to in v e s tig a d o re s d a v id a s o c ia l,
c o stu m a m o s m o stra r-n o s m enos d isp o sto s a te r e m c o n ta q u e até
m e sm o au d iên cias sim p a tiz a n te s são su sc e p tív e is de se se n tir p e r­
turbadas, ch o cad as e atin g id as n a su a co n fian ça, pela d esc o b erta de
q u alq u er d isco rd ân cia m ín im a nas im pressões q u e lhe são propostas.
A lguns destes p ercalço s m enores e “g esto s in v o lu n tário s” d ir-sc-iam
ex p ressam en te co n ceb id o s para su sc ita r a im pressão que ju sta m e n te
co n trad iz a v isada p elo actor, a tal ponto que a au d iê n cia não pode
im pedir-se de ab an d o n ar um com etim en to adequado co m a interacção
ern curso, ainda q u a n d o co m p reen d a que, ern ú ltim a análise, o e p i­
sódio d isco rd an te e de facto sem sentido, d ev en do se r p o rta n to d e s­
prezado. O p ro b lem a d ecisiv o nã-o está em a d efin ição m o m entânea
da situação causada p o r u m gesto in v o lu n tário ser p rofundam ente c o n ­
denável, m as está sim p lesm en te n o facto de .-ser diferente d a d efinição
o ficialm en te projectada. E sta d iferen ça in tro d u z um elem en to aguda-
68 ßrving Goffmãn

m en te im p e d itiv o en tre a p ro je c ç ã o o ficial e a re a lid a d e , p o is faz


parte d a p ro jecção oficia! ser. nas circunstâncias d adas, a única p o s­
sível. T alvez, p o r co n seg u in te, não d ev êssem o s analisai- os desem p e­
nhos em lerm o s d e critério s m ecân ico s, seg u n d o os quais um farto
lucro podo co m p en sar u m a pequena perda, ou um g ran d e p e so co n ­
trab alan çar um m enor. U m a im ag ética artística seria aq u i m ais apro­
priada. um a vez que nos preven iria do facto de que basta u m a nola
em falso iso lad a para alterar o clim a de um d esem p en h o com pleto.
N a n o ssa so c ie d a d e , c e rto s g e sto s in v o lu n tá rio s o c o rre m n u m a
gam a tão a m p la d e d e se m p e n h o s e v eicu lam im p re ssõ e s g e n e ric a ­
m e n te tão in co m p a tív e is com as visad as q u e os in c id e n te s in o p o r­
tunos co rresp o n d en tes acab aram p o r a d q u irir um esta tu to sim b ó lico
co lectiv o . P o d e m o s fa la r d c três gran d es g ru p o s de in cidentes d esse
teor. h m p rim e iro lu g ar, um a c to r pode tra n s m itir a c id e n ta lm e n te
u m a im p re s s ã o d c in c a p a c id a d e , in a d e q u a ç ã o ou d e s re s p e ito , na
seq u ên cia d e u m a perda tem p o rária de au to co n tro lo m uscular. P ode
tropeçar, e m b ru lh ar-se. cair: p ode arrotar, b o ce jar, c o m e te r u m lapso,
co ç a r-se o u e m itir fla lu lê n e ia s; p o d e c h o c a r fisic a m e n te , de m odo
irreflectid o , c o m um o u tro particip an te. E m seg u n d o lugar, o ac to r
pode a g ir de m odo a d a r a im p ressão de q u e eslá ex c essiv a m en te, ou
ex c e ssiv a m e n te pouco, p reo cu p ad o co m a interacção: p o d e gaguejar,
s a lta r a lg u m a s lin h a s, e n e rv a r-s e , p a re c e r c u lp a d o ou d e m a sia d o
co n scien te dc si p ró p rio ; p o d e ce d e r a ex p lo sõ es de riso. c ó le ra ou a
o u tr a s e s p é c ie s d c e m o ç õ e s q u e m o m e n ta n e a m e n te o in v a lid a m
co m o in terag en te; p o d e p arecer d e m a sia d o — ou d em a sia d o pouco
— sério e in teressad o . E m terceiro lugar, o ac to r pode p erm itir que a
su a a p re se n ta çã o seja v ítim a de u m a o rien tação d ram atú rg ica ina­
d e q u a d a à s itu a ç ã o . O q u a d ro do d e s e m p e n h o p o d e n ã o te r sid o
d e v id a m e n te o rg a n iz a d o , ou p ode te r sid o p re p a ra d o p a ra um d e ­
sem p en h o d ife re n te , ou s e r p ertu rb ad o durante o d esem p e n h o ; facto ­
res im p rev isto s p o d e rã o alterar o m o m en to certo de e n tra d a ou sa íd a
d e ce n a do actor, o u p ro v o c a r d esacerto s de tem po em b a ra ço so s du­
ran te a in teracção 53.

53 Um a m ancirn dc lid a r com as p criu rb açõ es im p rev istas c o n siste , p ara os


intcragcnlcs, cm rir quando cias oconcm , assinalando assim que as consequências
A Apresentação dc* Eu na Vida de Todos os Dias 69

E v id en te m e n te , os d e se m p e n h o s d ife re m no grau de a ten ção aos


p o rm e n o re s e x p re ssiv o s q u e re q u e re m . N o c aso de ce rta s c u ltu ra s
que no s são e stra n h a s, d e te c ta m o s c o m fa c ilid a d e u m g rau e le v a ­
d ís s im o d e c o e r ê n c ia e x p r e s s iv a . G ra n e t, p o r e x e m p lo , d iz -n o s
ac erca d o d esem p en h o d o papel filia l na C hina:

O seu m odo c u id a d o d c tra ja r é em si pró p rio u m a h o m en ag em .


O seu c o m p o rta m e n to c o rre c to s e rá c o n s id e ra d o u m a m a n ife s­
taç ã o d e resp eito . N a p re se n c e d o s p ais, e x ig e -se g ra v id a d e : há
q u e ter-sc assim o c u id a d o de não arrotar, dc não fungar, de não
b ocejar, d e não a sso a r o nariz e n ã o cuspir. Q u a lq u e r ex p ec to ra ção
co rreria o risco dc m acu lar a san tid ad e p atern a. M o stra r o forro da
ro u p a seria um crim e. P ara m o stra r ao pai q ue o e stá a tra ta r com o
u m chefe, o in d iv íd u o deve c o n se rv a r-se sem p re de pé n a sua p re ­
sença, c o m os o lh o s lev an tad o s, o co rp o d ireito e firm e n a s suas
p ern as, sem o u sa r cu rv a r-se na d ire c ç ã o cie q u a lq u er o b jecto , nem
en co lh er-se ou ap o iar-se num s ó pc. E assim , co m a v o z b a ix a e
hu m ild e q ue c o n v é m a um d isc íp u lo , q u e à n o ite e de m an h ã o
filho d ev erá p re sta r a su a h o m en ag em . E d ep o is, ficará a a g u ard a r
o rd e n s.54

V em os tam bém com facilid ad e co m o em cen as d a n o ssa própria


c iv iliz a ç ã o , in c lu in d o a lta s fig u ra s em a c ç õ e s sim b o lic a m e n te im -

expressivas da perturbarão foram notadas mas não levadas a sério. Nesta ordem dc
ideias, o ensaio de Bergson sobre o riso pode ser considerado uma descrição dos
modos com o esperamos que o actor adopte a faculdade dc movimentos próprios da
humanidade, da tendencia dos espectadores no sentido de atribuírem desde o início
da in te ra c ç ã o essa fa c u ld a d e ao a c to r, c dos m o d o s co m o e ssa p ro je c ç ã o é
perturbada quando o actor se move de m aneira m enos humana. Analogamente, os
ensaios de Frcud sobre o dito de espírito c a psicopatologia da v id a quotidiana
podem, a certo nível, ser considerados um a descrição das maneiras corno esperamos
que os actores se reveiem na posse de certos critérios tíe tacto, modéstia e virtude, e
co m o u m a d e scrição tam b ém dos m o d o s c o m o e sia s p ro je c ç õ e s p odem ser
desm entidas por lapsos que. sendo em bora apenas hilariantes para o leigo, parecem
sintom áticos ao psicanalista.
M arccí G ranel, C hinesr C ivilization, trad, do francês por Innes e Brailsford.
Londres. Kcgar. Paul. 1930. p. 328.
70 Jirving Goffman

p o r t a n t e s , a m e s m a c o n g r u ê n c i a s e r á d e r i s o r. S i r F r e d e r ic k
P o n so n b y , c arn arciro j á falecid o d a c o n e d a G rã-B reta n h a, escrev e:

Q u a n d o a ssistia a u m a recep ção na c o rte ficav a sem p re im p res­


sion ad o c o m a in c o n g ru ê n c ia d a m ú sica q u e a b a n d a e x e cu ta v a, e
d e c id i f a z e r o q ue e stiv e s s e na m in h a m ã o p a ra re m e d ia r e sse
esta d o de co isas. N â o te n d o a m a io ria d a C a sa g o sto m u sical, e x i­
g ia á ria s p o p u la r e s ... A rg u m e n te i q u e e sse s tre c h o s p o p u la re s
e s tra g a v a m to d a a d ig n id a d e d a c e rim o n ia . S e r a p r e s e n ta d a à
c o rte e ra m u itas v ezes um g ran d e ac o n te cim en to n a v id a de um a
s e n h o ra , m as se fo sse a p re se n ta d a a o rei e à ra in h a ao so m dc
“ tin h a o n a riz m ais v erm elh o do que d c c o stu m e ” , to d a a im pres­
são se p e rd ia sem rem éd io . E u d e fe n d ia que d e v ia m se r to cad o s
m in u e te s e á r ia s a n tig a s , tr e c h o s de ó p e r a c o m u m to q u e de
“ m isté rio ”55.

T a m b é m le v a n te i a q u e s tã o d a m ú sic a to c a d a p e la b a n d a d a
G uarda d c H o n ra d u ran te as in v estid u ras e e screv i ao m ais antigo
c h efe d a banda, o cap itã o R ogan, a esse resp eito . O que m e d e sa ­
g rad av a era v er h o m en s e m in e n te s serem arm ad o s c av a le iro s e n ­
q u a n to n o e x te rio r a b a n d a to c a v a c a n ç õ e s jo c o s a s ; d o m esm o
m o d o , q u an d o o m in istro d o In te rio r e sta v a a fa lar co m em o ç ão do
a c to esp e c ia lm e n te h eró ico dc alg u ém q ue se prep arav a p ara re ce ­
b e r a A lb ert M ed al, a b a n d a lá fora to cav a um two-step, que reti­
rav a to d a a so len id ad e à cerim o n ia. S ug eri que se lo cassem nessas
a ltu ra s m úsica de óp era, co m um a nota de d ram a tism o , e a v er­
dade é q u e ele se m o stro u p len am en te dc a c o rd o .. .56

D o m esm o m odo. nos fu n erais da classe m éd ia am erican a, o m o ­


to r is ta d o c a rro fu n e rá rio , c o rre c ta m e n te v e stid o d e p re to e c o n ­
v e n ie n te m e n te e s ta c io n a d o ju n to a o c e m ité rio d u ra n te o se rv iç o ,
estará a u to riz a d o a fu m ar, m as p ro v av elm en te ch o ca rá e irrita rá os
presen tes se a tira r pelo a r o cig arro , lazen d o -o d e sc re v e r um g racio so

Ponsonby. op a t., pp. 1S2-H3.


56 tbu!.. p, 183.
A Apresentação do Bu na Vida de Todos os Dias 71

arco, p ara um arb u sto v izin h o , e m vez de o a p a g a r no ch ão . d isc re ta ­


m ente, ju n to aos p és57.
C o m p letan d o a n o ssa a b o rd ag em d a co n g ru e n cia ex ig id a em o c a ­
siões de algurn m o d o sag rad as, n o ta re m o s que ao longo de c o n flito s
p ro fan o s, esp e c ia lm e n te c o n flito s em in stân cias su p e rio res, ca d a um
d o s p ro ta g o n is ta s d e v e rá e x a m in a r c u id a d o s a m e n te o seu p ró p rio
co m p o rtam en to , sc n ã o q u ise r o fe re c e r a o a d v ersário um p o n to c rí­
tico de v u ln erab ilid ad e. A ssim . D ale, ao tratar das c irc u n tân cias em
q u e se d e se n ro la o tra b a lh o d o s fu n c io n á rio s p ú b lic o s do e sc a lã o
superior, sugere:

U m ex am e ain d a m ais m in u cio so [d o que o ap lica d o às dccla-


raç õ e sj incide nos rascu n h o s d a s cartas o ficiais: po rq u e u m a a fir­
m aç ã o incorrecta o u um a frase in fe liz n u m a carta, c u jo c o n te ú d o é
p erfeitam en te in o fe n siv o e c u jo assu n to não tem q u a lq u e r im p o r­
tân cia. p ode te r c o m o e fe ito c o n fu n d ir o d ep artam en to se fo r d e ­
tectad a p o r u m a d a s n u m ero síssim as p esso as para as q u ais o e n g a ­
no m ais banal de u m d ep a rta m e n to do G o v ern o é um prato d c p ri­
m eira d e stin a d o a o p ú b lico . T rês ou q u a tro anos desta d iscip lin a,
d u ra n te o p erío d o a in d a recep tiv o q u e vai d o s vinte e q u a tro aos
vinte e o ito anos. im p rim e m de m o d o p e rm a n en te no e sp írito e no
c ara c ter a p aix ão p elos factos p re c iso s e pelas co n clu sõ e s rig o ro ­
sa s, a le m da m a is s e v e ra d e s c o n fia n ç a p e ra n te c o isa s v a g a s e
g e n e ra lid a d es58.

A d e s p e ito da n o s sa d isp o s iç ã o para a p re c ia rm o s as e x ig ê n c ia s


ex p ressiv as destas d iv e rsa s esp écies de situ açõ es, te n d em o s a c o n s i­
derá-las co m o c aso s e sp e c ia is; te n d e m o s a ser cegos para o facto de
num ero so s d esem p en h o s p ro fan o s da v id a de to d o s o s d ia s d a n o ssa
p ró p ria sociedade a n g lo -a m e rica n a terem co m freq u ên cia de p assar
p o r um a p ro v a e strita d e co n v en iên cia, a d eq u ação e deco ro . T alvez
esta c e g u eira se d ev a e m p arte ao facto d e, en q u an to acto res, term os
o m ais d as vezes c o n sc iê n c ia dos c rité rio s q ue n ão ap lic ám o s à nossa

- ' Hubenstein. op. tit.


5^ Dale. op. cit.. p. 81.
72 Ervin y; Goffman

acção q u an d o o p o d íam o s te r feito d o que d aq u eles q u e irre fle ctid a­


m ente ap licam o s. S eja c o m o for. en q u an to in v estig a d o re s, d e v em o s
e sta r d isp o sto s a a n a lisa r a d isso n â n c ia criad a por um a p a la v ra mal
artic u la d a , ou p o r u m a fím b ria d c c o m b in ação a a p a re c er p o r baixo
da saia: e d e v em o s se r c a p a z e s dc an a lisa r as razões p elas q u a is urn
bo m b eiro m íope, a fim d e sa lv a g u a rd a r a im pressão de v ig o r ex u b e­
rante q ue c o n v é m à su a p ro fissão , ach a n ecessário e sco n d er os ó c u ­
los n o b o lso q u an d o a p ro x im id ad e du d o n a d e ca sa tran sfo rm a a sua
tarefa n u m a rep resen tação , ou as razõ es p elas qu ais u m técnico que
rep ara a p a re lh o s d e telev isão é p rev en id o p elos seus c o n selh eiro s de
re la ç õ e s p ú b lic a s de q u e d ev e g u ard ar, ju n ta m e n te co m o s q u e j á
trazia, os p a ra fu so s q u e n ã o co n seg u ir v o ltar a c o lo ca r no ap arelh o , a
fim de não c a u s a r m á im p ressão . P o r o u tras p a lav ras, d ev em o s estar
p ro n to s a re c o n h e c e r que a im p re ssã o de re a lid a d e v isa d a p o r um
d e se m p e n h o é d elicad a, u m a c o isa frágil q u e sc p o d e q u e b ra r dev id o
ao m ais p eq u e n o in cid en te adverso.
A c o e rê n c ia ex p re ssiv a e x ig id a pelo d e se m p en h o indica u m a d is­
co rd ân cia d e c isiv a e n tre o nosso eu d em asiad o h u m a n o e o nosso eu
so cializad o . E n q u a n to seres h u m an o s, so m o s p ro v a v elm e n te c ria tu ­
ras su je ita s a im p u lso s v a riá v e is, co m en erg ias e h u m o res su sc e p ­
tíveis d e m u d arem d c um m o m en to para o outro. E n q u an to p e rso n a ­
gens peran te u m a au d iên cia, to d av ia, não p o d em o s p e rm itir-n o s altos
e b aix o s. C o m o su g e ria D u rk h cim , n ão p e rm itim o s q u e a n o ssa acti­
v id a d e so cial s u p e rio r siga “ na e s te ira d o s n o sso s e sta d o s físic o s,
c o m o em g e ra l a c o n te c e c o m as n o s s a s s e n s a ç õ e s e c o n s c iê n c ia
c o rp o ra l” 59. E sp e ra -se q u e in terv en h a um a c e rta b u ro cratizaç ão do
e s p írito de m o d o a q u e p o ssa m o s ser a c re d ita d o s fo rn e c e n d o um
d e s e m p e n h o p e r f e i ta m e n t e h o m o g é n e o n a s d e v id a s o c a s iõ e s .
S e g u n d o S a n ta y a n a , o p ro c e s s o d e s o c ia liz a ç ã o não se lim ita a
tran sfig u rar, tam b ém fixa:

M as seja alegre ou triste a cara q u e p om os, ao ad o p tá-la e vincá-


-la d efin im o s o nosso tem p eram en to so berano. D o ravante, enquan-

Emile Dürkheim. The Elementary Forms o f the Religious Life. trad, inglesa dc J.
W. Swain. Allen & Unwin, Londres, 1926. p. 272.
A Apresentação do Liu na Vida de Todo5; o< Dia^ 73

to co n tin u arm o s sob o en c a n to desta au to co n sciên cia, actuarem os


em vez de nos lim itarm o s a viver; co m p o m o s e rep resen tam o s a
p erso n ag em que esco lh em o s, c a lç a m o s o s co tu rn o s d a d eliberação,
d e fe n d e m o s e id e a liz a m o s as n o s s a s p a ix õ e s , e n c o ra ja m o -n o s
elo q u en tem en te a se r o que so m o s, d ed icad o s ou desd en h o so s ou
d e sp reo cu p ad o s ou sev ero s; m o n o lo g a m o s (diante d e esp ectad o res
im a g in á r io s ) c e n v e r g a m o s g r a c io s a m e n te o m a n to d a n o s s a
a c tu a ç ã o in a lie n á v e l. A ssim v e stid o s, so lic ita m o s o s a p la u so s c
e s p e ra m o s m o rre r no m e io d o s ilê n c io u n iv e rsa l. S u ste n ta rn o s
v iv er à a ltu ra d o s b elo s se n tim e n to s q u e m o strám o s, do m esm o
m odo q ue ten tam o s acred itar n a relig ião que p ro fessam os. Q u an to
m a io re s são as d ific u ld a d e s, m a io r o n o sso zelo. S o b os nossos
p rin c íp io s a p re g o a d o s e sob a n o ssa lin g u a g e m c o m p ro m e tid a ,
terem os de e sc o n d e r ap licad am en te os n o sso s hu m o res c o nosso
co m p o rtam en to , tu d o isso p o rém , sem hipocrisia, urna vez que o
c ará c ter que d elib erad am en te a d o p ta m o s nos é d ev eras m ais p ró ­
prio d o q u e o flu x o dos nossos sonhos involuntários. O retrato que
assim p intam os e e x ib im o s co rn o sendo a nossa v erdadeira p erso ­
n alid ad e pode p e rfe ita m e n te s c r d e g ra n d e e stilo , co m co lu n a s,
c o r tin a s e u m a p a is a g e m d is ta n te a o fu n d o , e n q u a n to o d e d o
ap o n ta o glo b o terrestre ou crân io de Y orick da filo so fia; m as se
este estilo <5 n atu ralm en te n o sso , e vital a nossa arte, en tão qu an to
m ais o estilo tran sfo rm ar o seu m odelo, m ais pro fu n d a e v erd ad eira
será a sua arle. O b u sto au ste ro de u m a escu ltura arcaica, que m al
c h e g a a h u m a n iz a r o b lo c o d e pedra, p ode e x p rim ir m uito m ais
fielm en te o esp írito d o q ue a a p a rê n c ia m atinal e n to n tec id a ou os
esg a re s o casionais d o retratado. Q u em q u er q ue sc sin ta se n h o r do
seu espírito, o rg u lh o so d o seu m ister ou p reocupado co m o dever,
a d o p ta r á u m a m á s c a r a tr á g ic a . D e le g a r á n e la a q u ilo q u e é e
tra n s fe rirá p ara e la q u a s e to d a a su a v aid ad e. A in d a cm v id a e
su b m etid o , c o m o to d as as co isas q u e ex istem , ao fluxo subjacente
da su a p rópria su b stân cia, o in d iv íd u o cristalizou a sua alm a n um a
ideia. e. com m ais org u lh o do q u e m ágoa, ofereceu a sua vida no
altai- d as M usas. A au to co n sciên cia, c o m o q u alq u er arte ou ciência,
to rn a o seu o b je c to e seu tem a um m eio novo, o m eio d a s ideias,
no qual ele perde as su as an tig as d im en sõ es e o seu a n tig o lugar.
74 Erving GoiTman

O s n o sso s h áb ito s anim ais são transfo rm ados p ela co n sciên cia cm
leald ad e c dever, e n ó s to m am o -n o s “p essoas” ou m áscaras.60

A lra v c s d a d is c ip lin a s o c ia l, a m á s c a ra d e u m a a titu d e p o d e ,


p o rta n to , s c r firm e m e n te m a n tid a , a p a rtir de d e n tro . M as, co m o
in d ic a S im o n e d c B e a u v o ir, s o m o s a ju d a d o s a m a n te r a atitude,
atrav és de g an ch o s d ire c ta m e n te p reso s a o co rp o , q u e r de m an eira
o cu lta, q u e r de m odo patente:

M e sm o q u e ca d a m u lh er se v estisse se g u n d o a su a c o n d içã o , o
jo g o c o n tin u a ria a s c r jo g a d o : o a rtifício , co m o a a ite. p erten ce ao
rein o do im ag in ário . N ã o sc traia ap enas d o facto de as cintas, c o r­
petes. p in tu ras e m aq u ilh ag en s d isfarçarem o corpo e o rosto; m as
do facto de até a m enos artificial d as m ulheres, d e p o is d c “ v es­
tid a ". nào se ex p o r a si própria à o b serv ação ; é , co m o o q u ad ro , a
estátu a o u o a c to r em palco, um ag en te atrav és do qual se sugere
a lg u ém q ue não e stá p resen te, ou seja, a p erso n ag em que e la re­
p re se n ta m as n ão é. É esta id en tificação com alg o d e irreal, de
fixo, de perfeito, co m o o heroi de um ro m anee, c o m o um retrato
ou um busto, q ue a g ratifica; ela e sfo rç a -se p o r se id e n tific a r co m
e ssa im ag em e assim su rg ir aos seus p ró p rio s olhos estab ilizad a,
ju stific a d a no seu esp len d o r.61

Falsa representação

Indiquei atrás q ue um a au d iê n c ia é c a p a z de se o rie n ta r num a si­


tu ação co n fia n d o nas d e ix a s do d esem p en h o , e tra ta n d o esses sin ais
co m o p ro v a de alg o m aio r d o q u e os seus v eícu lo s tran sm isso res, ou
d ife re n te s d e ste s. Se e s ta te n d ê n c ia d o s e sp e c ta d o re s p a ra o re c o ­
n h e c im e n to de sin ais c o lo c a o a c to r n u m a p o siç ã o de se r m al in­
terp retad o e to rn a n ecessário q ue ele e x e rç a a su a v ig ilâ n c ia exp res-

^ Sanlayana, op. cit.. pp. 133-34.


■’! Sim one dc Beauvoir. Tin- Second Sex, irari. de H. M. Parshley, Nova lorque,
Knopf. !953. p. 533.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 75

$iva d an d o -se co n ta de ludo o q u e está a fa z e r p e ra n te a a u d iên c ia ,


en tão a m esm a te n d ê n c ia para o re c o n h e c im e n to d c sin ais c o lo c a a
a u d iê n c ia na e v e n tu a lid a d e de s e r e n g a n a d a ou d e so rie n ta d a , u m a
vez q u e ex iste m m uito p o u c o s sin ais que n ão possam se r u sad o s para
in d ica r a p resen ça de a lg u m a co isa q ue n ão está realm en te p resen te.
E é cla ro q u e n u m ero so s acto res tê m la rg a cap acid ad e e m o tiv o p a ra
re p re se n ta r falsam en te os lacio s; s ó a vergonha, a c u lp ab ilid ad e ou o
m edo os im pedem de o fazer.
E n q u a n to m em bros de u m a a u d iê n c ia é p ara nós n atu ral sen tirm o s
q u e a im p ressão q ue o a c to r te n ta d ar-n o s pode s e r v e rd a d e ira ou
fa ls a , a u tê n tic a ou fo rja d a , v á lid a o u ilu s ó r ia , E sta d ú v id a é tão
corren te q u e. co n fo rm e já sugeri, p restam o s m uitas v ez es u m a a ten ­
ção especial aos a sp ecto s d o d esem p en h o que n ão são faccis de m a­
nip ular, o q u e nos p erm ite a v a lia r m e lh o r os ín d ice s m ais s u s c e p ­
tíveis d e d etu rp ação d o d esem p en h o . (O s m éto d o s c ien tífico s u tiliz a ­
do s p e la p o lícia e os te ste s p ro jectiv o s são casos e x tre m o s d a a p li­
cação d e sta m esm a te n d e n c ia .) E se relu tan tem en te p e rm itim o s que
certo s sím b o lo s de c o n d iç ã o so cial im p liq u em o d ire ito d o ac to r a
c e rto tra ta m e n to , c o n tin u a m o s , a p e s a r d is s o , se m p re d is p o s to s a
a p o n ta r as b rechas da su a a rm a d u ra sim b ó lic a a fim de d e sa c re d itar­
m os as su as p retensões.
Q u an d o pensam os n o s in d iv íd u o s q u e ex ib em u m a fa c h a d a falsa
ou u m a “ m e ra ” fa c h a d a , n o s in d iv íd u o s q u e e n g a n a m , sim u la m e
m entem , p en sam o s n u m a d isc o rd â n c ia en tre as ap arên cias visad as e
a realid ad e. P e n sa m o s tam b ém na p o sição p re c á ria em q u e e sse s a c ­
to re s se co lo c a m , p o is a q u a lq u e r m o m en to d o seu d ese m p e n h o p o d e
aco n te c er q u a lq u e r c o isa q u e os d e sm a sc a re e d e sm in ta ab ertam en te
aquilo q ue d ec la ra ra m , v alen d o -lh es um a h u m ilh ação im e d iata e , por
v e z e s, u m a p e rd a p e rm a n e n te e m te rm o s d e re p u ta ç ã o . S e n tim o s
co m fre q u ê n c ia que s ã o essas m e sm as e v e n tu a lid a d es te rrív eis, re­
su ltan tes p ara alg u ém d o facto d e ser ap a n h a d o em flag ran te d elito
d e falsa re p re se n ta ç ã o , aq u ilo q u e a h o n e stid a d e do a c to r p erm ite
ev ita r. E s ta p e rsp e c tiv a d o sen so c o m u m p o ssu i, no e n ta n to , u m a
u tilid a d e a n alítica lim itad a.
P o r vezes q u an d o p erg u n tam o s se a im pressão v isada p e lo d esem ­
penho é v e rd a d e ira o u falsa, o q u e re a lm e n te q u erem o s perg u n tar é
76 Erving Goffman

se o ac to r está 011 não au to rizad o a ex ib ir o d esem p en h o c m questão,


sem n o s p re o c u p a rm o s e s s e n c ia lm e n te c o m o d e se m p e n h o c m si
p ró p rio . Q u an d o d esco b rim o s que alg u ém co m q u e m te m o s u m g e­
nero ou o u tro dc c o n ta c to é um im p o sto r ou um patife rem atad o , o
q u e e sta m o s a d e sc o b rir é que esse in d iv íd uo tinha o d ire ito d e re ­
p re se n ta r a a c ç ã o q ue rep resen to u , nâo e sta v a d e v id am en te a cred i­
tado p a ra o c u p a r a p o siç ã o q u e a ssu m ia . C o n sid era m o s q u e o d e ­
sem p en h o do im postor, p ara lá d o facto de o a p re se n ta r falsam en te,
p o d eria in c o rre r nou tras faltas ainda, m as m uitas v ez es o disfarce é
d esco b erto antes de term os tido a p o ssib ilid ad e d e d e te c ta r q u a lq u er
o u tra d iferen ça entre o falso d sem p en h o e o legítim o que o falso d e ­
sem p en h o sim u la . P arad o x a lm e n te , q u a n to m ais o d e se m p e n h o do
im p o sto r se ap ro x im a d a c o isa real, m ais in tensam ente no s sentim os
am eaçad o s, u m a v ez que um d esem p en h o co m petente ex e c u ta d o por
alg u ém q ue se revele um im p o sto r p o d e rá e n fraq u ece r n o n o sso es­
p írito a articu lação de o rd em m oral q ue e q u a cio n a m o s entre a q u a li­
ficação le g ítim a p a ra o ex e rc íc io d e um papel e a c ap acid ad e de de­
se m p e n h o e fe c tiv a . (O s m im os e im itaçõ es re a liz a d o s p o r a cto re s
h áb eis, q ue v in cam a to d o o m om ento q u e as suas inten çõ es são m e­
ram en te lú d icas, p arecem c o n stitu ir urn m eio q u e nos p e rm ite “per-
la b o r a r ’* alg u m as d estas ansied ad es.)
A d e fin iç ã o so c ia l de p e rso n ificação n ã o é, co n tu d o , em si p ró ­
pria. m u ito co n sisten te. P o r ex em p lo , em b o ra se con sid ere q u e é um
c rim e im p e rd o á v e l c o n tra a c o m u n ic a ç ã o p e rso n ific a r a lg u é m que
g o za de um e sta tu to sa g ra d o , co m o um m e d ic o ou um sac erd o te,
m u itas v ezes pouco nos p reo cu p arem o s se um in d iv íd u o p erso n ificar
um m em b ro de u m a c o n d iç ã o m enos p rezad a e im portante de o rdem
pro fan a, co m o um v ad io ou um servente. Q u an d o d e sco b rim o s que
e stiv e m o s em in teracção com um ac to r q ue possui um estatu to su ­
p e rio r ao q u e n o s lev o u a p ensar, tem o s bons p re ce d e n tes de raiz
c ristã p ara reag ir m ais c o m su rp resa e d esg o sto do que co m h o sti­
lid ad e. A m ito lo g ia e as n o ssa s re v ista s d e g ran d e tira g e m estã o ,
co m efeito , c h e ia s de h istó rias em que tan to o vilão co m o o herói

* T erm o dc origem psicanaiítica cue se refere à elaboração interna pelo psiquismo


de um ou outro aspecto da experiência significativa. (N.T.)
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 77

ex ib em p retensões e n g a n a d o ra s q u e são d e sm e n tid as no ú ltim o c a p í­


tulo, rev elan d o -se que o vilão não p ossui o alto estatu to que afirm a ­
va c que o h erói era de c o n d iç ã o su p e rio r <t q ue assum ia.
A lém disso , em b o ra p o ssam o s te r m á o p in iã o do s a cto res q ue. c o ­
m o os b u rlõ es, cien tem en te e x ib e m u m a falsa re p rese n tação d a s suas
ex iste n c ia s, sen tirem o s ta lv e z c e rta sim p a tia pelos que. p o rta d o re s
d e um a n ó d o a fatal, te n ta m e sc o n d e r o facto d e serem , p o r ex em p lo ,
e x -c o n d e n a d o s , v ítim a s d e v io la ç ã o , e p ilé p tic o s ou ra c ia lm e n te
im p u ro s, em vez de a d m itire m a su a a fe c ç ão e se e sfo rç a re m por
co m p e n sá -la . D o m esm o m odo. d istin g u im o s entre a p erso n ificação
de um in d iv íd u o c o n c re to , d e te rm in a d o , q u e c o n sid e ra m o s g e ra l­
m ente in d escu lp áv el, e a p e rso n ific a ç ã o q u e se refere a u m a cate­
g o ria g en érica, d esem p en h o perante, o q u al ó p o ssív el q u e os n ossos
sen tim en to s se rev elem alg o mais m oderados. A ssim , tam b ém , m u i­
tas v ez e s tem o s sen tim en to s d iferen tes ace rc a dos que falsam en te se
a p re se n ta m com o p e sso as q u e n ã o são, em v ista d e d efen d er aquilo
q u e a c h a m o s se re m a s ju s ta s a s p ira ç õ e s d e u m a c o le c tiv id a d e , e
acerca dos que p ro ced em a u m a fa lsa re p resen tação das su as p essoas
a títu lo o c a sio n a l ou p o r b rin c a d e ira , o u a c e rc a d o s q u e fazem a
m e sm a co isa p ro cu ran d o o b te r um b en efício p sico ló g ico ou m aterial
de n atu reza privada.
P o r fim . tal co m o a n o ç ã o d c “p o siç ã o ” nem sem pre se reveste de
acepções precisas, o m esm o aconiccc p o r vezes c o m a ideia de perso­
nificação. P o r ex em p lo , existem n u m ero sas categ o rias em relação às
quais a p erten ça não é u m a q u estão de ra tific a çã o form al. A d eclara­
ção d e quem se afirm a licenciado em D ireito pode ser validada ou in­
v a lid a d a cm te rm o s de facto , m as se a lg u é m se d e c la ra a m ig o de
alguém , ou verdadeiram ente crente ou am ante da m úsica, as suas pala­
vras só em term os in certo s p o d erão ser co n firm ad as ou desm entidas.
Q uando os critérios de qualificação não são critérios objectivos, e quan­
do os que desem p en h am leg itim am ente certa função não se organiza­
ram co lectiv am en te de m o d o a protegerem a prática da su a actividade,
q u a lq u e r in d iv íd u o p o d e rá p ro c la m a r-se e s p e c ia lista d a fu n ç ã o e m
causa e receber com o p u n ição apenas alg u m as gargalhadas.
T odas estas fo n te s de c o n fu s ã o sc nos d e p a ram in stru tiv a m e n te
ilustrad as na atitu d e v a riá v e l que a ssu m im o s em relação ao m o d o de
78 Hrving Goffman

tra ta m e n to d a s p esso as se g u n d o a su a id a d e e o seu sex o . É c o n ­


denáv el p a ra um rap az de q u in ze anos. q u e c o n d u z um au to m ó v e l ou
bebe num bar, ap resen tar-se co m o ten d o d ezo ito an o s. m as há n u m e­
rosos co n te x to s so ciais em que seria in co n v e n ien te para um a m ulher
n ão sc a p re se n ta r falsam en te c o m o m ais jo v em e m ais atraen te em
term o s sex u ais d o q u e efe c tiv a m en te 6. Q u an d o d ize m o s q u e d e te r­
m in a d a m u lh e r n ã o é na re a lid a d e tã o b em fe ita d e c o rp o c o m o
p a re c e e que a m esm a m u lh er não é re a lm e n te m éd ica e m b o ra p a­
re ç a sê-lo. u sam o s d iferen tes acep çõ es d a p alav ra “re a lm e n te ” . De
resto, as alteraçõ es d a fa c h a d a p essoal, q ue são co n sid erad a s falsas
re p resen taçõ es este a n o , p o d erão ser c o n sid erad as sim p les rep resen ­
ta ç õ e s d e c o ra tiv a s a lg u n s a n o s m ais ta rd e , p o d e n d o tal d ife re n ç a
v e rific a r-s e num m e sm o m o m e n to d c um s u b g ru p o p ara o u tro da
s o c ie d a d e e m q u e v iv e m o s . P o r e x e m p lo , m u ito r e c e n te m e n te
d is f a r ç a r o s c a b e lo s b ra n c o s p in ta n d o -o s to rn o u -s e u m a p rá tic a
ace itá v el, em b o ra h a ja ain d a secto res p opulares que c o n sid eram isso
a lg o d e in a d m issív e l62. A c h a m o s b em q ue o s im ig ra n te s p e rso n i­
fiquem a m e ric a n o s de ra iz n a m a n e ira c o m o se v estem e nas m a­
neiras que ad o p tam , m as co n tin u a a scr su sp eita a p rática co n sisten te
n a a m e rican izaçao do n o m e63 ou d o n ariz6-1.
T e n te m o s a g o ra u m a n o v a a b o rd a g e m d a fa lsa re p re s e n ta ç ã o .
P o d e m o s d e f in ir a m e n tira “ d e s c a ra d a ” , “ re m a ta d a ” ou e v id e n te
corn o a q u e la em rela ç ã o à qual d isp o m o s de provas ev id en tes de q u e
o seu a u to r s a b ia que e sta v a a m e n tir e o fe z d e lib e ra d a m e n te . A
afirm a ç ão d e se ter estad o num d e term in ad o lu g ar em d e term in ad o
m o m en to , p o r e x e m p lo , q u a n d o tal não foi o caso. (C erto s caso s de
perso n ificação , e m b o ra nem todos, im p licam m en tiras deste teor, ao
p a sso q u e sã o m u itas as m en tiras do m esm o tip o que não im plicam a
p e rso n ific a ç ão .) O s q ue são su rp reen d id o s no acto de d iz e r m entiras
d e sc a ra d a s sã o n ã o só d e s a u to riz a d o s d u ra n te a in te ra c ç ã o , c o m o

62 Ycr. por exem plo, "Tirimir", Fortune, Novembro dc 1951. p. 102.


Ver, por exemplo, II t .. Menckcn. l he American Language. 4“ ed.. Knopf. Nova
lorque 1936, pp. 474-525.
64 Ver, por cxcmplo. “Plastic Surgen,'". Ebony, Maio de 1949. e F. C. M acgregor c
R. Schaffner. “Screening Patients for Nasal Plastic Operations; Some Sociological
and Psychiatric Considerations” . Psychosomatic Medicine, XII. pp. 277-91.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 79

p o d e m f ic a r c o m o n o m e d e s tr u íd o , p o is n u m e ro s a s a u d ie n c ia s
te n d e rã o a p e n sa r q ue a um in d iv íd u o c a p a z d c m en tir d e sc a ra d a ­
m ente urna vez, não se d e v e v o liar de fu tu ro a d ar crédito. C o n tu d o ,
h«1 m u itas “ m en tiras in o c e n te s” , p ro fe rid a s por m édicos, p o te n c ia is
c o n v id a d o s e o u tra s p e s s o a s , que se d e stin a m p re su m iv e lm e n te a
p ro te g e r os se n tim e n to s d a a u d ie n c ia a q u em são c o m u n ic a d a s , e
q u e, de u m m o d o geral, não m erecem um ju íz o d e m asiad o severo.
(S ã o m e n tira s q u e visam m ais p ro teg er os o u tro s do que b e n e fic ia r o
eu , e das q u a is v o ltarem o s a in d a a falar.) A lém d isso , na vid a q u o ti­
d ia n a é g e ra lm e n te p o ssív e l a o a c to r c ria r in te n c io n a lm e n te q u a se
to d a a e s p é c ie de im p re s s õ e s fa ls a s sem se c o lo c a r c o m isso na
p o s iç ã o in d e fe n s á v e l d a p e s s o a q u e d iz u m a m e n tira re m a ta d a .
C e rta s té c n ic a s de c o m u n ic a ç ã o , c o m o a s in sin u açõ e s, a a m b ig u i­
d ad e e stra té g ic a e as o m issõ e s d ecisiv as p e rm ite m ao falso in fo rm a­
d o r b e n e f i c ia r d e u m e f e ito de m e n tir a s e m ter, te c n ic a m e n te ,
m en tid o . O s m eio s de c o m u n ic a ç ão de m assa têm a sua versão d esta
p rática, e d e m o n stra m q u e , atrav és de um trata m e n to d a im agem e
m e d ia n te a e s c o lh a de â n g u lo s d e f ilm a g e m a p r o p r ia d o s , u m a
re s p o s ta m ín im a a u m a c e le b rid a d e p o d e tornar-se em torrente que
tudo a rra sta 05.
O s c a m b ia n te s en tre m en tira e v erd ad e e as d ific u ld a d e s e e m ­
b a ra ç o s q u e p ro v o c a m , no c o n te x to sem reso lu çã o de c o n tin u id a ­
d e ern q u e a p a re c e m , tê m sid o o b je c to de a n á lis e s d e v id a m e n te
fo rm a liz a d a s . C e rta s o rg a n iz a ç õ e s , c o m o o s c o n s e lh o s im o b iliá ­
rio s. e la b o ra ra m c ó d ig o s e x p líc ito s d e fin in d o o grau em que é p o s­
sív el p ro d u z ir im p re ssõ e s d u v id o s a s p o r m e io de e x a g e ro s, re d u ­
ç õ e s e o m is s õ e s 66. A a d m in is tra ç ã o p ú b lic a em In g la te rra a c tu a
b a s e a n d o -s e a p a re n te m e n te n u m m o d o se m e lh a n te de e n te n d e r as
c o isa s:

65 Uma boa ilustração do que dizem os since nnmn análise da chegada a Chicago de
M acArthur durante a Convenção Nacional R epublicana dc 1952. V er K. c G. Lung,
“The Unique Perspective o f Television and iis Effect: A Pilot Study". Am erican
Sociological Review. XVIII. pp. 3-12.
66 V er, por exemplo. E. C. H ughes. "Study o f a Secular Institution: The Chicago
Heal E state B oard", d issertação d e Ph. D. in é d ita . D uparim eni cif S ociology.
University o f Chicago, 1928, p. 85.
80 Erving Goffman

A reg ra aqui (a p ro p ó sito de “d ec la ra çõ es que se d estin am a ser


d iv u lg ad as o u p ro v av elm en te o se rã o ”) é sim ples. N ã o se dev e d i­
z e r nada q ue não seja verd ad e: m as é d e sn e ce ssário e, p o r vezes,
indesejáv el, até no in teresse p ú b lico , d iz er tudo o que, te n d o al­
g u m a im p o r tâ n c ia , é ta m b é m v e r d a d e ir o ; p o r is s o o s tactos-
d e clarad o s d ev em sê-lo de m o d o co n v en ien te. É e sp a n to so tu d o o
q u e. re s p e ita n d o estes lim ite s, um re la to r hábil c o n se g u e fazer.
C in ic a m e n te , m as co m a lg u m a v e rd a d e , p o d e ria d iz e r-se q u e a
r é p lic a p e r f e ita a u m a q u e s tã o e m b a r a ç o s a le v a n ta d a p e lo s
C o m u n s será u m a resp o sta b re v e , p arecen d o d a r satisfação cabal
à p e rg u n ta fe ita , s u s c e p tív e l de s e r se n e c e s s á rio c o n firm a d a
palavra a p alav ra, n ã o d an d o lu g ar à in tro d u ção de no v o s dados
m enos co n v en ien tes, m as sem de facro re v e la r seja o q u e for.07

O d ire ito su p rim e g ra n d e n ú m e ro d a s fo rm a s so c ia is de re fin a ­


m en to m ais c o rren tes, in tro d u z in d o o u tras d a su a p ró p ria lavra. O
d ir e ito a m e ric a n o d is tin g u e e n tre in te n ç ã o , n e g lig ê n c ia c p le n a
re sp o n sa b ilid a d e ; c o n sid e ra -se a falsa a p re sen ta çã o um a c to in ten ­
cio n al. p o d e n d o re s u lta r d a acção ou d a s p a la v ra s, de d e claraçõ es
am b íg u as ou d c u m a d isto rç ã o efectiv a da v erdade, d a não re v ela ção
o u d o en co b rim en to dos facto s68. C o n sid era-se que a não re v ela ção
co n d en áv el pode variar, seg u n d o a d im e n sã o da e x istê n c ia em que se
v e r if ic a , p e lo q u e h á u m c r i t é r i o e m v ig o r p a r a a p u b lic id a d e
co m ercial e o u tro p a ra o a c o n selh am en to profissional. A lém d isso , o
d ire ito len d e a c o n sid erar que:

U m a e x p o siç ã o fe ita na c o n v ic ç ã o sin cera da v e rd a d e p o derá


ser, ap e sa r disso , neglig en te, p o r in su ficiente uso d a c a u tela ra zo á ­
vel na a v erig u ação d o s factos, o u na fo rm a de ex p re ssã o , o u em
virtude d a falta da c a p a c id ad e ou d a c o m p etên cia re q u erid a s para
o ex e rc íc io de d e te rm in a d a activ id ad e ou p ro fissão .69

0 ,1 Dale. op. f.-fí.. p. 105.


V e r W illia m L . P ro s s e r. H andbook o f the Law o f Taris. Hornbook S c rie s , S i.
Paul, M inn.. W e s t Publishing Company. 19¿1. pp. 701-776.
69 Ibid.. p. 733.
A Apresentação do Jiu na Vida de Todos os Dias 81

. ..o facto de o acusado te r ag id o d esin teressad am en te, de te r si­


do an im ad o pelos rn elh o res dos m oiivos c de ter pen sad o q u e esla­
v a a fa z e r u m fav o r a o q u eix o so , não o isen ta de re sp o n sab ilid ad es
na m ed id a em que, d e facto, o seu in ten to te n h a sido enganar.70

Q u an d o p assam os d a s u su rp açõ es de id en tid ade m anifestas e d as


m enliras rem atadas a o u tro s lipos d c falsa versão, a distinção operada
pelo se n so c o m u m e n ;rc im p re ssõ e s v e rd a d e iras c falsas re v e la -se
ain d a m e n o s d e fe n sá v e l. U m a a c tiv id a d e p ro fissio n a l c o n sid e ra d a
c h a r la ta n is m o e m d e te r m in a d a d é c a d a to rn a -s e p o r v e z e s u m a
o c u p a ç ã o le g ítim a na s e g u i n t e '1. F. v e m o s ig u a lm e n te q u e c e rta s
actividades co nsideradas, na nossa sociedade, legítim as por certas a u ­
diências serão co n sid erad as frau d u len tas p o r outras audiencias.
P o n lo ain d a m ais im p o rtan te, v erificam o s que d ificilm en te haverá
u m a p rofissão ou m odo de relação leg ítim o s, na nossa v id a q u o tid ia­
na, cu jo s acto res não *e co m etam com p ráticas o cultas in co m patíveis
c o m as im p ressõ es visadas pelo d esem p en h o . E m b o ra c erto s desem ­
penho s. ou m esm o a c tu açõ es e práticas de rotina, possam c o lo c a r um
ac to r na p o sição dc nada te r a esconder, haverá sem pre no co n ju n to
d a s su as a c tiv id a d e s c o is a s que e le n ào p o d e rá tra ta r a b ertam en te.
Q uanto m aio r fo r o n úm ero dc p ro b le m a s c o núm ero dc rotinas dc
a cçã o que cai sob a a lç a d a d o papel ou relação co n sid e ra d o s, m ais
provável será a ex istê n c ia d c aspectos secretos. A ssim , nos casa m en ­
tos bem co n seg u id o s, esp e ra m o s q u e cad a um dos parceiros tenha a
possib ilid ad e de g u a rd a r se g re d o peran te o outro de questões respei­
tantes a dinheiro, a e x p e riê n c ias p a ssad as, p eq uenas leviandades p re ­
sentes, ced ên cia a hábitos “ m aus” o u d isp en d io so s, asp iraçõ es e preo­
c u p a ç õ e s p e s s o a is, c o m p o r ta m e n to d o s filh o s , o p in iõ e s sin c e ra s
q u anto a p aren tes o u am ig o s co m u n s, ele.72 M ed ian te a co n serv ação

7 0 /hid., p. 728.
71
V er Harold D. McDowell. Osteopathy: Study o f a Semi-orihodnx ffeeling
Agency und ihr Recruitment n f its Clientele. Tvs;:1, do Mestrado inédita, Department
of Sociology, University o f C hicago. 1951.
Ver, por exemplo. D avid Dressier. "W hat D on't They I’cll Hach O ther". This
Week, 13 dc Setembro de 1953.
82 Erving Goffmait

de alg u n s p o n tos localizados dc reserva, será possível m an ter u m es­


tado de co isas d esejável na relação, sem q u e seja necessário assu m i­
rem -se rig id am en te as con seq u ên cias d o acordo celeb rad o em Iodas
a s d im en sõ es d a existên cia.
A cim a d e tu d o . ta lv e z d e v a m o s n o ta r q u e u m a im p re ssã o falsa
alim e n ta d a p elo in d iv íd u o em q u a lq u e r d as su as actu açõ es d c rotina
p o d erá ser u m a a m eaça para a relação o u papel global de que a prá-
liea d e rotina co n stitu i ap en as u m a parle, u m a vez que u m a re v ela ­
ção q u e in v alid e o d e sem p en h o num a d as áreas d a a c tiv id ad e do in­
d iv íd u o p o rá em d ú v id a n u m e ro so s o u tro s a sp ecto s em q u e ele nada
te r ia a esc o n d e r. A n a lo g a m e n te , se o in d iv íd u o tiv e r a p e n a s um a
c o isa a e sc o n d e r d u ran te o seu d esem p en h o , e ainda q u e a p ro b a b ili­
d a d e d a re v e la ç ão d o q u e e s tá e sc o n d id o se v e rifiq u e ap en a s num
m o m en to o u frase p articu lar do d esem p en h o, a sua e v en tu al a n sie­
d ad e. en q u a n to actor, p o d erá a c a b a r p o r c o n ta g ia r todo o d e sem p e ­
nho, e m te rm o s de conju n to .
N o s p a rá g ra fo s a n te rio re s d e ste c a p ítu lo , s u g e rim o s c e rta s ca ­
ra c te rístic as g e n é ric a s d o d ese m p e n h o : a a c tiv id a d e o rie n tad a p a ra
tarefas de tra b a lh o ten d e a con v erter-se e m a c tiv id ad e o rien ta d a para
a co m u n icação ; a fa c h a d a de ap resen tação de um a p rá tic a de rotina
ten d e á c o n v ir tam b ém a o u tras práticas d e rotina d ife re n te s, sem .
p o r co n seg u in te, se a d a p ta r p o r co m p leto a q u a lq u e r p rática de rotina
d e te rm in a d a ; é e x e rc id o um a u to c o n tr o le s u fic ie n te e m v is ta da
c o n s e rv a ç ã o d o c o n s e n s o fu n c io n a l: a im p re ssã o v isa d a to rn a -se
o b je c to de id ea liz a çã o p o r m eio d a insistência cm ce rto s facto s e da
d is s im u la ç ã o de o u tro s; a c o e rê n c ia e x p re ssiv a é su ste n ta d a p elo
facto d e o a c to r ter o cu id ad o de e v ita r d isso n ân cias m enores c o m as
q u ais a a u d iê n c ia , d a d o s os p ro p ó sito s e x p líc ito s do d e se m p e n h o ,
ten d erá a p e n sa r q u e ele não deve p reo cu p ar-se. T o d as estas caracte­
rísticas g en éricas e m term o s d e d esem p en h o p o d e m s e r co n sid erad as
im p o siçõ es da in teracção , ag in d o so b re o in divíduo e tra n sfo rm a n d o
as suas activ id ad es em rep resen tação . E m vez de se lim itar a exercer
a su a tarefa e a e x p rim ir os seus sen tim en to s, o a c to r ex p rim irá que
e stá a fa z e r a su a ta re fa e tran sm itirá n esse co n tex to os sen tim en to s
tid o s co m o m ais a d e q u ad o s. D e um m o d o gem i, p o rtan to , a rep re ­
s e n ta ç ã o de u m a a c tiv id a d e d ife rirá em m a io r ou m e n o r g ra u da
A Apresentação do Fu na Vida de Todos os Dias S3

a c tiv id a d e em si p ró p ria , assim in e v ita v e lm e n te a d is to rc e n d o . E


u m a v ez q ue se ex ig e a o in d iv id u o q u e c o n fie ern sin ais a fim de
c o n s tru ir u m a re p re s e n ta ç ã o da su a a c tiv id a d e , a im a g e m p o r e le
co n stru íd a, e m b o ra fiel ao s facto s, fic a rá e x p o sta a todas as p e rtu rb a­
çõ es su scep tív eis dc a fe c ta r ta m b é m as im pressões.
E m b o ra co n serv em o s a id eia d o sen so c o m u m seg u n d o a qual as
a p a rê n c ia s v isa d a s s e rã o p o sta s c m c a u sa p o r u m a re a lid a d e d is ­
cordante, não há com fre q u ê n c ia razão q u e nos p erm ita a firm a r q u e
os factos que d isco rd am d a im p ressão v isad a p erten cem m ais à reali­
dad e real d o q u e a re a lid a d e visada q ue p ertu rb am . U m a p ersp e ctiv a
cín ica d o s desem p en h o s q u o tid ian o s p o d erá ser tão unilateral co m o a
ado p tad a pelo actor. S o c io lo g icam en te falan d o , em num ero so s caso s,
não será seq u er n ecessário d ecid irm o s qual é m ais real. se a im p res­
são visada, se a que o ac to r te n ta fa z e r co m que a a u d iê n c ia n ão rece­
ba. Sociologicam ente, p ara esta investigação pelo m enos, o ponto d eci­
sivo está no sim ples facto d e as im pressões visadas pelos desem penhos
d a v id a q u otidiana serem su scep tív eis de p ertu rbação. O que q u ere ­
m os é sab er que espécie de im p ressão d e realid ade será c a p a z d e q u e ­
b ra r a im p ressão de realid ad e visad a, p o d en d o a q u estão de sa b e r o
qu e é realm ente a realidade s e r deix ad a a outros investigadores. O que
p e rg u n tam o s é o seguinte: “ Q uais sã o os m eios pelos quais u m a dad a
im pressão pode ser d esm en tid a?" o q ue não é b em a m esm a c o isa
que perg u n tar: “D e q u e m o d o s pode a im pressão dad a ser falsa?”
V oltam os, p o rtan to , à ideia de q u e , em b o ra os d e se m p en h o s pro­
p o rcio n a d o s p o r im p o sto re s e m e n tiro so s sejam flag ra n te m en te fal­
so s e d if ir a i-ob e s s e a s p e c to d o s d e s e m p e n h o s c o r r e n te s , u n s e
o u tro s s ã o s e m e lh a n te s p e lo c u id a d o q u e o s seu s a c to re s d e v e m
ad o p tar a firn dc d e fe n d e rem a im p ressão visad a. D esta m an eira, por
ex em p lo , sab em o s que o c ó d ig o e x p líc ito que reg e o c o m p o rtam e n to
d o s fu n c io n á rio s p ú b lic o s b ritâ n ic o s -’ , ou o c o m p o rta m e n to do s
árb itro s de baseball a m e r ic a n o s ^ , v in cu la-o s n ã o só a ren u n ciarem a
“ n e g ó c io s ” m en o s sé rio s, m as ta m b é m a q u a lq u e r a c ç ã o in o c e n te
q u e p o s s a tra n s m itir a im p re s s ã o (e rra d a ) d c q u e fu n c io n á rio s e

^ Dale. op. d r.. p. 103.


/4 Pinclü. op. d r.. p. 100.
S4 Hrving Goffman

árb itro s se e n tre g a m a n eg ó cio s m en o s sé rio s. Q u e r um a c to r h o ­


nesto d esó je tra n s m itir a v e rd a d e , q u e r urn a c to r d e so n e sto d e se je
tra n sm itir u m a m en tira, am b o s d ev em tratar d e c o n fe rir aos seus d e ­
s e m p e n h o s as e x p r e s s õ e s a p r o p r ia d a s , e e x c lu ir d e le s q u a lq u e r
e x p re ssã o suscep tív el de d esm en tir a im p ressão visad a, ev ita n d o ao
m e sm o te m p o q u e a su a a u d ie n c ia lhes a trib u a in te n ç õ e s in e sp e ­
ra d a s 7-. L e v a n d o em co n ta estas co n d içõ es de d ram a tiz açã o co m uns,
p o d e re m o s a n a lisa r m e lh o r c e rto s d e se m p e n h o s, de u m a fa lsid a d e
n o táv el, ap ren d en d o , en tretan to , bastante so bre outros caracterizad o s
p o r u m a hon estid ad e suficiente.

M istificação

Indiquei a lg u n s dos m odos co m o o d e sem p en h o de um indivíduo


su b lin h a c e rto s a sp e c to s c d is s im u la o u tro s. Se c o n s id e ra rm o s a
p ercep ção u m a fo rm a de c o n ta c to e p articip ação , então o c o n tro lo
so b re o q u e é p erceb id o é o co n tro lo sobre o co n ta cto que se estab e­
lece, e a lim itação e reg u lação d o q u e é m ostrado tran sfo rm a -se em
lim itação e re g u la ç ã o d o co n tacto . E sta m o s, por isso, peran te um a
re la ç ã o e n tre te rm o s in fo rm a c io n a is e te rm o s ritu a is . A fa lh a na

7' Devemos aqui m encionar uma excepção a esta analogia, ainda que sc trate dc
um a excepção pouco abonatória do ponto dc vista dos actores honestos. Conforme
anteriorm ente dissemos, os desempenhos legítimos habituais tendem a insistir até
ao exagero mi aspecto único de determinada representação dc uma prática de rotina.
P or o u tro lad o , d esem p en h o s de co n sid e rá v e l falsid a d e p o d erão a c e n tu a r a
dim ensão rotineira da sua prática cm vista dc não levantar suspeitas.
I lã outra razão ainda para que prestemos atenção aos desem penhos c Tachadas
mais flagrantemente lalsos. Quando vemos que antenas de televisão falsas são com
pradas por pessoas que não possuem aparelhos dc televisão. e embalagens de ró­
tulos de bagagem exóticos por pessoas cue nunca saíram da terra, além d e acessó­
rios especiais por condutores de automóveis banais que não podem servir-sc dessas
aquisições, som os confrontados alé à evidência com as funções im pressivas de
objectos supostamente instrumentais. Assim, quando estudámos a coisa real. ou se­
ja. as pessoas com verdadeiras antenas dc televisão c aparelhos de televisão verda­
deiros. eic., deparam os em numerosos casos com a dificuldade dc dem onstrar de
m aneira concludente a função im pressiva de objectos que nos serão apresentados
com o correspondendo a acções espontâneas ou pura e simplesmente instrumentais
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 85

reg u lação d a in fo rm ação ad q u irid a pela au d iê n c ia im plica u rn a ru p ­


tu ra p o ssív e l na d efin ição p ro jectad a d a situ ação ; a la lh a na re su la -
ção do c o n tacto im p lic a u m a co n tam in ação ritu al p o ssív e l do actor.
h m u ito co m u m a id eia se g u n d o a qual as restriçõ es im p o sta s ao
c o n ta c to , a c o n s e rv a ç ã o d a d is tâ n c ia so c ia l, sã o um m e io de e n ­
g e n d ra r c a lim e n ta r u m a re v e rê n c ia tim o ra ta en tre o s m em b ro s d a
au d iê n c ia um m eio. c o m o d isse K enneth B urkc. de m a n te r a au­
d iê n c ia n u m e s ta d o d e m is tif ic a ç ã o p e ra n te o a c to r. A s e g u in te
afirm ação de C ooley p o d e se rv ir-n o s de ex em p lo :

A p o ssib ilid ad e p a ra u m h o m em d e d a r aos outros u m a ideia


fa lsa d e si p ró p rio d e p e n d e de u m a v aried ad e de circu n stân cias.
C o m o j á assin alám o s, a pessoa p o d e não p assar de um m ero pre­
texto, sem q u a lq u e r re la ç ã o c o m a id eia fo rm ada a seu respeito,
.sendo e sta ú ltim a u m p ro d u to in d ep en d en te da im ag in ação . E ste
caso c o n tu d o d ific ilm e n te se reg istará, a não se r na a u se n c ia de
q u a lq u e r c o n ta d o im e d ia to entre o líd er e o d iscíp u lo , o q u e ex p li­
ca em p a rte p o rq u e é q u e a au to rid ad e, so b retu d o q u a n d o tem por
trás u m a fra q u e z a p e s s o a l in tern a, ten d e se m p re a ro d e ar-se de
fo rm a lid a d e s e d e u m c lim a a r tific ia l d e m is té rio , c u jo fim é
im p e d ir um co n tacto m ais fa m ilia r e d e ix a r d esse m odo à im ag i­
n aç ã o o cam p o d e m a n o b ra re q u e rid o pelas suas id e a liz a ç õ e s... A
d isc ip lin a im p o sta no ex ército e na m arin h a, por ex em p lo , e q u i­
vale a um re c o n h e c im en to cla ro da n e c e ssid a d e d e ssa s fo rm a lid a ­
des q u e sep aram o s u p e rio r do su b o rd in a d o , co n trib u in d o a o m e s­
m o tem p o p ara in sta u ra r u m ascen d en te in co n testad o d o p rim eiro.
D o m esm o m odo, as atitu d es, co m o o b se rv a o p ro fesso r R o ss no
seu tra b a lh o .sobre “c o n tro lo so c ia l” , são a m p la m e n te u tiliz a d o s
p elo s h o m e n s d e s o c ie d a d e c o m o m eio s de a u to d issin m la ç ã o , e
e s s a a u to d is s im u la ç ã o , e n tre o u tro s fin s , v isa a sa lv a g u a rd a d c
u m a esp écie de a sc e n d e n te em re la ç ã o às p essoas sem m a n eiras.77

P o n so n b y . nos seus c o n se lh o s ao rei d a N o ru e g a, faz -se e c o d a


m esm a teoria:

' ~ Cooley, op. rii,, p 351.


86 lirving Coffman

C orla n o ite o rei H aak o n falo u -m e d as suas d ificu ld ad e s frente


às te n d ê n c ia s re p u b lic a n a s d a o p o s iç ã o e d o c u id a d o q u e p o r
c o n seg u in te tin h a que te r co m tudo o que fazia ou d izia. T en cio n a­
va. se g u n d o m e ex p lico u , an d ar ta n to q u anto p o ssív el no m eio das
ou tras p e sso a s, e p en sav a que se to rn a ria m ais p o p u la r se. em vez
de se se rv ir d e um au to m ó v el, ap an h asse, na c o m p an h ia d a rain h a
M au d , o c a rro eléctrico .
R e sp o n d i-lh e com to d a a fran q u eza que tu d o isso m e p arecia
um erro grav e, u m a v ez q ue a fa m ilia rid ad e traz c o n sig o o d e s­
dém . N a su a q u alid ad e d e o ficial d a m arinha, o rei d a N o ru e g a d e ­
v ia sa b e r q ue o c a p itã o de um navio n u n ca to m a as refeiçõ es com
os o u tro s o ficiais, m a n te n d o -se n um lu g a r à parte. O que tem por
e fe ito , e v id e n te m e n te , im p e d ir q u a lq u e r fa m ilia rid a d e e x c e ssiv a
ao nível d o relacio n am en to . D isse-lh e que o que d ev ia faze r era
s u b ir p a ra um p e d e sta l e a í se d e ix a r p e rm a n e c e r. D c v e z cm
q u a n d o , p o d e ria d e s c e r à te rra , sem q u e isso a c a rre ta sse e n tã o
q u a lq u e r in c o n v e n ie n te . P o rq u e o p o v o não q u e r u m rei c o m
q u e m tra te de ig u a l p ara ig u a l, m as a n tes u m a fig u ra n e b u lo sa
c o m o o o rá c u lo d e D e lfo s. A m o n a rq u ia c. na re a lid a d e , um a
c ria ç ã o de ca d a c é re b ro in dividual. T o d o s o s ho m en s g o sta m dc
im ag in ar o que fariam , se fo ssem o rei. A s p esso as in v estem no
m o n a rc a to d a s as v irtu d e s c ta le n to s c o n c e b ív e is , e fa z e m -n o .
c a d a u m a d e la s, seg u n d o as suas p referên cias. H ra de p re su m ir por
isso q u e ficassem d e sap o n tad as se v issem o rei, no m eio delas, a
a n d a r p ela rua, co m o um h o m em eom urn. ' s

E s ta e s p é c ie d c te o ria , s e ja ou n ão c o rre c ta , te m c o m o c o n s e ­
q u ê n c ia ló g ic a e x tre m a p ro ib ir a au d iê n c ia d e o lh a r p a ra o a c to r in­
d e p e n d e n te m en te «.las c irc u n stâ n c ias d a d a s, c d e facto é isso o que
se p assa nos caso s em que o a c to r c o n se g u e fa zer re c o n h e c e r um
m á x im o d e p re te n sõ e s relativ as a o s seus p o d e re s e q u a lid a d e s su-
p ra te rre n o s.
Sem dú v id a, no q u e se refere à m an u ten ção de um a d istâ n c ia so ­
cial. a p ró p ria au d ien cia m u itas vezes co o p erará nessa tarefa ao ag ir

Ponsonby, op. cii„ p. 277,


A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 87

d e m o d o re sp e ito so e ao c o n s id e ra r co m re v e re n c ia a in te g rid a d e
sa g rad a im p u tad a ao actor. C o m o e screv e S im m el:

In flu e n c ia r a seg u n d a destas d ecisõ es co rresp o n d e ao sentim ento


(presente lam bem n o u tro s lugares) de q ue u m a esfera ideal rodeia
c a d a s e r h u m a n o . E m b o r a d if ir a na su a d im e n s ã o s e g u n d o as
diversas; d irecções, e em b o ra seja d iferen te seg u n d o a pessoa co m
q u e e n tra m o s em re la ç ã o , a e s fe ra n ã o p ode s e r p e n e tra d a , sob
p e n a de destru ição d o v a lo r da p erso n alid ad e d o indivíduo. O ho­
m em e n co n tra-se ro d ead o p o r u m a e sfe ra d este tip o que é a sua
“h o n ra” . A linguagem c o rre n le d esig n a co m p erspicácia u m a o fe n ­
sa à h o n ra d e alg u ém q u a n d o fala a esse p ro p ó sito dc “ intim idade
ex c essiv a ” ; o raio d a e s fe ra assin ala, p o r a ssim d izer, a distância
c u ja transposição p o r outrem significa um a o fensa à honra.79

D u rk h e im faz u m a o b se rv a ç ã o sim ilar;

A p esso a h u m an a é u m a c o isa sag rad a; n in g u ém p o d e v io lá-la


ou in frin g ir o s se u s lim ite s, em b o ra ao m esm o te m p o o bem m aior
e ste ja n a p a rtic ip a ç ão co m os o u tro s.80

D ev em o s d e ix a r claro, co n trarian d o as co n c lu sõ e s que se d e p re e n ­


dem d a s o b se rv a ç õ e s d e C ooley, que o te m o r re sp eitu o so e a d is ­
tân c ia são ex p e rim e n tad o s ta n to p e ra n te acto res d e estatu to igual ou
in fe rio r c o m o p e r a n te (e m b o ra n ão n o m e sm o g ra u ) a c to r e s de
esta tu to superior.
S e ja q u al fo r a su a fu n ç ã o p ara a a u d iê n c ia , estas in ib içõ es d o s
esp ectad o res p erm item a o a c to r ce rto c a m p o de m a n o b ra para c o n s­
tru ir u m a im p ressão q u e e le p ró p rio e sc o lh e , d an d o -lh e ta m b é m a
p o ssib ilid a d e de as u tilizar, v isan d o os seus p róprios in teresses ou os
d a au d iê n c ia , c o m o u m a p ro te c ç ã o ou a m e a ç a q ue u m a in sp ecção
m ais ce rra d a acab aria p o r destruir.

The Sociology o f Georg Simmel, trad, e org. de Kurt H. WoltY. The Free Press,
Glencoe, III., 1950, p. 321.
Emile Dürkheim, Sociology a n d Philosophy, irad. D. F. Pococfc. Cohen & W est.
Londres. 1953, p. 37.
88 E rvins Goffman

G o staria, p o r fim , de acre sc en ta r q u e os aspectos q u e a aud ien cia


deix a dc lado, d e v id o a o resp eito que o a c to r lhe im p õ e, são asp ecto s
q u e p ro v av elm en te fariam este ú ltim o sentir-se e n v e rg o n h ad o , caso
v ie s s e m a s e r e x ib id o s . C o m o R ie z le r su g e riu , te m o s a ssim um a
m oeda social fu n d am en tal, cu jo tem o r resp eitoso é u m a das faces,
sen d o a o u tra a v e rg o n h a 85. A a u d iê n c ia te m a im p re ssã o de que
ex iste m m isté rio s e p o d e re s secreto s p o r trás do d e se m p e n h o , e o
a c to r tem a im p ressão de q u e os seu s seg red o s são in significantes.
C o m o m o stra g ran d e n úm ero dc co n to s p o p u lares e ritos de p assa­
gem . o v e rd a d e iro seg red o q u e o m isté rio e sc o n d e 6 m u ita s vezes
que não há segredo; o p ro b lem a está em n ão d e ix a r que tam bém a
au d iê n c ia venha a d ar-se co n ta de q u e assim é.

R ealidade e A rtifício

N o q u a d ro da n ossa c u ltu ra ang lo -am ericana, p arecem e x istir dois


m o d elo s d o sen so co m u m seg u n d o os q u ais são fo rm u lad a s as n o s­
sas c o n c e p ç õ es de c o m p o rtam en to : o d e se m p e n h o verd ad eiro , s in ­
ce ro e h o n esto , e o d e se m p e n h o falso, q u e nos é e x ib id o por sim u la ­
d o re s e m p ed ern id o s, q u e r não p reten d am se r le v a d o s a sério, c o m o é
o caso d o tra b alh o dos acto res num teatro , q u e r .seja isso m esm o o
q u e acim a de tudo pretendem , c o m o é o c aso das activ id ad es a que
se e n tre g a um bu rlão . T en d em o s a c o n sid e ra r os d e se m p en h o s v er­
d a d e iro s c o m o a b so lu ta m e n te d e sp ro v id o s d c p lan o , c o m o p ro d u ­
ç õ e s não d e lib e ra d a s dc um in d iv íd u o não co n sc ie n te do s seu s ges­
tos, cm re sp o sta a um a d ad a situ ação . E ten d em o s a c o n sid e ra r os
d e se m p e n h o s de a rtifíc io co m o lab o rio sam ente c o n c e b id o s e m o n ta­
d o s, p e ç a fa ls a a trá s d e p e ç a falsa, p o is q u e n ã o e x is te q u a lq u e r
re a lid a d e a que o s d iv e rso s a sp e c to s d o c o m p o rta m e n to em ca u sa
d ire c ta m e n te c o rre sp o n d a m . S e ria n e c e ssá rio q u e v ísse m o s a g o ra
q u e e s ta c o n c e p ç ã o d ic o tô m ic a é . a fin a l, a id e o lo g ia d o s a c to re s
h o n e sto s, id e o lo g ia q u e , sem d ú v id a , c o n fe re m a io r v ig o r ao seu

Kurt Riezler, “Comment on the Social Psychology o f Shame” , A m erican Journal


o f Sociology. Xt.VIII. p. 462 e secs.
A Apresentação do F.u na V ida dc Todos os Dias 89

esp ec tá c u lo , m as q ue nem p o r isso co n stitu i m en o s u m a an álise d e fi­


ciente deste últim o.
E m prim eiro lugar, d ig a m o s q ue h á n u m ero so s in d iv íd u o s que sin ­
ce ram en te acred itam q u e a d efin ição da situ ação q u e hab itu alm en te
p ro je c ta m é a realid ad e real. N este estu d o n ào preten d o in q u irir d a
p ro p o rção q ue representam n a p o p u lação global, m as antes e x a m in a r
a relação estrutural e x iste n te en tre a su a sinceridade e os d e se m p e ­
nhos q u e p õ em em cen a. E n q u a n to se d e se n ro la u m d esem p e n h o , os
esp ectad o res d ev em p o d e r a c re d ita r em term o s g erais na sin c erid ad e
d o s acto res. Tal é o lu g a r estru tu ral da sin cerid ade na tram a d ram a-
túrgica d a acção . O s acto res podem , sem d ú v id a, se r sin c ero s — ou
insincero s, m as sin ceram en te co n v en cid o s da su a sin cerid ad e — só
q u e esse g én ero de atitu d e e m relação ao d esem p en h o não é con d ição
n e cessária da rep resen tação de um papel co n v in cente. X ão é grande
o n úm ero de co zin h eiro s fran ceses que são na realidade esp iõ es ru s­
sos, c talvez não seja ex c e ssiv o tam b ém o n úm ero das m u lh eres que
d e se m p e n h a m papel d e e sp o sa s dc um h o m e m e o de a m a n te s de
outro, m as é v erd ad e q u e ta is co m p o rtam en to s de d u p licid a d e sc ve­
rificam de facto, sen d o com freq u ên cia m an tid o s co m ê x ito durante-
períod o s d e tem p o m u ito p rolongados. O q u e sugere q ue, em b o ra as
p essoas h ab itu alm en te se ja m o q u e p arecem ser. essa ap a rê n cia pode
tam b ém ser u m a m o n tag em . P o rtan to , ex iste u m a relação estatística
e n tre a s a p a rê n c ia s e a re a lid a d e , e n ã o u m a relaç ão in trín s e c a e
n e c e s s á ria . C o m e f e ito , d a d a s a s a m e a ç a s im p re v ista s q u e a g e m
sobre um d esem p en h o , c d a d a a n ec e ssid a d e (que a n alisarem o s m ais
tarde) p o r parle d o ac to r d e m an ter a su a so lid aried ad e em relação
aos seus com p an h eiro s d e d esem p en h o e certa d istân c ia e m relação
a o s esp ectad o res, v erificam o s q u e u m a in cap acidade rígida p o r parte
do ind iv íd u o de d eix ar de lado a im ag em interior q u e faz d a reali­
dade será su scep tív el de le sa r o seu d esem p en ho. C ertos d e se m p e ­
nh o s p o d em ter ê x ito se n d o a c o m p a n h a d o s de u m a d e so n e stid a d e
co m p leta, o u tro s pela m a io r das h o n estid ad es; m as. na g en eralidade
d o s c a s o s , n e n h u m a d e s ta s h ip ó te s e s e x tre m a s é e s s e n c ia l n em .
pro v av elm en te, a c o n selh áv el d o pon to d e vista da dram atização.
O q u e e s tá aqui im p lícito é q u e um d e se m p e n h o h o nesto, sério e
sin c e ro tem u m a lig a ç ã o m en o s firm e c o m a realid ad e d o m u n d o d o
90 lirving Goffman

que à p rim eira vista p o d eríam o s pensar. E sta c o n c lu sã o sai reforçada


q u a n d o v o ltam o s a e x a m in a r a d istân cia h a b itu alm e n te estabelecida
e n tre o s d e s e m p e n h o s m a is h o n e s to s e os m ais a rtific ia is . D este
p o n to d e vista, co n sid erem o s, p o r cxcrnplo. o no táv el fen ó m en o d a
re p re se n ta çã o teatral. S er um bom a c to r de teatro é alg o que ex ig e
urna ap tid ão p rofunda, um a p rep aração d e m o ra d a e u m a cap acid ad e
p s ic o ló g ic a pecu liar. M a s tal fa c to n ã o d ev e c e g a r-n o s p a ra o u tro
diferen te: quase toda a gente é cap az de a p ren d er com rap id ez um
p a p e l d ra m a tú rg ic o s u fic ie n te m e n te bem p a ra o p o d e r re p re se n ta r
p e ra n te u m a a u d iê n c ia c o m p la c e n te dc m odo a c o n se g u ir in cu lca r
um efeito d e realid ad e ao seu artifício. Isto parece a c o n te c er d e v id o
ao fa c to d c o in te rc â m b io so c ia l c o rre n te se o rg a n iz a r d o m esm o
m o d o q u e se o rg a n iz a a re p re s e n ta ç ã o em p alco , a tra v é s d e um a
tro ca de acçõ es, o p o siçõ es e rép licas co n clu d en tes, d ram a ticam en te
e la b o ra d a s . O s te x to s e sc rito s p a ra o te a tro , m e sm o nas m ã o s de
a c to re s im p rep arad o s, p arecem g a n h a r vida um a vez que a própria
v id a é e n c e n a çã o . O m u n d o in teiro , sem du v id a, n ão é um p alco ,
m as não é fácil c o n c re tiz ar os m odos d ecisivos que fazem co m q u e o
n ã o seja.
A re c e n te u tiliz a ç ã o d o “p s ic o d ra m a ” c o m o té c n ic a te ra p ê u tic a
ilu s tra um o u tro a s p e c to d o q u e e s ta m o s a d izer. N a s c e n a s p s i­
q u iá tric a m e n te e n c e n a d a s do p sic o d ra m a , os p a c ie n te s n ã o só re­
p r e s e n ta m c o m e f ic á c ia o s s e u s p a p é is , c o m o o f a z e m se m se
se rv ire m d o apoio seja d e q ue te x to for. O seu pró p rio passado to m a-
-se-lh es acessív el sob u m a fo rm a que lhes p erm ite en c en a rem u m a
su a re c a p itu la çã o . A p a re n te m e n te u m a a c ç ão o u tro ra re p re se n ta d a
h o n e sta m e n te e a sério c o n fe re ao a c to r a c ap a cid ad e d c fo rja r u m a
su a e n c e n a çã o posterior. A lem d isso , as acções que os outros m ais
sig n ificativ o s rep resen taram perante ele no p assad o p arece m e n c o n ­
tra r-se ta m b é m ao se u a lc a n c e , p e rm itin d o -lh e tra n s fo rm a r-s e d a
p esso a que e ra nas p e sso a s q u e os o u tro s foram para ele. ü s ta c a ­
p a cid ad e que o in d iv íd u o tem de p assar da rep resen tação d e urn p a ­
pe! h d e outro qu an d o isso lhe é e x ig id o seria de p rev er; ao q u e p a re ­
ce, to d a a g en te a po ssu i. P o rq u e ao ap ren d erm o s a d e se m p e n h a r os
n o s so s p a p é is n a v id a real o rie n ta m o s a s n o s s a s re p r e s e n ta ç õ e s
m an ten d o , d e m odo n ão in teiram en te con sciente, urna fam iliarid ad e
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dios 91

in cip ien te c o m as p rálicas d c ro tin a d aq u eles a q u e m no s dirigirnos.


Ti q u a n d o nos to rn a m o s c a p a z a s de g e rir c o n v e n ie n te m e n te urna
p rá tic a de ro tin a eficaz, isso d e v c -sc c m p a ite a u m a “so c ializa ção
a n tecip ad a” 82, através d a qua! j á fom os in stru íd o s na realid a d e que
c o m eça a sc r p ara nós real.
Q u a n d o o in d iv íd u o p assa a o c u p a r um a n o v a p o sição no q u ad ro
d a so c ie d a d e , o b ten d o u m n o v o papel para rep resentar, não parece
te r n e c e ssid a d e de q u e lhe d ig a m em p o rm e n o r c o m o d e v e rá c o m ­
p ortar-se, em b o ra os a sp ecto s factu ais da n ova situ ação tam b ém não
se lhe im p o n h am d esd e o início c o m a p recisão suficiente p a ra d e te r­
m inarem o seu c o m p o rta m e n to sem n e c e ssid a d e d c reflex ã o poste­
rior. H a b itu a lm e n te , o in d iv íd u o re c e b e rá a p e n a s a lg u m as o rie n ta ­
ções. d e ix a s e indicaçõ es de cen a, c o n sid e ra n d o -se que ele p o ssu i já
no seu rep o rtó rio u m a b o a q u a n tid a d e d as in fo rm açõ es e so lu çõ e s de
d e sem p en h o req u erid as pelo n o v o q u ad ro . O ind iv íd u o já te rá u m a
ideia razoável do que sig n ific a m a m o d éstia, a d e ferên cia ou a j u s t a
in d ig n ação , pod en d o se rv ir-se d esse sab er q u an d o disso fo r caso. Hm
c e rta s c irc u n s tâ n c ia s , s e rá a té c a p a z d c d e s e m p e n h a r o papel de
pesso a h ip n o tiz a d a 83 o u de c o m e te r “c o m p u lsiv am en te ” um c rim e 84
d e a c o rd o co m os m o d e lo s que p ara e ssa s a c tiv id a d e s lh e são j á
fam iliares.
Um d e sem p en h o teatral o u a en cen ação de u m a burla ex ig em um a
co m p o siç ã o co m p leta d o co n teú d o verbal da p rática de rotina c o rre s­
pondente; m as, co m freq u ên cia, g ran d e p arte da “e x p re ssã o tran sm i­
tid a " s e rá d e te rm in a d a p o r in d ic a ç õ e s de c e n a su cin tas. E sp e ra -se
q u e o ac to r que fo rja a ilusão já saiba bastan te b em c o m o c o lo c a r a
v oz, a p resen tar o rosto, o rie n ta r o corpo, em b o ra e le — c o m o q u a l­
q u er p esso a que o e ste ja a d irig ir — p o ssa a ch ar difícil p ro ce d er a
um resu m o verbal c o m p le to do saber q u e p ossui n a m atéria. A qui.

V er R. K. M erton. S o c ia l T heory atid Social S tru ctu re, The Free P ress.
Cilcncoc. II!.. edição revista c aum entada. 1957. p. 265 e segs.
F sta c o n c e p ç ã o da h ip n o s e c c la ra n u ín ie e x p o s ta p o r T. R . S a rb in ,
“C ontributions to Role-Taking Theory. I: H ypnotic R ebaviour". P sychological
Review.. 57, pp. 255-70.
8-1
V er D, R. C rcssey, "T he D ifferential A ssociation Theory and C om pulsive
Crimes". Journal o f Criminal I jiw . Criminology a n d Police Science, 45, p£. 29--0.
92 Erving Goffnian

sem dú v id a, ap ro x im am o -n o s d a situ ação q ue é a de u m a p esso a c o ­


m um n o m e io da rua. A so cialização não im plica tanto u m a ap re n d i­
zag em d o s n u m ero so s asp ecto s co n creto s de um d a d o papel singular
— p a ra o q u e m u itas v ezes n ã o seria possív el dispor-se do tem po ou
en e rg ia necessários — com o parece ex ig ir do indivíduo que aprenda
os recu rso s de exp ressão suficien tes para ser capaz de “fazer" e gerir,
co m m aio r ou m en o r eficácia, q u a lq u e r papel que lhe p o ssa .ser a tri­
buído. O s d esem p en h o s legítim os da vida q u o tid ian a não são “rep re ­
sen tad o s” ou “ m o n tad o s” no sen tid o de o actor sab er an tecip ad am en ­
te o que vai fa z e r em c e n a ocasião , fazen d o -o a p e n a s em vista d c urn
efeito p ro v áv el com que já conta. As ex p ressõ es q u e ac h am o s que
ele em ite p o d e rã o se r-lh e alé e sp e c ia lm e n te “in a c e ssív e is” 8- . M as.
tal co m o é o caso de acto res m enos leg ítim os, a incapacidade d o in­
d iv id u o c o m u m para fo rm u la r antecip ad am ente os m o v im en to s dos
seus olhos e do seu co rp o não sign ifica q ue ele não se ex p rim a por
esses m eio s de um m odo d ram atizad o e p red efin id o p elo scu report ci­
rio de actu açõ es. Hm su m a, a ctu am o s m elh o r do que sab em o s com o.
Q u a n d o vem o s na te le v isã o um lu ta d o r q u e a ta c a co m d e s le a l­
dad e, in su lta e am eaça o ad v ersário , e stam o s de a n tem ão prep arad o s
para a d m itir que, a p e sa r de to d o e sse ap arato, elo está sim p lesm en te
a re p re se n ta r o papel de “ m au ” , e q u e. n u m p ró x im o co m b a te , po­
d erá se r-lh e atrib u íd o um papel d iferen te, o do lu tad o r perfeito, que
o in d iv íd u o d e s e m p e n h a rá c o m a m e s m a in te n s id a d e e e fic á c ia .
C o n tu d o , e stam o s m enos d ispostos a a d m itir que, em b o ra asp ecto s
co m o o n ú m ero e co n fig u ração d as qued as seja p rev iam en te e stab e­
lecid o , os traço s e x p re ssiv o s e m o v im en to s u tilizados pelo lu tad o r
não s ã o o resu ltad o de um tex to q ue os prescreve, m as c o n se q u ê n ­
cias de um id io m a q ue os im põe. ag in d o a cada m om ento sem a in­
terv en ção de g ra n d e s cálcu lo s ou d elib eraçõ es co n scien tes.
Q u an d o lem os q u e há. nas A n tilh as, in d ivíduos que p assam a ser
“o c a v a lo ” ou sã o possu íd o s p o r um e sp írito vodu5*6, é sig n ificativ o

c r . T . R. Sarbin. “R ole T heory", em Gardner l.m dzey, H andbook o f Social


Psychology, Addison-W esley. Cambridge. 1954, V'ol I, pp 235-36
V er, por exemplo. Alfred Méiraux, "D m mulio Elem ents in Ritual Possession”.
Diogenes. I I . pp. 18-36.
A Aprescntaçao do Hu na Vida dc Todos os Dias 93

d e sco b rirm o s que o p o sse sso s e rá cap az de ap resen la r u m a d e sc riçã o


co rré e la d o d eu s que o p en etro u , .graças a o “c o n h ec im e n to e m e m ó ­
ria acu m u la d o s uo lon g o de u m a e x istê n c ia p assad a a v isitar as c o n ­
greg açõ es d o cu lto ” 87; q u e a p esso a p o ssessa m antém um a relação
social c o rre c ta e p re c is a c o m as que a o b serv am ; q u e a p o ssessão
ac o n te c e n u m m o m en to rig o ro sam en te d e term in ad o d as c e rim ó n ia s,
co n tin u an d o o p o ssesso a o b s e rv a r as su as o b rig açõ es rituais a ponto
de p o d e r p a rtic ip a r n u m a e sp é c ie de e sp e c tá c u lo na co m p an h ia dc
outras pessoas, p o ssu íd as no m esm o m om en to p or espíritos d ife ren ­
tes. M as ao d arm o s co n ta de ludo isto. <5 im p o rta n te tam b ém verm os
q u e esta o rg an ização c o n te x tu a l do p ap el d e “c a v a lo ” p e rm ite aos
q u e p articip am no c u lto a c re d ita r q u e a p o sse ssã o é efectiv a e q u e as
p essoas são p o ssu íd as a o a c a so p o r d eu ses que não p odem escolher.
D o m esm o m odo. q u a n d o o b serv am o s u m a jo v e m a m eric an a da
classe m édia a fazer de to n ta em p ro v eito do seu n am orado, so m o s
cap azes de id en tificar o s traço s d e sim u lação e artifício do c o m p o r­
tam en to d a jo v e m . M as. tal c o m o ela p ró p ria e o nam orado, a ceita­
m os co m o sendo u m facto v erd ad eiro q u e a actriz á u m a jo v e m d a
classe m éd ia am erican a. C o m o que d e ix a m o s d e lado. sem d ú v id a , a
p a rte p rin c ip a l do d e s e m p e n h o . É u m lu g a r-c o m u m d iz e r q u e os
d iferen tes g rupos so c ia is e x p rim e m de m odos d iferen tes q u alid a d es
co m o a idade, o sexo. o te rritó rio e o estatu to de classe, e q ue, em
c a d a c a s o . e s s e s f a c to s b r u to s s ã o e la b o ra d o s p o r m e io d e u m a
co n fig u ra ç ão cultural c o m p le x a e d istin tiv a d as fo rm a s co rrectas de
com p o rtam en to . S er um ce rto tip o de p esso a, p o rtanto, n ão co n siste
m e ra m e n te em p o s s u ir o s a trib u to s re q u e rid o s , m as ta m b é m em
a d o p ta r o s m o d e lo s d e c o m p o rta m e n to c a p re s e n ta ç ã o a q u e u m
d a d o g ru p o social se e n c o n tra ap e g a d o . O à -v o n ta d e irre fle c tid o
co m q u e os acto res d e se m p e n h a m co n sisten tem en te esias p rá tic as de
rotina de salv ag u ard a d o s m o d e lo s e c rité rio s de co m p o rta m e n to não
sig n ific a que não h aja e n c e n a çã o , m as a p e n a s que o s p artic ip an te s
n ã o tê m co n sciên cia dela.
U m e sta tu to , u m a p o siç ã o , u m a c o n d iç ã o so cial não sã o co isas
m ate ria is, q u e p o ssa m p o s s u ir-s e p rim e iro e ser. d e p o is, e x ib id a s;

87 Ibid.. p. 24.
9-1 Ei'ving Gorfmun

sao critério s tic com p o rtam en to c o rre c to , co eren tes, e m b ele zad o s e
b em d efin id o s. D ese m p e n h a d o s co m à-v o n tad e ou em b araço , c o n s­
c iê n c ia o u não. a rtifíc io ou b o a fé. estes m o d elo s sao se m p re alg o
q ue terá d c se r rep resen tad o e d escrito , alg o que será p reciso realizar.
S artre fo rn ece-n o s, a esle resp eito , um b om exem plo:

O b se rv e m o s este e m p re g a d o d e m esa no café. O s seu s m o v i­


m en to s são ráp id o s e d esem b araçad o s, co m u m a precisão alg o e x ­
c e ssiv a e u m a ra p id e z a lg o e x c e ss iv a . A v an ça na d ire c ç ã o dos
p a trõ e s n um p asso q u ase d e m a sia d o a p ressa d o . In clin a-se quase
corn d e m a sia d a p recip itação ; a su a v oz e os seu s o lh o s ex p rim em
u m a a te n ç ã o q u a se d e m asiad o so líc ita aos p ed id o s dos clie n te s.
P o r fim , e i-lo q ue v o lta, te n ta n d o im ita r n o seu a n d a r a rig id e z
in flex ív el d c n ão se sabe que au tó m aio e n q u a n to tra n sp o rta a b an ­
d e ja co m a in d ife re n ç a dc um fu n á m b u lo , a b a n d o n a n d o -a a um
e q u ilib r io p e rp e tu a m e n te in s tá v e l, p e rp e tu a m e n te q u e b ra d o e
p e rp e tu a m e n te r e s ta b e le c id o p e lo s se u s á g e is m o v im e n to s de
braço s e m ãos. T o d o o seu co m p o rtam en to nos surge co m o um j o ­
go. E le e s fo rç a -s e p o r e n c a d e a r u n s nos o u tro s o s se u s g e sto s
co m o se e le s fo ssem m ecân ico s, e se e n caix assem e n tre si: a sua
p o stu ra e a té m esm o a su a v o z p arecem e fe ito s m aq u in ais; im põe-
-se a ra p id e z im placável e e x p e d ita d as coisas. Está a rep resen tar,
a d iv ertir-se. M as q ue e stá ele a rep resentar? N ão p rec isam o s de
o lh a r p o r m uito tem p o antes de o d esco b rirm o s: está a rep resen tar
o p ap el d e e m p re g a d o d e m esa. O q u e nad a te m q u e d e v a su r­
p reen d er-n o s. O jo g o é u m a esp é c ie de d e m a rc a çã o e de in v estig a­
ção . A c ria n ç a b rin ca com o seu corp o para o ex p lo rar, o in v en ­
tariar; o e m p re g a d o de m esa tran sfo rm a c m jo g o a su a co n d ição a
fim dc a com preender. T rata-se de u m a o b rig ação que em nada
d ifere d a q u e la a que se v in cu lam to d o s os c o m e rc ia n te s. A su a
c o n d iç ã o é p o r in te ir o um c e r im o n ia l. C) p ú b lic o e x ig e d o s
c o m e r c ia n te s que a c o m p re e n d a m c o m o u m a c e rim ó n ia ; há a
d a n ç a d o m erceeiro , d o alfaiate, d o leilo eiro, atrav és d a qu al eles
se esfo rçam p o r c o n v e n c e r o s clien tes de que são ap e n as um m er­
c e e iro . um le ilo e iro , u m a lfa ia te . U m m e rc e e iro q u e s o n h a é
ofen siv o para o freguês, urna vez que um m erc ee iro a ssim n ão é
A Apresentação do Cu na Vida de Todos os Dias 95

b e m um m erceeiro . A s o c ie d a d e e x ig e -lh e q u e sc lim ite «i fu n ­


cio n a r co m o m erceeiro , d o m e sm o m odo q u e o so ld a d o c m senti-
do se tran sfo rm a num so ld ad o -co isa. co m um o lh a r e m frenlc q u e
nada ve, que n ad a p ro c u ra ver, p o is é o seu papel e não q u a lq u e r
in te re ss e m o m e n tâ n e o o q u e d e te rm in a o p o n to o n d e ele d ev e
fix a r os o lh o s (o o lh a r p a ra d o a “urna d istan cia de d ez p asso s,T).
E x iste m na realidade n u m e ro sa s m ed id as q u e visam a p risio n a r um
ho m em n aq u ilo que ele é, c o m o se v iv êssem o s no m edo co n stan te
d e q u e ele possa fu g ir a isso, d e que p o ssa e sc ap ar-se e e v ad ir-se
su b itam en te da su a p ró p ria c o n d iç ã o .5**

^ Sartre, o¡>. eil., p. 59.


II
Eq uipas

Q u an d o p en sam o s n u m d ese m p e n h o , é-n o s fácil su p o r que o co n ­


teúdo d a rep resen tação é u m a m era ex ten são ex p re ssiv a do c ará cter
do actor, c o n sid eran d o e m term o s p e sso a is a fu n ção do d ese m p en h o .
T ra ta -se d e u m a p e rs p e c tiv a lim ita d a , s u s c e p tív e l d e to ld a r d ife ­
re n ç a s im p o rta n te s n a f u n ç ã o d o d e s e m p e n h o ern te rm o s d e in ­
teracção global.
Hm p rim e iro lugar, a c o n te c e co m fre q u e n c ia q u e o d e se m p e n h o
sirv a s o b re tu d o p a ra e x p rim ir as c a ra c te rís tic a s d a ta refa d e s e m ­
p en h ad a e não as c a ra c terístic a s d o actor. A ssim verificam o s q u e os
m em bros de um serv iço , relev an d o d o ex ercício de u m a p ro fissão,
de u m a o rg an ização b u ro c rá tic a, d o m undo dos n e g ó cio s ou d a arte,
an im am a su a atitu d e p o r m e io d e m o v im en to s que ex p rim e m e fi­
cácia e in teg rid ad e, m as, seja o q u e for q u e tal a titu d e nos d ig a a seu
re s p e ito , o seu fim p r in c ip a l é m u ita s v e z e s o de in s ta u ra r u m a
d efinição fav o ráv el d o se rv iç o ou prod u to em causa. A lém d isso , ob­
servam o s co m fre q u ê n c ia q u e a fach ad a pessoal do ac to r c utilizada
não ta n to p o r lhe p erm itir ap resen tar-se a si p ró p rio com o g o sta ria de
p a re c e r a o s o u tro s , m as p e lo f a c to d e a s u a a p a r ê n c ia e a titu d e
poderem d e alg u m m odo c o n trib u ir para a d efin ição de um a c e n a de
âm bito m ais vasto. É a e s ta lu z q u e p o d erem o s c o m p re e n d e r c o m o a
con co rrên cia e selecção d a vida urbana actual le v a a q u e o lu g ar de
re c e p c io n is ta seja p re e n c h id o p o r jo v e n s e d u c a d a s e d o ta d a s de
grande c o rre c ç ã o d e linguagem » um a v e z q u e n essa o c u p a ç ã o elas
estã o e m co n d içõ es de e x ib ir u m a fachada q u e se ajusta igualm ente
bem à o rg an ização c a si p ró p rias.
98 Erving Goffman

M as. a c im a de tudo. vem os dc um m odo geral que a d efinição da


situ ação p ro jectad a p o r um participante d eterm inado é parte integran­
te d e u m a projecção v isada e alim en tad a pela estreita colab o ração de
m ais d o q u e um actor. P o r exem plo, num hospital, os dois m édicos da
eq u ip a podem ex ig ir d o interno em fo rm ação, é c o m o algo q u e esta
requer, que leia a docum entação relativa a urn paciente e com ente pon­
to p o r ponto o conjunto d esse m aterial. O in tem o pode não sc d a r co n ­
ta de q ue a sua ex ibição d e relativa ignorância resulta em p arte do fac­
to de a eq u ip a ter estudado a do cu m en tação na noite anterior; e m uito
pro v av elm en te n ão se ap erceberá de que o e le ito ap u rado é dup lam en ­
te in d u zid o pelo aco rd o tácito q u e no in terio r da eq u ip a co n fia m eta­
d e d o m aterial d a d o cu m en tação a urn dos m em bros, e a seg u n d a m e­
tade a o u tro 1. E ste trab alh o de equipa, com efeito, garan te um d ese m ­
p en h o bem su ced id o do co n ju n to — co n ta n to que, e v id e n te m e n te ,
se ja o m éd ico certo a en carregar-se no m om ento ccrto das perguntas.
A co n tece ain d a com frequência que cad a um dos m em bros destes
grupos ou elen co s de actores tenha q u e sc m ostrar a um a lu z particular
para q ue o efeito d e co n ju n to produzido p ela equipa se to rn e satisfató ­
rio. A ssim , se um a fam ília quiser encen ar um ja n ta r de cerim ónia, será
necessária a p resença d e um indivíduo fardado ou de libre ao lado da
eq u ip a. O in d iv íd u o a q u em 6 co n fiad a e ssa actu ação dev e ad o p tar
c o m o critério do seu com portam ento a definição social de m ordom o.
A o m esm o tem po, o indivíduo que representar o papel de d o n a da casa
d ev erá o rien tar o seu com portam ento para, c visar através d a su a ap re ­
sentação e atitudes, a definição social de alguém cujas ordens o m or­
dom o n aturalm ente aguarda. E sta situação é ilustrada m uito vivam ente
pelo que sc passava no hotel de turism o d a ilha das S hetland estudada
pelo autor d este trabalho (cham arem os aqui a esse hotel “H otel S he­
tlan d ”). A im pressão global de um am b ien te dc serviço apropriado em
term os de classe m édia era conseguida, nesse quadro, pela direcção do
hotel, cujos m em bros assum iam os p apéis de an fitrião e anfitriã, atri­
buindo aos seu.s em pregados o s dc criados — em bora, nos term os da
estru tu ra de classe local, as jo v e n s q u e actuavam co m o criadas fossem
d e u m estatuto ligeiram ente superio r ao dos proprietários que as e m ­

1 Estudo inédito do autor sobre um cstabelecimenio dc serviços médicos.


A Apresentação do Cu na Vida de Todos os Dias 99

pregavam . Q uando nâo h a v ia h óspedes presentes, as jo v e n s não per-


m iliam grandes absurdos a co b e rto da d iferen ça de estatuto entre em ­
pregada e patroa. P oderíam os citar, na m esm a linha, outro exem plo
extraíd o d o estilo d e vida fa m ilia r da classe m édia. N a nossa socieda­
de. quan d o m arido e m ulher estão perante conhecim entos recentes num
serão d e convívio, a m ulher m o strará um a su b m issão cheia de respeito
perante a vontade e a opinião d o m arido, m uito diferente da atitude q u e
h averá p o r bem exibir quan d o se enco n tra a sós c o m ele ou na c o m ­
p an h ia de velhos am igos. H nquanto a m u lh er assum e um papel su b ­
m isso, o m arido assum e um papel dom inante; e se cada um dos m em ­
bros d a eq u ip a conjugal d ese m p e n h a r o seu papel peculiar, a unidade
do casal, enquanto unidade, corresp o n d erá, p ela im pressão produzida,
às expectativas que a n ova au d iê n c ia alim en ta a seu respeito. A etiq u e­
ta inter-racial do Sul o ferece-n o s outra ilustração. C h arles Johnson su ­
gere que, q u ando h á poucos bran co s m ais nas im ediações, um negro
tratará o seu colega d e tra b a lh o b ranco pelo nom e p róprio, m as su ­
b entendendo-se q ue ado p tará um tratam ento m ais d eferen te a p a rtir do
m om en to em que outros b ran co s se ap ro x im em 2. O có d ig o d e boas
m aneiras do m undo dos n eg ó cio s m ostra-nos um quadro análogo:

Q uando estão presentes terceiros, o toque da form alidade com er­


cial tom a-se ainda m ais im portante. O leitor pode tratar a su a secre­
tária po r “M ary” e o seu sócio p o r “Jo e" durante o dia todo, m as quan­
d o um estranho entra no seu gabinete, deverá referir-se aos seus cola­
boradores do m esm o m odo q ue espera q ue o visitante o faça: Senhor
ou Senhora. Do m esm o m odo, poderá brincar co m a telefonista, m as
não quando estiver a fa z e r u m a ch am ad a para um a pessoa d e fora3.

E la [a secretária] q u e r q u e a trate p o r M en in a ou S en h o ra diante


de estran h o s; ou, p elo m e n o s, n ão se sen tirá nada liso n jea d a se o
facto d e o leito r a tra ta r p o r “ M ary ” d e r lu g a r a q u e q u a lq u e r p e s­
so a q u e a p a re ç a se s in ta a u to r iz a d a a tr a tá - la c o m u m a f a m i­
liarid ad e ex cessiv a,4

“ Charles S. Johnson, op. cií.. pp. 137-38.


Esquire EíiqueHe. Filadélfia. LippincotL, 1953. p. 6.
4 Ibid.. p. 15.
100 Erving Goffman

S crv ir-in c-ei d o term o “e q u ip a de d esem p en h o “ ou d e “re p re se n ­


ta ç ã o ” . o u a in d a , re su m id a m e n te , de “e q u ip a " sem m ais p a ra d e ­
sig n a r q u a lq u e r co n ju n to de in d iv íd u o s q u e co o p erem n a en ce n açã o
d e u m a p rática de ro tin a d eterm in ad a.
Até agora, n esta investig ação , to m ám o s o d esem p en h o do in d iv í­
du o co m o pon to de referên cia fu n d am en tal e ab o rd ám o s duas o rd en s
d e factos — o in d iv íd u o e o seu desem p en h o, p o r um lado, e o c o n ­
junto dos participantes, m ais a interacção, p o r outro. P ara o estu d o de
c e rto s tip o s e asp ecto s d a in teracção , esta p ersp e ctiv a p are ce s u fi­
cien te; o q ue n ão se in te g ra r n o q uadro p o d erá se r tratad o co m o um
asp e c to d ifícil ou u m a c o m p lic a ç ão em p rin cíp io so lú v el. A ssim a
c o o p eração en tre dois actores, cad a um dos q uais se en co n tra o ste n si­
v am en te o cu p ad o p ela ap resen tação d o seu p róprio d e sem p en h o co n ­
creto , p o d eria ser a n alisad a com o um a m o d alid ad e de co n iv ên cia ou
“en te n d im e n to ” , sem alteração do q u ad ro d e referência fundam ental.
T odavia, a o estu d arm o s os caso s de certas o rg an izaçõ es sociais, a ac­
tiv id ad e d e c o o p eração d e alg u n s d o s participantes afig u ra-se d e m a ­
siad o im p o rtan te ser tratad a co m o m era v ariação em to rn o d e um te­
m a anterior. Q u e r os m em b ro s d e um a e q u ip a en cenem desem p en h o s
in d iv id u ais sem elhantes, q u e r en cen em d esem p en h o s d iferen tes que
se c o m p letam en tre si. articu lan d o -se n um todo. d ep a ra m o s com um a
im p ressão que <5 insep aráv el da equipa c q u e só p o d e rá ser ad eq u a d a­
m ente tratada co m o tal, co n fig u ran d o um a terceira o rdem de factos
situ ad a entre o d esem p en h o individual, p o r um lado, e a interacção
globa! dos p articip an tes, p o r outro. P o d em o s até d iz er que se estiv er­
m os esp ecialm en te interessados no estudo da adm in istração das im ­
pressõ es. d as ev en tu alid ad es q ue podem su rgir quando é v isa d a um a
im p ressão , en tão a eq u ip a e o d esem penho de e q u ip a talvez sejam as
u n id a d e s fu n d a m e n ta is a a ssu m ir co m o p o n to s de re fe rê n c ia .5 De
ac o rd o c o m a persp ectiv a assim adoptada, será possível in teg rar no
seu q u ad ro a in teracção entre d u as pesso as, sendo esta ú ltim a situ a­
ção descrita co m o in teracção entre d u as eq uipas contando c a d a equi-

5 A utilização da equipa (por contraste com o actor) enquanto unidade fundamenta!


c lomuda aqui de empréstimo a Von Neumann, op. eil., sobretudo p. 53. que analisa
o bridge com o um jogo e n tr e dois jogadores, cada um dos quais, sob certa potito <!ü
vista, dispõe de dois individuos que jogam.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 101

pa co m um único m em bro. (E m term os lógicos, pod eríam o s até dizer


que urna au d iên cia e ficazm en te im p ressio n ad a por um quadro social
d e te rm in a d o que não c o m p o rta s s e a p re se n ç a d e q u a isq u e r ou tras
p esso as além d o s esp e c ta d o res seria u m a au d iên cia assistin d o a o d e ­
sem pen h o de eq u ip a d e u m a eq u ip a d esp ro v id a de m em bros.)
O c o n c e ito de e q u ip a p e rm ite -n o s le v a r em c o n ta d e se m p e n h o s
qu e são p ro p o rcio n ad o s p o r u m o u m ais do que um actor; e ap lica-se
ainda a outro caso. V im os atrás co m o um ac to r pode se r ap an h ad o
pela su a p ró p ria a c tu a ç ã o , na c o n v ic ç ã o te m p o rá ria de que a im ­
p ressão de realidade q u e p ro c u ra tra n sm itir é a v e rd ad e ira e ú n ica
re a lid a d e . E m tais caso s, o a c to r tra n sfo rm a -se n a su a p ró p ria au ­
diência; tran sfo rm a-se em a c to r e esp ectad o r do m esm o esp e ctác u lo .
P ro v a v e lm e n te in terio riza e in c o rp o ra os c rité rio s ou m o d elo s que
te n ta s u s te n ta r na p r e s e n ç a d o s o u tro s , e n q u a n to a s u a p ró p ria
co n sc iê n c ia lhe ex ig e q u e a c tu e de m an eira so c ialm en te ad eq u ad a.
S erá e n tã o n ecessário p a ra o indiv íd u o , n a su a q u alidade de actor, e s­
c o n d e r d e si p ró p rio , na q u a lid a d e de e s p e c ta d o r, os fa c to s s u s ­
cep tív eis dc o d e sm en tirem e q u e tev e d e re c o n h e cer por m o tiv o do
seu d esem p en h o ; cm term o s m ais q u o tid ian o s, h av erá coisas que o
in d iv íd u o sab e, ou so u b e , q u e não p o d e rá d iz e r a si p ró p rio . E sta
co m p lic a d a m an o b ra de a u to -ilu sã o v erifica-se de m odo c o n stan te ;
os p sican alistas fo rn e c e m -n o s belo s resu ltad o s p ro v en ie n tes do seu
tra b alh o de c am p o a este p ro p ó sito , in clu in d o -o s nas ru bricas do re­
c a lc a m e n to e d a d is s o c ia ç ã o 6. T a lv e z e s te ja m o s aq u i p e ra n te a
orig em d aq u ilo a que se te m ch am ad o “ a fastam en to de si p ró p rio ” , e,

6 ()S modos individualistas dc pensar tendem a tratar os processos do tipo da auto-


-ilu são c da insinceridade com o fraq u ezas c a ra c te ro ló g ic a s en g e n d rad as nos
recessos mais profundos da personalidade individual. Talvez fosse preferível partir
do exterior do indivíduo, progredindo depois cm direcção ao seu interior, cm vez dc
começar pe'o interior do indivíduo, passando em seguida ao exterior. Podemos dize:
assim que o ponto de partida de tudo o que acontece mais tarde consiste na defesa
pelo acto r individual da defin ição dc um a situação perante um a audiência. O
indivíduo tom a-sc autom aticamente insincero quando adere à obrigação de manter
um consenso funcional, e participa em diversas práticas de rotina ou desem penha
um dado papel perante diferentes audiências. A auto-ilusSo pode se* considerada
como algo que resulta do facto dc dois papéis diferentes, o do actor c o da audien­
cia. se conjugarem rio mesmo indivíduo.
102 Erving Goffinati

d e sig n a d a m e n te , d o p ro c e sso a tra v é s d o q u al um a p e sso a p a ssa a


sen tir-se e stra n h a a si p ró p ria.7
Q uando um acto r o rie n ta a sua actividade pessoal seg u n d o critérios
m orais in terio rizad o s, asso ciará a esses critérios um a referên cia a um
g ru p o de certo tipo. crian d o assim um a au d iên cia não presen te para a
su a acção. E sta possib ilid ad e leva-nos a ter cm co n ta u m a outra. O in­
d iv íd u o pode m an ter a títu lo p riv ad o critérios de co m p o rtam en to em
que p esso alm en te não acred ita, ad o p tan d o esses m o delos por m otivo
de u m a v iv a c re n ç a num a au d iên cia invisível m as presente, que puni­
rá q u a lq u e r d esv io em relação aos m odelos em causa. P o r outras pa­
lavras, o in d iv íd u o p ode transform ar-se na .sua p ró p ria au d iê n cia ou
im aginar a p re se n ç a de u m a audiência. (E m tudo isto deparam os com
a d iferen ça a n alítica e x isten te e n tre o co n ceito de e q u ip a e o de actor
in dividual.) C o n tin u arem o s ag o ra n otando q u e um a e q u ip a pode, ela
própria, e n c e n a r u m d e sem p en h o para um a au d iên cia que não se e n ­
c o n tra presente em c arn e e osso p a ra assistir ao esp ectáculo. A ssim ,
em certos h o spitais p siq u iátrico s am ericanos, os p a cie n tes que m or­
rem sem que a fam ília os reclam e para se o cu p ar deles, ben eficiam de
u m e n te rro re la tiv a m e n te c u id a d o , o rg a n iz a d o pelo h o sp ita l. F. in­
dubitável que isso contribui para co n firm ar a su b sistên cia de critérios
m in im am en te civ ilizad o s num q u ad ro em que as co n d içõ es adversas
e o d esin teresse gen eralizad o da sociedade am eaçam a sob rev iv ên cia
dos m odelos de civ ilização habituais. S e ja co m o for, o d irec to r dos
serv iço s fu n erário s d o hosp ital, o capelão e m ais um ou dois outros
fu n cio n ário s d esem p en h am os papéis que definem um en terro e, com
o p a c ie n te q u e vai sc r se p u lta d o , e n c e n a m um a d e m o n s tra ç ã o de
resp eito pelo defu n to , na au sên cia de q u a isq u e r outros espectadores.
É m an isfesto q ue o s indivíduos m em b ro s de u m a m esm a equipa
se e n c o n tra m , d e v id o a e sse fa c to , em re la ç õ e s sig n ific a tiv a s uns
co m os o u tro s. D ev em o s m en cio n ar aqui d o is a sp ecto s fu n d am en tais
d essas relações.
E m p rim e iro lug ar, d ir-se -ia q u e , e n q u a n to um d e se m p e n h o de
eq u ip a se d esen v o lv e, q u alq u er m em b ro da equipa te m o p o d e r de

• V er Kar) Mannheim, Essays or, the Sociology o f Culture, Londres. Rout!edge &
Kogan Paul. 1956, p. 209.
A Apresentação ño Eu na Vida de Todos os Dias 103

ab an d o n a r a re p resen tação ou de p e rtu rb a r m ediante a a d o p ção de


um co m p o rtam en to indev id o . C a d a um dos co m p a n h eiro s d e e q u ip a
é fo rçad o a co n fiar no b o m co m p o rtam en to e c o n d u ta c o rrecta dos
d em ais, e e ste s, p o r seu tu rn o , são fo rçad o s a c o n fia r nele. E x iste, a s­
sim , n ecessariam en te, um v ín cu lo de d e p en d ên cia recíp ro ca que liga
o s co m p an h eiro s d e e q u ip a uns a o s o u tro s. Q u ando os m em bros de
um a e q u ip a têm d iferen tes e sta tu to s form ais ou d iferen tes categ o rias
o ficia is n o q u a d ro de u m a o rg a n iz a ç ão .social, co m o m u itas vezes
aco n tece, p o d em o s o b se rv a r e n tã o q u e a d e p e n d ên cia m útua, criada
p e la p e r te n ç a à e q u ip a no in te r io r d e s ta , te n d e a a tr a v e s s a r as
c liv a g e n s e stru tu ra is ou so c ia is d a o rg a n iz a ç ã o , tra n sfo rm a n d o -se
assim n um facto r d e c o e sã o p ara e sta ú ltim a. O n de as c o n d içõ es dos
seu s m em b ro s ten d em a d iv id ir u m a o rg an ização , as eq u ip as de d e­
sem p e n h o p o d erão c o n trib u ir p a ra a rein teg ração das d ivisões.
H m seg u n d o lugar, é e v id e n te q u e , se o s m em bros de u m a equipa
tiv ere m q u e c o o p e ra r p a ra m a n te r u m a d ad a d efin ição d a situ açã o
p eran te a au d iên cia, d ificilm en te estarão em p osição de su ste n ta r a
m esm a im p ressão uns p e ra n te os outros. C ú m p lice s na sa lv ag u a rd a
d c u m a d e te r m in a d a a p r e s e n ta ç ã o d a s c o is a s , sã o o b r ig a d o s a
defin ir-se u n s ao s o u tro s c o m o p esso as q u e “sa b e m ", co m o pessoas
p e ra n te as q u a is n ão é p o s s ív e l m a n te r a fa c h a d a c o n s tru íd a em
c o m u m p e ra n te a a u d iê n c ia . É p o r isso q u e os c o m p a n h e iro s d e
eq u ip a, na p ro p o rção da fre q u ê n c ia co m q u e actu am em e q u ip a e do
n ú m ero de asp ecto s da im p ressão de co n ju n to q u e devem sa lv a g u a r­
d ar, te n d e m a lig ar-se u n s a o s o u tro s a tra v é s d a q u ilo a q u e p o d e ­
ríam o s c h a m a r os d ire ito s d a “fa m ilia rid a d e ” . H ntre c o m p an h e iro s
de equipa, o p riv ilég io d a fam iliarid ad e — co n stitu in d o , p o r e x e m ­
plo, um a esp écie de in tim id a d e d esp ro v id a de c a l o r — não precisa
de ser alg o d e orgânico, q u e se d e se n v o lv e len tam en te à m e d id a que
au m e n ta a q u a n tid a d e d o tem p o p artilh ad o ; é an tes u m a m o d alid ad e
d e relação b a sta n te fo rm al, au to m aticam en te co n ferid a e receb id a a
p a rtir d o m om en to em q u e o in d iv íd u o se integ ra na equipa.
Q u a n d o d iz e m o s q u e o s c o m p a n h e iro s d e e q u ip a te n d e m a re ­
lacio n ar-se uns c o m os o u tro s p o r m eio de v ínculos d c d e p en d ên c ia
recípro ca e d e recíp ro ca fam iliarid ad e, n ão d e v em o s c o n fu n d ir o tipo
de g ru p o assim co n stitu íd o c o m o u tro s tipos dc grupo, co m o os g n i-
104 Lirving Goffman

pos in fo rm ais ou “ca p e la s’’. U m co m p an h eiro de eq u ip a é alg u ém de


c u ja c o o p e ra ç ão d ra m a tú rg ic a o in d iv íd u o d ep e n d e en q u an to p ro cu ra
s u sc ita r u m a dad a d e fin iç ã o da situação; se o in d iv íd u o se co lo car
fo ra d o â m b ito in fo rm a lm e n te sa n c io n a d o da a c ç ã o e in s is tir cm
a b a n d o n a r o d e se m p e n h o ou e m fazê-lo a ssu m ir u m a feição d ife ­
rente. nem p o r isso d eix a de fa z e r parte da eq u ip a. D e facto, é pre­
c is a m e n te p o r f a z e r p a rte d a e q u ip a q u e le m a p o s s ib ilid a d e de
c a u sa r este g én ero d e p ertu rb açõ es. A ssim , o in d iv íd u o q ue, n um a
fábrica, sc isola e se d á ares de im po rtân cia n ã o deixa de p erten cer à
eq u ip a, ain d a q u e a su a a c tiv id ad e afecte a im pressão que o s outros
tra b a lh a d o re s te n ta m c ria r a p ro p ó sito d o que d e fin e um a p e sa d a
jo rn a d a d e trab alh o . Hm te rm o s dc a m izad e, um in d iv íd u o q u e tal
p o d e rá se r c u id a d o sa m e n te e v ita d o , m as, e n q u a n to a m e a ç a p a ra o
m o d o c o m o a e q u ip a d e fin e a s itu a ç ã o , to rn a -s e im p o s s ív e l s u ­
b e s tim á -lo . D o m e sm o m o d o . u m a ra p a rig a q u e. n u m a fe s ta , se
m ostre, d e fla g ra n te e e x c e s s iv a fa c ilid a d e , p o d e rá se r se g re g a d a
pelas outras raparigas p resentes, m as, so b certo s aspectos, co n tinuará
a fa z e r parte da su a e q u ip a e não d eix ará de am eaçar a d efin iç ão que
as restantes, co lectiv am en te, te n ta m salv ag uardar, e se g u n d o a qual
as rap arig as são p resas sexuais d ifíceis. P o r isso, em b o ra os c o m p a­
n h e i r o s d e e q u i p a s e ja m p e s s o a s q u e m u ita s v e z e s s e p õ e m
in f o r m a lm e n te d e a c o r d o p a r a o r ie n ta r e m o s s e u s e s f o r ç o s em
d e te rm in a d a d ire c ç ã o c o m o m e d id a de a u to d e fe sa , c o n s titu in d o ,
d este p o n to de vista, um g ru p o inform al, o ac o rd o in fo rm al não nos
fo rn ece um critério c a p a z de d e fin ir o c o n c e ito de eq u ip a.
O s m em b ro s dc u m a “c a p e la ” in fo rm al, d e sig n a n d o -se p o r este
term o um n ú m ero red u zid o de p esso as q u e se ju n ta m para o c u p a r os
se u s tem p o s livres de m aneira inform al, podem tam b ém co n stitu ir
u m a eq u ip a, p o is é p ro v áv el q ue q u eiram c o o p e ra r na d issim u lação
cu id a d o sa d a e x clu siv id ad e do grupo q u e fo rm am perante ce rto s não
m e m b r o s , o u na s u a e x i b iç ã o , p o r s n o b is m o , p e r a n te o u tr o s .
C o n tu d o , h á um sig n ificativ o co n traste en tre os co n c eito s dc eq u ip a
e dc "c a p e la ” . N as o rg an izaçõ es so ciais alargadas, os in divíduos de
d e te rm in a d a categ o ria form am um co n ju n to pelo facto de terern que
c o o p e ra r na m a n u te n ç ã o d a d efin ição da situ aç ão frente aos q u e sc
e n c o n tra m a c im a ou a b aix o d eles próprios. A ssim , um c o n ju n to dc
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 105

individ u o s, que p o d erão se r d iferen tes so b n u m e ro so s asp ec to s e. por


c o n seg u in te , d esejar m a n te r c e rta s d istan cias so ciais en tre si. acab am
p o r se d e s c o b rir n u m a re la ç ã o d e fa m ilia rid a d e fo rc a d a , c a r a c te ­
rística de co m p an h eiro s de e q u ip a que e n c e n a m u m a re p resen tação .
C om fre q u ê n c ia , p a re c e m fo rm a r-s e “ c a p e la s ” p o u c o n u m e ro sa s,
não cm v ista de g aran tir os interesses d aq u eles co m os qu ais o in­
d ivídu o e n c e n a u m a re p re se n ta çã o , m as antes a fim de pro teg er o in­
d iv íd u o d c u m a id e n tif ic a ç ã o não d e s e ja d a c o m o s o u tr o s . A s
“ca p e ia s’*, p o rtan to , fu n cio n am m uitas v ezes p ro tegendo o indivíduo
não d as p esso as dc o u tra c o n d iç ã o , m as d as p essoas d a su a p ró p ria
c o n d iç ã o . A ssim , e m b o ra to d o s os m e m b ro s d a “c a p e la ” d e u m
indivíd u o p o ssam ler o m esm o estatu to , será p o r vezes d e cisiv o que
nem to d as as p esso as co m o m esm o esta tu to q u e o in d iv íd u o sejam
au to rizad as a fa z e r parte d a “ c a p e la ” .8
D ev em o s a c re sc e n ta r u m ú ltim o c o m e n tá rio a c e rc a d a q u ilo q u e
u m a e q u ip a não é. Os in d iv íd u o s podem reunir-se form al ou in fo r­
m alm en te num grupo de a c ç ã o e m v ista de p ro m o v erem in teresses
s e m e lh a n te s o u c o le c tiv o s a tra v é s d o s m e io s a o seu d is p o r. N a
m edid a em q ue co o p eram na m an u ten ção de u m a im p ressão d ete r­
m inad a, se rv in d o -se d isso c o m o m eio d e re a liza ção d o s seu s fin s,
co n stitu em aq u ilo a q ue aq u i c h am ám o s u m a eq u ip a. M as d e v e fica r
bern c la ro q u e ex iste m n u m e ro so s m eio s d ife re n te s de c o o p e ra ç ão
dram a tú rg ic a atrav és dos q u a is um grupo de acção p o d e re a liz a r os
seu s fins. O s o u tro s m e io s d e p ro c u ra r a lc a n ç a r c erto s o b je c tiv o s,
tais c o m o a fo rça o u o p o d e r n egociai, p o derão se r a u m en tad o s ou
e n fra q u e c id o s a tra v é s d a m a n ip u la ç ã o e s tra té g ic a d a s im p re ssõ e s,
m as o ex e rc íc io d a fo rça ou d o pod er n egociai co n fere a um co n ­
ju n to d e in d iv íd u o s um m o d o d c form ação de grupo que não se liga
ao facto d c cm certas o c a s iõ e s o g ru p o assim c o n stitu íd o ten d e r a

^ São muitas, sem dúvida, as bases possíveis da formação de "capelas”. Edward


Gross, do Seu trabalho Informal Relations <mti ihe Saciai Organization o f Work in
an In d u stria l O ffice (d issertação dc Ph. D. in éd ita. D epartm ent cif S ociology,
U n iv ersity o í C hicago . 1949). su g e re que as " c a p e la s" podem a tra v e ssa r as
fronteiras etárias c étnicas habituais, a fim de reunirem indivíduos cuja actividade
de trabalho não é considerada com o efeito da competição entre uns e outros.
106 Erving Goifmun

actuar, cm te rm o s d ram ático s, en q u an to eq u ip a. (A n alo g am en te, urn


in d iv íd u o q u e se en c o n tra n u m a p o sição de p o d er ou lid eran ç a po­
d e rá a u m e n ta r o u re d u z ir a s u a fo rç a ern fu n ção d a a d e q u a ç ã o e
força dc c o n v ic ç ã o d a su a a p resen tação e atitudes, sem que isso sig­
n ifiq u e q u e as q u alid ad es d ra m á tic a s da su a acção sejam , n ecessária
ou s e q u e r h a b itu a lm e n te , a b a s e fu n d a m e n ta l d a p o siç ã o q u e ele
ocupa.)
S e q u ise rm o s e m p re g a r o co n ceito d e e q u ip a co m o p o n to de re fe ­
rên cia p rin cip al será co n v en ien te recu arm o s um p o u co e red e fin ir­
m o s o n o sso q u a d ro te rm in o ló g ic o a d a p ta n d o -o à u tiliz a ç ã o d a
equipa, e n ão do a c to r in d iv id u al, co m o u n id ade de b ase.
D issem o s já q ue o o b jectiv o d e urn ac to r e su sten ta r um a d e te rm i­
nada d efin ição da situ ação , rep resen tad o e sta. p o r assim dizer, aquilo
que ele afirm a ser a realidade. E nquanto e q u ip a d e u m só m em bro,
sem c o m p a n h e iro s de e q u ip a que te n h a de in fo rm a r d a su a d ecisã o , o
ac to r p o d e rá d ec id ir co m rap id ez qual d a s atitu d es d isp o n ív e is d e­
verá to m a r e m d eterm in ad o caso e, em seg uida, a g ir sin ceram en te
co m o se a sua e sc o lh a fosse a ú n ica possível. A o m esm o tem p o , é
p o s s ív e l q u e a p o s iç ã o e s c o lh id a se a d a p te b e m h su a p r ó p r ia
situ a ç ã o e in teresses particu lares.
Q u an d o p assam o s d a e q u ip a de um só m em bro a um a m ais vasta,
o c a rá c ter d a realidde d e sp o sa d a pela e q u ip a tran sfo rm a-se. E m vez
de u m a d e fin iç ã o rica d a situ ação , a realidade pode red u zir-se agora
a u m a lin h a e s tr ita , s e n d o p ro v á v e l ta m b é m q u e a lin h a a s s im
ad o p ta d a não seja p o r igual sim p ática a to d o s o s m em b ro s da equipa.
P rev isív eis serão do m esm o m o d o as o b serv açõ es irónica.s. p o r m eio
das q u ais um co m p an h eiro de eq u ip a brinca a rejeitar a linha e s ta b e ­
lecida. em b o ra, no p lan o d as coisas sérias, a ca b e p o r a aceitar. Por
outro lado, o n o v o facto r da leald ad e d o in d iv íd u o à su a e q u ip a e aos
seus c o m p a n h e iro s de eq u ip a, não d eix ará de se afirm ar, refo rçan d o
a linha d e acção da equipa.
P arece ser o p in ião geral que o d esaco rd o público en tre os m em ­
bro s d a eq u ip a não só o s in cap acita para u m a acção c o n ju g a d a com o
tam b ém leva à ru p tu ra da realid ad e que a eq u ip a define. A fim de
p ro te g e re m e sta im p re s s ã o de re a lid a d e , p o d e rá s e r e x ig id o d o s
m em b ro s d a e q u ip a q u e a d ie m a tom ada p u b lica de d ecisão até se
A Apresentação du liu na Vida de Todos os Dias 107

ch e g a r a u m a atitu d e co m u m d e n tro do grupo; urna v ez to m a d a urna


p o sição d e equipa, é p ro v á v e l a in d a q u e to d o s o s m em b ro s sejam
o b r ig a d o s a a d o p tá -la . (A q u e s tã o d o s m o n ta n te s p e rm itid o s da
“a u to c rític a so v iética” c d c q u e m a p erm ite, antes de a p o siç ã o da
eq u ip a se r p ro clam ad a n ã o n o s o cu p a n cslc m om em o.) V ejam os um
e x e m p lo ex tra íd o d o m u ndo d a função pública:

N e s s a s c o m is s õ e s | re u n iõ e s d a C o m is s ã o do G a b in e te |. os
fu n c io n á rio s p ú b lic o s p a rtic ip a m nas d is c u s s õ e s e e x p rim e m
liv rem en te o s seus p o n to s d e vista, ap en as com a seg u in te reserva:
não d e v e m o p o r-s e d ir e c ta m e n te a o se u p r ó p rio m in is tr o . A
p o s s ib ilid a d e de um tal d e s a c o rd o e m te rm o s d e c la ra d o s ra r a ­
m e n te se co n fig u ra, e n ão d e v e co n fig u rar-se nunca: nove em d ez
c a s o s , o m in is tro c o f u n c io n á r io q u e p a r tic ip a c o m e le n o s
trab alh o s da c o m issão c o n c o rd a ra m an te c ip a d am e n te so b re a linha
a a d o p ta r. e, n o d é c im o c a s o . o f u n c io n á rio q u e d is c o r d a do
m in istro acerca de u m d ad o p ro b lem a n ã o p articip ará n a reunião
em q u e o p ro b lem a vai ser d iscu tid o .9

P o d e m o s citar outro e x e m p lo , reco lh id o de u m a in v estig aç ão re ­


cente so b re a e stru tu ra d o p o d e r num a p e q u e n a cidade:

Q u an d o um in d iv íd u o se em p en h a no trab alho d a co m u n id ad e
se ja a que escala for, é rep etid am en te su b m e tid o à p re ssã o d aq u ilo
a que se p o d e ria c h a m a r o “p rin cíp io d e u n a n im id a d e” . N a altu ra
cm q u e os d irig e n te s c o m u n itá rio s ch e g a m fin alm en te à fo rm u la ­
ção de u m a política, a ssiste-se a um a ex ig ê n c ia im ed ia ta de e strita
c o n fo rm id a d e de o p in iõ e s . A s d e c is õ e s n ão sã o . de u m m o d o
geral, p re c ip ita d am en te to m a d a s. D isp õ e -se de m uito tem p o , so ­
b retu d o no q u e se re fe re a o s d irig en tes, p a ra a d isc u ssã o da m aio r
parte dos p rojectos antes de u m a linha de acção ser traçad a. O que
é v erd ad e para os p ro je c to s da com u n id ad e. M as qu an d o o tem po
reserv ad o à d isc u ssã o c h e g a a o fim e é d e fin id a u m a lin h a de ac-

Ç) Dale. op. eil., p. 141


108 iirving Coffman

ç ã o , ex ig e-se u n an im id ad e. A s vozes d ic o rd a n tes são o b jecto de


pressõ es, e o p ro je c to é a p lic a d o .10

U m d e sa c o rd o m a n ife sto perante a au d iên c ia in tro d u z , c o m o se


c o s tu m a d iz e r, u m a riota d is s o n a n te . P o d e ría m o s a firm a r q u e as
n o ta s d isso n a n te * p ro p ria m e n te d ita s sã o e v ita d a s p e la s m esm as
razões que o são as n otas d isso n an tes em sen tid o figurado; em am ­
bos os casos, trata-se de m an ter um a d efin ição d a situ ação . P odem os
ilu star e sta a firm a ç ão serv in d o -n o s de urn p e q u en o liv ro acerca do
trabalho d e aco m p an h an te m u sical de artistas d c co n certo :

A q u ilo q u e m ais p o d e a p ro x im ar o c a n to r e o p ia n ista d e um


d e sem p en h o ideal é fazerem ex actam en te aquilo que o co m p o sito r
q u is, e m b o ra p o r v ezes o can to r ex ig a a o seu aco m p an h an te que
f a c a a lg o q u e se e n c o n t r a c m c o n t r a d i ç ã o p a t e n t e c o m as
in d ic a ç õ e s d o c o m p o sito r. O c a n to r p o d e q u e re r a c e n tu a r u m a
p a ssa g e m q u e n ã o o d e v e ria ser. p o d e rá q u e re r in tro d u z ir um a
firm a ta d isp en sáv el, p o d erá o p tar p o r urn rallentando o n d e e stav a
e s tip u la d o a te m p o : p o rá um fo r te n o lu g a r d c um piano: in ­
te rp re ta rá s e n tim e n ta lm e n te q u a n d o nobilm ente seria a a titu d e
correcta.
E sta lista está m u ito longe de ser exaustiva. O c a n to r ju ra ra com
a m ão n o co raçào e lág rim as nos olhos q ue faz. e sem pre procurou
fazer, e x a c ta m en te aq u ilo q ue o co m p o sito r escrev eu . E é m uito
ab o rrecid o . P o rq u e se ele can tar de u m a m aneira e o p ian ista to ca r
de o u tra , o re s u lta d o s e rá u m c a o s. A d is c u s s ã o é in ú til. Q ue
p o d erá fa z e r o ex ecu tan te q ue aco m p an h a?
D u ran te o d e se m p e n h o te rá d e estar ao lado do ca n to r , m as
dep o is d ev e ser-lhe p erm itid o riscar isso da m e m ó r ia ...1!

Porém , co m m u ita fre q u ê n c ia, a u n an im id ad e não é a única e x i­


g ên cia da p ro jecção da eq u ip a. P arece scr um a o p in iã o p artilh a d a a

1 n Floyd Hunter. C omm unity Power Structure. University of N orth Carolina Press,
Chape! Hill. 1953. p. 181. V er também p. 1 IS e p. 212.
' * Gerald Moore. The Unashamed Accompanist. Macmillan. Nova Iorque, 1944, p. 60.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 109

qu e p re te n d e q u e as c o is a s m a is re a is e ra a is só lid a s d a v id a são
aq u elas so b re e u ja d e sc riç ã o o s in d iv íd u o s c o n c o rd am in d e p e n d e n ­
tem en te uns dos outros. T e n d e m o s a a ch ar q u e, se d o is particip an tes
d e um aco n tecim en to o p ta re m p o r ser tão h o n esto s q u a n to possível
na su a narração do q ue a c o n te c eu , en tão as v ersões que ap resentam
s e rã o r a z o a v e lm e n te s e m e lh a n te s e m b o r a e le s se n ã o te n h a m
c o n su lta d o um ao outro a n te s d e ex p o rem os factos. P re su m im o s,
a s s im , q u e a in te n ç ã o d c d iz e r a v e rd a d e to rn a d e s n e c e s s á r ia s
co n su lta s p re lim in a re s. E te n d e m o s ig u a lm e n te a a c h a r q u e, sc os
d o is in d iv íd u o s q u iserem m e n tir ou d isto rc e r a su a versão, então será
não só n ecessário q ue c o n fe re n cie m prev iam en te em v ista d e. com o
co stu m a dizer-se, “ c o m p o re m u m a h istó ria v ero sím il” , m as tam b ém
q u e esc o n d a m o facto d c q u e tiv e ra m en sejo d c c o n fe re n cia r os dois.
P o r o u tra s p alav ras, ao e n c e n a re m um a d e fin iç ã o da situ ação , será
n e c e s s á r io a o s d iv e r s o s m e m b ro s d a e q u ip a c o n s e g u ir e m u m a
un an im id ad e de posiçõ es e m an terem em seg redo o facto de a po­
sição de ca d a um não te r sid o o b tid a in d ep en d en tem en te do s outros.
(D ig a -s e de p a s s a g e m q u e , se o s m e m b ro s d a e q u ip a e s tiv e re m
em p en h ad o s ao m esm o te m p o em m anterem um d ese m p en h o d e re s­
peito p o r si próp rio s, será n ecessário a ca d a um d eles d e sc o b rir qual
vai s e r a lin h a a d o p ta d a e a s s u m i-la , se m a d m itir nem p e ra n te si
p ró p rio n em p e ra n te os o u tr o s q u e a p o s iç ã o a d o p ta d a n ão o foi
in d ep en d en tem en te d o s d e m a is — m as estes asp ectos lev am -n o s j á
p a ra lá d o d esem p en h o d e e q u ip a com o p o n to de re fe rê n cia fu n d a­
m ental.)
D e v e m o s n o ta r q u e d o m e sm o m o d o q u e um c o m p a n h e iro de
e q u ip a e s p e ra rá p o r u m a d e c la ra ç ã o o fic ia l a n te s de d e fin ir a su a
posição , tam b ém a d e c la ra çã o o ficial terá d c lh e s c r ac essív el a fim
de lhe p e rm itir d e se m p e n h a r o seu papel na eq u ipa e sen tir-se p a rti­
cip an te d esta últim a. P o r e x e m p lo , ao c o m e n ta r a m an eira co rn o al­
gu n s c o m e rc ia n te s c h in e s e s e s ta b e le c e m o p re ç o d a s su as m e rc a ­
dorias cm função da ap a rê n c ia do cliente, um a u to r escreveu;

U m a conclusão p a rtic u la r deste e.studo de um cliente resu lta do


facto d e verm os que q u a n d o u m a pessoa en tra n um a loja ch in esa e.
depo is de exam inar d iv erso s artigos, p ergunta o p reç o de um deles.
110 Lirving G off man

a m e n o s q u e sc sa ib a p o s itiv a m e n te q u e falou a p e n a s co m um
vendedor, n ão lent resp o sta daquele a q u em se dirigiu antes de ele
p e rg u n ta r a o u iro v e n d e d o r se já in d ic o u o p re ç o d o artig o em
q u estão ao clien te interessado. Se. co m o raras vezes aco n tece, esta
im p o r ta n te p r e c a u ç ã o fo r d e s c u r a d a , a q u a n tia in d ic a d a p o r
d iferen tes vendedores será quase invariav elm ente d iferente de caso
para caso, o que ilu stra o facto de nem todos eles terem avaliado
nos m esm o s term os a categ o ria ou co n d ição do c lie n te .1-

N e g a r a um co m p an h eiro dc eq u ip a a inform ação a respeito da po­


sição q ue a e q u ip a va i to m a r eq u iv a le , d e tacto, a ncgar-lhc a q u a li­
d ad e d c m em b ro da e q u ip a , urna v e z q u e , sem s a b e r q u e p o sição
d ev e tom ar, o in d iv id u o d esin fo rm ad o n ão e stará em co n d iç õ e s de se
a p re se n ta r co m o p e rso n ag em peran te a re sp ec tiv a a u d ien cia. A ssim ,
q u an d o u m ciru rg ião se p rep ara para o p e ra r um paciente que lhe foi
e n v ia d o p o r o u tro m é d ic o , as b o a s m a n e ira s e m v ig o r o b rig a rã o
talv ez o ciru rg ião a c o m u n ic a r ao m édico q ue lhe en v io u o pacien te
q u an d o terá lu g ar a o p eração e, no c aso d c o c o leg a n ã o a p are cer por
a ltu ra d a in te rv e n ç ã o c irú rg ic a , a te le fo n a r-lh e d e p o is p a ra o in ­
fo rm ar d e c o m o c o rreram as co isas. M an ten d o -se assim líao c o rre n ­
te” , o m éd ico q u e en v io u o p acien te ao cirurgião, p o d e rá m ais efi­
c a z m e n te do que n o u tras c irc u n stâ n c ias ap rese n tar-se h fam ília do
p a c ie n te co m o p articip an te na in terv en ção m é d ic a .13

G o s ta ria a g o ra de a c re sc e n ta r um n o v o a sp e c to de o rd e m geral
acerca da d efesa da lin h a ad o p tad a ao longo do desem p en h o . Q uando
urn m em b ro d a e q u ip a co m ete um erro na p resen ça d a au d iência, os
o u tro s m em b ro s d a e q u ip a anulam m uitas vezes o d esejo im ediato
que sen tem de pun ir e co rrig ir o infractor, p e lo m en o s en q u a n to os
e s p e c ta d o r e s se m a n tiv e re m p re s e n te s . B em v is ta s as c o is a s , a
sa n ç ã o e c o rre c ç ã o im ed iatas, m u itas vezes se rv iria m ap en as para
pertu rb ar ain d a m ais a in teracção ou, c o n fo rm e j á foi su g e rid o atrás,
para d e ix a r q u e a au d iê n c ia se inteirasse d e alg o q u e d e v e perm ane-

Chester Holcombc* Tiie Real Ckinuman, Dodtí. Mond. Nova Iorque. 1895. p. 293.
1J Solomon, op. d l., p. 75.
A Apresentação do liu na Vida dc Todos os Dias

c c r co n h ecim en to reserv ad o d o s co m p an h eiro s de equipa. P o r isso,


nas o rg an iz a ç õ es a u to rita ria s, o n d e ex iste um g ru p o de su p e rio re s
q u e se ex i b e c o m o te n d o s e m p re ra z ã o e c o m o d e te n to r d c urna
fach ad a c o c sa . há frc q tie n te m e n ie um a reg ra e strila e sta b e le c e n d o
que n en h u m d o s su p erio res d a rá m ostras de h o stilid ad e ou d esre s­
p eito peran te outro su p e rio r n a p resen ça de um m em b ro d a eq u ip a
sub altern a. T rata-se de u m p o n to consensual m ente o b serv ad o pelos
o fic ia is do e x é rc ito d ia n te d o s s o ld a d o s, p e lo s p ais d ia n te do s fi­
lh o s 1“ , pelo s ad m in istrad o res dian te dos op erário s, pelas enferm eiras
d ian te do s p a c ie n te s15, e a ssim p o r d iante. S em dú vida, q u an d o não
há m em b ro s d o grupo su b o rd in a d o p resentes p o d erão ex p rim ir-se e
ex p rim e m -se de facto, en tre o s m em b ro s d a eq u ip a , críticas d ec la ­
radas e violentas. P o r e x e m p lo , n u m a in v estig ação recente so b re o
e n sin o pro fissio n al, v erificarn o s q u e o s p ro fesso res p en sam q ue, se
q u iserem a lim en tar um a im p re ssã o d e c o m p e tê n c ia profissio n al e de
au to rid ad e institucional, te rã o q u e arran jar m an eira de te r a certeza
de que, no caso de a p a re c ere m na esco la p a is e n co lerizad o s e p o rta ­
d o res dc q u e ix a s várias, o d ire c to r a p o ia rá o s m e m b ro s d o q u a d ro
d o c e n te , p e lo m en o s e n q u a n to o s pais d o s a lu n o s n ã o se tiv e re m
re tir a d o 16. D e m o d o sim ila r, os p ro fe sso re s e s tã o p ro fu n d a m e n te
co n v en cid o s da n e c e ssid a d e d o s seus co leg as não d isco rd are m deles
c n ão o s c o n tra d iz e re m n a p re se n ç a dos a lu n o s. “ B a sta que o u tro
pro fe sso r fran za a te sta n u m a atitude tro cista, que eles [os alunos]
percebem logo, n ão d eix am p a ssa r nada, e lá se vai todo o respeito
q u e n o s i c m . " 17 A n a lo g a m e n te a in d a , s a b e m o s q u e a p ro f is s ã o
m éd ica tem um có d ig o p ro to c o la r estrito, segundo o qu al um m édico

14 Há um problem a dc d ra m a tiz a çã o interessante na fa m ília, d eco rren d o da


solidariedade de sexo e descendência que iiiravessa a solidariedade conjugal, e que
torna difícil para o marido e mulher "apoiarcm -sc" um ao outro em dem onstrações
de autoridade diante dos filhos ou em demonstrações de distância ou familiaridade
em relação í> parentela alargada. C om o sc indicou antes, estas linhas de pertença
cruzadas impedem a extensão cas clivagens estruturais.
^ Taxei. op. ci:.. pp. 53-54.
H oward S. Becker. 'T n e Teacher in the Authority Sistem of the Public School".
Journal o f Educuliotial Sociology, XX VII, p. 134.
17 Ibid.. extracto de entrevisu». p. 139.
112 Hrving Goffman

q u e co n fe re n cia co m outro na p resen ça do p acien te d este d ev e e v itar


cu id a d o sa m e n te d iz e r seja o q ue for que p o ssa afe cta r a im p ressão de
c o m p etên cia q u e o seu co leg a v isa m anter. C o m o ex p lic a H ughes:
“O p ro to co lo [p rofissional] é um corpo ritual, in fo rm alm en te e la b o ­
rado. d e m odo a proteger, peran te os clientes, a fa ch a d a co m u m da
p ro fissão .” 18 E, ev id en tem en te, este tipo de solid aried ad e peran te os
su b o rd in ad o s verirlca-.se tam b ém q u an d o o s actores se en c o n tram na
p re se n ç a d e superiores. P o r ex em p lo , num estudo recente consagrado
à po lícia, d esco b rim o s que u m a e q u ip a de patru lh a de d o is agentes,
n a q u a l c a d a um d o s g u a rd a s o b se rv a as a c tu a ç õ e s ile g a is ou de
legalidade d u v id o sa do outro, e na qual cada um d o s ag en tes possui
elem en to s de p ro v a im b atív eis q u e p erm itiriam d e sm e n tir as p reten ­
sões de estrita o b ed iên cia à lei que o seu co leg a a p re sen ta peran te o
ju iz , dá g eralm en te p ro v as de u m a so lid aried ad e h eróica, c o n firm an ­
d o c a d a um dos seus m em b ro s a versão q ue o o u tro adianta, in d ep e n ­
d e n te m e n te d a s a tro c id a d e s q ue e s te p o ssa te r c o m e tid o e até da
p ro b ab ilid ad e d e c o n se g u ir que o seu testem u n h o se ja aceite com o
v e ro sím il.19
É e v id en te q u e. se o s acto res e stiv e re m in te re ssa d o s em m an ter
d e te r m in a d a lin h a d c a c ç ã o , e s c o lh e r ã o c o m o c o m p a n h e iro s de
eq u ip a p essoas d as quais possam esp erar um d esem p en h o adequado.
A ssim , as crian ças d a fam ília sào m uitas vezes ex clu íd as dos desem ­
p en h o s rep resen tad o s perante co n v id ad o s, q u e têm lu g a r no quadro
d a v id a do m éstica, um a vez que m u itas vezes nào se pode confiar em
que essas cria n ç a s se “co m p o rtem ” co m o d e v e ser. ou seja. se ab ste­
nham dc a c tu a r d e um m odo inconsisten te c o m a im pressão visada
pelo d esem p en h o fam iliar.20 Ig ualm ente, o s in divíduos co m a reputà-

1 ^ C. O. H ughes. “Institutions” , \ rew Outline o f she Principles o f Sociology, ed.


Alfred M. Lee. Barnes and Noble, Nova Iorquc. 19-6. p. 273.
19 W illiam W est ley, “The Police", dissertação de Ph. D. inédita, Departm ent o f
Sociology, University o f Chicago. 1952. pp. 187-96.
Na m edida cm que são definidas com o “riSo-pcssuas". as crianças podem ser
autorizadas a com eter actos desajeitados sem que a audiencia se veja obrigada ¿i
lev ar seriam ente ein com a as im plicações expressivas co rresp o n d en ts. Todavia,
tratadas ou não com o itâo-pcssoas. as crianças estão em posição tie trazer à luz do
dia segredos fundaimmlais.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Di as 113

ção d e se em b riag arem q u a n d o te m o acesso às b ebidas facilitad o , c


que, um a vez em briagados, se to m a m p alav ro so s o u “d ifíc eis” , cons­
tituem um a am eaça para o d esem p en h o , tal co m o as p essoas q u e se
recusam a “ad o p tar a atitu d e d e v id a ” em c e rta o casião a fim de d efen­
d e re m a im p re ssã o q ue o s c o n v id a d o s ta c ita m e n te v isam , no seu
co n ju n to , m an ter peran te os anfitriões.
J á su g e ri q u e em n u m e ro s o s q u a d ro s de in te ra c ç ã o a lg u n s d o s
p a rtic ip a n te s c o o p e ra m fo r m a n d o u m a e q u ip a , ou se e n c o n tra m
n u m a p o sição em q u e d e p e n d e m d esse tip o de co o p eraç ão no q u e se
re fe re à s a lv a g u a rd a d e d e te r m in a d a d e fin iç ã o d a situ a ç ã o . P o is
bem . q u a n d o an alisam o s in stitu iç õ e s so ciais co n cretas, m u itas vezes
d e sc o b rim o s q u e. e m c e rto e im p o rta n te sen tid o , to d o s os p a rtic i­
p a n tes, n o s se u s d ife re n te s d e s e m p e n h o s em re sp o sta à re p re s e n ­
tação dc e q u ip a que lh es é e x ib id a , c o n stitu em , eles p ró p rio s, um a
eq u ip a. A p a rtir do m o m en to cm que cad a e q u ip a rep resen ta a sua
ac tu aç ão d e ro tin a perante a o u tra, p o d em o s fa la r de in tera cç ão d ra ­
m ática, e j á n ão ap en as d e acção d ram ática, ao m e sm o tem p o que
co n sid e ra re m o s esse tip o de in teracção não com o um am o n to a d o de
ta n ta s v o z e s q u a n to s os p a rtic ip a n te s p re s e n te s , m as a n te s c o m o
u m a esp é c ie de d iá lo g o e in te r-re p rc s c n ta ç ã o e n tre d u a s e q u ip a s.
N ão c o n h e ç o q u a lq u e r ra z ã o d e ordern g eral p ara q u e a in te rac ção
em q u ad ro s n atu rais h a b itu a lm e n te assu m a o asp ecto de um in terd e-
sem p en h o d e d u as eq u ip a s, o u p o ssa ser re c o n d u z id a a e sse m o d elo ,
m as é isso o q u e, em todo o caso . e m p iric a m e n te se verifica. A ssim ,
em cen ário s so ciais a m p lo s, onde se a firm a m d iv e rsa s g ra d u aç õ es
de e sta tu to , vem o s q u e, e n q u a n to d u ra u m a in teracção d e te rm in a d a,
se e sp e ra q ue o s p a rtic ip a n te s p erten cen tes a n u m ero sas categ o rias
d iferen tes se d istrib u am e a g ru p e m em d u as eq u ip as. P o r e x em p lo ,
um te n e n te d o e x é r c ito a li n h a r á d o la d o d c to d o s o s r e s ta n te s
o ficiais e e m o p o sição a to d o s os o u tro s h o m en s n o âm b ito d c dad a
situação: noutras o casiõ es, a lin h a rá de um lad o q u e inclui tam bém
oficiais su b altern o s, d e se m p e n h a n d o co m eles u m a e x ib içã o d e s ti­
n a d a a o s o f ic ia is d e p a te n te s u p e r io r p r e s e n te s . E x is te m , se m
d ú v id a , e m c e rta s in te r a c ç õ e s , a s p e c to s e m r e la ç ã o a o s q u a is o
m odelo das d u as eq u ip as não p a re c e o m ais a d eq u ad o . H á e le m en to s
re le v a n te s, p o r e x e m p lo , n a s s e ssõ e s de a rb itra g e m q u e p a re c e m
114 Rrving Goffman

c o rre s p o n d e r a u m m o d e lo d e três e q u ip a s , a o p a sso q u e c e rto s


a sp e c to s de situ a ç õ e s c o m p e titiv a s ou " d e s o c ie d a d e 1' su g e re m a
a d o p ç ã o d e um m o d e lo de v á ria s e q u ip a s. D eve do m e sm o m odo
Ficar cla ro q u e. in d e p e n d e n te m en te do n ú m ero de e q u ip a s, a in te­
racção pode p o r vezes se r an alisad a em term os do e sfo rç o c o o p e ra ­
tiv o d o s seus p articip an tes em v ista d a sa lv ag u a rd a d c u m co n sen so
fu n cio n al.
Se ab o rd arm o s u m a in teracção co m o um d iálo g o e n tre d u as e q u i­
pas, p oderá p o r vezes ser co n v en ien te d esig n arm o s u m a das equipas
co m o e q u ip a dos a cto res c a outra com o a u d iê n c ia ou eq u ip a d o s es­
p ectad o res, d e ix a n d o m o m en tan eam en te d e lado o facto de tam bém
a a u d iê n c ia a p re se n ta r urn d esem p en h o de equipa. Hm certo s casos,
corno q u a n d o duas eq u ip as de um só m em b ro , in terag em n u m a in sti­
tu ição pública ou em c a sa de um am ig o com um , a esco lh a da equipa
a d e sig n a r co m o do a c to r ou d a au d iê n c ia será arb itrária. C ontudo,
em g rande n ú m ero de situ açõ es sociais relev an tes, o qu ad ro social
em q ue a in teracção se v erifica c m o n tad o c g e rid o ap e n as p o r um a
d a s eq u ip as, co n trib u in d o a ssim m ais e stre ita m e n te p a ra a rep re se n ­
ta ç ã o com q u e essa e q u ip a resp o n d e à e x ib ição d a outra. U m cliente
num a loja, um utente num a repartição» um g ru p o de co n v id ad o s em
c a s a d o s seus an fitriõ es — tod as estas p essoas ap rese n tam u m d e­
sem p en h o e salv ag u ard am u m a fach ad a, m as o qu ad ro e m q u e o fa ­
zem ach a-se fo ra do seu co n tro lo im ediato, sen d o cm co n trap artid a
p arte in te g ra n te da e x ib ição re alizad a p o r aq ueles p eran te os q u ais as
p esso as em c a u sa estão p resentes. E rn tais casos, será m u itas vezes
co n v e n ie n te c h a m a r à e q u ip a q u e c o n tro la o q u ad ro a e q u ip a do s
a c to re s e, à o u tra e q u ip a , a u d iê n c ia . P o r isso , do m e sm o m o d o ,
p o d e rá se r c o n v e n ie n te c la ssific a r co m o dos a cto res a e q u ip a que
contribui m ais a c tiv a m e n te p a ra a interacção, ou d ese m p en h a nela o
papel d ra m á tic o m ais sig n ificativ o , o u e stab elece o ritm o e d irecção
que am b a s as e q u ip as d ev em ad o p tar no seu d iálo g o interactivo.
Q u e re m o s s u b lin h a r ain d a s e r e v id e n te q ue, se a e q u ip a q u ise r
m a n te r a im p ressão q u e p ro cu ra suscitar, d e v e rá então g a ra n tir que
n e n h u m in d iv íd u o será a u to riz a d o a p e rte n c e r a o m esm o tem p o à
eq u ip a e à au d iên cia. A ssim , p o r ex em p lo , se o prop rietário d e um
p e q u e n o p ro n to -a -v e stir p ara sen h o ras tiv e r um v e stid o à v en d a e
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias

d isse r à clien te q ue o v estid o d eseen de p reço p o r ter u m a n ó d o a ? por


se e sta r e m fim de estação o u ser o ú ltim o de um stock, etc., m as lhe
e sc o n d e r q ue na realid ad e o p reço b aixou p o r nào te r sido possível
v e n d e r o vestido, ou p o r este n ã o cer a c o r m ais d e se já v el, ao m esm o
te m p o q u e te n ta im p re s s io n á -la fa la n d o -lh e de u m a a g ê n c ia c o ­
m e rc ia l c m N o v a Io rq u e , d a q u a l não 6 p ro p rie tá rio , ou d c urna
d irecto ra d e vendas, q u e *ião p a ssa dc facto d e u m a sim p les caixeira,
en tão te rá que se c e rtific ar, no c a so d e v ir a p re c isa r d e c o n tra ta r
alg u ém p ara um part-tim e d e sáb ad o , q u e a n o v a e m p re g a d a n ão é
u m a p e sso a d a zona. q u e te n h a sid o su a clien te ou p o ssa vir u sê-
-10.21
P e n s a -s e m u itas v e z e s q u e o c o n tro lo d o c e n á rio c o n stitu i u m a
v antag em durante a in teracção . N u m sentido lim itado, esse controlo
p e rm ite à e q u ip a in tro d u z ir d is p o s itiv o s e s tra té g ic o s v isa n d o d e ­
term in ar a inform ação q ue o p ú b lico está e m co n d içõ es de adquirir.
A ssim , se os m édicos q u iserem im p ed ir os p acientes can ce ro so s dc
d e s c o b rire m a id e n tid a d e da su a d o e n ç a , s e r-lh e s -á ú til te re m a
possib ilid ad e de os d isp e rsa r p e lo h ospital de m odo a que eles não
c o n s ig a m d e s c o b rir, a tra v é s da id e n tific a ç ã o d o se rv iç o o n d e se
en co n tram , a natureza d a d o e n ç a d e q u e sofrem . (D este m odo, o pes­
soal do hospital p o d e rá ser o b rig ad o a d e sp e n d e r m ais tem po a per­
co rrer co rred o res e a d eslo car eq u ip am en to s, asp ectos que. no caso de
te r sid o ad o p tad a u m a e stra té g ia d iferen te, p o d eriam ser e v itad o s.)
A n alo g am en te, o b arb eiro q u e regula os flu x o s d c c lien tes p o r m eio
de um a agenda dc m arcaçõ es acessív el ao público fica num a p o sição
q u e lh e p e r m ite um in te r v a lo p a ra to m a r c a fé . b a s ta n d o p a ra o
c o n s e g u ir q u e e s c re v a u m nom e. in v e n ta d o e n tre os d o s c lie n te s
constan tes d a lista. O cliente interessado co m p ro v a assim por si pró­
prio q u e não p oderá se r a te n d id o à h o ra que pretendia. O u tra u tili­
zação cu rio sa d o quadro d a acção e seus acessórios é a que refere um
artig o so b re asso ciaçõ es d c estu d a n te s fem in in as n o rte-am erican as,
q u e , o rg a n iz a n d o um c h á p a ra c a n d id a ta s à filia ç ã o , c o n s e g u e m

1
Exemplos extraídos de G eorge Rosenbaum. "A n Analysis o r Personalization in
Neighborhood Apparel Retailing", (esc dc M A. inédita. Department o f Sociology,
University of Chicago. 1953, pp. 86-87.
116 F.rving G offniuii

d istin g u ir as b o a s c a n d id a ta s d a s m ás. sem d a re m a im p re ssã o de


tratar urnas c outras d e m an eiras diferentes:

“M e sm o q u e h a ja re c o m e n d a çõ e s, é d ifícil lem b rarm o -n o s de


967 ra p a rig a s c o m q u e m e stiv e m o s ap en as p o r alg u n s m inutos d u ­
ra n te u m a re c e p ç ã o ” , a d m itiu C a ro l. “ P o r isso in v e n tá m o s um
truque p ara e sc o lh e r as sim p áticas e p ô r dc lado as desag rad áv eis.
A rra n já m o s três b a n d e ja s e d istrib u ím o s p o r e la s o s c a rtõ e s das
ca n d id a ta s — u m a ban d eja para as m elh o res, o u tra p a ra o s casos
em d ú v id a e o u tra p ara as in suportáveis.
A q u e la de en tre n ó s que fic a e n c a rre g a d a d e u m a c a n d id a ta
durante a fe sta te rá de c o n se g u ir lev á-la d isfa rça d am en te a té ju n to
d a b a n d e ja devida, fazen d o com que ela lá deixe o seu c a rtà o ” .
c o n tin u o u C a ro l. “ A s c a n d id a ta s n u n c a se d ão c o n ta d o m odo
co m o nós p ro ced em o s!” 22

P assem o s a citar outro e x e m p lo referen te aos m étodos de d irecção


d c um hotel. S e a lg u m d o s m em bros d o pessoal do hotel d esco n fiar
d a s in ten çõ es ou c a rá c te r de u m c a sa l d e h ó sp ed es, tran sm itirá ao
p a q u e te um sinal secreto de "a te n ç ã o ” !

T rata-se de um ex p ed ien te sim ples que to rn a m ais fácil ¿ios e m ­


preg ad o s m anterem os su sp eito s d eb aix o de olho.
D epois de in sta la r o casal, o p aq u ete, ao fech ar a p o rta atrás de
si, in tro d u z um p e q u e n o b o tã o na m a ç a n e ta da p o rta . O b o tã o
accio n a u m a lingueta q u e faz a p arecer um círculo negro no centro
do p u x ad o r, do lad o d c fora. O sinal é su fic ie n te m e n te discreto
para que os c lien tes n ão d êem p o r ele. m as as c ria d as de qu arto , os
v ig ilan tes, os em p reg ad o s e p aq u etes e stão h a b itu a d o s a p re sta r
aten ção ao re c a d o ... e a p articip arem q u a isq u e r c o n v ersas em voz
alta ou facto s in só lito s que venham a d ar-se.23

- - Joiin B cck, “W h a t's W ro n g w ith S o ro rity R u sh in g ? ” . C h ica g o T rib u n e


Magazine, 10 dc Janeiro dc 1954. pp. 20-21.
2- Dev Co)Ians c Stewart Sterling. I Was a House Detective. Dutton. N ova lorquc.
1954. p. 56. As reticencias são dos autores.
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 117

E m term o s m ais gerais, o c o n tro lo do q u a d ro dc acção te n d e rá a


c o n fe rir à e q u ip a q ue o d etém u m a im pressão d e seg urança. U m in ­
v estig a d o r sugere, por isso. o seg u in te a p ro p ó sito d a relação m é­
d ico -farm acéu tico :

A farm ácia constitui o u tro asp ecto . O m édico a p arece co m fre­


q u ê n c ia p o r lá à p ro c u ra d e m e d ic a m e n to s, in fo rm a çõ e s, ou só
p a ra c o n v e rs a r um b o c a d o . D u ra n te e ste s e n c o n tro s, o h o m em
q u e e s tá p o r trá s d o b a lc ã o te m a p r o x im a d a m e n te a m e sm a
v an tag em de que um o ra d o r q u e fala de pé d e sfru ta em rela çã o à
au d iên cia.2“

U m d o s f a c to r e s q u e c o n tr ib u i p a r a e s ta s e n s a ç ã o d a in ­
d ep e n d ê n c ia d o fa rm a c êu tic o relativ am en te à p rática m éd ica é a
p ró p ria fa rm á c ia . A f a r m á c ia faz, e m c e rto s e n tid o , p a rte do
fa rm a c ê u tic o . Tal c o m o N c p m n o <5 re p re s e n ta d o e m e rg in d o do
m e io d o m ar, e a o m e sm o te m p o , c o m o se n d o o p ró p rio mar,
a ssim e x is te o se n tim e n to é tic o d o fa rm a c ê u tic o , a firm a n d o -se
p o r entre as prateleiras, os v id ro s dos b alcõ es e os eq u ip am en to s,
a o m esm o tem po que p a rtic ip a d a essên cia d e tudo isso .2'S

U m a b e la ilu stração lite rá ria d o s efeitos so b re o indivíduo d a au ­


sência de co n tro lo so b re o q u a d ro o nde decorre a acção é a passa­
gem de O Processo, d e F ra n z K afk a, q u e d e sc re v e o en co n tro entre
K. e as au to rid ad es, que te m lu g a r no p ró p rio local o n d e m ora o p ri­
m eiro:

D e p o is d e a c a b a r d e se v e s tir , te v e q u e se d e s lo c a r, c o m
W illem nos calcan h ares, atrav essan d o o q u arto c o n tíg u o , q u e de
m o m en to se en c o n tra v a v a z io , até ao s ap o sen to s v izin h o s, cu jas
portas dup las se a c h a v a m ab ertas. O qu arto , co m o K m uito bem
sabia, fora m uito re c e n te m e n te o cu pado p o r um a ce rta F räulein
B iirstncr, um a d ac tiló g ra fa, q u e saía ce d íssim o para o e m p re g o , e

24 W einlein. op. cit.. p. 105.


25 Ibid., pp. 105-106.
118 F.rving Goffman

co m q u c m ele m al tro cara ain d a alg u m as p alav ras q u an d o am bos


de p assag em se c ru zav am . A g o ra a m esin h a de c a b ec eira que ha­
via ju n io à cam a d a jo v e m fora arrastaria para o m e io d o q u arto
p ara serv ir dc secretária, e o in sp ecto r e stav a sen tad o atrás dela.
C ru z a ra as p ern as e d eix ara um d o s b raços a rep o u sar nas costas
d a cad eira.
. . . "Jo se p h K .? ’\ p e rg u n to u o in sp e c to r, ta lv e z a p e n a s co m a
in te n ç ã o d c atrair o o lh a r d istra íd o d e K . K. fez q u e sim co m n
cab eça. “P re su m o q u e e ste ja um tan to su rpreendido co m o que sc
p asso u esta m a n h ã ? ” , co n tin u o u o in sp ecto r, a rru m a n d o c o m a.s
d u as m ão s as p o u cas coisas q ue tin h am ficado em cim a d a mesi
n h a -d e -c ab c c e ira , u m a v e la e um a caix a de fó sfo ro s, um liv ro e
u m a a lm o fad in h a p ara alfin etes, co m o se fo ssem ob jecto s n eces­
sá rio s à su a in v e stig a ç ã o . “ C o m c e rte z a " , d isse K ., e se n tiu -se
satisfeito p o r fin alm en te d e p a ra r co m u m hom em inteligente, com
q u e m lh e se ria p o ssív e l d is c u tir o a ssu n to . “ C o m c e rte z a , estou
su rp reen d id o , m as d e m aneira n en h u m a d e m asiad o su rp reen d id o ."
N ão está d e m a sid o su rp reen d id o ?”, p erguntou o inspector, pondo
a vela n o m eio da m esa e v o ltan d o a arru m ar as restan tes co isas à
v o lta d e la . “T a lv e z m e te n h a e n te n d id o m a l” , a p re sso u -se K. a
acrescen tar. "Q u e r d izer" — K. in terro m p eu -se e, co m o s olhos,
p ro cu ro u urna cad eira. — “ S u p o n h o q ue p o sso sen ta r-m e ", insi­
n u o u . “N ã o <Sc o stu m e ” , resp o n d eu o insp ector.26

É , e v id en tem en te, possív el q ue ten h a de se p agar u m p reço pelo


p riv ile g io q ue c o n sisto cm a p re se n ta r o d e sem p e n h o “em c a sa "; o
in d iv íd u o n essas c ircu n stân cias pode scrv ir-sc de certos asp ecto s da
e n c e n a ç ã o p a ra tra n s m itir d e te rm in a d a s in fo rm a ç õ e s so b re a su a
p e sso a , m as n ão tem m a n e ira d e d is s im u la r a q u ilo q u e o c e n á rio
tra n sm ite . P o r isso é n atu ral q u e p o r v e z e s um a c to r em p o tê n c ia
po ssa ter q u e e v ita r o seu p ró p rio p alco e os m eios de c o n tro lo que
este p erm ite a fim d e n ã o in co rrer num d esem p en h o m en o s liso n jeiro
— sen d o p o ssív el q u e isso im plique alg o m ais im p o rtan te d o q u e o
sim p le s ad iam en to de u m a festa em v irtu d e de a m o b ília n o v a não

26 F ran/ Kafka, The Triol, irad. ing., Knopf, Nova Iorque. 1948, pp. 14-15.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 119

te r sid o a in d a en treg u e. É assim q u e pod em o s 1er a pro p ó sito d e urna


zo n a d e g ra d a d a de L ondres:

. ..a s m ães n esta z o n a , m ais d o q u e em q u a lq u e r o u tro lugar,


p referem que os seus filh o s n a sç a m no hospital. A principal razão
d esta p re fe rê n cia parece se r o s cu sto s d e um p arto e m casa, to r­
nan d o n ecessária a aq u isição d o eq u ip am en to m ín im o ad equado,
co m o , p o r ex em p lo , to alh as, rec ip ie n te s p ara lav ag en s, c, p o r fim ,
o u tr a s c o is a s q u e c o r r e s p o n d a m a o s c r ité r io s im p o s to s p e la
p a rte ira . O n ascim en to d e u m filho em casa sig n ifica ta m b é m a
presen ça d entro d e sta de u m a e stran h a, o q u e p o r sua vez im plica
um c u id a d o su p le m e n ta r c o m a lim p eza.2;

Q u an d o o b serv am o s um d e sem p en h o de eq u ip a, v erific am o s co m


fre q u ê n c ia q u e o d ire ito d e d ir ig ir e c o n tro la r o a v a n ç o d a a c ç ã o
d ram á tic a é co n ced id o a c e rta p erso n ag em , ü que pod em o s ilu strar
to m an d o co m o ex em p lo urn c a m a re iro d a co rte. P o r vezes o in d iv í­
duo que d o m in a a e x ib iç ã o e q u e , cm certo se n tid o , é aquele q u e a
d irig e, d e se m p e n h a um p ap el e fe c tiv o n o p róprio d ese m p e n h o que
o rie n ta . R o q ue n o s m o stra a s e g u in te d e s c riç ã o ro m a n e sc a das
funçõ es do sacerd o te na c e rim o n ia d o casam ento:

O m in istro deixou a p o rta a b erta, de m odo a que eles [R obert, o


no iv o , e L ionel, o p adrinho] p u d e sse m o u v ir o sinal e en trar na d e­
v id a a ltu ra . F ic a ra m os d o is à p o rta co rn o que à e sc u ta . L ionel
m e x e u n o b o ls o , s e n tiu o re b o rd o c u r v o d a a lia n ç a , e d e p o is
deito u a m ão ao braço d e R o b ert. A m edida q u e sc ap ro x im av a a
p a la v ra da sen h a c o m b in a d a . L io n el abriu a p o rta e, ao o u v ir o si­
nal, e m p u rro u R ob ert, a tra v é s d ela, à su a frente.
A cerim ó n ia d e se n ro lo u -se sem incidentes c o n d u zid a pela m ão
firm e c e x p erim en tad a d o sacerd o te, q u e tran sm itiu até final todas
as deix as, franzindo as so b ran celh as n u m a atitu d e dc a d v ertên cia
aos actores. O.s co n v id ad o s n ã o notaram que R obert d e m o ra ra bas-

B. M. Spinlcy, The D eprived a n d the Privileged, Routiedgc and Kcg.in Paul.


I-ondrcs. 195?. p. 45.
120 Erving Coffman

tante tem p o a en fiar a aliança n o d edo da noiva; co n tu d o . no taram


que o pai d a n o iv a ch o rara m uito c a m ãe. nem um a lágrim a. Natía
m ais do que p eq u en as coisas, votadas a um rápido esq u ecim en to

De u m m odo g eral, os m em b ro s da e q u ip a diferem pelo m o d o e


p e lo grau cm q u e sc e n c o n tra m a u to rizad o s a d irig ir o desem p en h o .
D e p assag em , pod em o s o b se rv a r a g o ra q ue as sem elh an ças estru tu ­
ra is d a s p rá tic a s de r o tin a a p a re n te m e n te d iv e r s a s se re fle c te m
b astan te b em n a identidade do m o d o d e p e n sar dos re sp e c tiv o s di-
rectores in d e p e n d e n te m en te d as circu n stân cias. Q u e r se trate d e um
fu n eral, d e um c a sam en to , dc u m a sessão de bridge, de u m leilão, de
u m e n f o r c a m e n to ou d c um p iq u e n iq u e , o e n c e n a d o r te n d e rá a
co n sid e ra r o d esem p en h o em term os de sab er sc tudo co rreu “ sem
a tro p e lo s’’, “c o m e fic á c ia ” e “c o m o d ev e se r” , e se o s fac to res de
p e rtu rb a ç ão ev en tu ais fo ram ou não an te c ip a d am en te previstos.
H á em n u m e ro so s d e se m p e n h o s d u a s fu n ç õ e s im p o rta n te s que
têm de se r p reen ch id as, e. no caso dc a e q u ip a te r um d irig en te, este
assu m irá a ta re fa especial de realizar essas d uas funções.
Hm prim eiro lugar, ao directo r p o d erá incum bir o encargo especial
de fazer v o ltar à linha d e co n d u ta adop tad a q ualquer m em bro da eq u i­
pa cu jo d esem penho dela sc afaste. A intervenção tranquilizadora e a
sanção são os processos de em en d a m ais h abitualm ente aplicados. O
papel do árbitro dc baseball, na m ed id a em q ue consiste na salv ag u ar­
d a de um d eterm in ad o tipo de realidade perante os ad eptos d e am bas
as equipas, 6 urn bom exem plo do q ue estam os a dizer.

T odos os árb itro s in sistem em que o s jo g a d o re s devem c o n tro ­


lar-se. ab ste n d o -se de g esto s q ue re flita m d e sp rezo p elas su as d e­
c isõ es.29

E u tin h a sem d ú v id a d escarreg ad o j á m u itas v ezes a m inha dose


q u an d o e ra jogador e sab ia q ue tinha de e x istir um a v álv u la dc sc-

Warren M iller, The Sleep o f Reason, l.inie. Brown <ind Company. Boston. 1958.
Ç. 254.
Pinelli. op. cit.. p. 141.
A Apresenlação do Lu na Vida de Todos os Dias 121

g u r a n ç a q u e me p e rm itisse a liv ia r aq u ela tensão terrív el. E nquanto


árb itro podia sim p a tiz a r c o m o p onio de v is ta d o s jo g a d o re s. M as,
se m p re en q u an to á rb itro , tin h a tam bém que d e cid ir até que ponto
podia d e ix a r q ue um jo g a d o r c h eg asse sem a tra sa r o jogo e sem
lh e p e r m i t i r q u e m e i n s u lt a s s e , a t a c a s s e o u r id ic u la r iz a s s e ,
estra g a n d o o desafio . G e rir o s incidentes e os ho m en s em acção
no c a m p o era tão im p o rta n te co m o c h am á-lo s à razão — e m ais
difícil.
F. f á c i l p a r a q u a l q u e r á r b i t r o e x p u l s a r u m j o g a d o r . C o m
f r e q u ê n c ia é m u ito m a is d if íc il m a n tê -lo e m c a m p o — c o m ­
p r e e n d e r e p re v e r as s u a s re c rim in a ç õ e s de m o d o a e v ita r um
c o n fro n to d esag rad áv el.30
N ã o tolero p alh açad as e m cam po, co m o n enhum outro árb itro
as tolera. O s artistas de te a tro d ev em re p re se n ta r n o s p alcos ou na
telev isão e n ã o n o s d e sa fio s d e baseball. U m a c o m é d ia ou fa rsa de
jo g o só serv e para o d ep reciar, e tam bém põe o árb itro e m causa,
n a m ed id a em que e le p erm ita q u e o esp ectácu lo se d esen v o lv a. E
p o r isso q u e v e m o s o s e n g ra ç a d in h o s e o s e s p e rta lh õ e s se re m
ex p u lso s assim que c o m e ç a m c o m as ce n a s d o c o s tu m e .--

F re q u e n te m e n te , sem d ú v id a , o d ire c to r, m ais do q u e a c a lm a r


em o çõ e s in ad eq u ad as, te m q u e e stim u la r um e m p e n h a m e n to e m o ­
cional co n v in cen te; “a c e n d e r o ra stilh o " - tais sã o as palav ras que
por vezes caracterizam as su as fu n ç õ e s n o s c írc u lo s d e rotários.
E m seg u n d o lugar, o d ire c to r p o d erá estar e sp ec ia lm e n te e n c a rre ­
gado d e d istrib u ir os p a p é is d o d esem p en h o e de d e fin ir a fachada
pessoal co rresp o n d en te a ca d a p ap el, p o r que é po ssív el c o n sid e ra r
ca d a quad ro de acção c o m o urn lu g a r d isp o n d o d e um certo núm ero
de p erso n ag en s a ser d istrib u íd o p elos acto res p o ssív eis, e co m o um
co n ju n to d e eq u ip am en to s d e sin a is ou acessó rio s ce rim o n ia is, q u e
os d iferen tes indivíduos te râ o q ue partilhar cnlrc si.
T o rn a -se cla ro q u e, se o d ire c to r c o rrig ir as m a n ife sta ç õ e s in a ­
dequadas e d istribuir as prerro g ativ as principais e secundárias, então

Pinclíi. op. f/r., p. 131


31 ibid.. p. 139.
122 H rv in g G o ffm a n

os o u tro s m e m b ro s d a e q u ip a (p ro v a v e lm e n te p re o c u p a d o s c o m a
exibição q u e apresentam uns ao s outros bem com o com a ex ibição co­
lectiv a que en d e re ç am à au d iên cia) terão para co m o d irc c io r um a
atitu d e d iferen te d a q u e têm p ara co m os d e m a is c o m p an h e iro s de
equipa. A lém disso, se a audiência co n sid erar que o desem penho tem
um d irecto r, te n d e rá a to rn á -lo m ais resp o n sá v el do q u e os outros
a c to re s p e lo s u c e s s o d o d e s e m p e n h o . P ro v a v e lm e n te , o d ire c to r
reag irá a e sta responsabilidade form ulando exigências dram atiírgicas
q u an to ao d esem p en h o q u e os actores não im poriam a si próprios. O
que p o d e rá c o n trib u ir p a ra a c e n tu a r a d istâ n c ia q u e o c o n ju n to da
equipa já sen te cm relação a ele. P o r isso, urn director de desem penho,
co m eçan d o e m b o ra p o r se r um dos m em bros da eq u ip a, p o d erá ser
co lo cad o pou co a pouco num papel m arginal entre a audiência e os
ac to re s, fic a n d o m e ta d e n u m c a m p o e m e ta d e n o u tro , c o m o u m a
esp é c ie de m en sag eiro m as sem a p rotecção de que os m ensageiros
habitualm ente gozam . O ch efe de secção d e urna fábrica fornece-nos
um exem p lo q ue tem sido um frequente tem a de an álises.--
Q uando estudam os um a prática de rotina cuja representação requer
um a equipa dc vários actores, vem os p o r vezes que um dos m em bros da
eq u ip a se to rn a estrela, líder ou centro das atenções. U m c aso extrem o
é o ilu strad o p e la vida de co rte trad icio n al, co m um a sala ch e ia de
co rtesão s q u e se ordenam à m aneira de um quadro vivo, d e tal m odo
que o olhar, seja qual fo r o p o n to da sala de que paita, será conduzido
a o c e n tro d e a te n ç ã o q u e a fig u ra re a l d e fin e . A e s tre la ré g ia do
d e se m p e n h o e sta rá v e stid a m ais v isto sa m e n te c se n ta d a n u m lu g ar
m ais alto d o q u e q u alq u er o utra pessoa presente. U m a orientação das
a te n ç õ e s a in d a m a is e s p e c t a c u l a r 6 a q u e n o s a p r e s e n t a m as
coreografias das grandes com éd ias m usicais, quando quarenta ou cin­
q u en ta aitistas dc bailado se prosternam rodeando a heroína.
A e x tra v a g â n cia d o s d esem p en h o s q ue a c o m p an h am a e n tra d a em
c e n a d o s re is não nos d e v e c e g a r p ara a u tilid ad e dc u m co n c eito de

•*- V e r. p o r e x e m p lo . D o n a ld E. W ra y , " M a rg in a l M e n o f In d u stry : T h e F o re m a n ” ,


Am erican Journal o f Sociology. L1V , pp. 2 9 8 3 0 1 . e F ritz R o e th lis b c r g ç r . "'l he
F o re m a n : M a s te r a n d V ic tim o f D o u b le T a lk ” . Harvard nusiness Review. XXI11,
p p . 2 8 5 -9 4 . O p a p e ! d o m e n s a g e iro se rá a n a lis a d o mai.s turde.
A Apresentação do Hu na Vida de Todos os Dias 123

co rte: as c o rle s, de fa c to , s u rg e m rn u itas v e z e s fo ra d o s p a lá c io s,


conio m o stra o ex em p lo , e n tre o u tro s p o ssív eis, dos rep resen ta n tes
dos e stu d io s d e p ro d u ção de H o lly w o o d . E m b o ra em a b strac to p a­
reça v erd ad e q ue os in d iv íd u o s s ã o en d ó g am o s em term o s d e c o n v í­
vio, te n d e n d o a re strin g ir a s su as relações in fo rm ais aos in d iv íd u o s
p erten cen tes à m esm a c o n d iç ã o so cial, a co n tece, a p e sa r d isso . q ue.
ao ex am in arm o s m ais de p e rto u m a classe so cial, d esc o b rim o s m u i­
tas vezes que e sta é fo rm ad a p o r grupos so c ia is sep arad o s entre si,
c o n te n d o c a d a g r u p o u m . e s ó u m , c o m p l e m e n to d e a c to r e s
d ife re n te m e n te c o lo c a d o s. E fre q u e n te m e n te o g ru p o fo rm a-se em
torno d a fig u ra d o m in an te c u e é m an tid a a título reg u lar no c en tro de
a ten ç ã o d o palco. E v ely n W augh ab o rd a e ste asp ecto a o a n a lisa r as
classes su p erio res d a s o c ie d a d e britân ica:

R e c u e m o s uns vinte e c in c o an o s, até ao tem po em q u e e x istia


ain d a um a o rg an ização a risto c rá tic a razo av elm en te firm e e o p aís
se d iv id ia ain d a em e sfe ra s de in flu en cia p artilhadas p o r d iferen tes
se n h o re s hered itário s. D iz -m e a m em ória q ue o s gran d es sc e v i­
ta v a m u n s a o s o u tr o s a m e n o s q u e tiv e s s e m r e la ç õ e s m u ito
íntim as. E n co n trav am -se cm c e rim ô n ia s oficiais e nas co rrid as de
cav a lo s. N ão fre q u e n ta v a m as c a s a s u n s d o s o u tro s. P o d ía m o s e n ­
c o n tra r g e n te de to d a a la ia n u m p a lá c io d u cal — p rim o s c o n ­
v a le sc e n te s ou a rm iñ a d o s, c o n se lh e iro s h á b e is n e ste ou naq u ele
a ssu n to , s ic o fa n ta s, p a ra s ita s e c h a n ta g ista s de puro s a n g u e . A
ú n ic a c o isa q u e p o d íam o s te r a certeza d e não en co n tra r era a p re­
se n ç a de o u tro s d u q u e s. A so c ie d a d e in g le sa , se g u n d o h o je m e
p are c e , era um co n ju n to de trib o s, cada um a delas co m o seu c h efe
c v elh o s e c u ra n d e iro s c g u e rre iro s in tré p id o s, c a d a u m a d e las
co m o seu d ialecto p ró p rio e a s suas d iv in d ades, c a d a u m a d elas
alim en tan d o um grau e x tre m o d c x en o fo b ia.33

A v id a so cial in fo rm al d o s q u a d ro s d a s n o ssa s u n iv e rsid a d e s e


o u tra s b u ro c ra c ia s in te le c tu a is p a re c e d iv id id a e o r g a n iz a d a um

33 Evelyn Waugh, “An Open Letter", in Nancy Mitt'ord. org., Noblf.wc Oblige,
Hamisb Hamilton. Londres, 1956, p. 78.
124 E rv in g G olTm an

p o u c o d o m e sm o m odo: as facçõ es e cap elas que form am as fracções


m e n o re s -d a p o lític a a d m in is tra tiv a c o n s titu e m as c o rte s d a c o n ­
v ivência sOcial, e é a í que os heróis lo cais m ais seg u ram en te podem
d e m o n stra r a su p erio rid ad e d o seu espírito, as suas co m p e tên c ias e
p rofu n d id ad e.
E m geral, por co n seg u in te, v em os que os in d iv íd u o s que co n tri­
b u em p ara um d e se m p e n h o d e e q u ip a d ife re m seg u n d o o g rau dc
p re c e d ê n c ia q u e é atrib u íd o a ca d a u m d eles e q u e um a p rátic a d e ro ­
tin a de eq u ip a d ifere de o u tra na m ed id a d o s d iferen tes graus d e pre
ced ên cia atrib u íd o s aos seus m em bros.
A s n o çõ es de p reced ên cia d ra m á tic a e d irectiv a, e n q u a n to tip o s
c o n trastan tes de pod er 110 d ese m p e n h o , p o d em se r ap licad as, m utatis
m utandis, a u m a in te ra c ç ão g lo b a lm e n te c o n sid e rad a , n a qual se ja
possív el d e te rm in a r qual d as d u as eq u ip as possui em m a io r grau os
d o is tipos de p o d er e q u e acto res, cm am b as as eq u ip as, se d estacam
desse p o n to d e vista.
Frequentem ente, sem dúvida. 0 acto r ou equipa que possui um dos
tipos de precedência p ossuirá tam bém 0 outro, m as nem sem pre, longe
disso, o caso se verifica. P or exem pio, durante a exposição fúnebre do
co rp o n o c e n á rio de u m a casa e sp e c ia liz ad a , ta n to 0 q u ad ro social
co m o to d o s o s p a rtic ip a n te s, in clu in d o os en lu tad o s a p ar do s e le ­
m entos d a ag ência funerária, se d isp õ em em geral d e m odo a ex pri­
m irem os seus sentim entos pelo m orto e as suas relações com ele; o
m orto será 0 centro da representação e o participante de m aior prece­
d en cia dram ática en tre todos os presentes. T odavia, u m a v ez q u e as
p esso as enlu tad as pelo óbito têm m enos ex p eriên cia e se encontram
so b re c a rre g a d a s p e la d o r, e u m a v ez q u e a e s tre la do e sp e c tá c u lo
desem p en h ará apenas o papel d e alguém que está profundam ente ador­
m e c id o , s e rá o a g e n te fu n e rá rio a d irig ir 0 e sp e ctá cu lo , e m b o ra ao
m esm o tem po ele se apague discretam ente na presença do cad áv er ou.
num a sala à paire, se prepare para outra exibição funerária.
D eve fic a r c la ro q u e a p reced ên cia d ram ática e d irectiv a são te r­
m os teatrais e q ue os acto res q u e gozam d e ssa p re ce d ên cia podem
n ã o s e r d e te n to re s de o u tro lip o de a u to rid a d e e p o der. É do c o ­
n h ecim en to g eral q u e o s acto res q u e d etêm po siçõ es de lid e ra n ç a v i­
sível são m u itas v ezes m ero s fig u ran tes, seleccio n ad o s na seq u ên cia
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 125

de um co m p ro m isso , ou c o m o m o d o dc n eu tralizar u m a p o sição po­


ten cialm en te am eaçad o ra, ou c o m o m eio de d issim u la çã o e stra té g ic a
do pod er existente, p o r tras da fa c h a d a e, p o rtanto, do p o d e r ex isten te
p o r tras do p o d er e x isten te p o r irá s da fachada. N a m esm a o rd e m de
id eias, e m b o ra p a rtic ip a n te s in e x p e rie n te s o u te m p o rá rio s p o ssam
receb er u m a au to rid ad e fo rm al so b re su b o rd in ad o s ex p e rim e n tad o s,
vem o s co m freq u ên cia q ue o in d iv íd u o form alm ente e m p o ssa d o fica
inv estid o num papel d e p re c e d ê n c ia d ram ática ao m esm o te m p o que
sã o o u tro s , o c u p a n d o u m a p o s iç ã o d e s u b o rd in a d o s , a d ir ig ir a
e x ib ição 34. É o q ue foi p o r d iv e rsa s vezes acentuado a p ro p ó sito da
infan taria b ritânica d u ra n te a P rim e ira G u erra M undial: os sarg en to s
e x p e r im e n ta d o s , v in d o s d a c l a s s e tr a b a lh a d o ra , a s s e g u r a v a m a
d e lic a d a tarefa de e n sin arem d issim u lad am en te o s seu s jovens te n e n ­
tes a d esem p en h arem um p ap el d ram aticam en te e x p ressiv o à c ab eça
do pelotão e a m o rrerem depressis e num a p o sição d ram atú rg ica de
destaq u e, c o m o c o n v in h a a b en eficiário s d o e n sin o .superior. O s sa r­
g en to s, p o r seu lado, a ssu m ia m o- seu m o d esto lu gar n a retag u ard a
d o p e lo tã o e te n d ia m a s o b r e v iv e r a o p e rig o p a ra , c m s e g u id a ,
tre in a re m d e m odo id ên tico n o v as rem essas de jo v e n s tenentes.
A p re c e d ê n cia d ra m á tic a e d ire c tiv a fo ra m re fe rid a s c o m o duas
d im e n sõ e s se g u n d o as q u a is p o d e v a ria r a situ a ç ã o na e q u ip a . S e
m o d ificarm o s um pouco o p o n to d e referên cia, p o d erem o s d istin g u ir
um a terceira m o d alid ad e de v aria ç ã o .
H m geral, o s q u e p articip am n a activ id ad e q u e se v erific a n u m a
o rg a n iz a ç ão so cial to m a m -s e m em b ro s dc u m a eq u ip a q u a n d o co­
o p eram a fim de a p re se n ta rem a su a activ id ade a um a d eterm in ad a
luz. C o n tu d o , ao assu m ir o p ap el de actor, o in d iv íd u o nao te m que
su sp e n d e r to d o s os seu s e sfo rç o s ligados a p re o c u p a ç õ es in d e p e n ­
d e n te s d o d esem p en h o , ou seja. ligados à a c tiv id ad e em si própria,
d a qual o d esem p en h o co n stitu i u m a d ram atização aceitável. F. assim
d e p re v e r q u e os in d iv íd u o s que actu am n u m a d a d a e q u ip a d ifiram
un s d o s o u tro s p ela m a n e ira c o m o re p a rte m o seu te m p o e n tre a

34 Ver David Riesinan, em colaboração com Rcucl Dcnn.y c Naihan G lazer. The
L o n ely C ro w d , Y ale U n iv c rsiiy P re ss. New H aven. 1950. "T h e A v o catio n al
Counselors” , pp.. 363-67.
126 E r v in g G o f filian

sim p les a c tiv id ad e c a sim p les rep resen tação. N um e x trem o , haverá
in d iv íd u o s q u e raram en te c o m p arecem dian te do s esp a cia d o res e que
se p reo cu p am p o uco co m as ap arên cias. N o outro extrem o, situarn-
-se a q u eles a q ue c h a m a m o s p o r vezes “ p apéis p u ra m en te c e rim o ­
n iais” . cu jo s a cto res sc p re o c u p a m so b retu d o co m a s a p arên cias, e
p raticam en te co m m ais nada. P o r ex em p lo , ta n to o p resid en te co m o
o d ire c to r d e in v estig ação de um sind icato d e âm b ito n acional passa-
m o b a s ta n te te m p o n a sed e p rin cip al d o sin d ic a to , m o stra n d o -se
vestid o s d a m aneira a p ro p riad a e falan d o d o rnodo m a is conveniente
— e m v is ta d e c o n f e r ir e m a o s in d íc a lo u m a fa c h a d a de re s p e i­
tab ilid ad e. N o e n ta n to , será p o ssív e l virm o s d ep o is a a p u ra r q u e o
presid en te se co m ete tam b ém co m a lo m ad a de d ecisões im portantes
en q u a n to o d ire c to r de in v estig ação pou co te rá d e faz er alé m de se
m o stra r fisic a m e n te c o m o m em b ro d a c o m itiv a d o p re sid e n te . O s
fu n c io n á rio s d o s sin d ic a to s co n sid eram e ste s papéis p u ra m e n te ceri­
m o n ia is c o m o “ d e c o r a ç ã o de f a c h a d a ” 35. A m e s m a d iv is ã o d o
tra b a lh o se n o s d ep ara no q u a d ro d om éstico, o n d e alg o m ais geral do
q u e a c a p a c id a d e p a ra o d e s e m p e n h o d e c e rla ta re fa d e v e rá ser
ex ib id o . O tem a m uito d iscu tid o d o co n su m o o sten ta tó rio refere-se à
m a n e ira c o m o os m aridos de u m a so cied ad e m o d ern a têm a ta re fa de
a d q u irir esta tu to so cio -eco n ó m ico . e as e sp o sas a tarefa d e re p resen ­
tar essa aq u isição . Hm te m p o s lig eiram en te m ais recu ad o s, o m or­
d o m o fo rn e c ia um ex em p lo ain d a m ais e v id en te da m e sm a esp é c ie
de esp ecialização :

M as o v alor principal do m ordom o estava d irectam en te lig ad o a


um d estes serv iço s |d o m éstico s). T ra ta -se d a efic á c ia com q u e ele
p ro c la m a v a a m e d id a d a riq u e z a d o seu am o . T o d o s o s c ria d o s
c o n trib u ía m para esse fim. um a vez que a su a presença d e m o n s­
tra v a a c a p a c id ad e q u e o a m o tin h a de os p a g a r e su ste n ta r em
tro ca de pou co ou nulo trab alh o p rodutivo. M as nem iodos eram

3- V er Harold L. W ilensky, "T he Siaft' 'K xperi’: A S tudy o f the Intelligence


Function in American Trade Unions” (dissertação de Ph. D. inédita), Di-pariment of
Sociology, University of Chicago. 1953. cap. IV Alcm do material fom ccido pela
tese, devo a W ilensky numerosas sugesuíos-.
A Apresentação do Eu na Vida de Tocios os Dias 127

ig u a lm e n te efic ie n te s d e sse p o n to de v ista. A q u e le s c u ja p re p a ­


ra ç ã o e sp e c ia liz a d a ou c a p a c id a d e in v u lg a r to rn a v a m d ig n o s de
u m a rem u n eração elevada co n trib u íam m ais para o crédito d c que
g o zav am os seu s am o s d o q ue os c ria d o s que re c e b ia m salá rio s
inferio res: aqueles cu jas o b rig a ç õ e s im plicavam que ap arec essem
osten siv am en te ao s oihos d e to d o s sugeriam m ais e fica zm en te a ri­
q u e z a d o am o d o que o u tro s, c u ja s tarefas im p licav am , de um m o ­
do geral, q u e não fossem v isto s. 0.s cria d o s de libré, do co c h eiro
ao lacaio, contav am -se en tre o s m ais eficien tes do co n junto. A sua
efic á c ia atin g ia, com o m o rd o m o , o g rau de p len itu d e, um a vez
que a actu ação habitual d e ste ú ltim o o e x p u n h a m ais a to d o s os
olhares, e m ais c o m p le ta m e n te d o que q u a isq u e r outros. P o r c o n ­
seguinte. o m ordom o e ra um d o s elem en to s m ais im p o rtan tes da
rep resen tação do seu a m o .^

N o ta r-se -á a g o ra q u e um in d iv íd u o d e te n to r d c um p ap el p u ra ­
m e n te p ro to c o la r n ã o te m n e c e s s a ria m e n te q u e d e s e m p e n h a r um
papel d ra m a tu rg ic am e n (c d o m in a n te .

U m a e q u ip a pode, p o rtan to , se r definida c o m o um c o n ju n to d e in ­


d iv íd u o s c u ja e stre ita c o o p e ra ç ã o é e x ig id a p a ra a sa lv a g u a rd a de
um a d ad a d efin ição p ro je c ta d a d a situação. U m a eq u ip a é u m ag ru ­
p am en to , m as um ag ru p am en to q u e n ão se re fe re tan to a u m a e stru ­
tura ou o rg an ização social c o m o a um a in teracção ou série de inte­
racçõ es ao longo d as quais u m a ad eq u ad a d efin ição d a situ aç ão se
m antém .
Já v im o s, e v o ltarem o s a v e r ainda, q ue p a ra se r e fic a z um d e ­
se m p en h o p o d erá im p licar q u e a m edida e c a ra c terística s d a co o p e ­
ração q u e o to rn a possív el sejam d issim u lad as e co n serv ad a s secre­
tas. U m a e q u ip a tem , p o r c o n se q u ê n c ia , até c e rto p o n to as c a ra c ­
te rís tic a s d c u m a s o c ie d a d e s e c re ta . A a u d ie n c ia p o d e rá d a r-se .
ev id en tem en te, co n ta d e q u e to d o s os m em b ro s da e q u ip a se en c o n ­
tram ligados p o r um v ín cu lo q u e n ã o inclui n enhum dos m em b ro s da

J. J. H ccht. The D om estic S e rv a n t Class in iü g lu ee n th -C e M u ry i-'ngiand.


Rouiiedse. Kegan Paul. Londres. 1956, op. 53-54.
128 Erving Goffman

audiên cia. A ssim , p o r ex em p lo , q u an d o as p esso as c n lram num d e­


te rm in a d o e s ta b e le c im e n to d e p re sta ç ã o d c s e rv iç o s d ã o -s e n iti­
d am en te c o n ta de que os e m p re sa d o s, no seu conjunto, d iferem das
o u tra s p e s s o a s e m v irtu d e d o s se u s p a p é is o fic ia is . C o n tu d o , os
in d iv íd u o s q u e fazem p a ite d o q u a d ro d c um e sta b e le c im en to nào
são m em b ro s de u m a e q u ip a d e v id o ao seu e sta tu to no q u ad ro do
p esso al, m as apenas d e v id o à co o p e ra ç ão q ue m antêm em v ista dc
su sten tarem u m a d ad a d efin ição d a situ ação . Hm num erosos casos,
n ã o se p ro c e d e rá a q u a lq u e r e s fo rç o em v is ta d e e s c o n d e r q u e m
pertence ao q u ad ro d o p essoal; m as os m em bros do g ru p o form am
u m a so cied ad e secreta, u m a eq u ip a , na m ed ida cm q u e m antêm se­
creto o m o d o c o m o c o o p e ra m a fim de salv ag u ard arem um a d e te r­
m in ad a d e fin iç ã o da situ ação . A s e q u ip a s p o d em se r c ria d a s pelos
in d iv íd u o s a fim d e estes fo rtalecerem o g ru p o dc que são m em bros,
m as fo rtalecen d o o g ru p o e aju d an d o -se a si próprios d e ssa m aneira,
os in d iv íd u o s ag em j á co m o equipa, c n ão ap enas c o m o grupo. P o r
isso u m a e q u ip a , no se n tid o em que a q u i e m p re g a m o s o term o , é
um a esp é c ie de so cied ad e secreta cu jo s m em bros po d em , aos olhos
dos o u tro s e co m co n h ecim en to deles, c o n stitu ir um a so c ied a d e, e m ­
bora sc trate de u m a so cied ad e ex clu siv a, m as a so cied ad e que reco ­
n h e c id a m e n te . e s s e s in d iv íd u o s c o n s titu e m n ã o é a m e s m a q u e
co n stitu em d ev id o a o facto de ag irem c o m o eq u ip a.
U m a vez q u e to d o s nós p articip am o s cm eq u ip as, to d o s c a rre g a ­
m o s n o n o s s o ín tim o um p o u c o d a a g ra d á v e l c u lp a b ilid a d e d o s
co n sp ira d o re s. R urna vez que q u a lq u e r e q u ip a e stá c o m e tid a co m a
salv a g u a rd a dc d e term in ad as d e fin içõ es d a situação, esco n d e n d o ou
ex ib in d o c e rto s asp ecto s das coisas nesse in tuito, é dc p re v e r que o
a c to r v iv a a su a c a rre ira de c o n s p ira d o r c o m c e rta d o se d e se c re ­
ti.sm o.
in
Regiões e Comportamento Regional

P o d e m o s d e fin ir u m a reg ião c o m o todo o lu g ar d e alg u m m odo


lim itad o p o r b arreiras ã p crccp ção . E videntem ente, as reg iõ e s variam
no grau d e lim itação q u e im p lic a m e segundo os m eios de co m u n i­
cação em q ue estas b arreiras à p ercep ção se definem . A ssim as placas
d e v id ro e s p e s s o , c o m o as q u e v e m o s nas sa la s de c o n tro lo d a s
e m isso ras radiofónicas, isolam au d itiv am en te u m a região, m as não a
iso lam v isu a lm e n te , ao p a sso q u e um e sc ritó rio c u ja s p a re d e s sã o
ta b iq u e s d c m adeira se isola em te rm o s sim etricam ente opostos.
N a nossa socied ad e an g lo -am erican a — relativam ente fech ad a — ,
u m dado desem penho é geralm ente representado num a região altamente
d efinid a, a q u e m u itas vezes se so m a m lim ites tem p o rais d eterm in a­
dos. A im pressão e in terp retação v isad as pelo d esem p en h o ten d erão a
saturar a região e o período d c tem p o estipulados, de tal m aneira que
qualquer indivíduo incluído na dim ensão espacio-tem poral em causa fi­
cará num a posição q ue lhe p e rm itirá observar o d esem penho e orien-
lar-se p ela d efin ição da situ a ç ã o q u e o d esem penho visa tra n sm itir1.
M uitas vezes u m d e sem p en h o im p licará apenas u m ún ico fo co de
atenção visual p o r p iu le d o ac to r e da audiência, com o, por exem plo,
qu an d o u m d iscu rso político é. proferido num a sala, ou um paciente

1 Servindo-se do termo “quadro comportamentaT. Wright c Baker, num relatório dc


investigação metodológica, apresentam unia formulação muito precisa das acepções
em que as expectativas relativas ao comportamento se associam a iugares
determinados. Ver Herbert F. Wriglu e Roger G. Rsirkur, Methods in Psychological
Ecology, Ray's Printing Service. Topeka. Kansas. 1950.
130 iirving (loftjnnn

fala co m um m éd ico n o co n su ltó rio deste ú ltim o. T odavia, num erosos


d esem p en h o s im plicam , co m o partes integrantes, n ú cleos ou agrega­
d o s sep arad o s de in teracção verbal. A ssim , um b e b e rete im p lica de
m odo p eculiar d iv erso s subgrupos d e co n v ersação, cujos m em b ro s e
d im e n sõ e s e stã o co n stan tem en te a m udar. S im ilarm en te, a exibição
ap resen tad a n o rés-do-chão de um a loja im plica d e m an eira tam bém
p ecu liar d iv erso s fo co s de interacção verbal, form ado c a d a um deles
por u m p a r vendedor-cliente.
Se to m a rm o s um d esem p en h o d eterm in ad o c o m o p o n to de refe­
ren cia. será p o r vezes co n v en ien te em p re g a rm o s o terrno “re g iã o dc
fach ad a” p ara d esig n arm o s o lu g ar o n d e o d esem p e n h o é re p re se n ­
tado. O e q u ip am en to de sin a is fix o num lu g a r desse tip o foi já re fe ­
rid o p o r n ó s co m o essa parle da fach ad a a que c h am am o s “q u ad ro ”
ou “c e n á rio ” . V erem os q ue certos asp ecto s de um d e sem p e n h o p a re ­
cem se r re p resen tad o s não cm fu n ç ã o d o s e sp e cta d o res m as da re ­
g ião de fachada.
C) d e se m p e n h o d e u m indivíduo n u m a região de fac h ad a p o d e ser
co n sid erad o um e sfo rç o visando fazer p arecer q u e a su a acção n a re­
g ião em c a u sa su ste n ta e m aterializa c e rto s critério s. D ir-se -ia que
ta is c rite rio s se d istrib u e m s e g u n d o d o is g ra n d e s g ru p o s. U m dos
g ru p o s tem a v e r com o m o d o com o o ac to r lida co m a au d iên cia en ­
q u a n to c o n v e rsa co m o s seus m em b ro s ou se lhes d irig e em term os
e x p r e s s i v o s p o r m e io d e g e s t o s q u e s u b s t i t u e m a s p a la v r a s .
S e m e lh a n te s c r ité r io s s ã o p o r v e z e s c ita d o s c o m o e le m e n to s de
co rtesia. O outro g ru p o de c ritério s tem a ver com o m odo co m o o
ac to r se co m p o rta q u a n d o se enco n tra no cam po visual ou au d itiv o
dos e sp e c ta d o re s , e m b o ra n ão esteja n e c e ssa ria m en te a d irig ir-se -
-lh e s. .S ervir-m e-ei d o te rm o “ d e c o ro ” p a ra d e sig n a r e ste se g u n d o
g ru p o , em b o ra m e v e ja o b rig ad o a alg u m as ressalv as c reservas na
ju s tific a ç ã o da m in h a esco lh a term in o ló g ica.
Q u an d o o b se rv a m o s as ex ig ên cias de d eco ro d e u m a reg ião , e x i­
g ê n c ia s q u e n ão se lig am ao m odo verbal d e lid a r c o m o s outros,
ten d em o s a d iv id i-las um a vez m ais em d o is gru p o s, grupo m oral e
g ru p o in stru m en tal. A s ex ig ên cias m orais são fins em si próprias e
referem -se p resu m iv elm en te a regras relativas à n ã o in g erên c ia nos
p ro b lem as d o s o u tro s, à necessid ad e de os n ão p erturbar, a o resp eito
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Días 131

pela p ro p rie d a d e sex u al, p e lo s lu g ares sag rad o s, etc. A s ex ig e n c ia s


in s tr u m e n ta is n ã o sã o fin s c m si p r ó p r ia s e r e f e r e m - s e p r e s u ­
m iv elm e n te a o b rig a ç õ e s c o m o a s q ue um p atrão p o d e im p o r aos
seus em p reg ad o s — c u id a d o s c o m a p ro p ried ad e, m a n u te n ç ã o dos
n ív eis d e p ro d u ç ã o , etc. P o d e fic a r-se c o m a im p re ssã o d e q u e o
term o d e c o ro d e v e ria c o b rir a p e n a s o s c rité rio s m orais, ad o p tan d o -se
um term o d ife re n te para d e s ig n a r os criterio s in stru m en tais. N o e n ­
ta n to . q u a n d o c o n s id e ra m o s a o rd e m m a n tid a n u m a d a d a reg iã o ,
v em o s q ue as d u as esp é c ie s de ex ig ên cias, m o rais c in stru m en tais,
p a re c e m a fe c ta r d c m o d o m u ito se m e lh a n te o in d iv íd u o q u e lh e s
d e v e rá resp o n d er, e q u e sã o a d ia n ta d a s ta n to ju stific a ç õ e s m o ra is
co m o in stru m e n ta is n o q u e se refere à m a io r parte do s crité rio s a
cum prir. N a m ed id a em q ue o critério seja ap o iad o p o r san çõ es e por
a lg u é m q u e as aplique, g e ra lm e n te será p o u c o im p o rtan te p a ra o ac­
to r sab er se o critério se ju s tif ic a so b retu d o cm asp ecto s m orais ou
em asp ecto s in stru m en tais, e sc lh e é ou não im p o sta a in terio rização
do m esm o critério .
N o ta r - s e - á q u e a p a r le d a f a c h a d a p e s s o a l d o s “ m o d o s ” ou
“ m a n e ira ' é im portante no que d iz respeito à cortesia e que a parte a
que cham ei “ap arência” é im portante n o q u e d iz respeito ao decoro.
N o tar-se-á tam bém que, e m b o ra o co m p o rtam en to d eco ro so p o derá
assu m ir a form a de um a e x ib ição <le respeito p ela região e quadro em
que o indivíduo se encontra, e ssa exibição de respeito poderá ev id e n ­
tem en te se r sob retu d o m o tiv a d a p u r um d esejo de im p re ssio n a r fa ­
v oravelm ente a audiência, o u de ev itar sanções, etc. P o r fim , devem os
ter em co n ta que as ex ig ên cias d e d ecoro vão e co lo g icam en te m ais
lo n g e d o q u e as ex ig ên cias de cortesia. A au d iencia p o d e su b m e ter
toda um a região dc fachada a u m a inspecção contínua em term os de
decoro, m as enquanto sc en c o n tra concentrada nesse ¿ispéelo, nenhum
d o s a c to r e s , ou a p e n a s u m n ú m e ro r e d u z id o d e e n tr e e le s , se rá
o b rig ad o a falar à au d iê n c ia e a m ostrar-se. p o r co n seg u in te, co rtes
p a ra c o m ela. O s a c to re s p o d e m d e ix a r d e se e x p re ssa r, m as n ã o
podem im pedir-se de e x p rim ir algum a coisa.
Q u a n d o e stu d a m o s as in s titu iç õ e s s o c ia is é im p o rta n te d e s c re ­
verm os os c rité rio s de d e c o ro p re v a le c en te s: é d ifíc il fa z ê -lo um a
v e z q u e ta n to os in fo rm a d o re s c o m o o s in v e s tig a d o re s te n d e m a
132 Ervin" Goffmar

c o n sid e ra r o b v ios esses criterio s, sem co m p reen d erem q u e o fazem


até que um acidente, crise ou co n ju n to p articu lar d e circu n stân cias
sc v erifiq u e. F. sab id o , p o r ex em p lo , q u e d iferen tes e scritó rio s c o ­
m erciais têm d iferen tes c rité rio s no que se re fere ao ta g a re la r infor­
m al en tre o s em p reg ad o s, m as é ap en as q u a n d o nos aco n tece estudar
um e s c r itó r io o n d e há u m n ú m e ro c o n s id e r á v e l d e refugiado«,
estran g eiro s co m o em p reg ad o s q ue su b itam en te nos d am o s c o n ta dc
q u e e s ta a u to riz a ç ã o d o ta g a re la r in fo rm a l não e q u iv a le f o r ç o s a ­
m ente à a u to rização de conversar, em te rm o s não m en o s inform ais,
m as n u m a lín g u a e stra n g e ira .2
E stam os habituados a pensar que as regras dc d ecoro que prevale­
cem e m in stitu iç õ e s da o rd em d o sag rad o , c o m o as ig re jas, serão
m uito d iferentes d as que vem os p revalecerem nos locais de trabalho
da v id a quotidiana. M as nem p o r isso d evem os ju lg a r que os critérios
p róprios dos lugares sagrados são m ais n u m erosos e m ais estreitos que
os q u e en contram os nos locais de trabalho. K nquanto está na igreja,
um a m ulher terá a possibilidade de se sentar, de sonhar aco rd ad a c até
m esm o de dorm itar. N o en tan to , na sua q u alid ad e d e ven d ed o ra de
um a lo ja de roupas, a m esm a m ulher pode ser confrontada co m a ex i­
gência de p erm anecer de pé, estar atenta, n ão m ascar pastilha elástica,
m an ter um so rriso fixo n o rosto m esm o quando não está a falar com
ninguém , u sa r ro u p as que m al pode c o m p ra r...
U m a das fo rm a s d e d e c o ro e stu d a d a em d iv e rsa s in stitu iç õ e s é
co n h e c id a p e la d e sig n ação de “ m o strar trab alh o ” . E n contra-se e sta ­
b elecid o em num ero sas e m p resas que ao s tra b alh a d o res se rá ex ig id o
n ã o só q u e p ro d u z a m d e te rm in a d a s q u a n tid a d e s em d e te rm in a d o s
p e río d o s d e te m p o , m as ta m b é m q u e e s te ja m p ro n to s, q u a n d o os
ch a m a m , a d a r a im p re ssã o d e q u e, n e sse m o m e n to , e sta v a m em
p le n o e s fo rç o la b o ra i. V e ja-se o s e g u in te e x e m p lo re c o lh id o um
estaleiro naval:

E r a d iv e r tid o a s s i s t i r à s ú b ita tr a n s f o r m a ç ã o q u e se d a v a
sem p re q ue c o rria a n o tíc ia de que o c h e fe e sta v a no c a sc o do
n a v io ou n a oficina, ou d e q ue se esp erav a a ch eg a d a de um ins-
A Apresentação dó F.u na Vida dc Todos os Dias 133

p e c to r d o s se rv iç o s d e ad m in istra ç ã o . O s c o n tram estres e e n c a rre ­


gados p re c ip ita v a m -se so b re os seus g ru p o s de o p erário s e incita-
vam -n o s a um a a c tiv id ad e ex u b eran te. “ N ão d e ix e m que ele vos
apanh e sen tad o s!” era o a v iso universal, e q u an d o não h av ia n e­
n h u m a ta re fa p a ra fa z e r, to rc ia -s e e s fo rç a d a m e n te u m tu b o , ou
v o ltav a a colo car-se u m a ro s c a que j á e stav a o m ais bem atarra-
ch ad a p o ssív el. Tal era o trib u to form al in v ariav elm en te p restad o
na o casião da en trad a e m c e n a do chefe, e as c o n v e n ç õ e s que o
in te g r a v a m e r a m tã o f a m i l i a r e s p a ra as d u a s p a rte s c o m o a
in sp ecção de um g e n e ra l d c c in c o e strelas. D e scu id ar o m ín im o
p o rm e n o r d e s ta e x ib iç ã o f a ls a c v a z ia se ria in te rp re ta d o co m o
sinal d e um a falta de re sp e ito m u ito esp e c ia l.3

A lgo de parecid o se pode co m p ro v a r n um serv iço dc hospital:

O u tras e n fe rm e iras d iz ia m com todas as letras à o b se rv a d o ra,


ao lo n g o d o seu p rim e iro d ia de tra b a lh o , que não se d e ix a sse
“a p a n h a r” a te n ta r o b te r as b o a s g raças de um p acien te, que se
m o strasse atarefad a q u a n d o a su p erv iso ra estiv esse a in sp ec cio n a r
o serv iço , e que n ã o se lhe d irig isse se ela o não fizesse p rim e iro .
N o ta v a -se q ue certas e n fe rm e ira s ficav am à esp e ra dc a ver a p a re ­
cer, av isan d o depois as c o le g a s, de m a n e ira a que n en h u m a fo sse
su rp reen d id a em p rá tic a s m en o s d esejáv eis. A lg u m as g u ard av am
trab alh o p ara fa z e r q u a n d o a su p erv iso ra ch eg asse, a fim de esta
não lh es atrib u ir, v e n d o -a s d e so c u p a d a s, ta re fas su p le m e n ta re s.
N a m aio r p arte d a s e n fe rm e ira s, contudo, a tran sfo rm ação não era
tã o p a t e n t e , o q u e v a r i a v a m u ito d c c a s o p a r a c a s o , d a
p e rso n alid ad e d a s u p e rv iso ra e da situ a ç ã o e x isten te no serv iço .
F o sse c o m o fo sse , e m q u a se to d a s as e n fe rm e ira s se re v e la v a
u m a c e rta m u d an ça de a titu d e e co m p o rtam en to qu an d o alg u é m
com o a su p e rv iso ra e sta v a p resen te. A s regras e reg u lam en to s não
eram a b e rta m e n te in frin g id o s. [ . . . j 4

3 Kslhcrinc Archibald. Wartime Shipyard. University of California Press. Berkeley


Los Angeles, 1947. p. 159.
i±n

Willoughby, op. c/f.. p. 4?.


134 Erving Goffman

S ó um p asso sep ara a o b serv ân cia d o m o strar trab alh o d a .satisfa­


ç ã o <Ic o u tro s c r ité r io s d a a c tiv id a d e la b o ra l e m q u e se tra ta de
m an ter as a p a rê n c ias — p o r ex em p lo , ritm o, interesse p esso al, eco ­
n o m ia. escrú p u lo , etc.- E só um passo se p a ra tam b ém a co n sid e ra ­
ç ã o d o s c rité rio s d o trab alh o em geral da a n á lise dc o u tro s asp ectos
fu n d a m e n ta is do deco ro , tan to in stru m en tal corno m o ral, no s locais
de trab alh o : m an eira de v estir; níveis dc ru íd o p e rm itid o s, d istra c ­
ções au to rizad as, c o n cessõ es e ex p re ssõ e s de o rdem afectiva.
O m o stra r tra b a lh o , ju n ta m e n te co m o u tro s a sp e c to s d o d e c o ro
nos lo cais d e trab alh o , é g eralm en te c o n sid e ra d o u m a im p o sição que
v in c u la a s c o n d iç õ e s s u b a lte rn a s . C o n tu d o , u m a a b o rd a g e m d ra-
m atú rg ica e x ig e -n o s q u e co n sid erem o s, a p a r do m o strar trab alh o , o
p ro b lem a d a o b rig ação o posta, a e x ig ê n c ia de m o strar não-trabalho.
A ssim , num liv ro d c m em ó rias q u e trata do m odo d e vida cm c o ­
m eço s do sé c u lo XTX. de p esso as de poucas posses q u e p reten d iam
p a re c e r a b astad as, p o d em o s ler o que se segue:

A s p e s s o a s e ra m e x tr e m a m e n te m in u c io s a s e m m a té r ia de
v isita s — p e n se m o s, p o r e x e m p lo , n esse p ro b le m a tal c o m o o
vem os p ô r-se em O M oinho à beira do Rio. A v isita e ra um d e v er
q u e d e v ia ser cu m p rid o a in icrv alo s reg u lares, de tal m odo que
q u ase se p o d ia saher d e an tem ão o d ia e m que se ria feita ou re tri­
b u íd a u m a v isita. A cerim ó n ia co m p o rta v a um m o n tan te elev a d o
de fo rm alid ad es e sim u lação . P o r ex em p lo , nin g u ém d e v ia d eix ar-
-s e s u rp re e n d e r a tra b a lh a r fo s s e em q u e c o is a fo sse . R e in a v a
n e sta s fa m ília s d e p re te n sio so s co m p o u co s m e io s a fic ç ã o s e ­
g u n d o a q u a l as s e n h o ra s d a c a s a n a d a de ú til ou n e c e s s á rio
fa z ia m d ep o is do ja n ta r; a larde e ra su p o sta m e n te c o n sa g ra d a a
p asseio s, a v isitas e co n v ites ou a e le g a n te s ninharias d o m ésticas.
P o rta n to , se. q u an d o ap arecia um a visita, as rap arig as da fam ília
e s tiv e s s e m o c u p a d a s n a lg u m a a c tiv id a d e ú til. e s c o n d ia m o
trab alh o d eb aix o do sofá. e fin g iam e sta r a ler urn liv ro , a pintar, a
tricotar, ou entreg u es a um a c o n v ersação agradável c req u in tad a.

^ Uma análise de ceiios critérios fundamentais do m ibalho c a apresentada por


Gross, op. cii.. de onde extraímos o* exemplos «cima referidos.
A Apresentação do F.u na Vida dc Todos os Dias 135

N ã o faço a m enor ideia d o s m o tiv o s d esta sim u lação , u m a vez que


toda a g en te sab ia que as rap arig as estav am de ta c to a fa z e r a l­
gum a co isa, a costurar, a c o rta r pano, a alin h av ar, a rem endar, a
cerzir, a p ô r en feites ou a im p ro v isar. D c resto, não seria p o ssív el
q u e as filh a s de um s o lic ita d o r se a p re s e n ta s s e m tã o a d m ir a ­
v e lm e n te a r r a n ja d a s a o s d o m in g o s se n ã o s o u b e s s e m f a z e r
nen h u m a d essas coisas. T oda a gente, portanto, sa b ia a verd ad e, e
to m a -se -n o s h o je in c o m p re e n sív e l a razão p o r q u e não a a d m itiam
as rap arig as d esse tem p o . T a lv e z h o u v e sse a p resu n ção , a e sp e ­
rança fa n ta sio sa ou o so n h o m a ra v ilh o so d e q ue a re p u ta ç ã o de
inutilidade de u m a jo v e m co n seg u isse, to rn an d o -a um a igual das
g ra n d e s sen h o ras, fazê-la. p o r altu ras de um baile dos gran d es do
co n d a d o , atra v e ssa r o re sp e c tiv o lim iar, para se c o n fu n d ir co m os.
se u s freq u en tad o res.6

D ev em o s v er com to d a a c la re z a que, e m b o ra as pessoas que têm


d e m o stra r tra b a lh o c as q u e tê m de m o stra r n ã o -tra b a lh o , se e n ­
co n tre m p ro v av elm en te em e x tre m o s o p o sto s d o cam in h o , ocu p am ,
de facto , e fo rço sam en te, o m e sm o lado da ribalta.
S u g erim o s atrás que. q u a n d o a actividade de um in d iv íd u o se v e­
rifica n a p resen ça de o u tro s, a lg u n s aspectos d e ssa a c tiv id ad e ^erão
e x p ressiv am en te acen tu a d o s, ao p asso que o u tro s asp ecto s, su scep tí­
v eis d e c o m p ro m e te r a im p re ssã o visada, serão su p rim id o s. É e v i­
d e n te q u e os factos su b lin h a d o s pelo ac to r sã o e x p o sto s n a q u ilo a
que cham ei u m a reg ião de fa c h a d a ; deveria ser ig u alm en te e v id en te
a p o s s ib ilid a d e d a e x is tê n c ia d e o u tra re g iã o — um a “ r e g iã o de
traseiras” ou “b astid o res” — n a qual reap areçam os a sp ecto s su p ri­
m idos da activ id ad e cm cau sa.
U m a reg ião dc traseiras o u b a stid o re s s e rá d e fin id a com o um lu­
gar. ligad o a certo d ese m p e n h o , o n d e as im p ressõ es visadas por esse
m esm o d e se m p e n h o são c o n tra ria d a s c o n sc ie n te m e n te c o m to d a a
natu ralid ad e. T ais lugares p o ssu e m , sem dú v id a, n u m ero sas fun çõ es
características. É a í q u e a c a p a c id a d e qu e um d e se m p en h o p o ssui de

(>Sir Walter Bcsant. “Fifty Years Ago". The Graphic Jubilee Number, 188“. citado
por James Laver. Victorian Viste. Houghton Mifflin. Boston. 1955. p. 147.
136 E rving G offm an

e x p r e s s a r a lg u m a c o is a p a ra lá de si p ró p rio la b o rio s a m e n te se
co n stró i; é a í q ue são ab erta m e n te fa b ric a d as as ilu sõ es e im p res­
sões. É aí q u e os acessó rio s de c e n a e os elem en to s da fa ch a d a pes­
soal podem ser arm a z e n ad o s n u m a esp écie de con cen trad o de rep o r­
tó n o s c o m p leto s de a c ç õ e s e c a ra c tere s7. H a í que d iv e rso s tipos de
eq u ip am en to protocolar, c o m o diferen tes g ên ero s de b e b id as ou de
roupa, p o d e m p e rm a n e c er d issim u lad o s a fim de q u e o s esp ectad o res
não te n h a m co n d iç õ e s de se in teirar do m odo co m o São tratad o s por
c o m p aração c o m outros tratam en to s possív eis. É a í q u e d isp o sitiv o s
c o m o o telefo n e são p ostos a recato , de m an eira a to m a r possível
um a su a u tilização "e sp e c ia l” . E 6 aí q u e o s trajes e o u tro s elem en to s
d a fa c h a d a pessoal p o derão ser aju stad o s e e x am in ad o s a fim de se
elim in a re m os aspecto.s ev en tu a lm e n te m en o s co n v en ien tes. A í. a
eq u ip a p o d erá re e x a m in a r o seu d esem p en h o, rep rim in d o as e x p re s­
sõ e s o fe n siv a s na au sê n c ia dos e sp e c ta d o res p o te n c ia lm e n te o fe n ­
did o s por elas; e os m em b ro s m en o s co m p eten tes d a e q u ip a , em ter­
m os de e fic á c ia ex p ressiv a, serão en sin ad o s a m elh o rar o seu d esem ­
pen h o ou afastad o s d a rep resen tação . E aí, de igual m aneira, o a cto r
p o d erá d esco n trair-se. p ô r de lado a sua fachada, in te rro m p er a e n ­
cen a ç ão e ab an d o n ar a p erso n ag em q u e no re sp ectiv o q u ad ro d e sem ­
pen h a. S im o n e d e B e a u v o ir p ro p o rc io n a -n o s u m a d e sc riç ã o e x tre ­
m am ente v iv a d e sta activ id ad e nos b astid o res ao referir-se a situ a ­
çõ es de o n d e os e sp ectad o res d o sex o m a scu lin o e stã o ausentes:

O q ue co n fere o seu v alo r a estas relações en tre m ulheres é a


au ten ticid ad e que veiculam . Q u an d o se c o n fro n ta co m o hom em ,
a m u lh er está sem pre a rep resen tar um papel; m ente q u an d o faz
crer q ue a c e ita a su a p o sição de outro não essen cial, m en te quan-

~ Como indica Méintux, op. cit.. p. 24. até mesmo a prática dos cultos vodu exige
recursos análogos:
Todos os casos de possessão tC-rr. o seu lado teatral, como vemos no que se refere
ao teraa dos disfarces. Os aposentos do santuário niío deixam dc sc assemelhar aos
bastidores de um teatro, c neles encontra o possesso os adereços adequados. A"
contrário do histérico, que revela a sua angústia c os seus desejos por meio dos
sintomas — moios dc expressão pessoais —. o ritual da possessão lem que
obedecer à imagem clássica de uma figura mítica.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dins 137

do se m o stra ao hom em c o m o um a p erso n ag em im ag in aria com


os seu s g estos, o m odo c o m o se veste, a su a lin g u ag em e stu d ad a .
E sta c o m é d ia ex ig e um a c o n sta n te tensão: q u an d o e stá co m o m a­
rid o , o u c o m o a m a n te , q u a lq u e r m u lh e r te m u m a c o n s c iê n c ia
m aio r ou m enor da seg u in te ideia: “N ã o estou a se r eu p ró p ria ” : o
m u n d o m ascu lin o é d u ro , c o m os seus co n to rn o s bem defin id o s,
as su as vozes de resso n ân cia ex cessiv a, a su a luz d e m asiad o crua.
os seus co n tacto s ch eio s d e a sp ereza. Q u an d o está co m ou tras m u­
lheres, a m u lh er fica nos b a stid o re s; o c u p a-se co m as su as arm as,
m as n ào se enco n tra no cam po- de b atalha; junta as su a s p e ça s de
v e stu á rio , p re p a ra a su a m a q u ilh a g e m , e s tu d a as su a s lá c tic a s;
deix a-se e sta r dc ch in e la s n as traseiras d o p alco à esp era do m o ­
m en to dc e n tra r em cena: g o s ta desta a tm o sfera calo ro sa, tra n q u i­
la, d esco n traíd a. | . . . |

P a ra certas m ulheres e sta in tim id ad e calo ro sa e frív o la é m ais


precio sa d o q u e a pom pa c h e ia dc seried ad e das relaçõ es co m os
hom en s.8

P. m u ito co m u m que a reg ião d a s traseiras d e um d e se m p e n h o se


situ e num d o s c o n fin s d o lu g a r o n d e o d e sem p en h o é rep resen tad o ,
sendo se p a ra d a do cen ário p o r u m a barreira e vias d e acesso re se r­
vadas. D ada esta c o n tig u id a d e d a s regiões d a fach ad a c do s b a stid o ­
res, o ac to r q u e se en c o n tra n a re g iã o de fach ad a p o d erá ser aju d ad o
do s bastid o res en q u a n to o d e se m p e n h o se d esen ro la, e tem p o r vezes
a possib ilid ad e de in te rro m p e r m o m en tan eam en te a sua a c tu ação a
fim de sc d e sc o n tra ir um p o u co . De um m o d o geral, sem dú v id a, a
reg ião d o s b astid o res situ ar-se-á num lu g ar o nde o acto r p o ssa e sta r
certo d a im p o ssib ilid ad e dc a c e s s o dos esp ectad o res.
U m a v ez q ue os seg red o s d e c isiv o s de u m a e x ib ição são v isíveis
do s bastid o res, c u m a vez q u e o s acto res se co m p o rtam in d e p e n d e n ­
tem en te d as p erso n ag en s q ue rep resen tam q u an d o a í sc en co n tram , é
natural q u e a p assag em d a re g iã o da fach ad a p ara a reg ião d as tra­
seiras seja vedada aos m em b ro s d a audiência, ou que o c o n ju n to dos

o
De Rc.iuvoir, op. ci:.. p. 5-3 .
138 Erving Goffman A Apresentação do Liu na Vida de Todos os Dias 139

bastid o res lhes se ja esco n d id o . T rata-se de u m a técn ica m u itíssim o necessita de rep aração e não p erm an eça no e sta b ele cim en to a tlm de
difu n d id a de a d m in istra ç ã o das im p ressõ es v isadas, requ eren d o um a que o p rofissional p o ssa tra b a lh a r a sós. Q uando o c lie n te regressa
análise m ais detida. para le v a r o autom óvel — ou reló g io , ou p ar dc calças, ou aparelh o
C o m o é ó b v io , o c o n tro lo dos b astid o res d esem p en h a um papel de de rádio — . este é-lhe ap re sen ta d o em co n d içõ es, co n d iç õ e s q u e p o ­
relev o no p ro c e sso de “c o n tro lo d o tra b a lh o ” por m eio do qual os d erão esc o n d er o m o n tan te c o tip o de tra b a lh o q u e tiv eram d c ser
in d iv íd u o s ten tam d efen d er-se d o d eterm in ism o das im p o siçõ es que feitos, o n ú m ero d e erros c o m e tid o s antes do acerto fin al, e outros
o s cercam . Sc o o p e rá rio fabril q u ise r te r êxito na co n stru ção dc um asp e c to s d e que o c lie n te p re c is a ria de se in te ira r p ara a v a lia r da
a r dc quem e sfo rçad am en te trab alh a o dia todo. p recisará d e g o zar c o rre cção do p agam ento que a c a b a por lhe se r ex ig id o .
da p o ssib ilid a d e dc e sc o n d e r o e x p e d ie n te q u e Ihc p e rm ite vencer O pessoal q u e tra b a lh a n a á re a d as prestações dc se rv iç o s está tão
u m d ia de tra b a lh o c o m um esfo rço m e n o r d o que o e x ig iria um a h a b itu a d o a g o z a r d o d ir e ito d e m a n te r a a u d iê n c ia a f a s ta d a da
ap lic a ç ão de to d o s os in stan tes9 . P ara que a fa m ília e n lu tad a tenha a reg ião dos bastid o res que sã o o s casos em que e sta e stra té g ia não
ilu são de q ue o m o rto é a p e n a s a lg u é m q ue m erg u lh o u num sono pode se r a p lica d a os q u e m ais solicitam a atenção. P o r ex em p lo , o
p rofundo e tran q u ilo , o ag ente fu n erário terá de s e r c a p a z de m anter geren te am e rica n o de um a e s ta ç ã o dc se rv iç o v e r-se-á c o n fro n ta d o
o s m em b ro s d a fa m ília afastad o s da divisão de trab alh o o n d e os c a ­ co m n u m ero so s p ro b lem as n e s te c a p ítu lo 11. Q u a n d o é n e c e ssá rio
d á v eres são esv aziad o s, em b alsam ad o s e m aquilhados, en q u a n to ele p ro c e d e r a a lg u m a re p a ra ç ã o , o s c lie n te s m o stra m m u ita s v e z e s
o s ap ro n ta para um d e rra d e iro d e se m p e n h o 10. Sc o p e sso a l dc um re lu tâ n c ia cm d eix ar o a u to m ó v e l na esta çã o dc se rv iç o , de um dia
h o sp ital p siq u iátrico q u ise r c a u sa r um a boa im p ressão do se rv iç o aos p a ra o o u tro ou d u ra n te u m d ia in te iro , ao c u id a d o d a e m p re sa ,
que o visitam p ara v erem fam iliares ou am ig o s in tern ad o s, será da c o m o faria m sc tiv essem lev ad o o autom óvel a um a g a ra g e m . M ais
m á x im a im p o rtân cia q u e c o n sig a b a rra r o acesso d o s v isitan tes às ainda, en q u a n to o m ecân ico p ro c e d e à rep aração ou ao a ju sta m e n to
e n ferm arias, sob retu d o d a s u n id ad es dc cró n ico s, lim itan d o o s seus d as peças, é m uito frequente q u e o s clientes se achem d e te n to re s do
m o v im en to s a salas esp ecialm en te c o n ceb id as p a ra serem visitadas, d ire ito de fic ar a a ssistir ao seu trabalho. Se se q u ise r p re sta r e c o ­
o n d e 6 viável a e x ib iç ã o de um m o b iliário rela tiv a m en te a g rad á v el e b ra r a p re sta ç ã o de um se rv iç o sim u la d o , este te rá de se r r e p r e ­
se p o d e g a ra n tir q u e to d o s os pacientes p resentes e stejam bem v e sti­ sen tad o , p o r co nseguinte, na p re se n ç a d a p e sso a que o d e v e rá pagar.
dos, b em lavados, o sten tan d o um a atitude c o rre cta e razo av elm en te N a re a lid a d e , os c lie n te s n ão só ig n o ra m o d ire ito do p e sso a l da
sen sata. D o m esm o m o d o ainda, em n u m ero sos ram o s d e prestação estaç ão de se rv iç o aos seus p ró p rio s bastidores, co m o m uitas vezes
d e s e rv iç o s, c o stu m a p ed ir-se ao clien te q u e d e ix e o o b je c to que d e fin e m a s itu a ç ã o g lo b a l, tr a n s f o r m a n d o as in s ta la ç õ e s n u m a
esp é c ie d c c id a d e ab erta m a s c u lin a — um lu g ar o n d e o ind iv íd u o
•' Ver Orvis Collins. Melville Dalton c Donald Roy. “Restriction of Output and
corre o risco d e su jar a ro u p a q u e ira z v estid a e o nde, p o rtan to , tem
Socia! Cleavage in Industry". Applied Anthropology {hoje Human Organization). tam b ém o direito d e e x ig ir a p le n itu d e dos p riv ilég io s da z o n a re­
IV , pp. 1-14 . sobretudo p. 9. serv ad a. O s co n d u to res do í c x o m ascu lin o acham que p o d e m a n d a r
I(; Habenstcin. durante um seminário, afirmou que cm certos estados o agente na esta çã o de se rv iç o de u m lad o para o outro; p u x am o chapéu para
funerário tem o direito legal de impedir os parentes do defunto de entrarem na a nuca, co sp em , p raguejam e e x ig e m serv iço s ou co n selh o s g ralu i-
oficina onde os corpos são preparados. Provavelmente o quadro do que c feito ao
mono a fim de o tornar atraente seria uin choque demasiado intenso para os não
profissionais e especialmente para a família do defunto. Habenstein sugeriu também 1 ' Os casos seguintes são extraídos de utn estudo realizado por Social Research,
que a família poderá querer ser mantida longe da oficina do agente funerário por inc.. incidindo numa população de duzentos gerentes dc estabelecimentos de
recear a sua própria curiosidade mórbida a respeito do que se passa lá dentro. pequenas dimensões.
140 Erving CJoffnian

ios. S e rv e m -se sem ce rim o n ia s das casas dc b a n h o , das ferram entas


d a s e sta ç õ e s de serv iço , d o telefo n e d o e sc ritó rio , ou da loja onde
pro cu ram liv rem en te a q u ilo que p re te n d e m 12. P ara ev itarem os si­
n a is d e tr â n s ito , a tr a v e s s a m , c o r ta n d o a d ir e ito , o s a c e s s o s à>
in stalaçõ es, ig n o ran d o o s d ire ito s d e p ro p ried a d e do d o n o d a esta ­
ção .
O hotel d a ilh a d a s S h etlan d p ro p o rcio n a-nos o u tra ilu stração dos
p ro b lem as c o m que os indiv íd u o s q ue fazem determ in ad o trab alh o
se c o n fro n ta m q u a n d o d isp õ em apenas de um c o n tro lo insuficiente
so b re os b astid o res d o seu desem p en h o . N a co z in h a d o h o tel, onde
era co n fe c c io n ad a a a lim e n ta ç ã o dos h ó sp edes e o n d e o s e m p re sa ­
dos c o m iam e p a ssa v a m a m aio r p arte d o tem po, te n d ia a prev alecer
a c u ltu r a r u ra l tr a d ic io n a l. T a lv e z s e ja ú til in d ic a r aq u i a lg u n s
asp ecto s d essa cultura:
N a c o z in h a , a s re la ç õ e s de tip o rural en tre p atrão e em p re g a d o
afirm a v a m -se de m o d o p rep o n d eran te. U m e o u tro tra ta v a m -se pelo
nom e p ró p rio , e m b o ra o e m p reg ad o d a co p a tiv e sse cato rze a n o s e
o p a trã o m ais de trin ta. O casal p ro p rietário e os seu s em p reg ad o s
c o m ia m à m e sm a m esa, p a rticip an d o cm term os de relativ a ig u a l­
d a d e n as c o n v e rs a s q u e a c o m p a n h a v a m as re fe iç õ e s . Q u a n d o os
p ro p rie tá rio s d av a m festas sem c e rim ó n ia s aos seu s am ig o s e pa-

J- () episódio seguinte foi-mc contado pelo gerente de uma garagem dc carros dc


sport a propósito dc um cliente que entrou na loja e sc pôs à procura de uma
gaxeta, mostrando-a depois ao gerente dc trás do balcão:
Cliente: Quanto é?
Gerente.: — O senhor não mc quer dizer o que lhe acontecia sc entrasse
num banco, sc pusesse atrás do halcão, agarrasse numas tantas moedas e as
levasse ao caixa?
Cliente: — Mas isto não c um banco.
Gerente: — Bom. isso são as minhas moedas. Diga-mc o que quer, por
favor.
Cliente: Se é assim que acha que deve ser. está bem. Está no seu direito.
Quero uma gaxeta para um Anglia 51.
Gerente: — F.ssa que aí tem c para um 54.
Embora n descrição do gerente talvez não reproduza fielmente as palavras e
acções realmente registadas, fómece-nos alguns dados fidedignos sobre a situação
em que t:3e se encontra c o modo corno a vive.
A Apresentação fio Eu na Vida dc Todos os Dius 141

re n te la a la rg a d a , os e m p re g a d o s p a rtic ip a v a m no a c o n te c im e n to .
E ste m o d elo d c fa m ilia rid a d e e ig u ald ad e en tre a g e rê n c ia e o s tra ­
b a lh a d o re s d o h o tel n ã o c o n d iz ia co m a a p a rê n c ia q u e a m b a s as
p a rte s a ssu m ia m n a p re se n ç a d o s h ó sp ed es, d o m e sm o m o d o q u e
n ão co n c o rd a v a co m as n o ç õ e s d o s h ó sp ed es re la tiv a s à d istâ n c ia
social q u e d e v ia ex istir e n tre o fu n c io n á rio q u e se o c u p a v a d a sua
e s ta d a c o s p o rte iro s e c ria d a s q u e tra n s p o rta v a m a s m a la s, lim ­
p av am to d as as n o ites os sa p a to s dos h ó sp ed es e se o c u p a v am dos
seu s bacio s.
De m an eira parecida, na c o z in h a do hotel v ig o rav am as m aneiras
de m esa características d a ilha. Q u an d o h a v ia carn e, e ra o m ais das
vezes cozida. O peixe, m u ito freq u en te, co m ia-se tam bém co z id o ou
e ra s a lg a d o . A s b a ta ta s , in g r e d ie n te in d is p e n s á v e l d a re f e iç ã o
p rincip al d o dia, eram q u ase se m p re co zid as co m ca sca e c o m id a s
d e p o is à m oda d a ilha: ca d a um d o s co m e n sa is tira co m a m ão um a
batata d a trav essa que está n o c e n tro da m esa. depois e sp e ta -a c o m o
g arfo e d e scasca-a co m a faca, p o n d o as p eles u m a s em c im a das
o utras, em p ilh a d a s a o lado d o p ra to , p a ra se re m re co lh id as co m a
faca no fim d a refeição . U m o le a d o faz as vezes d e to alh a de m esa.
Q uase tod as as refeiçõ es são p reced id as dc urna tigela de sopa, e as
tig elas ten d em a ser u sad as de p referên cia aos p rato s p a ra c o m e r o
resto d a refeição. (U m a v ez q u e quase to d o s o s p rato s e ra m co zid o s,
tratava-se de um co stu m e b a sta n te prático.) O s g arfos c as facas são
fre q u en tem en te m ane jados c o m o p u n h o fechado, c o chá se rv id o em
c h á v e n a s s e m p ir e s . E m b o r a a d ie ta d a ilh a f o s s e so b m u ito s
asp ecto s ad eq u ad a e e m b o ra as m an eiras d e m esa p u d essem se r dc
g ra n d e c o rte sia c c irc u n sp e c ç ã o — e co m fre q u ê n c ia o fo ssem de
facto — . os h ab itan tes d a ilh a sab iam p erfeitam en te que o co n ju n to
do seu co m p o rtam en to n a c o z in h a e à m esa era não só d ifere n te dos
m o d elo s ad o p tad o s pelos in g leses dit classe m edia, c o m o c o n stitu ía
u m a esp écie de tran sg ressão d a s resp ectiv as reg ras. T alvez esta d ife­
re n ç a en tre m odelos se to rn a sse m ais patente pelo facto dc a alim e n ­
tação fo rn ecid a aos h ó sp ed es ser a m esm a que. sc c o m ia na c o z in h a.
(O que não era in v u lg a r e só n ã o aco n tecia m ais vc/.es cm co n se ­
q u ê n c ia de m u itas v ezes o p e sso a l do hotel p re fe rir a a lim e n taç ão
tra d ic io n a l d a ilh a ao s p ra to s s e rv id o s na sa la d e ja n ta r . N e ssa s
142 Urving Goffman

altu ras, o q u in h ão de alim en to s d estin ad o s à co zin h a era prep arad o e


serv id o à m an eira da ilha. co m p o u ca atenção às doses in d iv id u ais, e
lev an d o so b retu d o e m co n ta os aspectos ligados ao serviço co m u m .
M u ita s vezes as sobras de u m a p eça de ca rn e ou os p ed aço s avulso*
d e um tab u leiro d e tortas dc fru tas ap areciam na m esa d a co zin h a —
tratav a-se d a m esm a c o isa que os h ó sp ed es c o m iam na sa la d e ja n ta r
d o hotel, m as a p re se n ta d a de um m odo d ifere n te , e q ue, de resto,
n a d a tin h a de m enos pró p rio de aco rd o co m os c ritério s d a ilha. H se
u m pudim de p ão e bolo não p arecesse su ficien tem en te bom para scr
serv id o n a sala, seria ig u alm en te co n su m id o na cozinha.
A ap resen tação em term os de traje e as atitudes ca ra cterístic as da
ilh a m a n ife s ta v a m -s e d e m a n e ira id é n tic a na c o z in h a d o h o le l.
A ssim , o p atrão o b serv av a p o r vezes o co stu m e local e deix av a-se
ficar dc cab e ç a co b erta; o s rap azes e n carreg ad o s do serviço de copa
s e rv ia m -s e d o b a ld e de c a rv ã o p a ra c u s p ir se m c e rim ó n ia s ; e as
m u lh e re s q u e se in te g ra v a m n o p esso al s e n ta v a m -sc d e ix a n d o as
p ern as em p o siçõ es pou co recom en d áv eis p ara um a senhora.
A lé m d estas d iferen ças d e v id a s a factores c u ltu ra is, h av ia outros
m o tiv o s de d isco rd ân cia en tre as m an eiras da c o z in h a e as que vi­
g o ra v a m na sa la d e e s ta r d o h o te l, p o is a lg u n s d o s c r ité rio s do
serv iço d o hotel, em v ig o r nas regiões o n d e havia h ó sp ed es, não r e ­
c e b ia m p le n a ad esão p o r p arte da c o z in h a . N a p arte d a re g iã o da
co z in h a que co n stitu ía a co p a, a co n tecia m uitas v ezes a so p a d esti­
nad a ao se rv iç o d e m esa a p a re c er com boior. Ju n to d o fo g ã o e d a
ch aleira, v iam -se m eias a se c a r c o m o era co stu m e na ilha. Q u an d o
os h ó sp e d e s p ed iam um ch á aca b a d o dc fazer, a in fu sã o e ra rea
q u e c id a n u m a cafeteira em c u jo fundo rep o u sav am fo lh as d e havia
iá v a ria s s e m a n a s. O s a re n q u e s fre sc o s e ra m lim p o s do se g u in te
m odo: ab riam -n o s e tirav am -lh es as v ísceras co m p ed aç o s de papel
d e jo rn a l. A s roscas de m a n te ig a am o lecid as, d efo rm ad as e en ceta
d a s na sala d e jan tar, era m en ro lad as de n o v o para parecerem frescas
e serem serv id as u m a segu n d a vez. O s p u d in s m ais req u in tad o s, d e­
m a s ia d o c a ro s p a ra o c o n s u m o d a c o z in h a , eram a g re s s iv a m e n te
p ro v a d o s c o m o d e d o a n te s de se re m a p re se n ta d o s a o s h ó sp ed es.
D u ran te a h ora de m a io r m o v im en to do se rv iço de refeiçõ es, os c o ­
pos a c a b a d o s d c u sa r p e lo s h ó sp ed es era m m uitas v ezes su m a ria -
A Apresentação flo Eu na Vida de Todos os Dias 143

m en te lim pos co m lim a p ano c v o ltav am p a ra as m esas sern lerem


sid o lav ad o s, p o r um a q u e stã o d e d e s p a c h o 13.
P eran te os vário s m o d o s c o m o a activ id ad e da c o z in h a c o n trad iz ia
a im p re ssã o v isa d a na reg ião dos hóspedes, pod em os co m p re e n d e r
porque 6 que as portas que d ã o p a ra a co zin h a c o n stitu ía m um p o m o
d a m aio r im p o rtan cia na o rg a n iz a ç ã o d o tra b a lh o d o hotel. A s e m ­
p re g a d a s q u e ria m te r as p o rta s a b e rta s p ara fa c ilita r o v aiv é m de
tra v e s s a s e b a n d e ja s , p a ra s e in fo rm a re m c o m m a is ra p id e z do s
p rato s e n c o m e n d a d o s p elo s h ó sp e d e s q u e tin h a m d e se rv ir e pura
m a n te re m o c o n ta c to m ais p ró x im o possív el c o m as p e sso a s co m
quem esta v a m a trabalhar. U m a v e z que as em p reg ad a s de m e sa d e­
s e m p e n h a v a m u m p a p e l d e c r ia d a s , s e n tia m q u e n ã o p e rd e ria m
grande c o isa em ser o b serv ad as n o seu am b ien te p ró p rio p elo s hós­
p e d e s q u e e sp re ita sse m de r e la n c e para a c o z in h a , a o p a ssa re m a
cam in h o d a s m esas d ia n te d a s p o rta s abertas. O s patrõ es, por o u tro
lado. q u e ria m a p o rta fe c h a d a a fim de que o papel de classe m édia
que lh e s e ra a trib u íd o p elo s h ó sp e d e s n ão fo sse d e sm e n tid o p e la
ex ib ição do m odo c o m o sc c o n d u z ia m na co zin h a. F.ra raro que se
p assasse um d ia em que as p o rta s d a cozinha n ã o fossem p o r m ais de
u m a v e z v io len tam en te fech ad as o u ab eiras. U m a p o rta de v aivém ,
do tip o u tiliz a d o p e lo s re s ta u ra m o s m o d e rn o s, te ria re p re se n ta d o
u m a s o lu ç ã o p a r c ia l p a ra e s te s p ro b le m a s d e e n c e n a ç ã o . U m a
p e q u e n a ja n e la e n v id ra ç a d a n a p o rta, fu n c io n a n d o c o m o v iso r —
d is p o s itiv o d e c e n a a u x ilia r u tiliz a d o e m n u m e ro s o s p e q u e n o s
estab elecim en to s co m erciais — ta m b é m serviria p a ra o efeito.
O u tro e x e m p lo in te re s s a n te d a s d ific u ld a d e s q u e se lig a m a o s
bastidores é-nos fo rnecido pelo trab alh o nas em issoras rad iofónicas e
televisivas. N essas situações, a reg ião das traseiras tende a co n tu n d ir-
-sc com to d o s o s lugares que d e m om ento a câm ara não film a ou co m

13 Estes exemplos dc discordância entre as formas da realidade e as aparências não


devem ser considerados casos extremos. A observação atenta dos bastidores dc uma
casa de fam ília tia classe média, nas cidades do Ocidente, revelaria dc modo
análogo discordancias entre a realidade e as aparências, e em grau comparável, h
onde quer que .haja aspectos comerciais cm jogo. as discordancias desie género
tenderão indubitavelmente a aumentar.
144 Erving G offm an

todos os lugares fora d o alcance dc cap tação dos m icrofones. A ssim , o


protagonista dc um an u n cio pode ex ib ir o produto anunciado com o
braço estendido perante as câm aras enquanto, urna vez qu e o seu rosio
não está a ser film ado, tem a o u tra m ão no nariz, para g racejar com os
colegas de trabalho. H claro que os p ro fissionais do ram o contam nu­
m e ro sa s h is tó ria s de p e s s o a s q u e p e n s a v a m e s ta r n o s b a stid o re s
q u a n d o d e f a c to e s ta v a m n o a r e c u jo c o m p o r ta m e n to c o n s e ­
q u en tem en te desm entiu, p o r fo rç a d essas circunstâncias, a definição
d a situação que se tratava de transm itir. P o r razões técnicas, com efeito,
as paredes atrás d as quais os profissionais d evem m anter-se escondi­
do s podem rev elar-se ilu só rias, d e sm o ro n an d o q u an d o é accio n ad o
um interruptor ou quan d o a c â m a ra se m ove. Os artistas d a rádio c da
televisão têm q ue aprender a v iv er co m esse risco.
U m a d ificu ld ad e de alg u m m o d o an á lo g a relativa aos b astidores é
a q u e e n c o n tra m o s ao n ív e l a rq u ite c tó n ic o de alg u n s p ro jec to s de
h ab itação actu ais. Na verdade, as p aredes co n stitu íd as p o r tabiques
d e lg ad o s sep aram visualm ente- as d iferen tes d iv isõ e s d e um edifício ,
m as n ão im p ed em que as activ id ad es d e b astid o res e de fach ad a sc
so b rep o n h am em term os so n o ro s, ch eg an d o à unidade h abitacional
vizinha. H p o r isso q u e c e rto s investig ad o res b ritân ico s falam a este
p ro p ó s ito d e “ p a r e d e s m e ia s " , d e s c r e v e n d o o s s e u s e f e ito s n o s
seg u in tes term os:

O s m o ra d o re s a p e rc e b e m -s e de n u m e ro so s b a ru lh o s d a v iz i­
nhança. que vão dos clam ores habituais d as festas d e aniversário
aos sons das práticas de ro tin a q u o tid ian as. O s n o sso s in terlocu­
tores m en cio n am , p o r ex em p lo , o so m d o s aparelh o s de rádio, o
ch o ro n o ctu rn o d o s bebés, as to sses, os sap ato s q u e se tiram ao
deitar, as crian ças que co rrem nas escad as ou nos q uartos, a s teclas
do p ian o e os risos ou co n v ersas em voz m ais alta. N o q u a rto do
c a sa l, os ru íd o s q ue ch e g a m de casa d o v izin h o p o d e m s e r por
vezes chocan tes: “ A tó o s ouv im o s u rin a r no bacio; é insuportável.
T errível” ; ou in q uietantes: “O u ço -o s q u an d o brigam na cam a. U m a
pesso a pode e sta r co m vontade de ler. ou o u tra de dorrnir. É m uito
in c ó m o d o o u v ir e ste s b a ru lh o s q u a n d o se e stá d e ita d o , p o r isso
m udei a c a m a de s ítio " ... “G osto de ler na c a m a e ten h o o ouvido
A Apresentação do Hu na Vida de Todos os Dias

apurad o , p o r isso in co m o d a-m e ouvi-los falar"; ou um lanío inibi­


dor: “A s vezes o u v im o -lo s d iz e r coisas d o seu foro ínlim o. com o
aco n tece, p o r exem plo, q u an d o o m arido d iz à m u lh er q u e e la está
co m os p é s frio s. E isso fa z -n o s se n tir q u e te m o s de d iz e r em
segred o tudo o q u e fo r u m p o u c o m ais ín tim o ” ; e ainda: “S enti m o-
-n o s u m b o c a d in h o in ib id o s, c o m o se tiv é sse m o s que a n d a r em
bico s de pés, à noite, no n o sso q uarto de dorm ir.” 14

N este c a so , v izinhos q ue talvez, se co n heçam m u ito mal vêem -se


na situ a ç ã o em b a ra ç o sa d e sa b e re m dem asiad as c o isas a rc sp ciio uns
d o s outros.
U m ú ltim o ex em p lo d as d ific u ld a d e s de b astid o res é o q u e e n c o n ­
tra m o s no c aso de p esso as a q u e o s outros a trib u em u m lu gar m uito
e le v a d o . H á p e sso as q u e s ã o o b je c to de u m c u lto ta m a n h o q u e a
ú n ic a a p a rê n c ia q ue lhes c o n v é m é a de c o n stitu íre m o c e n tro de
um a c o m itiv a o u cerim ó n ia; p o d e ser co n sid erad o in co n v e n ien te q u e
se m o strem a o s outros cm q u a lq u e r con tex to d ife re n te, um a vez q u e
q u a lq u e r a p resen tação m ais in fo rm a l será su scep tív el d e d e sm e n lir
os a trib u to s m ág ico s d e q ue o a c to r foi in v estid o. P o r c o n seg u in te,
aos e sp e c ta d o re s será p ro ib id o o acesso a to d o s os lu g a re s onde é
v ero sím il q u e a p esso a v e n e ra d a s e desco n traia, c se a zo n a possível
de tal d e sc o n tra c çã o fo r m u ito v a sta , com o aco n tecia c o m o s im p era­
d o re s da C h in a d o sé c u lo X IX , o u se n ã o se s o u b e r o n d e p o d e rá
e star cm d a d o m o m en to o o b je c to do culto, os pro b lem as de tran s­
g ressão d o s lim ites ten d erão a tornar-se c o n sid eráv eis. Foi assim que
a ra in h a V itória estab eleceu c o m o regra que q u alq u e r p esso a que a
v isse a p ro x im a r-se c o n d u z in d o o seu c a rro p u x a d o p o r u m p ó nei
p e lo s ja r d in s d o palácio, d e v e ria o lh a r p ara o outro lado ou m udar de
direcçào ; o resu ltad o foi que g ra n d e s hom en s d e e sta d o se v iram por
vezes o b rig a d o s a sacrificar a s u a própria d ig n id ad e e a p u la r para
trá s d e u m a s e b e q u a n d o v ia m in e s p e ra d a m e n te a p ro x im a r-s e a
r a in h a .15

14 I.CI.1 Kupcr, “Blueprint for Living Together", in Leo KuDcr c outros. Living in
Towns,
1 The Cresset Press, Londres. 1953. pp.
r I —-35.
*- Ponsonby. op. dr.. p. 32.
140 Erving Coffman

E m b o ra alg u n s d e ste s ex em p lo s relativ o s 'í\ reg ião d a s traseira* e


às su a s d if ic u ld a d e s se ja m c a s o s e x tre m o s , d ir-s e -ia q u e n ã o há
institu ição so cial que possa ser estu d ad a sem que d e tec te m o s alguns
pro b lem as d e co rren tes d a falta d o c o n tro lo dos bastidores.
A s regiões de trab alh o e recreio rep resen tam duas zonas dc c o n tro ­
lo d o s b astidores. U m a outra zo n a é criad a p ela ten d ên c ia m uito ge­
n eralizad a d a nossa socied ad e q u e leva a co n ferir aos acto res controlo
sobre o lugar onde satisfazem aquilo a q u e ch am am os necessidades
biológicas. N a socied ad e em q u e vivem os, a d efecação corneie o in­
d iv íd u o co m urna activ id ad e q ue é defin id a corno inconsistente com
os critério s de p u reza e asseio que m uitos d o s nossos desem p en h o s
exp ressam . A m esm a activ id ad e im plica tam bém q u e o indivíduo sc
d isp a p a rc ia lm e n te e “fiq u e de fo ra ” , ou seja. a rra n q u e do rosto a
m áscara ex p re ssiv a que u tiliza na in teracção face a face. A o m esm o
tem p o , to rn a-se d ifícil para ele reo rg an izar a tem p o a su a fach ad a
pesso al se lhe fo r b ru scam en te ex ig id o q ue entre na interacção. T al­
vez seja essa a ra z ã o pela qual, n a nossa civilização, as casas de ba­
nho sejam sítios que se fecham à chave. Q u an do está na cam a. a dor­
mir. o in divíduo en co n tra-se igu alm en te im obilizado, e x p ressiv am en ­
te falando, e poderá, d u ran te alguns m inutos após o despertai; não e s­
tar em co n d içõ es de p articip ar num a in teracção ou de assu m ir co m o
rosto um a ex p ressão de so c ia b ilid a d e ad e q u a d a — o q u e até certo
ponto ex p lica a ten d ên cia no sentido de o q u arto de cam a ser m o n ta­
do lo n g e da parte m ais activa da casa. A u tilidade desta d istân cia re­
vela-se m aio r quan d o p en sam o s q u e é nos q u a rto s de c a m a que se
p resu m e te r lugar a activ id ad e sexual; esta ú ltim a é u m a form a de in­
teracção que to rn a os acto res incap azes de assu m irem de um m om en­
to p ara o outro os .seus p apéis n o quad ro d e um a in teracção diferente.
U m a d as o c asiõ es m ais interessan tes para a o b serv ação da a d m i­
nistração d a s im p ressõ es visad as é o m o m en to e m que um a c to r sai
d a reg ião d o s b astid o res e en tra no lu g a r o nde se en co n tram os e s­
pectad o res, ou cm que reg ressa d o seg u n d o para o p rim eiro cenário,
pois, nesse m o m en to , p o d em o s assistir a um d e sp ir e v estir p ro d i­
gio so d a perso n ag em . O rw ell, ao d e sc re v e r os cria d o s d e m esa e os
la v a d o re s de p ra to s d o p o n to de vista d o s b astid o res, fo rn ec e-n o s
um a iluSlração convincente:
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 147

É m u ito in stru tiv o o b se rv a rm o s a en trad a de um criad o d e m esa


n a sa la d e ja n ta r d o h o te l. Q u a n d o tra n sp õ e a p o rta d a sa la d e
ja n ta r, o p e ra -se um a m u d an ça sú b ita na su a p essoa. A p o siçã o d o s
o m b ro s a lte ra -se ; todas a s in fe rio rid a d e s e p re ssa s e c ó le ra s d e ­
sa p a re c em num in stan te. E ele d esliza p elo tap ete, n u m a so lene
atitude sacerd o tal. L em b ro -m e d o nosso maftre d 'h ô te l a ssisten te ,
um italian o tem p eram en tal, p aran d o à porta d a sala de ja n ta r para
s e d i r i g i r a u m a p r e n d iz q u e p a r tir a u m a g a r r a f a d e v in h o .
E rg u e n d o o p u n h o p o r c im a d a c a b e ç a , p u n h a -s e a v o c if e r a r
(fe liz m e n te a p o rta era m a is ou m en o s à pro v a dc som ).
“Tu m e fitis E a tre v e s-te a dizeres-te c riad o d c m esa, tu. m eu
filho da m ãe? Tu, criad o d c m esa! N ão tens categ o ria nem para
v arre r o ch ão da c a sa de p u tas d a tua m ãe. MaquereauY*
P o r fim . q u an d o as p a la v ra s lh e faltaram , viro u-se p a ra a porta;
e . e n q u a n to a a b ria , s o lto u a in d a u m ú ltim o in s u lto c o m o o
C a v a le iro d o O este n o Tom Jones.
A seguir, en tro u na sala de ja n ta r e sin g ro u atrav és d e la co m a
tra v e ssa n a m ão, com u m a e le g â n c ia de cisn e. D ez se g u n d o s m ais
tard e, in clin av a-se ch eio d e re v e re n d a d ian te d e um clien te . E não
p o d íam o s d e ix a r d e p e n sa r ao v c-Io inclin ar-se e sorrir, corn o seu
so rriso d c criad o de m esa e x p e rim e n ta d o , q ue o c lien te d ev eria,
sem d ú v id a , se n tir-s e e n v e rg o n h a d o a o se r se rv id o p o r tã o re ­
q u in ta d o a risto c ra ta .16

O u tro ex em p lo , ex traíd o d e u m a diferente v ersão in g le sa de um a


situ ação v iv id a e d escrita a p a rtir d e um a p osição sub altern a, diz-n o s
o seguinte:

A re fe rid a e m p re g a d a — c h a m a v a -s e A ddie» c o n fo rm e c o n ­
segui d e sc o b rir e as d u a s h o sp e d e ira s c o m p o rta v a m -se com o
q u e m re p re se n ta u m a peça. D e sliz a v a m p ara a c o z in h a co m o se
v iessem d o p alco para os b a stid o re s, com as trav essas bem no a r e
um a e x p re ssã o c o n tid a de a ltiv e z ainda n o rosto ; d esco n traíam -se

^ George Orwell. Down and Out in Paris nnd Ijyndon. S eeker and Warburg.
Londres. 1951, pp. 68-69.
148 E rving G offm an

p o r um m om ento, ap e sa r d a p ressa com que peg av am dep o is em


n o v a s tra v e s s a s c h e ia s , e p u n h a m -se u m a v e z m ais em m o v i­
m ento, sin g ran d o , co m os rostos a p ostos para n o v a e n tra d a cm
ccna. O co zin h eiro e cn ficáv am o s p ara trás co m o c a rp in te iro s de
te a tro e n tre d e stro ç o s, com sc tivéssem os tid o u m relance d o outro
m undo, e q u a se o u v ía m o s os ap lau so s d u m a p lateia in v is ív e l.17

O d e c lín io d o se rv iç o d o m é stic o in tro d u z iu rá p id a s tra n sfo rm a ­


çõ es d o tipo m en cio n ad o por O rw ell no p ap el das d o n as de c a sa da
classe m édia. Q u an d o serv e um ja n ta r aos seus a m ig o s, esta te m de
g e rir o trabalho su jo d a co z in h a de m odo a p assar ra p id am e n te do
papel d e criad a a o d e an fitriã e v ice-versa, m o d ifican d o assim a sua
activ id ad e, os seus m o d o s e o seu hum or, sem p re que en tra ou sai da
sala de jan tar. H á livros de boas m an eiras que fo rn ecem co n selh o s
úteis d estin ad o s a fa c ilita r tais m odificaçõ es, indicando por ex em p lo
q u e . se a a n f itr iã tiv e r q u e se re tira r p a ra o s b a s tid o re s p o r um
p erío d o p ro lo n g ad o , co m o q u an d o está a fa z er as ca m a s, e n tã o as
ap arên cias p o derão ser co n v en ien tem en te m antidas se o an fitrião le­
v a r os co n v id ad o s a p a sse a r um b o cad in h o p elo ja rd im .
N a n o s s a so c ie d a d e e n c o n tra m o s um p o u c o p o r to d a a p arte a
lin h a d iv is ó r ia q u e s e p a ra a r e g iã o d a f a c h a d a e os b a s tid o r e s .
C o n fo rm e j á foi sugerido, a casa de ban h o e o qu arto de cam a , se e x ­
cep tu arm o s o c a so d as cla sse s m ais d e sfav o recid as, são lu g ares do s
q u a is a au d ie n c ia d o ré s-d o -c h ã o será p ro v av elm en te ex c lu íd a. Os
c o rp o s q u e se la v a m , v e ste m e a rra n ja m n e ssas d iv is õ e s d a ca sa
serão d e p o is ap re se n ta d o s aos co n v id a d o s ern sa la s d ife re n te s. N a
co zin h a, p o r o u tro lado, fa z -se à co m id a o q ue se fa z ao co rp o hu­
m an o na casa dc b an h o e no q u a rto d e cam a. C om efeito, pod em o s
até d iz e r q ue c a p resen ça dos d isp o sitiv o s cén ico s deste tip o o que
d istin g u e o m odo de v iv e r d a classe m éd ia d o das classes inferiores.
M as em to d as as classes d a n o ssa so cied ad e ex iste a ten d ên cia para
se e sta b e le c er um a lin h a d iv isó ria en tre a fa ch a d a e as traseiras na
c o n fig u ra ç ã o e x te rio r d a s c a s a s de h a b ita ç ã o . A fa c h a d a te n d e a

Monica Dickons. One ru ir o f Hemds, Michael Joseph. Mermaid Books. Londres.


1952. p. 13.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 149

m o stra r-se re la tiv a m e n te b e m a rra n ja d a , d e c o ra d a e a rru m a d a : as


tra s e ir a s te n d e m a s e r re la tiv a m e n te p o u c o a tra e n te s . A s s im , os
in d iv id u o s co n sid erad o s s o c ia lm e n te id ó n eo s e n tra m p e la fachada,
ao p a sso q u e ¿ fre q u e n te q u e os c o n sid e ra d o s s o c ia lm e n te m en o s
p e rfeito s — criad o s, m ocos d e fre te s, crian ças, etc. — e n tre m pelas
traseiras.
E m b o ra os d isp o sitiv o s c é n ic o s existen tes no in te rio r ou em to m o
d a casa d e h ab itação nos sejam fam iliares, te n d e m o s a lev a r m enos
e m conta alg u n s o u tro s asp ecto s. N as zon as resid en ciais d a A m érica,
os ra p az e s d o s oito aos c a to rz e a n o s e o u tro s “le ig o s” g o stam que as
en trad as d o s beco s e v ielas le v e m a algum lad o e se ja m utilizadas;
c o n sid era m esses acesso s de u m a m an eira viva que se p erd e m co m o
p a ssa r d o tem po. D o m esm o m o d o , os p o rteiro s e m u lh eres d a lim ­
p eza têm u m a p e rcep ção n ítid a d a s pequenas portas que d ã o p a ra os
b a stid o re s d o s e d ifíc io s c o m e rc ia is e e stã o fa m ilia riz a d o s com os
s iste m a s n ã o o fic ia is de d e s lo c a ç ã o dos e q u ip a m e n to s de lim p eza,
dos ac essó rio s in v isív eis do p a lc o e das su as p ró p rias pessoas. E n ­
co n tram o s u m a sim ila r d isp o siç ã o das co isas nas lojas e arm az én s,
o n d e os lugares “atrás d o b a lc ã o " e os d e p ó sito s serv e m de b a s ti­
dores.
E m fu n ç ã o dos v alores d c d e te rm in a d a so cied ad e, é e v id en te que
a n a tu reza d e b astid o res dc c e rto s lugares se in screve neles de m odo
m a te ria l, p elo q u e, p o r r e f e r ê n c ia às z o n a s v iz in h a s, e ssa s zo n a s
se rã o in e v ita v e lm e n te “ tra s e ira s ’'. N a n o ssa s o c ie d a d e , a a rte do s
d ec o rad o res freq u en tem en te é a ssim que d isp õ e as coisas a o s nossos
o lh o s, in tro d u zin d o cores esc u ra s e tijolo à vista nas zo n as de serv i­
ç o dos ed ifíc io s e c o lo can d o e stu q u e s c la ro s na reg ião da fa ch a d a.
C erto s e le m e n to s d e e q u ip am en to fixo co n trib u em para p e rp e tu a r a
s e p a r a ç ã o . O s p a tr õ e s r e to c a m a h a r m o n ia g e ra l r e le g a n d o o s
e m p re g a d o s p o rtad o res de a trib u to s v isu alm en te m en o s d ese já v eis
para as traseiras d a zo n a de la b o ra ç ã o e colo can d o p esso as su sce p tí­
v eis de “ d a r b o a im p ressão ” n as reg iõ es d e fachada. É possível que
se ja m u tiliz a d a s r e s e r v a s d e tr a b a lh o q u e n ão im p re s s io n a m d a
m elh o r m an eira não só para a c tiv id a d e s que têm de s e r d issim u la d as
à a u d iê n c ia , c o m o ta m b é m p a r a a c tiv id a d e s q u e p o ssa m se r
d issim u lad as, e m b o ra não o s e ja m obrig ato riam en te. C o m o indicou
150 Erving Gofíman

E v e re tt H u g h e s 1**. s e rã o m a is f a c ilm e n te a d m itid o s e m p re g a d o s


neg ro s p elas in d ú strias am e ric a n as q u e. co m o é o caso das em presas
d o secto r q u ím ico , p o ssam m an tê-lo s afastad os d as p rin cip ais zona*
d e laboração. (Tudo isto im p lica u m a esp écie dc se le cç ão ecológica
b e m c o n h e c id a , m as p o u c o e s tu d a d a .) M u ita s v e z e s . ta m b é m ,
e s p e ra -s e q u e a q u e le s q u e tra b a lh a m n o s b a stid o re s o b e d e ç a m a
c r ité r io s té c n ic o s e n q u a n to a q u e le s q u e tr a b a lh a m na re g iã o d;i
fa c h a d a o b ed ecem a c rité rio s ex p ressiv o s.
O s elem en to s d eco rativ o s e acessó rio s p erm an en tes do lu g ar onde
d e te rm in a d o d e se m p e n h o é h a b itu a lm e n te a p rese n tad o , bem c o m o
o s a c to re s e d e se m p e n h o q u e n ele h a b itu a lm e n te e stã o p resen tes,
ten d em a im p o r-lh e u m a esp écie de e n can tam en to ; m esm o q u a n d o o
d e sem p en h o h ab itu al n ão tem lu g ar nele, o lu g ar ten d e a co n serv ar
alg u m a c o isa d o seu c a rá c ter de região de fachada. A ssim , um a c a ­
ted ral e u m a sala de a u la co n serv am alg u m a co isa da su a atm o sfe ra
a in d a que n elas se en co n trem p resentes tra b a lh ad o res q u e pro ced em
a re p a ra çõ e s, e, e m b o ra os tra b a lh a d o re s talv ez não a d o p te m um a
c o n d u ta re v eren ciai en q u an to trab alh am , a su a irrev erên cia te n d erá a
a ssu m ir u m a q u a lid a d e o rg a n iz a d a , e s p e c ific a m e n te o rie n ta d a até
certo pon to em fu n ção do que d e v e ria m sen tir em b o ra não o sintam .
D este m odo, um d ado lu g a r p ode id en tificar-se em tal g rau com um
e sc o n d e rijo o n d e n ão 6 n ecessário m an ter d e term in ad o s crité rio s que
a d q u ira u m a id en tid ad e fix a d e reg ião de traseiras. A s c ab a n as de
caçad o res e as in stalaçõ es p úblicas ligadas à prática do a tle tism o po­
dem serv ir-n o s de exem plo. T am b ém os “ refú g io s” estiv ais parecem
instau rar c e rta p erm issiv id ad e em relação à fachada, to leran d o que
p e sso a s, so b todos os o u tro s pontos de vista o b ed ien tes às co n v en ­
çõ es, ap a re ç am em p úblico, nas ruas, v estid as de um m o d o que hab i­
tu a lm e n te n ão se p e rm itiria m na p re se n ç a de e stra n h o s. A in d a do
m esm o m o d o , d e sc o b rim o s a e x istê n c ia de pontos d e e n co n tro d e
d e lin q u e n te s e até m esm o d e bairros de d elin q u en tes que d ispensam
a " le g a lid a d e " d a a c ç ã o . D iz -s e , p o r e x e m p lo , q u e e x is tiu um
in te re ssa n tíssim o caso d esse tipo na P aris de outros tem pos:

IX
10 No quadro rit um seminário da Universidade dc Chicago.
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 151

N o .século XVTI, q u e m q u ise sse transform ar-se n u m v erd ad eiro


argotier, p recisav a. p o rtan to , n ã o só de sa b e r p ed ir e sm o la co m o
q u a lq u e r m e n d ig o , m as ta m b é m de p o s s u ir u m a c o n v e n ie n te
d estre z a n o cam po d o ro u b o d a s bolsas e d o fu rto em g eral. Tais
artes ap ren d iam -se nos lu g a re s que Servian) de p o n to s d e en co n tro
hab itu ais d a e sc u m a lh a d a so c ie d a d e , e q u e se ch am av am de um
m o d o geral C ours des M iracles. E ssas c a sa s, ou a n tes c o v is, a
darm o s c ré d ito a certo a u to r d o s com eços do sécu lo X V II. c h am a­
v am -se assim “P o rq u e o s b a n d id o s ... e outros, que d u ran te o d ia
inteiro tin h am sid o a le ija d o s, m utilados, h id ró p ico s e v ítim as de
todas as m isérias do co rp o d e toda a laia, v o ltavam à noite para
c asa c a rreg an d o d e b a ix o d o b ra ç o um lom bo de vaca. um a peca
de v ite la ou u m a p ern a d e b o rre g o , para j á não falarm o s da g a rra fa
d e v in h o q ue p e n d u ra v a m à c in tu ra , e. e n tã o , ao e n tra re m no
pátio, p u n h am de lad o as m u le ta s, reco b rav am u m asp ecto ro b u sto
e sadio , e, im itando as o rg ias e bacanais d a an tiguidade, c o m e ç a ­
vam a d a n ç a r to d o o g é n e ro d e dan ças, e m p u n h a n d o os tro féu s
c o n q u is ta d o s , e n q u a n to o a n fitriã o p re p a ra v a a c e ia . O n d e se
p o d e ria v e r miracle m aio r do q u e naquele pátio, o n d e o s a leijad o s
se ex ib iam dc pé c c u ra d o s? ” 19

N e sta s re g iõ e s de tra s e ira s , o p ró p rio fa c to dc não se r e g is ta r


q u a lq u e r esfo rço d estin ad o à o b te n ç ã o d c e fe ito s im p o rtan tes tende a
d e te rm in a r a a tm o sfera p e c u lia r d a interacção, lev an d o to d o s os que
n e la se en co n tram im p lic a d o s a ag irem co m o se fo ssem ín tim o s em
todos os aspectos da vida.
C ontu d o , em b o ra sc o b se rv e u m a tendência no sentido de d a d a re­
g iã o p a ssa r a ser id e n tific a d a c o m o fachada ou co m o b astid o res cm
fu nção d o d esem p en h o a q u e reg u larm en te se ac h a asso ciad a, e x is­
te m tam bém num ero sas reg iõ es q u e funcionam cm certos m o m en to s
e em c e rto s e n tid o c o m o r e g iã o d e fa c h a d a e n o u tra s a ltu ra s , e
n o u tro s se n tid o s, c o m o b a s tid o re s . A ssim o g a b in ete p a rtic u la r de
um d ire c to r de e m p re sa é se m d ú v id a a reg ião de fa ch a d a que ex-

^ 1’aut I.a Croix, Manners, Custom, and Dress during ’.he Middle Ages and during
¡he Renaissance Period, Chapman and Halt. Londres. 1876. p. 471.
152 ürving G o ff rn a n

p ressa dc m odo m ais d en so o seu estatu to na em p resa, atrav és, por


ex e m p lo , da q u a lid a d e d o m obiliário. E n o en tan to é af tam b ém que
o d ire c to r p o d e rá tira r o casaco, a fro u x ar o nó d a g ravata, te r um a
g arrafa d c álco o l à m ão e a g ir co m in tim id ad e ou até c e n o desalinho
na c o m p a n h ia de o u tro s e x ecu tiv o s da m e sm a cate g o ria 20. A ssim , de
m a n e ira a n á lo g a , um e stab elecim en to c o m ercial que use um papel
d c c a r ta tim b r a d o c o m u m g r a f is m o c u id a d o s o , d e s tin a d o ¿ios
co n tacto s com o ex terio r, p o d e rá in tern am ente a d o p ta r d isp o siçõ es
d o seg u in te teor:

P ara u so interno, o papel d e v e ser c o n sid erad o m a is em term os


de e c o n o m ia d o q ue d e proto co lo . P a p é is baratos, à s c o res, folhas
j á im p ressas ou p o lico p iad as — tudo serv e q u a n d o é p ara “ ficar
em fam ília” ,21

P o ré m , a m esm a fo n te dc a c o n s e lh a m e n to e s ta b e le c e rá c e rto s
lim ites p a ra esta d efin ição d a situação nos b astidores:

O papel de m em o ran d o s p erso n alizad o , g e ra lm en te d estin ad o a


notas dc serv iço in tern as e sc rita s à m ão, p o d erá tam b ém se r utili­
z a d o sem re s triç õ e s . C om u m a reserv a: o s e m p re g a d o s m en o s
an tig o s na c a sa não d ev em e n c o m e n d a r b lo co s dc fo lh a s d esse g é ­
nero, p o r m uito ú teis q ue eles lhes p o ssam ser. C o m o o tapete no
c h ã o ou um n o m e n a p o rta, o p ap el p e rso n a liz a d o é em c e rto s
e.scritórios um sím b o lo de estatu to .22

20 O facto de uni pequeno escritório poder transfonoar-sc inteiramente em zona ce


bastidores pela circunstância de não haver outras instalações, talvez seja um dos
motivos que cxplicam porque é que as estenógrafas preterem por vezes trabalhar
num escritório de acesso reservado a fazê-lo em instalações dc trabalho mais
amplas. Num grande escritório aberto e expolio, c provável que haja a todo o
momento alguém em cuia presença seja recomendável manlcr-se uma atitude de
aplicação e afã; num escritório mais pequeno, ioda a ostentação de trabalho
esforçado ê comportamento correcto pode $;t posta dc lado quando o chefe s;ii, Ver
RicluirJ Renckc. "The Status Characteristics of Jobs in a Factory” (tese inédita dc
Mestrado. Department of Sociology. University of Chicago. 1953. p. 53).
2 * Esquire kiiefuetie, p . 65.
~2 Ibid.. p. 65.
A Apresentação do Fu na Vida dc T odos os Días 153

S eg u n d o a m esilla lógica, n ü m a m anhã de d o m in g o , o m uro que


ro d e ia a c a sa p o d erá se r u tiliz a d o pelo s m e m b ro s d a fa m ilia resi­
d en te p ara e sc o n d e r urna c e n a d e sc o n tra c çã o do traje e do c o m p o r­
tam en to , p erm itin d o e s te n d e r a s s im a todas as p a rte s d a c a s a o à-
- v o n ta d e in fo rm a l q u e g e ra lm e n te se p ra tic a a p e n a s na c o z in h a e
q u arto s de cam a. P o r isso. a ín d a , nos b airro s re sid e n ciais d a classe
m éd ia am erican a, a o lo n g o d a ta rd e . a lin h a d iv isó ria entre a zo n a de
jo g o s in fan til e a h ab itação p o d e rá ser d efin id a co m o um a reg iã o dc
b astid o res p e la m ãe, q u e nela a p a re c e com calças de ganga, b lusão, a
m aq u ilh ag em redu zid a ao m ín im o e um c ig arro na boca, e n q u a n to
im p ele o seu c a rrin h o de b e b e e fa la liv rem en te d e co m p ra s co m as
am ig as. D e igual m an eira, e m c e rto s b airro s o p erário s d e P aris, d u ­
rante a p rim eira p a n e da m an h ã, a s m ulheres ach am -se no d ire ito de
a la rg a r a z o n a de b a stid o re s d e m o d o a fa z ê -la in c lu ir os e s ta b e ­
lecim en to s co m erciais m ais p ró x im o s, e saem . para c o m p ra r pão e
le ite , d e c h in e la s , c o m u m a r e d e n o c a b e lo , e m ro u p ã o e sem
m a q u ilh a g e m . V em os p o r v e z e s n as g ra n d e s c id a d e s d a A m e ric a
m o d elo s, trajan d o a roupa c o m q u e serão fo tografados, p ercorrerem
c u id a d o s a m e n te as ru a s m a is e le g a n te s , e s q u e c e n d o em p a rte o
am b ien te em redor: c o m u m a c a ix a de ch ap éu na m ão. u m a rede a
p ro te g e r o p e n te a d o , a s jo v e n s q u e serv em d e m o d e lo s a p a re c e m
a ssim , n ã o p a ra c ria r q u a lq u e r e f e ito e sp e c ia l, m as para e v ita re m
d e sa rra n ja r-sc e n q u a n to se d irig e m para o e d ifíc io d ia n te do qual
c o m e ç a rá o d e se m p e n h o q u e e fe c tiv a m e n te as c â m a ra s visam . E.
ev id en tem en te, urna região so lid a m e n te e sta b elec id a com o reg ião de
fa c h a d a g ra ç a s ao d e se m p e n h o re g u la r d e u m a actu ação d e ro tin a ,
s e rá m u ita s v e z e s tra n s fo rm a d a e m re g iã o de b a s tid o re s , a n te s e
dep o is de c a d a d ese m p e n h o , q u a n d o os a c essó rio s têm que se r re ­
p arados, lim pos o u re o rg a n iz a d o s , ou q u an d o os a cto res p rovam as
suas ro u p as. P ara o b se rv a rm o s e s te s aspectos, basta q u e o lh em o s o
q u e se p assa num re sta u ra n te , o u arm azém , ou c a s a de h ab ita ç ã o ,
alg u n s m in u to s an tes de as porteis se ab rirem . D e u m m o d o geral,
d e v e m o s assim ter p resente q u e, quando falam os de re g iõ es de fa­
ch a d a ou d e b astid o res, fa la m o s do p o n to de v ista de um d e s e m ­
p en h o d eterm in ad o , e falam o s d a função o c u p a d a por d eterm in ad o
lu g a r d u ra n te um d esem p en h o co n creto .
154 Giving Goff i nan

J á s u g e r im o s q u e ns p e s s o a s q u e c o o p e ra m n a e n c e n a ç ã o do
rn esm o d e se m p e n h o d e e q u ip a ten d em a m an ter re la ç õ e s de fam i­
liaridade e n tre si. F.sta fam iliarid ad e ten d e p o rem a ex p ressar-se ap e­
nas q u an d o a a u d iê n c ia n ão se en co n tra p resen te, um a v ez q u e trans­
m ite u m a im pressão do in d iv íd u o e d o seu co m p an h eiro d c equipa
h a b itu a lm e n te in c o n s is te n te c o m a im p re ssã o de si p ró p rio e do
co m p an h eiro dc e q u ip a q ue o indivíduo co n sid erad o visa m an te r p e ­
ran te a au d iên cia. C om o as traseiras ou b astidores se en co n tram por
d e fin iç ã o e de um m o d o g eral lo ra d o a lcan ce do s m em bros da au ­
d iê n c ia , é a í q u e pod em o s esp e ra r q u e seja u m a fam iliarid ad e re cí­
proca a d e te rm in a r a a tm o sfe ra dos co n tacto s sociais. A n alogam ente,
é na reg ião de fach ad a que p rev em o s o p red o m ín io de um a a tm o s­
fera protocolar.
N a s so c ie d a d e s o c id e n ta is, p o r to d a a parte, te n d e a a firm a r-se
urna lin g u a g e m e o m p o rta m e n ta l in fo rm al ou dc b a stid o re s e u m a
o u tra lin g u a g e m e o m p o rta m e n ta l. c a ra c te rístic a d o s m o m e n to s em
que é rep resen tad o c e n o desem p en h o . A linguagem dos bastid o res
inclu i um tra ta m e n to recíp ro co pelo p rim eiro n o m e, a to m a d a c o ­
le c tiv a d e d e c isõ e s, a irre v e rê n c ia , alu sõ e s se x u ais m a n ife sta s, as
q u e ix a s claram en te fo rm u lad as, a p o ssib ilidade de fum ar, um traje
in fo rm al, a u tilização de um a g íria ou m odo de fa la r “ o rd in ário ” , a
d e sc o n tra c ç ã o d a postura se n ta d a ou erecta, as b rin cad e iras a g re ssi­
vas ou tro cistas, a d e sc o n sid e ra ç ão d o p a rc e iro em p eq u en o s gestos
do tad o s co n tu d o de c e rto alcan ce sim b ó lico , certos co m p o rtam en to s
físic o s m arg in ais c o m o zu m b ir, asso b iar, m a sc a r p a s tilh a e lástica ,
m o rd isc a r, a rro ta r ou e m itir g ases. A lin g u a g em da e n c e n a çã o da
fa c h a d a p o d e rá d efin ir-se p ela au sên cia de (e em certo se n tid o c o n ­
traste em relação a) tu d o isto. F m term os gerais, por co n seg u in te, o
c o m p o rta m e n to d o s b astid o res c aracteriza-se p o r p erm itir p eq u en o s
g e sto s q u e fa c ilm e n te se ria m to m a d o s c o m o a c to s s im b ó lic o s de
intim id ad e e falta de resp eito p elo s d em ais presen tes, ao p asso q u e o
co m p o rta m e n to da reg ião de fach ad a se o p õ e a esses g esto s ou actos
p o ten cialm en te ofen siv o s. N o iar-se-á aqui que o c o m p o rta m en to dos
b astid o res possui a q u ilo a q ue os p sicó lo g o s ch am aria m um c ará cter
“re g re ssiv o '1. A q u estão , sem du v id a, está em sa b e r se os b astidores
forn ecem ao s in d iv íd u o s ensejo de regred ir, ou se. pelo contrário, a
A Apresentação do Ru na Vida de Todos os Dias 155

regressão , n o sentido clín ico , é u m co m p o rtam en to p ró p rio do s b a s­


tid o re s , u tiliz a d o em o c a siõ e s in d e v id a s p o r m o tiv o s so c ia lm e n te
n ão ap ro v ad o s.
R eco rren d o a um e stilo de b astid o res, os in d iv íduos po d em tran s­
fo rm a r e m b a stid o re s to d a e q u a lq u e r re g iã o . P o r isso v em o s, em
n u m ero sa s in stitu içõ es o u o rg a n iz a ç õ e s, os a c to re s to m a rem co n ta
d e um a parte d a reg ião d e fa c h a d a e, passando a a g ir nela de m aneira
in fo rm a l, is o la re m -n a s im b o lic a m e n te d o re s to d a fa c h a d a . P o r
ex em p lo , em certo s restau ran tes a m erican o s, so b retu d o nos e sta b e ­
le c im e n to s b a ra to s c h a m a d o s " o n e -a rm j o in ts ”. os e m p re g a d o s
to m a m c o n la d a p arte m ais a fa s ta d a d a p o rta de e n tra d a ou m ais
p ró x im a da co zin h a, e aí c o m p o rta m -se . pelo m enos até certo ponto,
co m o se e stiv e s s e m nos b a s tid o re s . D e m a n e ira se m e lh a n te , nos
voos n o ctu rn o s co m p o u co m o v im en to , d ep o is de se in cu m b irem das
su as o b rig açõ es h ab itu ais, as h o sp ed eiras se n ta m -se n o s lu g ares d e
trás, tro cam os sap ato s p o r c h in e lo s, acendem um c ig a rro e c ria m um
círcu lo m udo de d e sco n tracção ex tra -se rv iço , q ue p o r vezes se alarga
de m an e ira a incluir um ou d o is d o s p assageiros m ais pró x im o s.
É m u ito im p o rtan te, em to d o o c a so , não fic a rm o s à esp era d e que
a s situ a ç õ e s c o n cretas n o s p ro p o rc io n e m e x e m p lo s p u ro s d e co m ­
p o rtam e n to inform al o u fo rm a l, e m b o ra h a b itu a lm en te a d e fin iç ã o
d a situ a ç ã o lenda a orien tar-se d e ac o rd o com u m a ou o u tra das duas
direcçõ es. N ã o d ep aram o s c o m c a so s puros p o rq u e os c o m p an h eiro s
de eq u ip a, p eran te u m a d a d a e x ib iç ã o , serão em c e rta m edida a c to re s
e au d iên cia em relação a o u tro esp ectácu lo , e o s acto res e au d iên cia
d e u m a d a d a e x ib iç ã o s e rã o e m c e rta m e d id a c o m p a n h e ir o s d c
e q u i p a e m r e l a ç ã o a o u t r a . A s s im , n u m a s i t u a ç ã o c o n c r e t a ,
p o d e re m o s c o n ta r c o m o p re d o m ín io de um o u o u tro e stilo , j u n ­
ta m en te c o m alguns se n tim e n to s de cu lp a ou d e d ú v id a a c e rc a da
co m p o siç ã o ou eq u ilíb rio e fe c tiv o s realizados en lre os dois estilos.
G o staria de su b lin h a r o facio ile a activ id ad e nu m a situ ação c o n ­
creta se r sem pre um c o m p ro m isso entre os e stilo s form al e inform al.
C item o s, en tão , três lim itaçõ es c o m u n s que se im p õ em à au sên c ia dc
fo rm alid ad es nos bastid o res. E m p rim e iro lugar, q u an d o a au d iên cia
não está presen te, cad a um d o s m em b ro s da e q u ip a te n d e rá a a lim e n ­
ta r a im p re ssã o de q u e lhe p o d e r ã o ser c o n fia d o s os se g re d o s da
156 Erving Goffman

eq u ip a e d c que n ã o d e se m p en h ará mal o seu papel n a p rese n ça dos


esp ectad o res. E m b o ra ca d a um dos m em b ro s cia eq u ip a q u e ira q u e a
au d iê n c ia o veja co m o u m a p erso n ag em d ig n a de c ré d ito , é provável
q u e q u e ira ta m b é m q u e o s seu s c o m p a n h e iro s d e e q u ip a o v eja m
co m o um a c to r leal e d iscip lin ad o . E m seg u n d o lugar, são frequentes
as o c a siõ e s d e b a s tid o re s cm q u e os a c to re s te rã o que sc p re sta r
ap o io m oral m ú tu o , su sten tan d o a im p ressão d e que o e sp ec tácu lo a
re p re se n ta r c o rre rá bem ou q u e o esp ectácu lo acab ad o de rep re se n ta r
n ão co rreu tão mal c o m o p o d e te r p arecido. E m (crceiro lugar, se a
eq u ip a in clu ir rep resen tan tes de d iv isõ es so ciais fu n d am en tais, co m o
o s g ru p o s e tá rio s, os g ru p o s é tn ic o s, etc., c erto s lim ites d is c ric io ­
n á rio s te rã o q u e p re v a le c e r so b re a lib e rd a d e de a c ç ã o d o s b a s ti­
do res. A qui, in d u b itav elm en te, a d iv isã o fu n d am en tal m ais im p o r­
tante é a d o sexo, urna v ez que p arece n ã o e x istir so c ied a d e e m que
os m em b ro s dos dois sex o s, p o r m ais ín tim a que seja a su a relação,
n ão v ise m sa lv a g u a rd a r c c rla s a p a rê n c ias d ia n te um do o u tro . N a
A m érica, p o r ex em p lo , e is o q u e se passa nos e staleiro s n avais da
C o sta O este:

N a s s u a s re la ç õ e s c o m as tr a b a lh a d o ra s , a m a io r p a rte d o s
hom en s h av ia-se m o strad o co rtês e ate g alan te. À m ed id a que as
tra b a lh a d o ras c o m e ç a ram a p e n e tra r nos casco s c nos barracõ es
m ais afastad o s d o estaleiro , os hom en s tiraram a m a v e lm en te das
in s ta la ç õ e s as su a s c o le c ç õ e s de n u s e im a g e n s p o rn o g rá fic a s,
g u a rd a n d o -a s nas c aix as d e ferram en tas. E m sin al de d e ferê n cia
para co m as “ sen h o ras" p resentes, m elh o raram as su as m aneiras,
p assaram a b arb ear-se co m m ais cu id ad o c m o deraram a lin g u a­
gem . O tabu c o n tra as in co rrecçõ es v erb ais su cep tív eis d c serem
o u v id as pelas m u lh e re s e ra tão sev ero q ue c h e g a v a a sc r d ivertido,
e sp ecialm en te porque as m u lh eres fre q u en tem en te d e m o n stra v am
de m an eira aud ív el q u e as p alav ras p ro ib idas não e ram , p a ra elas.
nem d esco n h ecid as nem ch o can tes. A p esar disso, vi m uitas vezes
h o m en s, q ue se p rep arav am para d iz e r um palav rão (e co m bo n s
m o tiv o s p a ra tal), co rarem p reso s de um e m b araço sú b ito e refu ­
g ia re m -se n um m u rm ú rio ao notarem q u e e sta v a m peran te u m a
au d iê n c ia fem in in a. N o co n v ív io de trab alh ad o res e trab alh ad o ras
A Apresentação do Eu na Vida de lo d o s o s Dias 157

à hora dc a lm o ço , bem c o m o n a s c o n v e rsa s o c a sio n a is d u ran te


um a p au sa, e em tu d o o q u e c a b ia no ám b ito dos c o n ta c to s so ciais
fam ilia re s, in clu in d o as im e d ia ç õ e s e x te rio re s do s e sta le iro s, os
hom en s co n serv av am quase in ta c to o m odelo de co m p o rta m e n to
q u e p ra tic a v a m c m casa: re s p e ito p ela e sp o s a c o m o d e v e se r e
p e la b o a rnãe, a fe c to c ir c u n s p e c to p e la irm ã , e até a titu d e de
afável p ro tecção para co m a f ilh a inexperiente.--*

C h esterfield afirm a alg o de se m e lh a n te a p ro p ó sito d e u m a so c ie ­


d ad e d iferen te:

H m g r u p o s m is to s c u jo s m e m b ro s s e ja m te u s ig u a is (p o is
n e sse s g ru p o s todos são . até c e rto ponto, ig u ais), podes p erm itir-te
um m aio r à-v o n tad e e m a n e ira s m ais livres; m as sem p re, m e sm o
nesses caso s, d e n tro dos lim ite s d a bienséanwt. H á um certo re s ­
p e ito q u e . e m so c ie d a d e , s e re v e la se m p re n e c e ssá rio ; d e v e rá s
p ro p o r c o m m o d éstia o re m a d e co n v ersa, tendo o e x tre m o c u i­
d ado , em q u a isq u e r c irc u n stâ n c ias, de ne ja m a is parier de. cardes
dans la maisoii d 'un pendu (d c n u n c a falares de co rd as cm casa de
en fo rcad o ). As tuas palav ras, g e sto s e atitudes p o d erão p erm itir-se
e m c am p o aberto, m as n u n c a a d esm esura. P odes d e ix a r as m ãos
nos bolsos, to m a r u m a p itad a d e rapé, e s ta r sentado, de pé, ou de
vez em q u an d o a n d a r de u m la d o para o oufro, co n fo rm e prefiras;
m as cre io q u e não terás p o r reco m en d áv el assobiar, p ô r o ch ap éu
na cab eça, d e sap ertar cin to s ou fivelas, re fa ste la re S -tc ou d eitares-
-te n u m a p oltrona co m o sc e stiv e sse s na cam a. E ssa s liberdades e
in co rrecçõ es, só as p o d em o s to m a r a sós; são o fen siv as p a ra os
s u p e r io r e s , c h o c a n te s ou d e s c o r te s e s p a ra o s ig u a is , b ru ta is e
hu m ilh a n te s para os in fe rio re s.24

O s d ad o s ap resen tad o s p o r K in se y q u an to à ex ten são do tab u da


nu dez à s relaçõ es en tre m arid o e m ulher, esp ecialm en te na geração
m ais v elh a d a c la sse tra b a lh a d o ra am ericana, d o cu m en tam o m esm o

Archibald, op. eil., pp. 16-17.


24 Leiters o f Lord C-hesie.tfie.ld io His Son. Dutton. Nova Iorque. 192?. p. 239.
158 F.rving G offjnar

a s p e c to .25 S em d ú v id a , n ã o 6 a m o d éstia a ú n ic a fo rç a em acção


n e ste ca m p o . A ssim , d u as d a s m u lh e re s e n tre v ista d a s, na ilha das
S h etlan d , d e c la ra ra m que c o n tin u a ria m sem p re a u sa r a ca m isa de
n o ite d e p o is d e casad as, não p o r u m a q u estão dc pudor, m as porque
a s su as fo rm as se a fa sta v a m b a sta n te d a q u ilo q n c c o n sid era v a m o
m o d e lo u rb a n o id e a l. A firm a ra m -s e c a p a z e s d e m e in d ic a r, na
m esm a o rdem dc ideias, um a ou d u as am ig as que. seg u n d o cias d i­
ziam , n ão p recisav am dc se c o n d u z ir co m ta n ta reserv a — e é prová
vel que u m a p eq u en a perda d e p eso bastasse tam bém para d im in u ir
as p re cau çõ es q ue elas próp rias se p ro p u n h am observar.
D iz e r q u e o s a c to re s a c tu a m d e m o d o r e la tiv a m e n te in fo rm a l,
d e sc o n tra íd o e fam iliar, e n q u a n to sc en co n tram nos bastid o res, c que
se to r n a m m a is a te n to s c d e f e n s iv o s a o r e a liz a r e m o s e u d e ­
se m p e n h o . n ã o e q u iv a le a d iz e r q u e to d a s as c o isa s in te rp e sso a is
ag rad áv eis da ex istê n c ia — co rtesia, sim p atia, g en e ro sid ad e e gosto
pela co m p an h ia d o s o u tro s — se ja m u m ex c lu siv o do s b astid o res, ao
passo q ue a d esco n fian ça, o sn o b ism o e as d em o n straç õ es de au to ri­
d ad e c a racterizariam , de m o d o n ão m en o s e x clu siv o , as activ id ad es
das regiões d c fachada. P o r v ezes d ir-se-ia ate que todo o en tu siasm o
e aten ção in teressad a dc q u e d isp o m o s os reserv am o s p a ra aqueles
p e ra n te o s q u a is a p re s e n ta m o s u m a e x ib iç ã o e q u e o sin a l m ais
seg u ro da so lid a rie d a d e d o s bastidores está no sen tim e n to q u e então
ternos de p o d erm o s c e d e r a um h u m o r m en o s so c iá v e l ou de irri­
ta ç ã o m uda.
É in teressan te n o ta r q u e. em b o ra cad a um a d a s e q u ip a s em p re­
sença .seja cap az de se d a r co n ta dos aspectos m enos a traen tes “ nüo
rep resen tad o s’’ d o seu p ró p rio co m p o rtam en to de bastid o res, não é
provável que .seja c a p a z de c h e g a r h m esm a co n clu são a resp eito das
eq u ip a s co m as q u a is in terag e. Q u an d o os alu n o s sae m d a sa la dc
a u la e en co n tram fora d e la um refúgio o n d e podem co m p o rtar-se de
m o d o m ais d e sc o n tra íd o ou m en o s co n v en iente, m uitas vezes n ão se
d ã o c o n ta de q ue os p ro fesso res se retiraram , e n tretan to , para um a
“ sala dc c o n v ív io ", o nde p ra g u e ja m e fu m a m , n u m a a tm o sfe ra de

25 Alfred C. Kinsey, W'ardcU I?. Pnim:ruy c Clyde H. Martin. Sexual Behaviour ir


¡he Humar. Mr.ie, Saunders. FiladtSlfia. 1948. pp. 36f>-67.
A Apresentação do Hu na Vida cic Todos os Dias 159

b astid o re s co m p aráv el. S ab em o s, e v id e n te m e n te , q u e urna e q u ip a de


um só m em b ro é suscep tív el d e fo rm a r urna im agem m uito so m bria
d e si p ró p ria , não sen d o d e s p ic ie n d o o n ú m ero de p sic o tc ra p c u tas
que se o cu p am d o a lív io d o s se n tim e n to s dc cu lp a c o rre sp o n d en te s e
g a n h a m a v id a ex p lican d o ao s s e u s pacientes o q ue é, afinal, a vida
d a s restan tes pessoas. P o r trás d e s ta s ideias d o in d ivíduo a c e rc a de si
pró p rio e destas ilusões suas e m re la ç ã o ao s o u tro s, ac tu a u m a d i­
n â m ic a i m p o r t a n l c , a s s o c i a d a à s f r u s t r a ç õ e s d e c o r r e n t e s d a
m o b ilid ad e social, seja esta ú ltim a ascendente, d e sce n d e n te ou ho­
rizo n tal. T en tan d o fugir d o m u n d o d e dois ro sto s, fo rm a d o p e la re ­
gião dc fachada e pela re g iã o d as traseiras e resp ectiv o s m odos de
co n d u ta, o s indivíduos p o d erão ju lg a r que, um a vez na n o v a p o siç ão
q u e sc e sfo rç a m p o r adquirir, p a s s a rã o a se r as p e rso n a g e n s p ro je c ta ­
d as pelo s indivíduos qtic b e n e fic ia m da p o sição cm causa, c já não.
ao m esm o tem p o que essas p e rso n a g e n s, também* ac to re s. Q u an d o
a lc a n ç a m a p o s iç ã o a p e te c id a , d e s c o b re m , e v id e n te m e n te , q u e ;i
n o v a situ a ç ã o te m se m e lh a n ç a s in esp erad as co m a an terio r; am bas
im p lic a m u m a a p r e s e n ta ç ã o d a fa c h a d a e m f u n ç ã o d e u m a a u ­
diência, e am bas im plicam q u e o in d iv íd u o se c o n sag re h a ctiv id ad e
p o u c o tra n s p a re n te e p o u co d is c r e ta de e n c e n a r um d e se m p e n h o
aceitável.
P o r vezes, p en sa-se q u e a g ro s s e ria fam iliar é um asp e cto m e ra ­
m e n te c u ltu ra l, u m a c a r a c te r ís tic a , p o r e x e m p lo , d a s c la s s e s tra ­
b a lh ad o ra s. e q u e os m em b ro s d a s cam ad as su p e rio res não se c o m ­
poriam d a m esm a form a. A v e rd a d e é, sem d ú v id a, q u e as p essoas
dc co n d iç ã o e lev ad a ten d em a fu n c io n a r e m e q u ip a s p eq u en as e te n ­
d em a p a ssa r b oa parte d o d ia e m d esem p en h o s v erb ais, ao p asso
q ue os m e m b ro s d as cla sse s tra b a lh a d o ras ten d em a se r m em b ro s de
eq u ip as n u m ero sas e a p assar b o a parte do d ia nos b astid o res ou em
d e se m p e n h o s n ão verb ais. P o r is s o , q u an to m ais e le v a d a é a p o sição
de um in d iv íd u o na pirâm id e, m e n o r o n ú m ero de p essoas q u e lhe
são fa m ilia re s , m ais re d u z id o o te m p o q ue p a s sa n o s b a s tid o re s ,
m ais p ro v áv el é q u e seja o b r ig a d o a m ostrar-se c o rtê s e d elicad o .
E m todo o caso, nos m o m en to s e co m os c o m p a n h eiro s c e rto s, até
m e sm o os a c to re s m a is s a c ra liz a d o s agirão, e se rã o v in c u la d o s a
agir. de m a n e ira v u lg ar q u an to b a s te . Por razões de n úm ero e estra­
160 Krving GolTman

té g ia , p o ré m . 6 p ro v á v e l q u e p o ssa m o s o b se rv a r os tra b a lh a d o re s
q u a n d o e ste s e x ib e m m o d o s de b astid o res, e im p ro v áv el que assis­
ta m o s à m e s m a e x ib iç ã o p o r p a r te de lo r d e s . U m c a s o - lir n ite
in te re ssa n te d e sta situ a ç ã o 6 o q u e d e sc o b rim o s p a ssa r-se c o m os
ch efes de estad o , q u e. p elo seu e sta tu to , n ão têm co m p a n h e iro s de
eq u ip a . P o r vezes, o s in d iv íd u o s, que se acham c irc u n stâ n c ias que
ta is, se rv e m -se d e um g ru p o d e am ig o s íntim os, ao s q u ais por cor­
te sia c o n c e d e m um a c o n d iç ã o d e co m p a n h e iro s d e eq u ip a , a fim de
s a tis f a z e r e m a s u a n e c e s s id a d e de d e s c o n tra c ç ã o m o m e n tâ n e a ,
sen d o tal facto um novo e x e m p lo d a fu n ç ã o de “c o m p a n h e irism o ’'
que atrás c o n sid e rá m o s. O s cam aristas de c o rte d ese m p en h am m u i­
tas v ezes o papel de que e stam o s a falar, c o n fo rm e vem os na d escri­
ção tra ç a d a p o r P on so n b y d a v isita d o rei E d u ard o , em 1904, à corte
d a D in am arca:

O ja n ta r in clu ía d iv erso s prato s e g ra n d e v aried a d e d e vinhos,


p ro lo o g a n d o -se h ab itu alm en te p o r hora e m eia. A se g u ir dirigia-
m o -n o s todos, de b raço d ad o . para a sala, o nde. um a vez m ais, o
rei da D in a m a rc a c to d a a fa m ília real d in a m a rq u e sa se d is p u ­
n ham a to d a a volta. As oito h o ras, retiráv am o -n o s p ara os nossos
ap o sen to s para fu m ar, m as, co m o a c o m itiv a d in a m a rq u e sa co n ti­
n u a v a a aco m p an h ar-n o s, as co n v ersas lim itav am -se a perguntas
am áv eis so b re o s c o stu m es d o s d o is p aíses. À s nove voltávam os
ao salão, o n d e p assáv am o s o tem po a jo g a r às ca ita s, g era lm e n te o
loo, sem apostas.
À s d e z h o ras éra m o s m iserico rd io sam en te d isp en sa d o s e au to ri­
z a d o s a v o lta r ao s n o sso s ap o sen to s. A s n o ites assim era m um a
d u ra pro v a p ara to d a a gente, m as o rei c o m p o rtav a-se c o m o um
an jo . jo g a n d o whist, u m jo g o b a sta n te fo ra de m oda, co m p aradas
m u ito b a ix a s. C o n tu d o , ao fim de u m a s e m a n a , d e c id iu jo g a r
bridge, m as só d epois de o rei da D in am arca se re c o lh e r para d o r­
m ir. M a n tín h a m o s a n o ssa ro tin a h ab itu al a te às dez h o ra s, e a
se g u ir o p rín c ip e D e m id o ff da d e le g a ç ão ru ssa v isita v a os a p o ­
sentos, d o rei p a ra jo g a r bridge, co m ele, corn S e y m o u r F o rtescu e
c co m ig o , a o m esm o tem p o q u e as apostas subiam . C o n tin u á m o s
a p ro c e d e r d o m esm o m o d o até ao fim d a visita, c e ra um alív io
A Apresentação do Fu na Vida de Todos os Dias 161

para nos o rep o u so q u e a ssim n o s co n ced íam os perante a rig id ez


da c o rle da D in am arca.26

D ev em o s referir um ú ltim o a sp e c to relativ o às re la çõ e s no s b a s­


tidores. Q u an d o d izem o s q u e as p esso as q u e co o p eram na e x ib ição
de um d esem p en h o p o derao e x p rim ir fa m ilia rid a d e re cíp ro c a quan d o
não se e n c o n tra m na p re se n ç a d a au d iên cia, d e v e m o s le m b ra r q u e
um ind iv íd u o é su sceptível d e se h a b itu a r de tal m aneira à a c tiv id a d e
d a re g iã o d e fa c h a d a (e à r e s p e c tiv a p e r s o n a g e m ) q u e a s su a s
n e cessid ad es dc d e sco n tracção p a s s a m a ser tratad as igu alm en te em
le rm o s dc d e se m p e n h o s u p le m e n ta r. Ü in d iv íd u o se n tir-se -á nesse
caso , q u a n d o se e n c o n tra n o s b a stid o re s, o b rig ad o a ag ir de m odo
fa m ilia r e isso trad u zir-se-á m ais n u m a atitude lig ad a a u m novo d e ­
sem p en h o d o que n u m a situ ação d e repouso.
N este cap ítu lo falei d a u tilid a d e do co n tro lo sobre os b a stid o re s e
d as d ific u ld a d e s d ra m a tu rg ic as q u e em e rg e m q u a n d o o e x e rc íc io
d esse co n tro lo d eix a de se r p o ssív e l. G ostaria ag o ra d e c o n sid e ra r o
p ro b lem a d o co n tro lo so b re o a c e sso à região dc fach ad a, m as para
isso será n ecessário ala rg a rm o s u m pouco o n o sso q u a d ro d e re fe ­
rencia o rig in al.
O b se rv á m o s d o is tipos de re g iõ e s d elim itad as: as reg iõ es de fa ­
c h a d a o nde se d e se n ro la ou d e se n ro la rá um d e se m p e n h o , e as re ­
g iõ es de b astid o res o nde se d e se n ro la m acçõ es lig ad as a o d e se m p e ­
nho, m as que não são c o n s iste n te s com a ap arên cia v isada p o r esle
ú ltim o . Parece razoável in tro d u z irm o s aqui u m a terceira reg ião , um a
região resid u al, referindo-se d e sig n a d a m e n te a todos os lu gares que
n ão cab em em nenhum a d as d u a s regiões já id en tificad as. A esla re ­
g iã o p o d erem o s c h a m a r "o e x te r io r ” . A ideia de um a regiào exterior,
q u e não é de fach ad a nem de tra s e ira s em relação a um d esem p en h o
co n creto , c o n c o rd a co m a n o ç ã o d e senso co m u m re la tiv a às o rg a n i­
zações so ciais, pois v e rific a m o s q u e na m aio r p a rte d o s e d ifíc io s há
re c in to s u tiliz a d o s re g u la r o u te m p o ra ria m e n te c o m o re g iõ e s d e
tra se ira s o u reg iõ es d e fa c h a d a , a o m esm o te m p o q u e as p a re d e s
e x te rio re s d o ed ifíc io se p a ra m o s d o is tipos d e e sp a ç o s d o m u n d o

Ponsonby. op. cii.. p. 269.


162 Ervins Goffrnan

exterior. C h am arem o s “e stra n h o s" aos indiv íduos que se en contram


no e x te rio r d o q u ad ro co n sid erad o .
E m b o ra a n o ç ã o de e x te rio r seja e v id e n te , p o d e rá ilu d ir-n o s e
c o n fu n d ir-n o s se n ã o f o r m a n e ja d a c o m a te n ç ã o , p o rq u e q u a n d o
d e sv ia m o s o n o sso e x a m e da reg ião de fa c h a d a ou d o s b astid o res
para o e x te rio r fen d em o s tam b ém a su b stitu ir o ponto d c referên cia
de um d a d o d e se m p e n h o p o r o u tro . S e to m a rm o s c o m o p o n to dc
r e f e r ê n c ia u m d e s e m p e n h o e m c u r s o , o s q u e e s tã o f o r a s e rã o
p esso as para as q uais os acto res efectiv a o u p o te n cia lm en te ex ib e m
urna d em o n stra ç ã o , m as u m a e x ib ição (c o m o v erem o s) d ife re n te da
e x ib iç ã o cm c u rso , o u e x c e ssiv a m e n te p a re c id a corn e la . Q u a n d o
in e sp e ra d a m e n te p en etram e stra n h o s n a re g iã o d e fa c h a d a ou nos
b astid o res d e um d e se m p e n h o em cu rso , a c o n se q u ên cia d a su a in o ­
p o rtu n a p re se n ç a será m u itas vezes m ais b e m o b serv ad a n ão nos (er­
m o s d o s seus efeito s so b re o d esem p en h o em cu rso , m as antes nos
term o s d o s seus e fe ito s s o b re um d e se m p e n h o d ife re n te , d e sig n a ­
d a m e n te , a q u e le que ta n to os acto res c o m o os e sp e c ta d o re s g eral­
m e n te e x ib e m p e ra n te os estra n h o s e m c irc u n stâ n c ia s de te m p o e
lu g a r e m q u e os m esm o s estra n h o s são an te c ip ad o s na su a q u alid ad e
de e sp ectad o res.
T ornam -se n e c essárias ain d a o u tra s p recau çõ es d e ord em c o n c e p ­
tual. () m u ro q ue se p a ra as regiões de fa c h a d a e d e b astid o res tem
sem d ú v id a u m a fu n ção a c u m p rir no d e se m p en h o en c e n a d o e rep re ­
sen ta d o n essa s d u a s re g iõ e s, m as a d e c o ra ç ã o e x te rio r d o ed ifício
d e v e rá s e r v ista e m p a n e c o m o c o n stitu in d o u m a s p e c to de um a
o u tra ex ib ição ; e por vezes esta ú ltim a c o n trib u içã o p o derá revelar
-se a d e m aio r im portância. A ssim v erificam o s a p ro p ó sito das casas
de u m a ald eia inglesa:

O tipo de m aterial u tilizad o n as c o rtin a s das ja n e la s da m aio r


p a n e das c a sa s d a a ld e ia v a ria v a de m odo d irec ta m e n te p ro p o r­
c io n a l à v is ib ilid a d e de c a d a j a n e la . A s “ m e lh o r e s ” c o rtin a s
ap areciam nos sítios m ais visív eis, sen d o de q u alid a d e m uito su ­
p e rio r às d a s ja n e la s n ão a c e s s ív e is ao o lh a r do p ú b lic o . A lém
d isso , era n o rm al q u e o p ano e stam p ad o a p en as d e um do s lados
ficasse co m o lado e sta m p a d o para fora. Esta u tiliz açã o d o s m a-
A Apresentação do Eu na Vida de Todo? os Dias 163

te ria is m ais d is p e n d io so s c ’‘a p re s e n tá v e is ” e m lu g a re s d c e v i­


d ê n c ia é um m eio c aracterístico d a busca de p restíg io .27

N o C ap ítu lo I deste estu d o in d icav a-se q u e o s a c to res te n d e m a


d a r a im p ressão , o u a não c o n tra d iz e r a im p ressão , de que o papel
que estão a rep resen tar dc m o m e n to é o seu papel m ais im p o rtan te c
que as q u a lid a d e s de que se re c la m a m ou que lhes são im p u ta d as
co n stitu e m as suas q u a lid a d e s m a is essenciais e d istin tiv as. Q u an d o
a lg u n s in d iv íd u o s são te s te m u n h a s d e u m a e x ib iç ã o q u e n ã o fo i
c o n c e b id a p a r a e le s , p o d e m , p o r c o n s e g u in te , s e n tir - s e d e c e p ­
c io n a d o s ta n to com essa e x ib iç ã o co m o c o m a que lh e s foi d e s ti­
nad a. T am b ém o actor, p e lo seu la d o , p o d erá sentir-se co n fu so , dc
aco rd o c o m as seg u in tes su g e stõ e s de K enneth Burke:

C o m as nossas resp o stas co m p artim en tad as, som os todos co m o


o h o m em q u e é um tiran o n o e sc ritó rio e um fraco e m ca sa , co m a
fam ília, ou co m o o m ú sic o q u e se im põe c o m o a rtista e se ap ag a
¿to n ív el d as relações p esso ais. E s ta d isso ciação tra n sfo rm a-se em
d ific u ld a d e q u a n d o te n ta m o s c o n ju g a r os d ife re n te s c o m p a r ti­
m en to s (assim , o h o m em q u e é u m tirano no escritó rio c um fraco
em casa, a ch aria os seus in stru m en to s dc d isso c ia çã o in su fic ie n tes
se tiv esse q u e e m p re g a r no escritó rio a m u lh er e os filhos, sendo
p ro v á v e l que en tão se se n tisse c o n fu so e a to rm e n ta d o ).-8

E stas d ific u ld a d e s to m a r-se -ã o esp e c ia lm e n te a g u d as se um a das


ex ib içõ es a p restar pelo in d iv íd u o d ep en d er dc um ce n ário e de u m a
e n c e n a çã o elabo rad o s. D aí, a d e c e p ç ã o que tran sp arec e na d e sc riçã o
de H erm an M elville d o m odo co rn o o cap itão d o seu n avio nun ca o
‘‘v ia” q u a n d o se e n co n trav am a b ordo, m as se m ostrou a fá v el para
co m ele, q u a n d o , te rm in a d o o p e río d o d e s e rv iç o de M e lv ille , os
dois se en co n traram p o r acaso n u m a festa cm W ashington:

- ‘ W . M. W illia m s . The. Sociology o f an English Village. Roudedge a n d Kegan


P a u l. L o n d re s . 1 956. n. 112.
*>0
- - Kenneth Burke, Permanence and Change. New Republic. Inc., \'ovn torque,
1953, nota. p. 309.
164 Hrving Goffman

H e m b o ra , a b o rd o d a frag ata, o c o m o d o ro n u n ca se me d iri­


g isse — n em eu a ele — de um a m an eira p e sso a l, na recepção
o fe re c id a p elo m inistro, to m á m o -n o s e x cessiv am en te c o n v e rsa d o ­
re s ; e ta m b é m n ã o d e ix e i d e n o ta r , p o r e n tr e a m u ltid ã o d e
d ig n itário s estran g eiro s c m agnates vindos d e todos os can to s da
A m érica, que o m eu resp eitáv el am ig o n ão ap aren tav a a m esm a
g ran d eza q u e p arecia p erten cer-lh e q u a n d o o víam os debruçado,
n a s u a so lid ã o , d a a m u ra d a m e tá lic a d o c o n v é s d o N eversink.
C o m o a c o n te c e a m u ito s o u tro s c a v a lh e iro s, m o strav a-se a um a
lu z m a is fa v o rá v e l e e ra tra ta d o c o m m a io r d e f e rê n c ia na in­
tim idade d o seu lar. da su a frag ata.29

A re sp o sta a e sta s d ific u ld a d e s co n siste, para o a c to r, na se g re ­


gação d as su as au d iên cias, de tal m aneira q ue os in d ivíduos que as­
sistam a um dos seus p apéis não sejam o s m esm os q u e assistem à sua
re p resen tação de um outro papel. A ssim , certos padres franco-cana-
dian o s n ã o q u erem le v a r o seu rig o r ao pon to de não irem à praia com
ou tras p esso a s, m as ten d em a ju lg a r preferível que a s p essoas com
q u e m tornam ban h o na praia não p ertençam a o núm ero dos seus p a ­
roquianos, um a vez que a fam iliarid ad e in stau rad a p e la praia lhes pa
rece incom patível com a d istân cia e o resp eito requerido pelas suas
activ id ad es de párocos. O controlo exercid o sobre a região de fachada
é u m a m edida d e seg reg ação d a audiência. A incap acid ad e d e co n ser­
vação deste co n tro lo d eix a o ac to r na posição de n ão sab er q u e perso­
nagem d ev erá p ro jectar em d ado m om ento, tom an d o -lh e difícil c o n ­
seg u ir êx ito d ram ático em q u alq u er dos seu s papéis. É fácil porm o-
-nos na pele de um farm acêu tico que se c o m p o rta com o um vendedor
ou um alm o x arife encard id o perante um cliente que aparece co m urna
receita na m ão, ao p asso q u e. 110 instante seguinte, projecta a su a ati­
tude digna, m édica d esin teressad a, p ro fissio n alm ente im pecável pe­
rante alg u ém q u e q u e r u m selo barato ou um chocolate.'™
D eve fic a r claro que, tal co m o se rev ela de u tilid a d e para o ac to r
e x c lu ir da au d ien cia os esp ectad o res q u e a ssistiram a o u tro desem -

Herman Melville. White Jacke:, Grove Press, s. cl.. Nova Iorque, p. 277.
- Ver W einlein. op. ci:.. pp. 147-48.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos o.s Dias 165

p e n h o seu. incon sisten te co m o d o m om ento presente, é tam b cm útil


p a ra o a c to r e x c lu ir d a au d ien cia os esp ectad o res q u e no p a ssa d o o
viram d ese m p e n h a r u m p ap el q u e não co n d iz com o seu d e se m p e ­
nho actu al. O s in d iv íd u o s q u e a sc e n d e ram ou d e sceram c o n sid e ra ­
v e lm e n te na e s c a la so c ia l p o d e m re so lv e r, re c o rre n d o a g ra n d e s
m eio s, o p ro b le m a d e ix a n d o o s e u lu g a r de o rig e m . F. d o m esm o
m od o q ue é co n v en ien te q u e as d iferen tes p ráticas d e ro lin a sejam
re p re s e n ta d a s p e ra n te e s p e c ta d o re s d ife re n te s, a ssim ta m b é m será
c o n v e n ie n te se p a ra r as d ife re n te s au d iên cias d a m esm a p rá tic a d e
ro lin a , p o is 6 e ssa a ú n ic a m a n e ir a de se c o n s e g u ir que c a d a a u ­
d iê n c ia p o ssa p e n s a r q u e, e m b o r a o u tras a u d iê n c ia s p re se n c ie m a
m e sm a ro lin a , n e n h u m a d e la s a s s is tirá a um seu d e se m p e n h o tão
p erfeito . U m a vez m ais, v em o s aq u i a im p o rtân cia d o c o n tro lo da
região de fachada.
A tra v é s d e u m a p r o g r a m a ç ã o a d e q u a d a d o s d e s e m p e n h o s , o
in d iv íd u o p oderá n ão só m a n te r a s suas au d iên cias sep arad as um as
das o u tras (m o stran d o -se-lh es e m diferen tes regiões d e fac h ad a ou,
su cessiv am en te, na m esm a re g iã o ), m as p erm itir-se a in d a o in tervalo
d e alg u n s m om entos en tre os d ese m p e n h o s, d e m odo a p o d er d e s­
fazer-se p sic o ló g ic a e fisic a m e n te d e um a fach ada p e sso al e assu m ir
outra. T odavia, surgem p o r v e z e s p roblem as n esses c o n te x to s sociais
e m q u e o m e s m o o u d if e r e n te s m e m b ro s d a e q u ip a tê m q u e se
c o n fro n ta r co m d ife re n te s a u d iê n c ia s sim u ltân eas. S c as d ifere n tes
au d iên cias se en co n trarem n o c a m p o aud itiv o um as das o utras, será
d ifícil su ste n ta r ju n to d elas a im p re ssã o de q u e aq u ilo que c a d a um a
d e ssa s au d iên cias receb e é e s p e c ia l e único. P o r isso. se um a anfitriã
q u ise r d a r a cad a um d o s seu s co n v id a d o s u m a atenção esp ecial ou
urna d e sp e d id a esp ecialm en te c a lo ro sa — um d esem p e n h o esp e cia l,
na re a lid a d e — , terá de a rra n ja r m a n e ira de o fa ze r n um a d iv isã o de
en trad a separada da sala o n d e s e en contram os restan tes. D e m odo
p arecid o , nos casos cm q u e u m a ag ên cia tiv e r q u e serv ir dois fu n e­
rais no m esm o dia. será n e c e ssá rio que c o n d u z a as d u a s au d iên cias
co rre sp o n d e n te s atrav és d as su as instalações de m odo a que os seus
trajecto s n ão se cru zem , p ara qu-e a im pressão de q u e a ca sa fu n e­
rária é um esp aço d iferen te d o d a casa fa m ilia r não seja p o sta em
risc o . Ig u a lm e n te , n as lo ja s d e m ó v eis, o e m p re g a d o , q u e está a
166 F.rving Cioflmuri

“d e sv ia r” o c lie n te de d e te rm in a d o c o n ju n to para o u tro m ais caro,


d e v e rá ter o cu id ad o d e m a n te r a su a a u d iê n c ia fora do alcan ce a u d i­
tiv o d a v oz de outro co leg a q u e e ste ja a d e sv iar u m clien te diferente
d e um c o n ju n to d e m obília ain d a m ais barato, c h a m a n d o a atenção
p a ra aq u ele d o q u al o p rim e iro em p reg ad o tenta a fastar o seu cliente
— p o is o c o n ju n to que um d o s v en d ed o res d e sv a lo riz a é o m esm o
que o o u tro tenta v alo rizar31. Sem dúvida, se h o u v e r p ared es a sep a­
ra r as su a s a u d iê n c ia s, o a c to r p o d e rá su ste n ta r as im p re ssõ e s cue
visa. p assan d o rap id am en te de u m a re g iã o para a o u tra. E ste recurso
d e e n cen ação , to rn ad o p o ssív e l p o r d u as salas de d esem p e n h o , pa­
rece e sta r a to m a r-se cad a vez m ais d ifu n d id o entre os d e n tista s c-
m éd ico s am erican o s.
Q u an d o a se g reg ação da au d iên cia falha e um e stra n h o tern acesso
a um d e sem p en h o que n a o foi co n ceb id o p a ra ele, d ep aram -se pro­
blem as d ifíc e is q u a n to à ad m in istração d as im pressões. P oderem os
m e n c io n a r aqui d o is ex p ed ien tes lécn ico s d e stin a d o s a e n fren ta r rais
d ific u ld a d e s . E m p rim e iro lu g ar, to d o s os que faz em j á p a rte do
gru p o dos e sp e c ta d o res p o derão d e um m o m en to p a ra o o u tro rece­
b e r e a c e ita r um esta tu to de b astid o res tran sitó rio , e to m a r-se co n i­
ventes co m o a c to r n a en c e n a çã o de um d e sem p en h o que visa res­
p o n d e r a d e q u a d a m en te à in tru são verificad a. A ssim , o m arid o e a
m u lh er q u e. no m eio d e um as d as suas brigas q u o tid ian as, são in ­
terro m p id o s d e sú b ito pela visita de alguém que co n h ecem há pouco
tem po, porão de lado as su as d iv erg ên cias ín tim as e d esem p en h arão
um relacio n am en to m útuo q u ase tão d esp ren d id o e am ig áv el co m o o
q u e d e se m p e n h a o im p re v isto re c é m -ch e g a d o . T an to os m o d o s dc
re la c io n a m e n to c o m o o s tip o s d e c o n v e rs a q u e n ão fo r p o ssív e l
p a rtilh a r a três serão assim d eix ad o s de parte. De urna m a n eira geral,
po r co n seg u in te, se o in tu ito fo r tra ta r o re cé m -ch eg a d o d e acordo
com as e x p ectativ as co rren tes, o a c to r terá de p a ssa r ra p id am e n te do
d e se m p e n h o q u e e slav a a e x ib ir a o u tro q ue o ind iv íd u o q u e acaba
de en trar em cen a c o n sid e ra ad ap tad o à situação. É m uito raro que
isso p o ssa s e r fe ito c o m presteza su ficien te para su g e rir ao rcccm -
-c h e g a d o u m a ilu sã o c o n v in c e n te , n o s te rm o s d a qu al a e x ib iç ã o

' ' : V er L o u is e C o m in l. “The B orax House". 77ie American A'¡ercury. XVII. p. 172-
A Apresentação do Eli lia Vida de Todos os Dias 167

b ru scam en te in iciad a faz p arte d a ex ib ição natural do actor. E aínda


q u e isso s e ja fe ito . os e s p e c ta d o re s já p resen tes talv e z sin ta m que
aq u ilo q u e a té a í tin h am c o n sid e ra d o o eu essencial d o a c to r talvez
n ã o seja tão essen cial c o m o p a re c ia .
Já ind icám o s q u e é p o ssív e l f a z e r frente a um a in tru são lev an d o os
p a rtic ip a n te s an terio rm en te p re se n te s a ad o p tarem urna o u tra d e fin i­
ção da situação, suscep tív el d c in c lu ir o intruso. U m a se g u n d a m a­
neira de e n fre n ta r a m e sm a d ific u ld a d e é c o n c e d e r a o in tru so um
claro sinal de b o as-v in d as, c o m o se se tratasse de alg u é m c u ja p re ­
se n ç a na reg ião deve ser c o n sid e ra d a natural a q u a lq u e r m o m en to . O
m esm o desem p en h o , em te rm o s ap ro x im ativ o s, co n tin u a en tão a d e­
sen ro lar-se. m as d o rav an te de m o d o a incluir o in tru so . F. assim que,
qu an d o um in d iv íd u o ap arece d c su rp re sa p a ra v isitar os am ig o s c o s
su rp reen d e de fa c to a d a r um a fe s ta , a sua p esso a se to rn a o b je cto d e
so n o ras b o as-v in d as, en q u a n to o s donos da c a sa o intim am a ficar.
Se as sau d açõ es de b o as-v in d as n ã o fossem c alo ro sam en te su b lin h a­
das. o fa c to de o in d iv íd u o te r d esco b erto que o não tin h am c o n v id a ­
do se ria suscep tív el dc d e sm e n tir a fachada de am iza d e e afecto , nou­
tra s circ u n sta n c ias m an tid a e n tre o recém -chegado e os anfitriõ es.
H a b itu a lm e n te , seja c o n io for1, n en h u m a d e sta s té c n ic a s p a re c e
d e m asiad o eficaz, E m geral, q u a n d o os intrusos p en etram n a região
de fach ad a, os actores ten d em a d e se n c a d e ar o d e se m p e n h o q u e c o n ­
ceb e ra m p ara os intrusos em fu n ç ã o d e ou tro s m o m en to s e o u tro s lu ­
g a re s, e a p ro n tid ã o em q ue p a s s a m a actu ar d c d ete rm in ad a m an eira
in tro d u z, p elo m enos a títu lo te m p o rá rio , certa co n fu são nas linhas
o rie n ta d o ra s da acção co m q u e o s actores se e n co n trav a m j á c o m e ti­
d o s. O s acto res d esco b rir-se-ão , portanto, m o m en tan eam en te c in d i­
d o s entre d u a s realid ad es p o ssív e is, e, até q ue n o v as in d ica çõ e s se ­
ja m tra n sm itid a s e re c e b id a s, os m em b ro s da e q u ip a talv ez se sintam
c o n fu s o s q u a n to à lin h a a s e g u ir. O re su lta d o é q u a se in e v ita v e l­
m ente um sen tim en to de e m b a ra ç o . Ern tais c irc u n stân cias torna-se
co m p reen sív el que o intruso n ã o se ja alvo d e q u a lq u er das fo rm as de
ac o m o d a ç ão m en cio n ad as, m as se veja a n te s tra tad o c o m o se não
e stiv e sse de fa c to p re se n te , ou s e ja . sem c e rim ó n ia s, c o n v id a d o a
retirar-se.
TV

Papcis Discordantes

U m dos o b jectiv o s g en érico s d e q u alq u er eq u ip a 6 su sten tar a de­


fin ição d a situ ação visada p e lo d esem p en h o . O q u e im p licará a in­
s is tê n c ia d a c o m u n ic a ç ã o c m c e r to s f a c to s e o a p a g a m e n to d o s
le rm o s d a c o m u n ic a ç ã o de a lg u n s outros. D adas a fra g ilid a d e e a
c o e rê n c ia e x p re ssiv a e x ig id a d a re a lid a d e d ra m a tiz a d a p o r u m d e ­
se m p e n h o , há g e ra lm e n te fa c to s q u e . n o caso de lh es se r p re sta d a
a te n ç ã o d u ra n te o d e se m p e n h o , d e sm e n tirã o , q u e b ra rã o ou in u tili­
zarão a im pressão visada. P ode d izer-se q u e tais fa cto s são p o rtadores
de “ in fo rm ação destru tiv a” . U m d o s problem as fundam entais em nu­
m ero so s desem p en h o s é, por co n seg u in te, o do c o n tro lo d a inform a­
ç ã o ; a a u d iê n c ia n ão d e v e o b te r in fo rm a ç ã o d e s tru tiv a a c e rc a d a
situ ação q u e e stá a se r d e fin id a te n d o em vista os seu s m em bros. Por
ou tras palav ras, a eq u ip a d ev e s e r capaz de g u ard ar os seu s segredos
c dc fa z e r co m que os seus se g re d o s sejam guardados.
A n tes de co n tin u a rm o s, será re c o m e n d á v el a c re sc en ta rm o s aqui
alg u m a s su g estõ es sobre os d ife re n te s tip o s de segredos, pois q u e a
q u e b ra de tip o s d ife re n te s d e s e g re d o am e aç ará o d ese m p e n h o de
m o d o s d iferen tes. Os tip o s aq u i e n u m erad o s assen tam na fu n ç ã o que
o seg red o d esem p en h a e na re la ç ã o do seg red o c o m a m an eira co m o
os o u tro s co n ceb em o seu d e te n to r; adm ito, por o u tro lado, que q u a l­
q u e r seg red o co n c re to p o d erá re p re se n ta r m ais do q u e um só tip o de
seg red o s.
Hm p rim eiro lugar, há a q u ilo a q u e por v ezes c h a m a m o s segredos
“ in c o n fe ssá v e is” . E stes re fe re m -s e a factos rela tiv o s à eq u ip a, q u e
e la c o n h e c e e e sc o n d e , se n d o in c o m p a tív e is c o m a im a g e m d e si
170 E rving Goffman

p ró p ria q u e a e q u ip a te n ta s u s te n ta r p e ra n te a su a a u d iê n c ia . O s
seg red o s in v io láv eis são. sem dú v id a, seg red o s duplos: um seg red o c
0 p ró p rio facto e sc o n d id o e outro é o facto de certos fa cto s de im ­
p o rtâ n c ia d e c isiv a n ã o te re m sid o a b e rta m e n te d e c la ra d o s. O s se­
g red o s in co n fessáv eis foram a b o rd ad o s no C a p ítu lo T. na p a rte que
se- refere à fa lsa ap resen tação .
Hm se g u n d o lugar, há aq u ilo a que p o d eríam o s c h a m a r segredos
“ e s tra té g ic o s ”. E ste s re fe re m -se às in ten çõ es e q u a lid a d e s de um a
e q u ip a que as e sc o n d e d a su a au d iê n c ia a fim de a im p e d ir d e se
a d a p ta r c o m e fic á c ia ao esta d o d e co isas que a eq u ip a p la n eia susci-
tar. 0 > seg red o s estratég ico s são os u tilizad o s, p o r ex em p lo , no m un­
d o dos n eg ó cio s e m ilitar na altu ra em que se d elin eiam as linhas da
a c ç ã o fu tu ra c o n tra o s c o n c o rre n te s ou in im ig o s. E n q u a n to u m a
e q u ip a não p re te n d e ser o g én ero de e q u ip a q u e n ão tem segredos
estra té g ic o s, os seus seg red o s estra té g ic o s não precisam d c se r in ­
co n fe ssá v e is. C o n tu d o , d ev e n o tar-se que. m esm o quan d o os se g re ­
dos estratég ico s de u m a e q u ip a não são se g re d o s in c o n fessáv eis, a
quebr;; ou rev elação d e sse s seg red o s co n tin u a a p e rtu rb a r o d e se m ­
p en h o d a eq u ip a, um a v ez q ue e sta se vê d e sú b ito e in e sp e ra d a m en ­
te n u m a situ ação e m q u e é inútil e d isp aratad o m a n ter as cautelas,
re se rv a s e am b ig u id ad es estu d ad as ex ig id as pela sua actu ação antes
da q u eb ra dos seg red o s em cau sa. D ev e acrescen tar-se tam bém que
os se g re d o s m e ra m e n te estratég ico s são m uitas vezes aq u eles que a
e q u ip a m ais tard e e fo rçad a a revelar, um a vez c o n su m a d a a acção
p re p a ra d a em .segredo — pelo co n trário , o s seg red o s in co n fessáv eis
ex ig e m um e sfo rç o d e stin a d o a m an tê-lo s d efin itiv am en te secreto s.
D o m e sm o m odo. a in fo rm ação c m u itas vezes reservada n ã o dev id o
à su a re le v â n c ia e stra té g ic a actu al, m as p o r se p en sa r que poderá vir
a ter m ais tarde esse tip o d e relev ân cia.
F.rri terceiro lugar, h á a q u ilo a que ch am arei o s seg red o s " in te r­
n o s ” . S ão os s e g re d o s c u jo c o n h e c im e n to a ssin a la u m in d iv íd u o
co m o m e m b ro dc um g ru p o e c o n trib u i p ara q u e o g ru p o se sinta
se p arad o a d iferen te em relação ao s q u e “n ã o sa b e m " .1 O s segredos
in te rn o s c o n fe re m u m c o n te ú d o in te le c tu a l o b je c tiv o à d is tâ n c ia

1 Cf. a analise dc Kiesnian do “adivinho interno” , op dr.. pp. 199-209.


A Apresentação do Liu na Vida de Todos os Dius 171

s o c ia l su b je c tiv a m e n te se n tid a . N u m c o n te x to so c ia l d a d o , q u a se
to d a a in fo rm a ç ã o q u e lhe c o rre s p o n d e te m q u a lq u e r c o is a d e s ta
fu n ç ã o de e x c lu sã o , p o d e n d o , p o r isso, scr c o n sid e ra d a co rn o não
perten c e n d o esp e c ia lm e n te a n in g u é m .
O s se g re d o s in te rn o s p o d e m s e r de red u zid a im p o rtâ n c ia e stra ­
tégica e podem não ser e s p e c ia lm e n te incon fessáveis. Q u an d o é esse
o c a so , e s s e s s e g re d o s p o d e rã o s e r re v e la d o s ou q u e b ra d o s a c i­
d e n ta lm e n te sem p ertu rb ação p ro fu n d a do d e se m p en h o da eq u ip a ; os
ac to re s só terão que tra n sfe rir p a ra outro tem a o seu p ra z e r sec re to .
S e m d ú v id a , os se g re d o s e s tra té g ic o s e/o u in c o n fe ssá v e is p o d e m
fu n c io n a r de m odo e x tre m a m e n te ad e q u a d o c o m o seg red o s internos,
e v em o s, de facto, q u e a q u a lid a d e estratég ica o u in co n fessáv el do s
seg red o s é m u itas vezes e x a g e ra d a p o r essa m esm a razã o . H c u rio so
n o ta r q u e o s líd e re s d e u m g r u p o social se v ê e m fre q u e n te m e n te
c o n fro n ta d o s co m um d ile m a a re s p e ito dos se g re d o s e stra té g ic o s
re le v a n te s . O s m e m b ro s d o g r u p o q u e n ã o s ã o p o s to s a p a r d o
seg red o se n te m -se ex clu íd o s e o fe n d id o s q u a n d o este ú ltim o acab a
p o r s c r q u e b ra d o ; p o r o u tro la d o , q u a n to m a io r f o r o n ú m e ro de
p esso as a c o n h e c e r o seg red o , m a is provável é q u e este seja — in­
ten cio n al ou in v o lu n tariam en te - revelado.
O c o n h e c im e n to q ue u m a e q u ip a pode ter d o s seg red o s d e o u tra
fo rn ec e -n o s o critério q ue d e fin e o u tro s d o is tipos. Hm p rim e iro lu­
gar, h á o s ch am ad o s seg red o s “ c o n fid e n c ia is". T rata-se de u m se g re ­
do que o seu d e te n to r d ev e g u a rd a r pois a isso o vin cu la a su a rela ­
ção co m a eq u ip a a que o se g re d o sc refere. Se um in d iv íd u o a q u e m
é c o n fia d o o segred o fo r a p esso a q u e diz ser. íerá q u e g u a rd ar o se ­
g redo, ain d a q ue este não se re fira à sua pessoa. A ssim , p o r e x e m ­
plo, se um ad v o g ad o re v e la r o s p ro ced im en to s incorrectos dos seus
c lie n te s , fic a rã o a m e a ç a d o s d o is d e se m p e n h o s b asta n te d ife re n te s
um do o u tro : a e x ib ição da in o c ê n c ia do clien te perante o trib u n al e a
ex ib içã o da relação de c o n fia n ç a ex isten te entre o a d v o g a d o e o seu
clie n te . D ev e n o ta r-se ain d a q u e o s seg red o s e stra té g ic o s de um a
eq u ip a, in co n fessáv eis ou não. s e rã o p rovavelm ente se g red o s d etidos
a títu lo co n fid en cial p elos m e m b ro s da eq u ip a, um a v ez que ca d a um
d eles te n d e rá p o r ce rto a a p re se n ta r-s e perante os seus c o m p an h eiro s
d e eq u ip a co m o alguém leal a to d o o conjunto.
172 Erving Cioffman

O se g u n d o lipo dc in fo rm ação ac e rc a d o s seg red o s alheio? pode


ser d ito “fa c u lta tiv o ” . U m seg red o facu ltativ o é o seg red o q u e urna
pesso a co n h e c e de o u tra e q ue p o d eria re v e la r sem d e sm e n tir a im a ­
gem q u e de si p ró p ria exibe. U m a p esso a p ode to rnar-se d eten to ra de
s e g re d o s fa c u lta tiv o s d e s c o b rin d o -o s p o r si. g ra ç a s a q u e b ra s de
seg red o in v o lu n tá ria s, a in d iscriçõ es, a c o m u n icaçõ es repetidas, cie.
Em term os g erais, d ev em o s a c e ita r q u e os seg red o s co n fid en ciais ou
facu ltativ o s d e um a d a d a eq u ip a p o d erão ser segredos in co n fessáv eis
ou e stra té g ic o s d e ou tra. e. p o r isso. u m a e q u ip a cujos segredos d e ci­
sivo s sejam detidos p o r terceiro s te n ta rá o b rig a r os d eten to res desses
se g re d o s a tra tá -lo s c o m o se o s p o ssu íssem a títu lo c o n fid en c ia l e
n ão facultativo.
E s te c a p ítu lo o c u p a -se dos tip o s d e p e sso a s q u e d e sc o b re m os
se g re d o s de u m a e q u ip a e d as b a se s c risc o s da sua p o sição p riv ile­
giada. C o n tu d o , an tes de p ro sseg u ir, d e v em o s d eix a r bem c la ro que
nem to d a a in fo rm ação d e stru tiv a co n siste em seg red o s c que o c o n ­
tro lo d a in fo rm a ç ã o im p lica m u ito m ais do que a sim p les g u ard a dos
s e g re d o s . P o r e x e m p lo , cm lig a ç ã o co m q u ase to d o s o s tipo* de
d ese m p e n h o p arece ex istirem fa c to s in co m p atív eis co m a im p ressão
v isa d a p e lo d e se m p e n h o , m as q u e n ã o fo ra m re c o lh id o s n e m o r­
gan izad o s de form a u tilizáv el p o r ninguém . A ssim , u m jo rn a l sin d i­
cal p ode te r tão p o u co s le ito re s q u e o seu d irecto r, re ce an d o peio
ca rg o , se o p o rá a um lev an tam en to p ro fissio n al d o n ú m ero dc leito­
re s. g a ra n tin d o d e ssa m a n e ira a im p o s s ib ilid a d e da p ro d u ç ã o de
provas q ue d e m o n stre m seja a q u em fo r a in eficácia d o seu trab a ­
lh o 2. Tais sã o o s seg red o s laten tes, e os p ro b lem as im p lica d o s pelo
g u a rd a r se g re d o são b astan te d ife re n te s d o s p ro b lem as im p lica d o s
p e la acção q u e visa c o n se rv a r laten tes os se g re d o s la ten te s. O utro
e x e m p lo de in fo rm a ç ã o d e s tru tiv a q u e não se m a te ria liz a em se ­
gred o são os c aso s d e g esto s in v o lu n tário s, com o os que atrás refe­
rim o s. E ssas o co rrên cias in tro d u zem u m a in fo rm a çã o — um a d e fi­
nição d a situ a ç ã o — q ue é inco m p atív el com as a firm açõ es d e clara ­
d as p e lo s a c to re s , m as n em p o r isso c o n s titu e m se g re d o . A p re ­
v e n ç ã o d e s ta s o c o rrê n c ia s e x p re s s iv a m e n te in a d e q u a d a s im p lic a

2 Citado por W ilcnsky. op. cii.. Cap. VII,


A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Días 173

tam b ém u m a fo rm a d e c o n tro lo íla in fo rm ação , m as n ão a a b o n lo re ­


m os neste c ap ítu lo .
P era ti te um d ad o d e se m p e n h o to m a d o co m o ponto de referên cia,
d istin g u im o s trê s p ap éis d e c is iv o s ein torm os de fu n ç ão : o d o s in­
div id u o s q u e d e se m p e n h a m ; o d a q u e le s p a ra quem é rep re se n ta d o o
d esem p en h o ; e o dos estran h o s q u e não d e se m p e n h am nem a ssistem
ao d esem p en h o . P o d e m o s d istin g u ir tam bém estes p ap éis de b ase a
p a rtir d a in fo rm a ç ã o em g e ra l a c e s s ív e l à q u e le s que os d e se m p e ­
nham . O s acto res tem c o n sc iê n c ia d a im pressão q u e visam su scita r e
h a b itu a lm e n te p o ssu e m tam b ém in fo rm a ç õ e s d e stru tiv a s a c e rc a d a
e x ib iç ã o . A a u d iê n c ia s a b e o q u e lh e é p e r m itid o o b s e r v a r , e
c o m p le ta -o co m os elem en to s q u e d e fo rm a n ã o oficial u m a atenção
m ais ap licad a lhe p o d erá p ro p o rcio n ar. N o essen cial, os e sp ec tad o res
c o n h e c e m a d e fin iç ã o d a situ a ç ã o que os a c to res visam , m as não
p o ssu em info rm açõ es d e stru tiv a s a esse resp eito . O s estran h o s não
c o n h e c e m n em o s s e g re d o s d o d e s e m p e n h o n em a im p re ssã o de
re a lid a d e q u e ele visa. P o r fim . os três p apéis d e c isiv o s m en c io n ad o s
p o d e r ia m s e r d e s c r ito s s e g u n d o a s re g iõ e s a q u e te m a c e s s o o
ind iv íd u o q u e o s d esem p en h a: o s actores surgem nas regiões de fa­
c h a d a e de b astidores; os e sp e c ta d o res, apenas na reg ião d e fachada;
e os estran h o s são ex clu íd o s de am b a s as reg iõ es. D ev e notar-se. por
co n se g u in te , q u e d u ra n te o d e se m p e n h o e sp e ra re m o s d e te c ta r um a
co rre la çã o en tre função, in fo rm a ç ã o disponível e re g iõ es acessív eis,
de tal m a n e ira q u e , p o r ex em p lo , se so u b e rm o s a q u e reg iõ es tem
a c e s s o um in d iv íd u o , s a ib a m o s q u e p ap el d e s e m p e n h a e de que
in fo rm açõ es d isp õ e acerca do d esem p en h o .
T odavia, na prática, a c o n g ru ê n c ia en tre a fu n ção, a in fo rm açã o
d e lid a c as regiões acessív eis ra ra m e n te é perfeita. O u tro s p o n to s de
o b s e r v a ç ã o d o d e s e m p e n h o , q u e e n t r e t a n t o se c o n s t i t u e m ,
co m p lic a m q u a lq u e r relação d ire c ta entre fu n ção , in fo rm aç ão e lu­
g ar. A lg u n s d e s te s p o n to s d e o b s e rv a ç ã o c a r a c te r ís tic o s sã o a s ­
su m id o s c o m ta n ta fre q u ê n c ia e o seu relev o em term o s d e d e se m ­
p en h o c tão cla ro que os p o d em o s referir tam b ém c o m o pap éis, e m ­
b o ra . p o r re fe rê n c ia a o s trê s p a p é is d e c is iv o s , p a re ç a p re fe rív e l
c h a m a r-lh e s p a p é is d is c o rd a n te s . T ra ta re m o s a q u i d e a lg u n s d o s
casos m ais d isco rd an tes d esta fig u ra.
174 Hrvius Got']man

T alvez os papéi.s d isco rd an tes m ais c la m o ro so s sejam os que in­


tro d u zem u m a p esso a em d ad o co n tex to .social sob u m a fa lsa apa­
rência. 0 q ue p ode a c o n te c er d e v árias form as.
T em os, em p rim e iro lugar, o papel d o “in fo rm a d o r'. O info rm ad o r
é um in d iv íd u o q u e p re te n d e , ju n io d o s a c to re s , s e r m e m b ro d a
equipa, e a u to riza d o a p e n e tra r nos b astid o res e a í ad q u ire a in fo r­
m a ç ã o d e s tru tiv a q u e , d e p o is, a b e rta ou se c re ta m e n te , re v e la aos
e s p e c ta d o r e s a c e rc a d a e x ib iç ã o em c a u s a . S ã o c é le b re s a lg u n s
ex e m p lo s de v arian tes p o lític a s, m ilitares, in d u striais e crim in o sas
d este papel. Q u an d o se d e sco b re q u e o in d iv íd u o em cau sa com eço u
p o r se in te g ra r na e q u ip a com sin c e rid a d e , sem d e a n te m ã o trazer
co n sig o o plano p rem ed itad o dc d e sv e n d a r os seu s seg red o s, cham a-
-se -lh e p o r v ezes traidor, v ira-easacas ou d eserto r, so b re tu d o se se
tra ta r d o tip o de p esso a q u e p o d e ria te r sid o um c o m p a n h eiro leal.
A o in d iv íd u o q u e, d esd e sem p re, ten cio n o u re v e la r os se g re d o s da
eq u ip a c n e la se in teg ro u em v ista d e sse fim , c h a m a -se p o r vezes
e sp iã o . T em sid o re p e tid a m e n te o b s e rv a d o q u e os in fo rm a d o re s,
sejam traid o res ou e sp iõ e s, se e n c o n tra m m u itas vezes n u m a posição
e x c e le n te p ara fa zerem jo g o d u p lo , v en d en d o os seg red o s daqueles
q u e lhe c o m p ra m o u tro s se g re d o s. O s in fo rm a d o re s p o d e m , sem
dú v id a, ser o b je c to de o u tro s g é n e ro s de classificação : com o H ans
S p e ic r in d ic a , a lg u n s são tre in a d o s p ro fis s io n a lm e n te p a ra a sua
tarefa, o u tro s são am ad o res; alg u n s são de e lev ad a co n d ição so cial,
o u tro s d c co n d ição subalterna: a lg u n s tra b a lh a m por d in h e iro , outros
p o r c o n v ic ç ã o /
E rn se g u n d o lugar, há o papel d e “cú m p lice". O cú m p lic e é um in­
d iv íd u o q ue actua co m o se fo sse um m em b ro q u a lq u er d a audiência,
m as estan d o , na realid ad e, c o m b in ad o co m o s acto res. De m odo c a ­
rac te rístic o , o c ú m p lic e fo rn ece à au d iên cia um m o d e lo visível da
esp é c ie d c re s p o s ta q ue os a cto res v isa m ou fo rn e ce a c sp é c ie de
resp o sta p o r parte da a u d iê n c ia que 6 na altu ra n e cessária p ara que o
d e se m p e n h o prossiga. A s d e sig n a ç õ e s “ falso e s p e c ta d o r' e “c laq u e ",
u sad as no m u ndo d o s e sp ectácu lo s c d a s d iv ersõ es, en traram j á no

: Hans Speiür, Social O rder a n d t¡w Risks o f War. The Free Press. G lcncoc. 1952.
p. 264.
A Apresentação do Liu na Vida dc Todos os Dias 175

uso c o rre n te . A n o s sa a v a lia ç ã o d o p ap el e m c a u s a p ro v é m sc m


d ú v id a d o s a m b ie n te s d a fe ira , e a s d e fin iç õ e s se g u in te s in d ic a m
bem a o rig em d o co n ceito :

“Slick" (cham ariz), su b st. In d iv id u o — p o r v ezes. um co m p a rsa


local — p ago pelo d o n o dc u rna set-joint [b arraca de jo g o ] para
c o n se g u ir alg u n s p rem io s v isto so s que in d u z a m o s c irc u n sta n te s n
a p o sta r. Q u a n d o o s “ e s p e r ta lh õ e s ” | g en te d a te rra ] c o m e ç a m a
jo g a r p o r su a c o n la . o s chamarizes, são m andados em b o ra e e n ­
treg am os p rém io s a um e s tra n h o que a p aren tem en te n ad a tem a
v e r co m o jo g o .4
“ Shillahar" {falso espectador), subst. E m p reg a d o d o circ o q u e
c o r r e p a ra a b i l h e te i r a d e u m e s p e c tá c u lo p a ra c r ia n ç a s no
m o m en to p sico ló g ico e m q u e o p reg o eiro co n clu i a sua tirad a. Rle
c o s s e u s c o m p a n h e iro s d e c la q u e c o m p ra m b ilh e te s e e n tra m
en q u a n to a m assa de h ab itan tes lo cais q u e o u v ia o a n ú n cio do es
p cc lá c u lo n ã o tard a a im itá -lo s.5

N ão d ev em o s fic a r co m a id eia d e q ue só ap arecem c ú m p lic e s em


d e se m p e n h o s m en o s re sp e itá v e is (e m b o ra ta lv e z sejam a p e n a s os
cú m p lic e s m enos re sp e itá v e is q u e d e se m p en h am o seu papel de m a­
n e ira s is te m á tic a e sem a lim e n ta re m ilu s õ e s p e s s o a is a e s s e res­
p e ito ). P o r e x e m p lo , d u ra n te u m a c o n v e rsa in fo rm a l e n tre v á ria s
pesso as, é habitual q u e a m u lh e r p areça in teressad a e n q u an to o m a­
rido co n ta u m a h istó ria, a ju d a n d o -o com d eix as e sinais, e m b o ra de
fa c to j á te n h a o u v id o a h is tó r ia v e z e s sem c o n to e s a ib a q u e a
ex ib ição q u e o m arido su sten ta c o m o quem c o n ta aq u ilo tudo pela
p rim e ira vez é a p en as isso m e s m o . Um c ú m p lic e é . p o rta n to , um
ind iv íd u o que a p aren ta se r ap e n a s m ais um m em b ro co m u m d a au ­
d iê n c ia e que se serv e d a sua p re p a ra çã o n ão rev elad a c m b en efício
da eq u ip a q ue en cen a u m d e se m p e n h o .
C o n sid erem o s a g o ra o u tro tip o d e im postor, co lo c ad o en tre o s e s­
p e cta d o re s, m as q u e se serv e de u m a p rep aração não re v e la d a em

4 David Maurer, "('arnival ('a m ". A m erican Speech. VI. p. .136.


P. W. White. “A Circus I .i s f . Am erican Speech. I. p. 28.1.
176 Erving Güffniatj

b en efício d a au d iê n c ia e não d o s actores. Um ex em p lo d esta figura


p o d e ser o da p esso a q u e 6 p a g a p ara p ô r à prova os critério s ad o p ­
ta d o s p e lo s a c to re s a fim d c g a ra n tir q u e. so b c e rto s a sp e c to s, as
a p arên cias visad as não se afastarão ex cessiv am en te d a realidade. O
in d iv íd u o a c tu a , a títu lo o fic ia l ou n ã o o fic ia l, c o m o a g e n te de
p ro te c ç ã o d o p ú b lico q u e n ão su sp eita d e nada, d e se m p e n h a n d o o
papel de e sp e c ta d o r co m m ais a ten ção e rig o r étic o do q u e o s es­
p ectad o res com uns.
P o r v ezes estes ag en tes in terv êm de m odo d ecla ra d o , prev en in d o
a n te c ip a d am e n te o s acto res e co m u n ic a n d o -lh es q u e o seu p róxim o
d esem p en h o s e rá o b jecto de e x am e. A ssim , os a c to res e strea n les ou
os in d iv íd u o s acab ad o s de d e te r pela p o lícia são p re v en id o s d e que
tu d o o que d isserem p o d erá s e r u tilizad o c o n tra eles. U m o b serv ad o r
p articip an te q ue ad m ite desd e o início os seus o b jectiv o s fa c u lta aos
a c to re s que estu d a um av iso d o m esm o leor.
P o r vezes, no e n ta n to , o ag ente tra b a lh a c la n d e stin am en te e. ac ­
tu an d o co m o q u a lq u e r o u tro m em b ro in g én uo d a a u d ien cia, fornece
a o s a c to re s a c o rd a c o m q ue eles p ró p rio s se en fo rc a m . P o r re fe ­
rê n c ia às o c u p a ç õ e s de to d o s os dias, os a g en tes que não se idem ifi
cam sã o m u itas vezes ch a m a d o s “ b u fo s” , corno aqui farem o s, e lor-
n a m -s c c o m p re e n s ív e lm e n le a lv o s d a h o s tilid a d e a lh e ia . É o que
a c o n te c e q u a n d o a v e n d e d o ra d e s c o b re q ue foi m a l-h u m o ra d a e
p o u c o c o rtê s para c o m um c lie n te q u e a c a b a p o r se re v e la r com o
sen d o , n a re a lid a d e , um a g e n te da e m p re sa para que e la tra b alh a ,
e n c a rre g a d o d e f is c a liz a r o m o d o c o m o são tra ta d o s os c lie n te s
co m u n s. O u q u a n d o um m erceeiro d esco b re que vendeu alg u n s arti­
g o s a c im a d o p re ç o legal a c lie n te s q ue são a fin a l in sp e c to re s de
p reço s e se en co n tram peran te ele n u m a p o sição de a u to rid ad e. O s
e m p re g a d o s d o s c a m in h o s d e fe rro c o n fro n ta m -se co m o m e sm o
problem a:

O u tro ra o c o b ra d o r do co m b o io p o d ia e x ig ir respeito p o r parte


d o s p a s s a g e ir o s ; a g o r a um « b u fo » p o d e d a r c a b o d e le se se
e s q u e c e r d e tir a r o b o n é a o e n tr a r n u m a c a r r u a g e m o n d e há
sen h o ras o u n ão e x ib ir a su b serv iên cia u n tu o sa que a im p o rtân cia
c re sc e n te d o estatu to so cial, a difusão d o s p a d rõ e s eu ro p eu s e a at-
A Apresentação do liu na Vida de Todos os Dias 177

m o sfera dos hotéis, b em c o m o a co m p etição com outros m eio s de


tran sp o rte, ex ig em que ele a s s u m a .6

D o m e sm o m odo, u m a m u lh e r d a vida p o d erá c h e g a r à co n clu são


de q u e o e n c o ra ja m en to d a a u d iê n c ia , de q ue b en eficio u n a s fases
in ic iais d a su a p rática de ro tin a, foi o resu ltad o d a in te rv en ç ão de um
ch ulo q u e e ra na re a lid a d e u m p a tr ã o \ e a p o ssib ilid a d e sem p re
presen te de rep etição d essas c irc u n stâ n c ias to rn a-se m ais ca u telo sa
p e r a n te u m p ú b lic o e s tr a n h o , s e n d o p o s s ív e l q u e is s o v e n h a a
p re ju d ic a r a su a actuação .
D ig a-se d e p assagem que d e v e m o s d istin g u ir cu id ad o sam en te o s
b u lb s p ro p riam en te ditos de o u tro s q ue actu am p or conta pró p ria, c a
q u e é freq u en te d a rm o s o n o m e de “d en u n cian tes” 011 “d ela to re s".
E stes ú ltim o s não p o ssu em o c o n h e c im e n to dos b a stid o re s q u e d e ­
cla ra m possu ir, nem se e n c o n tra m investid o s p ela lei ou p e lo c o s­
tum e da tarefa de rep resen tar o s in teresses da au d iência.
H oje h ab itu ám o -n o s a p e n sa r n o s agentes que fiscalizam os c ri­
térios de um d e sem p en h o e os a c to re s {declaradam ente ou sem a v iso
p ré v io ) c o m o p a rte in te g ra n te d a o rg a n iz a ç ã o d a s p re s ta ç õ e s de
se rv iç o s, e esp e c ia lm e n te c o m o p a rte in teg ran te do c o n tro lo so cial
q u e as o rg an izaçõ es g o v e rn a m e n ta is exercem em b e n e fíc io d o c o n ­
su m id o r 011 d o co n trib u in te. M u ito freq u en tem ente, no e n tan to , esta
e s p é c ie d e tra b a lh o in te rv é m n u m c a m p o s o c ia l m a is v a s to . O s
g a b in e te s de h e rá ld ic a e o s g a b in e te s de p ro to c o lo sã o e x e m p lo s
fa m ilia re s, u m a v ez q u e re p re s e n ta m o rg a n iz a çõ es que fu n cio n a m
para p ro tecção d o s m em b ro s d a n o b re z a ou dos altos fu n cio n á rio s,
d is tin g u in d o -o s d o s q u e f a ls a m e n te se p re te n d e m a ris to c ra ta s d e
sa n g u e ou d e ten to res de um e s ta tu to oficial superior, e p o n d o estes
últim o s n o d ev id o lugar.
P o d e m o s ain d a en co n trar e n tre os esp ectadores o u tra perso n ag em
d ig n a d e interesse. T rata-se de u m a pessoa q u e o c u p a um lu g ar a p a ­
gado, m odesto, e q ue a b a n d o n a a s instalações ao m esm o tem p o que

6 W . Fred Cottrell. The Railroader.; Stanford University Press. Stanford. ¡94U. p. 87.
^ J. M. M urtach e S;ir.i H arris. C a st th e h irst Stone. P ocket B ooks. C ardinal
Edition. Nova Iorque, I95S. p. 100: pp. 225-30.
178 F.rvine Golínia-i

os o u tro s e sp e c ta d o re s o fazem , m as para ir te r c o m o p atrão , um


c o n c o rre n te d a e q u ip a c u jo d e se m p e n h o p re se n c io u . co n ta n d o -lh e
aq u ilo que lev e en sejo de ver. T ra ta -se d o c o m p ra d o r profissio n al -
do hom em d a G im bel na M acy e do hom em d a M ac y na G im beJ: é o
esp iã o das p a ssa g e n s de m odelos e o e stran g eiro que com p arece no
N ational A ir M eets. O clicn le profissional é um ind iv íd u o que possui
te c n ic a m en te o direito d e a ssistir à ex ib iç ã o , rnas q u e . seg u n d o um a
o p in iã o rnuilo g en eralizad a, d e v e ria ter a d e c e n cia de se lim itar ä re ­
g iã o d a s tr a s e ir a s d o se u p r ó p r io d e s e m p e n h o , u m a v e z q u e o
interesse que tem na e x ib iç ã o obed ece a u m a p ersp ec tiv a distorcida,
ao m esm o tem p o m ais a n im a d a e m ais fa stid io sa d o q u e a adoptada
por um e sp e c ta d o r leg ítim o .
O u tro p a p e l d is c o rd a n te é o d o in d iv íd u o c h a m a d o “ in te r m e ­
d iá rio " ou “ m ed iad o r” . ( ) in term ed iário in fo rm a-se d o s seg red o s de
am b a s as partes, d an d o a cad a um a d e la s a im pressão de q u e es lá
d is p o s to a g u a rd a r e s s e s s e g re d o s; m as ao m e sm o te m p o le n d e a
sug erir a cad a um a d as m esm as p artes a fa ls a im p ressão d e que lhe é
m ais leal d o q ue à ou tra. P o r vezes, c o m o a c o n te ce c o m o á rb itro de
c e rto s c o n flito s lab o rais, o m e d ia d o r fu n c io n a rá c o m o um in stru ­
m ento p o r m eio d o q u al d u as eq u ip as o b rig ato riam en te in im ig as po­
d e rã o c h e g a r a um a c o rd o v a n ta jo so para am b as. P o r vezes, c o m o
ac o n te c e c o m o a g e n te te a tra l, o in term ed iário fu n c io n a rá c o m o o
in stru m en to a tra v é s d o qual ca d a um a das p arles re ceb erá u m a ver­
são d is to rc id a a re s p e ito d a o u tra, c a lc u la d a de m a n e ira a to rn a r
possív el u m a relação m ais p ró x im a e n ire am b as. Por v ezes, corno no
caso do casam en teiro , o in term ed iário se rv irá c o m o m eio de tra n s­
m issão d as p ro p o sta s dc a p ro x im a ç ã o de u m a parte à o u lra parle,
p r o p o s ta s e s s a s q u e , c a s o f o s s e m e x p lic ita m e n te f o r m u la d a s ,
suscitariam um a rejeição ou aceitação co m p ro m eted o ra.
Q u an d o o in term ed iário actu a na presença e fec tiv a d as d u a s e q u i­
pas dc q u e c m em b ro , a ssistim o s a urna re p rese n tação prodigiosa,
q u e n ã o d eix a de e v o c a r o e sp ectácu lo dc um hom em que ten ta d e ­
sesp erad am en te d isp u ta r co n tra si p róprio u m a p artid a de ténis. U m a
v e / m ais. so m o s forçad o s a c o n c lu ir q u e a u nidade natural d o nosso
e x a m e não é o indiv íd u o , m as antes a e q u ip a e os seu s m em b ro s. D o
ponto de vista in d iv id u al, a a c tiv id a d e d o in te rm e d iá rio é in só lita.
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 179

i n s u s te n t á v e l c d e s p r o v i d a d e d i g n i d a d e , o s c ila n d o e n tr e u m
c o n ju n to d e a p a rê n c ias e le a id a d e s e outro co n ju n to de Icaklades e
ap a rê n c ias. E n q u a n to parte in te g ra n te de d u a s eq u ip a s, a o sc ila ç ã o
do in term ed iário to m a -se b a sta n te inteligível. O in term ed iário pode
s e r e n carad o m u ito sim p le sm e n te c o m o um dup lo cú m plice.
A lg u m a s in v e s tig a ç õ e s r c c c n te s so b re a s fu n ç õ e s d o c a p a ta z
ilu stra m b e m c e rto s a sp e c to s d o papel d e s e m p e n h a d o p e lo in te r­
m e d iá rio . E ste tem n ã o só q u e e n d o s s a r o b rig a ç õ e s d c d irig e n te ,
o rien tan d o a e x ib ição d a p ro d u ção p eran te a au d iê n cia d o s a d m in is­
tra d o res, c o m o ain d a de tra d u z ir o q ue sabe e o que os esp ectad o res
vêem em te rm o s v erb ais a c e itá v e is tanto p ela su a c o n sc iê n c ia c o m o
pelos espectadores.** O u tro e x e m p lo do papel de in te rm e d iário é o do
p r e s id e n te d e u m a a s s e m b le ia f o rm a lm e n te re u n id a . A s s im q u e
ch am a a a ten ção d o g ru p o e a p re s e n ta o o ra d o r q ue to m ará a p alavra,
esp era-se que passe a fu n c io n a r c o m o m odelo visível o fe rec id o aos
re sta n te s p re se n te s, ilu stra n d o p o r m eio de e x p re ssõ e s liv re m e n te
ex ag erad as o in teresse c a c o n sid e ra ç ã o que os o utros e sp ectad o res
d ev em e x ib ir tam b ém , e fo rn e c e n d o -lh es an te c ip a d am e n te as deix as
qu e in d icam co m o d e te rm in a d a s p alav ras d ev erão ser sau d ad as por
u m a a titu d e de g rav id ad e, p o r g a rg a lh a d a s ou riso s ab afa d o s. O s o ra­
d o re s d is p õ e m - s e a a c e ita r o c o n v ite p a r a fa la re m p e ra n te um a
au d iên c ia na c o n v icção de q u e o p resid en te "to m ará c o n ta " d o s e s­
p e c ta d o re s , o q u e e le fa rá tr a n s f o r m a n d o - s e . c o m o v im o s, n u m
o u v in te -m o d e lo e co n firm a n d o a o m áxim o a ideia seg u n d o a q u al o
d is c u r s o q u e e s tá a s e r p r o f e r i d o é r e a l m e n te im p o r ta n te . O
d esem p en h o d o p resid en te é e fic a z em parte porque o s e sp ectad o res
se se n te m o b rig a d o s p e ra n te e l e . v in c u la d o s p e la o b r ig a ç ã o de
c o n firm a re m q u a lq u e r d e fin iç ã o d a situ a ç ã o q ue te n h a o se u p a ­
trocínio . o que e q u iv ale a dizer, e m resum o, que ad o p tarão a m esm a
atitude de o u v in tes que ele fe?, su a . A incu m b ên cia d ram a tú rg ie a dc
g a ra n tir q ue o o rad o r p areça se r a p re c ia d o e q u e o s o u v in tes p a re ç a m
interessad o s n ão é. in d u b ita v e lm e n te , fácil, e m u itas vezes não deixa
ao p re s id e n te d a se s s ã o a m ín im a o c a siã o d e p e n s a r n a q u ilo que
o ste n siv a m e n te está a ouvir.

k V e r Roethlisriergcr, op. d:.


Erving Cíofi'niac.

O papel d c in term ed iário p arece ser de p articu la r im p o rtân cia na


in teracção lig a d a ao c o n v iv io in fo rm al, d estacan d o -so aqui, u rn a vez
m ais. a u tilid ad e d e a b o rd a g e m em term o s de d u as eq u ip as. Q uando
u m in d iv íd u o in te g ra d o n u m g ru p o d e c o n v e rs a ç ã o c o m e ç a um a
acção ou discur.so q ue o b tém a aten ção c o n ju n ta do s outros presen-
les, e stá a d e fin ir a situ ação , e p o d e rá fazê-lo de um m odo que nào
p a re ç a fa c ilm e n te adm issível à audiên cia. U m dos p resen te s poderá
en tão sen tir m aio r resp o n sab ilid ad e peran te ele e para co m ele, po
d erá se n ti-la em grau su p e rio r aos o u tro s circu n stan tes, e é previsível
que. e sta n d o m ais p ró x im o d o in divíduo q u e fala, se esforce p o r tra ­
d u z ir as d ife re n ç as cn lre o o ra d o r c os q u e o escu ta m seg u n d o um a
fo rm a c o le c tiv a m e n te m a is a c e itá v e l d o q u e a p ro je c ç ã o o rig in al.
A lg u m tem p o d ep o is, q u a n d o o papel principal 6 assu m id o p o r outro
d o s circ u n sta n te s, h av erá p ro v av elm en te o utra p esso a para se e n c a r­
reg ar d o papel de in term ed iário ou m ediador. U m a se q u ên c ia de c o n ­
v ersas in fo rm a is p o d e. p o r c o n se g u in te , s e r co n sid erad a c o m o um
p ro cesso de co m p o siç ã o e reco m p o sição d e eq u ip as, e d e cria çã o e
re c ria çã o d o p ap el de interm ediário.
In d ic á m o s j á a lg u n s p a p é is d isc o rd a n te s: o in fo rm a d o r, o c ú m ­
p lice, o b u fo , o clien te ou c o m p ra d o r p ro fissional e o interm ediário.
Hm cad a u m d estes caso s, d esco b rim o s um a relação in esp erad a, não
m an ifesta en tre o p a p e l sim ulado, a in fo rm ação d e tid a e as regiões
d e acesso . H em cad a um dos m esm o s caso s, v em o -n o s peran te ai
g u é m que p articip a n a in teracção efectiv a entre os acto res e o s e s ­
p ectad o res. P o d e m o s e x a m in a r ag o ra um o u tro papel d isco rd an te, o
d a “ n ã o -p esso a” ; os in d iv íd u o s q u e d esem p en h am esse papel acham -
-se p resen tes d u ran te a in teracção , m as de certo m odo n ã o assum em
o p a p e l nem de acto r nem d e esp ectad o r, ao rnesm o te m p o que não
p re te n d e m (ao c o n trá rio dos info rm ad o res, cú m p lices e b u fos) ser o
q u e n ã o são 9.
T alv ez o tip o clássico d a não -p esso a seja, na nossa so c ied a d e, o
em p reg ad o dom éstico. E spera-se dele q ue seja u m a pessoa presente na
reg ião de fach ad a en q u an to o anfitrião representa o seu desem penho
de h o s p ita lid a d e p e ra n te o s q u e v isita m o seu q u a d ro de a c ç ã o .

^ Para um a abordagem mais desenvolvida, ver Goffman, op. n r.. Cap. XVI.
A Apresentação do Bu na Vida de Todos os Dias 181

E m b o ra sob c e ñ o s aspectos o c ria d o esteja, portanto, presente e faça


p a n e da e q u ip a d o anfitrião (co m o anteriorm ente estabeleci), .será até
certo ponto d efin id o tan to p elos a c to re s corn o p ela aud ien cia com o
alg u ém que não s e en c o n tra p re se n te . N o in te rio r dc alg u n s g rupos
p revê-se que o criado ten h a liv re acesso à reg ião dos bastidores, dc
acordo com a ideia de que não é n ecessário su sten tar perante ele q u a l­
q u e r im pressão. M rs. T rollope refere-n o s alguns exem plos:

A v erd ad e é q ue tiv e fre q u e n te m en te en se jo de o b se rv a r esta


h ab itu al in d iferen ça pelos e sc ra v o s. F alam deles, da su a co n d ição ,
das suas q u alid ad es, ou d o seu co m p o rtam en to , ex a c ta m en te co m
se e le s fo sse m in c a p a z es de o u v ir. C o n h e c i o u lro ra um a jo v e m
sen h o ra, q u e, q u an d o ficava à m e sa en tre u m hom em e u m a m u ­
lher. era levada pela m o d éstia a en costar-se à c ad e ira d a v iz in h a
do seu sex o a fim d e e v ita r a in c o n v e n iê n c ia do c o n tacto co m o
co to v e lo de um homem. P o is b em , vi em c e rta o casião a m esm a
jo v e m s e n h o ra a a p e r ta r o e s p a r tilh o c o m o m a is p e r f e ito ã-
- vo n tad e d ian te d e u m la c a io n eg ro . U m c a v a lh e iro d a V irgínia
co n to u -m e ig u alm en te q u e , d e s d e que ca sa ra , se h a b itu a ra a ter
u m a c ria d a negra a d o rm ir no m esm o q u a rto que ele pró p rio e a
esp o sa o cu p av am . P e rg u n te i-lh e para q u e p recisav a d e ssa p re se n ­
ça n o c tu rn a . “ M eu D e u s!” — foi a re sp o sta . — “ S e q u is e r um
co p o de ág u a d u ra n te a n o ite, q u e m m o irá b u scar'?"10

T ra ta -se d e um c a so e x tre m o . E m b o ra os c ria d o s h a b itu alm en te


ap e n a s sejam in terpelad o s q u a n d o se p reten d e a lg u m “se rv iç o ” d e ­
les. a su a p resen ça n u m a d a d a re g iã o d o d esem p en h o im p lica a lg u ­
m as restriçõ es p ecu liares q u a n to ao com p o rtam ento dos in d ivíduos
q u e se ach am p le n a m e n te p re s e n te s , c. ao q u e p a re c e , ta n to m ais
q u a n to m e n o r f o r a d is tâ n c ia s o c ia l e x iste n te e n tre o e m p re g a d o
d o m éstic o e aq u eles q u e serv e. N o caso de p ap éis a p a ren tad o s c o m o
d e e m p re g a d o d o m é stic o , q u e en c o n tra m o s n as no ssas so c ied a d es,
p o r cxcrn p lo , o papel de rap az d o elev ad o r ou d e m o to rista de táxi,

M rs. T ro llo p e, D o m estic M a n n ers o f the A m e ric a n s. 2 v o ls., W h ittak e r.


Trcachcr. Londres. 1832. II. pp. 56-57.
182 Erving Go finían

parece ex istir u rna incerteza d c am b o s os lados a c e rc a da relação e


do g énero de in tim id ad e p erm itid o s na p resen ça d a n ão -p esso a ern
cau sa.
A lém dos in d iv id u o s que d esem p en h am p apéis ap a re n tad o s co m o
do s e m p reg ad o s d o m éstico s, ex istem outras categorias p ad ro nizadas
de p esso as q u e p o r vezes, e sta n d o presen tes, são tratad as c o m o se o
nã o e stiv e sse m ; os m u ito no v o s, os m u ito v elhos e o s d o en tes são
ex e m p lo s ban ais. M ais ainda, vem o s h o je a u m en ta r o n ú m ero de um
co rp o de pessoal técn ico — esten ó g rafas, técnicos de rádio ou fele-
d ifu s ã o , fo tó g ra fo s, a g e n te s d a p o líc ia s e c re ta , etc. — q u e r e p re ­
sen tam um papel técn ico , m as não reg istad o p e la p ro g ra m aç ão , no
d e se n ro la r de ce rim ó n ia s relev an tes.
D ir-sc -ia q u e o p ap el de n â o -p e sso a s g e ra lm e n te a c a rre ta certa
m ed id a d c su b o rd in a ç ã o e u m a resp e ita b ilid ad e red u z id a, m as não
d ev em o s su b estim ar o grau em que a p esso a que o recebe ou o as­
su m e te m a p o s s ib ilid a d e d c o u tiliz a r c o m o d e fe s a . F d e v e m o s
a c r e s c e n ta r q u e se v e rific a m s itu a ç õ e s e m q u e o s s u b o rd in a d o s
acham q ue a ú n ica m aneira viável que têm d e lidar co m um sup erio r
é tra tá -lo c o m o se e le n ã o e s tiv e sse p re s e n te . A ssim , n a ilh a das
S h etlan d , q u an d o o m éd ico , que freq u en tara um a e sco ia pública bri­
tânico, visitava os seu s d oentes nas su as casas de ag ricultores pobres,
os h ab itan tes p o r vezes co n to rn av am a d ificu ldade do relacionam ento
com o m édico tratan d o -o . tia m ed id a do possível, com o se e le não es­
tivesse presen te. D o m esm o m odo. u m a eq uipa p o d e tra ta r um in­
divíduo co m o se ele n ão estivesse presente, m as fazendo-o não por
ser a c o isa m ais natural ou viável q ue é possível fa zer nas circu n stân ­
cias. m as c o m o urn m eio ad eq u ad o de ex p ressão de h o stilidade para
co m alguém c u jo c o m p o rta m e n to se afasto u do s m o d elo s c o n sid e ­
rados aceitáv eis. E m tais situações, o que im p orta m o strar na exibição
re p re se n ta d a é q u e o ex c lu íd o está a se r ig n o rad o , ao p a sso que a
activ id ad e d e se m p en h ad a em vista de m o strar i.sso m esm o p o derá ser,
cm si própria, um aspecto secundário.
C o n sid e rá m o s j á alg u n s tipos de p esso as que não são, n um a acep­
ção d ire c ta , n em a cto res, nem e sp e c ta d o res, n em e stra n h o s, c que
têm acesso ;i in fo rm açõ es e regiões d a in teracção q u a n d o n ad a nos
lev aria a prevê-lo. C o n sid erarem o s ag o ra q u atro p ap é is disco rd an tes
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Días 183

su p le m e n ta re s , im p lic a n d o , n o e s s e n c ia l, p e s s o a s q u e n ã o su e n ­
c o n tra m p r e s e n te s d u r a n te u m d e s e m p e n h o , m as q u e p o s s u e m
in fo rm a ç õ e s im p rev istas a c e rc a d e s te últim o.
E m prim eiro lugar, lia um papel im portante a q u e p o d em o s c h a m a r
o do “esp ecialista d e serviço” . É o c u p ad o p o r individuos especializa­
dos na co n stru ç ã o , rep aração e m an u ten ção d o e sp e c tá c u lo q u e os
s e u s c lie n te s re p re s e n ta m p e r a n te o u tra s p e sso a s. A lg u n s d e ste s
p ro fissio n a is, co m o o s a rq u ite c to s ou o s c o m e rc ia n tes de p eç as de
m obiliário , têm o q u ad ro d o d e se m p e n h o co m o especialidade; outros,
c o m o o s d en tistas, cab eleireiro s e derm atologistas, ocupam -se da ta ­
c h a d a p e s s o a l; o u tro s ain d a, c o m o os e c o n o m ista s, c o n ta b ilis ta s ,
a d v o g a d o s e in v e s tig a d o re s fo r m u la m o s e le m e n to s fa c tu a is d e
d esem p en h o verbal d o oliente, ou seja, forn ecem as linhas orien tad o ­
ras d a arg u m en tação ou p o sição in telectu al da equipa.
A p a rtir dos d ad o s e m p íric o s d isp o n ív e is, d ir-se-ia q u e os e sp e ­
cialistas d e serviço d ificilm en te p o derão co rresp o n d er às necessid a­
des d e um a c to r individual sem ad q u irir tantas ou m ais inform ações
d estru tiv a s d o q u e ele p ró p rio p o ssu i acerca de c e rto s a sp ecto s do d e­
sem p en h o do in d iv íd u o c o n sid e ra d o . Os e sp ecialistas de se rv iç o são
com o que m em b ro s d a eq u ip a na m ed id a em q ue co n h ecem os segre­
do s do esp ectácu lo e têm acesso à perspectiva que a região d o s b asti­
dores so b re ele faculta. C o n tu d o , a o contrário dos m em bros d a e q u i­
pa, o esp ecialista n ão c o m p a rtilh a dos riscos, dos sen tim entos de cu l­
pa nem das satisfaçõ es ligadas à ap resen tação perante um a audiência
d o e sp e c tá c u lo p ara que o se u tra b a lh o co n trib u iu . F.. ao co n trá rio
ainda dos m em bros d a equipa, fic a na p o sse dos segredos de pesosas
q u e não ficam na posse de se g re d o s equivalentes a seu respeito. N este
c o n te x to , c o m p re e n d e m o s m e lh o r que a d e o n to lo g ia p ro fissio n a l
freq u en tem en te vincule o e sp e c ia lista a d a r m o stras d e “d isc riç ã o ” ,
q u er dizer, a não rev elar o s se g re d o s de um d e sem p en h o a que as suas
incum bên cias de trab alh o lhe d e ra m acesso. A ssim , por ex em p lo , os
psicoterap eu tas, que tão a m p la m e n te p articipam por pro cu ração nas
g u e rra s d o m é s tic a s do n o sso te m p o , sã o o b rig a d o s a c a la r o q u e
sabem dos c o m b ates havidos, e x c c p lo perante os seus supervisores.
Q uan d o o esp ecialista e de um estatu to social m ais elev ad o do que
o s in d iv íd u o s a q u e m p resta se rv iç o , a su a av a lia ção social global
184 E r v in g G o ffm n n

d e s te s últim os, p o d e rá se r c o n firm a d a p o r a q u ilo q u e d e s c o b re a


resp eito deles. E m certas situ açõ es, este asp ecto to m a -se um factor
im p o rtan te da co n serv ação d o status quo. A ssim , nalg u m as cidades
a m e r ic a n a s , os fu n c io n a r io s d o s b a n c o s u tiliz a d o s p e la f r a c ç ã o
s u p e r io r d a c la s s e m é d ia lo c a l d e s c o b re m m u ita s v e z e s q u e os
prop rietário s de pequ en o s estab elecim en to s de n egócios ap resentam
para efeito s de im p o sição fiscal um a fach ad a que não condiz com as
suas transacções b an cárias, ao p asso q u e o u tro s hom ens de negócios,
exib in d o u m a ta c h a d a p ú b lica d e so lv ê n c ia segura, são cap a zes de.
em privado, so licitar um em p réstim o que os coloca num a p o sição de
fra q u e z a e d ú v id a h u m ilh a n te s. O s m é d ic o s d a c la sse m éd ia q u e,
n u m a a c tiv id a d e dc b e n e f ic ê n c ia , se v ê e m c o n f r o n ta d o s c o m a
n e c e s s id a d e d e tr a ta r d o e n ç a s v e rg o n h o s a s cm s u b ú rb io s m e n o s
re s p e itá v e is , e n c o n tra m -s e n u m a s itu a ç ã o a n á lo g a , u m a v e z q u e
torn am im possível ao in divíduo de co n d ição in ferio r defender-se dc
um a o b serv ação d a su a intim idade levada a efeito por um superior.
Igualm en te, um g rande p ro p rietário dc terras sabe que todos os seus
ren d eiro s se co m p o rtam co m o p essoas q u e p agam po n tu alm en te as
suas rendas, m as q u e. n alg u n s casos, esse co m p o rtam en to é ap enas
um a atitu d e exterior. (A m e sm a im agem frustrante d as co isas é por
vezes acessív el a p essoas que não ex ercem fu n ç õ es de especialista.
S ã o n u m e ro sa s as em p resas ou serv iço s, p o r e x e m p lo , em q u e um
fun cio n ário ex ecu tiv o te m dc assistir à ru id o sa e x ib ição de co m petên­
cia do pessoal d o q u ad ro , em b o ra secretam en te c o n serv e um a opinião
m ais realista c m enos liso n jeira acerca das p essoas q u e vê exibirem
peran te ele essa ex u b e ra n te actividade.
E m certos casos, sem dúvida, verifica-se q ue o estatuto social g lo ­
bal d o cliente é su p e rio r ao dos especialistas que ele esco lh e para sc
ocuparem d a su a fachada. A ssiste-se en tão a um curioso d ilem a de or­
dem estatutária, aparecendo o estatuto su p erio r associado a um red u ­
zido controlo da inform ação, p o r um lado, e o estatuto inferior a sso ­
ciado a um elevado controlo d a inform ação, p or outro. F., nestas co n ­
diçõ es, possív el que o esp ecialista fique e x cessiv am en te im p ressio ­
nado pela fraqueza do espectáculo q u e os indivíduos de condição su­
p e rio r à s u a e x ib e m , e sq u e c e n d o -s e d a s su a s p ró p ria s fra q u e z as.
C onsequentem ente, esse especialista d esen v o lv erá com o lem po um a
A Apresentação du ü u na Vida dc Todos os Dias 185

am b iv alên cia peculiar, tornando-se cínico em relação ao m undo “.su­


p e rio r’ pelas m esm as razões que ilu soriam ente o introduziram na sua
intim idade. H assim que a porteira, em virtude d o s serviços que presta,
sab e que espécie de bebidas co n so m em os locatários, que géneros ali­
m entares consom em , q u e cartas recebem , que contas d eix am por pa­
g ar — ou se a sen h o ra de certo apartam en to está ou não m en stru ad a
p o r trás d a sua ta ch ad a im poluta, o u a in d a se os locatários cum prem
estas ou aquelas regras d e asseio n a cozinha, casas de banho e outras
regiões de b astid o res1^ D o m esm o m odo, o patrão de um a estaçã o de
serv iç o e n c o n tra -se em c o n d iç õ e s que lhe p e rm ite m d e sc o b rir que
determ in ad a pessoa que o sten ta um Cadillac novo não pode co m p rar
m ais do que um dólar de gasolina de ca d a vez. ou é o b rigado a o p tar
p o r um a g aso lin a de q u a lid a d e inferior, ao m esm o tem po q u e tenta
o b ter o m áx im o de serv iço s g rátis d o estab elecim ento. O p atrão d a
estação de serviço sabe igu alm en te q ue a ex ib ição que certos hom ens
fazem de co m p etên cia té c n ic a em m atéria autom obilística é engana­
dora, u m a vez que n u n ca os viu identificarem correctam ente qualquer
problem a de m otor ou conduzirem com o deve ser ao entrarem na zo n a
de abastecim ento, ap esar de todas as suas pretensões que alim entam .
De m aneira com parável, as p essoas que se o cu p am d a venda de roupa
p oderão dar-se co n ta de que algum as clientes, de quem não seria de
esp erar co isa sem elhante, u sam ro u p a interior pouco lim pa ou avaliam
u m a peça em função d a sua cap acid ad e de produzir u m a aparência ilu ­
sória. O s vendedores de ro u p a para hom ens sabem , de acordo com a
m esm a ló g ic a que a atitude que o s hom ens afectam de não se p re o ­
cuparem com a ap resentação d a su a pessoa é p o r vezes m era exibição
vazia, e q ue um hom em robusto e reservado p o d erá pro v ar falo atrás
dc fato, chapéu atrás de chapéu, até o esp elh o lhe re v ela r a im agem
preciosa com que ele q u e r a p arecer diante dos outros. O s polícias des­
cobrem , p o r vias análogas, através das coisas que respeitáveis hom ens
dc negócios querem q u e eles façam ou n ão façam , que os pilares da
so c ie d a d e nem sem pre são in te ira m e n te v e rtic a is 12. A s c ria d a s de-
hotel sa b e m que os h ó s p e d e s do sex o m a sc u lin o q u e lhes d irig em

1 ; Ver Ray Gold. "The Chicago Flat Janitor", tese dc Mestrado inédita. Department
of Sociology. University o f C hicago. 1950 sobretudo o Cup. IV , 'T h e G arbage”.
' - West ley. op. dr.. p. 131.
186 Erving Go finían

c o n v ite s s e x u a is n o s c o rre d o re s n ão são Ião d e c e n te s co m o o seu


com p o rtam en to nus salas d o hotel parece su g e rir1*\ H os encarregados
dc seg u ran ça dos m esm o s hotéis, os cães d e guarda, com o por vezes
se d iz . n ão ig n o ra m q u e um c e s to de p a p é is p o d e e s c o n d e r d o is
rascunhos insatisfatórios d a ú ltim a m ensagem de um suicida:

Querida,
Quando info re chegar às mãos, eu já estarei onde nada da que
possas fa zer poderá magoar-me...
Q uando leres isto. nada do que fizeres terá já o p oder de me
fe r ir >4.

Ü q ue m ostra q u e as últim as em oções dc um a p esso a d e se sp era­


d am en te d e cid id a p o d em ser. ap esar de tudo. um tanto estu d ad as na
ex p ressão q ue assu m em , de m odo a não saírem d o torn — pelo que,
cm ú ltim a an álise, essas últim as em oções não serão as em o çõ es últi­
m as. O s p ro fissio n ais q u e p restam serv iço s esp ec ializad o s de reputa­
ç ã o d u v id o sa e têm escritó rio nas “ traseiras" d a cidade, o q u e perm ite
que os seu s clientes não sejam vistos quan d o os procuram , propor­
cio n am -n o s o u tra ilustração elo q u en te. N os term os dc H ughes:

H á um q u a d ro ro m a n e sc o freq u en te q ue nos m o stra u m a s e ­


n h o ra d e p osição p ro cu ran d o , d isfarçad a c so litária, o e n d e re ç o de
u m a c a rto m a n te ou d e u m a p a rte ira q u e se e n tre g a a p rá tic a s
d u v id o sas, n u m a zona e sc u sa d a cid ad e. O a n o n im a to de certas
z o n a s d a s c id a d e s p e rm ite a a lg u m a s p e sso as o b te re m se rv iç o s
esp e c ia liz ad o s, leg ítim o s m as em b araço so s ou ilegais, d a parte de
p e sso as d iferen tes co m a s q u ais as prim eiras não g o stariam de se r
vistas p o r o u tro s m em b ro s do seu m eio s o c ia l.1-

O especialista pode. é claro, deslocar-se a coberto do anonim ato, co­


mo faz o desratizador que previne o cliente dc que chegará à sua casa

I ' Investigação reali/aria p o lo aulor no hotel da ilhsi d;is Shetland.


II Coüar.s. o/), cii.. p. 156.
1• E. C. Hughes e Helen M . Hughes. Where People Meei. 't he Free Press, Glencoe.
Illinois. 1952. p. 171.
A Apresentação do Fu na Vida de Todos os Dias 187

num autom óvel cuja carroçaria é igual à de todos os outros. M as. de


q u a lq u e r m aneira, a g arantia d e an onim ato é sem pre um a afirm ação
evidente de q ue o clien te o ex ig e e está disposto a agir sob a sua capa.
É o b v io q ue o esp ecialista c u jo trab alh o e x ig e urna p e n e traç ão nos
b astid o res de d esem p en h o de o u tra s p e sso as co n stitu i para elas um
m o tiv o de em b araço . Se m u d a rm o s o d e se m p e n h o q u e nos se rv e de
p o n to d e r e f e r ê n c ia , n o v a s c o n s e q u ê n c ia s sc to rn a r ã o v is ív e is .
P o d em o s co m p ro v a r re g u la rm e n te que os clien tes esc o lh em em c e r­
tos c a so s um esp ecialista n ã o p a ra co n seg u irem o seu a u x ílio num a
e x ib iç ã o q u e re p re s e n ta m p a r a o u tro s, m as erri v ista da a c tu a ç ã o
p e rm itid a p ela p resen ça de um e sp e c ia lista a assisti-los. É gran d e, ao
q u e p arece, o n ú m ero d as m u lh e re s que reco rrem no salão dc b ele za
para se an im arem e se re m tra ta d a s p o r w adame, m ais d o q u e para
a rra n ja rem o cab elo . E já foi e sc rito , p o r ex em p lo , q u e na In d ia a
p ro c u ra de e sp e c ia lista s a d e q u a d o s para larefas ritu a lm e n te sig n i­
ficativ as é de fundam ental im p o rtâ n c ia n o q u e sc refere à c o n firm a ­
ção da p o sição d o in d iv íd u o no sistem a de castas h in d u .K> Hm casos
corno e ste, o a c to r p o d erá e s ta r in teressad o em se r reco n h ecid o pelo
esp e c ia lista q u e o aten d e, ta n to ou m ais d o q u e na e x ib ição que o
serv iço p restad o se d estin a a to rn a r p o ssív el. P o r isso sab e m o s que
e x iste m tam bém e sp e c ia lista s m u ito esp e c ia is, que satisfaz em e x i­
g ên cias q u e o clien te co n sid e ra d e m asiad o v erg o n h o sas para as ap re ­
se n ta r a o u tro s esp ecialistas, p e ra n te os quais não tem hab itu alm en te
d c se enverg o n h ar. V. assim q u e o d esem p en h o que o cliente en cen a
d ia n te do seu m ed ico p ode o b rig á -lo c d irig ir-se a um fa rm a cêu tico
p ara c o m p ra r p ro d u to s a b o rtiv o s , c o n tra c e p tiv o s ou d e stin a d o s ao
tra ta m e n to d e d o en ças v e n é re a s1 7. D o m esm o m odo, nas c o n d iç õ e s
d e v id a a m e ric a n a s , o in d iv íd u o q u e se e n c o n tra e n v o lv id o e m
q u e stõ e s lesivas d o d e c o ro h ab itu al p o d erá p ro cu rar o s serv iço s de
u m a d v o g a d o n e g ro p ara e v ita r a vergonha de ter que e x p o r a um
b ran co o seu c a s o .1**

Quanto <i este t* outros asnéelos relativos ã índia, c por diversas sugestões ile
ordem geral, estou em dívida para com VlcKim Marriott.
* 1 W cinlcin. op. cit.. p. 106.
^ W illiam H. Hale. 'T h e Career Development o f the Negro Lawyer", dissertação
de Ph. D. inédita. Department o f Sociology. University o f Chicago. 1949. p. 72.
188 ürvinsj Goffinnn

O s esp e c ia lista s, q u e d e te m seg red o s c o n fid en ciais em virlude dos


serv iç o s q u e p restam , en c o n tra m -se , sem d ú v id a, n u m a p o sição que
lh e s p e rm ite e x p lo r a r a in fo rm a ç ã o d e q u e d is p õ e m d e m o d o a
obterem c o n cessõ es d o a c to r cu jo s seg red o s co n h ecem . O d ireito , a
d eo n to lo g ia p ro fissio n al e o pró p rio in teresse p esso al bem en ten d id o
travam m u itas vezes as fo rm as m ais g ro sse ira s de ch a n tag e m , m as
h á p eq uenas c o n cessõ es q u e, a p resen tad as co m a n e ce ssá ria d e lic a ­
d e z a , e s c a p a m m u ita s v e z e s a e s ta s fo rm a s de c o n tr o lo s o c ia l.
T alvez a te n d ê n c ia para in c lu ir um ad v o g ad o , um co n tab ilista, e c o ­
nom ista o u o u tro e sp e c ia lista nas fachadas v erb ais de um co n traio
ou p ara in tro d u zir na firm a os profissio n ais assim co n tratad o s repre­
sen te ern p a rte u m e s fo rç o d e s tin a d o a g a ra n tir a d isc riç ã o : po is,
q u a n d o o e s p e c ia lista p assa a ser m e m b ro da o rg a n iz a ç ão , n o vos
m é to d o s se to rn a m d is p o n ív e is de a s s e g u r a r a s u a le a ld a d e . A
intro d u ção d o e sp e c ia lista na o rg an ização c na e q u ip a será. p a ra o
actor, u m a g a ra n tia acrescid a de que o novo m em b ro a p lic ará as suas
co m p e tê n c ias n o in teresse d a e x ib ição d o actor, e n ã o c m v ista de
fins lo u v áv eis m as irrelev an tes, c o m o o tra ç a r de u m a p ersp ec tiv a
eq u ilib rad a ou a ex p o siç ã o de d ad o s teó rico s in teressan tes p e ra n te a
su a au d iê n c ia p ro f issional de e s p e c ia lis ta .IÇ)

^ Espera-se que o especialista da fachada vetbal introduzido na organização colija e


apresente os dados de maneira a confirmar ao máximo as pretensões momentâneas da
equipa. Os factos cm causa serão considerados secundários, um mero ingrediente a
conjugar com outros, tais como os argumentos prováveis cos adversários, o estado de
espírito do público junio do qual a equipa procura apoio, os princípios a que todos os
interessados terão que prestar homenagem verbal, etc. É curioso notar que o indivíduo
que contribui para reunir e elaborar os factos utilizados pelo desempenho verbal da
equipa possa ser igualmente encarregado da tarefa muito diferente da apresentação ou
comunicação pessoal dessa tachada à audiência. A diferença aqui em jogo é a que
existe entre escrever o guiiío da cerimónia ern vista do espectáculo c assumir o
desem penho no quadro da exibição. Deparamos então com um dilema potencial
Quanto mais o especialista for levado ;i pôr dc íado os seus criterios profissionais para
atender apenas aos interesses da equipa, mais fiteis serão os argum entos por ele
fornecidos: mas quanto maior lor a sua reputação como profissional independente,
interessado apenas na exposição c o rree n dos factos a apreciar, mais e fic a / será
provavelmente a sua argumentação perante a audiência e a sua intervenção. P oden
encontrar-se dados abundantes a propósito desta questão em W ilcnsky. np. ctt.
A Apresentação do Eu na Vida ds Todos os Dias 189

D e v e n io s acre sc en ta r ainda o u tra o b serv ação acerca d e certa va­


ried ad e d e p apeis d o e sp e c ia lista ; re fe rim o -n o s ao papel do “e sp e ­
c ia lis ta s u p e r v is o r 5. O s in d iv id u o s q u e a ssu m e m e s s e p a p e l c o n -
fro n ta m -se c o m a ta re fa c o m p lic a d a de ensin arem o a c to r a c o n stru ir
u m a im p re ss ã o d e s e já v e l, a o m e s m o te m p o q u e se in te g ra m na
au d ie n c ia fu tu ra, ilu stran d o p o r m e io de p u n ições as c o n se q u ê n cias
de um d esem p en h o in ad eq u ad o . T alv ez os p ais e p ro fesso res sejam
o s e x e m p lo s fu n d a m e n ta is q u e . n a n ossa so c ie d a d e , d e s te p a p el
en c o n tra m o s; os sarg en to s q u e se o cu p am d a in stru ç ã o d e c a d e te s
são o u tro ex e m p lo possível.
O s a cto res sen tem -se co m fre q u ê n c ia pouco à-vontatíe n a presen ­
ça d e um e d u c a d o r cujas liç õ e s d e há m uito a p ren d eram e c o n sid e ­
ram ó bvias. O s ed u cad o res te n d e m a e v o car p ara o a c to r u m a inten­
s a im ag em de si próprio q u e e s te recalco u , a aut.o-im agem dc um in­
d ivíd u o c o m etid o co m o a ta b a lh o a d o e e m b araço so p ro cesso da sua
p ró p ria fo rm ação . O ac to r p o d e rá esq u ecer co m o foi o u tro ra in c a ­
p a z. m as não p o d e rá fa z e r c o m q u e o e d u c a d o r o e sq u eç a. C o m o
R ie z le r indica acerca de q u a lq u e r acto verg o n h oso, “ q u a n d o o s o u ­
tros sa b e m , o facto fic a e s ta b e le c id o e a im agem de si pró p rio do
in d iv íd u o é p o sta p ara além d o seu próprio pod er de reco rd ação e e s­
q u e c im e n to » .20 T alv ez n ã o e x is ta atitude fácil e c o n s is te n te , q u e
p o ssam o s a d o p ta r perante p e sso a s q u e co n h ecem o que e stá p o r trás
d a n o ssa fach ad a actu al - p e s s o a s que nos “ c o n h eceram q u a n d o ...”
— , se elas fo rem a o m esm o te m p o as p essoas q ue sim b o liza m a res­
p o sta d a au d iê n c ia ao nosso d e se m p e n h o , m as n ão p o d en d o s e r acei­
tes ao m esm o títu lo q ue o seriam an tig o s co m p a n h eiro s de eq u ip a.
O e sp e c ia lis ta que p re sta u m se rv iç o foi p o r n ó s aq u i re fe rid o
co rn o o tip o dc p e s s o a q u e n ã o é um d o s a c to re s , e m b o ra te n h a
acesso ao s b astid o res e às in fo rm a ç õ e s d estru tiv as. U m seg u n d o tipo
á o d a p e sso a q u e d e s e m p e n h a o papel de “ c o n fid e n te ” . O s c o n ­
fid e n te s sã o p e s s o a s à s q u a is o a c to r c o n fe s s a o s se u s p e c a d o s ,
ex p o n d o liv rem en te os m o tiv o s p e lo s quais a im p ressão su sc ita d a
duran te um d esem p en h o era a p e n a s um a im pressão. D e m o d o c a ra c ­
terístico , o s co n fid en tes e n c o n tra m -se no ex terio r e só p o r d eleg a ção

- ■Riezler. ú¡k eil., p. 458.


190 Erviiig Colim an

p articip am n as reg iõ es de a c tiv id a d e da fa c h a d a e d o s b a stid o res.


S erá a um a p esso a em tais co n d içõ es que, p o r e x em p lo , um m arido
ap resen tará d iariam en te em c a sa a d escrição do m o d o c o m o se a r­
ra n ja corn os e stra ta g e m a s , in trig a s, s e n tim e n to s in c o n fe ssa d o s e
arm ad ilh as d o e sc ritó rio o nde trabalha: e q u an d o o m esm o m arid o
e sc re v e um a c a rta p o r m e io tia qual se d e m ite de um e m p re g o , o
p ro c u ra ou aceita, será essa p e sso a que ch am ará, a fim de lhe m os­
trar o ra sc u n h o d o te x to c e rtific a n d o -s e assim de n ão te r d e ix a d o
p a ssa r esta ou aqu ela “ d e sa fin a ç ão ” . D o m esm o m odo. q u a n d o a n ti­
g o s d ip ló m a la s ou a n tig o s p u g ilista s e sc re v e m as su as m em ó rias,
cond u zem o p ú b lico p o r trás d o s palcos, tra n sfo rm a n d o o leito r em
c o n f id e n te d if u s o d e g ra n d e s e x ib iç õ e s , e m b o ra e s ta s se ja m já
d ec id id a m e n te c o isa s d o passado.
A o contrário do especialista que presta um serviço, a pessoa cm que
outra c o n fia no sentido aqui m encionado, não faz qualquer negócio ao
tom ar-se depositária das confidências que recebe; aceita a inform ação
sem aceitar honorários, co m o um a expressão de am izade, confiança e
c o n sid e ra ç ão p o r p ã rte d a pessoa q ue se co n fia. C o n tu d o , co m fre­
quência verificam os que os clienies tentam transform ar os especialistas
q u e lhes p restam d eterm in ad o serv iço em c o n fid en tes (ta lv e z num a
tentativa de garantirem m aior discrição), sobretudo quando o trabalho
do especialista consiste sim plesm ente em ouvir e falar, com o acontece
no caso d o s padres e dos psicolcrapeutas.
Ilá ain d a u m terceiro p a p e l a consid erar. Tal c o m o o papel de e s­
pecialista ou de co n fid en te, o papel de coleg a co n fere aos que o d e ­
se m p e n h a m c e rta s in fo rm a ç õ e s re la tiv a s a um d e se m p e n h o a q u e
não assistiram .
O s co leg as podem se r d efinidos co m o p essoas que ap re sen ta m a
m esm a p rática de rotina a o m esm o tipo d e au d iência, m as q u e não
p a rtic ip a m c o n ju n ta m e n te , ao c o n trá rio d o q u e a c o n te c e c o m o^
co m p an h eiro s d e equipa, n a acção dc uin m esm o qu ad ro de tem po e
lu g ar perante os m esm o s esp ectad o res concretos. O s co leg a s, com o
alg u é m disse, p artilh am u m a co m u n id ad e de destino. U m a vez que
tem de rep resen tar o m esm o tipo d e d esem p en ho, c o n h e cem as difi­
c u ld a d e s e p o n to s d c v is ta u n s d o s o u tro s; in d e p e n d e n te m en te d a
líng u a q ue falem , a c a b a m p o r falar sem p re e todos a m esm a lingua-
A Apresentação do F.u na Vida dc T odos os Dias 191

gem so cial. F. em b o ra os c o le g a s q u e d isputam urna aud iên cia pos­


sam e sc o n d e r m utu am en te ce rto s segred o s, não p o dem e sc o n d e r com
a m e sm a f a c ilid a d e u n s a o s o u tr o s d e te rm in a d a s c o is a s q u e e s ­
co n d em à audiên cia. A fach ad a q u e sustentam perante os outros, que
co n stitu e m a au d iên cia, n ào p re c is a de ser su sten tad a entre eles; o
q ue perm ite u m a certa d e sc o n tra c çã o . H ughes abordou recen tem en te
o te m a d e sta so lid aried ad e c o m p le x a :

A d isc riç ã o faz p a n e d o c ó d ig o dc tra b a lh o dc um a d ad a c a ­


te g o ria : a d is c riç ã o p e rm ite a o s c o le g a s tro c a re m c o n fid ê n c ia s
s o b r e a s s u a s r e l a ç õ e s c o m o u tr a s p e s s o a s . H n tre e s ta s
c o n fid ê n c ia s d esco b rim o s e x p re ssõ e s de c in ism o a p ro p ó sito da
su a m issã o , da su a c o m p e tê n c ia , bem c o m o a e n u m e ra ç ã o das
fra q u e z a s d o s su p e rio re s, d e s i p ró p rio s, d o s c lie n te s, d o s s u ­
b o rd in ad o s, do p ú b lico em g e ra l. E stas e x p re ssõ e s co n fid en ciais
a liv ia m a c a rg a q ue p esa s o b re os o m b ro s de c a d a um . fu n c io ­
nand o ao m esm o tem p o c o m o m eio s de defesa. A silen cio sa co n ­
fiança m útua aqui p re ssu p o sta a sse n ta em d u a s ideias que os c o ­
lcgas form am uns d o s o u tro s. A prim eira c a de que o c o le g a não
c o m p re e n d e rá m al; a se g u n d a é a dc q u e não re p e tirá p e ra n te
leigos as co n fid ên cias o u v id a s. A certeza d e que um novo co leg a
n ã o c o m p re n d e rá m al ex ig e u m a troca de gestos so ciais d e prova.
O fan ático que tran sfo rm a e s s a prova num a b atalh a a valer, que
leva d e m asiad o a sério u m a in iciação a m isto sa, n ão se m ostrani
d ig n o de que lhe sejam c o m u n ic a d o s os m ais tén u es c o m e n tário s
a c e rc a d o tra b a lh o , as d ú v id a s ou re c e io s: e ta m b é m n ã o lerá
a c c ss o a e s s e s e le m e n to s d o c ó d ig o d e f u n c io n a m e n to q u e se
c o m u n ic a m ap en as p o r s u g e s tõ e s c g e sto s. N ão se p o d e c o n fia r
nele, u m a vez q u e, m esm o q u e não seja c a p a z d e ardis, se to rn o u
su sp e ito de ten d ên cias para a traição . A firn dc p o d erem c o m u n i­
c a r liv re e c o n fid en cialm en te, o s hom ens têm que p o d er te r co m o
certa b o a parte d o s se n tim e n to s u n s dos o u tro s. T êm q u e se sentir-
tran q u ilizad o s ta n to pelos s ilê n c io s com o p elas palav ras q u e tro ­
c a m .- 1

-* Ilnyhes e Hughes, op. eil., pp. 168-69.


192 Erving G o lfm an

S im one de B eau v o ir ap resen ta-n o s um a b oa d escriç ão da so lid a ­


ried ad e ex isten te en tre coleg as: p reten d en d o e sc re v e r so b re a situ a ­
ção p e c u lia r das m u lh eres, acaba p o r nos fa la r do s g rupos de co leg as
em geral:

A s am izad es fem in in as q u e c o n seg u e sa lv a g u a rd a r ou e sta b e ­


lecer são. para u m a m ulher, preciosas, m as de espécie m uito dife­
rente d as relações existen tes entre hom ens. Estes últim os co m u n i­
cam en q u an to indivíduos p o r m eio de ideias e projectos de interesse
p e s s o a l, a o p a sso q u e as m u lh e re s se v ê e m lim ita d a s p e lo seu
d estino fem in in o genérico, u n id as p o r um a espécie de cum plicidade
im a n e n te . E a q u ilo q u e , a n te s d o m ais, p ro c u ra m e n tre urnas e
outras é a afirm ação d o universo que têm em com um .
N ã o d is c u te m o p in iõ e s o u id e ia s g e ra is , m as tro c a m c o n f i­
d ên cias e receitas; aliam -se n a criação de urna esp éc ie d e contra-
-u n iv erso . cu jo s v alores p rev alecem so b re o s valores m asculinos.
C o lectiv am en te d esco b rem ter a força n e cessária p ara queb rarem
as s u a s c a d e ia s ; n e g a m a d o m in a ç ã o s e x u a l d o s h o m e n s, a d ­
m itin d o a su a frig id e z u m a s d ian te d as o u tras, ao m esm o tem po
q ue se riem d o d e se jo m ascu lin o ou a falta de jeito d o s h o m en s; e
põem iro n icam en te cm ca u sa a su p erio rid ade in telectu al e m oral
dos m arid o s ou da g en e ra lid a d e do s hom ens.
C o m p aram ex p eriên cias: perío d o s d e g ravidez, p arto s, as suüñ
d o e n ç a s ou as d o s filh o s , e as p re o c u p a ç õ e s d o m é s tic a s
tran sfo rm am -se nos a ssu n to s fu n d am en tais da h istó ria h u m ana. C)
trab alh o , para c ias. n ã o é u m a técn ica; e n q u a n to tro cam receitas
de c o z in h a e o u tras coisas do m esm o g én ero , d o ta m -n a s d a d igni-
d ad e de um a ciên cia se c re ta assen te na trad ição o ra l.--

D e v e m o s d e ix a r a g o ra cla ro o m odo c o m o o s te rm o s u tilizad o s


para d esig n ar os colegas do indivíduo, d a m esm a que os term os utili­
zados para d e sig n ar os seus com panheiros de eq u ip a, se tornam ter­
m os intragrupais — e o m odo co m o os term os utilizados para desig­
nar as au diencias tendem a carregar-se de su gestões extragrupais.

Dc Beauvoir, np. a t.. p. 542.


A Apresentação cio F.u na Vida de Todos os Dias 193

n in teressan te o b se rv a r q u e , q u a n d o os c o m p a n h eiro s d e e q u ip a
en tram e m co n tacto c o m um e stra n h o q ue é um colega, ten d em m u i­
tas vezes a c o n c e d e r te m p o ra ria m en te u m a esp écie d c lu g a r p ro to ­
c o la r c h o n o rário d e m em b ro d a equipa ao re cém -ch eg ad o . H á um
c o m p le x o d o visitante de m a rc a q u e faz co m q u e os c o m p an h e iro s
d c um a e q u ip a tratem o in d iv íd u o q u e os visita com o se de súbito
este se rev elasse lig ad o a eles p o r relaçõ es an tig as e de g ran d e in ti­
m id a d e . I n d e p e n d e n te m e n te d a s s u a s p r e rro g a tiv a s a s s o c ia tiv a s
reais, o visitante ten d erá a ser in v e stid o de to d o s os d ire ito s do c lu ­
be. E sta s m a n ife sta ç õ es de c o rte s ia tê m so b retu d o lu g a r q u a n d o o
v isitan te o u h ó sp e d e re c e b e u a s u a fo rm ação no m e sm o e s ta b e le ­
c im en to q u e os c o leg a s que o a c o lh e m , ou a c o n seg u iu sob o rie n ta ­
ç ã o d o s m e sm o s p ro fe sso re s. O s d ip lo m a d o s p elo m e sm o q u a d ro
fam iliar, p e la m esm a esco la p ro fissio n a l, p ela m esm a pen iten ciária,
p e la m esm a u n iv e rsid a d e ou p e la m esm a p eq u en a cid ad e de p ro v ín ­
c ia são o u tro s tan to s c aso s ilu stra tiv o s. Q u an d o “ v e lh o s am ig o s” se
e n c o n tra m , p o d erá ser. e n tre ta n to , difícil re a n im a r as velh as b rin ­
c ad e ira s d e b a stid o re s, e o p ô r d e lado da a titu d e h ab itu al p o d e rá
tornar-se, p o r seu turno, u m a o b rig a ç ã o e u m a a titu d e estu d ad a, d ifi­
cu ltan d o que se fa ç a se ja o que fo r d c diferente.
U m a co n seq u ên cia digna d c n o ta de tudo isto é um a equipa, q u e de­
sem pen h a regularm ente as suas p ráticas de rotina para a m esm a a u ­
diência. poder, apesar disso, e s ta r so cialm ente m ais distante dessa a u ­
diência d o que d e um coleg a q u e m om entaneam ente en tra em co n tac­
to co m a equipa. A ssim , os m e m b ro s da pequena nobreza da ilha das
S hetlan d conheciam m uito bem o s seus vizinhos agricultores das re­
dondezas. tendo d esde a in fân cia desem p en h ad o perante eles o seu p a­
pel dc m em bros d a pequena n o b reza. R todavia um fidalgote que visi­
tasse a ilha, depois de exibir as s u a s credenciais c se apresentar do m o­
do devido, poderia, no d eco rrer d c u m sim ples chá das cinco, tom ar-se
m ais íntim o da fam ília da p e q u e n a nobreza d a ilha do q u e no espaço
de u m a v id a inteira o poderia c o n se g u ir q u alq u er um dou agricultores
vizinhos. Porque um chá d o s fid a lg o s era urna actividade de b astid o ­
res nos term os d as relações p e q u e n a nobreza-agricultores em viagem
na ilha. D urante o chá dos fid alg o s, os cam poneses era m ridiculariza­
dos, e as m aneiras com edidas h ab itu alm en te exibidas pelos prim eiros
194 Erving Goffman

perante os seg undos davam lugar às brincadeiras sem cerim ônia das
relações de co n v ív io próp rias dos m em bros da p eq u en a nobreza. N e s­
sas o casiões o.s fidalgos confro n tav am -se co m o facto de serem pare­
cidos co m o$ lavradores cm asp ecto s decisivos, e diferentes d eles sob
certos aspectos indesejáveis, ludo islo co m u m a secreta b o a d isp o si­
ção q u e m uitos dos cam poneses estariam longe de su sp eitar neles.2 '
É ra zo áv el p e n sa r q u e a b o a vontade que cerim onial m en te nm c o ­
lega m o stra a o u tro ta lv e z seja u m a esp é c ie de oferta d e paz: “N ã o
d izes n ad a de nós e nós n ão d izem o s nada de ti.” Isio ex p lic a rá em
parte p orque é q u e os m édicos c co rn ereian les m u itas vezes fazem
fa v o re s p ro fis s io n a is ou d e sc o n to s n o s p re ç o s às p e sso a s q u e dc
a lg u m m o d o sc e n c o n tra m lig a d a s à m e s m a a c tiv id a d e q u e ele s
p ró p rio s. T rata-se. n o fundo, de um a espécie de “lu v as” p a g a s a in ­
d iv íd u o s q u e d isp õ em de in fo rm açõ es su fic ie n te s p ara sc tran sfo r­
m arem em d en u n cian tes.
A n a tu re z a d a s relaçõ es en tre co leg as p e rm ite -n o s c o m p re e n d e r
ta m b é m a lg u m a c o is a a resp eito d e sse im p o rtan te p ro c e sso social
que é a e n d o g am ia. e atrav és d o q u al u m a fa m ília de d ete rm in ad a
c la sse , casta, p ro fissão , re lig iã o ou e tn ia ten d e a restrin g ir a s suas
alian ças m atrim o n iais a o co n ju n to das fam ílias de i den tica condição.
A s p e s s o a s q u e se u n e m p o r la ç o s de a f in id a d e a d q u ir e m u m a
p o sição que lhes p erm ite u m a o b serv ação m ú tu a para lá d a fachada;
o q ue é sem pre em b araço so , m as se to rn a m en o s e m b araço so se os
b a stid o re s d e o rig e m d o rc c é in -c h e g a d o forem c e n á rio d a m esm a
esp é c ie de e x ib iç õ e s e d o m esm o g én ero de d issim u la ç ã o d a s in­
form açõ es d estru tiv as. U m casam en to em falso introduz nos b a sti­
d ores e na e q u ip a a lg u é m que d e v e ria se r m a n tid o lo n g e d o d e sem ­
p en h o ou, n o m áx im o , lim itar-se a um lu g ar d c espectador.
D ev e n o tar-se q ue as p esso as q u e s ã o c o le g a s e m d e te rm in a d a
q u alid ad e, e se en co n tram p o r isso cm term os de fam iliarid ad e re-

*■- A pequena nobre/n da ilh;i falava por vezes da dificuldade dos seus contacto.-
sociais com os ouiros habitantes locais, dada a ausência de interesses comuns.
E:. embora mostrasse assim um a compreensão adequada do que aconteceria sc »in
dos cam poneses estivesse presente durante o cliá, parecia ler menos consciência <!o
grau em que o "espírito” da hora do chá dependia do facto de haver cam poneses que
não estavam presentes.
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 195

cíp ro c a , p o d em nao se r c o le g a s so b outros p o n tos de vista. O acto r


p o d e p o r v e z e s se n tir q u e d e te rm in a d o c o le g a , q u e é. so b o u tro s
p o n to s d e vista, um hom e ni dc c o n d iç ã o in fe rio r em p o d e r ou e sta ­
tu to . e s tá a te n ta r e s te n d e r a s s u a s p re te n s õ e s d c f a m ilia rid a d e ,
am e aç an d o a d ista n c ia social q u e , n a base de o u tro s asp ec to s e sta ­
tu tario s, d e v e ria se r o b se rv a d a . N a sociedade am erican a, os m e m ­
bro s d a cla sse m édia p erten cen tes a um grupo m inoritario de p o sição
in ferio r v êcm -sc m u itas vezes a m e a ç a d o s nestes term os p e la atitu d e
p re su n ç o s a d o s seu s c o m p a n h e iro s dc e sta tu to in ferior. C o m o d iz
H u g h es, referin d o -se às relaçõ es in ter-raciais entre colegas:

O d ile m a resu lta do facto d e , em bora p o d en d o se r m au p a ra a


pro fissão q u e os leigos se d êem co n ta dc q u e b ras nas suas fileiras,
se r tam bém m au para o in d iv íd u o ver-se asso ciad o , aos o lh o s dos
seu s c lie n te s e fectiv o s ou p o te n c ia is, a um g ru p o tã o d e sp re z a d o
com o o d o s n egros. A m e lh o r m a n e ira de e v ita r o d ilem a é p ô r de
parte os co n tacto s c o m os p ro fissio n a is de cor.24

De igual m odo, os p atrões q u e v ê m m an ifestam en te d e u m a classe


su b alte rn a , co m o c o c aso de c e rto s gerentes d as estaç õ es d e serv iço
a m e r ic a n a s , d e s c o b r e m m u ita s v e z e s q u e o s s e u s e m p re g a d o s
esp e ra m q u e o co n ju n to da a c tiv id a d e no serv iço seja o rie n tad a em
te rm o s de b a s tid o re s e q u e to d a s as o rd e n s o u in stru ç õ e s se ja m
fo rm u lad as e m tom d e g racejo o u pedidas por favor. E sta am ea ça
au m en ta, sem dú v id a, na m e d id a em que os não c o le g a s sim p lific a­
rem sim ilarm en te a situ ação e te n d e re m a av a liar ex ce ssiv a m en te o
in d iv íd u o seg u n d o a s c o m p a n h ia s d e ju v e n tu d e q u e este con serv a.
M as, u m a vez m ais, d ep aram o s a q u i com p ro b lem as que só podem
se r p len am en te elu cid ad o s se m u d a rm o s o nosso p o n to de referên cia
de um p a ra o u tro desem p en h o .
Tal c o m o certas p e sso as são c o n sid e ra d a s cau sad o ra s d e d ific u l­
d ad es p o r so b restim arem a su a c o n d iç ã o de co leg as, ou tras acabam
p o r d a r o rig em a o u tro g én ero d e p erturbações p o r não lhe a trib u í­
rem peso su ficien te. H á sem p re a possib ilid ad e de um c o le g a pouco

- 4 Hughes e Hughes, op. cif., p. 172.


1% Erving Goffman

co n v icto se tra n sfo rm a r cm ren eg ad o e rev elar à aud iên cia os se g re ­


do s d a acção q ue os seu s ex -p ares co n tin u am a desem p en h ar. T odos
os p apéis têm os seus pad res d esp ad rad o s q ue falam d o q u e se passa
no in terio r d o s co n v en to s, ao m esm o te m p o que a im p ren sa sem pre
m ostro u o m ais vivo in teresse p o r co n fissõ es ou rev elaç õ es públicas
desse teor. H a ssim q u e p o d erem o s ver um m éd ic o d e sc re v er em le­
tra de fo rm a o m o d o co m o os seus c o le g a s d iv id em os honorários,
ro u b am os p acien tes uns ao s o u tro s ou se e sp e cia liz am em o p e ra ­
ções d esn ecessárias, m ed ían le a u tilização de m eios su sce p tív eis de
pro p o rcio n arem ao p acien te u m a en cen ação clín ica q u e ju stifiq u e os
d e s e m b o ls o s q u e lh e s e rã o e x ig id o s 25- N o s le rm o s de K e n n e th
B u rk e , p a s s a m o s e m ta is c a s o s a d is p o r d c c e rla s in fo rm a ç õ e s
rela tiv a s à “ retó rica d a m ed icin a” :

Sc ap licarm o s estas n o çõ es ao n o sso lem a. po d erm o s v erificar


q u e a té m e sm o o e q u ip a m e n to de um c o n s u ltó rio m é d ic o não
deve se r sim p lesm en te ju lg a d o em term o s da sua utilid ad e p a ra os
d ia g n ó s tic o s , m as ig u a lm e n te e n q u a n to fu n ç ã o d a retó rica da
m edicina. Q u a lq u e r ap arelh o em q u e atcn lem os im p o r-se -á sim u l­
tan eam en te e n q u a n to im ag em ; e q u ando um hom em é su b m etid o
a u m á ¿série d e p e r c u s s õ e s , e x a m e s e a u s c u lta ç õ e s , e m q u e
in terv êm d iv e rso s ap arelh o s de m edição ou o b serv ação , ta lv e z se
s in ta s a tis fe ito p o r p a r tic ip a r e n q u a n to p a c ie n te n e sse lip o de
re p resen tação teatral, ainda q u e n a d a de m aterial tenha sido feito
em se u b e n e fíc io n o s m e sm o s te rm o s é, c m c o n tra p a rtid a ,
possível q ue o m esm o p aciente se co n sid ere en g an ad o no c aso de
lhe ser p ro p o rc io n a d a u m a c u ra efectiv a, m as p o r c o m p le to d e s­
p ro v id a de cerim o n ia l.26

E m b o ra ap e n as num se n tid o m u ito lim itado, pod em o s d iz e r que


s e m p re q u e um n ã o c o le g a é tra n s fo rm a d o em c o n f id e n te , isso

25 L ew is G. A rrow sm itli. “T he Y oung D octor in New Y ork", The A m erican


Mercury. XXII. pp. I-10.
K enneth B urke. A R h etoric o f M o tives. P rentice-! tall. \<>vn Iorque 1953.
p. 171.
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 197

sig n ific a q u e alg u ém , ao m e sm o te m p o , e stá a d esem p en h a r o papei


d e ren eg ad o .
O s ren eg ad o s assu m em co m fre q u ê n c ia u m a a tim d c m oral, d e c la ­
rando q u e a leald ad e aos id eais d c um papel é p referív el à co n ce d id a
a o s a c to r e s q u e f a ls a m e n te o d e s e m p e n h a m . U m a m o d a lid a d e
d ife re n te d c ru p tu ra c a q u e o c o rre q u ando um c o le g a v o lta a se r
um a p esso a co m o as o u tras o u s e tran sfo rm a em relap so , d e ix a n d o
de se e sfo rç a r p o r m an ter o tip o d e fachada que a au to rid ad e do seu
estatu to im p lica ou faz co m q u e o s co leg as e a au d iên c ia e sp e re m
dele. C o stu m a d izer-se d e ste g é n e ro de d e sv ia n tes q u e “ sa íram do
p artid o ” . A ssim na ilha das S h e tla n d , os seus h ab itan tes, esíb rc a n d o -
-se por se m o strarem aos v is ita n te s da ilha corno a g ric u lto res e v o lu í­
dos, to rn a v a m -se p o r v ezes h o s tis aos p o u co s ag ric u lto re s que a p a ­
rentem en te não sc im p o rtav am c o m esse e sfo rço e se recu sav am a
lav ar-se ou a b arb ear-se co n v en ien tem en te, ou a c o n stru ir um pátio
d e acesso às su as casas, ou a s u b stitu ir o telh ad o trad icio n al p o r o u ­
tro m en o s associado ao p rim itiv ism o cam p o n ês. D o m esm o m odo.
houve u m a a sso ciação de v e te ra n o s de g u erra c e g o s, que, m o v id o s
p elo seu d e se jo dc não a ssu m ire m um papel d ig n o d e c o m p a ix ão ,
p e rc o rria m a c id a d e te n ta n d o id e n tific a r os seu s c o m p a n h e iro s de
c e g u e ira q u e. ten d o a b a n d o n a d o o grupo, se d ed ica v am a m e n d ig a r
à s esq u in as.
D ev em o s incluir aqui u m a ú ltim a observação acerca das relações
em vig o r entre coleg as. H á c e im s grupos de c o leg as c u jo s m em bros
raram ente são resp o n sab ilizad o s p e lo com portam ento d o s seu s pares.
É assim q ue as m ães são. sob c e rto s aspectos, um grupo de co leg as, e
contu d o , de um m odo geral, os e rro s de um a delas, ou as suas co n fis­
sões de culpa, nào afectam sig n ificativ am en te o respeito conced id o
aos restan tes m em bros d o g ru p o . P o r outro lado, h á g rupos de cole­
g as cu jo c a ra c ter é m ais c o rp o ra tiv o e cujo s m em bros são estreita ­
m ente identificados uns co m o s o u tro s pelo p úblico, de tal m odo que
a repu tação p ositiva da ca d a e le m e n to acaba p o r d ep en d e r d a m aneira
c o m o se co m p o tiam os outros. P o r isso, q u an d o um dos m em bros do
grupo se ex p õ e a um escân d alo o u o causa, todos os outros vêem a
su a im a g e m p ú b lic a m ais o u m e n o s a fe c ta d a . A o m e sm o te m p o
co m o cau sa e e fe ito d e sta id e n tific a ç ão co lectiva, v em o s co m fre ­
198 lirving Goffnian

q u ê n c ia os m em b ro s d o grupo o rg a n iz a rem -se de m odo form al no


q uadro dc u m a asso ciação única m andatada para re p resen ta r o s inte­
resses p ro fissio n ais do grupo e im p o r a su a d iscip lin a aos elem entos
q u e p onham em p erigo a d efin ição d a situ ação visad a pelos restantes.
S em dú v id a, o s c o leg as c u jo g m p o assim se organiza co n stitu em urna
espécie de eq u ip a, um a eq u ip a q ue d ifere d as eq u ipas habituais p d o
fa c to de os m e m b ro s d a su a a u d iê n c ia n ã o se e n c o n tra re m n u m a
re la ç ã o im e d ia ta de fren te a fre n te e lerem de c o m u n ic a r un s aos
outros as su as resp o stas d epois de as exib içõ es a que assistiram terem
j á ch eg ad o ao fim . O co leg a ren eg ad o é. pelas m esm as razões, um a
esp écie dc traid o r ou vira-casaca.
A c o n sid e ra ç ão d e ste s asp ecto s d o s g ru p o s de co leg as o b rig a-n o s
a m o d ific a r um p o uco o n o sso q u ad ro de d e fin iç õ e s inicial. S om os
le v a d o s a e n tra r em lin h a dc c o n ta c o m u m tip o m a rg in a l d e a u ­
d iên cia "‘f r a c a ’, c u jo s m em bros não se e n c o n tra m n u m a relação dc
frente a frente m útuo a o longo de um d esem p en h o , m as q ue. m ais
tarde. p o d erão c o n ju g a r as suas respostas ao d esem p en h o que, in d e­
p e n d e n te m e n te u n s d o s o u tro s, te ste m u n h a ra m . O s g ru p o s d e c o ­
legas n ão são, sem d ú v id a, o s ú n ic o s c o n ju n to s de acto res co m u m a
au d iê n c ia d e ste tipo. P o r ex em p lo , um d e p a rtam en to de E stad o ou
de relaçõ es ex terio res p o d erá e sta b e le c er um linha d e c o n d u ta oficial
para d iv e rso s d ip lo m a ta s esp a lh a d o s p elo m undo. M a n te n d o e s tri­
ta m e n te essa lin h a de acção c c o o rd en an d o co m rig o r os seus co m ­
p o rta m e n to s . ta n to em te rm o s de c o n te ú d o c o m o em te rm o s de
tem p o , o s d ip lo m a ta s em c a u sa fun cio n am e v id en tem en te, ou supõe-
-se q u e fu n cio n am , c o m o u m a e q u ip a ú n ic a c o m e tid a co m urn único
d e se m p e n h o à e sc a la m u n d ial. M as é tam b ém in d u b itáv el q u e em
tais c aso s os m em bros d a au d iên cia n ão se en co n trem em co n tacto
d irecto uns c o m os outros.
Y

Comunicação Deslocada

Q u a n d o d u a s e q u ip a s sc e n c o n tra m c o m fins de in te ra c ç ã o , os
m em bros dc c a d a u m a d elas te n d e m a a d o p ta r u m a linha de acção
q u e su ste n ta q u e são o que p re te n d e m ser, e a a g ir em co n seq u ên c ia.
A fam iliarid ad e dos b astid o res é su p rim id a para que a inter-relação
d a s atitu d es n ão se d esag reg u e e to d o s os m em b ros possam integrar-
-se n a m e sm a equipa, sem q u e n in g u ém , p o r assim dizer, fiq u e de
fora. C a d a um d o s p a rtic ip a n te s n a in teracção te n ta h a b itu alm e n te,
c o n h e c e r e m an ter o seu lugar, ad o p ta n d o o eq u ilíb rio v ariável en tre
f o r m a l i d a d e e in f o r m a l i d a d e e s t a b e l e c i d o p a r a a i n te r a c ç ã o ,
e s te n d e n d o a o s s e u s c o m p a n h e ir o s de e q u ip a e s ta a titu d e . A o
m esm o tem po, c a d a u m a das e q u ip a s lende a su p rim ir a sua c o n c e p ­
ç ã o in g é n u a d e si p r ó p r ia e d a o u tr a e q u ip a , p r o je c ta n d o urna
d efin ição d e si p ró p ria e dos o u tro s relativam ente a c eitáv el p o r estes
ú ltim o s. E p ara g a ra n tir que a c o m u n ic a ç ão se p ro c e ssa rá atrav és do s
e s trito s c a n a is e s ta b e le c id o s , c a d a u m a d as e q u ip a s sc d is p o rá a
a u x il ia r a o u tr a , d e m o d o t á c i t o e c u id a d o s o , n o s u s t e n t a r d a
im p ressão q u e a o u tra v isa su scitar.
E v id en tem en te, em m o m e n to s d e grande crise, p o d e in te rv ir su ­
b ita m e n te u m n o v o c o n ju n to d e m otiv o s, ao m e sm o te m p o que a
d istân cia so cial estab elecid a e n tre a.s duas equipas au m en tará ou será
r e d u z id a d e m a n e ira s e n s ív e l. O b s e rv e m o s o s e g u in te e x e m p lo
ex tra íd o d o e stu d o sobre um s e rv iç o hosp italar onde estav a m a ser
trata d o s alg u n s p acien tes v o lu n tá rio s que so friam d e p ertu rb a çõ es de
m e ta b o lis m o a c e rc a d a s q u a is p o u c o sc s a b ia c p o u c o se p o d ia
200 F.rving Goffman

fa z e r1. D ev id o ä s ex ig ên cias im postas ao s p acientes p eia in v estig a­


ção e ao se n tim e n to g e n e ra liz ad o de d e sâ n im o a sso c ia d o a o p ro g ­
nóstico. a lin h a p recisa q u e h ab itu alm en te separa o m éd ico do d o en ­
te so freu um a c e rta a ten u ação . O s m éd ico s in terro g av am d eferen te e
d e m o ra d a m e n te os p acien tes a re sp e ito d o s seu s sin to m a s, e estes
ú ltim o s acab aram p o r sc c o n sid e ra r c o m p a n h eiro s d c in v e stig a çã o
d o s p rim e iro s. N o e n ta n to , d e um m o d o geral, u m a vez p a ssa d a a
crise, o c o n se n so fu n cio n al a n te rio r te n d e a ser restab e lecid o , e m ­
b o ra c o m a lg u m e m b a ra ç o . D e ig u a l m a n e ira , p o r a ltu ra dc p e r­
tu rb a ç õ e s re p e n tin a s de um d ese m p e n h o , so b retu d o q u a n d o ce rta s
id e n tific a ç õ e s se re v e la m fa lsa s, a p e rso n a g em re p re se n ta d a pode
ru ir m o m e n ta n e a m e n te, en q u a n to o ac to r q u e a re p rese n ta se “d is ­
tra i” e e x p lo d e n u m a e x c la m a ç ã o d e slo c a d a . A m u lh e r de um g e ­
neral a m erican o n arra um e p isó d io q ue su cedeu q u an d o ela e o m a­
rido p asseav am , d e sc o n tra id a m en te v e stid o s, n u m jip e d esco b erto ,
p o r u m a noite de Verão:

O som q ue a seg u ir ouv im o s foi o ch iar dos travões, quando um


jip e d a Polícia M ilitar nos em purrou para a berm a da estrada. O s
hom ens da PM apearam -se e en cam inharam -se para o nosso carro.
— O se n h o r vem ao volante de um a v ia tu ra o ficia l e tra z um a
sen h o ra a aco m p an h á-lo ! — ex p lo d iu o m ais im p u lsiv o do s s o l­
d ad o s da patrulha. — M o stre-m e a au torização!
O exército, evidentem ente, não prôve que quaiquer pessoa po.ssa
co n d u zir u m a viatu ra m ilitar sem um a a u to rização especial, in d i­
can d o quem perm itiu o seu uso. O soldado da P M m ostrava um a
a titu d e d c e x tre m a s e v e rid a d e , c p e d iu a c a rta de c o n d u ç ã o d c
W ayne - d ocum ento m ilitar que cie era ob rigado a ter consigo.
A v erdade, claro, era que não trouxera nem licen ça nem carta.
M as tin h a o b o n é de q u atro estrelas n o b an co do carro ao seu lado.
P ô -lo na c a b eça co m um gesto tran q u ilo m as rápido, en q u a n to os
h o m en s d a PM iam a o jip e deles b uscar os form u lário s do s autos

1 Ronce Claire Fox, “A Sociological Study o í Stress: Physician and Patient on a


Research W;ird" (dissertação de Ph. D. inédita. D epartm ent o f Social Relations.
Radcfiffe College. 1953).
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias

co n i q u e sc p rep arav am p ara in c rim in a r W ayne. T ro u x eram o que


lin h am ido buscar, c n c a m in h a ram -se dc novo em d irecção a n o s e
d c rep en te ficaram hirto s c o m o m ortos, b o quiabertos.
Q u atro estrelas!
A n tes de ter tem po p ara reflectir, o prim eiro soldado, q u e fora
quem até ali fizera a despesa d a conversa, exclam ou : “ M eu D eus!”, c
d ep o is, realm ente aterro rizad o , tapou a b o c a co m a m ão. F ez um
esfo rç o intenso ten tan d o rcco m p o r-sc o m elhor po ssív el da aflição
cm q u e caíra c disse: M eu g e n e ra l, não o re c o n h e ci."2

N a n o ssa sociedade an g lo -a m e rica n a , “ M eu D eu s!” , ou “ Valha-


-m e D e u s!” , ou as ex p re ssõ e s fa c ia is eq uivalentes sig n ifica m m uitas
vez es que o a c to r ad m ite ter-se m o m e n ta n e a m e n te c o lo c a d o nu m a
p o sição em q ue sc to rn a m an ifesta urna ruptura relativa à p e rso n a ­
g e m e n c e n a d a . S e m e lh a n te s e x p r e s s õ e s re p re s e n ta m u m a fo rm a
ex trem a d c co m u n ic a ç ão d e slo c a d a , m as. apesar d isso , in te g ra ra m -se
a tal p o n to nas co n v ersaçõ es q u e quase eq u iv alem a um ped id o de
d e sc u lp a s , in v o c a n d o o fa c to d e to d o s te rm o s os n o sso s d e sliz e s
en q u a n to actores, e. n esses te rm o s , sendo susceptível d e a cab ar por
se en q u a d ra r no d esem p en h o .
S eja co m o for. as crises d este g é n e ro são ex cepcionais; a regra c a
e x istê n c ia de um c o n se n so fu n c io n a l c um a a d a p ta ç ã o c o n d iz e n te
com o lu g a r p u b licam en te o c u p a d o . Por trás d e ste ac o rd o d c ca v a­
lh eiro s regular existem , po rém , flu x o s de co m u n icação m ais com uns,
em bora m en o s m anifestos. Se e s s e s fluxos n ã o fossem subterrâneos,
se as c o n cep çõ es q ue v eiculam fo sse m oficial e não d issim u lad am en ­
te co m u n icad as, d esm en tiriam e co n tra d iria m a d efin iç ão da situação
projectad a a títu lo o ficial pelo s particip an tes em interacção. Q uando
e s tu d a m o s um o rg a n is m o s o c ia l, d e sc o b rim o s q u ase se m p re este
g é n e ro de se n tim e n to s d is c o rd a n te s . In d icam -n o s q ue, e m b o ra um
a c to r a ja c o m o se a su a r e s p o s ta a d ad a situ a ç ã o fo s s e im e d ia ta ,
im p e n sa d a e esp o n tân ea, e e m b o r a ele p ró p rio talv e z p en se q u e c
esse o caso, é sem p re possível a e m erg ên cia de situações em q u e ele

~ Mrs. Mark Clark (Mauritie Clark). C aptain's Rride, Gennral’s Ixtdy, YtcGraw-
-Hill. Nova Iorque. I‘>56, pp. 128-129.
202 Hrving Gofl'man

tran sm ita a u m a ou d u a s d as p essoas presentes a ideia d e acordo com


a qual a ex ib ição q u e cst;1 a en c e n a r é apenas isso m esm o — um a exi­
bição e n c e n a d a. P o r c o n se g u in te , a p resen ça da c o m u n ic a ç ão d e s­
locada é um arg u m en to su p lem en tar ap o n tan do para a co n v eniência
de e stu d a rm o s o s d e se m p e n h o s cm term os de eq u ip as c d e p e rtu r­
b a ç õ e s ou ru p tu ra s p o te n c ia is d a in te ra c ç ã o . R e p ito q u e isto n ã o
e q u iv a le a a f ir m a r q u e a c o m u n ic a ç ã o d is s im u la d a re fle c te m ais
efectiv am en te a realid ad e real d o que a c o m u n icação oficial com a
qual se a c h a n u m a relação d e inconsistência; o q u e im p o rta su blinhar
é o facto de o a c to r se en co n trar caracteristicam en te c o m etid o com
am b as as fo rm as de co m u n icação , e dc esse duplo co m etim en to d e v er
se r cau telo sam en te m an ejad o a fim de n ã o d eix ar postas cm xeque as
pro jecçõ es o ficiais. C o n sid erarem o s q uatro tipos d e en tre as n u m e ­
rosas form as de co m u n ic a ç ão em que o ac to r sc em p en h a, e m b o ra
ta is fo rm as v e ic u le m in fo rm a ç õ e s in c o m p a tív eis co m a im pressão
oficialm en te v isad a d u ran te a interacção: o tratam ento d ad o aos alí­
sen les. as c o n v e rsa i dc palco, a conivência das eq uipas e as acções de
rcalinham ento.

O Tratamento Dado aos Ausentes

Q u a n d o o s m e m b ro s de u m a e q u ip a se d irig e m aos b a stid o re s,


onde a au d iên cia não p ode vê-lo s nem o u v i-lo s, co n sa g ram -se m uito
fre q u e n te m e n te a d e p re c ia r a a u d iê n c ia em te rm o s in c o m p a tív e is
co m os d o tratam en to c a ra a c a ra que lhes con ced em . N os e sta b e ­
le c im e n to s c o m e rc ia is de p re s ta ç ã o de se rv iç o s, p o r e x e m p lo , os
clie n te s, tra ta d o s co m to d o o re s p e ito d u ra n te o d e se m p e n h o , são
m u itas vezes rid icu larizad o s, criticad o s, caricatu rad o s, am ald iç o ad o s
e d e n e g r id o s , a s s im q u e o s a c to r e s s e e n c o n tra m n a z o n a d o s
b a stid o re s; a o m esm o tem p o e n o m esm o lugar, 6 p o ssív e l q u e se
u rd a m plan o s d estin ad o s a “ lev á-lo s", a iludi-los ou a a ca lm á -lo s3.
A ssim , na co zin h a d o hotel d a ilha d as S h etlan d , o s hóspedes eram

; Ver. por exemplo, o caso relativo a "Central I lalvenhishcry". in Robert Dübln. or¿r.
Human Relations in Administration, Prcntice-Hall. Nova Iorque. 1951. pp. 560-63.
A Apresentação do liu na Vida de T odos os Dias

d esig n a d o s p o r c o g n o m es d e p re c ia tiv o s c cm código; a sua m an eira


d c falar, o to m de v oz e o u tras p a rtic u la rid ad e s to rn av am -se o b je cto
d c um a im ita ç ã o e s c ru p u lo s a , f o rn e c e n d o m o tiv o s d c g ra c e jo s e
c rític a s; o s seus p o n to s v u ln e rá v e is, as suas fraq u ezas e o seu e sta ­
tu to so c ia l e ra m e x a m in a d o s c o m um esp írito c h e io de e sc rú p u lo
u n iv e rs itá rio e c lín ic o s as s u a s s o lic ita ç õ e s de p e q u e n o s se rv iç o s
d av am lu g ar a esg ares faciais g ro te sc o s c a prag as — sem pre q u e os
c lie n te s n ão p o d iam v e r nem o u v ir os e m p re g a d o s do h o te l. F.sta
q u e b ra d o resp eito c o n v en cio n al e ra am p lam ente co m p e n sa d a pelo
co m p o rtam en to dos h ó sp ed es que., e n tre si. d e screv ia m o s m em bros
d o pessoa! d o hotel c o m o um c o n ju n to de porcos ind o len tes, de tipos
p rim itiv o s q u e sc lim itavam a v e g e ta r ou de an im ais áv id o s dc ga­
n h ar d in h eiro a q u a lq u e r preço . E n o entan to q u an d o falav a m d ire c ­
tam en te uns com o s outros, os h ó sp e d e s c os m em bros do pessoal do
h o te l d a v a m m o stra s de r e s p e ito m ú tu o c e x ib ia m u m a ra zo áv e l
a m en id a d e de m aneiras. D o m e sm o m odo, são m uito p o u c as as re la ­
ç õ e s dc a m iz a d e e m que, de v e z e m quando, q u an d o o am ig o não
está p resen te, o seu a m ig o n ão p e rm ita e x p rim ir im p ressõ es in c o m ­
p atív eis c o m as q u e lhe m ostra c a r a a cara.
P o r vezes, sern dúv id a, o c o n trá rio tam bém se verifica, e os a c to ­
res elo g iam a sua au d iên cia em te rm o s que não seriam ad m issív e is
se e s ta ú ltim a e s tiv e s s e p re s e n te . M a s a d e p re c ia ç ã o em se g re d o
a fig u ra -se m u ito m ais co m u m d o q u e o e lo g io se c re to , ta lv e z por
se rv ir p ara c o n se rv a r a so lid a rie d a d e da equipa, c u jo s m em bros dão
provas d e m útuo resp eito a e x p e n s a s dos a u sen tes c ta lv ez c o m p e n ­
sem assim as p e rd a s de re sp e ito p róprio a q u e sc ex p õ em q u an d o
têm de c o n c e d e r à au d iê n c ia u m tratam en to c a ra a ca ra m ais a c o m o ­
daticio.
R eferirem o s a g o ra d u as té c n ic a s com uns de d ep re c ia çã o dos e s­
p ec ta d o re s ausen tes. E m p rim e iro lugar, q u ando se e n co n tram n u m a
reg ião cm q u e c o m p arecem p e ra n te a audiên cia, e d e p o is de esta te r
saíd o ou a n te s d e ter chegado, o s acto res p o r vezes re p rese n tam s a ti­
ricam e n te a sua interacção p a s s a d a ou futura co m os e sp ectad o res,
assu m in d o para esse efeito a lg u n s d o s elem entos da e q u ip a o papel
da au d icn cia ausente. F ra n c e s D o n o v a n , p o r ex em p lo , ao d esc re v e r
os m o tiv o s de g racejo das v e n d e d o ra s, revela-nos o seguinte:
204 Erving Goffman

M as, a m enos q ue estejam ocu p ad as, as rap arig as não deixam


de c o n ta c ta r p o r m uito tem po. I lá u m a a tra cç ão irresistív el que as
u n e . S e m p re q u e tê m o c a s iã o p a ra is s o , b rin c a m a o jo g o do
“ c lie n te ", um jo g o q u e in v en taram e d o qual p arecem n u n c a se
c a n sa r e que, em te rm o s d a c a ricatu ra e co m éd ia, n u nca vi su p era ­
d o ib sse p o r q ue p alco fo sse. U m a d a s jo v e n s assu m e o papel da
v ended o ra, o u tra o d a cliente q ue vem p ara c o m p ra r u m vestido, c
as d u a s e n c e n a m a c to c o n tín u o um n ú m e ro q u e d e lic ia r ia os
e sp ectad o res d e um a p e ç a lig eira.4

D en n is K in caid d escrev e u m a situ a ç ã o an á lo g a n a su a análise do


c o n ta c to so c ia l o rg a n iz a d o p elo s h a b ita n te s lo c ais e m fu n ç ã o dos
ingleses no p erío d o inicial da ad m in istração b ritâ n ica d a índia:

Se os jo v e n s ag en tes c o m erciais p o u co prazer ex traíam desse*


en co n tro s, os seus an fitriõ es, m al-g rad o a satisfação que an te rio r­
m en te leriam reco lh id o d as b o as g raças de Raji e d o e sp írito dc
K a lia n i, sen tiam -se d e m asiad o em b a ra ç ad o s para g o z a re m a sua
p rópria fe s ta en q u an to os co n v id ad o s ingleses não se retirasse m .
E ra só d e p o is d isso q u e c o m e ç a v a um a re u n ião de c u ja realidade
m u ito p o u co s b ritân ico s su sp eitav am . As po rtas eram fechadas, e
alg u m as d an ç a rin a s, e x trem am en te h áb eis cm m atéria d c m im os
co m o todos os in d ian o s, im itav am os e n te d ia d íssim o s co n v id ad o s
q u e h a v ia m a c a b a d o d e sair, e a d e s a g ra d á v e l te n s ã o d a h o ra
a n t e r i o r e r a a l i v i a d a p o r e x p l o s õ e s d e a n im a ç ã o c h u m o r.
E n q u a n to os carros d o s ingleses v o ltav am ru id o sam en te para casa.
R aji e K aliani v e stir-se -ia m c a ric a tu ra n d o os trajes o cid e n ta is e
e x ib in d o co m um e x a g e ro in d e c o ro so u m a versão o rie n ta liz a d a
d as d a n ç a s b ritâ n ic a s, esses m in u etes e p asso s d e d a n ç a ru stic a
q u e tã o in o cen tes p areciam a o lh o s eu ro p eus, q u a n d o co m p ara d o s
com as atitu d e s de p ro v o cação d as bailarinas in d ian as, m as q u e os
in d ian o s co n sid erav am c o m perfeito esc â n d a lo .5

4 Francos Donovan. The Saleslady, University of Chicago Press. Chicago. 1929. p.


39. São apresentados pela autora exemplos concretos nas pp. 39-40.
5 D ennis Kincaid, British S o cia l Life in India, 1608-¡937. R yutlcdse. Londres.
1938. pp. 106-107.
A Apresentação do liu na Vida de Todos os Dias 205

E n tre o u tro s a s p e c to s , d ir - s e - ia que u n ia a c tu a ç ã o s e m e lh a n te


constitui um a esp écie de p ro fa n a ç ã o ritual tan to d a reg ião de fach ad a
co m o da au d iên cia.6
E m seg u n d o lugar, é fre q u e n te m an ifestar-se um a d ife re n ç a im ­
p o rta n te entre os te rm o s em q u e a s p esso as são referid as p elas ou tras
e o s te rm o s em q u e e s s a s o u tr a s a s in te rp e la m . N a p r e s e n ç a d a
au d iê n c ia , o s a c to re s te n d e m a u tiliz a r u m a fo rm a d c tra ta m e n to
liso n je ira para c o m os e sp e c ta d o re s . O q u e im p lica, na so c ie d a d e
a m e ric a n a , u m a fo rm a de tra ta m e n to d e lic a d a m e n te c e rim o n io s a ,
co m o s ir ou m ister — ou ain d a, n a alternativa, um tra ta m en to fam i­
lia r calo ro so , u tilizan d o o nom e p ró p rio ou um d im in u tiv o , sen d o a
fo rm alid ad e ou info rm alid ad e d a s m aneiras e sc o lh id a s d ete rm in a d a
p e lo s d e s e jo s d a p e s s o a q u e 6 in te rp e la d a . X a a u s ê n c ia d o s e s ­
p e c ta d o re s, e ste s te n d e m a se r re fe rid o s p o r a lc u n h a s m ais c ru a s,
pelos nom es próprios q u an d o e s te s não são u m a fo rm a lícita dc tra­
tam en to no co n tacto d irecto ou p o r u m a versão que a rtic u la d e m a­
n e ira d is to rc id a o n o m e c o m p le to . P o r v e z e s o s m e m b ro s d a a u ­
d iê n c ia são d esig n ad o s não p o r u m nom e proferido de m odo m enos
re sp eito so , m as p o r term os de c ó d ig o que os red u zem a e le m en to s de
u m a categ o ria ab stracta. A ssim , n a ausência dos p acien tes, os m éd i­
co s p o d e m re le rir-se a um d e le s ch a m a n d o -lh e o ‘‘c a rd ía c o ” ou o
“ e stre p to c o c o " ; os b a rb e iro s, e n tr e eles, re fe re m -se ao s fre g u e se s
d an d o -lh es o nom e de “c a b e le ira s ” . E de igual m an eira a aud iên cia
a u s e n te p o d e r á s e r d e s ig n a d a p o r u m te rm o c o le c tiv o , o n d e se
c o m b in a m o m a rc a r de d is tâ n c ia s e a d e p r e c ia ç ã o , in d ic a n d o a
e x istê n c ia de u m a clivagem en tre o s q ue são e não são do g ru p o . Os
m ú sico s ch am am “c a lh a u s” aos o u v in tes; as jo v e n s a m eric an as que
trab alh am nos escritó rio s, “G .R .” [“ refugiadas a le m ã s” ] às su as co le ­
g as estran g eiras:7 os so ld ad o s a m e ric a n o s referem às esco n d id a s os

6 Eis outro exemplo «fim: cm cortos e striló n o s compartimentados por categorias, à


hora dc almoço os funcionários superiores saem para almoçar, enquanto todos os
outros indivíduos "ascendem” tom ando um a zona superior espaço de almoços ou de
breves conversas pós-prandinis. A ocupação momentánea dos locais de trabalho dos
superiores parece propiciar, entre outras coisas, aos interessados a prática do certas
modalidades dc profanação.
“German Refugees". Ver Gross, op.cn.. p. 186.
206 Erving Goffman

so ld a d o s in g leses c o m q u e tra b a lh a m p e lo nom e d e “L im e y s” ;8 os


ho m en s dos parq u es de d iv ersõ es aren g am p a ra in d ivíduos a q ue, em
p riv a d o , ch am am brutos, in d íg en as ou p acó v io s; c os ju d e u s d e se m ­
p e n h a m as p rá tic a s d e ro tin a d a so c ie d a d e q u e o s a c o lh e p e ra n te
e s p e c ta d o r e s q u e d e s ig n a m c o m o g o y im , e n q u a n to o s n e g ro s ,
q u an d o falam uns c o m os o u tro s, sc referem p o r v ezes aos b rancos,
d a n d o -lh e s o n o m e d c ofay. N um e x c e le n te e stu d o c o n sa g ra d o às
quad rilh as d e ca rte irista s, d ep aram o s com alg o sem elhante:

O s b olsos d as vítim as só c o n ta m p ara o c a rte irista n a m ed id a


e m q u e c o n tê m d in h e iro . D e fa c to , o s b o lso s to rn a ra m -se a tal
p o n to sím b o lo s d as p resas e d o seu d in h e iro q u e u m a v ítim a é
co m freq u ên cia — ta lv e z na m aio r p arte d o s c aso s — d e sig n ad a
em term o s d e bolsos, co m o bolso esquerdo das calças, bolso de
fora ou bolso de dentro , co n fo rm e o b o lso d esp eja d o — e o certo
é q u e to d a a q u ad rilh a sc serve d as m esm as e x p re ssõ e s.9

T alvez o m ais cruel dos m odos de referir um indivíduo seja o que


en co n tram o s n essas situ açõ es em q ue este últim o so licita que o tra­
tem de m aneira fam iliar e nas quais, em bora o pedido seja aceite com
to lerân cia en q u an to o in divíduo está presente, o s outros co n tin u am a
desig n á-lo p o r urn nom e de cerim ó n ia na su a ausência. F oi assim que
na ilh a d a s S h e tla n d u m v is ita n te de p a s s a g e m , q u e p e d ira a o s
ag ricu lto res locais que o tratassem pelo prim eiro nom e, v ia p o r vezes,

& Ver Daniel Glaser, “ A Study o f Relations between British and American Enlisted
Men at S H A K P \ tcsc de .VIes Iratio incdita, Department o f Sociology, University of
C hicago. 19^7. G laser escreve. p. 16: "O termo lim ey, conform e o utilizam os
americanos cm ve/, de british, era geralmente aplicado com conotações depreciati­
vas. Os americanos abstinham -sc dc o proferir na presença dos ingleses, em bora es­
tes últim os habitualmente ignorassem o seu sentido ou não lhe atribuíssem qualquer
a c e p t o depreciativa. N a realidade, as cautelas dos americanos a este respeito lem­
bram as dos brancos do Norte dos ElJA, que sc servem do termo nigger, mas abs-
tendo-se ríe o proferir diante dc negros. Este fenómeno relativo aos cognom es ¿ um
traço com um , sem dúvida, nos contactos entre etnias cm que prevalecem as relaçfles
entre categorias diferentes."
y David W. M aurer, Whiz -Mob. American Dialect Society. G ainesville. Florida.
1955, p. 113.
A Apresentação do F.u na Vida de T odos os Dias 207

q u a n d o p resen te, a sua p reten são sa tisfe ita , e n q u an to , a ssim q u e se


a usentava, passav a a ser referido c m term os m ais form ai.s. que o repe­
liam para o lugar q u e os ag ricu lto res entendiam com petir-lhe.
Indiquei dois m odelos de d e p re c ia çã o pelos actores das suas audiên­
c ia s — desem p en h o satírico de d a d o papel e form as de re fe re n cia ou
d e sig n a ç ã o pejo rativ as. M as e x iste m outros pro cesso s. Q u an d o não
h á m em bros d a au d iên cia p re se n te s, os m em bros d a e q u ip a poderão
d e sig n a r certos asp ecto s das suas p rá tic a s de ro tin a de m odo cín ico
ou p u ram en te técnico, d e m o n stra n d o assim p len am en te a si pró p rio s
q u e não vêem a sua a c tiv id ad e c o m o s m esm os o s o lh os c o m q u e a
vê a au d iência. Q u an d o os c o m p a n h e iro s de eq u ip a sab em que o s e s­
p e ctad o re s e stã o a chegar, d e cid em p o r vezes a tra sa r o seu d e sem p e ­
nho, d elib erad am en te, até ao ú ltim o m inuto, p erm itin d o d esse m odo
q u e a au d iên c ia ten h a um re la n c e , m as um relan ce ap en as, do seu
c o m p o rta m e n to de bastid o res. D e m an eira an álo g a, a e q u ip a p o d erá
p rec ip ita r-se c m d irecção ao s b a stid o re s, cm b u sca de um p o u co de
d esc o n tra c çã o , no m o m en to em q u e a au diencia sai. A trav és d esta
rá p id a e n tra d a ou saída d a acção , a eq u ip a p rofana de ce rto m o d o a
a u d iên cia, p o n d o -a em co n tacto c o m o seu co m p o rtam en to da reg ião
d o s bastidores, ou m an ifesta a su a rev o lta co n tra a o b rig ação d e ter
que rep re se n ta r um esp ectácu lo p e ra n te a audiên cia, ou to m a o m ais
c la ro possív el a ex istên cia de u m a d iferen ça entre a e q u ip a e o s e s­
p e ctad o res — tudo isto sem se d e ix a r ap an h ar em falso pelos e sp e c ­
tadores. O u tro m o d elo ain d a d a ag re ssiv id a d e co n tra os au sen tes é o
q u e en co n tram o s nos g racejo s e tro ç a s en d ereçad o s ao m em b ro da
e q u ip a q u e se separa (ou sim p le sm e n te deseja sep arar-se) d o s seus
co m p an h eiro s, ascen d en d o , d e sc e n d e n d o ou m o v en d o -se h o rizo n ta l­
m ente na e sc a la de categ o rias d a a u d iê n c ia . Hm tais o casiõ es, o c o m ­
pan h eiro de e q u ip a que se p rep ara p a ra sair d o g ru p o p o d e rá se r tra­
tad o c o m o sc já tivesse saído, e to m a r-sc -á objecto d e um tratam en to
ab u siv o ou e x c e ssiv a m e n te fa m ilia r, q ue p e rm a n e c e rá im p u n e e n ­
qu anto se ex erce assim so b re o in d iv íd u o e, atrav és dele, sobre a ge­
neralidade dos espectadores. U m ú ltim o exem plo d a m esm a a g re ssi­
vidade é o q u e se m an ifesta q u a n d o um m em bro da aud ien cia é o fi­
cia lm e n te in tro d u zid o na eq u ip a. U m a vez m ais. este últim o p o d e rá
se r o b je cto d e m au s tratos d e b rin c a d e ira ou ser o b rig a d o a p assar
208 Erving Coffman

por “ m o m en to s difíceis*' — o que aco n tece cm fu n ção do s m o tivos


q u e o to rn aram objecto d a ag ressiv id ad e d a e q u ip a de que acaba de
sa ir na altu ra e m q u e se p rep arav a p a ra a d e ix a r.10
A s técnicas de d ep reciação q ue ex am in am o s poem em e v id e n c ia o
facto de os in d iv id u o s serem , em term os verb ais, tra tad o s de m aneira
razo áv el no c o n ta c to d irecto , e relativ am en te m altratados assim que
v ira m c o s ta s . Tal 6 u rn a d a s g e n e r a liz a ç õ e s f u n d a m e n ta is q u e
pod em o s fa z e r ac e rc a da in teracção , m as sem que d e v am o s p rocurar
n a n o s s a c o m u m n a tu r e z a d e m a s ia d o h u m a n a a e x p lic a ç ã o do
fen ó m e n o . C o m o j á foi su g e rid o , a d e p re c ia çã o d a a u d ie n c ia nos
bastid o res serve p a ra a lim e n ta r o m oral d a eq u ip a. F. q u an d o a a u ­
d ie n c ia se e n c o n tr a p re s e n te , as fo rm a s d e tr a ta m e n to q u e d e ­
m onstram c o n sid eraçaão p elo s esp e c ta d o res são n ecessárias, não em
aten ção a estes, ou não s ó em aten ção a e le s ? m as po rq u e g aran tem
q u e a in teracção p o d erá p ro sse g u ir de m odo o rd en ad o e tran q u ilo .
0 $ s e n tim e n to s “ re a is" d o s a c to re s p a ra co m u m m e m b ro d a a u ­
d iê n c ia (sejam positiv o s ou n eg ativ o s) pouco p arecem ter a v e r com
a q u e stã o d o m odo c o m o esse m e m b ro da au d iê n c ia é tra ta d o no
c o n ta c to d ir e c to e d o m o d o c o m o é tra ta d o q u a n d o v ir a c o sta s.
T alv ez seja v erd ad e q u e a activ id ad e dos b astid o res assu m e co m fre­
q u ê n c ia a f o r m a d e u m c o n s e lh o d e g u e r r a ; m a s q u a n d o d u a s
eq u ip as se e n c o n tra m n o terren o da in teracção não parece q ue. de
um m o d o g eral, o façam co m p ro p ó sito s de paz ou de guerra. 0 q u e
preside ao e n c o n tro é. an tes, u m a trég u a m o m en tân ea, um co n sen so
funcional, p erm itin d o -lh es que tratem d o que têm a tratar.

A Conversa de Palco

Q u an d o o s m em b ro s d e lim a eq u ip a não se en co n tram p e ra n te a


au d iên cia, d iscu tem m u itas v ezes p ro b lem as de palco. L ev an tam -se
q u e s tõ e s a c e rc a d o e q u ip a m e n to d e sin a is u tiliz a d o ; os m e m b ro s

■ Cf. Kenneth Burke. A Rhetoric o f M otives, p. 23-1 e segs.. incluindo uma análise
sociat do indivíduo que <í iniciado, na qual é fundamental a noção dc “ tormento"
(hazing).
A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias 209

reu n id o s rep ro d u zem , a título d e ex p e riê n c ia, e tcn d cm “e sc la re ce r”


a s s u a s p a u s a s , p a la v r a s e p o s iç õ e s ; a n a lis a m - s c o s m e rito s e
d e m é rito s d a s re g iõ e s d e fa c h a d a d is p o n ív e is ; c o n s id e ra m -s e as
d im e n sõ e s e o c a rá c ter d as p o s s ív e is au d ien cias do d esem p en h o a
realizar; são d iscu tid as as p e rtu rb a ç õ es que no p assad o afectaram a
rep resen tação e as que virão a in d a a poder afectá-la; co m u n ica m -se
n o v id a d e s so b re eq u ip as d e c o le g a s ; a recepção o b tid a p elo ú ltim o
d ese m p e n h o 6 m in u c io sa m e n te e x p o sta cm c o m e n tá rio s p o r vezes
c o n sid e ra d o s “p ó stu m o s"; !am b em -se as ferid as c rc fo rça -sc o m oral
e m v ista d a p ró x im a en trad a e m p a lc o .
E sta c o n v ersa acerca d o palco, so b outras d esig n açõ es, tais co m o
p a la v re a d o o u g íria p ro fissio n a l, e tc .. é um fa cto b em c o n h e c id o .
In sisti aqui nele p o rq u e n o s a ju d a a c o m p re e n d e r q ue, a p e sa r d o s
seus p ap éis so ciais m uito d iv e rso s, os d iferen tes in d ivíduos po d em
v iv er um m esm o clim a de e x p e riê n c ia d ram atú rgica. A s co n v ersas
d o s a c to re s de teatro c as c o n v e rs a s dos p ro fe sso res u n iv e rsitá rio s
en tre si são m u ito diferen tes, m as o m odo c o m o co n v ersa m so b re o
q u e dizem c m uito p arecido. C o m um a reg u larid ad e su rp reen d en te,
an tes de falarem , o s q u e vão fa la r falam com os am ig o s do q u e po­
d e rá p re n d e r ou n ão p ren d er a a u d iê n c ia , d o q ue p o d erá o fen d ê -la ou
não a o fen d er; e. dep o is de fa la re m , os q ue falaram falam co m o s
am igos d o asp ecto d o local o n d e falaram , d o tipo de au d iên c ia que
tiv eram e d o tipo de recep ção q u e conseguiram . A c o n v e rsa ac erca
d o q u e se p a s s a n o p a lc o foi já a b o rd a d a p o r n ó s n a a n á lise d as
activ id ad es dos b astid o res e d a so lid aried ad e entre co leg a s, pelo que
a seu resp eito por aqui nos fic a re m o s agora.

A C onivência da Equipa

Q u an d o um d o s participantes tran sm ite alg u m a c o isa durante a in­


teracção. co n tam o s que a co m u n iq u e apenas pela boca d a personagem
que escolheu projectar, d irig in d o explicitam en te as su as o b servações
ao con ju n to da in teracção e c o n fe rin d o a todos os p resentes igual es­
tatu to en q u an to d estin atário s d a s u a com unicação. P o r isso, o seg re­
dar. p o r ex em p lo , tenderá a se r u m a prática v ed ada e inconveniente,
210 Erving Goffman

pois é de m o ld e a d estru ir a im pressão de q ue o actor é apenas o que


parece se r e de que as c o isa s são ap enas o que ele d iz q u e sã o .11
A despeito d a expectativ a segundo a qual tudo o que é dito pelo ac­
to r deve co n co rd ar co m a d efinição da situação p o r ele visada, o actor
poderá, d u ran te a interacção, transm itir m uita co isa deslo cad a em rela­
ção à personagem que representa e tran sm iti-la de m odo a im pedir o
co n ju n to d a audiencia de se ap erceb er que algum a coisa d eslo cad a ern
relação à definição da sim ação foi de facto transm itida. As pessoas que
são adm itidas no âm bito d este tipo de com unicação clandestina entram
n um a relação d c co n iv ên cia m ú tu a fren te ao resto dos participantes.
R econhecendo m utuam ente que preservam segredos relevantes do co­
nhecim en to d o s dem ais p resentes, reco n h ecem m u tu am en te tam bém
que a ex ib ição de fraqueza que sustentam , a exibição em que afirm am
ser apenas as personagens que oficialm ente projectam , não passa afinal
d e exibição. A través desta form a de representação, os actores afirm a­
rão a su a solidariedade de bastidores até m esm o qu an d o se encontram
com etid o s com o d esem penho, exprim indo im punem ente coisas inad­
m issíveis acerca da audiência, tal com o co isas acerca d e si próprios
que a au diência co n sid eraria inadm issíveis. C ham arei “conivência da
equ ip a” a esta com u n icação conivente, cautelosam ente transm itida dc
m o d o a não p ô r ern risco a ilusão visada perante o s espectadores.
U m a v ariedade im portante d c co n iv ên cia d a equipa é a q u e d e sc o ­
brim os no sistem a de sinais secretos através dos quais os actores po­
dem receber ou transm itir dissim uladam ente inform ações relevantes,
pedidos dc auxílio e outros dados significativos necessários à ap resen­
tação d e urn d esem p en h o bem sucedido. É característico q u e estas in­
dicaçõ es partam daq u ele que d irig e o d esem p enho ou a ele se diri jam,
ao m esm o tem p o que. para ele, d isp o r de u m a linguagem subterrânea

1 1 Durante os jogos recreativos, as consullas sussurradas eniri: os participantes


poderão scr definidas com o aceilávcis. com o o serño penm lc ccrias audiências,
com postas, por exemplo, pur crianças ou estrangeiros, às quais não é necessário d e ­
mostras ce excessiva consideração. N'a simação social das negociações durante as
quais núcleos mi grupos de pessoas Iravam conversações independentes. na presen­
ça visível d'.-, oulras pessoas, veri fica-se muitas vezes um esforço por parte dos par­
ticipantes de cada núcleo no senlido dc se comportarem com o sc aquilo que esião a
dizer fosse passível de ser dito nos outros núcleos, ainda que não seja esse o caso.
A Apresentação do Fu na Vida de Todos os Dias 211

c o rre s p o n d e a urna g ra n d e s im p lific a ç ã o d a ta re fa de c o n tro lo de


im p ressão . A s in d icaçõ es de p a lc o trocam -se m uitas v ezes entre os
qu e se en co n tram com etidos c o m a apresentação do desem p en h o c os
que o ap o iam ou dirigem dos bastid o res. P or isso, servindo-sc dc urna
cam p ain h a que pode to car com o p é . a anfitriã dirigirá o scu pessoal de
cozinh a enquanto actua com o se esiivesse exclusivam ente atenta à con­
versa trav ad a à volta da m esa. Ig ualm ente, d u rante os d esem penhos
ra d io fó n ic o s e telev isiv o s, é u tiliz a d o um v o cabulário de sin a is, de
que se serv em os q ue se e n c o n tra m nos postos de controlo para o rien ­
tarem os actores, esp ecialm en te n o que se refere aos scus tem pos de
en trad a, sem que seja perm itido à audiencia to m ar co n hecim ento do
sistem a de controlo da c o m u n ic a ç ã o que opera a par d a p ró p ria co m u ­
n icação en cenada e e m q ue o ficialm en te acto res e espectadores parti­
cipam . D o m esm o m odo ain d a, n o s escritórios com erciais, os ex ecu ti­
vos que desejam estar em c o n d iç õ e s de interrom per rap idam ente m as
co m co rte sia as suas e n tre v ista s fa z e m com que as suas secretá rias
apren d am a d esem p en h ar um p a p e l que as torne cap azes d e p ó r fim a
u m a e n tre v ista no d ev id o m o m e n to e corn os pretex to s adeq u ad o s.
O utro ex em p lo será o dessa e sp é c ie de lojas onde. na A m érica, é cos­
tu m e v enderem -se sapatos. P o r v e z e s urn cliente q u e pretende um par
de sapatos de um núm ero su p e rio r a o m aior disponível, ou ao q u e lhe
corresp o n d e dc facto, será v ítim a cia seguinte m anobra:

P ara d eix ar o clien te im p re ssio n a d o c o m a eficá cia do siste m a


d e q u e d is p õ e p a ra a la r g a r s a p a to s , o v e n d e d o r d ir á q u e v ai
c o lo c a r o p a r num.» “ fo rm a trin ta e q u a tro ” . E sta s p a lav ras s ig ­
n ificam para o em p reg ad o a u x ilia r que não d ev e te n ta r a larg ar os
sap ato s, m as que os em b ru lh e co n fo rm e estão já , lim ita n d o -se a
d e ix á -lo s guard ad o s p o r m o m e n to s atrás d o b a lc ã o .! 2

Hstas deixas são, ev id en tem en te, trocadas entre um actor e um c ú m ­


p lic e o u “ s ó c io ” q u e se e n c o n tr a m istu ra d o c o rn o s m c rn b ro s da
audiên cia, com o acontece no jo g o d e “ fogo cruzado” entre urn feirante
e o seu ajudante postad o en tre os basbaques. É m ais corrente ainda

' - David G d lcr. “Lingo of the Shoe Salesm an”. A m anean Speech. IX. p. 2K.‘v
212 F.rvine Goflman

que estas d eixas sejam u tilizadas entre co m panheiros de eq u ip a no d e ­


curso de um desem penho, e a com provação dc tal circunstância for­
nece-nos um arg u m en to m ais em fav o r d e q u e nos sirvam os do con­
ceito de equipa, cm vez de n o s lim itarm os a an alisar a interacção de
acordo com o m odelo de desem p en h o s individuais. C) género de co n i­
v ê n c ia d a e q u ip a a que nos referim o s, p o r ex em p lo , rep resen ta um
papel d e im portância n a adm inistração d as im pressões q u e tem lugar
em n u m ero sas lojas am e ric a n as. O s e m p reg ad o s dc um d ad o e s ta ­
b e le c im e n to p o ssu e m m u ita s v ezes um sis te m a p ró p rio d e sin a is
o rien tad o res do d e sem p en h o a a p resen tar ao cliente, e m b o ra certos
term os d o vocabulário u tilizado p o r esse sistem a sejam relativam ente
padronizados e o corram sob as m esm as form as em g rande núm ero de
lo ja s d o p a ís. Q u a n d o , c o m o p o r v ezes a c o n te c e , os e m p re g a d o s
pertencem a um grupo que fala um a língua estrangeira, poderão ser-
vir-se d e ssa lín g u a p ara a s u a c o m u n ic a ç ão c la n d e stin a — p rática
tam b ém a d o p ta d a p o r c e rto s pais que c o n v e rsa m d ian te d o s filh o s
pequenos e pelos m em bros das classes superiores que conversam cm
francês quan d o não q u erem ser entendidos pelas crianças, pelos c ria­
dos ou pelo s fornecedores. T odavia, tal corno o recurso ao sussurro ou
ao se g re d a r, e sta tá c tic a c co n sid e ra d a g ro sse ira e pouco d e lic ad a,
lim ita-se. por o u tro lado, ap enas a m anter o segredo, m as não conserva
secreto o facto de h a v e r um segredo que está a ser m antido. P elo q u e r
utilizan d o u m a língua estrangeira, os compóinheiros dc e q u ip a só di­
ficilm ente poderão su sten tar a sua fachada de disponibilidade sincera
perante o cliente (ou de fraqueza para com os filhos, etc.). H p o r isso
que c e n a s frases q ue parecem inocentes e que o cliente ouve e pensa
co m p re e n d e r m o stram m a io r efic á c ia d o pon to de vista d o s v e n d e ­
do res. P o r ex em p lo , se n u m a sap ataria u m a clien te q u ise r a to d o o
custo um par de sapatos do tam anho B. o v endedor tentam convencc-
-la de que os exem p lares que lhe está a m ostrar são os que e la quer:

...o v e n d e d o r c h a m a rá um c o le g a e p e rg u n ta r-lh e-á : «Rentiy,


qual é o n ú m ero d estes sa p ato s?” A o tratar o c o le g a por “ B e n n y ” ,
o v e n d e d o r sabe já qu e a re sp o sta que este lhe d a rá será

*^ Diivid Geller, op. cit., p. 284.


A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 213

Um e x e m p lo su b til d e ste tip o d c c o n iv ê n c ia é o q u e no s surge


num artig o so b re a c a s a de m ó v e is B orax:

Im ag in em o s a clien te d e n tro d a loja e u m a situ aç ão cm que não


estam o s a c o n seg u ir v e n d c r-lh e o que pretendem os. O preço é e x ­
ce ssiv am en te alto; c ía torn q u e co n su ltar o m arido; v e io só p a ra
d ar urna v ista d c o lh o s. D e ix á -la ir-$c em b o ra em tais c ircu n stan ­
cias (q u e r dizer, sa ir sem c o m p ra r n ada) e q u iv ale a traiç ão num
estab elecim en to B orax. P or isso o v endedor em ite u m S .O .S . ser-
vin d o -se de urna das n u m ero sas cam painhas dc pe e sp a lh a d a s pelo
estab elecim en to . Q u ase n o m e sm o instante, o “geren te” en tra cm
c en a . a p a re n te m e n te a p e n s a r num o u tro c o n ju n to de p e ç a s de
m o b ília e p a r e c e n d o i g n o r a r p o r c o m p le to o A la d in o q u e o
cham ou.
“ D escu lp e. Sr. D ix o n ” , d iz o vendedor, fin g in d o h esitação an tes
d e sc a tre v e r a in c o m o d a r u m a p ersonagem tão a tare fad a. “N ão
sei sc p o d erá fazer alg u m a c o is a pela m inha clien te. E la acha q u e
o p reço d este c o n ju n to c m u ito alto. M inha senhora, o Sr. D ixon c
o nosso gerente.*’
O Sr. D ixon a c la ra e x p re ssiv a m e n te a g arganta. Tem pelo m e­
n o s um m etro e o iten ta de a ltu ra , cabelo c in zen to c o r de ch u m b o e
um d istin tiv o indecifrável na la p e la do casaco. P e la sua a p arên cia,
n in g u ém d esco n fiaria que sc tra ta apenas de um v e n d e d o r e sp e ­
cial. para o qual os outros e n c a m in h a m as clientes difíceis.
“S im ” , d iz o Sr. D ixon. a c a ric ian d o o q u eix o bem escan h o ad o .
“ R stou a ver, pode ir-sc e m b o ra , Bennett. Cu aten d o esta senhora.
P o r acaso , ag o ra nem estou m u ito ocu p ad o ."
O p rim eiro v en d ed o r d e sa p a re c e , com a p ro n tid ão de um m o r­
d o m o , e m b o ra esteja pro n to a d esco m p o r D ixon se ele ac ab a r por
d e ix a r a clien te e sc a p a r-se.14

A p rá tic a aqui d e sc rita d c tra n s fe rir um c lie n te para o u tro v en ­


dedor, q ue assu m e o papel d e g e re n te é. ao que p arece, co m u m em
n u m e ro so s e sta b e le c im en to s re ta lh is ta s . F p o ssív e l d e te c ta r o u tro s

Conant, np. c/r., p. 174.


214 Erving Goffinan

ex e m p lo s num estudo realizad o sobre a lin g u agem do s v endedores


de m óveis:

“D è-m e o n ú m ero d e ste artig o ” , é u m a m e n sag em q u e se refere


ao p re ç o d o a rtig o . A r e s p o s ta c h e g a c m c ó d ig o . O c ó d ig o é
u n iversal nos E sta d o s U n id o s e c o n siste sim p lesm en te na m ulti­
plicação d o preço p o r d o is, c o n h ecen d o o v e n d ed o r qual a p erc e n ­
ta g e m d c lu cro a acre sc en ta r ao preço in d ic a d o .1"

Verlier sig n ifica um a o rd e m ..., q u eren d o dizer: “D e sa p a re c e !”


É a p a la v ra u tiliz a d a q u a n d o um v e n d e d o r q u e r in d ic a r a outro
que a su a p resen ça e s lá a to rn a r a venda m ais d ifíc il.16

N a s fra n ja s d as p rá tic a s le g a lm e n te in c e rta s e d o s m éto d o s e x ­


p editiv o s d a vida co m ercial am erican a, d ep a ra m o s freq u en tem en te
c o m c o m p a n h e iro s de e q u ip a q u e u tiliz a m v o c a b u la rio e x p lic ita ­
m ente fo rjad o e ap ren d id o , que p erm ite a tra n sm issã o se creta de in­
form açõ es d e c isiv a s para o d esem p en h o . É natural q u e este g én e ro
d e c ó d ig o s não se e n c o n lrc tão h a b itu a lm e n te em c írc u lo s so ciais
m ais re s p e itá v e is 17. N o en lan to . v erifica-se q u e. p o r to d a a p arte, os
c o m p a n h e iro s de eq u ip a em p reg am um v o cab u lário inform al c m u i­
tas v ezes in co n sc ie n te m e n te a p ren d id o , in clu in d o g esto s e olhares,
q u e p e rm ite m a tra n sm issã o de sin ais d e co n iv ên cia.
P o r v e z e s e s ta s p is ta s in fo rm a is ou s in a is s e c re to s m a rc a m o
in íc io d e u m a f a s e d o d e s e m p e n h o . A s s im , “ e m s o c ie d a d e ” , o

' •* Charles Miller. “Furniture Lingo". American Speech. VI, p. 128.


16 Ibid., p. 126.
1 ' E ncontram os, s e n d ú v id a, um a excepção na relação c h e fe -se c re lá ria dos
estabelecimentos mais respeitáveis. Lemos, por cxcmplo. na Esquire E nqueue, as
seguintes lecojtncndaçõcs (p. 24):
«Se partilhar o scu gnhinete coin uma secretária. Cará bem cm definir inn sinal
que significa que gostaria que ela saísse para poder falar a sós com a pessoa que o
veio visitar. O “Pode deix ar-n o s falar os dois um m om ento. M iss S m ith ? " c
em baraçoso para toda a gente: tudo será mais fácil, caso a mesma ideia possa. por
antecipação com binada, ser formulada por qualquer coisa como: "N ão quer ver sc
resolve aquele assunto com d departamento comercial, Miss Smith?' »
A Apresentação do Eli na Vida «Je T odos os Dias 215

m arid o in d ic a rá à m ulher, p o r m e io dc su b tis in fle x õ e s v o c ais, ou


p o r um a atitude gestual d e te rm in a d a , q u e é tem po de os d o is c o m e ­
ç a re m a d esp ed ir-se. A e q u ip a co n ju g a l lem deste m o d o p o ssib ili­
dade de m anter um a ap arên cia d e unidade de acção que p a re c e e s­
p o n tâ n e a , e m b o r a c o m f r e q u ê n c ia p re s s u p o n h a u m a d is c ip lin a
rigoro sa. N o u tro s casos, as d e ix a s v isam p erm itir a um a c to r c o m u ­
nica r a o u tro q u e este últim o e s tá a agir à m argem do co m b in ad o . ()
p o n ta p é p o r baixo d a m esa e o se m i cerrar d o s o lh o s tran sfo rm aram -
-s e e m e x e m p lo s h u m o rís tic o s d c tal s itu a ç ã o . U m p ia n is ta que
e x ec u ta aco m p an h am en to s fa la -n o s dos m eios que p odem scr u tili­
zad o s p ara fa z e r c a n ta r no tom c e rto um artista que desafina:

F á-lo c o n fe rin d o m a io r in te n sid a d e ao seu tom . de m a n e ira a


q u e este tom e de assalto os o u v id o s d o cantor, ou a n te s penetre na
su a v o z. T a lv e z u m a d a s n o ta s da h a rm o n ia , no p ia n o , s e ja a
m esm a n o ta que o c a n to r d e v e ria estar a can tar, e o a c o m p an h a n te
fará en tão co m q ue essa n o ta p red o m in e. Q uando a no ta não sc
en c o n tra escrita na p artitu ra do piano, o aco m p an h an te p o d erá in ­
tro d u z i-la na c la v e dc so l. o n d e e la se im p o rá a lta c n ítid a dc
m a n e ira a fa z e r-se o u v ir p e lo ca n to r. S e e ste ú ltim o e s tiv e r a
c a n ta r num q u a rto d c tom su ste n id o ou bem ol, se rá um feilo e x ­
cep cio n al d a su a p arte c o n s e g u ir então co n tin u ar a c a n ta r fo ra do
to m , so b retu d o se o a c o m p a n h a n te tocar, cm sim u ltâ n eo c o m ele,
to d a a linha vocal ao longo d a frase co m p leta. D ep o is d e te r no­
tad o o sinal de alarm e, o a c o m p a n h a n te c o n tin u a rá a lerta e to cará
dc vez em quan d o a n o ta d o c a n to r .¡s

O m e sm o au to r p ro sse g u e , a firm a n d o algo que se poderia ap lica r


a d iv e rsa s esp écies de d e se m p e n h o s:

U m c a n to r sen sív el n e c e s s ita rá apenas de sinais ex trem a m en te


d e lic a d o s p o r p a rte d o seu p arceiro . Fistes p odem ser tão subtis,
co m efeito , q u e o pró p rio c a n to r, em bora serv in d o -se d eles, não
ch eg u e a n otá-los de m an eira co n scien te. Q u an to m enos sensível

M oor c. op. cif., pp. 56-57.


216 Hrving Cioft'mar

fo r o c a n to r, m a is v in c a d o s e, p o r c o n se g u in te , m ais e v id e n te s
terão que ser os sin ais a ele d e stin a d o s.19

O u tro ex em p lo possív el é o da d escrição p o r D ale do m odo co m o


os fu n c io n á rio s, d u ra n te u m a reu n ião , p o d e m a v isa r o m in istro de
que e stá a p isar terren o p erig o so :

M as no d e c o rre r da iro ca de im p ressõ es, é possível que se le­


v a n te m q u e s tõ e s n o v a s e im p re v is ta s . Se um d o s fu n c io n á rio s
p resen tes n a reu n ião d a c o m issão se d e r co n ta de q u e o seu m i­
n istro está a en cám in h ar-sc num a d irecção errad a, n ã o o d irá de
m o d o e x p re s s o ; m as o u e s c r e v e r á urna n o ta e n tr e g a n d o - a ao
m inistro ou, d e licad am en te, ad ia n ta rá um o u tro fa cto ou proposta,
c o m o sc se tratasse dc um a v arian te sem im p o rtân c ia do que a ca ­
bou de d iz e r o m in istro . U m m inistro ex p erim en tad o reparará no
sinal v erm elh o e a b a n d o n a rá d isc re ta m e n te a d isc u ssã o , 011 pelo
m en o s d ecid irá ad iá-la. T o m a-se cla ro que a p re sen ç a sim ultânea
d e m in is tro s e f u n c io n á rio s n u m a m e s m a c o m is s ã o e x ig e p o r
v e z e s um ta c to a p u ra d o e u m a p e rc e p ç ã o p ro n ta d e a m b o s os
lad o * * *

É m u ito freq u en te q u e indicações de palco inform ais previnam os


c o m p a n h e iro s de e q u ip a de q ue a a u d ie n c ia se fez de sú b ito pre­
sente. A ssim , n o hotel d a ilha das S hetland, q u an d o um h o sp ed e e n ­
trav a n a co z in h a sem ter sid o co n v id ad o a fazê-lo, a p rim eira p esso a
que o visse e x c la m a ria n um tom d e voz esp ecial ou 0 nom e de outro
d o s m e m b ro s d o p e ss o a l p re se n te ou u m a d e s ig n a ç ã o c o le c tiv a ,
c o m o “ m iú d o s !” , se h o u v e s s e v á rio s c o m p a n h e iro s d e e q u ip a no
local. P o r m eio deste sin al, os hom en s tirariam os b o n és da cabeça c
os pés d e cim a das cad eiras, en q u an to as m u lheres im p rim iriam aos
b raç o s e ãs p e rn a s u m a p o stu ra m ais c o n v e n ie n te , e to d o s os c ir­
cu n sta n te s se c risp a ria m n o s p relim in ares dc um d e se m p e n h o fo r­
çado . U m sin al d e in íc io d e d e se m p e n h o bem c o n h e c id o e que se

19 ¡hid., p. 57.
Dille, op. cit., p. 141.
A Apresentação cío Fu na Vida dc Todos os Dias 21 7

en c o n tra d efin id o em term os fo rm a is é. o sinal visual u tiliza d o nos


e stu d io s d c ra d io d ifu sã o . O s s in a is sig n ific a m d e m o d o lite ra l ou
sim b ó lico : ‘’E stás no ar!” U m a o u tra indicação d o rncsrno tipo c ta m ­
b é m m uito d ifu n d id a é a re fe rid a p o r Ponsonby:

A ra in h a [V itória] a d o rm e c ia m uitas v ezes d u ra n te esses p a s­


s e io s p e la e s ta ç ã o q u e n te , e p a r a e v ita r q u e e la fo s s e v is ta a
d o rm ir p e la m assa d o s h a b ita n te s da aldeia, eu co stu m a v a d a r de
e sp o ra s ao cav alo sem pre q ue ap arecia um a a g lo m e raç ão sig n i­
fica tiv a de p esso as p ela fre n te , o b rigando o an im al e sp a n ta d o a
saltar e a fazer barulho. A p rin c e sa B eatriz já sa b ia que isso era
um sinal que q u e ria d iz e r “ g e n te !", e, caso a ra in h a n ão tivesse
sid o aco rd ad a pelo b aru lh o q ue eu fizera, a co rd av a-a e la .2 ^

S ão d iv e rso s o s tipos de p e s s o a s q u e o b se rv a m a d istra c ç ã o de


d iv erso s o u tro s tipos de p esso as, co n fo rm e o d o c u m en ta o e stu d o de
K ath erin e A rch ib ald s o b re as activ id ad es de um estaleiro naval:

P o r v e z e s q u a n d o o tra b a lh o era p a rtic u la rm e n te fo lg a d o , eu


p ró p ria ficav a de g u ard a à p o rta de um barracão de ferram en tas,
p ro n ta a a v isa r os o u tro s de q u a lq u e r a p ro x im ação de um fiscal ou
d e um m em bro su p erio r d a a d m in istração , a o m esm o lem po que,
d ia a p ó s d ia , n o v e o u d e z c h e f e s m e n o s i m p o r t a n t e s e o s
tra b a lh a d o res se e n tre g a v a m c o m u m a c o n c e n tração ap aix o n a d a
ao jo g o d o p ó q u er.22

D o m esm o m odo, h á sinais d e ce n a c aracterístico s q u e dizem aos


acto res q u e o cam in h o está d e sim p e d id o e que podem d e sc e r a fa­
c h a d a . O u tro s sin ais dc av iso di7.em aos acto res qu e, em b o ra lhes
possa p a re c e r não h av er p ro b le m a em porem de lado a sua discrição ,
h á d e f a c to m e m b ro s d a a u d ie n c ia p r e s e n te s , to r n a n d o p o u c o
ac o n selh áv el fazê-lo. N o m u n d o d o crim e, co m efeito, o sin al que
d iz que há o u v id o s da lei a o u v ir ou olhos da lei a v er é um sin al d e

21 Ponsonby. op. ctí., p. 102.


22 Archibald, op. rit„ p. 194.
218 Erving Goffmmi

tal m o d o im p o rta n te q ue receb eu um nom e esp ecial: giving the office


(“ in te rro m p e r o se rv ic e ” ).
S em dú v id a, os m esm o s sin ais podem d a r a e n ten d er à e q u ip a que
determ in ad o e sp ectad o r de a r in o cen te 6 na re a lid ad e um b u fo ou um
c lie n te p ro fis s io n a l, o u . e m to d o o c a s o , a lg u é m q u e é m a is ou
m en o s d o q u e m ostra ser.
S eria de e x trem a d ificu ld ad e para q u a lq u e r eq u ip a — para urna
fa m ilia , p o r ex em p lo — a d m in istra r as im p ressõ es q u e visa cau sar
sem d isp o r de u m co n ju n to an álo g o de sinais d e aviso. U m a d e sc ri­
ção re la tiv a a u m a m ãe e a u m a filha q u e viviam no m esm o q u arto
ern L o n d res p ro p o rcio n a-n o s a ilustração seguinte:

Pelo cam inho, ao passar diante d o G ennaro. senti-m e m uito apreen­


siva q u a n to ao nosso alm oço, perguntando-m e com o receberia a m i­
nha m ãe a Scotty [um a co leg a m anicura q u e a filha convidava para
alm o çar lá em casa pela prim eira vez] e o q u e acharia a Scotty da
m inha mãe. e assim q ue chegám os às escadas, com ecei a falar alto.
para p rev en ir a m inha m ãe d e que não estava sozinha. N'a realidade,
era um sinal que am bas tínham os bem com binado, um a vez que, quan­
d o d u as pessoas vivem num m esm o e único quarto, é im possível e x ­
plicar o g én ero d e d esordem ou d esarrum ação que u m a visita ines­
p erad a pode encontrar. H avia quase sem pre um a frigideira ou urna
travessa su ja num sítio o nde não d ev ia estar, ou m eias ou cam isolas
a secar ju n to do aquecedor. A m inha m ãe, prevenida pelo tom de voz
da sua filha inquieta, precipitar-se-ia com o um a artista d e circo escon­
dendo a frigideira, a travessa o u as m eias, para .sc tran sfo rm ar no
instante seguinte num pilar de dignidade glacial, tranquilíssim a, a pos­
tos para a entrada d a visita. C aso tivessse am im ado tudo com dem a­
siada press a. esquecendo, p o r isso, algo bastante evidente, eu veria os
seus olhos vigilantes indicando-m e o objecto em q u estão c dizendo-
-m e que resolvesse o a ssu n to sem d espertar as atenções da visita.2-’

P or fim , deve notar-sc que, quanto rmtis inconscientem ente se apren­


dem e em pregam estes sinais, m ais fácil se torna para os m em bros de

Mrs. Roben I lenrçy, Madeleine Grown Up. Dutton, Nova Iorque. 1953. pp. ¿6-47.
A Apresentação do Bu na Vida de Todos os Dias 219

u m a e q u ip a esco n d erem a té de si p róprios que, d e facto, funcionam


c o m o u m a e q u ip a . C o n fo rm e j a v im o s, a té p ara os seu s p ró p rio s
m em bros, u m a eq u ip a poderá p o r v ezes ser um a socied ade secreta.
E m e stre ita lig ação com e sta s in d icaçõ es c én icas, v e m o s q u e as
eq u ip as elab o ram m eios de tra n sm itire m m en sag en s v erbais ex tensas
d e u m a s p a ra as o u tr a s , de m a n e ir a a p r o te g e r e m a im p r e s s ã o
p ro je c ta d a q u e fic a ria em c a u sa se a a u d iê n c ia se d e sse c o n ta d a
tran sm issão d as in fo rm açõ es q u e re a lm e n te estão a se r tran sm itid as.
C ita re i a e ste p ro p ó sito m a is u m ex e m p lo e x tra íd o d o m u n d o do
fu n c io n alism o público b ritânico:

K m u ito d ife re n te p a ra u m fu n c io n á rio se r c h a m a d o a a c o m ­


p a n h a r a p assagem de um d e c re to pelo P arlam ento ou te r q u e se
d irig ir a um a das câm aras a fim dc participar num debate. \ o se­
gundo caso. n ão p ode falar em n o m e pessoal: tudo o q u e p o d e fazer
é fo rn ecer ao m in istro in d ic a ç õ e s e dados, e sp eran d o que este os
e m p re g u e d a m elh o r m an eira. É quase d esn ecessário d izer que o
m inistro é cuidadosam ente “ in stru íd o ” antes de q u alquer interven­
ção significativa, com o antes da. segunda o u terceira apresentações
de um decreto im portante ou d a exposição do balanço anual do seu
departam ento: em q u alq u er d e sta s ocasiões, são fo rnecidas ao m i­
nistro notas com pletas acerca d c cad a um dos p o n tos susceptíveis
d e discussão , incluindo até ep isó d io s ou "g racejo s” q u e perm item
aliviar a tensão, co ad u n an d o -se c o m o quadro p ro to colar e oficial. É
pro v áv el que o p ró p rio m in is tro , o seu se c re tá rio p a rtic u la r e o
secretário perm anente d esp en d em um a b oa quantidade d e tem po e
trabalho a seleccionar, a p artir d a s notas fornecidas. os pontos que
m ais c fic a z será s u b lin h a r, d is p o n d o -o s s e g u n d o a o rd e m m ais
favorável e arq u itectan d o u m d isc u rso d e stin a d o a p ro d u z ir u m a
im p ressão p o sitiv a. T udo isto á fácil tan to para o m in istro co m o
para os seus adjuntos: p ode se r fe ito com tem po e vagar. O difícil c
resp o n d e r no final de um d ebate. N essa altura, o m inistro depen d erá
e s s e n c ia lm e n te d e si p ró p rio . É v e rd a d e q u e o s fu n c io n á r io s ,
sentados com um a pacien cia p ersisten te na p eq u en a g aleria à direita
d o presid en te da assem bleia ou n o lim iar d a C âm ara do s L ordes, re­
gistam as im precisões e d isto rç õ e s factuais, as falsas co nclusões e
220 Krving Goffrnnn

in te rp re ta çõ e s e rra d a s, en tre o u tro s p o m o s fracos, d o s d iscu rso s


p ro ferid o s p elo s rep resen tan tes d a o p o sição; m as m uitas vezes é
difícil co n seg u ir que estas m unições cheguem à linha d c fogo. Por
v ezes o secretário p a rtic u la r p arlam entar d o m inistro levanta-se da
sua cad eira, que fica a trá s d o ch cfe. e n cam in h ar-se-á co m u m ar
d esp reo cu p ad o até à g aleria oficial e m anterá um breve colóquio
sussurrado com os funcionários; por fim , p o d e acontecer que seja
p assad a u m a nota ao m inistro, o u (m uito raram ente, p orém ) será ele
q ue se d eslo cará até ju n to dos outros, para lhes perguntar algum a
coisa. Todas estas b reves com unicações se fazem aos olhos dc toda
a câm ara, e nào h á m inistro q u e goste de parecer um actor que nào
sabe o seu papel, n ecessitando dc que outros lhe dêem a deixa.21

A e tiq u e ta em m a té ria de neg ó cio s, ta lv e z m ais in te re ssa d a nos


s e g re d o s e s tra té g ic o s d o q ue n o s de o rd ern m o ra l, e s ta b e le c e as
indicaçõ es q u e se seguem :

...T e n h a cu id ad o co m o q ue responde ao telefo n e se h o u v e r a l­


guém que p o ssa o u v ir p o r perto. Se estiv er a re c e b e r u m a m e n ­
sag em d e o u tra p esso a e q u ise r fic a r com a certeza de a ter c o m ­
p reen d id o bem , não a rep ita da m an eira h ab itu al; em vez disso,
peça ao seu in terlo cu to r q ue a rep ita, c d esse m odo o au m en to do
v o lu m e de so m da su a v oz n ão an u n ciará a m ais nin g u ém q u e es­
te ja p o r p e r to q u e ta lv e z v o c ê e s te ja a tr a ta r d e u m a s s u n to
particular.
...T a p e os se u s p a p é is a n te s d a e n tra d a de um e s tra n h o , ou
ad q u ira o h áb ito dc os ter sem p re em pastas ou c o b erto s p o r um a
folha de papel em branco.
...S e tiv e r que fa la r co m o u tra p esso a d a e m p re sa qu an d o essa
pesso a e stá a fa la r co m alg u ém de fora. o u seja co m q uem for a
qu em a su a m e n sag em não d ig a resp eito , fa ça -o de tal m an eira
q u e a te rc e ira p e sso a n ã o o b ten h a q u a lq u e r in fo rm a ção . P o d e rá
serv ir-se d o telefo n e interno, p o r exem plo, em vez de u sa r o in ter­
co m u n icad o r, ou esc re v e r a su a m en sag em num a no ta que entre-

• ~ Dale. f/p. ci!.. pp. 14K-149.


A Apresentação do i£u na Vida de Todos os Dias 221

g ará em m ão em vez de d iz e r o q u e (em a d iz e r na presen ça de


terceiro s.25

U rna v isita d e q u e se e s tá à e s p e ra d e v e s e r im e d ia ta m e n te
a n u n c ia d a . S c v o cê e s tiv e r c o m o u tra p e sso a , a s u a s e c re tá ria
in te rro m p ê -lo -á. d iz e n d o -lh e q u a lq u e r co isa c o m o : “E s tá aq u i o
se n h o r que tem e n c o n tro m a rc a d o con sig o p ara as três. P en so que
g o stará de o saber.” (A se c re ta ria n ão m en cio n ará o nom e do v isi­
tante dian te de estranhos. Se v o c ê lhe d e r a e n te n d e r que não se
lem bra d e quem era que tin h a p a r a as três, e la e sc re v erá o nom e
d a pessoa num papel q u e em s e g u id a lhe e n tre g a rá e m m ão . ou
servir-sc-á d o seu telefo n e p riv a tiv o em v ez de u sa r o sistem a dc
in terco m u n icação q u e toda a g e n te pode o uvir.)26

Indicám o s q u e as in d ic a ç õ e s dc ce n a são um d o s tip o s m ais im ­


portantes de c o n iv ê n c ia d a e q u ip a ; há um outro tip o de c o n iv ên cia
qu e se refere a co m u n icaçõ es e fu n c io n a sob retu d o p a ra co n firm ar
ju n to do ac to r o facto de ele e s ta r efe c tiv a m en te a a fa star-se do c o n ­
sen so funcional, de a e x ib ição q u e e stá a a p resen tar se r ap en as u m a
e x ib iç ã o , d e m o d o a p e r m itir - lh e a ssim p e lo m e n o s um a d e fe s a
p articu lar co n tra as ex ig ên cias d a au d iên cia. P o d em o s c h am a r a esta
ac tiv id a d e “c o n iv ê n c ia d e p re c ia tiv a ” ; e e la im p lic a em geral um a
d e p re c ia ç ã o c la n d e s tin a d a a u d iê n c ia , e m b o ra p o r v e ze s p o ssa m
tam bém se r tra n sm itid a s d o m e s m o m odo c e rta s id e ia s re la tiv a s à
au d iên cia d e m a sia d o liso n jeiras p a r a se e n q u a d ra rem no c o n se n so
fu n cio n a l. S e ja c o m o for. este c a s o fornece-n o s u m a co n trap a rtid a
p ú b lica d issim u lad a d aq u ilo que d e sc re v e m o s n a se c ç ão consagrada
ao “T ratam en to dos A u se n te s” .
O c a so m ais fre q u e n te d e c o n iv ê n c ia d e p re c ia tiv a ta lv e z se ja o
q u e te m lu g a r e n tre o a c to r c si p ró p rio . A s c r ia n ç a s d e e s c o la
o fe re cem -n o s ex em p lo s d esse tip o a o cruzarem os d ed o s q u a n d o d i­
zem u m a m en tira ou ao m o stra re m a língua q u an d o a p ro fe sso ra se
acha m om en tan eam en te num a p o s iç ã o da qual n ã o p ode ver o curn-

“ •* Esquire Etiquette. op. cií.. p. 7.


Esquire Etique.lie, op. cri., pp. 22-23.
222 Erving Goffman

prim en lo . D o m esm o m udo. os e m p re g a d o s fazem m u itas v ez es ca­


retas a o patrão, ou am ald iço am -n o com um gesto sile n cio so , p ro ce ­
d en d o a esses acto s dc d e sp rezo o u in su b o rd in ação num lu g a r onde
a q u e le a q u e m tais a c to s se d e s tin a m não os p o ssa ver. T a lv e z a
fo rm a m ais tím id a deste tip o d c co n iv ên cia seja aq u ela q u e en c o n ­
tram o s na p rática d o “ rab iscar“, ou d o “ d e slig a r" por m eio de fa n ­
ta sia s e v o c a d o ra s de b e lo s lu g ares im a g in á rio s, a o m e sm o tem p o
que. em c e rta m edida, a e x ib ição de um d esem p en h o d c o u v in te co n ­
tin u a a se r m an tid a pelo indivíduo.
A co n iv ên cia d ep reciativ a pode dar-se tam b ém entre o s m em bros
de u m a e q u ip a q u e a p resen ta um d esem p en h o . P o r isso : e m b o ra tal­
vez só nas franjas d e insen satez da vida com ercial sejam utilizados
có d ig o s secretos de insultos, não h á estab elecim ento p o r m ais respei­
tável que seja o nde os em p reg ad o s não tro q u em entre si certos olh a­
res q u an d o .se en co n tram na p resen ça de um cliente indesejável, ou de
um clien te desejáv el, m as que se está a c o n d u zir d c m o d o indesejá­
vel. Ig u alm en te, é m u ito difícil na n o ssa so cied ad e, p a ra m arid o e
m ulher, ou p a ra do is am igos íntim os, p assarem urna noite a interagir
em socied ad e co m outra p essoa, sem , de q u a n d o em vez, olh arem um
p ara o outro, de u m a m an eira q u e contradiz, cm seg red o a atitude que
o ficialm en te am bos m antêm em relação a essa m esm a pessoa.
U m a fo rm a m ais b ru tal d esta e sp é c ie d e a g re ssiv id a d e c o n tra a
au d iê n e ia é a que se v erifica em situ açõ es cm que o acto r é fo rçado a
a d o p ta r u m a lin h a de a c ç ã o p ro f u n d a m e n te c o n tr á r ia a o s se u s
sen tim e n to s íntim os. C ita re m o s aqui u m e x e m p lo ex tra íd o d e urna
inv estig ação q ue d escrev e as actu açõ es de d e fe sa assu m id as por p ri­
sio n eiro s de g uerra d o s cam p o s de reed u cação chineses:

D e v e m o s a ssin a la r, c o n tu d o , q u e os p risio n e iro s a rra n ja v am


n u m ero sas m an eiras d e o b ed ecer à letra m as não ao e sp írito das
ex ig ên cias d o s chineses. P o r exem plo, d u rante as sessões públicas
d e a u to c rític a , in sis tia m co m fre q u ê n c ia n a s p a la v ra s in c o n v e ­
nientes de u m a frase, to m a n d o ridículo o ritual no seu conjunto:
"L am en to ter dito que o cam arad a W ong era um filh o da pura qui­
nao vaie nada.'’ O u tro ex p ed ien te m uito ap reciado era o da p ro ­
m essa pelo p risioneiro d e “ser ap an h ad o ” a c o m e ter determ in ad o
A Apresentação do F.u na Vida de T odos o* Dias 223

crim e no futuro. E stes e x p e d ie n te s revelaram -sc e fic a z es po rq u e


nem seq u er os chineses q u e sa b ia m inglês tinham su ficien te fam i­
liaridade com o calão ou co m c e rta s ex p ressões idiom áticas para se
d a re m co n ta de um a rid ic u la riz aç ã o m ais subtil.27

D á-se um c aso an álo g o de c o m u n ic a ç ã o d e slo c a d a e m rela ção à


p erso n ag em quan d o um m em b ro d e d eterm in ad a e q u ip a d e sem p e n h a
o seu p ap el de m o d o a d iv e rtir d c m odo e sp ecial e c la n d e stin o os
seu s co m p an h eiro s de equ ip a; p o r ex em p lo , p o d erá lançar-se no seu
papel c o m um e n tu sia sm o a fe c tiv o ao m e sm o te m p o e x a g e ra d o e
preciso , m as tão p ró x im o d a q u ilo q u e os esp e c tad o res esp eram que
este s n ão se aperceb em , ou n ã o tê m a certeza, d e q u e a lg u ém e stá a
tr o ç a r d e le s . A ss im , c e rto s in té r p r e te s de j a z z . fo rç a d o s a to c a r
m ú sic a “ch ata", to cam -n a p o r v e z e s de m odo a in d a um pouco m ais
“ch ata” d o q u e o necessário , s e rv in d o essa p o n ta d e e x a g ero no d e ­
sem p en h o p ara d a r ao s m úsico s a possibilidade de tra n sm itire m uns
aos ou tro s o seu d esp rezo p ela a u d iê n c ia e a su a lea ld ad e às co isas
que re a lm e n te c o n ta m .28 U m a f o r m a tam bém alg o se m e lh a n te de
co n iv ê n c ia se v erifica q u ando u m m em bro da e q u ip a len ta m eter-se
co m outro, en q u an to am b o s e stã o com etidos co m um d ese m p en h o .
O o b je c tiv o im e d ia to e m tais c irc u n s tâ n c ia s se ria le v a r o c o m p a ­
nheiro de eq u ip a a q u a se larg ar a rir. a quase e n g an a r-se ou a q u ase
p e rd e r a c o m p o stu ra d c q u a lq u e r o u tra m a n e ira . P o r e x e m p lo , no
hotel d a ilh a d as S h etlan d , o c o z in h e iro punha-se p o r v ezes ju n to à
passag em da zona d a c o z in h a p a r a a região de fa ch a d a d o h o te l e
resp o n d ia solen em en te, com a m á x im a dignidade e num inglês m o­
d elar, às p erg u n tas q u e os h ó sp e d e s d o hotel lhe faziam , e n q u a n to 110
in te rio r da c o z in h a as e m p reg ad as, c o m a cara m ais séria do m undo,
e m se g re d o m as o b stin ad am en te, fa z ia m pouco dele. A o tro ç a r dos
esp ectad o res ou ao m eter-se c o m u m co m p an h eiro d e eq u ip a , 0 a c to r
pode d e m o n stra r nào só que não sc encontra lim itad o p e la d efin ição
d a in te ra c ç ã o em te rm o s o fic ia is , m as tam b ém que d isp õ e d e um

- ' E. H. Schcin. "The C hinese In d octrination Program fo r P risoners o f W ar".


Psychiatry. 19. pp. 159-60.
“S Comunicação pessoal de Howard S. B cckcr.
224 Krving Goffman

c o n tro lo tão forte sobre a in teracção que é c a p a z de jo g a r co m ein a


seu bel-prazer.
M e n cio n arem o s ain d a u m a ú ltim a fo rm a de co n iv ên cia d e p recia ­
tiv a . F req u en tem en te» q u a n d o u m in d iv íd u o in te ra g e c o m um s e ­
gundo in d iv íd u o q u e. de u m a m aneira ou d e outra, se m o stra o fen ­
sivo, o prim eiro ten tará c h a m a r a aten ção de um terceiro elem ento
— d efin id o na circu n stân cia corno estran h o à in teracção — c o n fir­
m an d o d esse m o d o q ue não d ev erá se r co n sid erad o re sp o n sáv e l pela
p erso n ag em ou pelo c o m p o rta m e n to assu m id os pelo seg u n d o in d iv í­
duo. O b serv em o s, p o r fim . à laia d c c o n clu são , que to d as estas for­
m as de co n iv ên cia d e p re c ia tiv a ten d em a d e sen v o lv er-se de m aneira
q u a s e in v o lu n tá ria , p o r m e io d e m e n sa g e n s q u e sã o tra n sm itid a s
an tes d e ser p o ssív el q u a lq u e r su a verificação.
E m fu n ç ã o d as n u m e ro s a s m an eiras c o m o o s m e m b ro s de um a
e q u ip a podem c o m u n ic a r d esto cad am en te uns co m os o u tro s, é p ro ­
vável q ue os a c to re s se m o strem apegados a esse g én ero d e a c tiv i­
d ad e, sau d an d o c o m ag rad o p arceiro s que se ju n tem ao seu d e se m ­
p en h o d e so listas, até m esm o em o casiõ es em q u e nenhum a neces­
sid ad e p rática o ju stific a . É co m p reen sív el, p o r c o n seg u in te , que um
p ap el p a rtic u la r te n d a a d e s e n v o lv e r-s e n o in te rio r da e q u ip a , le ­
vando à c riação de u m a “ so m b ra ”, o u seja. a pessoa q u e é in tro d u ­
zid a no d esem p en h o p a ra satisfação d e u m a outra, a fim d e lhe p ro ­
p o rc io n a r o p ra z e r dc c o n ta r c o m um c o m p a n h e iro . É s o b re tu d o
p re v isív e l a p re se n ç a d e s ta fo rm a p a rtic u la r se m p re q u e e x ista m
ace n tu a d as d ife re n ç as de p o d er e não h a ja tab u s c o n tra o co n tacto
social en tre o p o d ero so e o sem poder. O papel tran sitó rio de c o m ­
p a rs a e m te rm o s s o c ia is é u m a ilu s tra ç ã o p o s s ív e l, c o n fo rm e o
d escrev e u m a a u to b io g ra fia im ag in ária de fin ais do sé c u lo XVITI:

F.m sum a. a m inha função era a seg u in te: e star sem p re p ro n ta


q u alq u er q ue fo sse a ocasião ern q ue me cham assem , para aco m ­
p an h ar a m in h a am a a todos os encontros de prazer ou interesse em
q ue ela d ecid isse participar. D e m anhã aco m p an h av a-a a to d as as
vendas, leilões, ex p o siçõ es, etc. c d ev ia so b retu d o e star presente
q uan d o tin h a lugar a im portante actividade das com pras... A com ­
p an h av a a m inha a m a em todas as suas visitas, a m enos que a fesia
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 225

a que cia ia fo$.sc e x cessiv am en te elegante, e e m casa o cu p av a o


m eu lu g a r ju n to d e q u e m e s tiv e s s e p re se n te , d e se m p e n h a n d o o
papel de um a esp écie de criad a d e condição m ais elev ad a.29

A s fu n çõ es dc aco m p an h an te e x ig ia m , seg u n do p arece, d e quem


as d esem p en h av a q u e ficasse à d isp o siç ã o d o senhor, não para se in ­
cu m b ir d c tarefas servis, ou n ã o e x c lu siv a m e n te para isso, m as de
m o d o a q u e o sen h o r tiv esse s e m p re alg u ém p ro n to a a lin h a r do seu
lado. em o p o sição ao s d em ais p resen tes.

Acções de Realinham ento

Já su g erim o s que, quan d o os in d iv íd u o s .se reúnem para interagir,


c a d a um d eles ad ere ao papel q u e lhe foi atrib u íd o de aco rd o co m a
p rá tic a de ro tin a d a su a e q u ip a , c ca d a um d e le s se alia a o s seu s
c o m p a n h e iro s d e e q u ip a na d e f e s a da m e sc la a p ro p ria d a d e f o r­
m a lis m o e i n f o r m a l i d a d e , i n t i m i d a d e e d i s t â n c i a , f r e n t e a o s
m em b ro s d a o u tra equipa. O q u e n ã o sign ifica que o s c o m p a n h eiro s
dc eq u ip a se tratem uns aos o u tro s de m aneira idêntica à q u e la que
m a n if e s ta m e n te a d o p ta m p a ra o se u c o m p o r ta m e n to p e r a n te a
a u d ie n c ia , m a s s ig n ific a , d c u m m o d o g e ra l, q u e se tra ta d c u m
m o d o a p e s a r d e tu d o d ife re n te d a q u e le q u e, p a ra e le s . seria m ais
n a tu r a l. A c o m u n ic a ç ã o c o n iv e n te é , c o m o d is s e m o s , u m a d a s
form as de q u e os co m p a n h e iro s d e eq u ip a d isp õ em p a ra aliv iar um
p o u c o as ex ig ên cias restritiv as d a in teracção en tre e q u ip as; a c o m u ­
n icação co nivente é um d esv io d e u m tipo in acessível à c o n sc iên c ia
dos esp ectad o res, tend en d o , p o r isso , a d eix ar intacto o status quo.
N o e n ta n to , os a c to re s só r a ra m e n te se c o n te n ta m co m os c a n a is
s e g u r o s q u e lh e s p e rm ite m e x p r e s s a r a s u a in s a tis f a ç ã o c o m o
c o n s e n s o fu n c io n a l. M u ita s v e z e s ten tam e x p rim ir-s e e m te rm o s
d e slo c a d o s dc u m m o d o q u e s e ja o u v id o p e la a u d iê n c ia m as n ã o
a in ea c c d c fo rm a declarad a nem a integridade d as duas eq u ip as nem
a d is tâ n c ia so c ia l e n tr e e la s e s ta b e le c id a . E s te s re a lin h a m e n to s

Lady's Magazine, I7S9. XX, p. 235, ciliido por Hccht, <?/?. cit., p. 63.
226 Erving Goffman

tem p o rário s, n ão o fic ia is e co n tro lad o s, revest indo-se m uitas vezes


de um a feição ag ressiv a, co n stitu em um a área de in v estig aç ão inte­
ressante.
Q u a n d o duas eq u ip as fixam um co n sen so fu n cio n al o ficial com o
g a ran tia de u m a in te ra c ç ão so cial seg u ra, d e te cta m o s, e m g e ra l, a
p resen ça de u m a lin h a de co m u n ic a ç ão n ão o ficial que c a d a u m a das
e q u ip a s m antém com a ou tra. E sta c o m u n icação não o ficial p o d e se r
tran sm itid a p o r m eio de alu sõ es, ex p ressõ es m ím icas, g ra ce jo s bem
c o lo c a d o s , p a u s a s s ig n if ic a tiv a s , s u g e s tõ e s v e la d a s , “ p a rtid a s'*
d elib erad as, en to açõ es e x a g erad as e ex p ressiv as, e m uitas ou tras fo r
m as de m an ip u lação de sinais. A s regras q u e g o v ern am e sta p e rm is­
si vid ad e são b astan te e strita s, ü c o m u n ic a d o r tem o direito de n egar
q u e “q u ise sse d iz e r a lg u m a co isa " co m a su a a cção , se os seus d e sti­
natário s lhe a tira rem à c a ra a a c u sação c ter tran sm itid o alg o d c in a­
ceitáv el. c os d estin atário s têm o d ireito de a g ir c o m o se nada. ou só
algo de inó cu o , lhes tiv esse sido co m u n icad o .
T alvez a inflex ão m ais co m u m d a c o m u n icação im p líc ita co n sista
e m c a d a e q u ip a se a p r e s e n ta r a u m a lu z f a v o rá v e l e a p re s e n ta r
subtilm ente a o u tra a u m a luz d esfav o ráv el, o que te m m uitas vezes
lu g a r a c o b e rto de c u m p rim en to s e co rtesias v erbais q u e, na re a li­
d a d e . se rev elarn d e sin al c o n trá rio a o h a b itu a l30. H fre q u e n te as
eq uip as fo rçarem en tão as am arras q u e as p rendem a um co n sen so
fu n cio n al dado. É cu rio so n o tar q u e são m u itas vezes as tendencias
d issim u lad as de a u to -ex altação e de d e p reciação do outro, e n ã o m o ­
d alid ad es m ais fo rm ais d o s ritos de vida em so cie d ad e , a in tro d u zir
um a rig id ez c o m p u lsiv a e á rid a n o s e n co n tro s entre pessoas.
E m d iv e rsa s esp é c ie s de in teracção social, é a co m u n ica ção não
o ficial a fo rn ecer o m eio q ue p erm ite a cad a u m a d as eq u ip as e n d e ­
re ç a r um co n v ite d e fin id o m as não v in cu lativ o à outra, su g erin d o o

Potter designa eMr. fenóm eno com o term o “one upm anship": nparf.ee rum o
“marcar pontos" (making points) cm H. Cioffimm. “On Faec-W ork". Psychiatry. IS.
221-22: com o “status forcing" e:n A. Strauss, Essay on Identity <no prcio). Em
certos m eios americanos, a expressão “deitar abaixo” alguém assume precisam ente
a mesma acepção. tn co n ira-se um a excelente aplicação desta ideia em relação ;i
uma forma de contacto social concrcta em Jay Haley. ‘T h e A rt o f Psychoanalysis".
ETC, X V . pp. 189-200.
A Apresentação do F.u na Vida dc Todos os Dias 227

a u m e n to ou a d im in u iç ã o tia d is tâ n c ia social c d o fo rm a lism o , ou


que as d u a s eq u ip as tran sfo rm em a in teracção p ré se n le n um a o u tra
m o d a lid a d e , im p lic a n d o um n o v o c o n ju n to o rg a n iz a d o de pap éis.
T rata-se d aq u ilo a q ue p o r v e z e s s e ch am a o “a p a lp a r te rre n o ” —
c o m as su as re v e la ç õ es p ru d e m e s e as suas p re te n sõ es a p e n a s in­
sin u a d as. P o r m eio de p alav ras d e u m a a m b ig u id a d e e stu d a d a , ou
p o rtad o ras ao s o u v id o s d o in iciad o de um sentido in aparente, o acto r
será c a p a z d c d esco b rir, sem d e s a rm a r as su as d e fe sa s, se se rá ou
não seg u ro ab a n d o n a r a d e fin iç ã o d a situ ação a in d a em vigor. Por
ex e m p lo , u m a vez q u e não é n e c e s s á rio ao in d iv íd u o o b s e rv a r as
d istâ n c ia s so ciais ou jo g a r à d e f e s a n a p resen ça d o s q u e são seus
co le g as p ro fissio n ais, ou seus c o le g a s ideológicos, étn ic o s, classes,
e tc ., é h a b itu a l q u e a e q u ip a f o r m a d a p e lo in d iv íd u o e o s s e u s
co leg a s, elab o rem sin ais se c re to s q u e se afig u rarão inócuos aos não-
-c o le g a s. e m b o ra a o m esm o te m p o v eiculem p a ra o in ic ia d o um a
m en sag e m q ue lhe diz q u e se e n c o n tra cnlre a su a g e n ie e p o d e. p o r
isso , a fro u x a r a a titu d e q u e s u s te n ta peran te o p ú b lico . A ssim , os
thugs assassin o s da ín d ia d o sé c u lo X IX — que e sc o n d iam as suas
d ev a sta çõ e s anuais p o r trá s de u m a ex ib ição p re p a ra tó ria de a cçõ es
de n atu reza cív ic a — possu íam u m código que lhes p e rm itia re c o ­
nh ecerem -se uns aos outros. C o m o u m investig ad o r refere:

Q u a n d o d o is thug .y se e n c o n tra m , ainda q ue n ã o se co n h eçam ,


há q u a lq u e r c o isa n as su a s m a n e ira s q u e o s id e n tific a aos o lh o s
un s do s oulros. e. p ara c o n firm a r este reco n h ecim en to , u m dclcs
ex c la m a : “ A lee K h a n !" , p a la v ra s q u e, a o se re m re p e tid a s p eio
in te rlo c u to r, fu n c io n a m c o m o u m atestad o d a c o n d iç ã o de a m ­
b o s ...31

Igualm en te, há ain d a tra b a lh a d o re s ingleses q ue a b o rd a m um e s­


tranho pergu n tan d o -lh e “a que d is tâ n c ia do L este” m ora; o cam a ra d a
de a sso cia ç ã o secreta d o o p e rá rio q u e faz a p erg u n ta sab e a resp o sta
à sua perg u n ta c ifra d a e sabe q u e. d e p o is de responder, o s dois pode-

- 1 Coronel J. L. Slccman. Thugs o r a M illion Murders. Sampson Low, Londres, s.


d., p. 79.
228 Ervins Goffman

rão fa la r sem ce rim o n ia s d o s p ap istas e d as classes parasitárias. (N a


so cied ad e an g lo -am erican a o nom e e a ap a rê n c ia das p esso as a q u e
som os a p resen tad o s d esem p en h a u m a função an álo g a, d iz en d o -n o s
c o n tra q ue c a m a d a s so ciais se ria im p ru d e n te la n ç a rm o s as n o ssa s
d ia trib e s d c c irc u n s tâ n c ia .) D o m e sm o m o d o . c e rto s c lie n te s das
c h a r c u ta ria s e le g a n te s fa z e m q u e s tã o de p e d ir q u e as su a s
san d u íc h e s sejam d e pao de cen te io e sem m an teig a, tra n sm itin d o
n e s te s te rm o s a o s e m p re g a d o s um sin a l q u e o s id e n tif ic a c o m o
perten cen tes a u m a co n d ição é tn ic a q u e não h esitam e m a ssu m ir à
lu z d o d ia .32
A c au telo sa troca dc sin ais atrav és d a qual doi.s m em bros de um a
so cied ad e não d ec la ra d a se dão a c o n h ecer u m ao ou iro ta lv ez seja a
versão m en o s subtil d a co m u n ic a ç ão rev elad o ra. N a vida de to d o s os
d ias, q u a n d o o s in d iv íd u o s n ão tê m q u e re v e la r q u a lq u e r filia ç ã o
n u m a so c ie d a d e secreta, to m a-se n ecessário um p ro c e sso m ais d e ­
licado. S e d o is in d iv íd u o s não c o n h ecerem bem as o p iniões e e sta ­
tu to um do outro, terá lu g ar um p ro cesso de son d ag em , em que cada
um d e le s irá ad m itin d o perante o outro a su a m an eira de v er as coi
sa s ou o seu e s ta tu to s e g u n d o a s e ta p a s de um tra je c to g ra d u a l.
D ep o is de p ro c e d e r a u m a p e q u e n a ab ertu ra, o p rim eiro e sp e ra rá que
o o u tro lhe ex ib a as razões q u e d e m o n stre m co m o foi co n v en ien te
p ara o p rim e iro a g ir c o m o agiu, e, um a vez tra n q u iliz ad o , p o d erá
afro u x a r um p o u c o m ais as suas d efesas. P ro ce d e n d o a cada nova
eta p a d a sua ap resen tação em term o s am b íg u o s, o in d iv íd u o garan te-
-se a p o ssib ilid ad e de in te rro m p e r o d esfazer-se d a su a fach ad a no
p rim e iro e n s e jo e m q u e d e ix e d e o b te r c o n firm a ç ã o p o r p a rte do
o u tro , e, nessa altu ra, a ctu ará de m odo a in d ic a r que as rev elaçõ es já
o p erad as nada sig n ificam em term o s de abertura. P o r isso, qu an d o
duas p esso as a c o n v e rsa r u m a com a o u tra tentam d e sc o b rir o grau
de p ru d ên cia q u e lh es s e rá n ecessário o b servar, an tes d c revelarem
as su a s v e rd a d e ira s p o siç õ e s p o lític a s, q u a lq u e r um a d e la s te rá a
p o ssib ilid ad e d e in te rro m p e r o p ro cesso gradual d c e x p o r à m edida
em q u e é de d ire ita ou de esq u erd a, no p reciso m o m en to em que o

•'2 “Team W ork and Performance in a Jewish Delicatessen'’, arligo incdito de Loui>
Hirsch.
A Apresentação do Eu na Vida de T odos os Dias 229

seu in terlo cu to r c h e g a r a um a fo rm u la ç ã o d efin itiv a d a s suas c o n v ic ­


ções. E m tais caso s, a p esso a c u ja s opiniões são m ais ra d ica is ag irá
d is c r e ta m e n te , e x p r im in d o - s e c o m o se as s u a s c o n v ic ç õ e s n ã o
fo ssem m ais rad icais do q u e as d o interlocutor.
E ste p ro cesso de cu id a d o sa re v e la ç ã o gradual é a n a lo g am e n te d o ­
cu m en tad o p ela m ito lo g ia e p o r a lg u n s aspectos d o relacio n am en to
h e te ro sse x u a l c a ra c te rís tic o d a n o s s a so c id a d e . A rela ç ã o se x u a l,
c o m e f e ito , d e fin e -s e . p a ra n ó s, c o m o u m c o n ta c to ín tim o c u ja
in ic ia tiv a c o m p e te ao m a c h o . N a re a lid a d e , as p rá tic a s d a c o rte
im p licam u m a ag ressão c o n c e rta d a contra o a lin h am e n to do s sexos
p o r parte d o m ach o , n a m e d id a e m que o h o m em tem à p rim eira
v is ta q u e d e m o n s tr a r r e s p e ito p e r a n te a p e s s o a q u e sc tra ta d c
c o n d u z ir à su b m issã o n o p lan o d a in tim id ad e-^. N o e n ta n to , um a
o p eração ain d a m ais a g ressiv a c o n tra o alin h am en to e x iste n te entre
o s se x o s é a q ue d e sc o b rim o s e m situ a ç õ e s nas q u a is o c o n se n so
funcio n al está d efin id o em te rm o s d e sup erio ridade e d istâ n c ia por
p arte d e u m dos acto re s, q ue n o c a so é a m ulher, e e m te rm o s de
su b o rd in a ç ã o p o r p a rte d o o u tro actor, que é na c irc u n s tâ n c ia um
ho m em . É e n tã o p o s s ív e l q u e o a c to r m a scu lin o te n te re d e fin ir a
situ a ç ã o d e m odo a v in c a r a su a su p erio rid ad e sexual p o r co n traste
co m a su a su b o rd in a ç ã o e c o n ó m ic a e so c ia l''4. N a n o ssa literatura
p ro letária, p o r ex em p lo , é o h o m e m pobre quem in tro d u z esta red e­
fin içã o perante a m u lh er rica; O A m ante de Lady C hattertey . c o m o

- - As práticas dc rotina dc revelação defensiva do mundo homossexual têm um<i


dupla função: a declaração de pertença a um a sociedade secreta, c a abertura a
cortos re la cio n am en to s p o ssív eis e n tre d eterm inados m em bros d e ssa m esm a
sociedade. Um exemplo literário bem concebido da situação c-nos sugerido pelo
conto de (¡ore Vida!, "Three Stratagem s" in A Thirsty Evil, Signet Pocket Books.
N ova Iorque, 1958, sobretudo pp. 7-17.
Talvez por respeito ã ética freudiana, alguns sociólogos parcccm agir com o sc
fosse de mau gosto, blasfemo ou revelador dos sentimentos pessoais mais íntimos,
d efin ir o cúm ércio sexual com o parle d e um sistem a cerim onial, de um ritual
recíproco desem penhado dc modo a confirm ar simbolicamente um a relação social
exclusiva. Eslc capítulo recorre 1requentem ente a Kcnncih Burke, que assume uma
perspectiva decididamente sociológica a o definir o namoro com o um princípio sie
retórica, cuja aplicação permite superar as distâncias sociais. Ver Burkc. ,4 Rhetoric
o f M otives, p. 20S e segs., e 267-268.
230 Hrving Goffinan

j á te m sid o p o r d iv e rs a s v e z e s su b lin h a d o , é um e x e m p lo e x tre ­


m am ente claro d essa p o ssib ilid ad e. A té m esm o q u an d o estu d a m o s a
p re sta ç ã o p ro fis s io n a l d e s e rv iç o s, e sp e c ia lm e n te aos n ív e is in fe ­
rio re s. d e s c o b rim o s in e v ita v e lm e n te q u e os se u s a c to re s c o n ta m
h istó rias referen tes a o casiões cm q u e eles p ró prios ou um d o s seus
co leg a s red efin iram (o u v iram red efin ir em função das su as p e sso as)
a r e l a ç ã o d e p r e s ta ç ã o d c s e r v i ç o s c o m o r e la ç ã o s e x u a l. A s
d e sc riç õ e s d este tip o dc red e fin iç ão a g ressiv a co n stitu em um a p an e
im p o rtan te d a m ito lo g ia não só de c ertas p ro fissõ e s em p articular,
co m o da su b cu ltu re m ascu lin a em geral.
O s re a lin h a m c n to s te m p o rá rio s a tra v é s d o s q u a is a d ire c ç ã o d a
in teracção p o d e se r a ssu m id a de m o d o não o ficial por um su b o rd i­
nado, o u não o ficialm en te co n ferid a p o r um superior, c o n h ecem um a
esp éc ie d e estab ilid ad e e in stitu cio n alização n aquilo a que por vezes
sc ch am a o "d u p lo sentido*’3' . P o r m eio d e sta técnica d e co m u n ic a­
ção, d o is in d iv íd u o s tran sm itirão um ao o u tro in fo rm açõ es de um a
m a n e ira , ou so b re um a s s u n to , que n ã o c o n c o rd a c o m a re la ç ã o
o f ic ia lm e n te e x is te n te e n tre e le s . O d u p lo s e n tid o m o b iliz a e sse
g é n e ro de alusão su scep tív el de se r tran sm itid a por am bos os lad o s e
m a n tid a d u ra n te um p e río d o tem p o ral c o n tin u a d o . T ra ta -se de um
tip o de co m u n ic a ç ão co n iv en te, q ue d ifere de outros tip o s de c o n i­
v ência. n a m e d id a em q ue as p e rso n a g e n s c o n tra as q u ais a c o n i­
v ên c ia se v erifica são p ro je c ta d a s pelas p ró p ria s p esso as c o n iv en -
te m e n te a sso ciad as. É c a ra c te rístic o q ue o d u p lo se n tid o a c o n te ç a
d uran te a in teracção entre um su b o rd in ad o c urn su p e rio r a respeito
d c assu n to s q u e se e n c o n tra m o fic ia lm e n te fora d a co m p e tê n c ia e
ju ris d iç ã o d o su b o rd in a d o , e m b o ra e fe c tiv a m en te d ele d e p e n d a m .
S erv in d o -se d o d u p lo sen tid o , o su b o rd in ad o d eterm in ará as linhas
de a c ç ã o sem re c o n h e c e r a b e rta m e n te as im p lic a ç õ e s e x p re ssiv a s
d e sse la c to e sem p ô r em c a u s a a d ife re n ç a de e sta tu to e x iste n te

0 Na linguagem quotidiana, o termo “double-talk“ (duplo sentido) pode revestir­


se também :lt: duas outras acepções: serve para designar frases cm que foram
introduzidos elementos sonoros que parecem dotados de sentido mas nào 0 sfio de
tacto, e serve para designar respostas defensivas ambíguas a perguntas pura .¡s
quais o seu autor gostaria de obter respostas claras.
A Apresentação do Liu na Vida de ’lo d o s os Dias 231

e n tre e le e o seu superior. A o q u e p a re c e , o d uplo se n tid o m an ifesta ­


r e g e n e ro s a m e n te cm q u a rté is c p ris õ e s. E n c o n tra m o -lo tam b ém
am iú d e cm situ açõ es nas q u ais o su b o rd in a d o tem larga ex p e riê n c ia
d a tarefa a d e s e m p e n h a r e n q u a n to n ã o é e sse o c a so d o su p e rio r,
c o m o v e m o s s u c e d e r na r e p a r tiç ã o d as ta re fa s e n tre u m m in istro
in te rin o " p e rm a n e n te ” c um m in is tro p o liticam en te d e sig n a d o , ou
n a s c ircu n stan cias em que o su b o rd in a d o con h ece a lín g u a que o seu
su p e rio r n ã o co n h e c e cie um d a d o g ru p o de ex ecu tan tes. D e sco b rire ­
m o s ain d a o d uplo sen tid o em situ a ç õ e s nas quais duas p esso as se
co m p ro m e te m p o r m eio dc u m p a e lo ilícito um a co m a o u tra, pois a
té cn ic a dc c o m u n icação u tiliz a d a d e v e rá perm itir que a co m u n ic aç ão
s c c o n c r e t i z e , s e m q u e n e n h u m d o s p a r t i c i p a n t e s f i q u e na
d e p e n d ê n c ia do outro. S u rg e n o u tra s o casiõ es um a form a dc c o n i­
v ê n c ia a n á lo g a en tre d u as e q u ip a s q u e têm de su sten tar a im pressão
d e serem relativ am en te h o stis ou re la tiv a m e n te d ista n tes, m a s que.
p e s a r d is s o , a c h a m m u tu a m e n te p ro v e ito s o o e s ta b e le c im e n to de
aco rd o s s o b re certo s p ro b lem as, c o n ta n to q u e essa c irc u n stâ n c ia não
a fe c te a a titu d e d c o p o siç ã o q u e d e v e m c o n tin u a r a p o d e r m a n te r
q u a n d o fren te a fre n te .''6 P o r o u tr a s palav ras, á p o ssív e l n e g o ciar
sem terem q ue se c ria r as relaçõ es d e solidariedade m útua a q u e a
n e g o c ia ç ã o h a b itu a lm e n te c o n d u z . E ta lv e z seja m ais im p o rta n te
a in d a n o tar o seg u in te: o d uplo s e n tid o produz-se reg u la rm e n te em
situ açõ es de in tim id ad e d o m e stic a o u profissional, c o n stitu in d o um
m eio seg u ro d e fo rm u lar c re c u sa r e x ig ê n c ia s e ordens que não seria
p o ssív e l d e o u tro m o d o fo rm u lar o u recu sar sem a lte raç ão a relação
ex isten te.
C o n sid e re i ate aq u i alg u m as a c ç õ e s habituais de re alin h am en to —
m o v im e n to s em to m o da. so b re a o u afastan d o -se d a lin h a e x isten te
e n tre as equ ip as. A p resen tei c o m o e x e m p lo s os recados não o ficiais,
a s rev e la ç õ es c a u te lo sa s e o d u p lo se n tid o . G o staria de a c re sc e n ta r a
e ste qu ad ro alguns elem en to s m ais.

V er Dale. op. til., pp. IH2-S.1. pain m na ilustraban dos com prom issos lácticos
possíveis entre duas equipas oficialm ente inimigas. Vur também Yfelville Dalton,
"U nofficial Union-M anagement Relations” . American Sociological Review. XV. pp.
611-19.
232 F.rving Goffman

Q u a n d o o c o n s e n s o fu n c io n a l e s ta b e le c id o e n tre du a s e q u ip a s
im p lica a o p o sição declarad a, vem o s que a d iv isão do trab a lh o no in­
te rio r d e c a d a e q u ip a p o d e rá em ú ltim a in stâ n c ia c o n d u z ir a rea-
linham cntos m o m en tân eo s dc um genero que nos d em o n stra que nao
s ã o a p e n a s o s e x é r c ito s a e o n fro n ta re m -s © c o m o p r o b le m a da
confratern ização . O esp ecialista de urna das eq u ip as p o d erá d escobrir
q u e tem m u ita coisa em co m u m com o m em bro que lhe co rresponde
da e q u ip a c o n tra ria e que am b o s falam u m a linguagem que tende a
fazê-lo s alin h ar de m odo a co n stitu írem u m a e q u ip a isolada cm opo­
sição a todos os d em ais participantes. A ssim , durante as n eg o ciações
dos co n trato s de trab alh o , os adv o g ad o s de am bas as p artes por vezes
dão p o r si a tro car olhares de conivência quando o leigo de u m a das
duas equipas co m ete um erro ju ríd ic o estro n d o so. Q u an d o o s esp ecia­
listas n ão são m em b ro s p erm an en tes d a equipa, m as contratados a p e ­
nas p ara o p eríodo d as n eg o ciaçõ es, á p ro v áv el qu e, so b c e rto s as­
pectos, se m ostrem m ais leais à sua p rofissão e aos seus co leg as do
q ue à eq u ip a em que o casio n alm en te se integram . S e. p o r c o n seg u in ­
te. se pretende m an ter a im p ressão dc o p osição entre as equipas, as
leald ad es cru z a d a s d o s esp ecialistas terão que se r negadas ou de se
ex p ressar inviam ente. E p o r isso que os ad v o g ad o s, sentindo que os
seu s c lie n te s q u e re m v ê-lo s m a n ife sta r h o stilid ad e ao s c lie n te s da
p arte co n trária, ficam à esp era de um en co n tro nos bastidores co m o
coleg a, p erm itin d o -lh es que. en tão en tre coleg as, am b o s conversem
am ig av elm en te sobre o p rocesso em curso. Q u an d o an alisa o papel
d e s e m p e n h a d o p e lo s fu n c io n á rio s d e c a rre ira no s d e b a te s p a r la ­
m entares. D ale sugere igualm ente:

Um debate ligado a um problem a d e te rm in a d o ... geralm en te faz-


-se num só dia. M as sc um d epartam ento tiv er a pou ca sorte de ter
um p ro jecto de lei e x te n so e litig io so na co m issão d a câ m a ra , o
m inistro e os funcionários ligados ao caso terão de perm an ecer na
co m issão das q u atro da tarde às o n ze d a noite (ou até m uito depois,
pela noite dentro, se o lim ite das onze horas for suspenso), talvez,
d u ra n te d ias a fio , d e seg u n d a a q u in ta-feira, a o longo de várias
sem anas. [ ... J N o en tan to , os funcionários são co m pensados pelos
seu s s a c rifíc io s. h n e sta s o c a siõ e s q u e têm m e lh o r e n s e jo para
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 233

co n so lid ar e alargar os sens co n h ecim en to na câm ara. O ritm o do


tra b a lh o é m en o s a c e le rad o d o q u e p o r a ltu ra s d o s d e b a te s que
d em o ram apenas um dia, tanto p a ra os parlam entares co m o p a ra os
rep resen tan tes do d ep artam en to : o s interlocutores têm a p o ssibili­
d ad e d e tro car a sala de tra b a lh o pela sala de fum o ou p elas va-
randas, travando anim adas c o n v e rsa s enquanto um notório m açador
se esforça p o r fazer adoptar u m a em entia que to d a a gente sabe ser
im possível. C ria-se urna certa cam arad ag em entre todas as pessoas
que passam tantas n oites a d is c u tir um p ro jecto de lei. sejam do
governo, d a oposição ou fu n cio n ário s de carreira.-’"

É in te re ssa n te o b se rv a r q u e, e in c ertas c irc u n sta n c ias, a p ró p ria


c o n fra te rn iza ç ã o nos b astid o res p o d e rá ser c o n sid erad a um a a m e aça
e x c e s s iv a p a ra o d e se m p e n h o . P o r isso o s jo g a d o re s do baseball,
c u ja s e q u ip a s rep resen tam g ru p o s d e adeptos o p o sto s, são in tim ad o s
pelos reg u lam en to s asso ciativ o s a abstercm -se, antes do c o m e ç o de
um desafio, dc q u a lq u e r c o n v e rsa ou convívio co m os m em b ro s da
e q u ip a co n traria.

T rata-se de um a regra co m p reen sív el. N ão seria con v en ien te que


os jogadores fo ssem vistos a ta g a re la r com o se estiv essem num cha.
para, logo a seguir, urna vez in ic ia d o o desafio, passarem a disputar
convincentem ente a posse da b o la. É preciso q ue sem p re e a todo o
m o m en to se apresentem co m o ad v ersário s.38

E m to d o s estes caso s q u e im p lic a m a c o n frate rn iza ção entre e s ­


p ecialistas co n trario s, o que c o n ta n ão é ta n to que os seg red o s das
eq uip as p o ssam se r rev elad o s ou o s seus interesses lesad o s (em bora
tal p o ssa c o n tecer ou p arecer a c o n te c e r), m as antes que a im pressão
de o p o s iç ã o v is a d a p o s s a p a r e c e r d e s m e n tid a . O c o n tr ib u to do
e s p e c ia lis ta d ev e p a re c e r u m a r e s p o s ta e sp o n tâ n e a a o s fa c to s e m
ap reç o , in d ep en d en te d a situ a ç ã o d e o p o sição em q u e ele se en c o n tra
p e ra n te a o u tra eq u ip a; p o r isso, sc co n fratern izar com o esp ecialista

Dale, op. n :., p. ! 50.


Pindli, op. ris., p. 169.
234 F .rv in g G o f f m a n

ho m ó lo g o d a parte c o n m in a , o v alo r técn ico do scu c o n trib u to não


se rá a fe c ta d o , m as, c m te rm o s d ra m a tú rg ic o s , o seu d e se m p e n h o
passará a ap re se n ta r-se corno a q u ilo que. na realidade, é. pelo m en o s
e m p a n e , o d e se m p e n h o p o r co n tra to dc u m a p rá tica de rotina.
N ão p reten d o d iz e r p o r m eio d esta análise q ue a co n fratern ização
só o c o rre en tre e sp ecialistas q u e se co lo cam a títu lo tem p o rário em
ca m p o s op o sto s. Q u an d o as lenidades se cru zam , pode ac o n te c er que
d a d o g ru p o d e in div íd u o s fo rm e e m voz alta um p a r de eq u ip as, ao
m e sm o te m p o q u e , em se g re d o , o u tra d is trib u iç ã o , d ife re n te , se
form a. E sem pre q u e d u a s eq u ip as são o b rig ad as a su ste n ta r um grau
elev a d o de an tag o n ism o m útuo ou de d istân cia so cial, ou de am bas
as co isas, p a ssa a se r possív el d efin ir-se u m a á rea de c o n to rn o s bem
d elim itad o s q ue se tran sfo rm a n ão só cm reg ião d o s b astid o res dos
d e s e m p e n h o s s u s te n ta d o s p e la s e q u ip a s, m as ta m b é m n u m lu g a r
a b e rto aos m em bros d as duas eq u ip as. N o s h o sp itais p siq u iá tric o s
público s, p o r ex em p lo , en co n tram o s m u itas vezes urna sala ou zona
re tira d a o n d e o s p a c ie n te s e p r o f is s io n a is p o d e m e n tr e g a r - s e a
activ id ad es c o m o o jo g o d o p ó q u e r ou a c o n v ersa d e veteranos, e
o n d e sc e n c o n tr a c la r a m e n te e s ta b e le c id o q u e o s m e m b ro s d o
pesso al não a b u sarão da su a au to rid ad e. O s acam p am en to s m ilitares
in c lu e m m u ita s v e z e s , d e m a n e ira s e m e lh a n te , u m a re g iã o
h o m ó lo g a. A se g u in te e v o c a ç ão da vida d e bordo pro p o rcio n a-n o s, a
esle p ro p ó sito , um a ilu stração suplem entar;

H á um a a n tig a lei d e te rm in a n d o que n a co zin h a q u a lq u e r ho­


m em p oderá e x p re ssa r im pu n em en te o q ue pensa, c o m o no Ily d e
P a rk C o rn e r, em L o n d re s. U rn o fic ia l, q u e s e s e rv isse f o ra d a
co z in h a d o q u e o u v ira lá d e n tro c o n tra um m em bro d a trip u lação ,
to m a r-se -ia alv o de a c to s de sa b o tag em g e n e ra liz a d o s por p arte
dos o u tro s ou seria ex c lu íd o d o g ru p o .-9

Hm prim eiro lugar, n u n ca fica n in g u ém a sós co m o co zin h eiro .


H á se m p re o u tro h o m em p re se n te , q u e traça a p e rn a en q u a n to
o u v e as in trig as o u os d e sa b a fo s, co n fo rtav elm en te in stalad o num

Jau cie H artos. A S a ilo r’s Life. Harper Biolfurrs, N ova Iorque. 1955, p. 355.
A Apresentação do Hu na Vida de Todos os Dias 235

ban q u in h o ju n to à p a re d e a q u e c id a , d iante do fo g ão , co m o s pés


n a grade c o ro sto afo g u ead o d e calor. A g rade cm q u e a p o ia o s
pés serv e de sinal: a co zin h a c a p raça dc aldeia do navio, c o c o ­
zin h eiro e o seu fogão, a b a rra c a d e cach o rros q u en tes do lugar.
T rata-se do ú n ico local em q ue o s o ficiais e os o u tro s m em b ro s d a
trip u la ç ã o se en co n tram em p e rfe ito pé de ig u ald ad e, co m o d e sc o ­
brirá cm b rev e o jo v e m m a rin h e iro que lá en tra com o seu a r de
au to rid a d e recen te. T ra ta n d o -o sem c e rim ó n ia p o r “ A m ig o ” ou
“C o le g a ", o co zin h eiro p ô -lo -á no seu lugar, que fica ao lad o de
H ank, o lubrificador, no b a n q u in h o . [...]
Sem esta livre c o m u n icação na co zin h a, o navio é asso la d o por
co rre n te s subterrân eas. T oda a g e n te sabe que, nos tró p ico s, a te n ­
sã o cresce e a trip u lação se to m a m ais difícil de controlar. A lguns
atrib u em o fa c to ao calor, o u tro s sabem q ue se dev e â perd a da
v á lv u la de escape trad icio n al: a c o z in h a .41-1

C o m freq u ên cia, q u ando d u a s e q u ip a s entram socialm ente cm in ­


teracção , podem os id en tificar u m a d elas com o d eten to ra de um p re s­
tíg io global inferior, e a o u tra c o m o d eten to ra de u m prestígio global
s u p e r io r . H a b itu a lm e n te , q u a n d o p e n s a m o s em a c ç õ e s d e r e a li-
n h am en to neste quadro, p en sam o s nos esforços por parte d a eq u ip a
in fe rio r ten d en tes a a lte ra r a b ase da interacção p a ra a to rn a r m ais
fav o ráv el do seu pon to dc vista, ou p ara dim inuir a d istân cia e fo rm a ­
lid a d e s so c ia is in sta u ra d a s en tre o s seus m e m b ro s e o s da e q u ip a
superio r. M as é cu rio so n o ta r q u e há ocasiões em q u e c o n v em aos
o b je c tiv o s globais da e q u ip a s u p e rio r d esm o n tar as barreiras e a d m i­
tir um a m a io r intim id ad e e ig u a ld a d e aos m em bros da eq u ip a in fe ­
rior. S c sc m edirem a.s c o n se q u ê n c ia s d a ex ten são d a fam iliarid ad e
d o s b astid o res ao s su b o rd in ad o s, ta lv e z se chegue à co n c lu sã o de que
p o d erá se r b en éfico a lo n g o p ra z o fazê-lo tem p o rariam en te. A ssim ,
no intuito d c c o n tra ria r urna g rev e. B arnard conta-nos c o m o d e lib e ra ­
d am en te se pôs a d i/c r p alav rõ es n a presença d e um a co m issã o de re­
p re s e n ta n te s ile o p e rá rio s d e s e m p re g a d o s , a o m e sm o te m p o q u e
d ec la ra ter tido co n sciên cia d o fim v isad o p o r esse c o m p o rtam en to :

4 0 Ibid., pp. 154-55.


236 Erving Goffman

N a m inha o pinião, co n firm ad a por outras p esso as cu jo parecer


resp eito , é, re g ra geral, u m a c o is a p é ssim a que o titu la r d e um a
p o sição e le v a d a pragueje na p resen ça dos q u e lhe e slão subordi­
nados ou p erten cem a u m a con d ição inferior, ainda q u e e ste s últi­
m os não tenham q u a lq u e r o b jecção a p ô r ao s palav rõ es ou pragas e
sa ib a m a té , c m m u ito s c a s o s , que o c h e fe c o s tu m a f a la r m al.
C onheci m uito p o u co s hom ens que pudessem fazê-lo sem desp er­
ta r reacções n egativas. S u p o n h o que a razão do facto está em tudo
a q u ilo q u e d im in u i a d ig n id a d e de u m a p o sição s u p e rio r to rn a r
m a is d ifíc il a a c e ita ç ã o d a s d ife re n ç a s d e e sta tu to . D o m e sm o
m odo, q u an d o e stam o s perante o caso de u m a só em p resa, na qual
a p o sição de topo representa sim bolicam ente o conjunto da organi­
zação, é posto em cau sa o prestígio global desta últim a. N o caso
presente, que co n stitu ía um a ex cep ção , o p rag u ejar foi delib erad o e
aco m p an h ad o p o r v io len to s m urros na m esa.41

E n co n tram o s u m a situ ação sem elhante nos hospitais psiquiátricos


onde se preten d e q ue o facto r “ m eio” sirv a com o instrum ento terap êu ­
tico. Q u an d o as enferm eiras e auxiliares são adm itidas nas reuniões,
tradicionalm ente m ais d o q u e sagradas, dos m édicos, estes m em bros
não m édicos do pessoal talvez sintam que as distâncias entre os seus
papéis e os d o s m édicos dim inui e adoptarão p o r isso m ais facilm ente
a s in d ic a ç õ e s d o s m é d ic o s e m r e la ç ã o a o s d o e n te s . Q u a n d o o
exclu siv ism o d o to p o é sacrificado em term os q ue (ais. esp era-se que o
m oral d a base beneficio. U m a descrição com edida deste processo é a
que nos fornece M axw ell Jones na su a investigação sobre a exp eriên ­
cia inglesa de terapêutica com u n itária ou de meio:

T en tám o s, n o n o sso serv iço , d e se n v o lv e r o papel do m éd ico de


m an eira ad e q u a d a ao n o sso o b jectiv o te ra p ê u tico lim itad o e, ao
m e sm o te m p o , e v ita r a d is s im u la ç ã o . O q u e re p re s e n to u um a

ll: Chester I. Rarmird. Organization and Management, Mass. Harvard University


Press. Cambridge, i 949. r.oca pp. 73-7*1 Este tipo dc comportam ento deve scr clara­
mente diferenciado do uso de termos « modos grosseiros poi um chefe que perma­
nece no interior do grupo form adn pelos seus subordinados e que o s ''p ic a " no
trabalho.
A Apresentaçao do Hu na Vida dc Todos os Dias 237

ru p tu ra co n sid eráv el com as trad içõ es do hosp ital. N ã o no* ves­


tim o s de- a c o rd o c o m a s id e ia s h a b itu a lm e n te p re d o m in a n te s
a c e rc a d o m o d o c o m o d e v e v e stir-se um m e m b ro d a p ro fissã o .
P u sem o s de parte o uso d a b a la b ranca, o esteto scó p io ao p eito e o
a g re s s iv o m a rte lo d e p e r c u s s ã o e n q u a n to e x te n s õ e s d a n o ssa
im ag em física.42

N a realidade, q u an d o e stu d a m o s a in teracção en tre d u a s eq u ip as


em s itu a ç õ e s d e v id a q u o tid ia n a , d e sc o b rim o s m u ita s v e z e s u m a
ex p e cta tiv a q ue ap o n ta no s e n tid o dc um a q u e b ra d a su p erio rid a d e
co n se n tid a p ela e q u ip a superior. i£m prim eiro lugar, este a fro u x a r da
fa c h a d a p e rm ite u m a b ase d e n e g o c ia ç ã o ; o s u p e rio r re c e b e um
serv iço , o u q u a lq u e r o u tra v a n ta g e m , en q u an to o su b o rd in ad o g o z a
de um b ó n u s dc intim idade. D este m odo. sab em o s que a re se rv a que
o s m e m b ro s d a c la s s e s u p e r io r e m In g la te rra m a n tê m d u ra n te a
in teracção co m co m ercian tes o u peq u en o s fu n cio n ário s ¿ m o m enta­
neam en te posta dc lado q u an d o se trata de o b te r d o s “ in ferio re s” um
fa v o r ou serviço csp ccial. Ig u a lm e n te , esta red u ção d a d istân cia e sta ­
belecid a é um m eio de c ria r na in teracção u m c lim a de e sp o n tan e i­
d ad e e in teresse acrescid o s. S e ja com o for, a in teracção entre duas
e q u ip a s e x ig e c o m f r e q u ê n c ia q u e s e to le r e m c e r ta s p e q u e n a s
lib erd ad es, ain d a q ue apenas c o m o m eio de “ a p a lp a r o te rre n o ” u tili­
zad o po r um a eq u ip a d e se jo sa de apurar se n ão será p o ssív el o b te r
a lg u m a v antagem in esp erad a em relação ao outro lado.
Q uan d o um acto r se re c u sa a fic a r no seu lugar, seja e ste in ferio r
ou su p e rio r ao da au d ien cia, c o n ta m o s que o d ire c to r do d e se m p e ­
nho, no caso de existir, c a a u d iê n c ia se m o strem in d isp o sto s com
e sse actor. Hm n u m ero so s ca so s, o s seus co m p an h eiro s da base p o ­
d e rão tam b ém n ão g o star d o seu m o d o de agir. C o m o an terio rm en te
ind icám o s, q u alq u er co n c e ssã o su p le m e n ta r à au d iê n cia por p a rte de
u m m em b ro da e q u ip a sig n ifica u m a a m eaça p ara a a titu d e que os
outros assu m iram e um a a m e a ç a p a ra a seg u ran ça q u e eles tiram do
facto de co n h ecerem e c o n tro la re m a p osição assu m id a. A ssim , se

■*- M axwell Jones. The Therapewic Community. Basic Books. Nova Iorque. 1953.
p. 40.
238 F .rv in e C o f f m a n

um n p r o f e s s o r a p r im á r ia f o r e x c e p c io n a lm e n te a le n ta a o s s e u s
alun o s, o u b rin car co m eles d u ran te os recaiio s, ou c o n ta c ta r de m u i­
to p e rlo co m as crian ças de c o n d iç ã o so cial m a is baix a, as ou tras
p ro fe sso ra s sen tirão q ue a im p ressão q u e ten tam su sten ta r ace rc a do
q u e co n stitu i um tra b a lh o c o m o d ev e se r se en co n tra a m e a ç a d a .43
D e fa c to , q u a n d o c e rto s a c to re s a tra v e ssa m a lin h a q u e s e p a ra as
e q u ip a s , q u a n d o há u m in d iv íd u o q u e se to rn a e x c e s s iv a m e n te
fa m ilia r, e x c e s s iv a m e n te c o m p re e n s iv o o u e x c e s s iv a m e n te a n ta ­
gó n ico , é p re v isív e l a e m e rg ê n c ia de um circu ito de re v erb e raçõ e s
afe c ta n d o a e q u ip a s u b o rd in a d a , a e q u ip a su p e rio r e o s tra n sg re s­
so res cm cau sa.
E n c o n tra m o s u m a ilu stração d e ste fenóm eno de rep e rc u ssõ e s em
c a d e ia n u m a recente in v estig ação sobre a m a rin h a m ercante, em que
o a u to r d e s c re v e c o m o , q u a n d o o s o f ic ia is d is c u te m p ro b le m a s
re la tiv o s à d is c ip lin a de b o rd o , o s m a rin h e iro s se s e rv e m d e s s a
o p o rtu n id a d e p a ra m a n ife s ta re m a s u a s o lid a rie d a d e p a ra c o m o
o fic ia l q u e c o n sid eram injustiçado:

P ro c e d e n d o d esse m o d o |o u seja, ap o ia n d o urna das partes do


c o n f lito l, a tr ip u la ç ã o e s p e ra v a q u e o o fic ia l a fro u x a s s e a su ­
perioridade da su a atitu d e e perm itisse ao s m arin h eiro s u m certo
g ra u de ig u a ld a d e n a a n á lise d o p ro b le m a . O que e m b re v e o s
levou a c o n ta re m co m c e rto s priv ilég io s com o o de o cu p a rem a
c a s a d o le m e c m v e z d e p e r m a n e c e r e m n a s a la s d a p o n te .
E x p lo ra v a m ¡tssim em se u b e n e fíc io as d iv e rg ê n c ia s e x iste n te s
en tre o s piloios.*1'1

C e rta s o rie n ta ç õ e s re c e n te s em p siq u ia tria p ro p o rc io n a r-n o s-ã o


outro s e x em p lo s, dos q uais m en cio n arei apenas alguns.
U m d e le s será ex traíd o d o e stu d o de M ax w ell Jo n es, e m b o ra o seu
trab alh o se a p resen te c o m o u m a arg u m e n ta ç ão em fa v o r d a redução
das d iferen ças de estatu to en tre o s d iferen tes níveis p ro fissio n a is do
pessoal e en tre os p ro fissio n ais d o serviço e os pacientes:

Comunicação pessoa!, que o autor deve a 1Ielsn Rlaw, professora primária.


11 Bcattic. oft. cii., pp. 25-26.
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Di as 239

O grupo d a s enferm eiras no sen conjunto poderá se r afectado pe­


la indiscrição de um dos seus elem en to s; a en ferm eira, que perm ite
que as suas necessidades sexuais sejam abertam ente satisfeitas pelo
pacien te, m odifica a atitude d e sse paciente em relação a todo o gru­
po das enferm eiras e torna m e n o s eficaz o seu papel terapêutico.45

O utra ilustração é a que nos forn ecem os com entários de Bettcllicim


sobre a sua experiência de co n stru ç ã o de um am biente terapêutico na
E sc o la O rto fó n ic a S o n ia S h a n k m a n d a U n iv ersid ade de C hicago;

N o q u ad ro global d o a m b ie n te terapêutico, a segurança pessoal,


g ratificaçõ es pulsionais sa tisfa tó ria s e o apoio do g ru p o sensibiliza­
vam e m c o n ju n to a c ria n ç a p a r a a s re la ç õ e s in te rp e s s o a is . O s
o b jectiv o s da terap ia pelo m eio ficariam , evid entem ente, co m pro­
m etid o s se as crian ças não e stiv e sse m igualm ente pro teg id as co n ­
tra as fo rm as de desilusão q u e já tin h am sofrido no q u a d ro das suas
condições de vida anteriores. A co erên cia por parte dos profissionais
é. p o r co nseguinte, um a im p o rtan te fonte de seg u ran ça pessoal para
as crianças, sendo necessário q u e o s diversos elem entos do quadro
perm an eçam im perm eáveis às te n ta tiv a s das crianças no sen tid o d e
atirarem os p rofissionais uns c o n tra os outros.
N a origem , são m uitas as c ria n ç a s que só lo g raram c o n q u ista r o
afecto de um d o s p ais à c u sta d e exigên cias d e a fe cto e x erc id a s
sobre o outro. A criança elab o ra m u itas vezes u m m eio de c o n tro ­
lo d a situ a ç ã o fam iliar, lan çan d o , n e sta base, um do s p ais co n tra o
o u tr o , m a s c o m is s o c o n s e g u e a p e n a s u m a s e g u r a n ç a m u ito
relativ a. A s crian ças q u e tiv e ra m m ais éxito co m esta té c n ic a fi­
ca m esp ecialm en te atin g id as na su a capacidade de estab e lec ere m
p o ste rio re s relaçõ es n ão a m b iv a le n te s. S eja c o m o fo r, à m edida
que recriam situ açõ es e d ip ia n a s n o interior da esco la, as crian ç as
desen v o lv em tam b ém lig açõ es p o sitiv a s, negativas ou a m b iv ale n ­
tes co m os d iv erso s elem entos p ro fissio n a is do q uadro. H e sse n ­
cial que estas relações entre as c ria n ç a s e os pro fissio n ais in d iv i­
d u a lm e n te c o n sid e ra d o s não a fe c te m as re la ç õ e s d e ste s últim o s

45 Maxwell Jones, op. ris., p. 38.


2-10 Erving Goffman

en tre si. S em co erên cia n e sta d im en são d o am b ie n te g lo b al, essas


lig açõ es d e g e n e ra rã o em re la ç õ e s n e u ró ticas e d e stru irã o a base
das id en tificaçõ es e relaçõ es de afecto e stáv eis.46

U m últim o ex e m p lo será o ex tra íd o dc um p ro je cto d e terap ia d e


gru p o , onde su rg em esb o çad as certas su g estõ es sobre o m odo com o
d e v e m s e r e n f r e n ta d a s as d ific u ld a d e s r e c o rre n te s c a u s a d a s p o r
p acien tes d esestab ilizad o res:

F izeram -se ten tativ as n o sentido da in stauração de u m a relação


esp ecial co m o m éd ico . O s p acien tes p ro cu ram c o m m u ita fre­
q u ê n c ia cu ltiv a r a ilu são de um en te n d im e n to se c re to co m o m é­
dico. ch am an d o , p o r ex em p lo , a aten ção d este últim o p a ra q u a l­
q u er p restação de um outro p acien te q ue se afigure co m o p a rtic u ­
larm en te “ lo u ca’’. Se co n se g u ire m o b te r d o m éd ico urna resp o sta
s u s c e p tív e l d e s e r in te r p r e ta d a c o m o in d íc io d e um v ín c u lo
e sp e c ia l, a situ a ç ã o q u e se in sta la a se g u ir p o d e s e r fo rtem en te
p e rtu rb a d o ra p a ra to d o o g ru p o . U m a v ez q u e e ste tip o d e r e ­
p resentação é essencialm ente não verbal, to m a-se necessário que o
m édico controle especialm ente bem a sua actividade não verbal.47

Bruno Bettclhcim e Krmny Sylvester, “Milieu Therapy” . Psychoanalytic Review,


XXXVI, 65.
4"' Florence 15. Pow dcrm aker e outro s, "P relim in ary R ep o n fo r the N ational
Research Council: Group Therapy Research Project", p. 26.
E freqüente, sem dúvida, o caso de traição do indivíduo ao seu gnipo por meio de
uma chamada de atenção diriaida a um membro da outra equipa. Deve notar-se que.
na vida de todos os dias. a recusa dc aderir mom entaneam ente a uma comunicação
conivente deste tipo. depois dc se ter sido convidado a fazê-lo, significa, cm relaçáo
àquele que convida, uma atitude algo ofensiva. O indivíduo pode ver-se perante o
dilem a de ter que trair o objecto da conivência que lhe c pedida ou dc ofender a
pessoa que lhe solicita a conivência. Veja-se o seguinte exemplo de Ivy Compton-
-Burnett, A Family a n d a Fortune, Eyre &. Spottiswoodc. Londres, 1948. p. 33:
“ M as cu não estav a a re sso n ar — d isse B lanche, no tom excessiv am en te
tranquilo de quem perdeu o controlo da situação. — T eria dado por isso. N ão sc
pode estar acordado e fazer barulho sem d ar por isso.
Justine teve um o'.har de atrevimento dirigido a quem quer que estivesse disposto
a responder-lhe. Edgar fê-lo com o sc sc incum bisse dc um a obrigação e desviou
depois, apressadamente, os olhos para outro lado.”
A Apresentação do Hu na Vida dc Tocios os Dias 241

T a lv e z e s ta s c ita ç õ e s n o s fa le m m a is d o s s e n tim e n to s s o c ia is
p arcia lm e n te e sc o n d id o s dos a u to re s d o q u e d o s p ro c esso s g lo b a is
q u e p o d em d escn v o lv er-sc q u a n d o alguém sai d a linha d e c o m p o r­
tam en to e stab elecid a, nías, recc n tc m cm c , n u m trab a lh o de S tanton e
Schwartz., d ep aram o s corn um a d e s c riç ã o su ficien tem en te p recisa do
circu ito dc c o n se q u ê n c ia s que sc d e se n c a d e iam quan d o é tra n sp o sta
a linha q ue separa a s d u a s eq u ip a s.'1*
Já in d icám o s q u e, c m m o m en to s d e crise, as linhas d iv isó ria s po­
d e m se r m o m e n ta n e a m e n te q u e b ra d a s , e n q u a n to os m e m b ro s das
eq u ip a s o p o stas e sq u e c e m m o m e n ta n e a m e n te os lugares p rescrito s
q u e d ev em m a n te r uns perante o s o u tro s. T am b ém in d ic á m o s que
c e r to s fin s sã o . a p a r e n te m e n te , c o n s e g u id o s c o m m a is e fic á c ia
q u an d o sc a b atem as barreiras e n tre as eq u ip as, pelo q ue, a fim de
c o n s e g u ire m c e rto s o b je c tiv o s , a s e q u ip a s s u p e rio re s p o d e m p o r
vezes m isturar-se c o in as in ferio res ou su b o rd in ad as. D ev em o s a g o ra
a c r e s c e n t a r q u e , n u m a e s p é c ie d e e a s o - l im ite . a s e q u ip a s em
in teracção p arecem p o r vezes d isp o sta s a d e sfazerem -se do cen ário
d ra m a tú rg ic o d a s su a s a c tiv id a d e s c a e n tre g a re m -s e p o r la rg o s
p e río d o s de tem p o a u m a orgia p ro m ísc u a dc análise clín ic a , re li­
g io sa o u ética. T em os u m a v e rsã o d esag rad áv el d este p ro cesso nos
m o v im e n to s s o c ia is d e e v a n g e liz a ç ã o q u e u tiliz a m a c o n f is s ã o
p ú b lic a c o m o in stru m e n to . U m p e c a d o r, m u itas v ezes d e c la ra d a ­
m ente d esp ro v id o de q u alq u er e sta tu to d c d estaq u e, en tra e m c e n a e
conta a o s presentes to d o o tipo de c o isa s q ue h ab itu alm en te tentaria
esc o n d e r ou racio n alizar; sacrifica os seus seg red o s c a sua d ista n cia
d c au to d efesa em re la ç ã o aos o u tro s, e esse sacrifício tende a in d u zir
um a so lid aried ad e de bastidores e n tre o s circu n stan tes. As terapias
d c g ru p o e x ib e m um m ecan ism o a n á lo g o n o q ue se refere à fo rm a ­
ção d e um esp írito de e q u ip a e d e u m a so lid aried ad e de bastid o res.
A qui c um p e c a d o r p síq u ico q u e m se a p re se n ta e fala de si, c o n ­
v idan d o os o u tro s a falarem d ele e m te rm o s que seriam im p o ssív eis

^ A lfred H. Stanton e M o rris S S d n v art/., “T he M anagem ent o f a T y p e o f


Institutional Participation in Mental Iilness", Psychiatry. XII. pp 13-26. No sen
artigo, os autores descrevem a adopção pela enferm eira dc certos pacientes nos
term os dos efeitos «pie isso tem sobre os outros pacientes, a equipa profissional e os
próprios infractores.
242 Erving CioH'man

n u m q u a d r o d e in te r a c ç ã o c o m u m . O r e s u lta d o te n d e a s c r a
so lid aried ad e in trag ru p al, e este tip o d c "ap o io so cial” , c o m o tem s i­
do ch am ad o , possui p ro v av elm en te o seu v a lo r terap êu tico . (S eg u n ­
do o s c rité rio s d a v id a de to d o s os d ias. a única c o isa que d este m odo
o p acien te perde é o seu resp eito p o r si p ró p rio .) T alv e z ach em o s
(am bém um eco de aigo sem elh an te nas reu n iõ es entre m édicos e e n ­
ferm eiras q u e atrás citám o s.
E sta s p assag en s d a d istâ n c ia à intim id ad e podem dar-se em o c a ­
siõ e s de te n s ã o c ró n ic a . O u ta lv e z p o ssa m o s c o n s id e rá -la s c o m o
p a rte de um m o v im e n to so cial a n tid ra m a tiírg ieo . d e um cu lto da
co n fissão . T alvez o a b a te r das b arreiras rep resente u m a fase natural
do p ro cesso d e tran sfo rm ação social que faz c o m q u e u m a eq u ip a se
tran sfo rm e noutra; é p ro v áv el q u e as eq u ip as opostas neg o ceiem os
seus se g re d o s d e m o d o a p o d erem d esd e o in íc io re u n ir um novo
co n ju n to d e factos in co n fessáv eis q ue s e d estin am a se r n eg o ciad o s
m ais tarde. S e ja c o m o for. v em o s q u e há o casiões em q u e as eq uipas
co n trá ria s, na in d ú stria, no casam en to ou n o país, sc m ostram d is ­
p ostas n ão só a c o n ta r o s seus segredos ao m esm o e sp ecia lista , m as
tam b ém a p ro ced erem a tais rev elaçõ es n a p resença d o in im ig o .49
S u g erim o s a este pro p ó sito que u m dos m elh o res lugares d e o b ­
servação d as práticas de renlinham ento, sob retudo d as traições te m ­
porárias. talv ez não sejam as o rganizações h ierarquicam ente g o v er­
nadas, m as a interacção em m oldes de co n v ív io inform al e n tre in d i­
víduos relativ am en te iguais. De facto, a o co rrên cia auto rizad a de s e ­
m elhantes ag ressõ es p arece ser u m a d as características que d efin em a
n o ssa ex istên cia co n v iv en cial. H m uitas vezes de esp e ra r cm tais o c a ­
siões q ue d u as p essoas se em p en h em am b as n um a co n v ersa c o m e d i­
d a q ue se d estin a ao s q ue a ou v em , tentan d o ca d a um a d elas, de m a­
neira p o u co séria, refu tar a p o sição d efen d id a pela o u tra pesso a. I lá
situ açõ es de flir t em que os hom ens tentam d e stru ir a p o stu ra de ina­
cessib ilid ad e virginal d as m ulheres, en q u an to estas se e sfo rç am p o r

Um exem plo possível ó o do panei que os terapeutas do prupo de Tavistock sc


propõem assumir quanto à "elaboração" dos con Hitos entre trabalha c capital nas
organizações industriais. Vcjam-se as transcrições dc trabalho contidas cm Eliot
Jaques. Tiú- Changing Culture o f a Factory, Tavistock. Londres, 1951
A Apresentação do Liu na Vida dc Todos os Dias 243

fa ze r com q ue os h o m e n s a ssu m a m um a atitude de interesse p o r cias.


m as sem co m isso v erem c o m p ro m e tid a s a s su as p ró p ria s d efesas.
(Q u an d o os q u e flirtam são a o m esm o te m p o m em bros d c d iferen tes
eq u ip a s c o n ju g ais, v erificar-se-ão p o r vezes, a ssim , traiçõ es e d es­
lealdad es sem im p o rtân cia.) X as ro d as de co n v ersa de cinco ou seis
e le m e n to s, os a lin h a m e n to s d e b a se . c o m o o e x iste n te e n tre um e
o u tro cônju g e, ou en tre an fitriõ es e c o n v id ad o s, ou entre ho m en s c
m u lh eres, p o d em ser d e sp re o c u p a d am e n te postos de parte c os p a rti­
cip an tes m ostrar-sc-ão p ro n to s a m u d ar u m a e o u tra v ez o seu a lin h a ­
m ento p o r um a e q u ip a in su fic ie n te m e n te p ro v o cad o ra, para se ju n ta ­
rem ao s m em bros que fo rm av am a su a au d iên cia anterior, c o n tra os
ex -co m p a n h e iro s de e q u ip a , que assim serão cla ra m en te traídos ou
to m ad o s alvo de u m a c o m u n ic a ç ã o co n iv en te que os tra n sfo rm a cm
alvos de troça. U m c aso sem elh an te é aq u ele em que um participante
de estatu to elev ad o se em b eb ed a, d e sfazen d o -se da sua ta c h a d a e e n ­
tra n d o n u m a re la ç ã o m a is ín tim a e a c e ss ív e l co m p e sso a s d c um
esta tu to lig e ira m e n te in fe rio r. O m esm o e s tilo a g re ssiv o é m u itas
v e z e s c o n s e g u id o d c m o d o m e n o s e la b o ra d o m e d ia n te jo g o s ou
gracejos q u e levam a p e sso a to m a d a com o alvo d a brin cad eira a a s ­
sum ir, sem seriedade, u m a posição g ro tescam en te indefensável.
G o staria dc c o m e n ta r um asp ecto global q u e parccc asso ciar-se a
e sta s c o n sid e ra ç õ e s so b re o c o m p o rta m e n to d as eq u ip as. In d ep en ­
d en tem en te de sab erm o s o q u e c q u e cria a n ecessid ad e h u m an a de
c o n ta c to so cial e de co m p a n h e iro s, o s seu s efeitos parecem rev estir
d u as fo rm as: a n ecessid ad e d e u m a au d iê n c ia que p erm ita a o in d i­
v íd u o p ô r à p rova a sua p erso n alid ad e m ais lisonjeira, c a n e c e ssi­
dade d e co m p an h eiro s de e q u ip a co m os q u ais p o ssa g o z a r de um a
in tim id a d e c o n iv en te e da d e sc o n tra c ç ã o p ró p ria dos b astid o res. H
aq u i q ue o quad ro deste tra b a lh o c o m eça a revelar-se excessiv am en te
ríg id o p ara os facto s que p õ e m ern ev id ên cia. H m bora as duas fu n ­
ç õ e s , q u e os o u tro s p o d e m d e s e m p e n h a r p a ra n ó s, e s te ja m
hab itu alm en te isoladas u m a d a o utra (c o n sa g ra n d o -se um a boa parte
deste estudo às razões q u e to m am n ecessária sem elhante seg reg ação
fu n c io n a l), há sem d ú v id a ocasiõ-es em que a m b a s a s fu n çõ e s são
d esem p en h ad as q u a se sim u lta n e a m e n te pelo s m esm os o u tro s. C o n ­
fo rm e iá foi dito . isso p o d e ac o n te c er num q u ad ro de perm issiv id ad e
244 ürving G off man

recíp ro ca em o casiões de co n v ív io ; m as en co ntram os, sem dú v id a, a


m esm a d u p la função em activ id ad e co m o o b rig ação não re cíp ro c a —
um a o b rig a ç ã o q ue a la rg a o p ap el d e c o m p a rsa ao p o n to de fa z e r
com q ue o in divíduo a q u em e le toca ten h a de e star c o n stan tem en te
disponível — ou p ara se r testem u n h a da im pressão q u e o seu am o
p ro d u z ou p a ra o a ju d a r a p ro d u z i-la . A ssim , nas in sta la ç õ e s das
tra s e ir a s d o s h o s p ita is p s iq u iá tric o s , d e s c o b rim o s p o r v e z e s um
e n fe rm e iro e um p a c ie n te q ue e n v e lh e c era m ju n to s, e o b se rv a m o s
en tão q u e é e x ig id o ao paciento ser o alv o se m p re a p o stos do s g ra­
cejo s do en ferm eiro , em b o ra de v ez em q u ando rec eb a u m a piscadela
do o lh o c o n iv e n te da p a rte do e n fe rm e iro q u a n d o este tom a co m o
a lv o u m a o u tr a p e s s o a . S e ja c o m o fo r, o a p o io te r a p ê u tic o q u e
d e screv em o s será c o n ced id o ao en ferm eiro p elo paciente sem p re que
o prim eiro dê sin ais d e o desejar. T alvez p o ssam os tam b ém co n sid e­
rar o papel m ilita r dc aju d an te-d e-cam p o . pelo m enos parcialm ente,
em term os q u e o d efin em c o m o u m papel de co m p arsa, p o is aquele
q u e o d e se m p e n h a fo rn ece ao g e n e ra l um c o m p a n h e iro de e q u ip a
que pode ser p o sto d e lado livrem ente ou liv rem en te u tiliza d o com o
m e m b ro da a u d iê n c ia . O u tro s e x e m p lo s p o s s ív e is se ria m c e rto s
m em b ro s d a s q u a d rilh a s d e rua e c e rto s a ssiste n te s e x e c u tiv o s das
cortes que se fo rm am em torno d o s p ro d u to res d e H o llyw ood.
C o n sid erám o s neste cap ítu lo q u atro tipos de c o m u n icação d e slo c a­
da: o tratam en to d ado ao s ausentes; as co n v ersas de palco; a c o n iv ê n ­
cia d a e q u ip a e as a cçõ es de realin h am en to . C ad a um destes quatro
tipos dc co m p o rtam en to d irig e a nossa aten ção para o m esm o ponto:
o d e s e m p e n h o a p re s e n ta d o p o r u m a e q u ip a n à o é u m a re s p o s ta
esp o n tán ea, im ediata, a u m a situação, ab so rv endo to d as as energias
d a e q u ip a e co n stiiu in d o a su a ú n ica realidade social; o d esem p en h o
e u m a co isa em relação à qual os m em bros da e q u ip a po d em recuar,
e re c u a r o b a s ta n te p a ra im a g in a re m o u re p re s e n ta re m s im u lta ­
neam en te o u tro s tipos d e d esem p en h o que ap o n tam para outras re a ­
lidades. S eja c o m o fo r que os actores sintam ou n ão a su a prestação
oficial c ó m o a m ais real d as realidades, ao m esm o tem po co n tin u arão
a exprim ir, de m an eira dissim ulada, m últiplas versões d a realidade,
ten d en d o cada urna delas a afirm ar-se incom patível com as outras.
VI
A Arte de Administrar as Impressões

N e s ic ca p ítu lo , g o sta ria de c o n ju g a r tu d o o que j á ñ c o u d ito ou


deixei im p lícito acerca d o s atrib u to s req u erid o s d e um actor no seu
tra b a lh o de e n c e n a r co m ê x ito c e rta p erso n ag em . Será, por c o n se­
g u in te , n e c e s s á rio p r o c e d e r a u n ia b re v e a n á lis e d e a lg u m a s das
técnicas de adm in istração d a s im p ressõ es n a ex p ressão dos atributos
citad o s. A títu lo p relim in ar indicarei, em certo s c aso s pela seg u n d a
vez, alg u n s dos tipos p rin cip ais de p ertu rb ação d o desem p en h o , um a
vez que são as div ersas form as de p ertu rb ação que a fu nção de adm i­
n istração d as im p ressõ es e as suas técn icas visam evitar.
N o co m e ç o d e ste trab alh o , q u a n d o c o n sid erám o s a s cara cterística s
g e n é ric a s dos d e se m p e n h o s, su g e rim o s q u e o a c to r te m dc a c tu a r
c o rn re s p o n s a b ilid a d e e x p r e s s iv a , urna v e z q u e n u m e ro s o s a c to s
m en o re s 011 irreflectid o s p o d e rã o rev elar-se de m olde a tra n sm itir
im p ressõ es q u e a o casião to rn a p o u co ad eq u ad as. C h am ám o s a essas
ac ç õ e s “g esto s in v o lu n tá rio s” . P o n so n b y fo rn c c c-n o s um ex em p lo
d o m odo c o m o o acto r q u e d irig e um d e sem p en h o te n ta e v itar que
um g e sto irreflectid o len h a c o m o c o n se q u ê n c ia um o u tro g esto da
m esm a n atureza.

U m d o s adid o s d a leg ação estav a en c a rreg a d o d e tra n sp o rta r a


alm o fa d a onde h av iam sid o co lo cad as as in síg n ias, e. a fim d e e v i­
tar que estas caíssem , pus o alfin ete p o r trás a p re n d er a E stre la à
a lm o fa d a de v elu d o . O a d id o , no e n ta n to , não ac h o u su fic ie n te
esta p recau ção , p ren d en d o a ex tre m id a d e d o a lfin ete ao g a n c h o a
fim d e o b te r u m a s e g u r a n ç a r e f o r ç a d a . O r e s u lta d o fo i q u e .
246 F.rving G offm an

q u an d o o p rín cip e A lex an d re, d ep o is de um d isc u rso irrep reen sí­


v el, ten to u p e g a r n a R strela, d eu co m ela so lid am en te p resa à a l­
m o fa d a , te n d o -lh e s id o p re c iso c e rto te m p o a n te s d e c o n s e g u ir
soluí-la. O que, de alg u m a m an eira, afecto u n eg a tiv am e n te o m o ­
m en to c u lm in a n te d a c e rim ó n ia .1

D ev em o s a c re sc e n ta r a este p ro p ó sito q ue o indivíduo resp o n sáv el


p ela p restação d e um a c to n ão d e lib erad o , pode p ô r c m causa, an tes
d o m ais. o seu p róprio d esem p en h o o, e m seg uida, ta m b ém o d e se m ­
pen h o de u m co m p an h eiro dc e q u ip a ou o d e se m p en h o que está se r
en c e n a d o p e la su a au d iên cia.
Q u a n d o u m a p e sso a d e fo ra e n tra p o r a c id e n te n u m a reg iã o na
qual urn d e se m p e n h o e stá a ser ap resen tad o , ou q u an d o um m em b ro
da a u d iê n c ia en tra in ad v ertid am en te na reg ião dos b astid o res, é pro­
v á v e l q u e . n a q u a lid a d e d e in tru s o , s u rp re e n d a o s p re s e n te s em
flag ran te d elito . A p esar de não se r e ssa a in ten ção de n in g u ém , as
p e s s o a s p re s e n te s na re g iã o em c a u s a p o d e rã o s e n tir q u e fo ra m
ab e rta m e n te o b se rv a d a s n u m a a c tiv id a d e alg o in co m p atív el co m a
im p ressão q u e. p o r razõ es so ciais de m ais largo alcan ce, tern a o b ri­
g ação de m a n te r p e ra n te o intruso. C o n fro n tam o -n o s em c aso s que
tais c o m aq u ilo a q u e por v e z e s c h a m a m o s “in tro m issõ e s in o p o r­
tu n as”.
A v id a p a ssa d a e o c u rso habitual d a s activ id ad es d e um d ad o a c ­
to r em g e ra l c o n tê m p e lo m e n o s a lg u n s fa c to s q u e , c a s o fo sse m
in tro d u z id o s n o d e se m p e n h o , d e sm e n tiria m ou e n fra q u e c e ria m a*
p reten sõ es d o “e u ” q ue o ac to r tenta p ro je c ta r co m o parte in teg ran te
d a d e fin iç ã o da s itu a ç ã o . O s fa c to s em c a u sa p o d em re fe rir-se a
seg re d o s in co n fessáv eis e bem g u ard ad o s ou a a sp e cto s n eg ativos,
co m o esse s q u e to d a a g en te p ode o b servar, m as d e q u e nin g u ém
fala. O em b araço é a c o n se q u ê n c ia habitual d a intro d u ção de factos
d essa o rdem no d eco rrer de um d esem p en h o . A n o ssa a ten ção pode
ser atraíd a p a ra eles atrav és de g esto s in v o lu ntários ou de in tro m is­
s õ e s i n o p o r t u n a s . T o d a v i a , n a m a i o r p a r te d o s c a s o s , s ã o
in tro d u z id o s p o r d eclaraçõ es v e rb a is in te n c io n ais ou p o r actos não

1 Ponsonby. np. c/r., p. 351.


A Apresentação do liu na Vida de Todos os Dias 247

v erbais c u jo sen tid p p len o n ão é av aliad o p elo in d iv íd u o q u e co m


eles c o n trib u i para a in teracção . D e acordo co m o uso co rren te, estas
p ertu rb açõ es da p ro jecção p o d e rã o ser d esig n ad as co m o “ passo s em
fa lso ” . Q u an d o um a c lo r im p e n sa d a m e n te procede a um c o n trib u to
inten cio n al q u e d estró i a im a g e m da su a p ró p ria eq u ip a, falarem o s
d e gaffes ou “d eslizes". Q u a n d o o acto r p õ e em risco a im agem de si
p ró p rio p ro jectad a pela o u tra eq u ip a , falarem o s dc “ in d iscriçã o ” , ou
d ire m o s q u e o a c to r “ pôs a p ata na p o ça” . O s m an u ais de etiq u eta
co n têm a v iso s clássico s c o n tra sem e lh a n te s indiscrições:

S e h o u v e r a lg u é m d o g ru p o q u e n ã o c o n h e ça , te n h a c u id a d o
co m os seus e p ig ra m a s ou p eq u e n o s sa rc a sm o s. C a so c o n trá rio ,
co rre rá o risco de q u e re r m o stra r-se ex tre m a m en te esp iritu o so ao
falar d e c o rd a s a um h o m em c u jo pai foi en fo rcado. O p rim e iro
re q u isito d o seu ê x ito e n q u a n to c o n v e rsa d o r e c o n h e c e r b e m os
p re se n te s.-
A o e n c o n tra r u m a m ig o q u e nào v ê h á j á a lg u m te m p o , não
d isp o n d o de info rm açõ es e sp e c ia is ou recen tes sobre a situ a çã o e
h istó ria d a s u a fam ília, d e v e rá e v ita r p e rg u n tas ou alu sõ es a fa­
m iliares p recisos, a té c o n s e g u ir ouvir a lg u m a co isa a seu respeito.
U n s p o d e m te r m o rrid o , o u tr o s p o d e m te r d a d o m au s p a s s o s ,
o u tro s ain d a ter-se-ão a fa s ta d o ou sid o a tin g id o s por d e sa stre s da
fo rtu n a .5

O s g esto s involuntários, as in tro m issõ es in o portunas e os passo s


em fa ls o são m o tiv o s de e m b a ra ç o e d isso n â n c ia g e ra lm e n te não
v isad o s p e la p e sso a p o r e le s resp o n sáv el, e p o d eriam te r sid o e v i­
ta d o s se a p e s s o a em c a u s a a n te c ip a d a m e n te p re v is s e as c o n s e ­
q u ên c ia s d o s seu s acto s. N o e n ta n to , h á situ açõ es a que m u itas v e /e s
d am o s o n o m e de “c e n a s” , n as q u a is um in d iv íduo age. d e m an eira a
d e s tru ir o u a m e a ç a r s e ria m e n te a a p a rê n c ia d e d isc riç ã o d o c o n ­
s e n so , e, e m b o ra não in te r v e n h a te n d o a p e n a s cm v is ta c a u s a r a
d isso n â n c ia que provoca, fá -lo sab en d o q u e será provável p ro v o cá-la

^ The L aw s o f Etiquetie, Carey. I ^ e a n d Blanchard. Filadélfia, I S?6. p. 101


- The Canons o f Good Breeding, p. SO.
248 E r v in g G o ffm a n

c o m u su a atitu d e. A m an eira co rrc n tc de dizer: “fa z e r um a c e n a '’ e


bem c erteira, porque, de facto, é um a n o v a c e n a o e fe ito das p ertu r­
bações: assim p roduzidas. A in teracção anterior, co n fo rm e às ex p e c ­
tativas d a s e q u ip a s, é de sú b ito p o sta de lado p ela fo rç a e, pela força,
c o m e ç a a ter lu g ar um novo en red o dram ático . É im p o rtan te n o ta r­
m os que a n ova c e n a im p lica co m frequência u m a brusca red istrib u i-
ç à o e tro c a d e p o siç õ e s d o s a n te rio re s m e m b ro s d c u m a e q u ip a ,
co n d u zin d o à fo rm ação de d u as n o v as equipas.
C o rlas ce n a s v erificam -se q u a n d o os co m p a n h eiro s de eq u ip a d e i­
xam de ap o iar-se m u tu am en te nos seu s d esem p en h o s d efe itu o so s e
e x p lo d e m em c rític a s p ú b lic a s d irig id a s c o n tra a q u e les co m qu em
d ev eriam c o o p e ra r e m te rm o s d e en cen ação . E sta fo rm a de co m p o r­
tam en to in d ev id o arru in a m u itas vezes o d esem p en h o q u e os in d iv í­
d u o s em c o n flito d ev eriam represen tar: um d o s efeito s da d isp u ta é
p ro p o rc io n a r h au d iê n c ia um a im ag em d o q u e se p assa no s b astido­
res. e um outro efeito é fa z e r co m que os e sp e c ta d o res d esc o n fie m
de q u e d ev erá h a v e r q u a lq u e r c o isa q ue não e s tá a b a te r certo num
d e s e m p e n h o q u a n d o a q u e le s q u e m e lh o r o c o n h e c e m n ã o c o n ­
seguem en ten d er-se. O u tro tipo de c e n a é o que ac o n tec e q u a n d o a
aud iên cia d ecid e q u e não pode c o n tin u a r a jo g a r o jo g o de u m a inte­
ra c ç ã o d is c re ta , ou q u e n ã o q u e r c o n tin u a r a fa z ê -lo , e p o r isso
co n fro n ta os acto res co m facto s ou acto s ex p ressiv o s q u e a eq u ip a
co n sid e ra in a c e itá v eis. JÉ o q u e se p assa q u a n d o um in d iv íd u o se
arm a d e toda a sua co rag em social e d ecide “ fa z er frente*’ a o u tro ou
“d izer-lh e m eia d ú z ia de v e rd ad es". O s p ro cesso s c rim in a is institu­
cio n alizaram e ste tip o de d isc o rd â n c ia paten te, à se m e lh an ç a do que
a c o n te c e n o s ú ltim o s c a p ítu lo s d o s ro m a n c e s p o lic ia is , q u a n d o
v em o s um in d iv íd u o q u e. até ao m om ento, m an tivera u m a atitu d e d c
c o n v in c e n te in o cên cia se r c o n fro n tad o co m o u tro s que se revelam
d eten to re s de p ro v as inegáveis e e lo q u en tes se g u n d o as q u ais tal a ti­
tude n ão p assa v a d e afectação . O u tro g énero d e c e n a é ainda a que
tem lu g a r q u a n d o a in teracção e n tre d u as p esso as se to rn a tão c la m o ­
ro sa, ac e sa ou de o u tro m o d o e x p lo s iv a q u e as p esso as p ró x im as,
o c u p a d a s c o m as su a s p ró p ria s in te ra c ç õ e s c o n v e r s a c io n a l, .são
fo rç a d a s a to rn a r-s e te s te m u n h a s ou a to m a r p a rtid o e e n tr a r na
"c o n fu sã o ” . P o d e m o s indicar, fin a lm e n te , um ú ltim o tipo d e cena.
A Apresentação do Liu na Vida dc Todos os Dias 249

Q u an d o u m a p esso a que age c o m o u m a e q u ip a de u m só m em b ro se


em p e n h a seriam en te num a p re te n sã o ou e x ig en cia, sem p re v e r q u a l­
q u e r saíd a p ara o caso de a a u d ie n c ia se re c u sa r a d ar-lh e o que p re­
tende, e n c o n tra -se de um m o d o g e ra l certo de que a su a preten são ou
ex ig e n c ia é d o tipo q ue a a u d iê n c ia aceitará e ap ro v ará. C o n tu d o , se
tiv e r u m m o tiv o b astan te fo n e , o in d iv íd u o p o d erá d e sc o b rir-se a
fo rm u la r u m a ex ig ê n cia ou um p re ssu p o sto q ue sabe q u e a au d iê n c ia
rejeitará. N esse caso , abate c o n sc ie n te m e n te as suas d e fe sa s perante
o s e s p e c ta d o re s , c o lo c a n d o -s e . c o m o c o s tu m a d iz e r-s e . à m e rc ê
d e le s. C o m o seu acto. o in d iv íd u o fo rm u la perante a a u d iê n c ia a
p re te n sã o de que esta o trate co m o p an e d a e q u ip a que co n stitu i ou
lhe c o n sin ta p ro c e d e r com o e le m e n to d ela. É um g énero de situ ação
bastante e m b araço so , m as c u a n d o a ex ig ên cia ex p osta sem d e fe sa s é
re c u sa d a ao in d iv íd u o , c a ra a c a ra , este so fre a q u ilo a q u e ch a m a m o s
u m a h u m ilh ação .
C o n sid erei alg u m as d as fo rm a s p rin cip ais d e p ertu rb ação do d e­
sem p en h o — g esto s in v o lu n tário s, in tro m issõ es in o p o rtu n as, p a sso s
em falso e cen as. N a lin g u a g e m dc todos o s d ias. estas p ertu rb a çõ es
c h a m a m -se m u itas v ezes “ in c id e n c e s” . Q u a n d o se v e rific a um in ­
c id e n te , a re a lid a d e a d o p ta d a p e lo s f a c to r e s fic a a m e a ç a d a . H
pro v áv el q u e as p esso as p re se n te s reajam m o stran d o -se p erp lex as,
p o u c o à v o n ta d e , e m b a ra ç a d a s, n e rv o s a s , e a ssim p o r d ia n te . De
m odo q u ase literal, os p articip an tes sen tir-se-ao sem co n tro lo . Q u a n ­
do a d e so rie n ta ç ão ou os sin to m a s de e m b araço se to rn am p e rc e p tí­
veis. a re a lid a d e su ste n ta d a pelo d e se m p e n h o v er-se-á p re su m iv e l­
m ente a m e a ç ad a o u e n fra q u e cid a , u m a vez q u e o s sinais d e n e rv o ­
sism o re fe rid o s, na m aio r p a n e d o s caso s, são um asp ecto do in d iv í­
duo q u e apresen ta um a p e rso n a g e m e n ão um aspecto d a p e rso n a ­
gem que o in d iv íd u o p ro je c ta — o q ue fo rça a au d iên cia a co n fro n -
tar-sc co m a im ag em d o h o m em q ue há p o r trá s da m áscara.
Para se g aran tirem co n tra a o c o rrê n c ia d e in cidentes e co n tra o
em b a ra ç o d e le s resu ltan te, se ria n ecessário a to d os os particip an tes
d a interacção , bem co m o ao s q u e não participam , p o ssu írem certo s
a trib u to s e e x p rim ire m -n o s em p ráticas ca p a z es de sa lv a g u a rd a r a
ex ib ição cm curso. E stes a trib u to s e práticas serão aqui passados em
re v is ta s o b tre s ru b ric a s: a s m e d id a s d e fe n s iv a s u tiliz a d a s p e lo s
250 Erving Goffman

acto res para s a lv a g u a rd a r a sua ex ib ição ; as m ed id as d c p ro tec çã o


utilizad as pela au d ie n c ia e p essoas de fora p ara ajudarem o s actores
a sa lv a g u a rd a r a su a ex ib ição ; c. p o r fim , as m edidas q u e o s actores
d e v e m to m a r em v is ta d c to rn a re m p o s s ív e l a o s e s p e c ta d o r e s e
p esso as d c fo ra o e m p re g o de m e d id a s de p ro te c ç ã o re la tiv a s aos
acto res.

A trib u to s e P ráticas D efensivas

1. Lealdade dram aíúrgica. H m an ifesto que se u m a e q u ip a q u iser


su ste n ta r a lin h a que a ssu m iu , os c o m p a n h e iro s d c e q u ip a d ev em
ag ir c o m o sc tiv essem a d m itid o c ertas o b rig açõ es m orais. N ão d e ­
vem tra ir o s seg red o s tia e q u ip a e n tre um e o u tro d e se m p e n h o —
n e m p o r in te re sse p e sso a l, n e m e m n o m e de p rin c íp io s , n em por
q u eb ra da d iscrição co n v e n ie n te . P o r isso. os m em b ro s m ais velhos
de u m a fam ília e x c lu e m m u itas vezes a criança do s seu«, en re d o s e
co n fissõ es, p o is nunca sc sabe a q u em será a crian ç a c a p a z d e tran s­
m itir u m s e g r e d o . A ^sim , s e rá s o m e n te d e p o is d e a c r ia n ç a te r
atin g id o a id ad e d a d iscrição q ue as v o zes dos p ais d eix arão de sc
c a la r q u a n d o o filh o e n tra na sala. E screv en d o sobre o p ro b le m a dos
cria d o s, há a u to re s d o sé c u lo X V III q u e se referem a ca so s d c in­
d iscrição c o m p aráv eis, em b o ra relativ o s a p essoas já co m idade dc
Silber o q u e faziam :

E sta falta d c d e d ic a ç ã o [dos criad o s a o s am os] d eu o rig e m a


g ra n d e n ú m e ro de p e q u e n o s a b o rre c im e n to s ao s q u a is p o u c o s
foram os am o s q ue p e rm an eceram estran h o s. U m d o s casos m ais
in c ó m o d o s e r a o re p re s e n ta d o p e la te n d e n c ia d o s c ria d o s p a ra
e sm iu ç a re m os assu n to s d o p a trã o . D efoc n o ta -o , le m b ra n d o às
d o n a s d c c a s a : “ A c r e s c e n ta i à s v o s s a s o u tr a s v ir tu d e s a d a
P IE D A D E , q u e vos en sin ará a P ru d ên cia de G uardar os Segredos
da F am ília ; V irtude c u ja falia é g ran d e m al. |. . . ¡ ”4

I teclil, op. cii.. p. 81. citação <ic The Mau.J-Senwii's Modest Defense dc; Defoe.
A Apresentação do L-u na Vida de Todos o> Dins 251

P ortan to , as v o zes ap ag av am -se tam bém quan d o o? criad o s .se apro­


x im av am , aré q ue nos co m eço s d o século XVTII .se in tro d u ziu u m a
o u tra prática destinada a p ro teg er o s segredos d o s ouvidos do s criados:

O la c a io -su rd o era u m a e sp é c ie de a p a ra d o r o n d e o s c ria d o s,


a n te s d a h o r a d o ja n ta r , p u n h a m c o m id a , b e b id a s , ta lh e r e s e
p rato s, entre o u tro s a c e ssó rio s, para e m se g u id a se retirarem , d e i­
xan d o q ue os h ó sp ed es se se rv isse m a si próprios.-'5

A cerca d a in tro d u ção d e s te e x p e d ie n te c é n ic o em In g laterra, e s­


crev e M a ry H am ilton:

“ O m eu p rim o C h a rle s C a lh e a rt ja n to u c o n n o sc o e m c a sa de
L a d y S t o r m o n t : h a v ia l a c a i o s - s u r d o s . p e lo q u e a s n o s s a s
c o n v e rs a s não fo ra m o b rig a d a s a re s e rv a s d e s a g ra d á v e is
m o tiv ad as p ela p resen ça d o s c ria d o s."6

“D isp u se m o s a o ja n ta r d e la c a io s-su rd o s m uito có m o d o s e, por


isso. não fo m o s o b rig a d o s a m ed ir as nossas p ala v ras p o r cau sa
d o s c ria d o s.” '

D o m e sm o m odo. os m e m b ro s cia eq u ip a n ã o d ev em ex p lo ra r a sua


p re se n ç a na região de fach ad a p a ra en cen arem u m a ex ib ição pessoal,
co m o , por ex em p lo , fazem as esten ó g rafas casadouras que por vezes
en ch e m os seus lugares n o s escritó rio s co m um exuberante guarda-
-roup a "ú ltim o grito". N em d e v e m servir-se do seu tem p o de d e se m ­
p en h o c o m o en sejo de d en ú n cia d a equipa. D ev em dispor-se a aceitar
de b o a v o n tad e p ap éis se c u n d á rio s e a actu ar com co n v icção no seu
d e se m p e n h o , sem p re, em to d a a p arte e se ja para q u em for q u e o
co n ju n to d a e q u ip a decida. A lém disso, d ev em ain d a co m eter-se com
o d ese m p e n h o com in te n sid a d e b astan te, p ara não p are ce re m fig u ­
rantes v azios ou falso s ao s o lh o s d a audiencia.

5 Hccht, op. cit., p. 208.


6 Ibid.. p. 203.
7 Ibid.. p. 208.
252 Erving Goffman

T alvez o p ro b le m a de base d a m an u ten ção da le ald ad e do s m e m ­


bros da e q u ip a (e. ao q ue p arece, o m esm o sucedo n o u tro s tipos de
co lectiv o s, tam b ém ) se ja im p ed ir os acto rcs d c c ria rem ta n ta sim p a ­
tia e m relação à au d iên cia q ue lhe rev elem as c o n seq u ê n cia s para si
p ró p rio s d a im p re ssã o q u e e stã o a re c e b e r o u . d e q u a lq u e r o u tro
m odo, façam co m que o co n ju n to d a e q u ip a te n h a q u e so frer as c o n ­
seq u ên cias d essa sim p atia. P o r ex em p lo , cm certas p eq u en as c o m u ­
nidades da G rã-B retan h a, os g e re n te s d o s e sta b elec im en to s c o m e r­
ciais p o d em se r leais à em p resa c falam d o produto que q u erem v e n ­
d e r a u m cliente em te rm o s elo g io so s, cald ead o s co m in fo rm açõ es
ilu só ria s: m as. a o m esm o tem p o , os e m p re g a d o s não só p a re c e m
co m fre q u ê n c ia a ssu m ir o lu g a r do clien te nas c o m p ra s q u e re c o ­
m end am , co m o é isso q ue realm en te fazem . N a ilha d a s S hetland,
p o r excrnplo. o u v i um e m p reg ad o d iz e r a um cliente a q uem e n tre ­
gav a um a g a rra fa de refrig eran te: “N ã o sei c o m o é que o se n h o r e
c ap a z de b e b e r essa m is te la /’ N e n h u m d o s p resen tes pareceu a c h a r
sem e lh a n te s p a la v ra s de um a fran q u eza fo ra d o co m u m , c c o m e n ­
tário s d o m esm o te o r podiam ouv ir-se todos os dias nas lojas d a ilha.
Ig u alm en te, os g e re n te s d as e sta ç õ e s de serviço o p õ em -se p o r vezes
às g o rje ta s p o r e sta s serem su scep tív eis de le v a r o s e m p re g a d o s a
fo rn e c e r m ais serv iço s g rátis d o q ue o d ev id o a c erto s c lien te s e n ­
qu a n to c e rto s o u tro s ficam à espera.
U m a técn ica básica q u e a e q u ip a p oderá em p reg ar para se p rote­
g er c o n tra este tipo de d esleald ad e co n siste no d e se n v o lv im e n to dc
um alto g rau de so lid a rie d a d e in trag ru p al. e. ao m esm o te m p o , na
c ria ç ã o nos b a s tid o re s d e u m a im a g e m da a u d iê n c ia q u e a p in ta
co m o su ficien tem en te in u m a n a para ju stific a r que o s actores lidem
co m e la co u raçad o s de im u n id ad e afectiv a e m oral. N a m ed id a em
que os co m p an h eiro s de eq u ip a e os. seus co legas fo rm am u m a co ­
m u n id a d e s o c ia l c o m p le ta , o fe re c e n d o a c a d a a c to r o seu lu g a r
próprio e u m a re se rv a dc a p o io m oral in d ep en dentes do ê x ito co m
q u e ele c o n sig a m a n te r a su a fa c h a d a p e ra n te a a u d iê n c ia , n e ssa
m esm a m edida, d ir-se -ia q u e o s actores p o derão p ro teg er-se das d ú ­
v id as e sen tim en to s de cu lp a c p raticar seja q u e g én ero d e en gano
for. T alvez d e v am o s co m p reen d er a arte im placável d o s rhugs p o r re ­
ferên cia às cren ças relig io sas e práticas rituais que en q u ad rav am as
A Apresentação do Ru na Vida dc Todos os Dias 253

su a s d e v a s ta ç õ e s , c o m o tal v e z d e v a m o s c o m p re e n d e r a fe liz in ­
sen sib ilid ad e d o s b u rlõ es p o r r e f e r e n d a à sua so lid aried ad e social no
in te rio r d aq u ilo a q ue c h am am a “ m arg em da lei” e às su as fó rm ulas
de d e p re c ia çã o eficaz d o m u n d o “ leg al". É possível que este asp ecto
das co isas nos torne pelo m en o s e m parte inteligível por que é que os
g ru p o s a lie n a d o s d a c o m u n id a d e , ou in su fic ie n te m e n te in te g rad o s
nela, são tão su scep tív eis dc sc e n tre g a r a n egócios sujos ou d e se
o c u p a r d c p restaçõ es dc se rv iç o q u e im p licam a b u rla c o m o p rá tic a
de rotina.

U m a seg u n d a té c n ic a de c o m b a te r o p erig o d a fo rm ação d e laços


a fe c tiv o s e n tre o s a c to re s e a a u d iê n c ia c o n s is te n a m u d a n ç a pe­
rió d ica d e esp ectad o res. R p o r isso q ue os g erentes d as esta ç õ e s dc
serv iço são tran sferid o s ao fim d e p ra z o s red u zid o s d e um lu g a r para
outro, o q u e v isa im p ed ir q u e fo rm em laços pessoais m ais internos
c o m c e ñ o s clien tes. V erifico u -se. c o m efeito , que q u a n d o se perm itia
que e sse s laços sc d e se n v o lv e sse m , o gerente acabava p o r vezes por
c o lo c a r o s in teresses d c um a m ig o p recisad o d c c ré d ito a cim a do s
in teresses d a e m p re sa 5. O s g e re n te s dos b an co s e os m in istro s são
re g u la rm e n te transferidos dc p o sto p o r ra z õ e s an álogas, com o ac o n ­
te c ia c o m c e r to s a d m i n i s t r a d o r e s c o lo n ia is . O c a s o d e c e r ta s
p ro fissio n a is d o sex o fem in in o fo rn ece-n o s o u tro ex e m p lo , co m o o
in d ica a seg u in te referên cia à p ro stitu iç ã o o rganizada:

O sin d icato trata d isso u m d e ste s dias. A s rap arig as não e stã o
n u m s ítio te m p o b a s ta n te p a ra c h e g a re m a c o n h e c e r bem seja
q u e m for. A s s im , h á m e n o s p ro b a b ilid a d e s d e u m a m iú d a se
a p a ix o n a r p o r um tip o q u a lq u e r, está a ver, c a u san d o escân d alo .
S eja c o m o for. a rap arig a que e s tá cm C h ic a g o e sta sem an a estará
cm S t. L o u is para a sem a n a , o u será m u d ada de sítio m eia d ú z ia
de v ezes na m esm a c id a d e , a n te s d e se r d e sp a c h a d a p a ra o u tra

5 Sem d ú v id a, osla iraição c sistcm atican iü ritr en cen ad a em falso em certos


cstabclecirr.cnios comerciais cm que o cliente obtém um desconto "especial" de um
empregado çuc pretende estar a fazer o q u e faz a fim de transformar o cliente ein
"freguês" pessoal.
254 Ervins Goffman

qualq u er. F. nunca sabem com m u ita a n te c e d en cia para onde vão
se r m an d ad as a seguir.9

2. Disciplina dramática. É d ecisiv o para a salvaguarda do d ese m ­


p en h o da eq u ip a que cada um dos seus m em bros p o ssu a a sua dis­
ciplina d ram ática e a ex erça ao ex ib ir a su a prestação. R efiro -m e ao
facto dc ap esar de o ac to r estar o sten siv am en te m ergulhado e absorto
na actividade q ue desem p en h a e sc m o strar e m p en h ad o na acção de
m odo esp o n tán eo e n ão calcu lad o , ele não d e v er de m aneira algum a
d e ix a r d e sc d is tin g u ir a fe c tiv a m e n te da s u a e x ib iç ã o d e m o d o a
m anter a liberdade necessária p ara so lu cio n ar as d ificuldades im pre­
vistas com q u e a su a rep resen tação p o ssa deparar. O a c to r tem que
e x ib ir a su a d e d ic a ç ã o in te le c tu a l e e m o c io n a l â a c tiv id a d e q u e
re p re se n ta , rnas te m ta m b é m q u e se im p e d ir de s e r e le c tiv a m e n te
arre b a tad o p e la su a ex ib iç ã o , c o m p ro m e te n d o a ssim o seu c o m e ti­
m ento com a larefa de p roduzir um d esem p en h o convincente.
U m a c to r d is c ip lin a d o , em te rm o s d r a m a tú rg ie o s . é o q u e se
lem bra d o seu papel e n ão incorre cm gestos involuntários ou passos
em falso ao d esem penhá-lo. H discreto: nao c o m p ro m ete a ex ibição
rev elan d o p o r d escu id o os seus seg red o s. Tem “presença de espírito*'
su ficien te p a ia rem ed iar no im p ro v iso d o m om ento o co m portam ento
m enos co rrecto d e um co m p an h eiro de equipa, em b o ra co n tin u e a dar
a im p ressão de e s ta r a lim ii.ar-se ao q u e lhe co m p e te. E q u a n d o a
pertu rb ação d o d e sem p en h o j á não é ev itáv el ou o cu ltáv el, o acto r
d iscip lin ad o e stá p rep arad o p ara a p resen tar u m a razão plausível para
o aco n tecim en to desestab ilizad o r, ou p ara d iz er um g rac ejo que lhe
r e tir e to d a a im p o r tâ n c ia , ou p a r a f o r m u la r d e s c u lp a s e a u to -
-recri m i n açõ es ca p a z es de rein teg rarem os re sp o n sáv e is pelo su ce­
dido. O ac to r d iscip lin ad o "autoconirola-se**. É cap az dc a n u la r a sua
re a c ç ã o e m o c io n a l p e r a n te o s p r o b le m a s p e s s o a is c o m q u e se
defro n ta, peran te o s seus com p an h eiro s de e q u ip a que se enganam , e
peran te os esp ectad o res q u an d o estes m anifestam sen tim en to s agres­
sivos o u h ostilidade em relação a ele. K co n seg ue im pedir-se de rir de

^ Charles Hamilton. Men o f ¡he Unden-.'orfd. Macmillan, Nova Iorque, 1952. p. 222.
A Apresentação do Hu na Vida <ic Todos os Dias 255

assu n to s quo são d efinidos c o n io se rio s cm d ad a siluaeão, tal conio


não leva a serio os aspectos q u e na situação são d e fin id o s com o hu­
m o rístic o s. P o r o u tra s p alav ras, é c a p a z d e su p rim ir o s seu s se n ti­
m entos esp o n tân eo s de m o d o a f a z e r crer que n ão ab a n d o n a a linha
a fe c tiv a n em o slants quo e x p re s s iv o , e s ta b e le c id o s p e lo seu d e ­
se m p e n h o d e e q u ip a , já q u e a e x ib iç ã o d e u m a fe c to d e s lo c a d o
acarreta n ão só rev elaçõ es in co n v en ien tes, ferindo o co n sen so fu n cio ­
nal. com o pode tam bém co n ferir à au d iê n c ia o estatu to de m em b ro da
eq u ip a . O a c to r d isc ip lin a d o p o s s u i a d e se n v o ltu ra s u fic ie n te para
p a ssa r d o s lu g ares de e x e rc íc io d a p riv acid ad e in fo rm a l a lu g ares
p ú b lico s im plicando d iferentes g ra u s de form alidade, sem que essas
transiçõ es o co n fu n d a m .10
T alv ez o asp ecto m ais im p o rta n te da d isc ip lin a d ram átic a resida
no co n tro lo pelo in divíduo do seu ro sto c d a su a voz. Tal é o critério
d ec isiv o d a su a c a p a c id ad e de a c to r. A reacção a fec tiv a real tem q u e
se r esc o n d id a c. ao m e sm o le m p o , tem q u e se r re p re se n ta d a um a
rea cç ão afectiv a conven ien te. A p ro v o c a ç ã o 6 m uitas v ezes um m eio
de in iciação info rm al q u e a e q u ip a utiliza p ara d e se n v o lv e r e põr à
p ro v a a c a p a c id a d e d o s s e u s n o v o s m e m b ro s p e ra n te u m a
“b rin cad eira” , quer dizer, a su a c a p acid ad e de ex ib irem um a atitude
am isto sa q u an d o é provável que os seus sen tim en to s pesso ais sejam
de o u tra natu reza. Q u an d o o in d iv íd u o vence esta pro v a d e c o n tro lo
e x p re ssiv o — q u er fre n te ao s s e u s novos c o m p a n h e iro s d e e q u ip a
q u e a e la o su b m etem d e m an eira d e sp o rtiv a , q u e r e n c ara n d o as e x i­
g ên c ia s in esp erad as com q u e d e p a ra num d esem p en h o e fe c tiv o —
p assa a p o d e r c o n fia r em si p ró p rio e na sua q u alid ad e de a c to r cap a z
de in sp irar c o n fian ça ao s outros. U m belo ex em p lo d o que e stam o s a
d iz e r é o q u e nos ap re se n ta um a rtig o p o r p u b lic a r de H o w ard S.
B e c k e r s o b r e o c o n s u m o d e m a r iju a n a . B e c k e r r e f e r e q u e o
c o n su m id o r o c a sio n a l d e d ro g a s e n te um g ra n d e m ed o d e se ver.
ainda so b a in flu ên cia da d ro g a, n a presença im ediata d o s pais ou
co leg as d e trab alh o que d e lç e sp e ra m um d e sem p en h o íntim o de in­
d ivídu o que não se d ro g a. A o q u e parece, o c o n su m id o r ocasional
nào se tra n sfo rm a em c o n su m id o r h ab itu al e estável antes de ap ren -

*0 Ver um exemplo em Page. <>;>. cis., pp. 91-92.


256 F.rving Goffinan

dor a e sta r n u m a “b o a " c a ser. ao m esm o te m p o , cap az de não sc


trair, n o seu d esem p en h o , ao s o lh o s dos nào fu m a d o re s de m arijua­
na. A m e sm a q u e s tã o sc le v a n ta , ta lv e z d e fo rm a m e n o s e s p e c ­
tacular. na v id a q u o tid ian a d as fam ílias, q u ando é preciso d e cid ir d o
grau de p rep aração que d ev e se r e x ig id o aos m em bros m ais no v o s da
e q u ip a a n te s d e lh es s c r p e rm itid a a p a rtic ip a ç ã o em c e rim ó n ia s
pú b licas ou sem ip tíb licas. pois só q u ando os m ais n o vos estão já em
co n d iç õ e s de c o n tro la r os seu s h u m o res p o d erã o to rn a r-se p a rtic i­
p an tes dignos dc créd ito de certas actuações.

3. C ircunspecção dram aturgic#. A le a ld a d e e a d is c ip lin a , na


a c e p ç ã o d r a m a tu r g ie s d e s te s te rm o s , sã o a trib u to s e x ig id o s a o s
c o m p a n h e iro s d a e q u ip a a fim de q u e a e x ib içã o a p re se n ta d a possa
se r m an tid a. A d ic io n a lm e n te , s e rá útil q u e os m em b ro s d a equipa
p rev ejam c p la n e ie m a m elh o r m an eira de e n c e n a r um desem p en h o ,
fixando-a d e an tem ão . H n ecessária p ru d ên cia. Q u an d o são poucas
as p ro b a b ilid a d e s de e s ta r a sc r o b se rv a d a , a e q u ip a p o d e rá a p ro ­
v e ita r a o p o rtu n id ad e para se descontrair, q u an d o não é provável que
u m a p ro v a d e co n tro lo v e n h a a ter lugar, os factos brutos p o d erão ser
a p re s e n ta d o s a u m a luz m ais fa v o rá v e l e os a c to re s p o d e rã o d e ­
se m p e n h a r o seu p a p e l a fundo, in v estin d o nele p le n am e n te a sua
dig n id ad e. M a s se a aten ção e a h o n estid ad e forem in su ficien tes, é
natural que se d êem ru p tu ras; se a a ten ção e a h o n estid ad e se tra n s­
fo rm a re m em rig id e z , ta lv e z os a c to re s n ã o só n ã o se ja m “ in te i­
ram en te co m p reen d id o s", c o m o , p io r ainda, p o d erão sc r m al inter­
p re ta d o s . in s u fic ie n te m e n te e n te n d id o s , ou re v e la r-s e d e m a sia d o
lim itados n aq u ilo q u e fazem a p a rtir das o casiões d ram atú rg icas de
q u e d isp õ em . P o r o u tras palav ras, no in teresse da eq u ip a , exige-se
q u e os a c to re s s e ja m p ru d e n te s e c irc u n s p e c to s na e n c e n a ç ã o do
d e s e m p e n h o , f ic a n d o d e a n te m ã o a p o s to s p a r a e n f r e n t a r o s
incidentes circ u n sta n c iais sem . p o r isso, d eix arem as possib ilid ad es
re m a n e sc e n te s. O e x e rc íc io ou a e x p re ssã o da c irc u n sp e c ç ã o dra-
m atú rg ica re v este-se de fo rm as bem co n h ecid as; an a lisa rem o s ag o ra
a lg u m a s d a s té c n ic a s c o rre s p o n d e n te s de a d m in is tra ç ã o d a s im ­
pressõ es.
A Apresentação do Eu na Vida dc T odos os Dias 257

E v id en tem en te, um a d essa s té c n ic a s é a selecção p e la eq u ip a de


m em b ro s leais e d iscip lin ad o s; u m a o u tra é a e la b o ra ção pela e q u ip a
d e u m a id e ia c la r a d o s n ív e is d c le a ld a d e e d is c ip lin a q u e p o d e
e s p e ra r d o s seu s m em b ro s global m e n te co n sid erad o s, urna vez que a
p ro p o rç ã o cm que tais q u a lid a d e s e stiv e re m p re se n te s a fe c ta rá dc
m o d o m u ito se n s ív e l a p o s s ib ilid a d e de a p re s e n ta ç ã o dc um d e ­
se m p e n h o e, portanto, o grau d e se g u ra n ç a do in v estim en to no e s­
pectácu lo de asp ecto s co m o a se rie d a d e , a g rav id ad e e a dig n id ad e.
O ac to r c ircu n sp ecto ten tará ta m b é m seleccio n ar u m tip o d e au­
d ie n c ia que su sc ite u m m ín im o d e p e rtu rb a ç ã o n o s te rm o s do e s­
p ec tác u lo q ue o a c to r q u e r c o n s tru ir e nos term os do e sp e ctá cu lo que
e le n ã o q u e r s e r o b r ig a d o a m o s t r a r . A s s im , s a b e m o s q u e o s
pro fesso res m u itas ve?es não g o s ta m de ter nem a lu n o s d a s classes
m a is b a ix a s n em a lu n o s d a s m a is e le v a d a s , d a d o q u e a m b o s os
gru p o s to m a m d ifícil m a n te r na s a la de aula o g én ero de d efin ição
d a situ ação que co n so lid a o p a p e l p ro fissio n al d o p ro fe sso r11. C o n ­
se q u en tem e n te , os p ro fesso res p ro c u ra m ser c o lo c a d o s em e sc o la s
p a ra a lu n o s d a c la sse m é d ia , e fa z e m -n o m o v id o s p o r ra z õ e s de
o rd e m d ram atilrg ica. D o m esm o m o d o . sa b e m o s que a lg u m a s e n ­
fe rm eiras g o stam m ais d e tra b a lh a r num serviço de c iru rg ia d o que
n a s e n ferm arias, porque n as salas d e o perações sã o to m ad as m edidas
qu e faz em c o m q u e a au d ien cia, c u jo s m em bros são ap en as um . em
b r e v e e s q u e ç a q u a lq u e r f r a q u e z a d o d e s e m p e n h o , p e r m itin d o à
e q u ip a p ro fissio n a l d e s c o n tra ir-s e e c o n sag rar-se p o r c o m p le to às
ex ig ê n cia s técn icas (p o r co n traste c o m as de o rd em c é n ic a )12. C om a
au d ien cia m erg u lh ad a no sono. c h e g a a ser p o r v ezes po ssív el fa zer
in te rv ir um “ c iru rg iã o fa n ta s m a ” q u e d e se m p e n h a a s ta re fa s que
o u tro s m a is tarde- reclam arão c o m o o b ra su a .1-- Ig u alm ente, d a d o que
o m arido e a m u lh er são c o n v id a d o s a exp rim ir a su a so lid arie d ad e

' ! Becker "Social Class Variations...*’, op. cit., pp. 461-62.


12 Investigação inédita de Kdith L cntz. D ev e nolar-sc q u e a solução por vezes
adoptada tie pôr o paciente a ouvir música com auscultadores enquanto é submetido
a um a operação sem anestesia gemi í um m eio de o excluir efica/m em e da troca de
nalavras que sc processa cnire os m em bros da equipa.
Solomon, op. ci:., p. 108.
258 Erviiig Coffman

c o n ju g a l d a n d o m o stra s d c urna a te n ç ã o c o n c e rta d a a q u e le s co m


qu em co n v e rsa m , é p reciso e x c lu ir d o n úm ero d o s co n v id ad o s hab i­
tu ais as p esso as so b re as q u ais m arid o e m u lher têm o p in iõ es d ife ­
re n te s .14 D a m esm a m aneira ainda, .se um h o m em in flu en te e p o d e ­
roso q u ise r ter a c e rte z a de p o d e r d ese m p e n h ar u m papel sim p ático
d u ran te a in teracção p ro fissio n al, será c o n v e n ie n te q u e d isp o n h a de
um a sc e n so r privativ o e de círcu lo s p ro tecto res de re ce p c io n istas e
sec re tá rias, g a ra n tin d o q u e não seja facu ltad o acesso à sua p e sso a
aos in d iv íd u o s q ue e le teria de receb er com d u reza ou sob ran ceria.
É ó b v io q u e u m p ro c e s s o a u to m á tic o d e g a ra n tir q u e n en h u m
m em b ro da e q u ip a ou n enhum m em b ro da au d iên cia actue de m a ­
neira in co rrecta co n siste em lim itar o m ais possível as d im e n sõ e s de
a m b a s as e q u ip a s . S e a s re s ta n te s c irc u n s tâ n c ia s se m a n tiv e re m ,
q u a n to m en o r fo r o n ú m ero de elem en to s, m enor será a p ro b a b ilid a­
d e de erro s, “ p ro b le m a s” e tra n sg re ssõ e s. P o r isso. o s v e n d e d o re s
p referem ter q u e se h a v e r com clien tes iso lad o s, pois se c o n sid e ra de
um m o d o g eral que é m u ito m ais d ifícil v e n d e r a m esm a c o isa a urna
au d iê n c ia de d u a s p esso as d o que a um a au d iê n cia d e u m só m e m ­
bro. S im ilarm en te, há em c ertas escolas u m a regra inform al q u e d e ­
term in a q u e um p ro fe sso r nao deve e n tra r n a sala onde e stiv e r outro
p ro fe sso r a d a r u m a aula: m an ifestam en te, o que aq u i se p ressu p õ e é
q u e o a c to r recém -ch eg ad o p o d erá fa z e r alg u m a c o isa que. aos olhos
e x p e c ta n te s d a a u d iê n c ia d o s a lu n o s, p a re ç a in c o n s is te n te c o m a
im p ressão q u e o p ro fe sso r q u e e s tá a d ar-lh es a aula visa su sc ita r15.
N o en tan to , há p elo m enos duas razõ es q u e fazem co m que este re ­
cu rso à lim itação d o n ú m ero de p resentes seja fo rço sam en te lim itad o
ta m b é m . H m p rim e iro lu g ar, c e rto s d e se m p e n h o s n ã o p o d e m se r
ap resen tad o s sem a a ssistên cia técn ica de um núm ero con sid eráv el
d c c o m p a n h e iro s de eq u ip a. A ssim , em b o ra o e sta d o -m a io r do ex ér­
cito sa ib a q ue q u an to m a io r fo r o n ú m ero de o ficiais que c o n h ecem

1'* E ste aspecto c abordado num com o dc Mary M cC arthy. "A Friend o f the
Family", reed, cm Mary M cCarthy, Cast a Cold !■>;*•. H arcoun 13race. Nova Iorque,
1950.
15 ßeckc-r. *'liie Teacher in the Authority Sistem o f the Public School", op. d r..
p. 1.19.
A Apresentação do En na Vida de Todos os Dias 259

o s plan o s d a p ró x im a fase da a c ç ã o , m ais provável é q u e um d e le s se


c o n d u z a de m an eira a rev elar se g re d o s estratég ico s, co n tin u a a ter
n e c e ssid a d e d e um n ú m e ro c o n sid e rá v e l de h o m e n s in fo rm a d o s a
esse resp eito para to m a r p o ssív el a acção. Hm seg u n d o lugar, a co n ­
te c e q u e o s in d iv id u o s h u m a n o s, e n q u a n to peças d o e q u ip a m e n to
e x p re s s iv o , são so b c e rto s a s p e c to s m ais e fic a z e s d o que o s e le ­
m en to s não hum an o s do q u ad ro . S e. p o r co nseguinte, fo r necessário
c o n c e d e r a um in d iv íd u o um lu g a r de d e s ta q u e e m te rm o s
d r a m a tú r g ie o s , s e rá n e c e s s á r io ta m b é m d o tá - lo d e u m s é q u ito
a u x ilia r c o n v e n ie n te q u e s u s c ite c o m e fic á c ia u m a im p re s s ã o li­
so n je ira a pro p ó sito d a su a pessoa.
Já sug eri q ue cin g ir-se ao s fa c to s tornará possív el ao a c to r sa lv a ­
g u a rd a r o seu esp ectácu lo , m as ta lv e z o im peça de en cen ar u m a e x i­
b ição m ais co m p lex a. Se se q u ise r en c e n a r um d e se m p en h o c o m p le ­
xo co m um m áxim o de seg u ran ça, será m ais útil ao actor te r o s fac­
tos à d istân cia d o que na su a p ro x im id a d e im ediata. Para u m a au to ri­
dade. relig io sa, é ex eq u ív el c o n d u z ir um a ex ibição so lene e im p res­
sionante. um a vez que não h á m a n e ira precisa de in v alid a r as p re te n ­
sõ es d a rep resen tação c o rre sp o n d e n te . D e igual m aneira, o p ro fissio ­
nal sab e que os serv iço s que d e se m p e n h a não serão avaliad o s apenas-
p elo s resultados q ue co n seg u ir, m a s tam bém p ela m ed id a em q u e as
suas q u alid ad es de trab alh o tiv e re m sid o co m p eten tem ente ap licad as;
e , sem d ú v id a , o p ro fissio n a l p re te n d e rá q u e só o g ru p o d o s seu s
c o leg as está cm co n d iç õ e s de p ro c e d e r a esse tip o de ju íz o . A ssim
to m a -se possível p ara o p ro fissio n a l com eter-se em p leno co m o seu
d e se m p e n h o , c o n fe rin d o -lh e o m á x im o de g ra v id ad e e d ig n id a d e ,
pois sab e q u e s ó um erro c la m o ro s o p o d eria d e s tru ir a im p re ssã o
criada. Pelas m esm as razõ es, o e s fo rç o do co m erciante no sen tid o de
c o n se g u ir um título p ro fissio n al re c o n h e c id o d ev erá s e r in terp retad o
c o m o e sfo rç o n o sentido dc c o n tro la r a realidade que ele d e fin e p e ­
rante o s seu s clien tes; e. p o r outro lad o , com p reen d em os c o m o a p o s­
sib ilid ad e desse co n tro lo to m a d esn e c e ssá ria a p ru d ên cia hum ilde da
atitu d e an terio rm en te re c o m e n d á v el p a ra o m esm o d esem p en h o .
D ir-se-ia que e x iste u m a re la ç ã o e n tre o grau de m o d éstia ap licad o
e a d u ração tem poral de um d e se m p e n h o . Se a au d iên cia só a ssistir a
u m d esem p en h o breve, en tão a p ro b a b ilid a d e de u m a o co rrê n cia per-
260 Erving Goffman

tu rb a d o ra será re la tiv a m e n te re d u z id a , e to rn a r-se -á re la tiv a m e n te


segu ro p a ra o actor, esp e c ia lm e n te em c ircu n stân cias de an o n im ato ,
s u s te n ta r u rna fa c h a d a ra z o a v e lm e n te f a ls a 16. N a so c ie d a d e a m e ­
rican a. en c o n tra m o s a ssim a c h a m a d a “ v o z te le fó n ic a ” , term o que
d e s ig n a u rn a f o r m a r e q u in ta d a d e f a la r q u e n a o 6 u tiliz a d a no
co n ta c to d ire c to d ad o s os risco s que im p licaria. N a G rã -B re tan h a,
nos c o n ta c to s en tre estra n h o s d efin id o s c o m o fo rç o sam e n te breves
— os “ p o r fa v o r", “o b rig a d o ” , “d e sc u lp e ” e “ poderei fa lar co m ” —
dep aram o s co m u m n ú m ero d e p esso as q u e se servem do so taq u e ca ­
ra c te rís tic o d as p ublic-schools s u p e rio r ao d a q u e la s q u e e fe c tiv a ­
m en te as freq u en taram . D o m esm o m odo, na n o ssa socied ad e an glo-
-am c ric an a , a m aio ria d a s u n id ad es d o m ésticas não p o ssui um e q u i­
pam en to cénico su fic ie n te para m anter por m ais de a lg u m as horas o
e s p e c tá c u lo d e u m a h o s p ita lid a d e de p rim e ira q u a lid a d e p e ra n te
pesso as q ue vêm de visita; só a classe m ed ia su p e rio r e a classe su ­
p e rio r p ro p riam en te d ita co n h ecem a in stitu ição d o s co n v id a d o s p a ra
o fim -d e -s e m a n a , p o rq u e só os seu s m e m b ro s p o d em c o n fia r no
eq u ip am en to d e sin ais de que d isp õ em para um e sp ectácu lo dc tão
lo n g a d u ra ç ã o . A ssim , na ilh a d a s S h e tla n d , c e rto s a g ric u lto r e s
s e n tia m -s e c a p a z e s d e a p re s e n ta r u m a e x ib ic à o d e c la s s e in é d ia
duran te o tem p o co rresp o n d en te a um ch á. ou. por vezes, a u m a das
refeiçõ es p rin cip ais, ou até, em certo s c a so s, a um fim -d e-sem an a;
m as a m aio r p arte dos h ab itan tes d a ilha só se sen tiam se g u ro s se o
e sp e c tá c u lo de c la s s e m é d ia n ão p a s s a s s e d a p o rta p rin c ip a l, ou.
m elh o r ainda, d eco rresse no salão da c o m u n id ad e, o n d e o s esfo rç o s
e re sp o n sa b ilid a d e s d a e x ib iç ã o seriam co m p a rtilh a d o s p o r n u m ero ­
sos co m p a n h e iro s de equipa.

*6 .No quadro das rela ç õ e s tie p re sta ç ão dc se rv iç o s b re v es c a n ô n im a s, os


indivíduos que as desem penham adquirem uma capacidade peculiar de distinguir
aquilo que consideram ser a afectação de certas pessoas. M as. um a vez que a
posição em ciuc se encontram , em virtude do papel preciso que lhes com pele, c
bastante definida, é-lhes difícil responder à afectação pagando-a na mesma moeda.
A o mesino tempo, os d ien tes que são o que prctendérn scr ficam muitas vezes com
a impressão de que os que lem por papel prestar-lhes certo serviço não apreciam
muito esse facto. O cüenic sentir-se-á, portanto, envergonhado, tal com o sc sentiria
se tivesse definido falsamente aquilo que c.
A Aprcscniação do liu na Vida de Todo? os Dias 261

O ac to r p ru d en te em term o s d ram atíírg ico s d c v c a d ap ta r o seu d e­


se m p e n h o às c o n d iç õ e s de in fo rm a ç ã o em q ue este se rea liz a. As
p ro stitu ta s se rô d ia s q u e, no s é c u lo X ÍX londrino, lim ita v a m a sua
á r e a d e tra b a lh o a o s p a r q u e s s o m b r io s o n d e o s se u s ro s to s n à o
a fe c ta v a m o in te re sse cia a u d iê n c ia , a p lic a v a m , de fa c to , u m a e s ­
tra té g ia a in d a m ais an tig a d o q u e a su a p ro fissã o 17. A lém de levar
e m c o n ta o q u e p o d e se r visto, o a c to r terá q u e le v a r ta m b é m em
c o n ta a in fo rm ação que a a u d iê n c ia já possui a seu respeito. Q u an to
m a io r fo r a in fo rm a ç ã o de q u e a a u d iê n c ia d isp õ e so b re o acto r,
m e n o s p ro v áv el é q ue alg u m a c o is a q u e os seus m em b ro s descu b ram
d u ra n te a in te ra c ç ã o os v e n h a a in flu e n c ia r de m o d o ra d ic a l. P o r
o u tro lado. q u a n d o não há in fo rm a ç õ e s anteriores d isp o n ív eis, é d e
e s p e ra r q u e u in fo rm ação reco lh id a d u ran te a in teracção se revele re­
lativ a m e n te d e c isiv a . P o rta n to , e m term o s g lo b ais, p o d e m o s su p o r
q u e o s in d iv íd u o s ten d em a a fro u x a r a m anutenção e strita d a fach ad a
q u a n d o se en co n tram co m p e sso as q u e conh ecem h á m u ito tem po, c
a r e f o r ç a r a f a c h a d a q u a n d o se e n c o n tr a m e n tr e p e s s o a s q u e
co n h e c e m m al. C om aq u eles que n ã o co n h ecem os, tem os q u e cu id ar
b e m d o s n o sso s desem p en h o s.
C ita re i a in d a o u tro a sp e c to lig a d o à c o m u n ic a ç ão . C) a c to r c ir­
cu n sp e c to terá de en trar em linha d e conta com o possível a ce sso da
au d iên c ia a fo n tes de inform ação e x te rio re s à in teracção. P o r exem -

p io , d iz -se que os m em bros d a trib o T hug, na ín d ia, en c en av am os
d esem p en h o s seg u intes d u ran te a p rim e ira parte do sé cu lo X IX :

R egra geral, p reten d iam ser m e rcad o res ou so ldados, viajando


d e sa rm a d o s a fim d e e v ita re m a s su sp eitas, o que lh es d a v a um
e x celen te p re te x to p ara so lic ita re m a auto rização d e a c o m p a n h ar
os viajan tes, pois n ad a de a la rm a n te resultava da sua ap arên cia. A
m aio r parte dos thugs tin h a um a r p acífico e um a co rtesia peculiar,
fazen d o esses d isfarces parte d o s seus m eio s, c os v iajan tes bem
arm ad o s n ã o tin h am receio de p e rm itir que tais ca v ale iro s d a s es­
trad as se juntassem a eles. D ad o c o m êxito este p rim e iro passo, os
th u g s c o n q u is ta v a m p o u c o a p o u c o a c o n f ia n ç a d a s v ítim a s

1 1 M ayhcw. op. cil.. Vol. 4. p. 90.


262 Hrving Góffman

e sc o lh id a s p o r m e io de um a atitu d e de h u m ild a d e c g ra tid ã o , e


fin g ia m in teressar-se pelos seus afazeres e a té p o r p o rm e n o re s das
su as v id as fa m ilia re s, p e rg u n ta n d o -lh e s, en tre o u tra s c o isa s, sc
a lg u é m d a ria pela su a fa lta c aso fo ssem a ssa ssin a d o s ou sc c o ­
n h e c ia m a lg u é m n o s a rre d o re s . P o r v e z e s, p e rc o rria m c o m os
v ia ja n te s lo n g a s d is tâ n c ia s a n te s d e a p ro v e ita re m u m a
o p o rtu n id a d e d c tra iç ã o fa v o rá v e l; te m o s c o n h e c im e n to de um
caso em q u e um ban d o de thugs viajou co m u m a fam ília de on ze
p e sso a s d u ra n te v in te d ia s. c o b rin d o c e rc a de d u z e n ia s m ilh a s,
a n te s d c c o n s e g u i r a s s a s s i n a r im p u n e m e n te to d o s o s s e u s
m e m b ro s.! s

O s thugs c o n seg u iam su ste n ta r estes d esem p en h o s a d e sp eito do


facto de as suas audiências estarem co nstantem ente prevenidas e aler­
tadas contra o seu tipo de actores (e desse rapidam ente a m orte a qual­
q u e r in d iv íd u o q u e fo sse id entificado co m o thug), d e v en d o -se se m e ­
lh an te éxito, pelo m enos em parte, às co n d içõ es de in form ação em
que e feita u m a viagem ; c o m efeito, d epois d e iniciada a jo rn a d a pa­
ra urn d e stin o lo n g ín q u o , d eix av a dc h a v e r m an eira dc c o n firm a r a
id e n tid a d e d e c la ra d a d a s p esso as q u e a p a re c iam no ca m in h o , e se
algu m a coisa acontecesse, d u ran te o trajecto, poderiam passar-se m e­
ses antes que as buscas co m eçassem , o que c o n ced ía aos thugs tem po
su ficien te para co m p letarem o seu d esem p en h o e se porem , ern s e ­
guida, a salvo de even tu ais perseguidores. M as nas suas ald eias na­
tais, os m em bros d essa tribo, um a vez que eram conhecidos, estavam
lo calizad o s e seriam o b rig a d o s a resp o n d e r p elo s seu s acto s, com -
portavam -sc de m o d o exem plar. N a m esm a o rdem de ideias, há am e­
ricanos circu n sp ecto s q ue nunca, em circu n stân cias norm ais, c o rre ­
riam o risco de um a encenação desajustada ao seu estatuto social, mas
q ue, durante as férias de Verão, se p erm item a g ir de fo rm a diferen te,
num lu g a r onde a sua perm an ên cia será. p o r definição, breve.
Se as fon tes dc inform ação exterio res à interacção constituem um a
e v e n tu a lid a d e q ue o acto r circu n sp ecto d e v e te r em co n ta, as fontes
d e in fo rm ação interio res d a interacção são outro aspecto a ponderar.

^ Sleem an. op. dr.. pp. 25-26


A Apresentação do Cu na Vida dc Todos os Dias 263

P o r isso, o acto r circu n sp ecto a ju s ta rá a su a re p resen tação à natureza


dos p o n to s de apoio e tarefas irnpl icadas pelos .seu d esem p e n h o . P o r
e x e m p lo , o s c o m e r c ia n te s d e a r tig o s d e v e s tu a r io d o s E s ta d o s
U nido s terão q u e ser re la tiv a m e n te circu n sp ecto s e ab ster-se dc e x a ­
g e ro s ex cessiv o s, p o rq u e os c lie n te s podem ver e to ca r os pro d u to s
que lhes são ex ib id o s; m as os n eg o c ia n te s d e m óveis j á nao n e ce s­
sitam d e se r tão c u id a d o so s, p o is poneos são os m e m b ro s d a au ­
d ien cia ca p a z es d e sc d arem c o n ta da v erd ad eira q u a lid a d e d a m a­
deira c o b e rta de cera ou verniz q u e lhes é a p re se n ta d a .19 N o hotel d a
ilha d a s S h etlan d , os e m p re g a d o s gozavam de g ran d e lib erd a d e em
rela ç ã o ao q u e era in clu íd o e m so p a s ou p u d in s, po rq u e as sopas e
pudin s tendem a d issim u la r o s in g red ien tes que co n têm . S o b retudo
as so p a s são o b jecto de e n c e n a çã o azada; ten d em a ser, cad a um a d e ­
las, u m a som a d c várias: os re s to s de um a. a q u e se ju n ta q u a lq u e r
co isa q ue se ap an h a è m ão, s e rv e m de p o n to de p a rtid a para a c o n ­
fecç ã o d a seg u in te. E m m a té ria de carn es, se n d o m ais fac ilm e n te
identificáv el a v erd ad eira q u a lid a d e do prato ex ib id o , a m argem de
m an o b ra é m ais estreita; c. de la c to , com as carn es, os critério s dos
e m p re g a d o s eram m ais ex ig en tes d o que os dos hó sp ed es ex terio res
à ilha. p o is a q u ilo q ue c h e ira v a a p o d re a o s n atu rais d a ilha poderia
por v ezes ch eirar b em aos fo ra ste iro s. D c m an eira sem elhante, existe
na ilh a u m a trad ição que p e rm ite aos a g ric u lto re s id osos e sq u iv a -
rem -se às o b rig açõ es m ais d u ra s d a ex istên cia ad u lta por m eio d e um
ad o e c e r sim u lad o , p o is d e o u tro m odo d ific ilm e n te d e ix a rá d e se r
m alvista u m a p e sso a que se fu rte ao trabalho aleg an d o velhice. Os
m é d ic o s d a ilha — em b o ra o q u e líá sc en co n trav a na altura n ão c o o ­
perasse neste aspecto — são e n sin a d o s a co m p ro v ar o la c to d e que
nin g u ém p o d e sab er ao certo se h á ou não um a d o e n ç a a la v ra r no
in terio r de urn co rp o hum ano, restrin g in d o assim o s seus d ia g n ó sti­
co s in eq u ív o co s ao s caso s e m q u e se observam m o tivos de q u eix a
claram en te id en tificáv eis, ig u a lm e n te , q u an d o um a d o n a de casa se
p re o c u p a com a ex ib ição d o s ele v a d o s critério s d c asseio que m an-
tém , c o n cen trará p ro v a v e lm e n te a su a atenção nas su p erfícies e n v i­
d ra ça d a s d a saia de estar, um a v ez que nos vidros a su jid ad e é espe-

ly Conam. op. cit., p. 169, diasnn a atenção para este pomo.


264 Hrving Goffman

cialm en tc visível; prestará, cm co n trap artid a. m enos a ten ç ão ao tap e ­


te escu ro c m enos loquaz que talvez, de resto, e la tenha escolhido pen­
sando q u e “as co res escu ras disfarçam m ais o sujo". P o r razões análo­
gas tam b ém , o a rtista p o d e rá d esleix ar a a p resen tação do seu atelier
— corn e le ito , o atelier d o a rtista tran sfo rm o u -se num estereó tip o ,
num lu g a r o nde q u em tra b a lh a nos b astid o res não sc p re o cu p a com
q u em o p o ssa v e r ou co m as co n d içõ es em q u e isso sucede — , o que
ta lv e z se deva c m parte ao facto d e o v alo r p ró p rio d a p ro dução do
a rtista pod er o u d e v e r se r im ed iatam en te p ercep tív el em te rm o s sen-
so riais; os retratistas, em co n trap atid a, terão q u e p ro m eter sessões de
tra b a lh o a g ra d á v e is , e p ro c u ra rã o m o s tra r a teliers re la tiv a m e n te
a trae n te s em lerm o s de a p re se n ta çã o o u e x ib ir c e rto s sin a is de ri­
qu eza, co n stitu in d o to d o s e sse s elem en to s u m a esp écie d e garanti»
d as p ro m essas q ue a su a a c tiv id ad e co n tém . P aralelam en te, v em o s
q u e o s b u rlõ es são levados a u tiliz a r fach ad as pesso ais re q u in tad as c
m in u cio sas e p o r v ezes a c o n stru ir am bientes so ciais estu d ad o s até
ao m ín im o p o rm e n o r o que se d e v e n ào tan to a o facto de a m en ­
tira ser o seu m eio d e g a n h a r a vid a. c o m o a o facto de m en tiras c o ­
m o as q ue eles d izem im p licarem so b retu d o o c o n tacto c o m in d iv í­
d u o s que são e co n tin u a rã o a sc r estran h o s, d e v en d o to d o s os n e g ó ­
cios ser co n clu íd o s o m ais rap id am en te p o ssív el. O s h o m en s de ne­
gócios “ legítim os’’ que q u isessem p roceder a um a operação com ercial
ern circunstâncias sem elhantes teriam q ue se m ostrar igualm ente a te n ­
tos ao s seus m o d o s de ex p re ssã o , porque é ju sta m e n te em circu n s­
tancias e m q u e o tem p o a p e rta q u e os in v estig adores p o ten c iais m ais
m in u cio sam en te ex am in am os seus in terlo cu to res rui negociação.
E m su m a . q u a n d o um b u rlã o sc vê le v a d o a lu d ib ria r o s seu s
clien tes em circ u n iâ n c ias tais que estes ú ltim o s possam p e n sa r que
se arrisc a m a se r vítim as d e um ab u so de co n fian ça, o b u rlã o terá de
re fu ta r pon to p o r p o n to q u a lq u e r im p ressão im ed iata su scep tív el de
o fa z e r p arecer o q u e de facto é — d o m esm o m odo que o c o m e r­
cia n te sério , a o c o n fro n tar-se c o m circ u n stâ n c ias id ên tica s, terá de
refu tar c o m igual m in ú cia q u alq u er im p ressão im e d iata su scep tív el
de o fazer p arecer o q u e n ão 6.
É e v id e n te q u e o cu id ad o terá d e se r m aio r n as situ açõ es em que o
re su lta d o d o m odo c o m o se co m p o ria traz p ara o a c to r co nscquên-
A Apresentação do F.u na Vida de Todos os Dias 265

cias de peso. A e n tre v ista de c a n d id a tu ra a um em p reg o c u m caso


n ítid o . C o m fre q u ê n c ia, o e n tre v is ta d o r te rá de to m a r d c c isö e s de
g ra n d e im p o rtân cia p ara o e n tre v ista d o na base e x c lu siv a d a infor­
m ação q u e possa e x tra ir d o d e se m p e n h o d o can d id ato . O e n trev is­
ta d o sen tirá p ro v av elm en te, e c o m a lg u m m otiv o , que c a d a g esto seu
s e r á c o n s id e r a d o a lta m e n te s im b ó lic o , e p o r is s o tr a b a lh a r á e
re flec tirá atu rad am en te no seu d ese m p e n h o . P odem os su p o r que em
o c a siõ e s se m e lh a n te s o e n tre v is ta d o p restará m u ita a te n ç ã o à su a
a p re se n ta ç ã o e m a n e ira s, n ão s im p le sm e n te a fim d e su sc ita r u m a
im p ressão favorável, m as tam b ém p ara se c o lo c a r n u m a p o sição se­
g u ra e re fu ta r q u a lq u e r im p re s s ã o d esfav o ráv el in v o lu n ta ria m e n te
tra n sm itid a . O u tro ex em p lo : os q u e trab alh am no c am p o da rá d io e
d a telev isão , e so b retu d o n esta ú ltim a , sabem bern que a im p ressão
m o m e n tâ n e a q ue tran sm itirem in flu e n c ia rá a im agem que um a a u ­
d iên cia de m assa vai fo rm a r a se u resp eito , e é nesta área d a in d ú s­
tria d o s m eio s d e c o m u n ic a ç ão q u e se tem m ais cu id ad o e m c a u sa r a
im p r e s s ã o d e v id a e se se n te u m a m a io r a n s ie d a d e a s s o c ia d a à
p o ssib ilid a d e de u m a tra n sm issã o d e im pressões m en o s c o n v e n ie n ­
tes. A fo rç a d e sta p reo cu p ação é d o c u m e n ta d a pelas in d ig n id a d es a
q u e o s a c to re s de d e s ta q u e a c e ita m su je ita r-se só p a ra se sa íre m
bem : os m em b ro s d o C o n g re sso to leram q ue os m aq u ilh em e lhes
d ig am o q ue d ev em vestir; o s p u g ilis ta s p ro fissio n ais re b aix a m -se a
fa z e r u m a “c o m é d ia ” , à m a n e ira d o s lutadores co m b in ad o s, ern vez
de se ap licarem n um a ssa lto c o m o deve ser.--
A circu n sp ecção d o s acto res tra n sp a re c erá tam bém no m odo co m o
eles lidam com o afro u x a r das ap arên cias. Q u an d o a e q u ip a se e n ­
co n tra fisic a m e n te d ista n te da a u d iê n c ia q ue a o b se rv a e não é de
p re v e r q u alq u er visita-surpresa, p o d e perm itir-se u m a dose razoável
d e desco n tracção . D izem -n o s a ssim q u e as instalações m ais pequenas
da M a rin h a am erican a nas ilhas d o Pacífico, durante a ú ltim a gu erra,
era m m uitas vezes ad m in istrad as b astan te in fo rm alm ente, ao m esm o
tem po que um aju stam en to no s e n tid o da lim p eza e a p resen tação es­
cru p u lo sa d as arm as se v e rific a v a quan d o a u n id ade era tran sferid a

V er a coluna scimimrí de John L ardncr nu Newsweek. 22 dc Fevereiro dc 1954.


p. 59.
266 Frving Coffman

para um lugar onde se ria m ais p rovável a p resença de esp ectad o res
assíd u o s21. Q u an d o os in sp ecto res têm facilid ad e de a ce sso ao lu g ar
onde u m a e q u ip a realiza o seu trabalho, en tão o m o ntante d a d e sc o n ­
tracção possível para a eq u ip a dependerá da eficácia e fiab ilid ad e do
seu s is te m a d e p re v e n ç ã o . D ev e n o ta r-se q u e u m a d e s c o n tra c ç ã o
co m p le ta p ressu p õ e não só um sistem a d e prevenção, m as igualm ente
um lapso de tem p o apreciável entre o aviso e a cheg ad a d o visitante.
P o r is s o . q u a n d o u m a p r o f e s s o r a p r im á r ia sa i d a a u la p o r urn
m o m e n to , o s a lu n o s p o d e m p e r m itir - s e p o s tu r a s d e s le ix a d a s c
co n v ersas em voz b aix a, p o is essas infracções p odem scr em en d ad as
nos poucos seg u n d o s que m ed eiam entre o aviso que os p rev in e de
que a p ro fesso ra vai v o lta r e a su a efectiv a en trad a n a aula; m as é im ­
p ro v á v e l que. o s a lu n o s a p ro v e ite m p a ra fu m ar, pois o c h e iro do
tab aco não d esap arece de um m o m en to para o outro. F. interessante
n o ta r q u e os a lu n o s , c o m o o s o u tro s a c to re s , “e x p e rim e n ta m os
lim ite s '’, d e slo c a n d o -se a le g re m e n te p ara lo n g e d a s su a s c a rte ira s,
m as não p ara além da d istân cia q ue lhes perm ita, qu an d o o sinal de
alarm e se faz ouvir, p recip itarem -se d esen fread am en te em d irecção
aos seus lu g ares, ocu p an d o -o s a tem po. A natureza do terreno, neste
ca so . to m a -s e e v id e n te m e n te relev an te. N a ilha d a s S h e tla n d , por
exem p lo , nào h av ia árvores q ue tapassem a vista e as aglom erações
re s id e n c ia is e ra m p o u c o d e n sa s. O s v iz in h o s tin h a m o d ire ito de
en tra r n o esp a ç o uns dos o u tro s q u a n d o m oravam perto, m as geral­
m ente v ia-se o v isita n te a c a m in h o u n s b o n s m in u to s a n te s de ele
re a lm e n te c h e g a r. O s o m n ip re s e n te s c ã e s de g u a rd a d as q u in ta s
c o n trib u ía m p a ra re fo rç a r e ste s s in a is v isív e is d c p re v e n ç ã o , p o r
a ssim d iz e r, la d ra n d o à a p ro x im a ç ã o d e q u a lq u e r v isita n te . U rna
desco n tracção folgada to m av a-se assim possível um a vez q u e havia
se m p re uns ta n to s m in u to s de tré g u a s, p e rm itin d o p ô r o p alco em
co n d içõ es. Sem dúvida, d ad a a ex isten cia deste sistem a de alarm e, o
bate r à p o rta d e ix a ra de d e se m p e n h a r as su as p rin cip ais fun çõ es h ab i­
tuais, e o s ag ricu lto res v izinhos não praticav am en tre si essa cortesia,
em bo ra alguns d eles co stu m assem lim p ar um pouco os pés antes de
entrarem , num sinal de aviso suplem en tar e final. O s apartam entos de

Page. op. cif., p. 92.


A Apresentação cio Eu na Vida de T odos os Dias 267

hotelaria cu ja porca principal a p e n a s se abre quando o ocupante car­


re g a , d o in te rio r, num b o tã o , fo rn e c e m u m a g a ra n tia a n á lo g a de
prev en ção e p erm item tam b ém u m a d esco n tracção abundante.
G o sta ria ain d a de m e n c io n a r u m outro m odo dc ex e rc íc io d a cir­
c u n sp e c ç ã o d ra m a tú rg ic a . Q u a n d o as e q u ip a s ch e g a m à p re se n ç a
im ed iata urna d a outra» c p o ssív el a o co rrên cia de u m a m u ltip licid a­
d e de facto s m en o res q ue a c id e n ta lm e n te tendam a cau sar u m a im ­
p ressão global in co m p atív el c o m a im pressão visada. E stas traições
n o â m b ito e x p re ssiv o sâ o u m a c a ra c te rís tic a fu n d a m en ta l d a in te ­
ra cçã o c a ra a cara. U m a m a n e ira d e enfren tar o p ro b le m a co n siste,
c o n fo rm e j á sug erim o s antes, e m e sc o lh e r co m p an h eiro s de equipa
d iscip lin ad o s, que n ã o d e se m p e n h e m os seus p apéis d e sajeita d a, a ta ­
b alh o ad a ou eo n síra n g id a m e n te. U m outro m éto d o c o n siste em ter
d e an tem ão u m a resp o sta p re p a ra d a para to d o s os acidentes e x p re s­
siv o s p o ssív eis. E sta estratég ia s e rá aplicada m ed ian te o esta b e le c i­
m ento de u m a p ro g ram ação c o m p le ta antes d o desem p en h o , fixando
q u em fa rá o q ue e a o rdem dc ap re se n ta çã o . D este m odo. ev itar-se-
-ão as c o n fu s õ e s e os te m p o s m o rto s , e as im p re ssõ e s q u e e s s e s
a c id e n te s v e ic u la m d u r a n te a a c ç ã o s e rã o p r e v e n id a s . ( E x is te ,
co n tu d o , u m perig o . IJm d e se m p e n h o inteiram ente fix a d o p o r e sc ri­
to, co m o o q u e vem os n um p alco d e teatro, asseg u ra c o m e x tre m a
e fic á c ia q u e n ã o h a v e rá a c o n te c im e n to s im p re v isto s a q u e b ra r a
su ce ssã o d e fin id a d as p a la v ra s e ac los; p o r isso, se e ssa su c e ssã o
ac ab a r p o r ser, ap e sa r dc tudo. in terro m p id a p or factores estranhos,
os acto res p o d erão n ão se r c a p a z e s de re c u a r até à d eix a q u e lhes
p e rm ita re to m a re m a se q u ê n c ia p ro g ra m a d a no p o n to em q u e foi
interro m p id a. O s acto res que d e se m p e n h a m um papel fix ad o p o r e s­
c rito ficarão assim , p o r vezes, n u m a posição p io r d o que a q u e le s q u e
a p re s e n ta m u m a e x ib iç ã o m e n o s o rg a n iz a d a .) O u tra a p lic a ç ã o da
m e s m a té c n ic a de p ro g r a m a ç ã o é a d m itir-s e o fa c to d e a c o n te ­
cim en to s m en o res (ligados a d e c id ir, por ex em p lo , q uem e n tra rá p ri­
m eiro em c e rta sala ou q u e m se sen tará ao lado d a d o n a d a c asa,
e tc .) p u d e re m .ser c o n s id e ra d o s s in a is d c d e fe rê n c ia , d is trib u in d o
e n tã o estes ú ltim o s de m odo d e lib e ra d o , seg u n d o crité rio s que não
sejam su scep tív eis de o fen d er ncnTium dos p resen tes — id ad e, su p e ­
rio rid ad e social ev id en te, sexo. p o sição cerim o n ial tem p o rária, etc.
268 Erving Goffman

P o r isso. há c aso s im p o rtan tes cm q ue o p ro to co lo não é tan to um


m eio de e x p rim ir v alo rizaçõ es d u ran te a in teracção c o m o um m eio
de “c o n te r” expressões- p o te n c ia lm e n te p e rtu rb a d o ra s dc m a n e ira
aceitáv el (e tran q u ilizad o ra) para to d o s os prosem os. U m a te rce ira
ap lic a ç ão co n siste e m e n sa ia r g lo b alm en te a p rá tic a de ro tin a a d e­
sem penhar, do tal m an eira que os acto res so sintam à v o n tad e com
o s sous papéis, o que fará co m quo os acid en tes não previstos o c o r­
ram e m co n d içõ es q ue facilitam um a re sp o sta segura. Q u arta ap lic a­
ção: d e fin ir de a n tem ão p e ra n te a au d iê n c ia qual a linha q u e e sta
dev e ad o p tar em relação ao d esem p en h o . Q u an do se d á esta espécie
de ex p licação , p assa, sem d ú v id a, a ser difícil d istin g u ir entre a cto ­
res e e sp ectad o res. T rata-se de um tip o de c o n iv ê n c ia que en c o n tra ­
m os so b retu d o q u an d o o ac to r d etém u m estatu to de ex trem a e le v a ­
ção em torm os de sag rad o , não p o d e n d o confiar-s.e sim p lesm en te ao
bom se n so e sp o n tâ n e o d a audiên cia. P o r ex em p lo , na G rã-B retan h a,
a s m u lh eres q ue são ap resen tad as na corte (e q u e p o d e m o s c o n sid e ­
rar c o m o m em b ro s de um a au d iê n c ia p ara o d esem p en h o rea!) são
rig o ro sa m e n te in stru íd a s sobro a m a n e ira c o m o d e v e m v estir-se,
sobro o tipo de au tom óvel om q ue d ev em chegar, sobre a v én ia que
se espora q ue façam , e so b re as p alavras que terão d e dizer.

Práticas de Protecção

Indiquei três q u alid ad es que os m em bros d a eq u ip a devem p o s ­


suir, a fim de q u e esta ú ltim a possa d ese m p e n h a r o seu esp ectácu lo
co m se g u ran ça: leald ad e, d isc ip lin a e c ircu n sp ecção . C ada um dos-
tes atributos se ex p rim e p o r m eio de num ero sas té cn ica s defen siv as
p a d ro n iz a d a s , p e rm itin d o a u m c o n ju n to d e a c to re s c o n f e r ir se ­
g u ran ça à su a ex ib ição . A lg u m as destas técnicas d e adm in istração
das im p ressõ es fo ram j á ex am in ad as ao longo das p ág in as a n te rio ­
res. O u tras, c o m o a p rá tic a de c o n tro la r o acesso às reg iõ es d e tra ­
seiras e às regiões de fach ad a, co n stitu íram o o b jecto do s prim eiros
cap ítu lo s. N esta secção, quero su b lin h a r que a m aior parte das técn i­
cas d e fe n siv a s do ad m in istra ç ã o d as im p ressõ es tem a sua co n tra­
p artid a na ten d ê n c ia — d itad a p elo tacto — d a au d iên cia e d o s e.s-
A Apresentação do Eu na Vida de T odos os Dias 269

tra n h o s p a ra a g ire m d e m a n e ira p r o te c to r a a fim de a ju d a re m os


a c to re s a g a ra n tir a seg u ran ça d o scu desem penho. Urna vez q u e a
d e p e n d e n c ia d o s a c to re s em r e la ç ã o ao ta c to d a a u d ie n c ia e dos
e s tr a n h o s ic n d c a s e r s u b e s tim a d a , re fe rire i aq u i c o n ju n ta m e n te
alg u m a s d a s d iv ersas técn icas de p ro te c ç ã o d e u so co rren te, em b o ra,
e m term o s de análise, c a d a u m a d e s s a s práticas de p ro tec çã o dev esse
a n te s s e r c o n s id e r a d a a p r o p ó s i t o d a p rá tic a d e f e n s iv a c o r r e s ­
po n den te.
E m p rim e iro lugar, deve fic a r c la r o q ue o a c e sso às re g iõ e s d e
b astid o re s e d e fach ad a de um d e se m p e n h o ¿ c o n tro lad o n ã o só p e ­
los a d o r e s , c o m o tam b ém pelas o u tra s pessoas. O s in divíduos m a n ­
tê m -se v o lu n tariam en te a fastad o s d a s regiões o n d e nào são c o n v id a ­
d o s a entrar. (E sta esp écie de tacto c m relação ao lu gar é an álo g a à
“ d isc riç ã o '', que j á d escrev em o s c o m o um a espécie de tacto relativo
a o s fa c to s.) Q u a n d o p e sso as e s tra n h a s ao d e se m p e n h o d e sc o b re m
q u e estão em vias de p en etrar n u m a dessas regiões, fo rn ecem d e urn
m o d o geral aos que j á lá esta v a m u m tipo ou o u tro d c av iso , so b a
fo rm a d e u m a m ensagem , dc um a p a n c a d a na p o rta ou dc um a tosse,
p erm itin d o que. em caso d e n e c e ssid a d e , a intrusão possa se r rejei­
ta d a ou o cen ário rap id am en te p o s to em ordem e as ex p re ssõ e s c o n ­
v en ien tes ad o p tad as pelos ro sto s d o s circun stan tes22. E sta form a de
c o rte sia p ode to m ar-se m u ito re q u in ta d a . A ssim , q u a n d o no s a p re ­
sen ta m o s a um estra n h o p o r m e io de u m a c a rta de re co m e n d açã o ,
to rn a -se c o n v en ien te fa z e r com q u e a carta c h e g u e ao seu d estin a­
tá rio an tes de co m p a re c erm o s n a su a presença; o d e stin a tá rio te rá
desse m o d o tem po para decidir q ue recepção d isp ensará à n o ssa pes­
so a e p ara d e fin ir o q u ad ro e x p re ssiv o que m ais se a d eq u a a esse tipo
d e recepção.
V erificam os lam bétn co m m u ita freq u ên cia q u e. q u a n d o u m a in te ­
ra cçã o te m que se d e se n ro la r n a p re se n ç a de estran h o s, estes agem

“ Ensina-se rmrilas vezes às criadas que entrem sern bater, ou que batam c entrem
sem esperar, o que presumivelmente se liaseia na teoria dc que aí criadas são não-
-pessoas em relação ás quais não há que i-i:u;ter as aparências nem a disponibilidade
interactiva habituais. As donas dc casa vizinhas, no caso de serem amigas, entrarão do
mesmo modo na cozinha uir.a da outra, com o ar dc nada terem a esconder entre si.
2 - Esquire Etiquette. op. d i., p. 73.
270 Erving Goffman

d is c r e ta m e n te c rn te rm o s d e s in te r e s s a d o s , d e m o d o a u s e n te ou
alhead o , pelo q u e ap e sa r d e n ão h a v e r p aredes ou d istan cia esp acial
a iso la r a in teracção d o seu exterior, e sse iso lam en to fic a g a ran tid o
p e la o b se rv â n c ia d as co n v en çõ es. F assim q u e, qu an d o dois grupos
d ife re n te * d c p e s s o a s fic a m e m c o m p a rtim e n to s p ró x im o s n u m
restau ran te, se c o n fia em q u e n enhum dos g ru p o s sc sirv a d o en sejo
efectiv o , q u e a situ ação lhe p ro p o rcio n a, de o u v ir as co n v ersas entre
o s m em b ro s d o outro.
A e tiq u e ta relativ a à d esa te n ç ã o p o r d isc riç ão e o grau de p riv a­
cid ad e efectiv a q u e e la g a ra n te v ariam , sem d ú v id a, d e um a so c ied a ­
d e o u subcult.ura p ara out.ra. N a a tm o sfe ra so cial da c la sse m édia
a m e ric a n a, q u a n d o o in d iv íd u o se en c o n tra n um local p ú b lico , p re-
su m e-se q u e n ão se im iscu irá nas aciiv id ad es d as o u tra s p esso as e
trate ap en as d o q u e lh e d iz respeito. S ó quan d o u m a sen h o ra deixa
c a ir u m em b ru lh o , ou quan d o um c o n d u to r está p arad o no m eio da
rua, ou q u a n d o um b eb é so zin h o na cad eirin h a c o m e ça a chorar, as
p e sso a s d a c la sse m é d ia a c h a m a d m issív e l q u e b ra r m o m e n ta n e a ­
m ente as p ared es q ue e fic a z m e n te as isolam . N a ilha das S h etlan d
vigo ram regras d iferen tes. Q u an d o um h o m em se vê na p re sen ç a de
o u tro s, o cu p ad o s em c e rta tarefa, esp era-sc q ue o p rim eiro lh es dê
u m a m ão, so b retu d o se a tarefa fo r relativ am ente b reve e re lativ a ­
m ente pesad a. E ste au x ílio o casio n al era o lhado com o u m a co isa n a­
tu ral, u m a sim p le s e x p re ssã o de s o lid a rie d a d e e n tre h a b ita n te s d a
m esm a ilha.
A n e c e ssid a d e de o b se rv a r um c o m p o rta m e n to d o ta d o d e ta c to
n ã o te rm in a q u a n d o a a u d ie n c ia te m a c e s s o a um d e s e m p e n h o .
D e sc o b rim o s que ex iste um a e tiq u e ta c o m p le x a por rneio d a q u a l os
in div íd u o s se o rien tam na su a q u alid ad e de m em bros da au d iência.
O que im plica: a p restação de um m ontante ad eq u ad o de alen ção e
interesse; a boa v o n tad e suscep tív el dc re fre a r o d ese m p en h o pessoal
d e m a n e ira a n ã o in tro d u z ir na situ a ç ã o u m n ú m e ro e x c e s s iv o de
co n trad içõ es, in terru p çõ es o u p ed id o s de aten ção; a in ib ição d e to ­
d o s os actos ou p alavras q ue p o ssam d a r o rig em a passos em falso:
c, ac im a de tudo, o d e se jo de e v ita r cen as. O tacto da a u d ie n c ia é um
asp ecto tão g en eralizad o que e sp erarem o s v ê-lo ex e rcid o até m esm o
por in d iv íd u o s co m um a re p u ta ç ã o p a rtic u la r de co m p o rtam en to in-
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 271

c o rre c to , c o m o 6 o c a so d o s p a c ie n te s dos h o sp ita is p siq u iátric o s.


A ssirn, co n ta-n o s u m grupo d e in v estig ad o res:

N o u tra o casião , o pessoal d e c id iu , sern c o n su lta r os pacien tes,


fa z e r urna te sta de S ão Valent im . M uitos d o s p acien tes n ã o q u e ­
ria m p a r tic ip a r , m a s a c a b a r a m p o r a c e d e r a c h a n d o q u e n ã o
d e v ia m f e r ir os se n tim e n to s d a s e n fe rm e ira s e sta g iá ria s q u e ti­
n h am o rg an izad o a festa. O s núm ero.s p rep arad o s pelas e n fe rm e i­
ra s era m d e um nível b astan te in fan til; m uitos dos p acien tes sen ­
tia m -s e id io tas e n q u a n to o s re p re s e n ta v a m e se n tira m -se s a tis ­
feito s q u an d o a festa acabou, p erm itin d o -lh es v o ltar às activ id ad es
q u e p o r si p ró p rio s p re fe ria m .-4

N u m o u tro hospital p siq u iá tric o o b servou-se q ue. q u an d o certas


o rg a n iz a ç õ es étn icas p ro m o v iam bailes co m a presen ça de co n v i­
dad o s p ara os do en tes, no H o sp ita l da C ruz V erm elha, p ro p o rc io ­
nan d o assim e x p eriên cia em a c tiv id a d e s de b en eficencia a certas
asso ciad as m en o s fav o recid as, o rep resen tan te do hospital c o n s e ­
g u iu n ão raro c o n v e n c e r a lg u n s p acientes d o sex o m a sc u lin o a
d a n ç a r c o m essas jo v e n s, a fim d e alim en tar a im p ressão de q u e as
v isitan tes estav am a o fe re c er u m pouco de c o m p an h ia a p essoas
disso a in d a m ais n ecessitad as d o q u e elas p ró p rias.2'

Q u an d o os actores incorrem n u m deslize de q u alq u er natureza, m a­


nifestan d o claram en te um a d isc o rd â n c ia entre a im pressão v isa d a e a
realidade revelada, a au d iên cia p o d e rá , por vezes, d a r provas de tacto
e “ não v er” o d eslize o u aceitar p ro n ta m e n te as d esculpas que por ele
lhe sejam apresentadas. H em m o m en to s de crise dos acto res, o c o n ­
ju n to da au d iên cia tenderá, em c e rto s casos, a m o strar-se co nivente
corn eles. a fim de o$ a ju d ar a c u m p rir o seu papel. A ssirn, verifica­
m os q u e , q u an d o num h o sp ital p siq u iá tric o um pacien te m orre em

W illiam Caudill, Frederick C. R edlich. Helen R. G i'm orc c Eugene B. Brody.


"Social Structure und Interaction Processeis tin a Psychiatric W ard". A m erican'
Journal o f Orthopsychiatry. XXil. pp. 321-22.
F.siu d o re a liz a d o p e lo a u to r. 1 9 5 3 -5 4 .
272 Erving G o f f m a n

cond içõ es que podem afectar a im pressão de eficácia do tratam ento


que o quadro profissional te n ta m anter, o s outros pacien tes, cm geral
dispostos a d arem b a sta n te que fazer aos p ro fissio n ais, a b ra n d a m a
sua belicosidade e contribuem , d iscretam ente, para su stentar a im pres­
são, d e resto inteiram ente falsa, dc não terern apreen d id o a significa­
ção d o su ced id o 26. Igualm en te, p o r altu ra de um a inspecção, tanto nu­
m a escola, co m o n u m q uartel, n um hospital, ou nu m a casa de fam ília,
é provável que a au diência se com porte m odelarm ente, perm itindo que
os acto res subm etidos à insp ecção encenem um a exibição d c prim eira
qualid ad e. N essas alturas, as linhas dc fro n teira adoptadas m ostram -se
capazes de inflexões rápidas e m om entáneas, o que tem c o m o resul­
tad o que o inspector escolar, o g eneral, o d irecto r hospitalar ou o co n ­
vidado en co n tre pela frente a co n iv ên cia dos actores e d a audiência.
C itarem os ainda um últim o exem plo de tacto em relação ao actor.
Q uan d o sc sabe q u e o acto r é um estreante, podendo facilm ente incorrer
em erros em baraçosos, a audiência m uitas vezes m anifesta em relação a
ele um a especial consideração, abstendo-sc de cau sa r as dificuldades
que. noutro contexto, não deixaria de infligir ao desem penho.
As au d iên cias sã o lev ad as a a g ir co m d iscrição e tacto ou p o r um a
id en tificação im ed iata co m os ac to re s, ou pelo d esejo d e e v itarem
ce n a s, ou p e la in ten ção dc o b terem a s g raças dos actores, c o n tan d o
servir-se d isso p ara os seus p ró p rio s fins. T alv ez seja esta últim a a
ex p licação m ais co m u m . A o que parece, en tre as c o rtesãs de m aior
su cesso c o n tam -sc aq u elas que se m o stram d isp o sta s a ap ro v a r m ais
v iv a m e n te o d e se m p e n h o d o c lie n te , d e m o n s tra n d o a ssim a triste
verdad e d ram atú rgica q u e faz co m que não sejam a p e n a s as n a m o ­
radas ou leg ítim as esposas a em p en h ar-se em m o dalidades su p e rio ­
res da p ro stitu ição :

M ary L ee d iz que n ão faz m ais pelo Sr. B lakesec do q u e pelos


ou tro s c lien tes ricos.

Ver Taxei, op. ri:., p. I ! S. Quando duas equipas têm conhecimento tlc uni facto
em haraçoso, sabendo cada uma das equipas que a out™ tambem sabe. mas sem quo
nenhuma das duas reconheça abertamente o que s;:hc, estam os ante um exem plo
daquilo a c;uc R oben Du bin chamou "Jicçftss organizacionais". V er Dubin. op. cii.,
pp. 341 -45
A ApresenLação do liu na Vida de Todos os Dias 273

« F aço o q ue sei q ue el es q u e re m , e fin jo que p erc o a ca b eça


com eles. E les às vezes poitani-.se com o m iúdos n a b rin cad e ira. ()
Sr. B lak esee é sem pre assim . F a z de h o m em das c av ern as. C h e g a
ao m eu a p a rta m e n to , a g a r r a - m e nos b ra ç o s e a p c rta -m c a té sc
co n v e n c e r d e que fiquei se m fôlego. E u m a co isa ridícula. D e p o is
de a c a b a r d e fazer a m o r c o m ig o , lenho q u e lhe dizer: "Q u erid o ,
fazes-m e tão feliz, tenho v o n ta d e de c h o ra r!” N ão se a c red ita que
u m h o m em feito ten h a v o n tad e d e b rin car assim . M a s é o que ele
quer. H nao é só ele. A m a io r p a rte dos ricos q u e r a m e sm a coisa,
tam b ém .»
M arv L e e e stá a tal p o n to co n v e n c id a de q ue o seu tru n fo m aior
nos n eg ó cio s co m os c lie n te s ric o s é a c a p a c id ad e d e a c tu a r com
esp o n ta n e id a d e q u e se su b m e te u re c e n te m e n te a u m a o p e ra ç ã o
d e stin a d a a p rev en ir a g rav id ez. C o n sid ero u -a um in v e stim e n to na
sua c a rre ira .-7

M as, u m a vez m ais. o q u a d ro d a análise que em p re g ám o s n esta


investig ação parece d e m a sia d o estreito : p o rq u e estas acções in spira­
das p elo tacto da p a rte da a u d iê n c ia podem ser p o r vezes m ais ela ­
borad as d o que o d esem p en h o a q u e respondem .
G o s ta ria d c a b o r d a r p a ra c o n c lu ir urn o u tro a s p e c to d o tac to .
Q uan d o a au d iên cia dá m o stras de o aplicar, surge a p o ssibilidade de
o s a c to re s se d a re m c o n ta de q u e estao a s e r p ro te g id o s p o r u m a
atitu d e de co rtesia. Q u an d o isto a c o n te c e , à p o ssib ilid ad e re fe rid a
o u tra acresce: a d a au d iên cia s a b e r que os acto res sabem que estao a
ser proteg id o s por u m a atitude in sp irad a pelo tacto. F a seguir, pode
aco n te c er que os acto res saib am q u e a au d iên cia sabe que os actores
sabem que estão a ser p ro teg id o s. P o is bem . q u ando estas co n d içõ es
d e in fo rm a ç ã o se verificam , c h e g a rá urn m om ento do d e sem p e n h o
e m q u e a d is tin ç ã o e n tr e a s e q u ip a s d a r á d e s i, s e n d o t e m p o ­
ra ria m e n te su b stitu íd a p o r u m a p artilh a d e o lh ares m útuos, através
d o s q u ais cad a um a d as eq u ip as ad m ite ab erta m en te p e ra n te a outra
as súas p ró p rias co n d içõ es ern te rm o s tie inform ação. N essas alturas,
to d a a estru tu ra d ram atú rg ica da in teracção social fica b ru sc am en te

- ' M iniagh e Harris, op. ri!., p. 165. V er wmbúni pp. lfti-67.


274 Ei ving Goffman

e x p o sta , e a lin h a d iv isó ria q u e se p a ra as e q u ip as d e sa p a re c e por


m om entos. Q u e r esta visão d c m ais perto d as c o isas seja causa, v er­
gonha ou riso, o m ais p ro v áv el c. contudo, que as equipas retom em
rap id am en te os seus elen co s de perso n ag en s bem d efin id as.

T acto fren te ao T acto

A firm ám o s q ue a au d iên cia co n trib u i dc rnodo sig n ific ativ o p a ra a


c o n tin u id a d e d e u m a e x ib iç ã o p o r m e io d o ta c to ou p rá tic a s d e
p ro te c ç ã o a p lic a d o s cm b en efício d o s actores. É e v id e n te que se a
au d iê n c ia m o strar tacto em rela ç ã o ao actor, o acto r d ev erá a c tu a r dc
m aneira a to m a r possível essa p restação d e au x ílio . O que pressu p õ e
d iscip lin a e circu n sp ecção , m as um a d iscip lin a c um a c irc u n sp e cçã o
de um tip o esp ecial. P o r ex em p lo , in d icám o s que os estra n h o s que se
en co n tram fisicam en te em c o n d iç õ e s de o u v ir o que se p assa num a
in teracção p o d erão a p lic a r o seu tacto n a en cen ação de u m a atitu d e
d c d i s tr a c ç ã o . P a r a c o n tr i b u ír e m p a r a e s te d i s c r e t o r e c u o , os
p a rtic ip a n te s, que ach am que é fisic a m e n te p o ssív e l esta re m a ser
o u v id o s , o m itirã o d a s u a c o n v e rs a e a c tiv id a d e s tu d o o que s e ja
su sc e p tív e l de e m b a ra ç a r a atitu d e d isc re ta dos e stra n h o s, m as ao
m e sm o te m p o in c lu ir ã o n a s su a s p a la v ra s a lg u n s a s p e c to s
co n fid en ciais a fim d e não co n trariarem o esp ectácu lo d e d istra cç ão
c o rtê s q u e o s e s tra n h o s lhes o fe re c e m . D o m e sm o m odo, q u a n d o
um a se c re tá ria tem q ue d iz e r d e lic a d a m e n te a um v isita n te q u e a
p esso a q u e este q u e r v e r n à o está. será aco nselhável para o seu inter­
lo c u to r m a n le r-se a fa s ta d o d o te le fo n e in te rn o d e m a n e ira a n ã o
po d er o u v ir o q ue está a d iz e r à secretária a p esso a que o ficialm en te
n ão se en c o n tra no seu g ab in ete p ara o receber.
G o sta ria d e c o n c lu ir m en cio n an d o d u a s e stra té g ia s g lo b a is rela­
tiv as ao tacto em relação co m o tacto. E m p rim eiro lugar, o a c to r tem
que ter sen sib ilid ade para as d e ix a s e ser c a p a z de as com p reen d er,
um a vez q u e é através de p eq u en o s sin ais q u e a au d iên c ia pode pre­
v e n ir o a c to r de q ue a su a e x ib iç ã o está a s e r in a c eitáv el e que o
m elh o r será ele m o d ificar a situ ação que visa m anter. Hm se g u n d o
lugar, se o ac to r tiv e r q ue representar, d isto rcid am en te, de u m a ou de
A Apresentação do Hu na Vida dc Todos os Dias 275

o u tra m a n e ira , c e rto s fa c to s , d e v e r á fa z ê -lo de a c o rd o c o m u m a


etiq u e ta d a rep resen tação d isto rc id a ; não pode deix ar-se fic a r n um a
p o sição d a q u al nem a d e sc u lp a m a is b en ev o len te nem a m ais b e­
n ev olen te atitude dos e sp e c ta d o res possam salvá-lo. A o p ro fe rir um a
in v e rd a d e , e x ig e -s e q u e o a c to r m a n te n h a a s u a so m b ra de u m a
ironia na voz, de m an eira a que, no caso de se r su rp re en d id o , p o ssa
d e s m e n tir q u a lq u e r a c u s a ç ã o d e q u e e s ta v a a fa la r a s é r io p a ra
su ste n ta r que se tra ta v a ap e n a s d e um g racejo. A o fa ls ific a r a sua
ap arên c ia física, o acto r d ev erá u tiliz a r um m étodo q u e lhe c o n sin ta
um a d escu lp a inocente. A ssim , u m hom em calv o q u e usa um ch ap éu
den tro e fora de casa será m ais o u m enos perd o ado, um a vez q u e é
possív el q u e ten h a frio, q u e se. te n h a esquecido d e tirar o ch ap éu ou
que receie s e r ap an h ad o pela c h u v a em co n d içõ es im p re v istas; m as
u m a p eru c a , em c o n tra p a rtid a, n ã o p erm ite ao q u e a u sa q u a lq u e r
d e sc u lp a nem a au d iên cia q u a lq u e r d escu lp a q ue a p erm ita d escu lp á -
-lo . E m certo sentido, p o rtan to , categ o ria d e im p o sto r, a q u e atrás
já no s referim o s, ap lica-se ít p e ss o a q u e torna im p o ssív el à aud iên cia
u m a atitu d e de tacto perante a s u a rep resen tação d istorcida.

A d esp eito do fa c to de os a c to re s e a au d iên cia po d erem em p re g ar


to d a s e s ta s té c n ic a s d e a d m in is tr a ç ã o d a s im p r e s s õ e s , a lé m de
m u itas outras q ue n ão m e n c io n á m o s, sabem os, sem d ú v id a, q u e sc
verificam acidentes e q u e p o r v e z e s as audiências o b têm um relan c e
d o que se p assa p o r trás d o p alco d e um desem p enho. Q u a n d o é esse
o caso, os m em bros da a u d iê n c ia ap ren d em por vezes u m a lição im ­
p ortan te, m ais im p o rtan te do que o p razer agressivo que ex traem d a
d e sc o b e rta d o s se g re d o s in c o n fe ssá v e is, c o n fid en c iais, in te rn o s ou
estratégico* de outras pessoas. C o m efeito, os m em bros da au d iên cia
ta lv e z d e sc u b ra m e n tã o u m a d e m o c ra c ia fu n d a m e n ta l, q u e g e ra l­
m ente perm anece, esco n d id a. Q u e r a p erso n ag em rep resen ta d a seja
d isc re ta ou d e sp reo cu p ad a, de a lta con d ição ou d c co n d iç ã o inferior,
o in d iv íd u o que a assu m e será v is to pelo q u e na realid ad e, cm boa
m edida, é: u m a c to r so litário , o p re ssiv a m e n te p reo c u p ad o c o m o seu
d esem p en h o . P o r trás de n u m e ro sa s m áscaras c n u m ero sas p e rso n a ­
g en s, o a c to r ten d e a p o ssu ir um só aspecto , um a r d e sp id o e não so ­
cia liza d o , um a r dc c o n c e n tra çã o , um a r de alg u ém q u e a títu lo pes-
276 Erving Coliman

soai se vê a b ra ç o s co m u m a tarefa d ifícil e traiço eira. S im one de


B e au v o ir ilu slra-o d o seguinte m odo. no seu liv ro so b re as m ulheres:

E ap e sa r de to d a a sua p ru d ên cia, há im p rev isto s: ento rn a-se-


-Ihc vin h o no vestid o , ou um cig arro q u eim a-o ; o q u e assin ala o
d esa p a re cim e n to d a c riatu ra ex u b eran te e festiva q u e se en tendia
co m um o rg u lh o so rrid en ie na sala de b aile, p ois a m u lh e r assu m e
a g o ra ap arên cia se v e ra e séria da dona d e casa; to rna-se im e d iata ­
m ente e v id en te q u e a su a toileiic não era um elem e n to p ré se n lo
co m o o fogo de artifício , um a e x p lo são tran sitó ria d e esplendor,
ten d o p o r d eslin o a ilu m in ação p ró d ig a de um instante. T rata-se
an tes de u m a riq u eza, dc um cap ital e de um in v e stim en to ; sig­
n ifica sacrifício ; a sua p e rd a rep resen ta um a d e sg ra ça real. A s n ó ­
doas. os rasg õ es, os d efeito s d e um v estid o ou d e um pen tead o são
ca tá stro fe s ain d a m ais sérias d o q ue um p ra to q u e im a d o ou um a
p eç a de louça p artid a; p orque a m u lh er q u e obedece à m oda não
se p ro je c ta a p e n a s n as c o is a s , m a s e s c o lh e tra n s fo rm a r-s e ela
p ró p ria n u m a c o isa , e o m u n d o a m e a ç a -a d e fo rm a d ire c ta . A s
suas relaçõ es corn as m odistas e ch ap eleiras, a su a in q u ietação , as
su as e x ig ê n c ia s e strita s, tu d o isso m a n ife sta a se rie d a d e d a sua
atitu d e e o seu sen tim en to de in se g u ra n ç a .-8

S aben d o q u e os espectadores são capazes de ficar co m u m a m á im ­


pressão a seu respeito, o indivíduo poderá sentir vergonha de um q u a l­
q u er acto bem intencionado e honesto só pelo facto de o contexto do
seu desem p en h o d ar lugar a falsas im pressões, que são m ás. A o sentir
e ssa v e rg o n h a in ju stific a d a , se n tirá ta lv e z q u e os seu s .sentim entos
estão a ser observados; sentindo-se assim sob observação, p o derá sentir
que a su a ap arên cia co n firm a as falsas conclusões form adas a seu res­
peito. Poderá en tão ag rav ar a precaridade d a su a posição em penhando-
-se em m anobras d efensivas, com o as q ue em p regaria caso fosse rea l­
m ente culpado. A ssim é possível que cada um de nós se transform e
para si próprio, p o r m om entos, na p ior pessoa que podem os im aginar
q u e os outros se ja m capazes de im aginar que som os.

^ I)e Beauvoir, op. cit.. p. 536.


A Apresentação tio F.u na Vida dc Todos os Dias 277

E na m ed id a um q u e o in d iv íd u o sustenta p eran te o s o u tro s um es-


pectáeu lo em q ue ele pró p rio n ã o acred ita, e x p e rim en ta rá um a form a
p a rtic u la r de alie n a ç ão de si e u m a form a p articular de d e sc o n fian ça
peran te os outros. C o m o d iz ia u m a jo v e m am ericana:

A s v e z e s fa ç o -m e “d e s e n te n d id a ” n o c a p ítu lo d o s e n c o n tro s,
m as isso cau sa m á im p ressão . O s sentim en tos co m p lic am -se. U m a
p arte de m im g o s ta d e “e n g a n a r” um rapaz q u e não d e sco n fia d c
nad a. M as e s s a s e n sa ç ã o de su p e rio rid a d e so b re ele m istu ra -se
co m sen tim en to s de cu lp a d e v id o s à m inha hip o crisia. N a altu ra
m arcad a para o “e n c o n tro ” , s in to certo d esdém p o r ele, ao vê-lo
“le v a d o " pela m in h a técn ica, o u , se gostar do rapaz, sinto por ele
u m a e sp é c ie d e c o n d e s c e n d ê n c ia m a te rn a l. O u tra s v e z e s, fic o
re sse n tid a co m ele! P o r q u e é q ue ele n ão h á -d e se r su p e rio r a
m im , co m o um h o m em te m o b rig a ç ã o de saber ser, para m e d e ix a r
scr eu m esm a? Q ue estou eu a fazer aqui com ele? C arid ad e?
E o q u e tem g raça é q u e o rapaz, ach o eu. nern sem p re 6 tão
ingénuo co m o p arece. Talvez p ressin ta a v erd ad e e fique pouco à-
-v o n ta d e . “ Q u e a titu d e d e v o e u to m ar? E sta rá e la a rir-se para
c o n sig o ou a fa la r a sério q u a n d o m e e lo g ia ? F ic o u re a lm e n te
im p ressio n ad a co m o que eu d is s e ou te rá fin g id o ap enas que não
p e rc e b e nada dc p o lític a ? ” F d e vez em q u an d o a ch o q u e sou eu
q u e m faz figura de p arv a; elo d e te c ta os m eu s e stra ta g e m as c des-
p reza-m c p o r m e d e sc o b rir c a p a z de agir assim .29

T ais são alg u n s d o s p ro b le m a s d ram atú rg icos d a co n d ição h u m a­


na: os p ro b lem as de e n c e n a ç ã o p artilh a d o s; a p re o c u p a ç ão co m o
m o d o c o m o as coisas se m o stra m ; os sentim entos ju stific a d o s ou in­
ju stific a d o s de v erg o n h a; a a m b iv a lê n c ia que o ind iv íd u o sente em
relação a si p ró p rio e à sua a u d iê n c ia ...

K ormrnvskv. op. cit . p. 1SS.


VII
Conclusão

O Quadro

U m a o rg a n iz a ç ão .social é q u a lq u e r e sp a ç o ro d e ad o p o r b a rre ira s


p e rc e p tiv a s fixas o n d e tem lu g a r regu larm ente d eterm in ad a esp écie
d e a c tiv id a d e . S ugeri q u e q u a lq u e r o rg an ização so cial p o d eria se r
v a n ta jo sa m e n te e stu d a d a d o p o m o de v ista d a a d m in is tra ç ã o d a s
im p re s s õ e s . P a re d e s d e n tro d c q u a lq u e r o rg a n iz a ç ã o s o c ia l, e n ­
co n tram o s um a eq u ip a de a c to re s que co o p eram entre si para a p re ­
se n ta r a u m a au d iên cia u m a c e ita d efinição ria situação. O q u e im ­
plica u m a c o n cep ção da e q u ip a d e que se fa z p a rte e d a a u d ien cia,
b e m c o m o c e rta s s u p o s iç õ e s e rn rela ç ã o às re g ra s d c c o m p o rta ­
m en to que d e v e m se r o b s e rv a d a s cm te rm o s de co rte sia e deco ro .
M u itas vezes d esco b rim o s ig u a lm e n te u m a d iv isã o e n tre a região de
traseiras, onde se p re p a ra o d e se m p e n h o d e u m a p rática d c rotina, e
u m a reg ião de fachada, o n d e o d esem p en h o é ex ib id o . O a ce sso a
cad a u m a d e sta s reg iõ es <5 c o n tro la d o de m odo a im p ed ir q u e a a u ­
d iê n c ia v eja o s b a s tid o re s e d c m odo a im p e d ir que o s e stra n h o s
p en etrem num d esem p en h o que. não se lhes destina. E n tre os m em ­
b ro s d a e q u ip a , v erificam o s q tte p re d o m in a a fam iliarid ad e que é.
p ro v áv el a fo rm ação d c u m a so lid a rie d a d e m útua, e que o s segredos
su s c e p tív e is de c o m p ro m e te r o e s p e c tá c u lo sào p a rtilh a d o s e d e ­
fendidos. M an tém -se um a c o rd o tácito en tre os a c to res e a a u d iên cia
n o sen tid o de ag irem corno se e n tre um a c o u tra parte e x islisse u m a
d ad a m edida de c o n c o rd â n c ia e u m a d a d a m edida de o p o sição . É de
reg ra, e m b o ra nem se m p re a c o n te ç a , q u e a co n c o rd â n cia se ja su b li-
280 ürving Goffman

n h a d a c a o p o s iç ã o d e ix a d a u m ta n to n a s o m b ra . O c o n s e n s o
funcio n al re su lta n te lende a se r d esm en tid o p ela atitu d e para c o m a
a u d iê n c ia e x p re s s a p e lo s a c to re s na a u sê n c ia d o s e s p e c ta d o re s e
p ela co m u n ic a ç ão d e slo c a d a , o b jecto de uni c o n tro lo aten to , que tem
lu g a r e n tre o s a c to re s n a p r e s e n ç a d a a u d iê n c ia . O b s e rv a m o s a
em erg e n c ia de p a p é is d isc o rd a n te s; a lg u n s dos in d iv íd u o s q u e a p a ­
ren te m e n te são c o m p a n h e iro s de eq u ip a , o u e sp e c ta d o re s , ou e le ­
m ento s e stra n h o s, ad q u irem in fo rm açõ es sobre o d ese m p e n h o e as
relaçõ es corn a eq u ip a que n ão sào im ed iatam ente ev id en tes e que
c o m p lic a m o p ro b lem a q u e 6 lev ar a cab o u m a ex ib ição . P o r v ezes
o c o rre m ru p tu ra s d ev id as a g esto s in v o lu n tário s, passos em fa lso e
c en as, e e sta s ru p tu ra s d e sm e n te m ou c o n tra d iz e m a d e fin iç ã o da
s itu a ç ã o q u e se d e v e m a n te r. A m ito lo g ia d a e q u ip a o c u p a r-s e -á
d e ste s facto res dc ruptura. V em os que os acto res, a au d iê n c ia c os e s­
tra n h o s, to d o s e le s u tiliz a m té c n ic a s d e s a lv a g u a rd a d a e x ib içã o ,
q u e r ten tan d o e v ita r ru p tu ra s p rováveis q u er co rrig in d o as p e rtu rb a ­
ç õ e s q u e n ã o foi p o s s ív e l e v ita r, o u p e rm itin d o q u e o s o u tro s o
façam . P ara g a ra n tir q ue estas técnicas serão u tilizad as, a e q u ip a te n ­
derá a se le c c io n a r m em b ro s q u e sejam leais, d isc ip lin a d o s e c ir­
c u n sp ecto s. e a e sc o lh e r u m a au d iê n c ia cap az d e tacto.
E stes traço s e e le m e n to s incluem , em seg u id a, o q u a d ro q u e co n ­
sid ero s e r c aracterístico de b o a parte d a in teracção so cial, tal co m o a
c o n h e c e m o s e m s itu a ç õ e s “ n a tu r a is ” na n o s sa s o c ie d a d e a n g lo -
a m e ric a n a . E ste q u a d ro é form al e ab stracto no sen tid o e m q u e pode
s e r a p lic a d o a q u a lq u e r fo rm a s o c ia l; c o n tu d o , n à o 6 u m a m e ra
c la s s if ic a ç ã o e s tá tic a . O q u a d ro d c r e f e r ê n c ia v is a o s a s p e c to s
d in âm ico s criados p e la m o tiv ação de su sten tar um a d e fin içã o d a si­
tuação p ro jectad a d ian te do o u tra s pessoas.

O Contexto da Análise

E ste estu d o p reo cu p o u -se so b retu d o com as o rg a n iza çõ es so ciais


e n q u a n to s is te m a s re la tiv a m e n te fe c h a d o s . C o n s id e r á m o s q u e a
rela ç ã o de u m a o rg a n iz a ç ão co m as o u tras co n stitu i por si p ró p ria
u m a á re a de estu d o in telig ív el, d e v en d o ser a n a litic a m e n te tra ta d a
A Apresentação do F,u na Vida de Todos os Dias 281

co m o p a rte dc um a o rd e m d e fa c to s distinta — a o rd em d a in te g ra ­
çã o in stitu c io n a l. T al v ez se ja b o m te n ta rm o s s itu a r a p e rsp e c tiv a
ad o p ta d a p o r esta in v e stig a ç ã o n o co n te x to de o u tras p e rsp e ctiv as
q u e p arecem ser as m ais h a b itu a lm e n te utilizad as, d e m o d o im p lícito
Olí e x p líc ito , na in v e s tig a ç ã o d a s o rg a n iz a ç õ e s s o c ia is e n q u a n to
sistem as fech ad o s. In d icarem o s, a título p ro v isorio, q u a tro p ersp ec­
tiv as d e sse tipo.
U m a o rg an ização p o d e se r o b se rv a d a “tecn icam en te” , em term os
d a su a e fic á c ia e in e fic á c ia e n q u a n to sistem a in ten c io n alm en te o r­
g a n iz a d o dc a c tiv id a d e s e m v is ta d a re a liz a ç ã o d e o b je c tiv o s d e
an tem ão d efin id o s. U m a o rg a n iz a ç ã o pode se r c o n sid e ra d a "p o liti­
ca m e n te ” . nos term o s d as a cçõ es q u e cada p articipante (ou classe de
p artic ip a n te s) p ode e x ig ir de o u tro s p articip antes, do s tipos de pri­
v açõ e s e c o n cessõ es c o n ferid as e m função de tais e x ig ê n cia s, e dos
tip o s d e co n tro lo social q u e g o v e rn a m este ex ercício de co m an d o e
este u s o de sanções. U rna o rg a n iz a ç ã o pode ser o lh a d a “e stru tu ra l­
m en te” . nos term o s d a s d iv isõ e s d e estatu to h o rizo n tais e v erticais e
d o s tip o s de relaçõ es so ciais q u e p õ e m os d iv ersos gru p o s em c o n ­
tacto u n s c o m os o u tro s. P o r fim , um a o rg an ização p o d e s e r v ista
“ c u ltu ra lm e n te ” , nos term o s d o s v alores m oráis q u e in flu e n c ia m a
sua a c tiv id ad e — re fe rindo-sc os v alores a m odas, ao s co stu m e s e a
q u estõ e s de gosto, à co rtesia e ao decoro, aos fins últim o s e às restri­
çõ es n o rm ativ as d o s m eios e m p re g u e s, etc. D ev em o s n o ta r que to ­
dos o s factos qtic p o ssa m se r d e sc o b e rto s acerca de u m a o rg an ização
são relev an tes para cad a u m a d a s q uatro perspectivas traçad as, e n ­
q u an to cad a urna d elas atrib u i u m a prioridade e u m a ordem próprias
a cad a um d o s facto s em qu estão .
S e g u n d o creio, a a b o rd a g e m d ra m a tú rg ic a co n stitu irá u m a q u in ta
p ersp e c tiv a , q u e sc so m a às p e rsp e c tiv a s técnica, política, estrutural
c c u ltu ra l1. A p e rsp e c tiv a d ra m a tú rg ic a. com o cada um a das outras
q u a tro , p ode ser u tiliz a d a co m o p o n to term inal d a an álise, ou seja,
c o m o um a m o d alid ad e final de o rd e n a ç ã o dos factos. O que n o s le-

• C om pare-se este ponto de vista com u posição assum ida por O sw ald Hali cm
r d ação às perspectivas possíveis c investigação dc sistemas fcchados cm "M ethods
and Techniques o f Research in Human R elations" (Abril. 1952). in E. C. Hughes t:i
o'... Cases on Field Work (no prelo).
282 Hrving Goffman

v a rá a d e s c re v e rm o s a s té c n ic a s de a d m in istra ç ã o d a s im p re ssõ e s
u tiliz a d a s num a o rg an ização d ad a, os prin cip ais pro b lem as d e ad m i­
nistração d as im p ressõ es n a o rg an ização , e a id en tid ad e e as inter-
-relaçõ es das d iv e rsa s equipas de d e sem p en h o q u e actu a m n a o rg a­
nização . M as, tal co m o aco n tece co m os factos u tilizados por cada
um a d a s re sta n te s p e rsp e c tiv a s, os fa c to s q ue se re fe re m e s p e c ifi­
c a m e n te à a d m in istra ç ã o d as im p ressõ es tam b ém têm o seu papel
n o s a s p e c t o s d e q u e se o c u p a m t o d a s a s o u tr a s p e r s p e c t i v a s
co n sid erad as. T alv ez s e ja útil q ue o ilustrem os resu m id am en te.
A s p e r s p e c tiv a s té c n ic a s e d ra m a ltírg ic a s c ru z a m -s e d e m o d o
ta lv e z esp e c ia lm e n te claro , no que se refere ao s critério s d e trab alh o .
P a ra am b a s as p ersp ectiv as, 6 im p o rtan te o facto de um co n ju n to de
in d ivíd u o s se p reo cu p ar com a verificação d as cara cterística s c q u a ­
lid a d e s n ão im e d ia ta m e n te m a n ife s ta s d o tra b a lh o p ro d u z id o p o r
outro c o n ju n to d e in d iv íd u o s, ao passo que e s te se g u n d o c o n ju n to
te n ta d a r a im p re ssã o de q u e o seu p ró p rio tra b a lh o in te g ra esses
atrib u to s o cu lto s. As p ersp ectiv as p o líticas e d ra m atú rg icas cru zam -
-se n itid a m e n te no q u e se re fe re às c a p a c id a d e s d e um in d iv íd u o
p a ra d irig ir a activ id ad e de o u tro . E m p rim eiro lugar, qu an d o um in­
d iv íd u o q u er d irig ir a a c tiv id a d e d e outros, m u itas vezes a ch a rá útil
m an ter e sco n d id o s deíes c e rto s seg red o s estratég icos. A lém d isso , se
te n ta r d ir ig ir e s s a a c tiv id a d e d e o u tro s a tra v é s d o e x e m p lo , d o
esclarecim en to , d a p ersuasão, d a co m u n icação , d a m an ip u lação , d a
au to rid ad e, da am eaça, d o castig o ou da co erção , lerá n ecessid ad e,
in d e p en d en tem em te da su a posição, de lhes tra n sm itir co m eficácia
o q u e p re te n d e q u e se ja fe ito , o q u e e s tá d is p o s to a fa z e r p a ra
c o n s e g u ir q u e is s o s e ja f e ito e o q u e fa rá se isso n ã o fo r fe ito .
Q u a lq u e r tip o d e p o d e r d e v e rá re v e s tir-s e d o s m e io s q u e o m a ­
n ifestem , e os seus e fe ito s serão d iferen tes seg u n d o as re sp ec tiv as
dram atizaçõ es. (S em dúv id a, a c a p acid ad e de tra n sm issã o efica z de
um a d e fin iç ã o d a situ a ç ã o será de p o u c a u tilid a d e sc o ind iv íd u o não
e stiv e r e m co n d içõ es de fo rn e c e r um ex em p lo , urna retrib u ição , um
castig o , etc.) A ssim , a fo rm a m ais o b jectiv a d o p o d er nu, ou seja, a
co a cç ão física, n ão é m u itas vezes nem o b je c tiv a nem nua, fu n c io ­
n a n d o a n te s c o m o u m a r e p r e s e n ta ç ã o d e s tin a d a a p e r s u a d ir a
a u d ien cia; é m uitas vezes, p o r isso, m ais um m eio de co m u n ic ação
A Apresentação do Eu na Vida dc Todos os Dias 283

d o que u m s im p le s m e io d e a c ç ã o . A s p e rs p e c tiv a s e s tru tu ra is e


d ram a u irg ic as p arecem cru zar-se m ais claram ente do que nunca no
q u e se refere à d istan cia social. A im ag em q ue um g ru p o e sta tu ta rio
é c a p a z d e s u s t e n t a r f r e n t e a u r n a a u d ie n c ia c u jo s m e m b r o s
p erten cem a o u iro s estatu to s d e p e n d e rá da c a p acid ad e d o a c to r para
lim ita r o c o n tacto cm term o s de c o m u n ic a ç ão co m a au d ien cia. A s
p e r s p e c tiv a s c u ltu r a is e d r a m a tú r g ic a s c r u z a m - s e d e m o d o n ã o
m e n o s c la r o n a a f ir m a ç ã o c o n tin u a d a d o s c r ite r io s m o ra is . O s
v alo res cultu rais de u m a o rg an ização determ inarão co n cretam en te o
m o d o d c ver d o s participantes a c e rc a de num erosos ternas c, ao m es­
m o le m p o , e s ta b e le c e m um q u a d r o d e a p a rê n c ias a sa lv a g u a rd a r,
se ja m ou não estas últim as a p o ia d a s p o r sentim entos subjacentes.

Fe rs o/v i liilade-Itue racção-Soci e.dad e

N os ú ltim o s anos tem os a ss is tid o a d iv erso s esfo rç o s de e la b o ra ­


ção, v isa n d o in c lu ir num só q u a d ro as noções e facto s resu ltan te s de
trê s d ife re n te s áreas de in v e stig a ç ã o : a p erso n alid ad e in d iv id u al, a
in te r a c ç ã o s o c ia l e a s o c ie d a d e . G o s ta r ia d e a d ia n ta r a q u i u m
c o n trib u to su p le m e n ta r a e sta s te n ta tiv a s interdisciplinares.
Q u a n d o um in d iv íd u o surge d ia n te d e outros, p ro jecta, co n sc ien te
e inco n scien tem en te, u m a d e fin iç ã o da situação, d a q u a l um a certa
c o n c e p ç ã o d e si p ró p rio con stitu i u m elem ento im portante. Q uando
sc d á u m aco n tecim en to , in c o m p a tív e l em term os ex p ressiv o s co m a
im p re ssã o assim visada, fazem -se s e n tir co n seq uências relev an tes si­
m u ltâ n e a s a trê s n ív e is d a r e a lid a d e so c ia l, im p lic a n d o c a d a um
d este s um diferente pon lo d e re fe rê n c ia e u m a o rdem d c factos d ife ­
rente.
E m p rim e iro lu g ar, a in te r a c ç ã o so c ia l, tr a ta d a a q u i e n q u a n to
d iá lo g o e n tre as d u a s e q u ip a s, p o d e d a r lu g a r a u m a in te rru p ç ã o
e m b a ra ç a d a e co n fu sa; a situ ação d eix ará dc e sta r d e fin id a , as p o ­
sições an terio res d eix a rã o de se r su sten táv eis c os particip an tes fica­
rã o d e sp ro v id o s de um d e te rm in a d o m ap a de acção. N essa altu ra , a
situ aç ã o p assará co m o q u e a s o a r-lh e s m al, e eles sen tir-se -ão e m b a ­
raç ad o s, c o n fu so s e, literalm en te, d esco n certad o s. P o r o u tras p a la ­
2S4 Hrving Coffman

vras, o siste m a social em m in iatu ra c riad o e m an tid o p o r u m a in te­


ra cç ã o so cial o rd e n a d a d c so rg a n iz a -se . T ais sã o as c o n se q u ê n c ia s
q u e a ru p tu ra a c a rreta d o p onto de v ista da interacção social.
E m se g u n d o lugar, além d estas co n se q u ê n c ia s m o m e n tán e as d e ­
s o rg a n iz a d o ra s d a a c ç ã o , as ru p tu ra s d o d e s e m p e n h o p o d e m te r
efeitos de m ais longo alcance. As audiencias tendem a aceitar o “e u ” ,
projectad o pelo a c to r individual durante q ualquer d e sem p en h o habi­
tu a l corn o um rep resen tan te responsável do seu g ru p o de colegas, da
s u a e q u ip a e d a su a o rg a n iz a ç ã o so c ia l. O s e s p e c ta d o re s a c e ita m
igualm ente o d esem p en h o p articular d o in dividuo com o prova d a sua
capacidade de d esem p en h ar a p rática dc ro tin a a ele asso ciad a e até
m e sm o c o m o p ro v a d a s u a c a p a c id a d e d e d e s e m p e n h a r q u a lq u e r
prática d e rotina. E m certo sentido, essas unidades sociais m ais vastas
— q ue são as equipas, as organizações, etc. — são postas em q u estão
sem pre q ue o in d iv íd u o d esem p en h a a sua rotina; cm ca d a um dos
desem p en h o s a legitim idade d essas unidades renderá a ser verificada
de novo e o seu n o m e ad q u irid o está em causa. E ste g én e ro de efeito
to rn a -s e p a rtic u la rm e n te in te n so em c e rto s d e se m p e n h o s. A ssim ,
quan d o um ciru rg ião e a en ferm eira q u e o assiste se afastam da m esa
de o p erações e o paciente anestesiad o cai da m esa e m orre, a operação
não só é p e rtu rb a d a d e m o d o e m b a ra ç o s o , c o m o a re p u ta ç ã o do
m édico, en q u an to m édico e en q u an to hom em , e a do hospital poderão
sofrer p o r isso. T ais são as co nsequências que as rupturas poderão as­
su m ir d o p onto de vista d a estrutura social.
P o r fim , v e m o s m u itas v ezes q ue o in d iv íd u o m o b ilizará em p ro ­
fu n d id a d e o seu “c i f n u m a id en tificação co m u m d a d o papel, o r­
g a n iz a ç ão ou g rupo, e n u m a im ag em de si p ró p rio co m o elem ento
q u e n ão p ertu rb a a in teracção social nem c o m p ro m e te as u n idades
so ciais que d e p en d em d essa in teracção . Q u an d o se d á um a ruptura,
p o d e re m o s, p o rta n to , a s s is tir a um d e s m e n tid o d a s im a g e n s d e si
p ró p rio em to m o d a s q u ais o a c to r c o n stru iu a sua p e rso n a lid ad e .
T ais são as c o n se q u ê n c ia s q ue as ru p tu ras d o d ese m p en h o p o d erão
ac arreta r d o p o n to dc v ista d a person alid ad e in dividual.
A s ru p tu ra s d o d e se m p e n h o têm assim e fe ito s a três n ív eis d is ­
tin to s d c a b stra c ç ã o : p e rs o n a lid a d e , in te ra c ç ão e e s tru tu ra so cial.
E m b o ra a p ro b a b ilid a d e d a ru p tu ra v arie m u ito de in tera cção para
A Apresentação do F.u na Vida dc Todos os Dias 285

in te ra c ç ã o , p arece, a p e s a r d isso , n ão h av er in te ra c ç ã o na q u al os
p artic ip a n te s n ão ten h am u m a p o ssib ilid a d e razo áv el de fica r le v e ­
m e n te e m b a ra ç ad o s ou um a lev e possib ilid ad e de serem p ro fu n d a ­
m e n te h u m ilh a d o s. A v id a p o d e n ão sc r bem um jo g o , m as é -o a
in te ra c ç ão . A lém disso, n a m e d id a e m que o s in d iv id u o s se esforçam
p o r e v ita r ru p tu ras ou p o r c o rrig ir as q ue não foram e v itad as, esses
esfo rço s terão , lam bem eles, c o n se q u ê n c ia s sim u ltân eas a três níveis.
A q u i, p o r co n seg u in te, ternos um só m eio de articu lação dc três ní­
veis d e a b stracção e três p e rsp e c tiv a s n p artir d as quais pode sc r e s­
tu d a d a a vida social.

Comparações e Investigação

N este estu d o foram utilizados c o m o exem plos caso s de so cied a­


d e s q u e não se co n fu n d em co m a n o ssa socied ade an g lo -am e rica n a.
C o m esses ex em p lo s, n ão p re te n d i d iz e r que o qu ad ro aq u i a p rese n ­
ta d o é in d ep en d en te d o s facto res d e cu ltu ra ou aplicável no s m esm os
te r m o s às m e sm a s á re a s d a e x is tê n c ia so cial e m s o c ie d a d e s não
o c id e n ta is . A n o ssa v id a so cial d e c o r r e s o b re tu d o p o rta s a d e n iro .
E sp e c ia liz am o -n o s em c e n á rio s fix o s, no m an ter fo ra os estran h o s c
e m c o n c e d e r a o a c to r c e rto g ra u d c p riv a c id a d e q u e lhe p e rm ite
p re p a ra r-s e p ara a e x ib iç ã o . U m a v e z q ue te n h a m o s in ic ia d o u m
d e se m p e n h o , ten d em o s a le v á -lo a té ao fim , e so m o s se n sív e is às
n o ta s e m fa lso q u e e n q u a n to e le se d esen ro la p o s s a m o co rre r. Se
fo rm o s su rp re e n d id o s n u m a re p re se n ta ç ã o d isto rcid a, se n tim o -n o s
p ro fu n d a m e n te h u m ilh ad o s. A s n o ssa s regras dc d ra m a tiza çã o e as
nossas p red isp o siçõ es g lo b ais de g o v e rn o d a acção não d ev em fazer-
-n o s e sq u e c e r os asp ecto s d as o u tra s sociedades o n d e se o b servam
r e g r a s m a n if e s ta m e n te d i f e r e n te s . O s r e la to s e d e s c r iç õ e s d o s
v iaja n te s o cid en tais e stã o ch e io s d e ex em p lo s q u e n o -lo s m o stram
fe rid o s ou su rp re e n d id o s nos s e u s s e n tim e n to s d ra m a tú rg ic o s , e,
q u a n d o g en eralizam o s em fu n ç ã o d e outras cu ltu ras, te m o s que levar
e m co n ta tanto esses casos com o o u tro s, m ais fav oráveis. D ev em o s
e s ta r p ro n to s a reco n h ecer que, na C h in a, em b o ra a acção e o cen ário
p o ssa m se r tam b ém p ro d ig io sa m e n te h arm oniosos c c o ere n te s num
286 Erving Goffman

salão de c h á particu lar, há ig u arias de ex trem o requinte serv id as em


r e s ta u r a n te s e x tr e m a m e n te b a n a is , c o m o há lo ja s , q u e p a re c e m
ca seb res e c u jo s em p reg ad o s são pessoas dc m an eiras ru d es e d e sc a ­
ra d a s, o n d e e n c o n tra m o s , p e lo s c a n to s , em e m b ru lh o s d c p a p e l
pardo c velho, ro lo s de sed a d e um a d e lic a d e za e sp an to sa .2 E peran te
u m p o v o c o n s id e ra d o a te n tís s im o à s a lv a g u a rd a d a s a p a rê n c ia s ,
te re m o s <Je dispor-nos a a c e ita r que:

F elizm en te os C h in eses n ão a cred itam na p riv acid ad e do lar da


m esm a m aneira q u e nós. N ã o os incom oda q u e todos os a sp ecto s
d a su a ex istê n c ia q u o tid ia n a se revelem aos o lhos de q uem q u eira
dar-se ao trab alh o de olhar. () m odo co m o vivem , aq u ilo que c o ­
m em c a té m e sm o as d is c ó rd ia s fa m ilia re s , q u e n ó s te n ta m o s
e s c o n d e r d o p ú b lic o , sã o c o is a s q u e lh es p a re c e m d e n a tu re z a
co m u m , não p erten c e n d o a essa fam ília em particular, p ela qu al os.
ob se rv a d o re s tan to se in teressam .3

D o m esm o m odo d ev em o s sab er ver q u e. em so c ied a d es d o tad as


dc sistem as d e d e sig u a ld a d e social re g u la r e de acen tu ad a o rien tação
relig io sa, os in d iv íd u o s p o d erão em p en h ar-se m enos na a cç ão cívica
d o que nós nos em p en h am o s, atrav essan d o as b arre iras sociais com
g esto s sim p les, e a trib u in d o um g rau d e re c o n h ecim en to ao hom em
q u e s e e n c o n t r a p o r t r á s d a m á s c a r a q u e e x c e d e tu d o o q u e
po d erem o s co n sid e ra r ad m issív el.
A le m disso , terem o s q u e ser m u ito cau telo so s e m relaç ão a q u a l­
q u e r esfo rço de c a racterização d a n o ssa própria so cied ad e c o m o urna
u n id a d e g lo b a l n o q u e s e r e f e r e a p r á tic a s d r a m a tú r g ic a s . P o r
e x e m p lo , n as actu ais relaçõ es en tre a d m in istra ç ão e tra b a lh ad o res,
sab e m o s q u e u m a eq u ip a p o d e re a liz a r reuniões c o n su ltiv as co m a
oposição , co n serv an d o a id eia de q ue talvez tenha de a ssu m ir um a
atitude de m ajestad e o fe n d id a ao sair d o en co n tro . A s eq u ip as d ip lo ­
m áticas sào p o r vezes o b rig ad as a en c e n a r um e sp e c tá c u lo análo g o .
P o r ou tras palavras, em b o ra n a nossa socied ad e as eq u ip as sejam de

- M ac cowan, op. c/r., pp. 178-79.


J ¡bui., pp. I SO-8 1.
A Apresentação do Eu na Vida de T odos os Dias 287

um m odo geral lev ad as a e sc o n d e r a s u a ag ressividade so b a ta ch ad a


d c u m c o n se n so fu n cio n al, há o c a siõ e s em q u e a s m esm as eq u ip as
São levadas a e sco n d er a atitude de o p osição c o m ed id a por m eio da
m an ifestação de sen tim en to s in d ig n ad o s. Ig ualm ente, há alturas em
q u e os ind iv íd u o s, queiram -n o ou n ã o , sc sentem ob rig ad o s a d estru ir
u m a in te ra c ç ã o a fim d e s a lv a r e m a su a h o n ra e. p o s iç ã o . S e rá ,
p o rtan to , p ru d e n te co m eçarm o s o e s lu d o p o r u n idades m ais p e q u e ­
n as, o rg an izaçõ es so ciais ou g ru p o s d e o rganizações, ou p o r c a te g o ­
ria s d e te rm in a d a s, d o c u m en tan d o m o d e sta m e n te as c o m p a ra ç õ e s e
m u d a n ç a s atrav és d o m éto d o da a p re se n ta çã o de caso s. P o r ex em p lo ,
a c e rc a d as ex ib içõ es tid as c o m o le g ítim a s p o r parte, dos h o m e n s d e
n eg ó c io s, p o d em o s ler o seguinte:

O ú ltim o m eio sé c u lo a s s is tiu a um a a c e n tu a d a m u d a n ç a de


atitu d e d o s trib u n ais acerca do p ro b lem a d a c o n fia n ç a ju stific a d a .
A s d e cisõ es an terio res, so b a in flu ê n c ia da d o u trin a p re v ale cen te
do “ im p ed im en to de te rc e iro s” , a c e n tu a v am vig o ro sam en te o “d e­
ver” . p o r parte d o q u eix o so , d c s e p ro teg er a si p ró p rio e d e sco n ­
fiar d o seu adversário , e s u ste n ta v a m que u m a pessoa n ã o d e v ia
c o n fia r nem m esm o em d e c la ra ç õ e s p o sitiv as d e o rd e m factu al
p ro fe rid a s p o r a lg u é m co m q u e m e stiv e sse a tra ta r à d istâ n c ia .
C o n sid e ra v a -se q u e seria de e s p e ra r que q u a lq u e r p esso a ten tasse
sem p re q ue p o ssív el lo g ra r o u tra n o quadro dc um a tra n sa c ç ão , e
que só um louco teria co m o e x p e c ta tiv a a ap lica ção do s critério s
c o rre n te s de s e rie d a d e cm s e m e lh a n te s c o n d iç õ e s. P o rta n to , o
q u e ix o s o d e v ia in f o r m a r - s e c u id a d o s a m e n te e c h e g a r a u m a
o p in iã o pessoal acerca d essa s m a té ria s. O re co n h ec im en to d e um
n o v o crité rio é tic o no m u n d o d o s n egócios, e x ig in d o que as d e ­
claraçõ es de facto, pelo m enos. se ja m honestas e rig o ro sas, levou
a u m a q u ase co m p leta m u d an ça d e perspectiva.

E n co n tra-se hoje esta b e le c id o q u e as afirm açõ es de facto, sobre


a q u a n tid a d e ou q u alid ad e d o s b e n s ou terras v en d id a s, so b re o
esta tu to fin an ceiro d a s firm as, e so b re o u tro s asp ec to s d a s tra n ­
sacçõ es co m erciais, podem s e r ju stific a d a m e n te a c e ite s co m o d ig ­
nas dc c o n fia n ç a sem in v e stig a ç ã o prévia, n ão só q u an d o e sta seja
288 Ervins GoiTrnan

m o ro sa e d ifícil, com o, p o r ex em p lo , no c aso dc os terrenos n e­


g o c ia d o s seren í d ista n te s, m as tam b ém nos caso s crn q u e a fa l­
sid a d e d as a firm a ç õ es p o d e ria ter sid o d esco b erta, m e d ian te um
esfo rç o red u zid o e corn m eio s sim p les.4

M as, em b o ra a franqueza, nestes term o s, p areça crescen te, d isp o ­


m os. no m undo dos neg ó cio s, de c e rto s e le m e n to s factu ais que nos
dizem q ue os c o n se lh e iro s m atrim o n iais se a c h am de a c o rd o , num
n úm ero ca d a vez m aio r de ex em p lo s, p ara d eclarar q u e u m indivíduo
não d e v e sen tir-se o b rig ad o a c o n ta r ao c ô n ju g e os .seus "c a so s” a n ­
te rio re s . u m a v e z q u e isso só p o d e rá te r c o m o re s u lta d o te n sõ e s
d e sn ecessárias. P o d eríam o s c ita r o u tro s exem p los. S a b em o s, assim ,
q u e a té c e rc a d c 18 3 0 o s b a re s in g le s e s p o s s u ía m u m a z o n a dc
b a s tid o re s d e s tin a d a ao s tra b a lh a d o re s , q u e m al se d is tin g u ia d a
cozinh a, e que. a p ó s essa d ata, o “p alá c io d o g in ” irrom peu d e subito
no p a lc o , p ara lo m e c e r em b oa p a rte à m esm a clien tela um a região
de fa c h a d a m ais e le g a n te d o q u e te ria sid o p o ssív el sonhar.- P o s­
su ím o s d e scriçõ es de h istó ria so cial relativas a c e rta s c id a d e s am eri-
e a n a s q u e a s s in a la m um d e c lín io re c e n te d o s c u id a d o s de a p r e ­
sen tação das fa c h a d a s d o m ésticas o u dos tem p o s livres das classes
S u p e rio ra s lo c a is. E m c o n tr a p a r tid a , o u tro s te x to s fa la m -n o s d o
au m en to recente d o grau d a aten ção c o n ced id a ao c en á rio utilizad o
p o r parte das o rg an izaçõ es sin d icais6, e da te n d ê n cia cre sc e n te que
elas rev elam no sen tid o de d o ta r esse cenário c o m a acção d c e sp e­
c ia lis ta s d e te n to re s de fo rm a ç ã o u n iv e rs itá ria , q u e se d e stin a m a
g a r a n tir u m a a u ra d c p o n d e ra ç ã o e r e s p e ita b ilid a d e .7 P o d e m o s
d e te c ta r m u d a n ç a s na c o n fig u ra ç ã o dc c e rta s o rg a n iz a ç õ e s in d u s­
triais e co m erciais, p assan d o a fach ad a a a ssu m ir u m a m aio r im p o r­
tância, ta n to no q u e se refere ao asp ecto e x te rio r d o ed ifício p rin ci-

4 Prossçr, op. cfi.. pp. 749-50.


VI. Gorham c H. Dunnail, Inside lhe Pub. '¡Tie Archilcctural Press. Londres, 1950.
pp. 23-24.
^ Ver. por exemplo, Hunter, op. eil., p. 19.

’ V er Wileiisky. op. cif.. Cap. IV. p;ir;i urna anáiise tía tunçãn de “decoração das
m o n tras" ex ercid a por certo s e sp e c ia lista s. Em re 'a c ä o cum h c o n tra p a rtid a
comercial desta tendencia, ver R itm a n , op. ei!., pp. 138-39.
A Apresentação do Liu na Vida de T odos os Pías 289

pal. c o m o no q ue se refere às salas d c conferencias, átrios e salas de


espera no in terio r do edificio . P o d e m o s verificar, ñas co m u n id a d es
de a g ric u lto re s, co m o o e sta b u lo d o s an im áis, s im a d o o u tro ra nos
b astid o re s d a co zin h a e lig ad o a e s ta p o r urna p eq u eña p o rta ju n to ao
fo g ã o , a c a b o u p o r s c r c o lo c a d o a urna c e rta d is ta n c ia d c c a sa , c
co m o a p ró p ria casa, an terio rm en te d eix ad a ao d e sa b rig o no m eio do
ja rd im , dos eq u ip am en to s d e la v o u ra , do lixo e do feno. se o rie n ta
ag o ra, d e c e rto m o d o , s e g u n d o u rn a ló g ica d e re la ç õ e s p ú b licas,
c o m um p á tio fro n teiro ce rc a d o e m a n tid o cm co n d iç õ es de relativa
lim p eza, o sten tan d o um a face c o m p o s ta voltad a para a c o m u n id ad e,
en q u a n to os en tu lh o s sc a m o n to a m ao acaso na re g ião d as traseiras.
F. à m ed id a que a v ac a ria an ex a d e sa p a re c e e q u e o p ró p rio la v a ­
d o u ro se to rn a m en o s freq u en te, o b se rv a m o s a m e lh o ria d as in sta­
la ç õ e s d o m é s tic a s , o n d e a c o z in h a , q ue o u tro ra p o s s u ía os se u s
p r ó p r io s b a s t id o r e s , p a s s o u h o je a s c r a z o n a d a c a s a m e n o s
ap resen táv el, ao m esm o tem p o q u e se to m av a m ais a p re se n tá v el em
si p ró p ria . É d o m e sm o m o d o p o ssív e l c o m p ro v a r u m a te n d ê n c ia
social g e n e ra liz ad a q u e leva c e rta s fábricas, n av io s, re sta u ra n te s c
ca sa s dc fam ília a d ar tal im p o rtâ n c ia à lim p eza dos b a stid o re s que.
co rn o m o n g es, co m u n istas ou c o n se lh e iro s m u n icipais alem ães, os
s e u s g u a r d a s e s tã o s e m p re v i g i l a n t e s , n ã o d e ix a n d o s u b s i s t i r
q u a lq u e r foco d e p erig o que a m e a c e a fachada, e m b o ra ao m esm o
tem p o o s m em b ro s da a u d iê n c ia co m e c e m a sen tir-se já se d u zid o s
pelo Isso d a so cied ad e a pon to d c ten d erem a e x p lo ra r os sitio s q ue,
nos b astid o re s, fo ram lim pos, e m s u a intenção. O a ssistir a o s en saio s
d c u m a o rq u estra sin fó n ica p ro p o rc io n a -n o s apenas u m a das ilu stra ­
çõ es m ais recen tes d e c o n firm a ç ã o da tendência. O b se rv a m o s, com
efeito , aqui algo de novo, algo a q u e E verctl H u g h e s c h am o u m o b ili­
d ad e c o le c tiv a — um p ro c e sso a tra v é s d o qual o s in d iv íd u o s que
o c u p a m d e te r m in a d a c a te g o r ia te n d e m a a lte r a r o c o n ju n to d a s
tarefas q u e d esem p en h am , de m o d o a não lhes ser ex ig id o q u a lq u e r
a cç ão e x p ressiv am en te in co m p atív el com a im ag em d o :‘eu ” que. ao
m e sm o (em po, te n ta m afirm ar. E v e rific a m o s a e x istê n c ia , no in ­
te rio r das o rganizações, de um p ro cesso p aralelo, a que p o derem os
c h a m a r “co n q u ista de esta tu to ” , e d e acordo co m o qual d ete rm in a d o
m em b ro d a o rg an ização ten ta, n ã o tanto a c e d e r a u m a p o siç ão su-
290 Erving Goffman

perio r j á e sta b e le c id a, co m o c ria r para si um n o vo papel, um papel


im p lic a n d o ta re fa s q u e se a r tic u la m fa v o ra v e lm e n te , c o m e e rlo s
atrib u to s c a racterístico s d o in d iv íd u o e m q u estão . P o d e m o s e x a m i­
n ar cm term o s sem elh an tes o p ro cesso de esp e c ia lizaç ão a trav és do
qu al n u m ero so s acto res acab am p o r d a r u n ia b re v e u tiliz açã o co m u m
a q u a d ro s s o c ia is m u ito e la b o ra d o s , c o n te n ta n d o -se , d e p o is, c o m
d o rm ir so zin h o s num cu b íc u lo sem p reten sõ es. É -n o s p o ssív el a c o m ­
p a n h a r a d ifu sã o de fa c h a d a s d e e x tre m a im p o rta n c ia com o o
c o m p le x o de v id ro , aço in o x id á v e l, lu v a s de b o rra c h a , la d rilh o s
b r a n c o s e g u a r d a - p ó s d o s la b o r a tó r io s — q u e p e r m ite m a u m
n ú m e ro c r e s c e n te d e p e s s o a s lig a d a s a o d e s e m p e n h o d e ta re fa s
m en o s lim pas u m a esp écie de au to p u rificação . T om ando com o p o n to
de p a rtid a a te n d e n c ia de o rg a n iz a ç õ e s fo rte m e n te a u to ritá ria s no
sen tid o d e ex ig irem a u m a eq u ip a que e m p re g u e p arte do seu lem po
a d e ix a r em p e rfe ita o rd e m o q u a d ro de a c ç ã o o n d e o u tra e q u ip a
p r o c e d e r á a o s e u d e s e m p e n h o , o b s e r v a r e m o s ta m b é m , e m
org a n iz a ç õ es c o m o os hosp itais, b a se s aéreas e casas de fa m ília , um
d e c lín io ac tu a l d a rig id e z d o s c e n á rio s. F., p o r fim , v e rific a m o s a
d ifu sã o d o ja z z c d o s criterio s cu ltu ra is da W est C oast, en q u a n to os
te rm o s bit, g o of, scene, drag e dig p a ssa m a ser de u so c o rre n te ,
p e rm ilin d o aos in d iv íd u o s c o n s e rv a r q u a lq u e r c o isa d a re la ç ã o do
ac to r p ro fissio n al co m os a sp ecto s técn ico s dos seu s d e se m p e n h o s
qu o tid ian o s.

O Papel da Expressão E a Transmissão de. Uma Impressão do Eu

T a lv e z rne se ja c o n s e n tid a , a te rm in a r, um a n o la m o ra l. N e s te
trabalh o , o a sp e c to e x p re ssiv o da vida social foi a b o rd ad o en q u an to
orig em d e im p ressõ es d a d a s ou receb id as p elos o u tro s. H m c o n tra ­
p a rtid a . as im p re ssõ e s fo ra m tra ta d a s c o m o fo n te s de in fo rm a ç ã o
ac e rc a d e factos in ap aren tes e com o m eios a trav és dos q u ais o s d e s­
tin atário s p o d em o rie n ta r a su a resp o sta perante q u e m o s in fo rm a,
sem terem que esp e ra r pelo fech o global d as a cçõ es do em issor. A
expressão , p o r co n seg u in te, foi ajbordada nos term o s do papel com u-
n icacio n al q u e d e se m p e n h a d u ran te a in te ra c ç ão so c ia l e n ão . p o r
A Apresentação do Hu na Vida de Todos os Dias 291

ex em p lo , nos term o s de fu n ção J e realização ou de d esca rg a d e te n ­


sõ es de que se pode rev estir p ara o in divíduo que se e x p rim e .8
P arece e x istir um a d ia lé c tic a de fundo su b ja ce n te a to d a a in te­
ra cç ã o social. Q u a n d o um in d iv íd u o su rg e na p re se n ç a de o u tro s,
prete n d e d e sc o b rir o s factos que defin em a situ ação em q u e se en ­
contra. Se p o ssu ir essa in fo rm a ç ã o , p o d erá .saber, e le v a r em co n ta, o
qu e vai a c o n te c er a se g u ir e d a r ao s outros p resen tes o q u e lhes c
dev id o , de acordo co m um a v e rs ã o bem in te rp reta d a dos se u s p ró ­
prio s in teresses. Para d esco b rir n a ínteg ra a n a tu re za factual d a situ a ­
ção, se ria n ecessário ao in d iv íd u o estar na posse d a to ta lid ad e do s
d a d o s r e le v a n te s a r e s p e ito d o s o u tro s . () in d iv íd u o p r e c is a r ia
igu alm en te d c c o n h e c e r o d e sfe c h o efectivo ou p ro d u to finai d a a c ­
tiv id a d e dos o u tro s d u ran te a in teracção , bem corno o s se n tim en to s
m ais ín tim o s dos o u tro s em re la ç ã o à sua p essoa. R aram en te , porém ,
alg u é m te rá ao seu d isp o r to d a a in fo rm ação co rre sp o n d e n te: à falta
d e la , o in d iv íd u o te n d e a u ti l i z a r s u c e d â n e o s — p is ta s , p ro v a s ,
deix as, g esto s ex p ressiv o s, sím b o lo s de estatuto, etc. — co m o in stru ­
m en to s d e prev isão . Ern su m a . u m a vez que a re alid ad e co m que o
ind iv íd u o se e n c o n tra c o m e tid o é m o m en tan eam en te in ap reen sív el
na su a to talid ad e, o in d iv íd u o te rá de se v aler d a s a p a rê n c ia s d is­
p o n ív e is. E . p a ra d o x a lm e n te, q u a n to m ais o in d iv íd u o se en co n tra
em penhiido n u m a re a lid a d e a q u e a percep ção não lhe facu lta acesso,
m ais a su a aten ção sc c o n cen trará n a s aparências.
C) in divíduo ten d e a tra ta r o s o u tro s p resen tes seg u n d o a im p re s­
são que. no m o m en to actual, e le s v eicu lam em relação ao p assad o c
ao futuro. É aqui que os actos de c o m u n icação se trad u zem e m actos
m orais. A s im p ressõ es fo rn e c id a s p elos o u tro s ten d em a s e r c o n si­
d e rad as p retensões c p ro m e ssa s im p líc ita s, e as p rete n sõ es e p ro m e s­
sas têtn um c arácter m oral. P a ra consigo, o in d iv íd u o diz: “E sto u a
u sar estas im pressões vossas c o m o m eio de v o s v e rific a re d e v erifi­
c a r a v o ssa activ id a d e , e v o cês n ã o devem te n ta r e n g a n a r-m e .” O

® Uma abordagem recente deslc tipo pode encontrar-se e n Talcoii Parsons. Roben
F. Haies e Edward A. Shils. W orking P apers in ihr. Theory o f A ction. The bree
Press. G lencou, 111 1953. Cap. II. "T2ie T heory Df S ym bolism in R elation to
A ction"
292 Erviiig Goffman

que é im p o rta n te a este pro p ó sito é o ta c to de o in d iv id u o te n d e r a


a s s u m ir e sta a titu d e até m esm o q u a n d o e s p e ra q u e os o u tro s não
te n h a m c o n s c iê n c ia d c b o a p a r te d o s se u s c o m p o rta m e n to s e x ­
p ressiv o s e alé m esm o q u a n d o pode e sp e ra r o b le r v an tag em sobre os
outros na base da in fo rm ação q ue so b re eles recolhe. U rna v e z que
as fo n te s de in fo rm a ç ã o u tiliz a d a s p elo in d iv id u o -o b s e rv a d o r in ­
c lu e m u m a m u ltip lic id a d e de c rité rio s re fe re n te s à c o rtc s ia c ao
d e c o ro , ligados ta n to ao c o m é rc io social c o m o ao d ese m p e n h o dc
ta re fa s , p o d e m o s c o m p ro v a r d c n o v o , n e s te p o n to , c o m o a v id a
q u o tid ian a se e n c o n lra a trav essad a de lin h as m o ráis d istintivas.
A d o p te m o s a g o ra o p onto de v ista dos outros. Se estes se m o stra­
re m c a v a lh e ire s c o s e a c e ita re m jo g a r o jo g o d o in d iv id u o -o b s e r­
v ad o r, p re sta rã o u m a a te n ç ã o c o n s c ie n te re d u z id a ao fa c to dc e s­
ta re m a s e r fo rm a d a s im p re s s õ e s q u e os v isa m , m a s a g irã o sem
reserv a ou m á in ten ção , p e rm itin d o ao in d iv íd u o re c o lh e r im p ressõ es
v á lid a s a seu re s p e ito c a re s p e ito d o s seu s e sfo rç o s. JE se d ere m
a te n ç ã o a o facto dc e sta re m a ser o b se rv a d o s, não p e rm itirã o que
isso o s in flu e n c ie e x c e s s iv a m e n te , co n te n ta n d o -se com a id eia de
qu e o in d iv íd u o o b terá d eles u m a im p ressão ad equada, retrib u in d o -
-o s d e lo rm a ju sta . Se estiv erem in teressad o s e m influ en ciar o m odo
de tratam en to q u e o in d iv íd u o lhes co n ced e, e tal é de esp e ra r que
aco n teça, terão ao seu d isp o r um a m aneira d iscreta d e o fazer. B asta-
-Ihes o rie n ta r a su a acção no p resen te de tal m an eira q u e as suas co n ­
se q u ên c ia s futuras v en h am a ser d o tipo q ue le v a ria u m ind iv íd u o
ju s to a tratá-lo s d o m o d o co m o q u erem se r tratad o s; dep o is d c a g i­
re m assim , re sta -lh e s apenas c o n fia r na c a p acid ad e de p e rc ep ç ão e
ju íz o d o in d iv íd u o que os o bserva.
P o r vezes os em p reg ad o s em p reg am , ev id en tem en te, estes m eio s
ad equ ad o s no sen tid o d e in flu en ciarem o m o d o c o m o o o b serv ad o r
os trata. M as h á o u tra m aneira, m ais b rev e e m ais eficaz, atrav és da
qu al o o b s e rv a d o r p o d e in flu e n c ia r o o b serv ad o r. E m v e z de d e i­
x a re m q u e u m a c e rta im p re s s ã o d a su a a c tiv id a d e se d e s p re n d a
c o m o um pro d u to d e riv a d o c a cid en tal da activ id ad e q u e d e se n v o l­
v e m , os o b s e rv a d o s p o d e m re d e fin ir o seu q u a d ro de re fe rê n c ia ,
co n sa g ra n d o -se a um e sfo rç o d c c ria ç ã o d as im p ressõ es que desejam
suscitar. E m v ez de te n ta re m re a liz a r certos fin s atrav és d e m eio s
A Apresentação do Hu nu Vida dc Todos o? Dias 293

áçg ilá v e is, p o d em len lu r o b te r a im p ressão de q u e e sta o a re a liz a r


certo s fin s através de m eio s a c e itá v eis. H sem pre po ssív el m an ip u la r
a im p ressão q ue o o b se rv a d o r u tiliz a com o su c ed â n eo da realidade,
p o rq u e um sin a l da p re se n ç a d e u m a co isa, q u e n ã o é u m a co isa,
pode se r u tilizad o na su a a u sê n c ia . A p rópria n ec essid ad e em que o
o b se rv a d o r se en c o n tra de c o n fia r cm rep resentações d e co isas c ria a
p o ssib ilid a d e dc u m a falsa re p resen tação .
H á n u m ero so s g rupos dc p e s s o a s que ¿entem n ão p o d er p erm an e­
c e r no ex ercício de u m a a c tiv id a d e , seja ela qual lor, lim itan d o -se ao
u so de m eio s leais n o seu e x e rc íc io d estinado a in flu e n c ia r o in d iv í­
d u o q u e os o b se rv a . N u m m o m e n to ou n o u tro dü su a a c tiv id a d e
ach am n ecessário co lig ar-se e m a n ip u la r d ire c tam en te a im p ressão
q u e su scitam . O g ru p o d o s o b s e rv a d o s tom a~sc um a e q u ip a d e a c to ­
res e o o b se rv a d o r tra n sfo rm a -se e m audiência. O s a c to s q u e p a re ­
ce m ter o b jecto s co m o o b jecto tran sfo rm am -se e m g esto s d irig id o s
ao esp ectad o r. A activ id ad e é, a s s im , dram atizada.
C h e g a m o s ag o ra n d ia lé c tic a fu n d a m e n ta l. N a sua q u a lid a d e d e
acto res, os in d iv íd u o s p ro c u ra rã o su sten tar a im p re ssã o d e que vi­
vem de ac o rd o c o m os n u m e ro so s critério s q u e perm item av aliá -lo s,
bem co m o ao q ue fazem . U m a v e z que esses crité rio s são m ú ltip lo s
e instáv eis, os in div íd u o s e n q u a n to actores habitam , m ais d o q u e po­
d e r i a à p r im e ir a v is ta p e n s a r - s e , num m u n d o m o ra l. M a s , n a
q u a lid a d e dc acto res, os in d iv íd u o s estão c o m etid o s não com o p ro ­
blem a m oral da realização dos c rité rio s referidos, m as com o p ro b le ­
m a a m o r a l d a m o n t a g e m d e u m a im p r e s s ã o c o n v i n c e n t e d a
realiz a çã o d esses critério s. A n o s s a actividade articu la-se, p o rtan to ,
em larg a m edida, em term o s de q u e stõ e s m orais, m as en q u a n to a c to ­
res não nos p reo cu p am o s m o ra lm e n te com essas q u e stõ e s. E n q u an to
a cto re s so m o s n eg o cian tes de m o ra lid a d e . O n o sso d ia-a -d ia c o n sa ­
g ra -se à b u sc a de um c o n ta c to m a is íntim o com as m e rca d o rias que
ex ib im o s e o n o sso esp írito e m p e n h a -se em c o m p reen d ê-las m elhor;
m as c possível que. q u a n to m ais aten ção prestam os à s m ercad o rias,
m a is d i s t a n t e s n o s s i n t a m o s d e la s e d a q u e l e s q u e s ã o s u f i ­
cien tem en te créd u lo s p ara as c o m p ra r. Para nos se rv irm o s de outro
tip o d e im a g e n s, as p ró p ria s o b rig a ç ã o e v a n ta g e m de n o s m o s ­
tra rm o s s e m p re a u m a luz m o ra lm e n te c o rre c ta , d e nos a p re s e n -
294 Erving Gúffman

larm o s se m p re co m o p e rso n a g e n s so cialm en te co rrectas, fo rç am -n o s


a serm o s o tipo de p esso a q u e a s ex ig ên cias d o p alco d efinem .

A Encenação e o Eu

A ideia global de que. p e ra n te os o u tro s, p ro cedem os a u m a re p re ­


sentação, d ificilm en te seria consid erad a u m a n o v id ad e; o que d ev e­
m os su b lin h ar, a o concluir, é que a p rópria estru tu ra do eu p o d erá ser
c o n s id e ra d a s e g u n d o o m o d o c o m o , na n o s s a s o c ie d a d e a n g lo -
-am c ric an a , c o n se g u im o s p rep arar-n o s para esses d esem p en h o s.
N este estu d o , o in d iv íd u o foi im p licitam en te d iv id id o em d o is as­
p e c to s fu n d a m e n ta is : foi c o n s id e r a d o e n q u a n to a cto r, e n q u a n to
fa b ric a n te , sob p re ssã o , das im p re ssõ e s in c lu íd as n a ta re fa d e m a ­
siado h u m an a d a en cen ação de um desem p en h o ; e, ao m e sm o te m ­
po, fo i co n sid erad o en q u an to personagem , figura, c fig u ra essen cial­
m en te p o sitiv a , c u jo e sp írito , v ig o r e o u tra s q u a lid a d e s d ig n a s de
nota são e v o c a d o s p elo d esem p en h o . Os a trib u to s de um a c to r e os
atributo s d e u m a p erso n ag em são de o rd em d iferen te, a um nível dc
b a se , e m b o ra a m b o s o s a s p e c to s g a n h e m s e n tid o n o s te rm o s da
ex ib içã o a apresentar.
C o m e c e m o s p ela p erso n ag em . N a nossa so cied ad e, a p e rso n a g e m
que d e se m p en h am o s e o eu q u e so m o s são. até certo ponto, postos
c o m o e q u iv a le n te s , e este c u -c n q u a n to -p e rso n a g e m é g e ra lm e n te
co n sid e ra d o q u a lq u e r c o isa que h ab ita no in te rio r do co rp o de q uem
o po ssu i, so b retu d o nas suas p artes su p erio res, fo rm an d o u m a espé-
cic d c n ó d a p s ic o b io lo g ia d a p e rso n a lid a d e . J á indiquei q u e e sta
im ag e m faz im p lic ita m e n te p a n e d a q u ilo q u e to d o s nós te n ta m o s
m ostrar, m as q u e, p o r isso m esm o, fo rn ece um a a n á lise d eficien te da
rep resen tação a q ue se refere. N este trab alh o , o eu d e se m p en h ad o foi
co n sid e ra d o co m o u m a esp é c ie d c im ag em , g eralm en te cred ív el, que
o in d iv íd u o , co m o seu p alco e com a su a p erso n ag em , te n ta fa z e r
co m q ue os o u tro s v ejam nele. E m b o ra esta im ag em seja m an tid a a
respeito d o indivíduo, de tal m aneira que leva a q u e um eu lhe seja
im putad o , esse eu. e m si p róprio, não resulta d o seu detentor, m as do
co n ju n to global d a ce n a d a acção, se n d o p ro d u zid o por esse asp ecto
A Apresentação do Eu isa Vida dc Todos os Dias 295

dos» a c o n te c im e n to s lo c a is q u e o s to rn a in te rp re tá v e is p o r a q u e le s
q u e o s te s te m u n h a m . U m a c e n a c o r r e c ta m e n te e n c e n a d a e d e ­
se m p e n h a d a le v a a a u d ie n c ia a im p u ta r um eu a um a p erso n a g e m
d esem p en h ad a, m as essa im p u ta ç ã o — esse eu — é um produto da
c e n a a p r e s e n ta d a c n ã o a s u a ca u sa . 0 e u . p o r ta n to , e n q u a n to
perso n ag em d esem p en h ad a, n ã o é um a c o isa o rgânica, com u m a lo ­
calização d eterm in ad a, c u jo d estin o fu n d am en tal se resu m e cm ler
nascid o , a m ad u recer e m o rre r: é um efeito de o rd em d ram atú rg ic a
q u e r e s u lta d ifu s a m e n te d e u m a c e n a re p re s e n ta d a , e a q u e s tã o
d ec isiv a q ue se põe a seu resp eito , o seu p ro b lem a essen cial é o de
se r ou n ão ser acred itad o .
A o a n a lisa r o eu, a fa sta m o -n o s assim do seu titular, d a p esso a que
co m ele p e rd e ou gan h a, u m a vez que esta e o seu co rp o se lim ita m a
f o r n e c e r o c a b id e n o q u a l f i c a r á p e n d u r a d o p o r a lg u m te m p o
q u a lq u e r c o isa q ue re su lta de u m a p ro d u ção com um . O s m eios que
p ro d u z e m e m an têm os c u s não resid em no in terio r do cab id e; são
m eios q u e, de facto, se e n c o n tra m m u itas vezes g u ardados no in te ­
rio r d as o rg a n iz a ç õ e s ¿ o c iá is. E x istirá a ssim u m a região d c b a s ti­
dores c o n te n d o os u ten sílio s que d ão fo rm a ao corpo, e urna reg ião
de fach ad a d isp o n d o de certo s apoios fixos. E x istirá um a e q u ip a de
p esso as c u ja activ id ad e e n c e n a d a , a rtic u la n d o -se nos su p o rte s d is ­
p o n ív e is, c o n stitu irá a c e n a a p artir d a q u al em erg irá o eu d a p e r­
so n ag em d esem p en h ad a, e u m a o u tra eq u ip a, a au d iência, cu ja a c ­
tivid ad e d e in terp retação se re v e la n e cessária a e ssa em erg en cia. O
eu 6 um p ro d u to de to d as estas c o m b in a ç õ e s, e todas as su as partes
ex ib irã o as m arcas d essa origem .
O conjunto do m ecanism o da produção do eu é. sem dúvida, lento, e
por vezes falha, revelando os elem entos separados que o integram : co n ­
trolo dos bastidores; co n iv ên cia de equipa; tacto d a audiência; e assim
por diante. M as, quando bem lubrificado, perm ite que as im pressões
fluam a p artir d e si c o m a v elo cid ad e b a sta n te para nos c o lo c a r no
cam p o de um dos nossos tipos de realidade — o desem penho irá por
d ia n te e o eu e stá v e l c o n c e d id o a c a d a u m a d a s p e rso n a g e n s d e ­
sem penhadas parecerá e m a n a r de m odo intrínseco do seu actor.
P a s s e m o s a g o ra d o in d iv íd u o e n q u a n to p e rso n a g e m d e s e m p e ­
n h ad a ao in divíduo e n q u a n to actor. E ste tem a cap acid ad e d e apren-
296 lirving Goffman

der, e u tiliz a -a n a tarefa de se p rep arar p ara um papel. R susceptível


d e te r fa n ta sia s e so n h o s, a lg u n s d e sd o b ra n d o a g ra d a v e lm en te um
d esem p e n h o triu n fan te, o u tro s ch eio s d a a n sie d a d e c d o m edo n erv o ­
sam en te a sso ciad o s à ev en tu alid ad e de d esm en tid o s e sse n c ia is nu m a
re g iã o p ú b lic a de fa c h a d a . M a n ife s ta c o m fre q u ê n c ia um d e se jo
g re g á rio d e c o m p a n h e iro s de e q u ip a e de e s p e c ta d o re s ; e te m a
ca p ac id ad e de se n tir u m a v erg o n h a p rofunda, q u e o pode le v a r a re ­
d u z ir ao m ín im o as suas ap o stas de actor.
F.stes a trib u to s d o in d iv íd u o e n q u a n to a c to r n ã o sã o a p e n a s o
e fe ito d c um a d escrição de d esem p en h o s d e te rm in ad o s; são de na­
tureza p sico ló g ica e, ap e sa r disso , p arecem resu ltar d e u m a in terac­
ção ce rra d a corn as circ u n stâ n c ias co n tin g en tes d a en c en a ção d o s d e ­
sem pen h o s.
i£ ag o ra, um c o m e n tá rio final. A o d e se n v o lv e r o q u ad ro de refe­
rê n c ia c o n c e p tu a l d este e stu d o , u tiliz e i u m a lin g u a g e m d ra m a tú r-
gica. F alei de acto res e de esp ectad o res; de práticas de ro tin a e pa­
p éis; de d e se m p e n h o s c o n s e g u id o s o u fa lh a d o s: de in d ic a ç õ e s de
cen a, d e ix a s e b a stid o re s; de e x ig ê n c ia s da d ra m a tiz a ç ã o ; c a p a c i­
dades d a d ra m a tiz a çã o e estratég ias d a d ram a tiz a ção . D ev e ria assim
ad m itir a g o ra q u e esta ten tativ a, até a q u i levada a cab o , d e e x p lo ra r a
fu n d o u m a sim p les a n a lo g ia era e m parte um re c u rso retó rico e u m
artifício .
A firm ar q u e o m undo inteiro é um palco, é u m lugar-com um tão
freq u en te q u e in citará os leitores a um p ro n to rec o n h ec im en to dos
lim ites de v alidade da su a afirm ação , bem co m o a q u e tolerem o seu
uso a o lo n g o de to d a a ex p o sição , saben d o bem que a q u a lq u er m o­
m ento p o d erão facilm ente d em o n strar a si p róprios que a descrição
n ão p o d e ser le v a d a d em asiad o a sério. U m a acção e n c e n a d a num
teatro é u m a ilusão relativ am en te e lab o rad a e d eclarada: ao contrário
d o que se p assa na v id a de to d o s os dias, nada de real ou presente
poderá ac o n te c er às p erso n ag en s d esem penhadas — em b o ra, a outro
nível, sem dúvida, algo real e p resen te possa aco n tecer no q u e sc re­
fere à reputação dos actores enquanto p ro fissio n ais cu ja vida q u oti­
d ia n a depende dos resp ectiv o s d esem p en h o s teatrais.
A ssim , a b a n d o n a re m o s aqui a lin g u ag em e a m áscara d o p alco .
O s palcos e cen ário s são. b e m vistas as c o isas, m o n tad o s a fim dc.
A Apresentação do Hu na Vida de Todos os Dias 297

com e !es; se co n stru írem o u tra s c o isa s, e d ev em ser p o sto s d c pé na


p e rsp e c tiv a de u m a su b seq u en te rem oção. E sta in v e stig açã o não se
refere ao s asp ecto s d e teatro q u e p eneiram na vida q u o tid ian a. T rata
d a e s tr u tu r a d o s e n c o n tr o s e m s o c ie d a d e — a e s tr u tu r a d e s s a s
e n tid a d e s q u e n a s c e m p o r to d a a parte na v id a so c ia l, q u a n d o as
p e sso a s se v ê e m n a p re s e n ç a f ís ic a im e d ia ta u m a s d a s o u tra s. ()
facto r-ch av e n esta estru tu ra é a m a n u te n ç ã o de u m a ú n ic a d e fin ição
d a situ ação , d ev en d o esta d e fin iç ã o ser ex p ressa, e a sua e x p re ssã o
su ste n ta d a frente a u m a m u ltip lic id a d e de rupturas ou p ertu rb açõ es
poten ciais.
A p erso n ag em d e se m p e n h a d a n o leairo não é em ce rto s asp ecto s
real, nem tem o m e sm o tipo de co n seq u ên cias reais q u e a p e rso n a ­
gem inteiram ente fo rjad a d e se m p e n h a d a por um b u rlão ; m as a e n c e ­
n a ç ã o bem sucedida de q u a lq u e r dos d o is c a so s d e fa lsa s fig u ras
im p lic a a u tilização de técn icas reais — as m esm as técn icas através
das q u ais as p essoas co m u n s su ste n ta m a co n tin u id a d e d a s situações
so ciais d o d ia -a -d ia . O.s in d iv íd u o s q ue c o n d u zem u m a in teracção
cara a cara no p a lc o d e u m te a tro têm q u e d ar re sp o sta às m esm as
e x ig ê n c ia s de b ase q ue e n c o n tra m o s nas s itu a ç õ e s reais: tê m que
m a n te r e x p re s s iv a m e n te u m a d a d a d e fin iç ã o da s itu a ç ã o — m as
fazem -n o em c ircu n stân cias q u e lhes facilitam a ela b o ra ção d e um a
term in o lo g ia adeq u ad a para as tarefas da in teracção q u e a todos nós
tocam .

Indice

9 Prefácio

11 Introdução

29 Desempenhos

97 Equipas

129 Regiões e Comportamento Regional

169 Papéis Discordantes

199 Comunicação Deslocada

245 A Arte de Administrar as Impressões

279 Conclusão
L iv ro s sa íd o s n e sta colecção

1. A Á rvore da Vida 13. A Dimensão Oculta


Francesco Alberoni Edward T. Hall

2. Homens em Tempos Sombrios 14. A Linguagem do Silêncio


H a n n a h A rendt Edward T. Hall

3. A Criança e a Vida Familiar 15. Prosas


no Antigo Regime Manuel La ran.¡/eira
Philippe Aríès
16. A Li a do Vazio
4. O Tempo da História Gilles Lipovetsky
Philippe Ariès
17. Ü Homem que Confundiu
5. O Amor Incerto a Mulher com um Chapéu
Elisabeth Badinter Oliver Sacks

6. Um é o Outro IS. Despertares


Elisabeth Badinier Oliver Sacks

7. Simulacros e Simulação 19. E ros


Jean BandriUard I mu Andreas-Salomé

8. Rua de Sentido Unico c 20. No Castelo do Barba A/.ul


Infancia em Berlim George. Steiner
Walter Benjamin
21. Carla Vária
9. Sobre Arte, Técnica, Agostinho da Silva
Linguagem e Política
W a lter B en ja m in 22. Aproximações
Agostinho da Silva
10. A Tentação dc Existir
E. Aí. Cloran 23. Do Sentimento Trágico da Vida
Miguei Unamuno
11. Ferreiros e Alquimistas
Mircea Elfade 24. A Realidade é Real?
Paul Watzlawick
12. A Rebelião das Massas
Onega y Gasset
A Reprodução Inu-rdita-, óleo d í Magritte

E rv in g G o ffm a n f l 9 2 2 -1 9 8 2 ) n a s­
c eu no C a n a d á , fo rm an d o -se em so ­
c io lo g ia na U n iv ersid ad e de Toronto.
E sta b e le c eu -se d ep o is n o s E stados
U n id o s, e n s in a n d o na U n iv e rs id a d e
d e C h ic a g o e i n v e s tig a n d o p a r a o
N atio n a l Institut o f M ental H ealth.
D urante um ano viveu na m ais p e ­
q u e n a d as Ilhas S h etlan d , c u ja c o m u ­
n id ad e e stu d o u .
«A A p resen tação d o Eu n a V ida de
T o d o s os D ias» 6 um já c lá ssic o estu ­
d o d a « e n c e n a ç ã o d a v id a q u o tid ia ­
n a» , co n trib u in d o p ara a co m p reen são
de nós p ró p rio s ao a n a lis a r o
c o m p o rta m e n to h u m an o em situ ações
s o c ia is c o m re c u rs o a m e tá fo ra s do
m eio teatral.

ISBN-972-708-205-X

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