Você está na página 1de 125

SU M Á R IO

Capítulo I. A Educação e o Significado da Vida 7


Capítulo II. Educação Correta 15

Capítulo III. Intelecto, Autoridade e Inteligência 51


Capítulo IV . Educação e Paz Universal 68

Capítulo V. A Escola 85
Capítulo V I. Pais e Mestres 100
Capítulo V II. Sexo e Casamento 117
Capítulo V III. A rte, Beleza e Criação 123
C A P IT U L O I

A ED U C A Ç Ã O E O SIG N IFIC A D O
D A V ID A

Q u e m v iaja p elo inu nd o p o d e n o tar a ex tra­


o rd inária se m elhanç a d a natu re z a hu m ana, se ja na
ín d ia, seja n a A m érica, n a Eu ro p a o u na A u strália.
Isto se v e rific a p rin c ip alm en te no s co lég io s e nas u ni­
v ersid ad es. Estam o s co m o q u e fab ric an d o , seg u nd o
um m o d elo , um tip o d e ser hu m ano c u jo p rinc ip al
interesse é p ro c u rar a seg u rança, to rn ar-se p esso a
im p o rtante, o u v iv er d e leitav elm en te e co m o m ínim o
p o ssív el d e reflexão .
A ed u c aç ão c o n v en cio n al d ific u lta so b rem o d o o
p ensar in d ep en d en te. A p ad ro niz ação d o ho m em c o n ­
d u z à m ed io crid ad e. Ser d iferen te d o g rup o o u resis­
tir ao am b ie n te não é fác il, e não raro é arriscad o ,
p o rq u e ad o ram o s o b o m êxito . O esfo rço em p reg ad o
p ara o b te r su cesso , q u e é o d esejo d e rec o m p ensa,
seja na esfe ra m aterial, se ja na ch am ad a esfera esp i­
ritu al, a b u sc a d e seg u ranç a in terio r o u ex terio r, o
d esejo d e c o n fo rto — tu d o isso rep re sen ta um m o d o d e
ag ir q u e ab afa o d esc o n tentam en to , p õ e term o à
esp o n taneid ad e, g era o tem o r e este im p ed e a co m ­

7
p reensão in telig en te d a v id a. C o m o av an çar d a id a­
d e, a m ente e o co ração v ão -se em b o tan d o cad a v ez
m ais.
Pro cu rand o o c o n f o rto ( 1) enc o ntram o s, em g eral,
um can tin ho so sseg ad o na v id a, o nd e p o d em o s v iv er
co m o m ínim o d e c o nflito p o ssív el, e não o usam o s m ais
d ar um p asso seq u er p ara sair d este iso lam ento . Este
m ed o à v id a, este m ed o à lu ta e à ex p e riênc ia no v a,
m ata em nó s o esp írito d e av en tu ra; p o r cau sa d e
no ssa c riação e ed u c aç ão , tem o s m ed o d e ser d iferen ­
tes d o no sso p ró xim o , tem em o s p ensar em d esac o r­
d o co m o p ad rão so cial v ig ente, nu m falso resp eito
à au to rid ad e e à trad ição .
Fe liz m en te alg u m as p esso as se interessam co m
seried ad e p elo exam e d o s p ro b lem as hu m ano s, liv res
d o s p reco nc eito s d a esq u erd a o u d a d ireita; m as, a
g rand e m aio ria d entre nó s não tem o v erd ad eiro esp í­
rito d e d esc o n tentam en to , d e rev o lta. Q u and o no s
su bm etem o s ao am b ien te , sem co m p reen d ê-lo , to d o
esp írito d e rev o lta q u e acaso p o ssuím o s esm o rece e
no ssas resp o nsab ilid ad es em b re v e tem p o o ap ag am
d efin itiv am en te.
H á d uas esp écies d e rev o lta: a rev o lta v io lenta,
q u e é m era reaç ão , sem in telig ên c ia, c o n tra a o rd em
v ig ente, e a p ro fu nd a rev o lta p sico ló g ic a d a in telig ên ­
cia. M u ito s se rev o ltam c o n tra v elhas o rto d o xias só
p ara caírem em o u tras no v as, em no v as ilu sõ es e se c re ­
tas co ncessõ es ao s p ró p rio s ap etites. O q u e em g eral
ac o n tec e é q u e no s d eslig am o s d e um g rup o o u c o n ­
ju nto d e id eais e ing ressam o s no u tro g rup o , ad o tam o s

( I) “ C o n f o r to ” , n ão no se n tid o de c o m o d id a d e m a te ria l, p o ré m
c o m o e f e ito d e “ c o n f o r ta r ” : d ar f o rç a s e e sp e ra n ç a . (N . d o T .) .

8
o u tro s id eais, crian d o no v o p ad rão d e p ensam ento c o n ­
tra o q u al no s rev o ltam o s o u tra v ez . T o d a re aç ão g era
o p o sição , e to d a refo rm a c ria a nec essid ad e d e no v as
refo rm as.
H á, p o rém , u m a rev o lta in telig en te, q u e, não sen­
d o reaç ão , nasc e co m o au to co n h ecim en to , co m o p er-
c eb im en to d o no sso p ró p rio p ensar e sentir. Só q u an ­
d o en frentam o s a ex p eriên c ia tal co m o se ap resenta,
q u and o não ev itam o s p e rtu rb açõ es, é q u e p o d em o s
m anter a in te lig ên c ia altam en te d esp erta; e a in teli­
g ê nc ia altam en te d esp erta é intu ição — o ú nico g uia
seg u ro na v id a.
Q u al é, p o is, a sig n ific aç ão d a y id a? Para q u e
v iv em o s e lu tam o s? Se so m o s ed u cad o s ap enas p ara
no s to rnarm o s p esso as em inentes, p ara co nseg u irm o s
m elho res em p reg o s, p ara serm o s m ais efic ie n tes, p ara
exercerm o s d o m ínio m ais am p lo so b re o s o u tro s, em
tal caso no ssas v id as serão su p erfic iais e v az ias. Se
so m o s ed u cad o s, ap enas, p ara serm o s cientistas, eru d i­
to s casad o s co m seus liv ro s, o u esp ec ialistas d ev o tad o s
à c iê n c ia, estarem o s en tão c o n trib u in d o p ara a d es­
tru iç ão e a d esg raç a d o m und o .
Se a v id a tem um sig n ificad o m ais alto e m ais
am p lo , q u e v alo r tem no ssa ed u c aç ão se n u nc a d esc o ­
b rim o s esse sig n ificad o ? Po d em o s ser su p erio rm ente
cu lto s; se no s falta, p o rém , a p ro fu nd a in teg raç ão d o
p en sam en to e d o sen tim ento , no ssas v id as são in c o m ­
p letas, co ntrad itó rias e c heias d e tem o res to rtu ran tes;
e, enq u an to a ed u c aç ão não ab ran g er o sentid o in te ­
g ral d a v id a, b em p o u co sig m fic ará.
A c iv iliz aç ão atu al d iv id e a v id a em tanto s c o m ­
p artim ento s q u e a ed u c aç ão — ex cetu an d o -se o ensino

9
d e um a p ro fissão o u té c n ic a d eterm in ad a — tem m u ito
p o uco v alo r. Em v ez d e d esp ertar a in telig ên c ia in te ­
gral d o ind iv íd u o , a ed u c aç ão o ind u z a ad ap tar-se a
um p ad rão , v ed an d o -lh e assim a co m p reensão d e si
m esm o co m o um p ro cesso to tal. Pro c u rar reso lv er os
num ero so s p ro b lem as d a ex istên cia no s seus nív eis
resp ectiv o s — classific ad o s co m o estão ( o s p ro b le m as)
(Mn d iferen tes c ateg o rias — d eno ta u m a to tal au sên cia
d e co m p reensão .
O ind iv íd u o é co nstitu íd o d e v árias entid ad es,
m as o realç ar as d iferen ç as e ao m esm o tem p o fav o ­
re c e r a p ro d u ção d e um tip o d efinid o lev a a resu ltad o s
co m p lexo s e a co ntrad iç õ es. À e d u c aç ão c o m p e te p ro ­
m o v er a in teg raç ão d essas entid ad es sep arad as — v isto
co m o , sem in teg raç ão , a v id a se transfo rm a nu m a série
d e co nflito s e trib u laç õ es. Para q u e fo rm ar ad v o g ad o s
se p erp etu am o s o s litíg io s? Q u e v alo r tem o sab er,
se co ntinu am o s em no ssa c o nfu são ? Q u al o sig nifi­
cad o d a c ap ac id ad e té c n ic a e ind u strial, se a u tili­
z am o s p ara no s d estruirm o s m u tu am en te? Q u al a
fin alid ad e d a existên cia, se ela lev a à v io lênc ia e à
d esd ita ex trem a? C o n q u an to tenham o s d inheiro o u
sejam o s cap az es d e g anhá-lo , ap esar d e term o s p raz e-
res e relig iõ es o rg aniz ad as, v iv em o s num c o nflito in ter­
m ináv el.
C u m p re d isting u ir en tre “ p esso al” e “ in d iv id u al” .
O p esso al é ac id en tal; p o r ac id en tal en tend o as c ir­
c u nstân cias d e o rig em , o am b ie n te em q u e fo m o s c ria­
d o s , co m seu n acio n alism o , suas su p erstiçõ es, d istin ­
ç õ e s e p reco n ceito s d e classe. O p esso al o u ac id en tal
c s ó m o m entâneo , aind a q u e esse m o m ento d u re a
v i d a i n t e i r a , e co m o o atu al sistem a d e ed u c ação se

b aseia n o p esso al, no ac id en tal, no m o m entâneo , só

10
co nd u z à p erv ersão d o p ensam ento e à im p lantarão
d e tem o res d efensiv o s.
Fo m o s to d o s p rep arad o s p e la ed u c aç ão e o am b i­
en te p ara a b u sc a d e p ro v ento s e seg u ranç a p esso al,
p ara lu tarm o s em no sso p ró p rio in teresse. Em b o ra
co stu m em o s d issim u lá-lo co m frases am enas, fo m o s
ed u cad o s p ara v árias p ro fissõ es d entro d e um sistem a
q u e se fu nd a na ex p lo ração e no tem o r co m su a c o n c o ­
m itan te av id ez . T al ed u c aç ão ac arre tará, in ev itav el­
m ente, co nfu são e trib u laç õ es p ara nó s e p ara o m u n­
d o , p o is cria em c ad a ind iv íd u o aq u elas b arreiras p si­
co ló g icas q u e o sep aram e o m antêm iso lad o d o s
o u tro s.
A ed u c aç ão não é u m a sim p les q u estão d e ex er­
c itar a m ente. O ex erc íc io lev a à e fic iê n c ia, m as não
p ro d uz a in teg raç ão . A m en te q u e fo i ap enas ex erc i­
tad a é o p ro lo n g am en to d o p assad o , n u nc a p o d e d es­
c o b rir o q u e é no v o . Eis p o r q u e, p ara av erig u arm o s
o q u e é ed u c aç ão c o rreta, cu m p re-no s inv estig ar o
to tal sig n ificad o d o v iv er.

Para a m aio ria d as p esso as o sig n ificad o d a v id a


co m o um to d o não é altam en te relev an te, e no ssa ed u ­
c aç ão e n c are c e o s v alo res secu nd ário s, faz end o -no s
ap en as p ro ficie n te s num d eterm inad o ram o d o sab er.
A ind a q u e necessário s o sab er e a e fic iê n c ia, se lhes
atrib u ím o s im p o rtân c ia d em asiad a, so m o s lev ad o s ao
co nflito e à co nfu são .

H á u m a e fic iê n c ia insp irad a p elo am o r, q u e lev a


m u ito m ais lo ng e, q u e é b em su p erio r à e fic iê n c ia d a
am b iç ão ; e sem o am o r, q u e t ’az a co m p reensão in te ­
g ral d a v id a, a e fic iê n c ia g era a cru eld ad e. N ão é isso
ex atam en te o q u e o ra ac o n te c e no m u nd o in teiro ?

II
A ed u c aç ão atu al está ap arelh ad a p ara a ind u striali­
z aç ão e a g u erra, e d esenv o lv er a e fic iê n c ia é seu alv o
p rinc ip al; estam o s d entro d a eng ren ag em d esta m á­
q u ina d e c o m p e tiç ão im p ied o sa e d estru iç ão m ú tua.
Sc a ed u c aç ão co nd u z à g u erra, se no s ensina a d es­
truir o u a ser d estru íd o s, não falho u c o m p le tam en te?
Fara institu irm o s a ed u c aç ão c o rreta, é ind isp en ­
sáv el c o m p reend er o sig n ificad o d a v id a co m o um
to d o , e, p ara tal, d ev em o s ser cap az es d e p ensar, não
rig id am en te, m as d e m an eira d ireta e v erd ad eira. Um
p ensad o r in flexív el não tem p ensar p ró p rio , p o rq u e se
aju sta a um p ad rão ; re p ete frases e p ensa d entro d e
u m a ro tin a. N ão se p o d e c o m p reend er a ex istên c ia d a
fo rm a ab strata o u teó ric a. C o m p reen d er a v id a é c o m ­
p reend er a nó s m esm o s; este é o p rin c íp io e o fim d a
ed u c aç ão .
Ed u c aç ão não sig n ifica, ap enas, ad q u irir c o n h e ­
cim ento s, co lig ir e c o rrelac io n ar fato s; é c o m p reen d er
o sig n ificad o d a v id a co m o um to d o . M as o to d o não
p o d e ser alc an çad o p ela p arte — co m o estão tentand o
faz er o s g o v erno s, as relig iõ es o rg aniz ad as e o s p arti­
d o s au to ritário s.
A fu n ção d a ed u c aç ão é c riar entes hu m ano s
integrados e, p o r co n seg u in te, intelig en tes. Po d em o s
tirar d ip lo m as e ser m ec an ic am e n te e fic ie n tes, sem ser
intelig entes. A in telig ên c ia não é m era cu ltu ra in te ­
lec tu al; não p ro v ém d o s liv ro s, nem co nsiste em je ito ­
sas reaç õ es d efensiv as e asserçõ es arro g antes. O h o ­
m em q u e não estu d o u p o d e ser m ais in telig en te d o
q u e o eru d ito . Fiz em o s d e exam es e d ip lo m as critério
d e intelig ên c ia e d esenv o lv em o s esp írito s m uio sag a­
zes, q u e ev itam o s jiro b le m as hu m ano s v itais. In te li-

/1
g ê nc ia é a c ap ac id ad e d e p e rc e b e r o essen cial, o que r;
d e sp ertar essa c ap ac id ad e, em si p ró p rio e no s o utro s,
eis em q u e se resu m e a ed u c aç ão .
A e d u c aç ão d ev e aju d ar-no s a d esc o b rir v alo res
p erenes, p ara q u e não no s ap eg u em o s a fó rm u las o u à
rep etiç ão d e slogans( *); d ev e aju d ar-no s a d e rru b ar as
b arreiras n ac io n ais e so ciais, em lu g ar d e as refo rç ar,
p o rq u an to essas b arreiras g eram antag o nism o en tre
ho m em e ho m em . In fe liz m en te , o no sso atu al sistem a
d e ed u c aç ão no s to rna su b serv ientes, m ecân ic o s e fu n ­
d am en talm en te inc ap az es d e p en sar; em b o ra d esp erte
no sso in tele c to , d eixa-no s in terio rm ente inc o m p leto s,
estu ltifiç ad o s e estéreis.
Sem u m a in teg ral co m p reen são d a v id a, o s no sso s
p ro b lem as ind iv id u ais e co letiv o s só tend erão a c res­
c er, em p ro fu nd id ad e e extensão . N ão v isa a ed u c a­
ção a p ro d u z ir m ero s letrad o s, téc n ic o s e caçad o res
d e em p reg o s, m as ho m ens e m u lheres integrados, li­
v res d e to d o o tem o r; p o rq u e só en tre tais entes h u m a­
no s p o d e hav er p az d u rad o u ra.
A co m p reensão d e nó s m esm o s exting u e o m ed o .
Para p e le jar cõ m a v id a, d e m o m ento em m o m ento ,
en fren tar suas co m p lic aç õ es, trib u laç õ es e im p rev is­
to s, d ev e o ind iv íd u o ser in fin itam en te flexív el e, p o r­
tanto , liv re d e teo rias e d e certo s p ad rõ es d e p en sa­
m ento .
N ão d ev e a ed u c aç ão estim u lar o ind iv íd u o a
ad ap tar-se à so c ied ad e o u a m an ter-se neg ativ am en te
em harm o nia co m ela, m as aju d á-lo a d e sc o b rir os
v alo res v erd ad eiro s, q u e su rg em co m a inv estig ação

( *) “ Slo g a n ” — p alav ra o u f ra s e a sso c ia d a , p e lo u s o , a u m p a rtid o ,


g ru p o , c tc . ( D ic . W e b s te r ) . ( N . d o T . ) .

/1
liv re d e p reco n c eito s e co m o au to p erc eb im en to . N ão
hav end o au to co nh ecim en to , a exp ressão ind iv id u al se
transfo rm a em arro g ânc ia, co m to d o s o s seus co nflito s
ag ressiv o s e am b icio so s. A ed u c aç ão d ev e d esp ertar
no ind iv íd u o a c ap ac id ad e d e estar c ô n sc io d e si p ró ­
p rio , e não ap enas d eixá-lo c o m p raz er-se na exp ressão
ind iv id u al.
v Q u e b en e fíc io s traz a instru ção , se no d eco rre r d a
v id a no s d estru ím o s? A série d e g u erras d ev astad o ras,
q u e tem o s tid o , u m a ap ó s o u tra, ev id en cia u m a falha
fu nd am ental na ed u c aç ão q u e p ro p o rcio nam o s a no s­
so s filho s. Q u ase to d o s nó s, creio , estam o s cô nscio s
d isso , m as não sab em o s co m o aten d er ao p ro b lem a.
O s sistem as, q u er ed u cativ o s, q u er p o lític o s, não
se transfo rm am m irac u lo sam en te ; só se m o d ificam
q u and o h á em nó s u m a tran sfo rm aç ão fu nd am ental.
* O ind iv íd u o é d e p rim o rd ial im p o rtân c ia, e não o sis­
tem a; e, enq u an to o ind iv íd u o não c o m p reend er o
p ro cesso to tal d e si m esm o , nenhu m sistem a, se ja d a
d ireita, seja d a esq u erd a, trará o rd em e p az ao m u nd o .

14
C A P ÍT U L O II

ED U C A Ç Ã O C O R R ET A

h o m e m ig n o ran te n ão é o sem in stru ç ão ,


m as aq u e le q u e n ão c o n h e c e a si m e sm o ; e in se n sato *
é o h o m e m in te le c tu alm e n te c u lto ao c re r q u e o s liv ro s,
o sab e r e a au to rid ad e lh e p o d e m d ar a c o m p re e n são .
A co m p reen são só p o d e v ir co m o au to co n h ecim en to ,
q u e é o c o n h ec im en to d a to talid ad e d o no sso p ro cesso
p sico ló g ico . A ssim , a ed u c aç ão , no sentid o g enu íno , é
a co m p reensão d e si m esm o , p elo ind iv íd u o , p o rq u e
é d entro d e c ad a um d e nó s q u e se c o n c e n tra a to ta­
lid ad e d a existênc ia.
O q u e atu alm en te cham am o s ed u c aç ão é u m p ro ­
cesso co nsisten te em ac u m u lar in fo rm açõ es e c o n h e c i­
m ento s, tirad o s d o s liv ro s, e isso q u alq u er um q u e sai­
b a ler p o d e co nseg u ir. U m a ed u c aç ão d e sta esp éc ie
o fe rec e-n o s u m a fo rm a su til d e fu g a d e nó s m esm o s -f
e, co m o to d as as fu g as, cria, inev itav elm en te, so fri­
m ento s c ad a v ez m aio res. O c o n flito e a co nfu são
nascem d as no ssas relaç õ es in c o rretas co m p esso as,
co isas c id éias e, enq u an to não co m p reend erm o s e
iiio d ilicarm o s essas relaç õ es, o m ero ap rend er, a

15
ac u m u lação d e fato s, a aq u isição d e h ab ilitaç õ es d iv er­
sas só no s p o d em ab ism ar no cao s e na d estru ição .
D e aco rd o co m a o rg aniz aç ão d a so c ied ad e atu al,
m and am o s no sso s filho s à esco la p ara q u e ap rend am
u m a téc n ic a, co m a q u al p o ssam um d ia g an har a v id a.
Q u erem o s antes d e tud o faz er d o no sso filho um esp e­
c ialista, cren d o q u e assim lhe g arantim o s u m a seg u ra
situ ação eco n ô m ica. M as o cu ltiv o d e u m a té c n ic a
h ab ilita-n o s a c o m p ree n d e r a nó s m esm o s?

É ev id en te m en te necessário sab er ler e escrev er,


ap rend er en g en haria o u o u tra p ro fissão q u alq u er, m as
a téc n ic a no s d ará a c ap ac id ad e d e c o m p reend er a
v id a? O ra, sem d ú v id a, a té c n ic a é co isa secu n d ária;
e, se a té c n ic a é a ú n ic a co isa p ela q u al estam o s lu tan ­
d o , nesse caso estam o s neg and o o asp ec to m ais im p o r­
tan te d a v id a.
A v id a é d o r, aleg ria, b elez a, fe ald ad e, am o r, e,
q u and o a co m p reen d em o s g lo b alm ente, em to d a a
sua v aried ad e, essa co m p reen são c ria sua p ró p ria té c ­
nica. M as o inv erso não é ex ato : a té c n ic a nu n ca p ro ­
d u z irá a co m p reensão criad o ra.

A e d u c aç ão m o d erna red u nd o u em co m p leto m a­


lo g ro , p o r ter exag erad o a im p o rtânc ia d a téc n ic a.
En c are c e n d o -a em d em asia, d estru ím o s o ho m em .
D esenv o lv end o c ap ac id ad es e e fic iê n c ia, sem a co m ­
p reensão d a v id a, sem u m a p erc e p ç ão to tal d o s m o v i­
m ento s d a m ente e d o d esejo , to rnar-no s-em o s c ad a
v ez m ais cru éis, e isso sig n ific a fo m en tar g u erras e
p ô r cm p erig o no ssa seg u ran ça físic a. O exclu siv o
cu ltiv o d a té c n ic a tem p ro d uz id o c ien tistas, m atem á­
tico s, co nstru to res d e p o ntes e co nq u istad o res d o e sp a­
ço . C o m p reend erão esses ho m ens o p ro cesso to tal d a

16
v id a? Po d e u m esp ec ialista ex p erim en tar a v id a co m o
um to d o ? Só se d eixar d e ser esp ec ialista.

O p ro g resso té c n ic o reso lv e d eterm inad o s p ro b le ­


m as p ara c ertas p esso as, nu m d ad o nív el, m as, ao m es­
m o tem p o , g era p ro b lem as m ais v asto s e p ro fu nd o s.
V iv er num só nív el, d esp rez and o o p ro cesso g lo b al d a
v id a, é atrair d esg raças e d estru ição . A m aio r n e c e s­
sid ad e e o p ro b lem a m ais u rg en te d e to d o ind iv íd u o
é ad q u irir u m a co m p reensão in teg ral d a v id a, q u e o
h ab ilite a en fren tar suas co n tínu as e c resc en tes c o m ­
p lexid ad es.
O sab er té c n ic o , em b o ra necessário , de modo
alg u m reso lv erá as no ssas p rem ênc ias interio res e c o n ­
flito s p sic o ló g ico s; e p o rq u e ad q u irim o s sab er té c n ic o
sem c o m p ree nd er o p ro cesso to tal d a v id a, a té c n ic a
se to rno u m eio d e d estru ição . O ho m em q u e sab e
d iv id ir o áto m o , m as não tem am o r no c o ração , tran s­
fo rm a-se nu m m o nstro .

Esco lh em o s u m a p ro fissão d e aco rd o co m as no s­


sas ap tid õ es; m as seg u ir u m a p ro fissão lib e rtará o h o ­
m em d o c o n flito e d a c o nfu são ? U m a d ad a esp éc ie
d e p rep aro té c n ic o p arece n e c essária; p o rém , d ep o is
q u e no s to rnam o s eng enh eiro s, m éd ico s, co ntad o res,
q u e ac o n tec e? A p rátic a d e u m a p ro fissão rep resen ta
o p re en c h im en to d a v id a? Pare c e q u e sim , p ara a
m aio ria d e nó s. N o ssas v árias p ro fissõ es m antêm -no s
o cu p ad o s d u ran te a m aio r p arte d a ex istên c ia; m as as
p ró p rias co isas q u è criam o s e d as q u ais tan to no s m ara­
v ilham o s cau sam d estru içõ es e d esg raças. N o ssas ati­
tud es e v alo res estão faz end o d as co isas e d as p ro fis­
sõ es instru m ento s d a inv eja, d o ressen tim ento e d o
ó d io .

17
Sem a co m p reensão d e nó s m esm o s, a m era o p e­
ro sid ad e co nd u z à fru stração , co m as suas inev itáv eis
fu g as atrav és d e ativ id ad es m aléfic as d e to d o g ênero .
T é c n ic a sem co m p reen são lev a à in im iz ad e e à c ru e l­
d ad e, o q u e co stu m am o s d isfarçar co m frases b em
so antes. D e q u e serv e enc arec erm o s a im p o rtân c ia d a
té c n ic a e no s to rnarm o s entid ad es e fic ie n tes, se o resu l­
tad o é a m ú tu a d e stru iç ão ? N o sso p ro g resso téc n ic o
é fan tástic o , m as só tev e co m o resu ltad o au m entar as
p o ssib ilid ad es d e no s d estru irm o s m u tu am en te; e em
to d o s o s p aíses d o m u nd o existe a fo m e e a m iséria.
N ão so m o s entes p ac ífic o s e feliz es.
Q u and o se atrib u i à fu n ção su m a im p o rtân c ia, a
v id a se to rna estú p id a e m o nó to na, u m a ro tina m e c â­
n ic a e estéril, d a q u al fu g im o s entreg and o -no s a d istra­
çõ es d e to d a esp éc ie. O acú m u lo d e fato s e o d e sen­
v o lv im ento d e c ap ac id ad es, a q u e cham am o s ed u c aç ão ,
p riv o u-no s d a p lenitu d e d a v id a d e in teg raç ão e ação .
Po r não co m p reend erm o s em sua in teirez a o p ro cesso
d a v id a, ap eg am o -no s à c ap ac id ad e e à efic iê n c ia, q u e
p o r essa raz ão assu m em d esm ed id a im p o rtânc ia. O
to d o , p o rém , não p o d e ser co m p reen d id o p e la p arte ;
só p o d e ser co m p reen d id o p o r m eio d a aç ão e d a ex p e­
riên cia.
O u tro fato r d eterm in an te no cu ltiv o d a té c n ic a é
q u e esta no s p ro p o rcio na um sentim ento d e seg u ran­
ça, não só eco nô m ic a, m as tam b ém p sico ló g ica. É
co n fo rtan te v e rific ar q u e so m o s cap az es e efic ie n tes.
Sab er q u e tem o s c ap ac id ad e p ara to c ar p iano o u p ara
co nstru ir u m a casa no s d á um sentim ento d e v itali­
d ad e, d e arro g ante in d ep en d ên c ia; p o rém , re alç ar o
v alo r d a c ap ac id ad e , p o r cau sa d e um d esejo d e seg u ­
ranç a p sico ló g ica, é neg ar a p lenitu d e d a v id a. O

IX
co nteú d o to tal d a v id a é im p rev isív el e tem d e ser
exp erim entad o sem p re co m o co isa no v a, m o m ento p o r
m o m ento . Tem em o s o d e sc o n hec id o , p o r isso e stab e ­
lec em o s p ara nó s m esm o s z o nas p sico ló g ic as d e seg u ­
ranç a, so b a fo rm a d e sistem as, téc n ic as e cren ças.
En q u an to and arm o s em b u sc a d e seg u ranç a interio r
não co m p reend erem o s o inteiro p ro cesso d a v id a.

A e d u c aç ão c o rreta, não d esc u rand o d o cu ltiv o


d a téc n ic a, d ev e realiz ar alg o d e im p o rtân c ia m u ito
m aio r e q u e co nsiste em lev ar o ho m em a ex p e rim en ­
tar o p ro cesso in teg ral d a v id a. T al ex p eriê n c ia c o lo ­
c ará a c ap ac id ad e e a té c n ic a no s seus d ev id o s lu g a­
res. Q u em tem realm en te alg u m a co isa p ara d izer,
co m o m esm o ato d e ex tern á-la c ria seu estilo p ró p rio ;
m as ap ren d er um estilo sem te r a c ap ac id ad e d e ex p e­
rim en tar in terio rm ente só p o d e resu ltar em su p erfic ia­
lid ad e.
Em to d as as p artes d o u niv erso , o s eng enheiro s
estão em fe b ril ativ id ad e, p lane jand o m áq u inas q u e
não nec essitem ho m ens p ara ac io n á-las. N um m u nd o
q u ase in teiram en te m o v id o à m áq u ina, q u e v ai ser
d o s entes hu m ano s? Terem o s m ais e m ais fo lg a, sem
sab er em p reg á-la se nsatam ente, e p ro c u rarem o s e sc a­
p ató ria no cu ltiv o d o sab er, no s d iv ertim ento s d e b ili­
tantes, o u no s id eais.

C reio q u e já se escrev eram m u ito s v o lu m es so b re


id eais ed u c ativ o s e, en tretan to , estam o s m ais co nfu so s
ag o ra d o q u e nu nca. N ão existe m éto d o d e ed u c ar
u m a c rian ç a p ara ser um e n te integrado e liv re.
En q u an to só estiv erm o s in teressad o s em p rincíp io s,
id eais e m éto d o s, n ão aju d arem o s o ind iv íd u o a lib e r­

19
tar-se d a ativ id ad e eg o cê n tric a, COm to d o s o s seus
tem o res e co nflito s.
- > Id eais e p lano s p ara u m a U to p ia p erfe ita nu nca
p ro d u z irão a m u d an ça rad ical d o c o ração , q u e é in d is­
p ensáv el se q u iserm o s ab o lir a g u erra e ev itar a d es­
tru ição u niv ersal. O s id eais n ão p o d em m u d ar os
no sso s v alo res atu ais; estes só se transfo rm arão p ela
ed u c aç ão c o rreta, o u seja, no d esenv o lv im en to d a co m ­
p reensão d o q u e é.

A o co o p erarm o s p ara um id e al p o rv ind o u ro , m o l­


d am o s ind iv íd u o s co nso ante a n o ssa c o n c ep ç ão d o fu ­
tu ro ; não estam o s em abso lu to in teressad o s no s entes
b u m ano s, e sim , ap enas, em n o ssa id é ia d o q u e eles
“ d ev eriam ser” . O “ d ev eria se r5> se to rna m u itíssim o
m ais im p o rtan te d o que o q u e é : o ind iv íd u o e suas
co m p lexid ad es. Se co m eçarm o s a c o m p reend er o in d i­
v íd uo d iretam en te, em v ez d e o o lharm o s atrav és d a
c o rtin a d e no ssa id é ia do q u e e l e “ d ev eria ser” , esta­
rem o s en tão interessad o s no q u e é. En tão , já não d e se­
jarem o s transfo rm ar 0 ind iv íd uo e m o u tra co isa; no sso
ú nico em p enh o será 0 d e a ju d á - l0 a c o m p reend er-se,
e nisso não há m o tiv o p esso al e g o ísta o u lu cro alg u m .
Se estam o s p lenam en te cô nscio s d o q u e é, hav erem o s
d e c o m p reend ê-lo e lib ertar-no s d e le ; m as, p ara estar­
m o s co nscio s d o q u e so mo s, te m o s d e d esistir d e lu tar
p o r alg o q u e não so m o s.
O s id eais não têm c ab id a n a ed u c aç ão p o rq u e
im p ed em a co m p reensão d o p re se n te . Po r c erto , só
p o d em o s estar cô nscio s do q u e é se não estam o s fu g in ­
d o p ara o fu tu ro . O interesse n 0 fu tu ro , a lu ta p o r
um id eal d eno ta ind o lência m e n ta l e o d esejo d e ev i­
tar o p resente.

20
A lu ta p o r u m a U to p ia “ já fe ita” não será a n e g a­
ç ão d a lib erd ad e e d a in teg raç ão d o ind iv íd u o ? Q u an ­
d o estam o s seg u ind o um id eal, um p ad rão , q u and o
tem o s um a fó rm u la d o q u e “ d ev eria se r” , não e stare­
m o s v iv end o u m a v id a b em su p e rfic ial e au to m ática?
N ão necessitam o s d e id ealistas o u en tid ad es d e m en ­
tes m ecânic as, m as d e entes hu m ano s integrados, in te ­
lig entes e liv res. T e r, ap enas, um p lano d e u m a so c ie­
d ad e p e rfe ita sig n ific a p u g nar e d erram ar sang u e p elo
q u e “ d ev eria ser” , v o ltand o -se as co stas ao q u e é.
Se os seres hu m ano s fo ssem en tid ad es m e cân ic as,
m áq u inas au to m áticas, o fu tu ro seria en tão p red iz ív el
e p o d eriam traç ar-se o s p lano s d e u m a U to p ia p e r­
fe ita; estaríam o s então ap to s a p lan ejar c ap ric h ad a-
m en te u m a so c ied ad e fu tu ra e p o d eríam o s trab alh ar
p ara realiz á-la. M as, co m o o s entes hu m ano s não são
m áq u inas, não p o d em ser “ aju stad o s” seg u nd o um
c erto p lano .
En tre ag o ra e o fu tu ro há um eno rm e hiato em q u e
nu m ero sas in flu ên c ias atu am so b re c ad a um d e nó s e,
sac rific an d o o p resen te ao fu tu ro , estam o s em p reg and o
m eio s errô neo s p ara um h ip o tétic o fim co rreto . M as
o s m eio s d eterm inam o fim ; e, além d isso , q u em so m o s
nó s p ara d ecid ir o q u e o ho m em “ d ev e ser” ? C o m q u e
d ireito q u erem o s m o ld á-lo a um c erto p ad rão , ap ren ­
d id o d e alg u m liv ro o u d eterm in ad o p elas no ssas am b i­
çõ es, esp eranç as e tem o res?

A e d u c aç ão c o rreta não está in teressad a em id e o ­


lo g ia alg u m a, p o r m ais p ro m isso ra q u e se ja d e u m a
fu tu ra U to p ia; não se b aseia em sistem a alg u m , p o r
m ais escru p u lo sam ente q u e ten h a sid o c o n c e b id o ; não
é, tam p o u co , um m eio d e c o n d ic io n ar o ind iv íd u o d e

21
d eterm in ad a m aneira. Ed u c aç ão , no sentid o v e rd a­
d eiro , é aju d ar o ind iv íd u o a to rn ar-se um ente am a­
d u recid o e liv re, p ara “ flo resc er ric am en te em am o r e
b o n d ad e” . N isso é q u e d ev em o s estar interessad o s, e
não , em m o ld ar a c rian ç a c o n fo rm e um p ad rão id e a­
lista.
To d o m éto d o d e c lassific ar as c rian ças seg u nd o
seus tem p eram ento s e ap tid õ es p õ e em relev o suas d ife ­
renças, c ria antag o nism o , fo m en ta d iv isõ es na so c ie ­
d ad e e não aju d a a p ro d uz ir entes hu m ano s integrados.
Ev id en te m en te, nenhu m m éto d o o u sistem a p o d e p ro ­
m o v er a ed u c aç ão co rreta, e a estrita ad e rên c ia a d e te r­
m inad o m éto d o d eno ta ind o lên cia d a p arte d o ed u c a­
d o r. En q u an to a ed u c ação se fu nd ar em p rincíp io s
ríg id o s, p o d erá p ro d uz ir ho m ens e m u lheres p ro fic ie n ­
tes, m as nu nca fo rm ará entes hu m ano s criad o res.
~ Só o am o r p o d e d esp ertar a co m p reensão p ara
co m o u trem . Q u and o há am o r, há co m u nhão in stan ­
tân ea co m o u tra p esso a, no m esm o nív el, ao m esm o
tem p o . Po rq u e so m o s tão árid o s, v az io s e sem am o r
é q u e d eixam o s o s g o v erno s e o s sistem as se e n c arre ­
g arem d a ed u cação d e no sso s filho s e d a d ireç ão d e
no ssas v id as; m as o s g o v erno s p recisam d e téc n ic o s
efic ie n te s e não d e entes hu m ano s, p o is estes se to r­
nam p erig o so s p ara o s g o v erno s — assim co m o p ara
as relig iõ es o rg aniz ad as. Eis p o r q u e o s g o v erno s e as
o rg aniz açõ es relig io sas têm tanto interesse em co n tro ­
lar a ed u cação .
A v id a não p o d e ser p o sta em co n fo rm id ad e co m
um sistem a, não p o d em o s m e tê-la à fo rç a nu m m o ld e,
p o r m elho r q u e este ten h a sid o c o n c e b id o ; e a m ente
q u e só se ex erc ita no sab er p o sitiv o é inc ap az d e c o m ­

22
p reen d er a v id a n a sua v aried ad e e su tilez a, nas suas
p ro fu nd ez as e c u lm in ân cias. Q u and o ed u cam o s no s­
so s filho s d e aco rd o co m u m sistem a d e p ensam ento
o u u m a d eterm in ad a d iscip lina, q u and o o s ensinam o s
a p ensar “ esp ec ializ ad am en te” , im p ed im o s q u e eles se
to rnem ho m ens e m u lheres integrados, e p o r isso são
inc ap az es d e p ensar in telig en tem e n te, isto é, d e e n c a­
rar a v id a d e m o d o g lo b al.
A m ais alta fu n ção d a ed u c aç ão co nsiste em p ro ­
d u z ir um ind iv íd u o integrado, c ap az d e en trar em re ­
laç ão co m a v id a co m o um to d o . O id ealista, tal co m o
o esp ec ialista, não está interessad o no to d o , m as ap e ­
nas na p arte. N ão p o d erá hav er in teg raç ão enq u an to
estiv erm o s interessad o s em alg u m p ad rão id e al d e
aç ão ; e a m aio ria d o s p rece p to res, q u e se m o stram
id ealistas, rep u d iaram o am o r; seu esp írito é árid o e
c o ração insensív el. Para estu d arm o s u m a c rian ç a d e­
v em o s estar m u ito atento s, v ig ilantes, b em cô nscio s d o s
no sso s p ró p rio s p ensam ento s e sentim ento s, e isso re ­
q u er m u ito m ais in telig ên c ia e afe iç ão d o q u e o esti­
m u lá-la a seg u ir um id eal.
O u tra fin alid ad e d a ed u c aç ão é a d e c riar no v o s
v alo res. In c u lc ar, sim p lesm ente, na m en te d a c rian ça
o s v alo res p rev alec en tes, faz ê-la aju star-se a id eais, é
c o n d ic io n á-la, sem d e sp ertar-lh e a in telig ên c ia. A
ed u c aç ão está estre itam en te lig ad a à p re sente crise
m u nd ial, e o e d u c ad o r q u e p e rc e b e as cau sas d este
cao s u niv ersal d ev e p e rg u n tar a si m esm o co m o d es­
p ertar a in telig ê n c ia d o estu d ante e c o n trib u ir, d este
m o d o , p ara q u e a g eração fu tu ra não p ro d u z a no v o s
co n flito s e d esastres. C ab e -lh e c o nsag rar to d o o seu
p ensam ento , to d o o seu d esv elo e cu id ad o à c riação
d o am b ien te ad eq u ad o e ao d esenv o lv im ento d a c o m ­

2J
p reensão , p ara q u e, ating ind o a m ad u rez a, a c rian ç a
seja c ap az d e aten d er in telig en tem e n te ao s p ro b le ­
m as q u e a v id a lh e o fe rec er. M as, p ara faz ê-lo , p re­
cisa o ed u c ad o r c o m p reend er a si m esm o , em v ez d e
c o n fiar em id eo lo g ias, sistem as e cren ç as.
D eixem o s d e lad o o s p rinc íp io s e o s id eais e inte-
ressem o -no s p elas co isas tais co m o são ; o estu d o d o
» q u e é d esp erta a in telig ên c ia, e a in telig ên c ia d o ed u ­
cad o r é b em m ais im p o rtante d o q u e o seu c o n h e c i­
m ento d e um no v o m éto d o d e ed u c aç ão . A o seg u ir­
m o s u m m éto d o , aind a q u e tal m éto d o h aja sid o
elab o rad o p o r p esso a sensata e in telig en te, ele assu ­
m e tan ta re le v ân c ia q u e as crian ças são co nsid erad as
im p o rtantes ap enas q u and o a ele se aju stam . T o m a­
m o s as m ed id as d a c rian ça, c lassific am o -la e p assam o s
a ed u c á-la d e aco rd o co m um g ráfico , um p lano . Esse
p ro cesso d e e d u c aç ão p o d e co nv ir m u ito ao p recep to r,
m as nem a p rátic a d e um sistem a nem a tiran ia d a
o p inião e d o sab er p ro d u z irão um ser hu m ano inte­
grado.
A ed u c aç ão c o rreta co nsiste em c o m p ree nd er a
crian ça tal co m o é, sem lh e im p o r nenhu m id eal re la­
tiv o ao q u e p ensam o s q u e e le “ d ev eria ser” . En q u a­
d rá-la em u m id eal é ind u z i-la a ad ap tar-se, o q u e g era
tem o r e su scita n a c rian ç a um co nflito co nstan te
entre o q u e ela é e o q u e “ d ev eria ser” . E to d o s o s
co nflito s interio res têm suas m anifestaç õ es ex terio res
na so c ied ad e. O s id eais co nstitu em v erd ad eiro o b stá­
culo â no ssa co m p reensão d a c rian ç a e à c o m p ree n ­
são d e si p ró p ria, p ela c rianç a.
O p ai q u e realm en te d eseja co m p ree n d e r o filho
não o o lha através d a c o rtin a d e um id eal. Se am a o

24
filho , o b serv a-o , estu d a-lh e as ten d ên c ias, d isp o siçõ es
e p ecu liarid ad es. Só q u and o não tem o s am o r à c rian ­
ç a lhe im p o m o s um id eal, p o rq u e então p retend em o s
v er realiz ad as n ela no ssas p ró p rias am b içõ es e q u ere­
m o s q u e ela se ja isso o u aq u ilo . Q u em am a não o
id eal, m as a c rian ç a, tem a p o ssib ilid ad e d e aju d á-la
a c o m p reend er-se tal co m o é.
Se u m a c rian ç a m ente, p o r exem p lo , q u e ad ianta
c o n fro n tá-la co m o o id e al d a v erd ad e ? O im p o rtante
é d e sc o b rir p o r q u e ela m ente. Para aju d ar a c rian ça,
n ec essitam o s d e tem p o p ara estu d á-la e o b serv á-la, e
isso req u e r p ac iê n c ia, am o r e carin ho ; m as, q u and o
não tem o s am o r, q u and o não tem o s co m p reen são , fo r­
çam o s a c rian ç a a ag ir c o n fo rm e um p ad rão a q u e
cham am o s “ id e al” .
O s id eais co nstitu em escáp u la m u ito co n v en ien te,
e o p re ce p to r q u e o s seg u e é inc ap az d e c o m p reen d er
seus d iscíp u lo s e d e c u id ar d eles in telig en tem e n te;
p ara ele o id e al d o fu tu ro , “ o q u e d ev e ser” , é m ais
im p o rtan te d o q u e a c rian ç a atu al. A fid elid ad e a um
id eal ex c lu i o am o r, e sem am o r não se reso lv e nenhu m
p ro b lem a hu m ano .
O b o m p rec ep to r não c o n fiará em m éto d o alg u m ,
estu d ará cad a u m d o s seus d iscíp u lo s ind iv id u alm ente.
N as relaç õ es q u e m antem o s co m as crian ças e o s ad o ­
le sce n te s, não d ev em o s en c ará-lo s co m o m áq u inas,
p assív eis d e “ en d ireitar” num instante, m as co m o seres
v iv o s, im p ressio náv eis, v o lú v eis, sensív eis, m ed ro so s,
afetiv o s; e no trato co m eles necessitam o s d e m u ita
c o m p reensão , d a fo rç a d a p ac iê n c ia e d o am o r. Q u an ­
d o carec em o s d essas q u alid ad es, reco rrem o s a rem é ­
d io s p ro nto s e fác eis, esp erand o resu ltad o s au to m áti­
co s e m arav ilho so s. Q u and o so m o s d esatento s, m e c â­
nico s em no ssas atitu d es e açõ es, exim im o -no s d e to d o
e q u alq u er m ister q u e no s p areç a incô m o d o e q u e não
p o ssam o s ex ec u tar au to m aticam en te; esta é u m a d as
p rinc ip ais d ificu ld ad es n a ed u c aç ão .
A c rian ç a tan to é resu ltad o d o p assad o co m o d o
p resen te, e co m o tal já está c o n d ic io n ad a. Se lhe
transm itim o s no ssa p ró p ria m en talid ad e, p erp etu am o s
tan to o seu co m o o no sso co n d icio n am en to . Só há
transfo rm aç ão rad ic al se co m p reend em o s no sso p ró ­
p rio c o nd ic io n am en to e no s liv ram o s d ele. D iscu tir
so b re o q u e d ev e ser ed u c aç ão c o rreta, en q u an to esta­
m o s co n d ic io n ad o s, é to talm en te fú til.
En q u an to as c rian ças são m u ito no v as, d ev em o s,
é claro , p ro teg ê-las c o n tra d ano s físic o s e não d eixar
q u e se sintam fisic am en te inseg u ras. M as, in fe liz ­
m ente, não p aram o s aí; q u erem o s fo rm ar suas m an ei­
ras d e p ensar e d e sentir, q u erem o s m o ld á-las d e ac o r­
d o co m as no ssas p ró p rias asp iraçõ es e in tento s. Bu s­
cam o s p reen c h er-n o s em no sso s filho s, p erp etu ar-n o s
atrav és d eles. Erg u e m o s m u ralhas em red o r d eleç,
co nd ic io n am o -lo s a no ssas c ren ç as e id eo lo g ias, tem o ­
res e esp eranç as — e d ep o is cho ram o s e rez am o s q u an ­
d o m o rrem o u fic am m u tilad o s nas g u erras, o u q u and o
as ex p e riê nc ias d a v id a lhes inflig em so frim ento s.
Essas ex p eriênc ias não traz em lib erd ad e alg u m a;
ao c o ntrário , fo rtific am a v o ntad e d o “ eu ” . O “ eu ” se
co n stitu i d e u m a série d e reaç õ es d efensiv as e ex p an ­
siv as, e seu p reen c him en to está sem p re em suas p ró ­
p rias p ro jeçõ es e ag rad áv eis id e n tific aç õ es. En q u an to
trad u z irm o s a ex p eriê n c ia em term o s relativ o s ao “ eu ” ,
a “ m im ” , ao “ m eu ” ; en q u anto o “ eu ” , o “ eg o ” , se m an-

26
li v er p o r m eio d e suas reaç õ es, a ex p e riên c ia não p o d e
ser liv re d e co n flito , co nfu são e d o r. A lib erd ad e v em
ao co m p reend erm o s a natu re z a d o “ eu ” , d o “ ex p eri­
m en tad o r” . Só q u and o o “ eu ” , co m suas reaçõ es
acu m u lad as, d eixa d e ser o “ ex p e rim en tad o r” , a ex p e­
riê n c ia assu m e um sig n ificad o in teiram e n te d iferente
e se transfo rm a em criação .
Para aju d ar a c rian ç a a lib e rtar-se d o s d itam es
d o “ eu ” , cau sad o res d e tanto s so frim ento s, c ad a um
d e nó s d ev erá m o d ific ar p ro fu n d am en te su a atitu d e e
suas relaç õ es co m a c rian ça. O s p ais e o s ed u cad o res
p o d em , co m séu p ró p rio enten d im ento e co n d u ta, aju ­
d ar a c rian ç a a ser liv re e a flo re sc er em am o r e b o n ­
d ad e.
A ed u c aç ão , no seu estad o atu al, não fav o rec e
d e m aneira alg u m a a co m p reen são d as ten d ên cias
hered itárias e d as in flu ên c ias am b ientais, q u e co nd i­
c io nam a m ente e o co ração e su stentam o tem o r; p o r
co nseg u inte, ela não no s aju d a a ro m p er esses c o n d i­
cio n am ento s p ara p ro d uz ir um ente hu m ano integrado.
Q u alq u er fo rm a d e e d u c aç ão q u e só aten d a a u m a
p arte e não à to talid ad e d o ho m em co nd u z , in ev ita­
v elm en te, a c o n flito s e so frim ento s c ad a v ez m aio res.
Só na lib erd ad e ind iv id u al p o d e flo re sc er o am o r
e a b o n d ad e; e só a ed u c aç ão c o rreta p o d e o fe rec er
essa lib erd ad e. N em o aju stam en to à so c ied ad e atu al
nem a p ro m essa d e u m a fu tu ra U to p ia p o d e, em tem ­
p o alg u m , d ar ao ind iv íd u o aq u ele d iscern im en to sem
o q u al ele está sem p re criand o p ro b lem as.
O v erd ad eiro ed u cad o r, q u e p e rc e b e a natu rez a
in trín seca d a lib erd ad e, aju d a c ad a um d o s seus d is­
cíp u lo s, ind iv id u alm en te, a o b serv ar e c o m p reend er os

27
v alo res e ilu sõ es p o r ele p ró p rio ( o d isc íp u lo ) criad o s
e “ p ro jetad o s” ( * ) ; aju d a-o a se to m ar cô nsc io d as
in flu ên cias co n d ic io n an tes q u e o c erc am , b em co m o
d o s seus p ró p rio s d esejo s, q u e lim itam a m ente e g eram
tem o r; aju d a-o , no cam in ho p ara a v irilid ad e, a o b ser­
v ar e a c o m p ree n d er a si p ró p rio em relaç ão a to d as
as co isas, p o rq u e a ânsia d e realiz ar no sso p ró p rio
p reen c h im en to é a cau sad o ra d e co n flito s e trib u laç õ es
infind áv eis.
É c erto q u e se p o d e aju d ar o ind iv íd u o a p e rc e ­
b e r o s v alo res p eren es d a v id a, sem c o nd ic io n á-lo .
D irão alg u ns q u e esse d esenv o lv im ento p leno d o in d i­
v íd u o lev ará ao cao s; é exato isso ? A co nfu são exis­
te n te no m u nd o surg iu p o rq u e o ind iv íd u o não fo i
ed u c ad o p ara c o m p reen d er a si p ró p rio . D eram -lh e
alg u m a lib e rd ad e su p e rficial, m as tam b ém lh e ensi­
naram a aju star-se, a ac e itar o s v alo res p rev alecen tes.
C o n tra esta “ arreg im en taç ão ” ( * * ) , m u ito s se estão
insu rg ind o ; esta rev o lta, in feliz m en te , é m era reação
eg o ístic a, q u e enso m b ra m ais aind a a no ssa existência.
O v erd ad eiro ed u cad o r, cô nsc io d a ten d ê n c ia d a m ente
p ara a reaç ão , aju d a o d iscíp u lo a alterar o s v alo res
atu ais, não reag ind o c o n tra eles, m as p ela co m p ree n ­
são d o p ro cesso to tal d a v id a. A p len a co o p eração
en tre um ho m em e o u tro não é p o ssív el sem a inte­
gração, e a ed u c aç ão c o rreta p o d e c o n trib u ir p ara d es­
p e rtá-la no ind iv íd u o .

( *) " P rojeção” ( p r o je c ti o n ) . “ P s ic o lo g ia : A to d e e x te rn a r o u o b je -
iiv u r <> q u e p rim a ria m e n te é s u b je tiv o .” ( D ic io n á rio de W e b s te r ) . (N .
do T. )
( " ) “ R e g im e n ta tio n ” (v e rb o — “ to re g im e n t” : “ o rg a n iz a r e m g ru ­
p o s o u u n id a d e s, p ara c o n tro le c e n tr a l; re d u z ir a u m a o rd e m e s tr ita ; re d u ­
z ir a urujormiihitle; c o m o , p o r e x e m p lo , s iste m a d e e d u c a ç ã o q u e arregi-
mrtita as c r ia n ç a s .” ( D i c i o n á r i o d e W e b s te r ) . ( N . d o T . ) .

28
Po r q u e afirm am o s co m tan ta seg u ran ça q u e n em
nó s nem a g eraç ão v ind o u ra p o d erá, p ela ed u c aç ão
c o rreta, p ro m o v er u m a fu n d am en tal alte raç ão d as
relaç õ es hu m an as? N u n ca a ex p erim en tam o s; e v isto
q u e, em g eral, p arece m o s te r m ed o d a e d u c aç ão c o r­
reta, não sentim o s v o ntad e d e ex p erim en tá-la. E sem
term o s realm en te in v e stig ad o esta q u estão a fu nd o ,
aleg am o s q u e a n atu rez a h u m an a não p o d e ser m o d i­
fic ad a, ac eitam o s as co isas co m o estão e estim u lam o s
a c rian ç a a aju star-se à p rese n te so c ied ad e; c o n d ic io ­
n am o -la p ara no ssa atu al m an e ira d e v iv er, e e sp era­
m o s d aí o s m elh o res resu ltad o s p o ssív eis. M as p o d e-
-se c ham ar ed u c aç ão a esse aju stam en to ao s v alo res
v ig entes, q u e lev am à g u erra e à fo m e?
N ão no s ilu d am o s co m a id é ia d e q u e tal c o n d i­
cio n am en to será u m fato r d e in te lig ê n c ia e fe lic id ad e .
Se co n tinu am o s m ed ro so s, d esafetu o so s, irrem e d iav el­
m en te ap átic o s, isso sig n ific a q u e não estam o s d ev eras
interessad o s em aju d ar o ind iv íd u o a “ flo re sc er p le n a­
m ente no am o r e na b o n d ad e ” , m as p referim o s q u e
c o n tin u e co m as m esm as trib u laç õ es q u e im p u sem o s a
nó s m esm o s, e nas q u ais ele tam b ém to m a p arte.
C o n d ic io n ar o d iscíp u lo p ara ac e itar o atu al am b i­
en te é m an ifesta insensatez . A m eno s q u e p ro m o v a­
m o s u m a rad ic al refo rm a d a ed u c aç ão , serem o s o s
resp o nsáv eis d ireto s p e la p e rp etu aç ão d o cao s e d a
m iséria; e q u and o , afin al, v ier u m a rev o lu ção m o ns­
truo sa e b ru tal, está só serv irá p ara p ro p o rc io nar a
um o u tro g ru p o d e p esso as a o p o rtu nid ad e d e ex p lo ­
rar e o p rim ir. To d o g rup o q u e d etém o p o d er c ria o s
sru s p ró p rio s m eio s d e o p ressão , q u er p ela p ersu asão
p sico ló g ica, q u e r p e la fo rç a b ru ta.

29
Po r m o tiv o s p o lític o s e ind u striais a d iscip lin a se
lo rno u u m fato r im p o rtan te n a ho d ierna estru tu ra so ­
c ial, e o no sso d esejo d e seg u ran ça p sic o ló g ic a no s
o b iig a a ac e itar e p ratic ar v árias fo rm as d e d iscip lina.
A d iscip lin a g aran te um resu ltad o , e p ara nó s o fim é
sem p re m ais im p o rtan te d o q u e o s m eio s; m as o s m eio s
d eterm in am o fim .
U m d o s p erig o s d a d iscip lin a é o sistem a to rn ar-
-se m ais rele v an te q u e o s entes hu m ano s nele c o m ­
p reend id o s. Passa en tão a d iscip lina a ser um su b sti­
tu to d o am o r, e co m o tem o s o s co raçõ es v az io s ap eg a­
m o -no s à d iscip lin a. A lib erd ad e n u n ca v irá p o r
m eio d a d iscip lina e d a resistênc ia, p o rq u e ela não é
um alv o , nem um fim a ser ating id o . A lib erd ad e está
no c o m eço e não no fim , e não p o d e ser en c o n trad a
em u m id e al d istante.
L ib e rd ad e não sig n ific a fac ilid ad e d e satisfação
eg o ísta o u o ab o lim en to d a co nsid eração p ara co m
o u trem . O m estre sincero terá d e p ro teg er as c rianç as
e aju d á-las, d e to d o s o s m o d o s p o ssív eis, a se d e sen­
v o lv erem p ara a v erd ad eira lib erd ad e; m as não p o d e­
rá faz er tal co isa se ele p ró p rio é sectário d e u m a id e o ­
lo g ia, se d e alg u m a m an eira se m o stra d o g m ático o u
eg o ísta.
Pela co m p u lsão não se d esp erta a sen sib ilid ad e.
Po d e-se o b rig ar u m a c rian ç a a fic ar q u ieta, ex terio r­
m ente, m as isso in d ic a q u e não q u isem o s ex am in ar a
c an sa q u e a faz o b stin ad a, inso len te, e tc . A c o m p u l­
s ã o g era antag o nism o e tem o r. A rec o m p en sa e a
p u n i ç ã o , d e q u alq u er esp éc ie, só serv em p ara to rnar
a i n c n l e su b serv iente e lerd a; se v isam o s a este o b je ­
t i v o , e n t ã o a ed u c aç ão p ela fo rç a co nstitu i um m éto d o

ex celen te.

30
U m a ed u c aç ão d esse tip o não no s p o d e aju d ar
a c o m p ree n d er a c rian ç a, nem há d e co nstru ir um
am b ie n te so cial isento d e d iv isõ es e ranc o res. N o am o r
à c rian ç a está im p lic ad a a ed u c aç ão c o rreta. Ma's, em
g eral, não am am o s no sso s filho s; tem o s am b iç õ es co m
re ferên c ia a eles — o q u e sig n ific a q u e tem o s am b i­
çõ es co m relaç ão a nó s m esm o s. A nd am o s, in fe liz ­
m en te , tão o cu p ad o s co m as co isas d a m ente, q u e p o u ­
c o tem p o no s resta p ara aten d er ao s d itam es d o c o ra­
ção . A fin al, d iscip lin a im p lic a resistên c ia; p o d erá a
resistên c ia alg u m a v ez traz er am o r? A d iscip lin a só
p o d e co nstru ir m u ralhas ao red o r d e nó s; é sem p re
p ro ib itiv a, sem p re um fato r d e c o n flito . A d iscip lin a
não co nd u z à co m p ree n são ; p o rq u e a co m p reensão
n asc e d a o b serv aç ão , d a in v e stig aç ão in teiram en te liv re
d e p reco n c eito s.
A d iscip lin a é um m éto d o fác il d e c o n tro lar u m a
c rian ç a, m as não a co nd u z à co m p reensão d o s p ro ­
b lem as d a ex istên cia. T alv e z se ja p reciso u m a d ad a
esp éc ie d e co m p u lsão — a d iscip lina d e p u nição e
rec o m p e n sa — p ara m an ter a o rd em e ap aren te q u ie ­
tu d e en tre um g rand e nú m ero d e estu d antes reu nid o s
co m o u m reb an h o nu m a classe; p ara o v erd ad eiro ed u ­
c ad o r, p o rém , en c arreg ad o d e um p eq u eno nú m ero
d e d iscíp u lo s, será n ec essária q u alq u er esp éc ie d e
rep ressão , u rb an am en te d en o m inad a d iscip lin a? Se
as classes fo rem p eq u enas e o m estre p u d er d isp ensar
a c ad a c rian ç a to d a sua aten ç ão , o b serv an d o -a e aju ­
d and o -a, é ev id en tem en te d esn ec essária q u alq u er esp é­
c ie d e co m p u lsão o u d o m ínio . Se, d entro d e um
g ru p o d estes, um d iscíp u lo co n tinu a re n iten te m en te
Ittrb o ic o to o u trav esso , além d o s lim ites raz o áv eis, c ab e
n ilao ao ed u cad o r inv estig ar a cau sa d o seu m au

31
c o m p o rtam en to , co m o alim en taç ão in ad eq u ad a, falta
d e rep o u so , d isp u tas em fam ília, o u alg u m tem o r
o c u lto .
N a ed u c aç ão c o rreta está su b en ten d id o o cu ltiv o
d a lib erd ad e e d a in te lig ê n c ia, o q u al não é p o ssív el
se existe q u alq u er fo rm a d e co m p u lsão , co m o s tem o ­
res q u e insp ira. Em ú ltim a análise, ao ed u cad o r c u m ­
p re aju d ar o d iscíp u lo a c o m p ree n d e r as c o m p lexi­
d ad es d o seu ser integ ral. Ex ig ir-lh e q u e rep rim a u m a
p arte d a sua natu rez a, em b e n e fíc io d e u m a o u tra
p arte q u alq u er, é c riar n e le um c o n flito in term in áv el
d e q u e resu ltam antag o nism o s so ciais. É a in te lig ên ­
c ia q u e p ro d u z a o rd em , e não a d iscip lina.
O aju stam ento e a o b ed iê n c ia não c ab em na ed u ­
c aç ão c o rreta. N ão existind o afe iç ão e resp eito m ú ­
tuo s, é im p o ssív el a co o p eraç ão en tre m estre e d isc í­
p u lo . Q u and o se exig e da c rian ç a d e m o nstração d e
resp eito p ara co m o s m ais v elho s, essa- d em o n stração
em g eral se to rna um h áb ito , u m a m era fo rm alid ad e,
e o m ed o to m a a fo rm a d e v en eraç ão . Sem o resp eito
e a co nsid eração , não p o d e hav er u m a relaç ão d e v ital
im p o rtânc ia, so b retu d o q u an d o o m estre é sim p les
instru m ento d o seu p ró p rio sab er.
O m estre q u e exig e resp eito d o s seus d iscíp u lo s
e q u ase nenhu m resp eito d em o nstra p ara co m eles,
p ro v o ca-lhes o d esresp eito e a in d iferen ç a. Q u and o
não se co nsid era a v id a hu m ana, o sab er só p o d e lev ar
à d estru ição e ao so frim ento . O cu ltiv o d o resp eito
p aia co m o s o u tro s é p arte essen cial d a ed u c aç ão c o r­
reta, m as, se o p ró p rio ed u cad o r c are c e d essa q u ali­
d ad e“, não p o d e co nd u z ir seus d iscíp u lo s a u m a v id a
integrada.

32
In te lig ê n c ia é d iscernim ento d o essenc ial, e p ara
d iscern ir o essen cial tem o s d e estar liv res d o s o b stá­
cu lo s q u e a m en te “ p ro je ta” , na b u sc a d e sua p ró p ria
seg u ranç a e co nfo rto . En q u an to a m en te estiv er em ^
b u sca d e seg u rança, o m ed o é in ev itáv el; e, q u and o
o s entes hu m ano s são su b m etid o s, d e u m a o u d e o u tra
m aneira, a u m reg im e d iscip lin ar, d estró i-se-lh es o
d iscernim ento e a in telig ên c ia.
A fin alid ad e d a ed u c aç ão é c u ltiv ar relaçõ es c o r­
retas, não só en tre ind iv íd u o s, m as tam b ém en tre o
ind iv íd u o e a so c ied ad e ; eis a raz ão p o r q u e é essen ­
cial q u e a ed u c aç ão ac im a d e tud o aju d e o ind iv íd u o
a c o m p ree nd er o seu p ró p rio p ro cesso p sico ló g ico .
C o nsiste a in telig ên c ia em o ind iv íd u o c o m p reend er-
se, u ltrap assar e tran sc en d e r a si m esm o ; m as não
p o d e h av er in telig ên c ia se existe tem o r. O tem o r p e r­
v erte a in telig ên c ia, é u m a d as cau sas d a aç ão eg o ­
c ên tric a. A d iscip lina p o d e rep rim ir, m as nu n ca su p ri­
m ir o tem o r, e o sab er su p erficial q u e rec eb em o s na
ed u c aç ão m o d erna só serv e p ara esco n d ê-lo m ais
aind a.
Q u and o so m o s jo v ens, o tem o r no s é in stilad o , na
m aio ria d e nó s, tan to no lar co m o na esco la. N em
o s p ais, nem o s m estres, têm p ac iê n c ia, tem p o o u b o m
senso p ara extirp ar o s tem o res instintiv o s d a in fânc ia,
os q u ais, n a id ad e ad u lta, no s d o m inam as atitu d es e
o d iscernim ento , crian d o inú m ero s p ro b lem as. A ed u ­
c aç ão c o rreta d ev e lev ar em c o n ta a q u estão d o tem o r,
p o rq u e o tem o r d efo rm a to d a a no ssa p e rsp ec tiv a d a
v id a. Ser sem tem o r é o co m eç o d a sab ed o ria, e ap e­
nas a e d u c aç ão c o rreta p o d e lib ertar-n o s d ele, p o is só
nessa lib erd ad e há in telig ên c ia p ro fu nd a e criad o ra.

33
A rec o m p e nsa o u a p u niç ão p o r u m ato q u al­
q u er só tem o efeito d e fo rtale c e r o eg o centrism o . A
aç ao d estinad a a satisfaz er a o u trem , o u realiz ad a em
n o m e d a p átria o u d e D eu s, lev a ao m ed o , e o m ed o
n ã o p o d e ser a b ase d a aç ão co rreta. Se q u erem o s
aju d ar u m a c rian ç a a te r co nsid eração co m as o u tras
p esso as, não d ev em o s faz er d o am o r o b je to d e rem u ­
neraç ão , d e su bo rno , m as reserv ar tem p o e p ac iê n c ia
p ara en c am in h á-la na co nsid eração .
N ão h á resp eito a o u trem q u and o se o fe re c e um
p rêm io p o r ele, p o rq u e a reco m p en sa o u a p u nição
se to rna en tão m ais sig n ific ativ a d o q u e o sentim ento
d e resp eito . Se não resp eitam o s a c rian ç a e só lh e
o ferec em o s u m a rec o m p e n sa o u a am eaçam o s d e c as­
tig o , estim u lam o s a g an ân c ia e o m ed o . Po rq u e fo m o s
criad o s p ara ag ir sem p re co m interesse, não c o n c e ­
b em o s p o ssa hav er ação liv re d o d esejo d e g anho .
A e d u c aç ão co rreta é aq u ela q u e estim u la o res­
p eito e a c o n sid eração p ara co m os o u tro s, sem in c e n ­
tiv o s nem am eaç as d e esp éc ie alg u m a. Q u and o já
não estiv erm o s em b u sc a d e resu ltad o s im ed iato s,
c o m eç arem o s a p e rc e b e r q u anto é im p o rtan te que
tanto o ed u cad o r co m o a c rian ç a este jam liv res d o
tem o r d a p u nição e d a esp eran ç a d e reco m p en sa, e
d e q u alq u er o u tra esp éc ie d e co m p u lsão ; a co m p u lsão
existirá sem p re, en q u anto a au to rid ad e fiz e r p arte d a
vid a d e relação .
Seg u ir u m a au to rid ad e o fe rec e m u itas v antag ens,
s c s o m o s ap enas m o v id o s p elo in teresse d e g anho p e s­
s o a l ; m a s a ed u c aç ão b asead a na v antag em e no p ro ­
v e i t o ind iv id u ais só p o d e erg u er u m a estru tu ra so cial
de c o m p e tiç ão , antag o nism o e c ru eld ad e. Em tal

u
esp éc ie d e so c ied ad e fo m o s criad o s, e é b em m an i­
festa no ssa anim o sid ad e e no ssa co nfu são .
Fo m o s ensinad o s a su b m eter-n o s à au to rid ad e d e
um m estre, d e um liv ro , d e um p artid o , p o r ser v an ­
tajo so faz ê-lo . O s esp ec ialistas em to d o s o s seto res
d a v id a, d o sac erd o te ao b u ro c rata, em p u nham a au to ­
rid ad e e no s d o m inam ; m as q u alq u er g o v erno o u m es­
tre q u e em p reg u e co m p u lsão nu nc a será c ap az d e esta­
b e le c e r a c o o p eraç ão nas relaçõ es, essen c ial ao b em -
-estar d a so cied ad e.
Se q u erem o s e stab e le c e r relaç õ es c o rretas e n tre o s
seres hu m ano s, não d ev e hav er co m p u lsão , nem m esm o
p ersu asão . C o m o p o d e h av er afe to e g enu ína c o o p e ­
ração en tre o s q u e d etêm o p o d er e o s q u e a ele estão
su b m etid o s? Q u and o se c o nsid era sem p aixão esse
p ro b lem a d a au to rid ad e e tud o o q u e ele im p lica,
q u and o se p e rc e b e q u e o p ró p rio d esejo d e p o d er é,
em si, d estru tiv o , tem -se u m a esp o n tân ea co m p reen são
d e to d o o “ p ro c esso ” d a au to rid ad e. N o m o m ento em
q u e ab o lirm o s a au to rid ad e, estarem o s em p arc eria,
e só então hav e rá co o p eraç ão e afeto .
N a ed u c aç ão , o v erd ad eiro p ro b lem a é o ed u c a­
d o r. M esm o um p eq u en o g ru p o de estu d antes se
transfo rm a em in stru m ento d e sua in flu ên c ia p esso al,
se ele ex erc e a au to rid ad e co m o m eio d e im p o r-se, se
o m ag istério rep re sen ta p ara ele o p reen c h im en to d a
ânsia d e exp ansão d o seu p ró p rio ' eg o ” . M as c o n ­
co rd ar, ap enas, in tele c tu al o u v erb alm en te, so b re o s
efeito s d eletério s d a au to rid ad e, é co isa to la e v ã.
F p reciso te r p ro fu nd o d iscernim en to d o s m o ti­
ves o cu lto s d a au to rid ad e e d a d o m inação . Se reco -
nlieeem o s q u e a in telig ên c ia nu nc a p o d e ser d esp er-

35
tad a p ela co m p u lsão , o p ró p rio p erc eb im en to d esse
fato co nsu m irá na sua c h am a to d o s os tem o res, e c o m e­
çarem o s a c u ltiv ar um am b ien te co n trário e m u ito
su p erio r à p resen te o rd em so cial.
Para co m p ree n d e r o sig n ificad o d a v id a, co m
seus co n flito s e suas d o res, p recisam o s p ensar in d e­
p en d en tes d e to d a au to rid ad e, inclu siv e d a au to rid ad e
d a relig ião o rg an iz ad a; se, p o rém , d esejan d o aju d ar a
c rian ça, citam o s exem p lo s d e au to rid ad e, estarem o s
ap enas inc en tiv and o o tem o r, a im itaç ão e v árias fo r­
m as d e su p erstição .
O s q u e têm in c lin açõ es relig io sas p ro c u ram im p o r
às crianç as as esp eranç as e tem o res q u e eles, p o r sua
v ez , rec eb eram d o s p ais; e o s irrelig io so s têm ig ual
em p enho em influ ir na c rian ç a p ara im p o r-lhe a m a­
n eira d e p ensar q u e ac aso seg u em . To d o s q u erem o s
faz e r no sso s filho s ac e itar no ssa fo rm a d e d ev o ção ,
o u no ssa id eo lo g ia p red ileta. É m u ito fác il em aran h ar­
m o s na red e d as im ag ens e d as fó rm u las inv entad as
p o r nó s m esm o s o u p o r o u tro s; d aí d eco rre a n e c e s­
sid ad e d e estar sem p re m u ito atento s e v ig ilantes.
4 O q u e cham am o s relig ião não p assa d e c ren ç a
o rg aniz ad a, co m d o g m as, ritu ais, m istério s e su p ersti­
çõ es. C ad a relig ião tem seu liv ro sag rad o , seu in ter­
m ed iário , seus sacerd o tes e seus m éto d o s p ró p rio s d e
am e aç ar as p esso as e m antê-las so b seu d o m ínio .
Q u ase to d o s nó s fo m o s co n d icio nad o s p ara ac eitar
tu d o isso — e tal co nd ic i m am ento se c h am a ed u c aç ão
relig io sa, cu jo resu ltad o é d e p ô r o ho m em c o n tra o
ho m em , c riar antag o nism o não só en tre o s cren tes, m as
tam b ém c o n tra aq u eles d e c ren ças d iv ersas. Em b o ra
as relig iõ es p ro testem ad o rar a D eu s e ensinem o
am o r m ú tuo , to d as elas in stilam tem o r, co m suas d o u-

36
trinas d e rec o m p e nsa e p u nição e, co m a riv alid ad e
d e seus d o g m as, p erp etu am a d e sc o n fian ç a e o anta­
g o nism o .
D o g m as, m istério s e rito s não co nd u z em à v id a
esp iritu al. Ed u c aç ão relig io sa, no seu v erd ad eiro sen­
tid o , co nsiste em lev ar a c rian ç a a co m p reend er suas
p ró p rias relaç õ es co m as p esso as, co m as coisas e co m
a natu rez a. N ão h á p o ssib ilid ad e d e ex istên cia sem
relaç õ es e sem o au to co n he cim en to to d as as relaçõ es,
co m c ad a um e co m to d o s, p ro d uz em co n flito s e ad v er-
sid ad es. N atu ralm en te é im p o ssív el exp licar tud o isso
a u m a c rian ç a; se, p o rém , o ed u c ad o r e o s p ais ap reen­
d erem p ro fu n d am en te o sig n ificad o d as relaçõ es,
então , co m suas atitu d es, sua co nd u ta e ensinam ento s
p o d erão , sem d ú v id a, tran sm itir à c rian ç a, sem excesso
d e p alav ras e ex p lic aç õ es, o sig n ificad o d a v id a esp i­
ritual.
A c h am ad a ed u c aç ão relig io sa, tal co m o é m inis­
trad a, d esac o n selh a a inv estig ação e a d ú v id a, p o rém
só q u and o inv estig am o s o sig n ificad o d o s v alo res que
a so cied ad e e a relig ião c o lo c aram ao red o r d e nó s é
q u e co m eçam o s a d esc o b rir o v erd ad eiro . É m ister
d o ed u cad o r ex am in ar p ro fu n d am en te seus p ró p rio s
p ensam ento s e sen tim en to s e ab an d o n ar o s v alo res que
lhe d êem seg u ran ç a e c o n fo rto , p o rq u e só então será
cap az d e aju d ar seu s d iscíp u lo s a se o b serv arem a si
m esm o s e a c o m p reen d erem seus p ró p rio s im p ulso s e
tem o res.
A ju v e n tu d e é a ép o c a ad eq u ad a p ara crescerm o s
i m retid ão e lu c id e z . O s m ais v elho s, aq u eles que
leni co m p ree n são , é q u e p o d em aju d ar o s jo v ens a se
lil m•11:i r d o s em p ec ilh o s q u e a so cied ad e lhes im p ô s,
l i e m c o m o d o s q u e eles p ró p rio s estão ‘ p ro jetand o .

37
Se a m e n te e o c o raç ão d a c rian ç a não fo rem m o ld a­
d o s p o r p rev en ç õ es e p reco n c eito s, estará ela então
liv re p ara d esc o b rir, p elo au to co nh ecim en to , o q u e se
en c o n tra além e ac im a d ela p ró p ria.
A v erd ad eira relig ião não é um co n ju nto d e c re n ­
ças e rito s, esp eranç as e tem o res. Se p u d erm o s d eixar
a c rian ç a c re sc e r liv re d essas in flu ên c ias inib itiv as,
talv ez , no p erío d o d e am ad u recim en to , ela c o m eç ará a
inv estig ar a natu rez a d a realid ad e, d e D eu s. Eis p o r
q u e são nec essário s, n a ed u c aç ão d e u m a c rian ça, p ro ­
fu nd o d isce rn im en to e p ro fu nd a co m p reensão .
A m aio ria d as p esso as co m in c lin açõ es relig io sas,
q u e fala d e D eu s e d a im o rtalid ad e, não crê fu n d a­
m en talm en te na lib erd ad e e na in teg raç ão ind iv id u al;
en tretan to , relig ião é o cu ltiv o d a lib erd ad e, na b u sca
d o v erd ad eiro . A lib erd ad e não ad m ite m eias m ed i­
d as. L ib e rd ad e p arc ial p ara o ind iv íd u o não é lib e r­
d ad e, ab so lu tam en te. Q u alq u er esp éc ie d e c o n d ic io ­
nam ento , p o lític o o u relig io so , im p ed e a lib erd ad e e
n u n ca trará a p az .
A relig ião não é um m eio d e co nd ic io nam ento .
É um estad o d e q u ietu d e em q u e reina a realid ad e,
D eu s; m as esse estad o criad o r só p o d e m an ifestar-se
q u and o h á au to co n h ecim en to e lib erd ad e. A lib e r­
d ad e traz v irtu d e, e sem a v irtu d e não p o d e hav er
tran q ü ilid ad e . M en te tranq ü ila não é m en te c o n d i­
cio nad a, não é m ente d iscip linad a o u ex erc itad a em
estar tranq ü ila. Só v em a q u ietu d e q u and o a m ente
c o m p reend e seus p ró p rio s m o v im ento s, q u e são os
m o v im ento s d o “ eu ” .
R elig ião o rg aniz ad a é p ensam ento q u e se c o n g e­
lo u e co m o qual o ho m em co nstru iu seus tem p lo s e

38
suas ig rejas; ela se to rno u um co nso lo p ara o s tím id o s,
e um n arc ó tic o p ara o s q u e so frem . M as D eu s o u a
V erd ad e estão m u ito além d o p ensam ento e d as n e c e s­
sid ad es em o cio n ais. O s p ais e o s m estres q u e re c o ­
nh ec em o s p ro cesso s p sico ló g ico s g erad o res d o m ed o
e d o so frim ento d ev eriam aju d ar o s jo v ens a o b serv ar
e a co m p ree n d e r seus p ró p rio s c o n flito s e p ro v açõ es.
Se nó s, o s m ais v elho s, p u d erm o s ind u z ir as c rian ­
ças a p ensar co m clarez a e serenid ad e, a am ar e não
c riar anim o sid ad es, q u e m ais há p ara faz er? M as, se
estam o s c o n stan tem en te em g u erra uns co m o s o u tro s,
se so m o s inc ap az es d e im p lan tar a o rd em e a p az no
m u nd o co m a p ro fu nd a transfo rm aç ão d e nó s m esm o s,
d e q u e v alem o s liv ro s sag rad o s e m ito s d as v árias
relig iõ es?
A v erd ad eira e d u c aç ão relig io sa é aq u ela q u e aju ­
d a a c rian ç a a m anter-se in telig en tem en te d esp erta,
a d iscern ir p o r si m esm a o tem p o rário e o real, e a
ter u m a c o n c ep ç ão d esinteressad a d a v id a; e não teria
m ais sentid o c o m eç ar c ad a d ia, em casa o u na esco la,
co m um p en sam en to ed ific an te o u u m a leitu ra p ro ­
fu nd a e sig nific ativ a, d o q u e eng ro lar, rep etid am ente,
certas p alav ras o u frases?
A s g eraçõ es p assad as, co m suas am b iç õ es, trad i­
çõ es e id eais, en c h eram o m u nd o d e d esg raças e ru í­
nas; talv ez as g eraçõ es v ind o u ras p o ssam , co m a ed u ­
c aç ão c o rreta, p ô r fim a este cao s e co nstru ir u m a
o rd em so cial m ais feliz . Se o s jo v ens tiv erem esp írito
d e in v estig aç ão , se se p u serem em co n tín u a b u sc a d a
v erd ad e en c errad a em to d as as co isas, p o lític as e re li­
g io sas, p esso ais e am b ientais, então a ju v entu d e terá
g rand e sig nific aç ão e p o d erem o s nu trir esp eranças d e
um m u nd o m elho r.

39
A s c rianç as, em g eral, são curio sas, q u erem sab er;
nó s, p o rém , lhes em b o tam o s o esp írito d e in v e stig a­
ç ão co m no ssas asserçõ es p o n tific ais, no ssa im p ac iê n ­
c ia su p erio r, e o m o d o in d iferen te p o r q u e no s liv ra­
m o s d e sua cu rio sid ad e. N ão enc o rajam o s as in d ag a­
çõ es d as crian ças p o rq u e tem o s c erta ap reensão re lati­
v am ente ao q u e elas no s p o ssam p erg u ntar; não lhes
fav o rec em o s o d esc o n tentam en to , p o rq u e nó s m esm o s
já d esistim o s d e o b je tar.
A m aio ria d o s p ais e d o s m estres tem e o d e sc o n ­
ten tam en to , p o rq u e traz p ertu rb aç õ e s a to d as as fo r­
m as d e seg u ranç a; p o r isso , ind u z em o s jo v ens a su fo ­
cá-lo , co m em p reg o s seg u ro s, heranç as, casam en to , e
a co n so laç ão d o s d o g m as relig io so s. O s m ais v elho s,
q u e in fe liz m en te c o n h ec em m u ito b em to d o s os m é to ­
d o s d e em b o tar a m ente e o co raç ão , p ro cu ram to rnar
a c rian ç a tão em b o tad a q u anto eles p ró p rio s, in c u l­
c and o -lh e o resp eito às au to rid ad es, às trad içõ es e às
c ren ç as q u e eles m esm o s ac eitaram .
* Só estim u land o a c rian ç a a d u v id ar d o liv ro , não
im p o rta q u al seja, a exam inar a v alid ad e d o s v ig entes
v alo res so ciais, trad iç õ es, fo rm as d e g o v erno , c renç as
relig io sas, etc ., p o d em , o ed u cad o r e o s p ais, ter esp e­
ran ç a d e d esp ertar e m an ter v iv o s, nela, o senso c rític o
e o d iscernim ento p e netran te.
O s jo v ens v erd ad eiram ente d esp erto s m o stram -se
cheio s d e esp eranç as e d e d e sc o ntentam entp ; assim
d ev em ser, p o rq u e d o co n trário já estão v elho s e m o r-
lo s. E os v elho s são o s d esc o ntentes d e o u tro ra q u e
lo g raram su fo car essa c ham a e en c o n trar, d e v árias
m aneiras, a seg u ranç a e o co nfo rto . A nseiam p ela p e r­
m anên cia d e si p ró p rio s e d e suas fam ílias, d esejam

40
ard en te m en te a c ertez a, nas id éias, nas relaçõ es, nas
p o sses; e, no in stan te em q u e sentem d esc o n ten ta­
m ento , ab so rv em -se nas resp o n sab ilid ad es, nas o c u p a­
çõ es o u no q u e q u er q u e seja, p ara fu g ir ao incô m o d o
sentim ento d e in satisfação .
A ju v e ntu d e é a ép o c a p ró p ria p ara o d e sc o n ten ­
tam ento , não só co m nó s m esm o s, m as tam b ém co m as
co isas em d erred o r. D e v eríam o s ap re nd er a p ensar
co m clarez a e sem p reco n c eito s, p ara não serm o s in te-
' rio rm en te d ep end entes e tím id o s. A in d ep en d ên c ia
não fo i fe ita p ara aq u ela seção co lo rid a d o m ap a a
q u e cham am o s no ssa p átria, senão p ara nó s m esm o s
co m o ind iv íd u o s; e, em b o ra ex terio rm ente d ep end am o s
uns d o s o u tro s, essa d ep en d ên c ia m ú tu a não se to rna
nem cru el nem o p ressiv a, se in terio rm en te estam o s
liv res d a ânsia d e p o d er, p o sição , e au to rid ad e.
D ev em o s c o m p reen d er o d esc o n tentam en to , tem i­
d o p ela m aio ria d entre nó s. O d e sc o n ten tam en to p o d e
g erar u m a co nfu são ap aren te ; m as, se co nd u z ir, co m o
nec essariam en te d ev e co nd u z ir, ao au to co n h ecim en to
e à neg ação d o eu, h á d e c riar u m a no v a o rd em so cial
e u m a p az d u rad o u ra. C o m a neg ação d o “ eu ” v em
um jú b ilo im enso .
O d e sc o n tentam en to é o cam inho q u e lev a à lib e r­
d ad e; m as, p ara p o d erm o s in v estig ar sem p reco nc eito s,
não p o d em o s m anifestar efu sõ es em o cio n ais, d essas
q u e m u itas v ez es se trad u z em em co m ício s p o lítico s,
p ro clam açõ es d e “ slo g ans” , b u sc a d e g uru o u instru to r
esp iritu al, e extrav ag ân cias relig io sas d e to d a o rd em .
Tais efu sõ es em b o tam a m ente e o co raç ão , to rnand o -
<>s incap az es d e d iscern im en to e, p o r co n seg u in te,
fac ilm ente m o ld áv eis p elas c ircu nstân c ias e p elo te ­
mo r. É o d esejo ard e nte d e inv estig ar, e não a fác il

41
im itaç ão d a tu rb a, q u e trará u m a no v a co m p reensão
d as co isas d a v id a.
O s jo v ens d eixam -se fac ilm e n te p ersuad ir, p elo
sac erd o te, p elo p o lític o , p elo ric o o u p elo p o b re, a p en ­
sar d e d eterm in ad a m an eira; m as a ed u c aç ão co rreta
d ev e aju d á-lo s a estar v ig ilantes c o n tra essas in flu ê n ­
cias, p ara q u e não se p o nham a rep etir chav õ es co m o
p ap ag aio s, o u v enham a cair nas arm ad ilhas h ab il­
m en te d issim u lad as d a av id ez , d eles p ró p rio s o u d e
o u trem . N ão d ev em p e rm itir q u e a au to rid ad e lhes
su fo q u e a m ente e o c o ração . Seg u ir o u tra p esso a, p o r
m aio r q u e seja, ad erir a u m a id eo lo g ia ag rad áv el não
p ro d u z irá jam ais um m u nd o p ac ífic o .
A o d eixarm o s a esco la o u o co lég io , m u ito s d e
nó s ab an d o n am o s liv ro s, su p o nd o talv ez q u e n ad a
m ais têm p ara ap rend er; o u tro s sen tem -se estim u lad o s
a ir m ais lo n g e e co ntinu am a ler e a ab so rv er o s d iz e­
res alheio s, to rn and o -se d ev o to s d o sab er. H av end o
d ev o ção ao sab er o u à té c n ic a, co m o m eio d e su cesso
o u d e d o m ínio , h av erá co m p etiç ão im p ied o sa, an tag o ­
nism o e a c resc en te lu ta p elo p ão .
En q u an to o su cesso fo r o no sso alv o , não no s
liv rarem o s d o tem o r, p o rq u e o d esejo d e b o m êxito
g era in ev itav elm en te o m ed o d e insu cesso . Eis p o r
q u e não d ev em o s ensinar o s jo v ens a id o latrar o su ces­
so . A m aio ria d as p esso as p ro c u ra o su cesso d e q u al­
q u er fo rm a, seja no cam p o d e tênis, seja no m u nd o
c o m erc ial, se ja na p o lític a. To d o s q u erem o s estar p o r
cim a e este d esejo c ria c o nstante co nflito d entro d e
nó s m esm o s e co m o no sso p ró xim o ; lev a à co m p e tiç ão ,
à inv eja, à anim o sid ad e e, p o r ú ltim o , à g u erra.
C o m o a v elha g eração , p ro cu ram tam b ém os
jo v ens o bo m êxito e a seg u rança; em b o ra no c o m eço

42
d esco n ten tes, não tard am a to rn ar-se p esso as re sp e i­
táv eis, q u e não o u sam d iz er não à so cied ad e. A s m u ­
ralhas d e seus p ró p rio s d esejo s co m eç am a fe c h ar-se
em to rno d eles, lev and o -o s a to m ar nas m ão s as réd eas
d a au to rid ad e. Seu d esc o n ten tam en to , q u e é a p ró ­
p ria c h am a d a inv estig ação , d a b u sca, d a c o m p reen-
sãç , v ai-se am o rtecend o , até exting u ir-se d e to d o , e
seu lu g ar é o cu p ad o p elo d esejo d e um em p reg o m e ­
lho r, um casam en to ric o , u m a c arre ira triu n fal — tud o
isso exp ressõ es d a ânsia d e m aio r seg u rança.
N ão h á d iferen ç a essen cial en tre o s v elho s e os
m o ço s, p o rq u e tanto uns co m o o u tro s são escrav o s d o s
seus p ró p rio s d esejo s e p raz eres. A m ad u rez a nad a
tem q u e v er co m a id ad e; ela v em co m a co m p reensão .
O ard e nte esp írito d e inv estig aç ão é talv ez m ais fác il
p ara os jo v ens, p o rq u e o s m ais v elho s já fo ram m u ito
fu stig ad o s p ela v id a, o s co n flito s o s cansaram , e a
m o rte, d e d iferentes fo rm as, o s esp reita. Isso não
sig nific a q u e sejam inc ap az es d e reso lu ta inv estig aç ão ,
ap enas lhes é m ais d ifícil.
M u ito s ad u lto s são im atu ro s e um p o u co in fan tis;
esta é u m a d as cau sas q u e c o n trib u em p ara a c o n fu ­
são e a m iséria rein an te s no m u nd o . São o s m ais
v elho s o s resp o nsáv eis p ela atu al crise ec o n ô m ic a e
m o ral; e u m a d as no ssas d ep lo ráv eis fraq u ez as é d ese­
jar q u e alg u ém atu e p o r nó s e m o d ifiq u e o curso d e
no ssas v id as. Esp eram o s q u e o u tro s se rev o ltem e
rec o nstru am , enq u anto p erm anecem o s inativ o s até te r­
m o s c e rte z a d o s resu ltad o s.
É atrás d a seg u ran ça e d o b o m êxito q u e and a­
mo s, q u ase to d o s nó s; a m ente q u e b u sc a seg u ran ça,
q u e asp ira a ser b em su ced id a, não é in telig en te e,
p o r co n seg u in te, é inc ap az d a aç ão integrada. Só p o d e

43
luiv er aç ão integrada se estam o s c o n sc ien tes d o no sso
p ró p rio co nd ic io nam en to , d e no sso s p reco n c eito s ra­
ciais, nac io n ais, p o lític o s e relig io so s; isto é, se p e rc e ­
b em o s q u e as ativ id ad es d o “ eu ” são sem p re sep ara-
tiv as.
A v id a é um p o ço d e ág u as p ro fu nd as. D e le p o d e­
m o s ab eirar-n o s co m p e q u eno s b ald es e ap an har só
um p o u co d ’ág u a; o u p o d em o s traz er g rand es re c i­
p ientes e c o lh er ág u a co m fartu ra, q u e no s d ará ali­
m ento e fo rças. A ju v e n tu d e é a ép o c a p ró p ria p ara
inv estig ar, su b m eter tud o à p ro v a. D ev e a esco la
aju d ar o s jo v ens a d esc o b rir suas v o caçõ es e resp o nsa­
b ilid ad es, e não ap enas en c h er-lh es a m ente d e fato s
e co nh ecim en to s téc n ic o s; d ev e ser o so lo o nd e eles
p o ssam c re sc e r liv res d e tem o res, feliz es, e integral­
mente.
Ed u c ar u m a c rian ç a é aju d á-la a c o m p reend er a
lib erd ad e e a integração. Para se ter lib erd ad e é p re ­
ciso o rd em , a q u al só a v irtu d e p o d e d ar; e a integra­
ção só é p o ssív el q u and o há g rand e sim p licid ad e. D as
no ssas inú m eras co m p lexid ad es d ev em o s am ad u recer
p ara a sim p licid ad e — to rnar-no s sim p les, em no ssa
v id a in terio r e em no ssas nec essid ad es exterio res.
A ed u c aç ão atu al está to d a interessad a na e f ic i­
ên c ia exterio r, d esp rez and o in teiram e n te o u p e rv er­
tend o , co m d elib eração , a natu rez a in trín se ca d o
ho m em ; só cu id a d e d esenv o lv er u m a p arte d ele, d ei­
xand o q u e o resto se arraste co m o p o ssa. N o ssa in te ­
rio r co nfu são , no sso antag o nism o e tem o r ac ab am sem ­
p re p o r su b v erter a estru tu ra exterio r d a so cied ad e,
p o r m elho r q u e ela ten h a sid o c o n c e b id a e p o r m ais
hab ilm en te q u e se tenh a ed ificad o . N ão hav end o ed u ­
c aç ão c o rreta, d estru ím o -no s uns ao s o u tro s, e é-no s

44
neg ad a a seg u ranç a físic a. Ed u c ar o estu d an te c o rre ­
tam ente é aju d á-lo a c o m p reen d er o p ro cesso to tal d e
si m esm o ; p o rq u e só co m a in teg raç ão d a m en te e d o
co ração , no ag ir co tid iano , é q u e p o d e hav er in te li­
g ênc ia e transfo rm aç ão interio r.
A o m esm o tem p o q u e m in istra c o n hec im en to s e
p rep aro téc n ic o , a ed u c aç ão d ev e, so b retu d o , estim u ­
lar u m a v isão integrada d a v id a; d ev e aju d ar o estu ­
d ante a rec o n h e c e r e a q u eb rar, em si p ró p rio , to d as
^ as d istinçõ es e p reco n c eito s, e d em o v ê-lo d a áv id a
b u sc a d e p o d er e d e d o m ínio . D e v e in c en tiv ar a c o r­
reta au to -o b serv aç ão e o ex p e rim en tar d a v id a co m o
um to d o , q u er d iz er, não atrib u ir sig n ific ação à p arte,
ao “ eu ” e ao “ m eu ” , m as, sim , aju d ar a m ente a tran s­
c en d er a si p ró p ria p ara d esco b rir o real.
A lib erd ad e só n asc e co m o au to co nh ecim en to ,
nas o c u p açõ es d e c ad a d ia, isto é, em no ssas relaçõ es
co m p esso as, co isas, id éias e a n atu rez a. Se o ed u ­
c ad o r q u er aju d ar o d iscíp u lo a ser integrado, não
d ev e d ar p reem in ên c ia exag erad a, fan átic a, a nenhu m
asp ecto iso lad o d a v id a. A co m p reen são d o p ro cesso
to tal d a ex istên c ia traz a integração. Q u and o h á au to ­
c o n h ec im en to , exting u e-se a c ap ac id ad e d e c riar ilu ­
sõ es e só então é p o ssív el m an ifestar-se a realid ad e
o u D eu s.
O s entes hu m ano s p recisam ser integ rad o s, a fim
d e saírem incó lu m es d e u m a crise q u alq u er, e sp e c ial­
m ente d a p resen te crise m u nd ial; p o r co n seg u in te, o
p rinc ip al p ro b lem a d e p ais e d e m estres q u e têm , d e
fato , interesse na ed u c aç ão , é o d e fo rm ar ind iv íd u o s
integrados. Para faz ê-lo , é claro , o ed u cad o r d ev e ser,
ele p ró p rio , um ind iv íd u o integrado; a ed u c aç ão c o r­
reta, p o rtanto , é d e su m a im p o rtânc ia, não só p ara

45
o s jo v ens, m as tam b ém p ara a g eração m ais v elha, d es­
d e q u e este ja d isp o sta a ap ren d er e não se ten h a c ris­
taliz ad o d e fin itiv am en te em suas m aneiras d e ser. O
q u e so m o s em nó s m esm o s é m u ito m ais im p o rtan te
d o q u e a trad ic io n al q u estão so b re o q u e se d ev e en si­
nar à c rian ç a; e, se am am o s no sso s filho s, cu id arem o s
d e q u e tenh am o s ed u cad o res co nv en ientes.
O m ag istério não d ev e to rnar-se um a p ro fissão d e
esp ecialistas. Se isto su ced e — co m o é m u ito co m u m
—, o am o r d esap arece ; e o am o r é essenc ial ao p ro ­
cesso d a integração. Para u m a p esso a ser integrada,
é n ecessário liv rar-se d o tem o r. O d esterno r traz in d e­
p en d ên c ia sem cru eld ad e, sem d esp rez o p ara co m
o u trem , e é o fato r m ais relev an te na v id a. Sem am o r,
não p o d em o s reso lv er no sso s nu m ero so s e c o n trad i­
tó rio s p ro b lem as; sem am o r, a aq u isição d e sab er só
serv e p ara au m entar a co nfu são e lev ar à au to d es­
tru ição .
O ho m em integrado c h eg ará à té c n ic a p elo “ ex p e­
rim en tar” , p o rq u e o im p u lso criad o r p ro d uz sua p ró ­
p ria té c n ic a — esta é a m aio r d e to d as as artes. Q u an ­
d o u m a c rian ç a sente o im p u lso criad o r p ara p intar,
c o m eç a a p intar, sem se p reo cu p ar co m té c n ic a alg u ­
m a. A nalo g am ente, o s q u e estão exp erim en tan d o e,
d estarte, ensinand o , são o s ú nico s m estres v erd ad ei­
ro s q u e criarão , tam b ém , sua téc n ic a p ró p ria.
Isto , q u e p arece m u ito sim p les, rep resen ta na v e r­
d ad e u m a p ro fu n d a rev o lu ção . Se refletirm o s a seu
resp eito , p e rce b erem o s o extrao rd inário e feito q u e
p ro d u z irá na so cied ad e. A m aio ria d o s ho m ens, atu al­
m ente, ao s q u aren ta e cinc o o u c in q ü en ta ano s, está
estio lad a p ela escrav iz aç ão à ro tin a, liq u id ad a p ela
co n tem p o riz ação , p elo m ed o e p ela su b m issão — aind a

46
q u e c o n tin u e a lu tar nu m a so cied ad e q u e p o u co sig ni­
fic a, ex c eto p ara o s q u e a d o m inam e q u e estão em
seg u rança. Se o m estre tem c o n sc iê n c ia d este fato e
ele p ró p rio está experimentando, q u aisq u er q u e sejam
seu tem p eram en to e suas ap tid õ es, seus ensinam ento s
não serão m atéria d e ro tina, e sim um instru m ento d e
aju d a.
Para co m p reen d erm o s u m a c rian ça, d ev em o s
o b serv á-la q u and o b rin c a, estu d á-la em suas d iferen ­
tes d isp o siçõ es; não p o d em o s “ p ro je tar” ne la no sso s
p ró p rio s p reco nc eito s, esp eranç as e tem o res, o u m o l­
d á-la e aju stá-la ao p ad rão d o s no sso s d esejo s. Se
estam o s c o n stan tem e n te ju lg and o a c rian ç a d e aco rd o
co m no sso s g o sto s e av ersõ es p esso ais, é in ev itáv el q u e
criem o s b arreiras e o b stácu lo s em no ssas re laç õ es co m
ela e em suas relaç õ es co m a v id a. In fe liz m en te , em
g eral, q u erem o s fo rm ar a c rian ç a d e m an eira q u e satis­
faç a às no ssas p ró p rias v aid ad es e id io ssin crasias; sen­
tim o s, em g rau s v ariáv eis, co nfo rto e satisfação n a p o s­
se e no d o m ínio exclusiv o s.
T al m an eira d e ag ir não é um estad o d e relaç ão ,
m as sim p les im p o sição e, p o r co n seg u in te, é essenc ial
se c o m p ree nd a o d ificu lto so e co m p lexo p ro b lem a d o
d o m ínio . Ele assu m e m u itas fo rm as su tis; e no seu
asp ecto “ v irtu o so ” é so b rem o d o o b stin ad o . O d esejo
d e “ serv ir” , co m a in c o n sc ien te am b iç ão d e d o m inar,
é d ifíc il d e co m p reen d er. Po d e h av er am o r o nd e há
esp írito d e p o sse? Po d em o s estar em co m u nhão co m
aq u eles q u e d esejam o s d o m inar? D o m in ar sig nific a
faz er uso d e o u trem p ara no ssa satisfação p ró p ria, e na
u tiliz ação d e o u tra p esso a não p o d e hav er am o r.
H av end o am o r, há co n sid e ração , não só p ara co m
as crianç as, m as tam b ém p ara co m to d o s o s seres

47
hu m ano s. O u no s d eixam o s p en etrar p ro fu n d am en te
p elo p ro b lem a, o u nu n ca enco n trarem o s o m éto d o
co rreto d e ed u c aç ão . O m ero p rep aro té c n ic o c o n ­
co rre in ev itav elm en te p ara a c ru eld ad e, e p ara ed u ­
carm o s os no sso s filho s p recisam o s ser sensív eis a
to d o s o s m o v im ento s d a v id a. O q u e p ensam o s, o
q u e faz em o s, o q u e d iz em o s, tem in fin ita im p o rtânc ia,
p o rq u e c ria o am b ien te, e este o u aju d a o u en trav a a
crianç a.
Ev id en te m en te, aq u eles q u e sentirem p ro fu nd o
interesse p elo p ro b lem a d ev erão c o m eç ar a c o m p re­
en d er a si m esm o s e co nc o rrer, assim , p ara tran sfo r­
m ar a so c ied ad e ; assu m ir a o b rig aç ão im ed iata d e d ar
no v o sentid o â ed u c aç ão . Se am am o s no sso s filho s,
não en co ntrarem o s um a fo rm a d e ac ab ar d efin itiv a­
m ente co m a g u erra? M as, se estam o s ap enas u sand o
a p alav ra “ am o r” , sem su b stânc ia, isto é, sem re al­
m ente senti-lo , to d o o co m p lexo p ro b lem a d o so fri­
m ento hu m ano co ntin u ará a existir. A so lu ção d esse
p ro b lem a d e p en d e d e nó s m esm o s. D ev em o s co m eç ar
a c o m p reen d er no ssas re laç õ es co m o s sem elhantes,
co m a n atu rez a, co m as id éias e co isas, p o rq u e sem
essa co m p reen são não há esp eranç a nem p o ssib ilid ad e
d e sairm o s d o co nflito e d o so frim ento .
A e d u c aç ão d e u m a c rian ç a req u e r in telig en te
o b serv aç ão e z elo . O s esp ecialistas, co m to d a a sua
c iê n c ia, não p o d em su b stitu ir o am o r d o s p ais, m as a
g rand e m aio ria d estes co rro m p e esse am o r co m seus
p ró p rio s tem o res e am b iç õ es, q u e c o n d ic io n am e d efo r­
m am a v isão d a c rian ça. A ssim , b em p o u co s d e nó s
se im p o rtam co m o am o r, c o n ten tan d o -se co m a ap a­
rên c ia d e am o r.

48
A atu al estru tu ra p ed ag ó g ic a e so cial não lev a o
ind iv íd u o à lib erd ad e e à integração; se o s p ais sentem
alg u m in teresse e d esejam q u e a c rian ç a d esenv o lv a ao
m áxim o suas cap ac id ad es, d ev em m o d ific ar a in flu ­
ên c ia d o lar e in teressar-se p ela c riação d e esco las co m
ed u cad o res ad eq u ad o s.
A in flu ên c ia d o lar e a in flu ên c ia d a esco la não
d ev em ser d e m o d o alg u m c o n trad itó rias; lo g o , é m is­
ter q u e tanto o s p ais co m o o s m estres ree d u q u em a
' si p ró p rio s. A c o n trad iç ão , tantas v ez es existente en tre
a v id a p riv ad a d o ind iv íd u o e sua v id a co m o m em b ro
d o g rup o , g era u m a lu ta in c essan te em seu íntim o e em
suas relaçõ es.
Esse c o n flito é estim u lad o e m antid o p ela ed u c a­
ção in c o rreta, e tanto o s g o v erno s co m o as relig iõ es
o rg aniz ad as ag rav am a co nfu são , co m suas d o u trinas
co ntrad itó rias. A c rian ç a d esd e m u ito ced o fic a in ti­
m am en te d iv id id a, e d aí resu ltam d esastres p esso ais
e so ciais.
Se to d o s o s q u e am am o s no sso s filho s e re c o n h e­
cem o s a u rg ênc ia d esse p ro b lem a a ele no s d ed ic ás­
sem o s d e m ente e co ração , então , p o r m eno s nu m ero ­
so s q u e fô ssem o s, p o d eríam o s, atrav és d a ed u c aç ão e
d e um co m p reensiv o am b ien te d o m éstico , c o n trib u ir
p ara a fo rm aç ão d e entes hu m ano s integrados; m as,
se, co m o tanto s o utro s, ench em o s no sso s c o raçõ es co m
as astú cias d a m ente, co ntinu arem o s a v er no sso s
filho s d estru íd o s p ela g u erra, p ela fo m e, e p elo s p ró ­
prio s co n flito s p sico ló g ico s.
A ed u c aç ão c o rreta v em co m a tran sfo rm aç ão d e 4-
nó s m esm o s. D ev em o s reed u car-n o s p ara não no s m a­
tarm o s m u tu am ente p o r n en hu m a cau sa, p o r m ais

49
“ sag rad a” q u e seja, p o r id eo lo g ia alg u m a, p o r m ais
q u e p ro m eta a fe lic id ad e fu tu ra p ara o m u nd o . D e v e ­
m o s ap rend er a ser co m p assiv o s, a co n ten tar-n o s co m
p o u co , e a b u sc ar o Su p rem o , p o rq u e só então p o d erá
o c o rrer a v erd ad eira salv ação d a hu m anid ad e.
C A P ÍT U L O III

IN T E L E C T O , A U T O R ID A D E
E IN T EL IG ÊN C IA

M u ito s d e nó s p arece m ac red itar q u e, ensi­


nand o to d o s o s entes hu m ano s a ler e a escrev er, reso l­
v erem o s o s p ro b lem as hu m ano s; m as essa id éia é p ro -
v ad am ente falsa. A s p esso as co nsid erad as cu ltas não
são am an tes d a p az , entes integrados, send o tam b ém
resp o nsáv eis p ela co nfu são e p elas m isérias d o m u nd o .
Ed u c aç ão c o rreta sig n ific a d esp ertar a in telig ên ­
cia, c u ltiv ar um a v id a integ rad a, e só tal ed u c aç ão
p o d e c riar u m a no v a civ iliz aç ão e um m u nd o p ac í­
fic o ; m as, p ara im p lan tar esta no v a esp éc ie d e ed u ­
c ação , tem o s d e c o m eç ar d e no v o , nu m a b ase in te ira­
m ente d iferen te .
En q u an to o m u nd o d esab a ao red o r d e nó s, esta­
m o s d iscu tind o teo rias e v ãs q u estõ es p o lític as, e
en tretem o -n o s co m refo rm as su p erfic iais. N ão in d i­
c ará esta atitu d e ab so lu ta falta d e co m p reen são d a
no ssa p arte? A lg uns d irão q u e sim , m as co ntin u arão
a faz e r ex atam en te a m esm a co isa q u e sem p re fiz eram
— essa é a tristez a d a v id a. Q u and o o u v im o s u m a
v erd ad e e não ag im o s lo g o , ela se tran sfo rm a em v ene-

51
no d entro d e nó s, e este v eneno se esp alha, g erand o
p e rtu rb aç õ e s p sico ló g icas, d eseq u ilíb rio e d o ença.
A p enas ao d e sp ertar no ind iv íd u o a in telig ên c ia c ria­
d o ra, existe a p o ssib ilid ad e d e um a v id a c b e ia d e p az
e fe lic id ad e.
N ão p o d em o s to rnar-no s in telig en tes ap enas su bs­
titu ind o uin g o v erno p o r o u tro , um p artid o o u classe
p o r o u tra, um exp lo rad o r p o r o u tro . A rev o lu ção
c ru en ta n u n ca reso lv erá no sso s p ro b lem as. Só u m a
p ro fu n d a rev o lu ção interio r, q u e altere to d o s o s no s­
so s v alo res, p o d e c riar um am b ien te d iferen te, u m a
estru tu ra so cial in te lig e n te ; e u m a rev o lu ção d este
g ênero só p o d e ser realiz ad a p o r v ó s e p o r m im .
N enhu m a o rd em no v a su rg irá enq u anto , ind iv id u al­
m ente, não d errib arm o s no ssas b arreiras p sico ló g icas e
no s to rnarm o s liv res.
Po d em o s traç ar so b re o p ap el o s p lano s d e u m a
b rilh an te U to p ia, d e um v alo ro so m u nd o no v o ; m as
o sac rifíc io d o p re sente a um fu tu ro d esco nh ecid o
não reso lv erá, p o r certo , nenhu m d o s no sso s p ro b le­
m as. São tanto s o s elem ento s q u e interv êm en tre o
ag o ra e o fu tu ro , q u e ning u ém p o d e p rev er co m o ele
será. O q u e p o d em o s e d ev em o s faz er, se estam o s d e
fato interessad o s, é atirar-no s im ed iatam en te ao s n o s­
so s p ro b lem as e não ad iá-lo s p ara o p o rv ir. A ete rn i­
d ad e não está no fu tu ro ; a ete rn id ad e é ag o ra. N o s­
so s p ro b lem as estão no p resen te e só no p resen te
p o d em ter so lução .
Se tem o s v erd ad eiro in teresse, d ev em o s reg en e-
rar-no s; m as só h av erá reg en eraç ão q u and o no s lib e r­
tarm o s d o s v alo res q u e criam o s co m o s no sso s d esejo s
ag ressiv o s d e au to p ro teç ão . O au to co nh ecim en to é o

52
c o m eço d a lib erd ad e, e só q u and o no s co nh ecerm o s
a nó s m esm o s farem o s n asc er a o rd em e a p az .
A q u i, p e rg u ntarão alg u ns: “ Q u e p o d e faz e r um
só ind iv íd u o , d e efeito , na h istó ria? Po d e realiz ar
alg u m a co isa im p o rtan te co m su a m an eira d e v iv er? ”
Po d e, in d u b itav elm en te. V ó s e eu não p o d em o s, é
v erd ad e, su star as g u erras im ed iatas o u c riar u m a
in stan tân ea co m p reensão en tre as n aç õ es; m as p elo
m eno s p o d em o s su scitar, no m u nd o d e no ssas relaçõ es
d iárias, u m a b ásic a e efetiv a transfo rm ação . «=--•
O esclare cim e n to ind iv id u al p o d e d e fato influ ir
em g rand es co letiv id ad es, d esd e q u e o ind iv íd u o não
e ste ja ansio so p elo s resu ltad o s. Q u and o só p ensam o s
em g anho e resu ltad o s, a v erd ad eira tran sfo rm aç ão é
im p o ssív el.
O s p ro b lem as hu m ano s não são sim p les, m as
ex trem am en te co m p lexo s. Para c o m p reen d ê-lo s é p re­
ciso p ac iên c ia e d iscern im ento , e é d e su m a im p o r­
tân c ia q u e nó s, co m o ind iv íd u o s, o s reso lv am o s p o r
nó s m esm o s. Ele s não p o d em ser co m p reend id o s co m
o au xílio d e fó rm u las cô m o d as o u d e “ slo g ans” ; nem
tam p o u co ser reso lv id o s no s seus resp ec tiv o s nív eis
p o r esp ecialistas, o s q u ais, seg u ind o sem p re d eterm i­
nad a linha d e ação , c riarão p o r c erto m ais co nfu são e
m isérias. N o sso s inú m ero s p ro b lem as só serão c o m ­
p reend id o s e so lu cio nad o s, q u and o estiv erm o s c ô n s­
cio s d e nó s m esm o s co m o u m p ro cesso to tal, isto é,
ao co m p reend erm o s to d a a no ssa estru tu ra p síq u ic a;
nenhum g u ia p o lític o o u relig io so p o d e d ar-no s a c h a­
ve d essa co m p reensão .
Para in d iv id u alm en te no s co m p reen d erm o s, d ev e­
m o s estar c o n sc ien tes d as no ssas relaçõ es, não só co m

^3
p esso as, m as tam b ém co m a p ro p ried ad e, co m as
id éias, e co m a natu rez a. Se q u erem o s o p erar u m a
v erd ad eira rev o lu ção nas relaç õ es hu m anas, q u e são
a b ase d e to d a so c ied ad e, tem o s d e faz e r u m a trans­
fo rm aç ão fu n d am en tal em no sso s p ró p rio s v alo res e
no ssa p ersp ec tiv a; m as ev itam o s essa tran sfo rm aç ão e
p ro cu ram o s fo m en tar no m u nd o rev o lu çõ es p o líticas,
as q u ais co nd u z em inv ariav elm ente a m o rtic ínio s e
d esastres.
A s relaç õ es b asead as na sensação nu nc a p o d em
ser um m eio d e no s lib ertarm o s d o “ eu ” ; en tretan to , a
m aio r p arte d as no ssas relaç õ es se b aseia na sensação ,
é p ro d uto d o no sso d esejo p esso al d e v antag em , c o n ­
fo rto e seg u ranç a p sico ló g ica. Em b o ra p o ssam o fe re ­
cer-no s u m a m o m en tânea fu g a d o “ eu ” , essas relaçõ es
só têm o efeito d e refo rç á-lo em suas ativ id ad es iso lan-
tes e escrav iz an tes. A s relaç õ es são um esp elho em
q u e se p o d e v er o “ eu ” em to d as as suas ativ id ad es, e
só q u and o fo rem co m p reend id o s o s m o v im ento s d o
“ eu ” , nas reaç õ es d a v id a d e relaç ão , d ar-se-á a c ria­
d o ra lib ertaç ão d o ju g o d o “ eu ” .
Para se tran sfo rm ar o m u nd o , é nec essária a no s­
sa reg en eraç ão interio r. N ad a se co nseg u e co m a v io ­
lê n c ia, co m a fác il liq u id aç ão m ú tu a. Po d em o s en c o n ­
trar um tem p o rário d esafo g o ad erind o a g rup o s, estu ­
d and o m éto d o s d e refo rm a so cial e ec o n ô m ica, d e c re ­
tand o leis, o u rez and o . M as, não im p o rta o q u e faç a­
m o s, se não p o ssuím o s o au to co nh ecim en to e o am o r
q u e lhe é in erente, no sso s p ro b lem as co ntin u arão a
exp and ir-se e m u ltip liç ar-se infin d av elm en te. Já se
ap licarm o s no ssa m en te e no sso co ração à tare fa d e
no s co nhecerm o s, reso lv erem o s então , sem d ú v id a alg u ­
m a, to d o s os no sso s co nflito s e trib u laç õ es.

54
A e d u c aç ão m o d erna no s está transfo rm and o em
entid ad es sem co m p reensão ; ela faz m u ito p o u co no
sentid o d e aju d ar-no s a d e sc o b rir no ssa v o c aç ão in d i­
v id u al. Passam o s em certo s exam es e d ep o is, se tem o s
so rte, arran jam o s um em p reg o — o q u e q u ase sem ­
p re sig n ific a u m a interm ináv el ro tina p ara o resto d a
v id a. ■+■Po d em o s não g o star d o no sso em p reg o , m as
so m o s o b rig ad o s a co nserv á-lo , p o rq u e não tem o s
o u tro m eio d e v id a. Po d em o s d esejar faz er alg o in te i­
ram en te d iferen te, m as no sso s co m p ro m isso s e resp o n­
sab ilid ad es no -lo im p ed em ; e sentim o -no s, tam b ém ,
inib id o s p elas no ssas p ró p rias ansied ad es e tem o res.
A ssim , fru strad o s, b u scam o s a fu g a no sexo , na b e b id a,
na p o lític a, o u nu m a relig ião d e fantasia.
A o serem c o n trariad as no ssas am b iç õ es, d am o s
im p o rtânc ia d esm ed id a ao q u e d ev eria ser no rm al, e
criam o s u m a id éia fixa. En q u an to não tiv erm o s u m a
co m p reensão to tal d a no ssa v id a e d o am o r, d o s no sso s
d esejo s p o lític o s, relig io so s e so ciais, co m suas ex ig ên ­
c ias e seus o b stácu lo s, terem o s em no ssas relaç õ es p ro ­
b lem as c ad a v ez m aio res, e eles no s trarão p ad e c i­
m ento s e d estru içõ es.
Ig n o rân c ia é a falta d e co n h ecim en to d a natu rez a
d o “ eu ’", e esta ig n o rânc ia não p o d e ser d issip ad a p o r
ativ id ad es e refo rm as su p erfic iais; só se d issip a co m o
no sso co n stan te p erc e b im en to d o s m o v im ento s e re a­
çõ es d o “ eu ” em to d as as suas relaçõ es.
O q u e p recisam o s co m p reend er é q u e não so m o s
ap enas c o n d ic io n ad o s p elo am b iente, m as q u e somos
o am b ie n te , q u e não estam o s sep arad o s d ele. N o sso s
p ensam ento s e reaç õ es são co nd icio nad o s p elo s v alo ­
res q u e a so cied ad e, d a q u al so m o s u m a p arte, no s
im p es.

55
N u nca p erc eb e m o s q u e so m o s o am b ie n te in te ­
g ral, p o rq u e existem em nó s d iv ersas entid ad es, e g ra­
v itam to d as em red o r d o “ eu ” . O “ eu ” é co nstitu íd o
d essas entid ad es, q u e são m ero s d esejo s em v árias fo r­
m as. D esse co ng lo m erad o d e d esejo s su rg e a fig u ra
cen tral, o “ p ensad o r” , a v o ntad e d o “ eu ” , e stab e le c e n ­
d o -se assim u m a d iv isão en tre o “ eu ” e o “ não -eu ” ,
en tre o “ eu ” e o am b ie n te o u so cied ad e. Esta sep a­
raç ão é o c o m eço d o co n flito , interno e externo .

O p e rc eb im en to d esse p ro cesso in teg ral — tan tc


o p ro cesso c o n sc ie n te co m o o o cu lto — é m ed itaç ão ;
p o r m eio d essa m ed itação , o “ eu ” , co m seus d esejo s e
co nflito s, p o d e ser transcend id o . O au to co nh ecim en to
é necessário , se d esejam o s fic ar liv res d as in flu ên c ias
e d o s v alo res q u e p ro teg em o “ eu ” ; só nessa lib erd ad e
existe a criação , a v erd ad e, D eu s, o u co isa eq u iv alen te.
O b o m c o n c eito e a trad iç ão m o ld am -no s o s p en ­
sam ento s e sen tim en to s d esd e a id ad e m ais tenra. A s
in flu ên c ias e im p ressõ es im ed iatas p ixtd uzem efeito
m arc an te e d u ráv el, traçan d o to d o o curso d a no ssã
v id a c o n sc ien te e in c o n sc ien te. O aju stam en to co m e­
ç a na m en in ic e, co m a e d u c aç ão e a in flu ên c ia d a
so cied ad e.
O d esejo d e im itar é um p o d ero so fato r em no ssa
v id a, não só no s nív eis su p erfic iais, m as tam b ém no s
m ais p ro fu nd o s. Q u ase se p o d e d iz er q u e não tem o s
p ensam ento s e sen tim en to s in d e p en d en tes. Q u and o
o co rrem , são m eras reaç õ es e, p o r co n seg u in te, não
estão liv res d o p ad rão e stab e le c id o ; p o rq u e na reação
não há lib erd ad e.
A filo so fia e a relig ião e stab e le c e m m éto d o s p elo s
q u ais se p o d e c h e g ar à c o m p reen são d a v erd ad e o u

56
d e D eu s; en tretan to , a o b serv ân cia d e um m éto d o
sig nific a p erm an ec er sem co m p reensão nem integra­
ção, p o r m ais b e n e fíc io s q u e o m éto d o p are ç a o fe re ­
cer-no s em no ssa v id a so cial d e cad a d ia. O im p ulso
à ad ap taç ão , q u e é d esejo d e seg u rança, g era tem o r e
p õ e na d ian te ira as au to rid ad es p o lític as e relig io sas,
o s líd eres e o s heró is, q u e no s estim u lam à su b serv iên­
c ia e p elo s q u ais so m o s d o m inad o s, su til o u g ro sseira­
m e n te ; m as o não su b m eter-se é ap enas u m a reaç ão
c o n tra a au to rid ad e, q u e d e m o d o alg u m co n co rre p ara
no s to rnar entes hu m ano s integ rad o s. A reaç ão não
tem fim , p o is sem p re lev a a o u tra reação .

O aju stam ento a q u alq u er p ad rão , co m seu su b s­


trato d e tem o r, rep re se n ta um o b stác u lo ; m as o sim p les
rec o n h ec im e n to in tele c tu al d esse fato não rem o v e o
o b stácu lo . Só q u and o tem o s p lena c o n sc iên c ia d ele é
q u e no s p o d em o s lib ertar, sem criarm o s no v as e m ais
extensas séries d e em p ecilho s.
Se so m o s in terio rm en te d ep en d entes, a trad iç ão
ex erc e fo rte d o m ínio so b re rió s; e a m ente q u e p ensa
p elas ro tinas trad ic io n ais n u n ca p o d e d esc o b rir aq u ilo
q u e é no v o . E , q u and o no s aju stam o s, to rnam o -no s
m ed ío cres im itad o res, sim p les d entes d e u m a im p ie­
d o sa m áq u ina so cial. O q u e nós p ensam o s é q u e m ais
im p o rta, e não o q u e o u tro s querem q u e p ensem o s.
Su b m etend o -no s à trad ição , em p o u co tem p o no s to r­
nam o s m eras có p ias d aq u ilo q u e “ d ev eríam o s” ser.
A im itaç ão d aq u ilo q u e “ d ev eríam o s ser” g era
m ed o ; e o m ed o d estró i o p ensam ento criad o r. O
m ed o em b o ta a m ente e o c o ração , d e m o d o q u e não
p o d em o s estar d esp erto s p ara sentir o inteiro sig n ifi­
cad o d a v id a; to rnam o -no s insensív eis ao s no sso s p ró ­

V >7
p rio s so frim ento s, ao s m o v im ento s d o s p ássaro s, ao s
so rriso s e às lág rim as alheias.
O tem o r, tan to c o n sc ie n te co m o in c o n sc ien te, tem
m u itas e d iferentes cau sas, e a aten ta v ig ilân cia é q u e
no s liv ra d e to d as elas. N ão p o d em o s elim inar o tem o r
p ela d iscip lina, p ela su b lim aç ão o u p o r o u tro q u al­
q u er ato d a v o n tad e: cu m p re d esc o b rir-lh e as cau sas
e c o m p reen d ê-las, e isso req u er p ac iên c ia e um a p e r­
cep ç ão ise n ta d e ju lg am ento .
È relativ am en te fác il c o m p reen d er e d issip ar no s­
so s tem o res c o n sc ien tes. M as o s in c o n sc ien tes nem
seq u er são d esco b erto s p ela m aio ria d e nó s, p o rq u e
não o s d eixam o s su bir à su p e rfíc ie ; e q u and o , em raras
o casiõ es, eles em erg em , tratam o s im ed iatam en te d e
esco n d ê-lo s, d e fu g ir d eles. O s tem o res o cu lto s se
anu nciam m u itas v ez es p o r m eio d e so nho s e o u tras
fo rm as d e su g estão , e são cau sad o res d e m aio res d ano s
e co nflito s d o q u e o s tem o res su p erficiais.
N o ssa v id a não está ap enas à su p erfície, a m aio r
p arte se o c u lta à o b serv ação m eno s aten ta. Se d e se­
jam o s q u e o tem o res secreto s saiam à luz e se d issip em ,
a m ente c o n sc ien te tem d e estar tranq ü ila, e não p e re ­
nem en te ag itad a; d ep o is, q u and o esses tem o res su rg i­
rem à su p e rfíc ie, d ev erão ser o b serv ad o s sem resistên ­
c ia alg u m a, p o rq u e to d a fo rm a d e c o n d en aç ão o u ju sti­
fic aç ão só p o d e fo rtale c er m ais aind a o m ed o . Para
no s lib ertarm o s in teiram en te d o tem o r, d ev em o s estar
cô nscio s d e sua in flu ên c ia p ertu rb ad o ra, e só u m a v ig i­
lânc ia constante p o d e rev elar-n o s as suas m ú ltip las
causas.
Um a d as c o n seq ü ên cias d o m ed o é a ac e itaç ão d a
au to rid ad e na ex istên cia hu m ana. A au to rid ad e é c ria­

58
d a p elo no sso d esejo d e estar certo s, seg u ro s, em c o n ­
fo rto , d e v iv er liv res d e c o n flito s o u p e rtu rb açõ es c o n s­
c ie n tes; m as nad a q u e resu lte d o tem o r p o d e aju d ar-
no s a c o m p reen d er no sso s p ro b lem as, aind a q u e o
m ed o assu m a o asp ecto d e resp eito e su bm issão ao s
q u e são tid o s p o r “ sáb io s” . O sáb io não ex erc e au to ri­
d ad e alg u m a, e o s q u e a exerc em não rev elam sab e­
d o ria. O tem o r, so b q u alq u er fo rm a, im p ed e-no s a
co m p reensão d e nó s m esm o s e d as no ssas relaçõ es co m
to d as as co isas.
A o b ed iê n c ia à au to rid ad e é ne g ação d a in teli­
g ên cia. A c eitar a au to rid ad e é su b m eter-se a d o m í­
nio , su jeitar-se a um ind iv íd u o , a um g rup o , a um a
id eo lo g ia relig io sa o u p o lític a; e a su bm issão à au to ­
rid ad e é a n eg aç ão não só d a in telig ên c ia, m as tam b ém
d a lib erd ad e ind iv id u al. A ad esão a um cred o o u sis­
tem a d e id éias é u m a reaç ão d e a u to p r o te ç ã 'A c e i ta r
a au to rid ad e pode aju d ar-n o s tem p o rariam en te a
esco nd er no ssas d ificu ld ad es e p ro b lem as, m as ev itar
um p ro b lem a é ap enas in te n sificá-lo e, q u and o o faz e ­
m o s, renu nc iam o s ao au to co n h ecim en to e à lib erd ad e.
C o m o é p o ssív el c o n ciliar a lib erd ad e co m a ac e i­
taç ão d a au to rid ad e? Se há c o n c iliaç ão , aq u eles q u e
d iz em estar à p ro c u ra d o au to co nh ecim en to e d a lib e r­
d ad e não estão faz end o esfo rço s sério s nesse sentid o .
É co m o se p ensássem o s q u e a lib erd ad e é u m a m eta
final, um alv o , e q u e p ara no s to rnarm o s liv res p re c i­
sam o s, em p rim eiro lu g ar, su jeitar-no s a v árias fo rm as
d e c o ib iç ão e intim id aç ão . Esp eram o s alc an ç ar a
lib erd ad e p ela su b m issão ; m as o s m eio s não têm a
m esm a im p o rtân c ia q u e o fim ? O s m eibs não m o ld am
o fim ?

59
Fara term o s p az , cu m p re u sar m eio s p ac ífic o s;
p o rq u e, se o s m eio s são v io lento s, co m o p o d e o fim
ser p ac ífic o ? Se o fim é a lib erd ad e, então o co m eç o
d ev e ser liv re, p o rq u anto o c o m eço e o fim estão u ni­
d o s. Só p o d e h av e r au to co n he cim en to e in telig ên c ia
q u and o existe lib erd ad e ex atam en te no c o m eç o ; e
n eg a-se a lib erd ad e co m a ac e itaç ão d a au to rid ad e.
D e v árias m aneiras v eneram o s a au to rid ad e :
sab er, b o m êxito , p o d er, etc . Ex erc em o s au to rid ad e
so b re o s m ais jo v en s e, ao m esm o tem p o , tem em o s a
au to rid ad e su p erio r. Se o p ró p rio ho m em não tem
v isão interio r, o p o d er e a p o sição assu m em eno rm e
im p o rtânc ia, e o ind iv íd u o , cad a v ez m ais su bm isso à
au to rid ad e e à co m p u lsão , se to rna ap enas u m instru ­
m ento . Po d em o s v er esse p ro cesso d esenv o lv er-se em
to rno d e nó s: em m o m ento s d e crise as n aç õ es d em o ­
c rátic as são ig u ais às to talitárias, esq u ec en d o a d em o ­
c rac ia e fo rçand o o ho m em à su bm issão .
C o m p reend end o a co m p u lsão late n te em no sso
d esejo d e d o m inar o u d e ser d o m inad o s, talv ez p o ssa­
m o s liv rar-no s d o s efeito s en to rp ece n tes d a au to rid ad e.
D esejam o s, ard en tem en te, estar seg uro s, estar certo s,
ser b em su ced id o s, sab er; e esse d esejo d e c ertez a, d e
p erm anênc ia, cria, d entro d e nó s, a au to rid ad e d a
so cied ad e, d a fam ília, d a relig ião , etc . M as a sim p les
reje iç ão d a au to rid ad e, a sim p les re je iç ão d o s seus
sím bo lo s exterio res, é d e m u i p o u ca v alia.
A b and o nar u m a trad ição p ara su b m eter-se a
o u tra, ab and o nar um g uia p ara seg u ir o u tro , é u m a
atitu d e b em su p erficial. Se q u erem o s estar cô nscio s
d e to d o o p ro cesso d a au to rid ad e, c o m p ree n d er sua
in trín seca natu rez a, c o m p reen d er e tran sc en d e r o
d esejo d e certez a, necessitam o s d e am p la p e rc e p ç ão e

60
d iscernim ento , d ev em o s ser liv res, não no fim , m as no
co m eço .
A ânsia d e c ertez a, d e seg u ranç a, é u m a d as p rin­
cip ais ativ id ad es d o “ eu ” ; é esse im p u lso tirân ic o q u e
d ev e ser v ig iad o sem d escanso e não ap enas to rcid o
o u fo rçad o a to m ar o u tra d ireção , o u p o sto em c o n fo r­
m id ad e co m um p ad rão d esejad o . O “ Eg o ” , o “ eu ” ,
0 “ m eu ” , é m u ito fo rte em q u ase to d o s nó s; d o rm ind o
o u aco rd ad o s, ele está sem p re d esp erto , sem p re a fo r­
talec er-se. M as, hav end o p erc e b im en to d o “ eu ” e a
co m p reensão d e q u e to d as as suas ativ id ad es, aind a
m ais sutis, as hão d e lev ar inev itav elm en te ao c o nflito
e à d o r, cessa d e to d o a ânsia d e c e rtez a e d e c o n ti­
nu id ad e. Precisam o s estar c o n stan tem en te v ig ilantes,
p ara no s serem rev elad as as tend ên c ias e artifíc io s d o
“ eu ” ; assim q u e co m eç am o s a co m p reend ê-lo s e a p e r­
c e b e r a sig n ific ação d a au to rid ad e, e tu d o o q u e está
im p lícito em no ssa ac e itaç ão o u re je iç ão d ela, já no s
estam o s d esem b araçan d o d a au to rid ad e.
En q u an to a m ente se d eixar d o m inar e g o v ernar
p elo seu p ró p rio d esejo d e seg u ranç a, não lh e será
p o ssív el lib ertar-se d o “ eu ” e d o s seus p ro b lem as; esta
é a raz ão p o r q u e não p o d em o s lib ertar-n o s d o “ eu ”
p o r m eio d o d o g m a e a c re n ç a o rg aniz ad a c ham ad a
1 alig ião . O d o g m a e a c re n ç a são ap enas p ro jeçõ es
d a no s ia p ró p ria m ente. O s rito s, o “ p u ja” , as fo rm as
co nsag rad as d e m e d itação , as p alav ras e frases c o n stan ­
tem ente rep etid as, em b o ra p ro p o rcio nem certas re a­
çõ es ag rad áv eis, não lib ertam a m ente d o “ eu ” e d as /
suas ativ id ad es; p o rq u e o “ eu ” é, na essênc ia, p ro d u to
do s sentid o s.
Em m o m ento s d e tril u lação , v o ltam o -no s p ara o
q u e cham am o s D eu s — p u ra im ag em d a no ssa p ró p ria

61
m ente — o u ach am o s ex p lic aç õ es satisfató rias, e isso
no s p ro p o rcio na co nfo rto tem p o rário . A s relig iõ es q u e
seg uim o s são criad as p elas no ssas esp eranç as e tem o ­
res, p elo no sso d esejo d e seg u rança e co nfo rto in te ­
rio res; e co m a v en eraç ão d a au to rid ad e, seja a d e
um salv ad o r, seja a d e um m estre o u sac erd o te, v em
a su bm issão , a ac eitaç ão , a im itaç ão . A ssim , so m o s
exp lo rad o s em no m e d e D eu s, tal co m o so m o s ex p lo ­
rad o s em no m e d e p artid o s e id eo lo g ias, — e c o n tin u a­
m o s so frend o .
To d o s so m o s hum ano s — não im p o rta o no m e q u e
no s atrib u ím o s — e so frer é o no sso d estino . O p enar
ating e a to d o s nó s, id ealistas e m aterialistas. O id ea­
lism o é u m a fu g a d o q u e é, e o m aterialism o é u m a
o u tra m aneira d e neg ar as p ro fu nd ez as inso nd áv eis do
p resente. T an to o id ealista co m o o m aterialista têm
suas m aneiras p ró p rias d e ev itar o co m p lexo p ro b lem a
d o so frim ento ; um e o u tro estão d o m inad o s p o r suas
p ró p rias ânsias, am b içõ es e co nflito s, e seu m o d o d e
v id a não co nd u z à tranq ü ilid ad e. São am b o s resp o n­
sáv eis p ela co nfu são e p elas m isérias d o m und o .
O ra, q u and o no s acham o s em estad o d e co n flito ,
d e so frim ento , não h á co m p reensão ; nesse estad o , no s­
sa ação , p o r m ais h áb il e d esv elad am ente q u e seja
c o n ce b id a, só p o d e lev ar a m aio r co nfu são e m aio r
so frim ento . Para co m p reend erm o s o c o n flito e, p o r
co n seg u in te, liv rar-no s d ele, é necessária u m a p e rc e p ­
ção lú cid a d o s m o v im ento s d a m ente c o n sc ien te e
inc o nsciente.
N ão h á id ealism o nem sistem a o u p ad rão d e
esp éc ie alg u m a q u e p o ssa ajud ar-no s a d eslind ar o s
p ro fu nd o s m o v im ento s d a m ente; p elo co ntrário , q u al­
q u er fo rm u lação o u co nclu são só im p ed ira seu d esc o ­

62
b rim ento . O esfo rç o p ara alc an ç ar o q u e “ d ev eria
se r” , a ad e rên c ia a p rinc íp io s e id eais, a d eterm in aç ão
d e um alv o — tu d o isso lev a a nu m ero sas ilusõ es. Se
q u erem o s c o n hec er-n o s, n ec essitam o s d e c erta esp o n ­
tan eid ad e, c e rta lib erd ad e p ara o b serv ar, e tal não
é p o ssív el q u and o a m en te está en c errad a no s v alo res
su p erficiais, id ealistas o u m aterialistas.
Ex istê n c ia sig n ific a relaç õ es; e q u er p ertençam o s
o u não a u m a relig ião o rg aniz ad a, q u er sejam o s m u n­
d ano s o u estejam o s p reso s na arm ad ilha d o s id eais, só
p o d em o s su p erar o so frim ento p ela co m p reen são d e
nó s m esm o s nas relaçõ es. A p enas o au to co nh ecim en to
p o d e traz er a tran q ü ilid ad e e a fe lic id ad e ao ho m em ,
p o rq u e o au to co n h ecim en to é o c o m eço d a in telig ên ­
c ia e d a in teg raç ão . A in telig ên c ia não é m ero aju sta­
m ento su p erfic ial; nem cu ltiv o d a m ente, aq u isição d e
sab er. In te lig ê n c ia é a c ap ac id ad e d e c o m p reend er as
co isas d a v id a, é a p erc e p ç ão d o s v alo res co rreto s.
A ed u c aç ão m o d erna, d esenv o lv end o o in tele c to ,
m in istra teo rias e m ais teo rias, fato s e m ais fato s, m as
não no s faz c o m p reen d er o p ro cesso to tal d a ex istên ­
c ia hu m ana. So m o s altam en te in telectu ais; d esenv o l­
v em o s m entes astu cio sas, e v iv em o s nu m em aranhad o
d e exp lic aç õ es. O in tele c to se satisfaz co m teo rias e
ex p licaçõ es, a in telig ên c ia não ; e p ara a co m p reensão
d o p ro cesso to tal d a ex istênc ia, é n ec essária u m a in te ­
g ração d a m ente e d o c o ração no ag ir. A in telig ên c ia
não está sep arad a d o am o r.
Para a m aio ria d e nó s é ex trem am en te d ifíc il re a­
liz ar esta rev o lu ção interio r. Sab em o s m ed itar, sab e­
m o s to c ar p iano , escrev er, m as não tem o s c o n h e c i­
m ento alg u m daquele q u e m ed ita, q u e to ca, q u e esc re­

6.3
ve. N ão so m o s criad o res, p o rq u e ench em o s d e sab er,
d e eru d iç ão e d e arro g ân c ia no sso s co raçõ es e no ssas
m entes; estam o s cheio s d e citaç õ e s d o q u e o u tro s p en ­
saram e d isseram . M as o exp erim entar v em em p ri­
m eiro lu g ar, e não a m an eira d e ex p erim entar. É
n ec essário q u e h aja am o r, p ara q u e p o ssa hav er a
exp ressão d o am o r.
Está claro , p o is, q u e d o m ero cu ltiv o d o in telecto ,
isto é, d o d esenv o lv im ento d as ap tid õ es e c o n h ec i­
m ento s, não resu lta in telig ên c ia. H á d istinç ão entre
in tele cto e in telig ên c ia. In te le c to é o p ensam ento fu n ­
cio nand o in d ep en d en te d a em o ção , e in telig ên c ia é a
c ap ac id ad e d e sentir e raciocinar; e enq u an to não
ap reciarm o s a v id a co m in telig ên c ia, e não ap enas co m
o in tele c to o u só co m o sentim ento , nenhu m sistem a
p o lític o o u ed u cativ o d o m u nd o no s salv ará d o cao s
e d a d estru ição .
A eru d ição não é co m p aráv el à in telig ên c ia, eru ­
d ição não é sab ed o ria. A sab ed o ria não é c o m e rc iá­
v el, não é artig o ad q u irív el p elo p reço d o estu d o e d a
d iscip lina. Ela não se en c o n tra no s liv ro s; não p o d e
ser acu m u lad a, g u ard ad a o u arm az enad a na m em ó ria.
V em a sab ed o ria co m a n eg aç ão d o “ eu ” . T e r a m ente
ab erta im p o rta m ais d o q u e ap rend er; e p o d em o s ter
a m ente ab erta, não q u and o a ab arro tam o s d e c o n h e c i­
m ento s, m as ao estarm o s cô nscio s d o s no sso s p ró p rio s
p ensam ento s e sentim ento s, ao o b serv arm o s co m c u i­
d ad o a nó s m esm o s e as in flu ên cias em d erred o r, ao
o u v irm o s a o u trem , ao co ntem p larm o s o rico e o p o b re,
o p o d ero so e o hu m ild e. N ão se ad q u ire sab ed o ria
m ed iante o tem o r e a o p ressão , m as só p elo exam e e
p ela co m p reensão d o s inc id entes d e c ad a d ia nas re la­
çõ es hu m anas.

M
C o m a no ssa b u sc a d e sab er, co m a no ssa av id ez
estam o s p erd end o o am o r, estam o s em b o tand o o se n ti­
m ento d o b elo , a sensib ilid ad e à c ru eld ad e ; es íam o -no s
to rnand o c ad a v ez m ais esp ec ializ ad o s e c ad a v ez m e­
no s integrados.
N ão p o d em o s su b stitu ir a sab ed o ria p ela eru d i­
ção , e não h á q u an tid ad e d e exp lic aç õ es, não há
acú m u lo d e fato s q u e lib e rte o ho m em d o so frim ento .
A eru d iç ão é nec essária, a c iê n c ia tem o seu lu g ar
p ró p rio ; m as, se a m ente e o co ração estão su fo cad o s
p e la eru d ição , e se a cau sa d o so frim ento é p o sta d e
p arte co m u m a ex p lic aç ão , a v id a se to rna v az ia e sem
sentid o . E não é isso q u e está ac o n tec en d o à m aio ria
d e nó s? N o ssa ed u c aç ão no s está to rnand o c ad a v ez
m ais su p e rficiais; não no s aju d a a d esc o b rir as c am a­
d as p ro fu nd as d o no sso ser, e no ssas v id as se estão
to rnand o c ad a v ez m ais d esarm ô nicas e v az ias.
O sab er, o c o n h ec im en to d e fato s, em b o ra em
co nstante cresc im en to , é p o r sua p ró p ria n atu rez a lim i­
tad o . A sab ed o ria é in fin ita, ab arc an d o o sab er e a
esfera d a aç ão ; m as, se no s ap o d eram o s d e um ram o ,
p ensam o s q u e tem o s a árv o re to d a. O co nh ec im en to
d a p arte n u n ca no s fará c o n h ec er a aleg ria d o to d o .
O in tele c to jam ais no s lev ará ao to d o , p o rq u e ele é
ap enas um seg m ento , u m a p arte.
Sep aram o s o in tele c to d o sen tim en to , d esenv o l­
v em o s o in te le c to à cu sta d o sen tim ento . So m o s co m o
um trip é co m u m a p ern a m ais lo n g a d o q u e as o u tras,
e não tem o s eq u ilíb rio . So m o s ed u cad o s p ara in te le c ­
tu ais; no ssa ed u c aç ão cu ltiv a o in tele c to p ara to rn á-lo
p en etran te, astu cio so , am b icio so , e assim ele tem o
p ap el m ais im p o rtan te em no ssa v id a. A in telig ên c ia
su p era o in te le c to p o rq u e é a integração d a raz ão e

65
d o am o r; m as só p o d e hav er in telig ên c ia q u and o há
au to co n h ecim en to , a p ro fu n d a co m p reensão d o p ro ­
cesso to tal d e nó s m esm o s.
O essenc ial p ara o ho m em , jo v em o u v elho , é q u e
v iv a p len a e in teg ralm en te, e, p o r co n seg u in te, no sso
m ais relev an te p ro b lem a é o cu ltiv o d a in telig ên c ia,
q u e traz integração. A trib u ir-se ind ev id a im p o rtânc ia
a q u alq u er u m a d as p artes d a no ssa o rg an iz ação to tal
d á-no s u m a v isão p arc ial e, p o rtan to , d efo rm ad a d a
v id a. É essa v isão d efo rm ad a q u e está cau sand o a
m aio ria d e no ssas d ificu ld ad es. To d o d esenv o lv im ento
p arc ial d e no ssa fe iç ão g eral será inev itav elm ente
d esastro so , tan to p ara nó s co m o p ara a so c ied ad e ; eis
p o r q u e é d a m aio r im p o rtân c ia q u e co nsid erem o s os
p ro b lem as hu m ano s d e um p o nto d e v ista integrado.
Se r um en te hu m ano integrado é co m p ree nd er o
p ro cesso co m p leto d a no ssa p ró p ria c o n sc iên c ia, tanto
o c u lta co m o ev id ente. N ão é p o ssív el ser integ rad o se
atrib u ím o s ind ev id o v alo r ao in telecto . M u ito v alo ri­
z am o s o cu ltiv o d a m ente, m as d entro d e nó s so m o s
in su fic ientes, p o b res e co nfu so s. V iv er p elo in tele c to
é o cam inho d as d esin teg raç ão , p o rq u e as id éias, assim
co m o as c ren ç as, não p o d em u nir as p esso as, a não
ser co m o g rup o s antag ô nico s.
En q u an to d ep end erm o s d o p ensam ento co m o
m eio d e in teg raç ão , hav e rá d esinteg raç ão ; co m p ree n ­
d er a aç ão d esin teg rad o ra d o p ensam ento é estar c ô n s­
cio d o s m o v im ento s d o “ eu ” , d o s m o v im ento s d o no sso
p ró p rio d esejo . D ev em o s ter c o n sc iên c ia d o no sso c o n ­
d ic io n am en to e d as suas reaç õ es, tan to co letiv as co m o
p esso ais. Só q u and o estam o s p erfe itam e n te cô nscio s
d as ativ id ad es d o “ eu ” co m seus d esejo s e lu tas c o n tra­

66
d itó rias, suas esp eranç as e tem o res, tem o s p o ssib ili­
d ad e d e tran sc en d e r o “ eu ” .
A p enas o am o r e o p ensar co rreto farão a v e rd a­
d eira rev o lu ção , a rev o lu ção interio r. M as co m o
p o d em o s ter am o r? Po d em o s tê-lo , não p elo cu ltiv o
d o id eal d o am o r, e sim q u and o não há ó d io , q u and o
não há av id ez , q u and o a c o n sc iê n c ia d o “ eu ” , cau sa
d e todo antag o nism o , se exting u e. U m ho m em to d o
entreg u e às ativ id ad es d e exp lo ração , g an ân cia, in v e ja,
nu n ca p o d erá am ar.
Sem am o r e sem p ensar c o rreto , a o p ressão e a
cru eld ad e c resc erão co ntin u am en te. C p ro b lem a d o
antag o nism o d o ho m em co m o ho m em p o d e ser reso l­
v id o , não p elo cu ltiv o d o id e al d a p az , m as p elo e n te n ­
d im ento d as cau sas d a g u erra, q u e resid em em no ssa
atitu d e p e ran te a v id a e p e ran te no sso s sem elhantes;
e este enten d im ento só su rg irá co m a ed u c aç ão c o rreta.
Sem u m a transfo rm aç ão d o co ração , sem b o a v o ntad e,
sem a m u d an ça interio r, o riu nd a d o au to p erc eb i-
m ento , não h av erá p az nem fe lic id ad e p ara o s ho m ens.

67
C A P IT U L O IV

ED U C A Ç Ã O E PA Z U N IV ER SA L

P a ra d esco b rirm o s o p ap el q u e a ed u c aç ão
p o d e ter na p re sente crise m u nd ial, d ev em o s c o m p re­
end er co m o se o rig ino u essa crise. Ela, ev id en tem en te,
d eco rre d e u m a falsa escala d e v alo res em no ssas re la­
çõ es co m as p esso as, co m a p ro p ried ad e e co m as
id éias. Se no ssas relaçõ es co m o s o u tro s se alic erç am
no d esejo d e g rand ez a, e a q u e m antem o s co m a p ro ­
p ried ad e se fu n d a na aq u isiçao , a estru tu ra d a so c ie­
d ad e será u m a estru tu ra d e c o n c o rrê n c ia e iso lam ento .
Se nas relaç õ es co m as id éias ju stific am o s u m a id eo ­
lo g ia em o p o sição a o u tra, nascem , inev itav elm en te, a
m ú tu a d esc o n fian ç a e a m alev o lênc ia.
O u tra cau sa d o p re sen te cao s é a su bm issão à
au to rid ad e, ao s g uias, q u er na v id a p rátic a, q u er na
esco la o u u n iv ersid ad e. O s g uias e sua au to rid ad e
são fato res d eg enerativ o s, em q u alq u er c iv iliz ação .
*■ A o seg u irm o s m tra p esso a não há co m p reensão , m as
só m ed o e su b m issão , d e q u e resu lta, p o r fim , a c ru e l­
d ad e d o Estad o to talitário e o d o g m atism o d a relig ião
o rg aniz ad a.

68
C o n fiar em q u e o s g o v erno s, as o rg aniz açõ es, as
au to rid ad es no s d êem a p az , q u e d ev e c o m eç ar co m
a co m p reen são d e nó s m esm o s, é c riar no v o s e m aio ­
res c o n flito s; e não h av erá fe lic id ad e d u rad o u ra
enq u anto ac eitarm o s u m a o rd em so c ial o nd e há p e re­
ne lu ta e antag o nism o en tre o s ho m ens. Se d esejam o s
m u d ar as c o nd iç õ es v ig entes, d ev em o s d e in íc io tran s­
fo rm ar-no s, isto é, d ev em o s estar cô nscio s d as no ssas
p ró p rias açõ es, p ensam ento s e sentim ento s na v id a d e
c ad a d ia.
M as não d esejam o s realm en te a p az , não no s in te ­
ressa p ô r c o b ro à exp lo raç ão . N ão q u erem o s in te rfe ­
rênc ias em no ssa av id ez , nem m o d ific aç õ e s nas b ases
d a no ssa estru tu ra so cial p resente; q u erem o s q u e as
co isas co ntin u em co m o estão , co m m o d ific açõ es ap e ­
nas su p erficiais, e p o r isso é in ev itáv el q u e o s p o d e­
ro so s e o s astu to s g o v ernem no ssas v id as.
A p az não se alc an ç a co m u m a id eo lo g ia, não
d ep end e d e le g islaç ão ; só v em q u and o co m eçam o s,
co m o ind iv íd u o s, a c o m p reen d er no sso p ro cesso p sic o ­
ló g ico . Se fu g im o s à reso o nsab ilid ad e d e ag ir ind iv i­
d u alm ente e esp eram o s sarja alg u m sistem a no v o p ara
im p lantar a p az , to rn ar-no s-em o s sim p les escrav o s
d esse sistem a.
Q u and o o s g o v erno s, o s d itad o res, o s m ag natas
d o co m érc io e o p o d er c le ric al co m eç arem a c o m p re­
en d er q u e esse c resc e n te antag o nism o en tre o s ho m ens
ró lev a à d estru ição ind iscrim inad a, e já não rep re­
senta um fato r d e lu cro , é p ro v áv el q u e no s fo rcem ,
p ela le g islaç ão o u p o r o u tro s m eio s co erc itiv o s, a d o m i­
nar no ssas ânsias e am b içõ es p esso ais e a c o o p erar p ara
o b e m -e star d a hu m anid ad e. E , assim co m o ag o ra

(V
no s ed u cam e ex erc itam p ara a c o m p etiç ão e a cru el-,
d ad e, serem o s então fo rçad o s a resp eitar-no s m u tu a­
m ente e a trab alh ar p ara o m u nd o co m o um to d o .
E, aind a q u e to d o s tenham o s o q u e co m er, o q u e
v estir e o nd e m o rar, não no s lib ertarem o s d o s c o n fli­
to s e antag o nism o s, q u e p assarão a o u tro p lano , aí
co ntinu and o a existir, m ais d iab ó lico s e d ev astad o res.
A ú nica ação m o ral o u ju sta é v o lu ntária, e só a co m ­
p reensão p o d e traz er a p az e a fe lic id ad e ao ho m em .
A s c ren ças, as id eo lo g ias e as relig iõ es o rg aniz ad as
no s p õ em c o n tra no sso s sem elhantes; há c o n flito , não
só entre co m u nid ad es d iferentes, m as en tre g rup o s d e
u m a m esm a co m u nid ad e. D ev em o s c o m p reen d er q u e,
enq u anto no s estiv erm o s id en tific an d o co m o um p aís,
enq u anto no s ap eg arm o s à seg u rança, enq u an to v iv er­
m o s co nd icio nad o s p o r d o g m as, hav erá sem p re lu ta
e so frim ento s d entro em nó s e no m und o .
H á tam b ém a q u estão d o p atrio tism o . Q u and o
é q u e no s sentim o s p atrio tas? O p atrio tism o não é
ev id en tem ente um a em o ção natu ral, d e to d o s os d ias.
So m o s d ilig en tem en te estim u lad o s a ser p atrio tas,
p elo s liv ro s esco lares, p elo s jo rnais e o u tro s m eio s d e
p ro p ag and a, q u e no s inc itam ao eg o tism o rac ial, p elo
culto ao s heró is nac io nais e p elo ensino d e q u e a no ssa
p átria e a no ssa m aneira d e v id a são m elho res d o
q u e as d o s o utro s. Este esp írito d e p atrio tism o alim en­
ta-no s a v aid ad e d esd e a in fânc ia até a v elhice.
A asserção c o nstantem en te rep etid a d e q u e p e r­
tencem o s a um certo g rup o p o lítico o u relig io so , q u e
so m o s d esta o u d aq u ela nação , liso njeia no sso s insig ­
nific an tes “ eg o s” , enfunand o -o s co m o v elas e d isp o n­
d o -no s, no fim , a m atar o u a m o rrer p ela no ssa p átria,

70
raç a o u id eo lo g ia. Tu d o isso é tão insensato e d esna­
tu rai! O ra, p o r certo , o s entes hu m ano s são m ais
im p o rtan tes d o q u e as fro nteiras nac io nais e id eo ló ­
g icas.
O esp írito sep aratista d o nac io nalism o está-se
alastrand o co m o um in cên d io p elo m u nd o to d o . O
p atrio tism o é cu ltiv ad o e sag az m ente exp lo rad o p elo s
q u e b u scam exp ansão , p o d eres m ais am p lo s, m ais
riq u ez a; e c ad a um d e nó s to m a p arte nesse p ro cesso ,
u m a v ez q u e tam b ém d esejam o s tais co isas. A c o n­
q u ista d e o u tras terras e d e o u tro s p o v o s p ro v ê no v o s
m ercad o s, não só p ara m ercad o rias, m as tam b ém p ara
id eo lo g ias p o lític as e relig io sas.
D ev em o s co nsid erar to d as essas exp ressõ es d a
v io lênc ia e d o antag o nism o co m a m ente liv re d e p re­
co nc eito s, isto é, co m um a m ente não id e n tific ad a co m
naç ão , raç a o u id eo lo g ia alg u m a, e q u e p ro c u ra co m ­
p re en d e r o q u e é v erd ad eiro . H á g rand e aleg ria em
v er as co isas c laram en te, sem so frer in flu ên c ia d as
id éias e p rece ito s d e o u tro s, tais co m o d o s g o v erno s,
d o s esp ecialistas, o u d o s eru d ito s. U m a v ez co m p e­
netrad o s realm en te d e q u e o p atrio tism o é um o b stá­
cu lo à fe lic id ad e hu m ana, não terem o s d e lu tar c o n­
tra essa falsa em o ção em nó s, p o rq u e ele se d esv ane­
c eu p ara sem p re.
O n ac io nalism o , o esp írito p atrió tico , a co nsciên ­
c ia d e classe e d e raç a são característic as d o “ eu ” , e,
p o r co n seg u in te, fato res d e sep aração . A final d e c o n­
tas, q u e é u m a n aç ão senão um g rup o d e ind iv íd uo s
q u e v iv em ju nto s p o r m o tiv o s eco nô m ico s e d e auto -
p ro teç ão ? D o m ed o e d o esp írito aq u isitiv o d e d efesa
p ró p ria, su rg e a id é ia d e “ m inha p átria” , co m suas
fro nteiras e suas b arreiras alfand eg árias, id éia essa

71
in c o m p atív e l co m a fratern id ad e e a u n ific aç ão dos
ho m ens.
O d esejo d e g o v ernar e p o ssuir, a ânsia d e estar­
m o s id entific ad o s co m alg o m aio r d o q u e nó s m esm o s,
cria o esp írito d e n ac io nalism o , e o nac io nalism o é o
p ai d a g u erra. Em to d o s o s p aíses, o s g o v erno s, secu n­
d ad o s p ela relig ião o rg aniz ad a, estão nu trind o o n ac io ­
nalism o e o esp írito d e d esu nião . O nac io nalism o é
u m a d o enç a e n u nc a há d e p ro m o v er a u nião m u nd ial.
N ão p o d em o s ad q u irir saú d e atrav és d a d o enç a; p re­
cisam o s em p rim eiro lu g ar liv rar-no s d a d o ença.
Po rq u e so m o s nacio nalistas e estam o s p ro nto s a
d efen d er no sso s Estad o s so b erano s, no ssas c ren ç as e
co nq u istas, v iv em o s p erp etu am ente arm ad o s. A p ro ­
p ried ad e e as id éias to rnaram -se m ais im p o rtantes p ara
nó s d o q u e a v id a hu m ana, e p o r isso há co nstan te
antag o nism o e v io lênc ia en tre nó s e o s o u tro s. Para
m an ter a so b erania d a no ssa p átria, estam o s d estru in ­
d o no sso s filho s. Rend end o cu lto ao Estad o , q u e nad a
m ais é d o q u e u m a “ p ro jeção "’ d e nó s m esm o s, estam o s
sac rific an d o no sso s filho s à no ssa p ró p ria satisfação .
O nacio nalism o e os g o v erno s so b erano s são as cau sas
e o s instru m ento s d a g uerra.
N o ssas atu ais institu içõ es so ciais não p o d em ev o l­
v er p ara u m a fed eração m u nd ial, v isto q u e seus p ró ­
p rio s alic erc es não são sad io s. O s p arlam ento s e os
sistem as d e ed u c aç ão q u e su stentam a so b eran ia n ac io ­
nal e en carec em a im p o rtânc ia d o g rup o jam ais p o rão
fim à g uerra. To d o g rup o sep arad o d e ind iv íd u o s,
co m seus g o v ernantes e g o v ernad o s, é u m a fo n te d e
g u erra. En q u an to não alterarm o s d e m an eira essen ­
cial as atuais relaçõ es entre o s ho m ens, no ssas ativ i­
d ad es hão d e lev ar-no s in ev itav elm en te à co nfu são e

72
to rnar-se u m instru m ento d e d estru ição e d esg raça;
en q u an to existir v io lênc ia e tiran ia, m entira e p ro p a­
g and a, não terem o s a fratern id ad e hu m ana.
Ed u c an d o as p esso as p ara serem , ap enas, ad m i­
ráv eis eng en heiro s, b rilhantes, cientistas, d irig entes
cap az es, artífic e s p erito s, nu n ca se p ro m o v erá a u nião
d o s o p rim id o s co m o s o p resso res; e, ev id en tem en te,
no sso atu al sistem a d e ed u c aç ão , q u e su stenta as d iv er­
sas causas g erad o ras d a inim iz ad e e d o ó d io en tre os
seres hu m ano s, nu nc a im p ed iu o assassínio em m assa
co m etid o em no m e d a p átria o u em no m e d e D eu s.
A s relig iõ es o rg aniz ad as, co m sua au to rid ad e te m ­
p o ral e esp iritu al, são ig u alm en te in cap az es d e d ar a
p az , p o rq u anto tam b ém elas são p ro d uto d e no ssa
ig n o rân cia e tem o r, d e no ssa hip o crisia e eg o ísm o .
N o sso d esejo d e seg u ranç a, n este m u nd o o u no
o u tro , c ria institu içõ es g arantid o ras d essa seg u rança.
En tre tan to , q u anto m ais lu tarm o s p ela seg u rança,
tanto m eno s seg u rança terem o s. N o sso d esejo d e estar
seg uro s só fac ilita a d iv isão e au m enta o antag o nism o .
Se sentim o s e co m p reend em o s a essên cia d esta v erd a­
d e, não ap enas v erb al o u in tele c tu alm en te, p o rém co m
to d o o no sso ser, c o m eçarem o s a alterar fu n d am en tal­
m ente no ssas relaçõ es co m o s no sso s sem elh antes no
m u nd o em d erred o r; e só então será p o ssív el a u nião
e a fratern id ad e.
Q u ase to d o s nó s estam o s d o m inad o s p o r tem o res
d e to d a esp éc ie e v iv em o s m u ito p reo cu p ad o s co m
no ssa p ró p ria seg u ran ça. Esp eram o s q u e, g raças a
alg u m m ilag re, as g u erras se ac ab e m e, enq u an to isso ,
acu sam o s o u tro s g rup o s nacio n ais d e instig ad o res d a

73
g u erra, e estes, p o r sua v ez , no s lan ç am a c u lp a d essa
calam id ad e. Em b o ra a g u erra seja tão m an ifestam ente
no civ a à so cied ad e, estam o s sem p re p rep aran d o a
g u erra e d esp ertand o na m o cid ad e o esp írito b elic o so .
C ab e na ed u cação a instru ção m ilitar? Isso d e­
p end e d a esp écie d e entes hum ano s q u e d esejam o s
faz er d o s no sso s filho s. Se q u erem o s q u e se to rnem
efic ie n tes assassino s, então é ne c essária a instru ção
m ilitar. Se q u erem o s d iscip linar e niv elar-lhes o s esp í­
rito s, se é no sso p ro p ó sito faz ê-lo s nac io n alistas e, p o r­
tanto , irresp o nsáv eis p eran te a co letiv id ad e so cial,
então a instru ção m ilitar é um b o m m o d o d e e f e ti­
v á-lo . Se am am o s a m o rte e a d estru ição , não há
d ú v id a d e q u e, nesse caso , o p rep aro m ilitar é b em
relev ante. A fu nç ão d o s g enerais é p rep arar e sus­
ten tar a g u erra; e, se no ssa in ten ção é v iv er nu m a
b atalh a co nstante co m nó s m esm o s e no sso s sem e­
lh antes, tratarem o s p o r to d o s o s m eio s, então , d e ter
m ais g enerais.
Se v iv em o s ap enas p ara m anter u m a lu ta co n s­
tan te d entro d e nó s m esm o s e co m o s o u tro s, se é
no sso d esejo p erp etu ar a efusão d e sang ue, o d eses­
p ero , há, então , necessid ad e d e m ais so ld ad o s, d e m ais
p o lític o s, d e m ais inim iz ad e — co m o ac o n tec e atu al­
m ente. A m o d erna civ iliz ação b aseia-se na v io lên cia;
está, p o rtanto , c o rtejan d o a m o rte. En q u an to tiv erm o s
o cu lto d a fo rç a, v iv erem o s na área d a v io lência. M as,
se d esejam o s p az , se d esejam o s relaçõ es c o rretas en tre
o s ho m ens, q u er sejam cristão s, q u er hind u ístas, ru s­
so s, am erican o s, se d esejam o s q u e o s no sso s filho s
sejam entes hu m ano s integrados, nesse caso a in stru ­
ção m ilitar é um o b stácu lo p o sitiv o , u m a fo rm a errad a
d e co m eçar.

74
U m a d as cau sas p rin cip ais d o ó d io e d a c iz ânia
é a c re n ç a na su p erio rid ad e d e um a raç a em re laç ão
a o u tra. A c rian ç a não tem c o n sc iê n c ia d e classe nem
d e raç a; é o am b ien te d o m éstico o u d a esco la, o u .os
d o is ju nto s, q u e lh e in c u tem o sentim ento d e d istin ­
ção . Ela p ró p ria não se im p o rta se seu co m p anheiro
d e fo lg u ed o s é neg ro o u ju d eu , b râm an e o u não -b râ-
m an e; m as a in flu ên c ia d a estru tu ra so c ial está sem ­
p re a m artelar-lh e a m ente, im p ressio nand o -a e m o l­
d and o -a.
A q u i tam b ém o p ro b lem a não d iz resp eito à
c rianç a, m as ao s ad u lto s q u e c riaram um am b ien te
insensato d e sep aratism o e falso s v alo res.
Q u e b ase real existe p ara d iferen ç ar os seres hu m a­
no s? N o sso s co rp o s p o d em d iferir na co n stitu iç ão e
na co r, no sso s ro sto s são tam b ém d essem elh antes, m as
d a p ele p ara d entro so m o s b em p arecid o s: o rg ulho so s,
am b icio so s, inv ejo so s, v io lento s, lasciv o s, d esp ó tico s,
etc . Tire-se-n o s o ró tu lo , e ficam o s nu s; co m o não
q u erem o s v er no ssa nu d ez , faz em o s q u estão d o ró tu lo
— ín d ice d e falta d e m ad u rez a, p ro v a d e serm o s v e rd a­
d eiram en te infantis.
Para d arm o s à c rian ç a a p o ssib ilid ad e d e cresc er
liv re d e p reco n c eito s, d ev em o s em p rim eiro lu g ar e li­
m inar to d o s o s p reco n c eito s existentes em nó s m es­
m o s e em no sso am b ien te — e isso sig nific a d em o lir
a estru tu ra d essa so c ied ad e insensata c riad a p o r nó s.
Em casa, p o d em o s m o strar à c rian ç a q u anto é ab su r­
d o u m a p esso a ter c o n sc iê n c ia d e su a classe o u raça,
e ela p ro v av elm ente c o n co rd ará co no sco ; m as q u and o ,
na esco la, c o m eç a a b rin c ar co m o u tras c rian ças, co n-
tam ina-se d o esp írito d e sep aração . O u p o d e d ar-se
o inv erso : o lar ser trad icio n al, rig o rista, e a in flu ên c ia

75
d a esco la m ais lib e ral. Em am b o s os caso s h á u m a
b atalh a c o n stan te en tre o s am b ien te s d o lar e d a esc o ­
la, e a c rian ç a é q u em so fre as c o nseq ü ên cias.
Para ed u carm o s u m a c rian ç a sad iam ente, d esp er-
tan d o -lhe o p erc e b im en to p ara q u e d isting a estes estu l­
to s p re co n c eito s, tem o s d e estar em estreita relaç ão
co m ela. D ev em o s co nv ersar co m ela e faz ê -la o u v ir
co nv ersas in telig en tes. D ev em o s nu trir-lh e o esp írito
d e in q u iriç ão e d e d esc o n tentam en to já nela ex istente,
aju d an d o -a a d e sc o b rir p o r si m esm a o q u e é v erd a­
d eiro e o q u e é falso .
É a ind ag ação co n stante, a au tê n tic a in satisfação
q u e faz n asc er a in telig ên c ia c riad o ra; m as é ex tre­
m am en te d ifíc il m an ter aceso s a in v e stig ação e o d es­
co nten tam en to , e a m aio ria d o s p ais não q u er q u e os
filho s tenham esta esp éc ie d e in telig ên c ia, p o r ser
m u ito d esag rad áv el m o rar co m alg u ém q u e está sem ­
p re p o nd o em d ú v id a os v alo res co nv encio nais.
To d o s nó s so m o s d esc o ntentes q u and o jo v ens,
m as, p o r d esv entu ra no ssa, o d esc o n ten tam en to d e­
p ressa se d esv anece, ab afad o p elas no ssas tend ênc ias
im itativ as e no ssa v eneração d a au to rid ad e. À m ed i­
d a q u e ficam o s m ais v elho s, co m eçam o s a cristaliz ar-
-no s, a to rnar-no s satisfeito s e m ed ro so s; to rnam o -no s
b o ns ad m inistrad o res, sacerd o tes, fu n cio n ário s d e b an ­
co s, g erentes d e fáb ricas, téc nic o s — e p rin c ip ia a len ta
d eco m p o sição . C o m o d esejam o s co nserv ar no sso s
em p reg o s e no ssa p o sição , d efend em o s a so cied ad e
q u e no -lo s d eu e na qual fru ím o s c e rta d o se d e seg u ­
rança.
O co ntro le d a ed u cação p elo g o v erno é u m a c ala­
m id ad e. N ão hav erá esp erança d e p az e d e o rd em .

76
no m u nd o , en q u anto a ed u c aç ão fo r a an c ila d o Es ta ­
d o o u d a relig ião o rg aniz ad a. En tre tan to , o s g o v erno s
estão to m and o c o n ta d as crianç as e d o fu tu ro d elas;
e, q u and o não é o g o v erno , são as o rg aniz açõ es re li­
g io sas q u e p ro c u ram c o n tro lar a ed u c aç ão .
Esse c o n d ic io nar d a m ente in fan til, p ara ad ap tá-
-la a u m a d eterm in ad a id eo lo g ia p o lític a o u relig io sa,
c ria inim iz ad e en tre o s ho m ens. N u m a so cied ad e d e
c o m p etiç ão não p o d em o s ter fratern id ad e, e não há
refo rm a, nem d itad u ra, nem m éto d o ed u cativ o cap az
d e p ro m o v ê-la.
En q u an to um fo r neo z eland ês e o u tro hind u , é
ab su rd o falarm o s d e u nião d a hu m anid ad e. Com o
p o d em o s u nir-no s, nó s, entes hu m ano s se c ad a um
em sua terra m antém seus p reco n c eito s relig io so s e os
p ró p rio s m éto d o s eco nô m ico s? C o m o p o d e h av er fra­
tern id ad e o nd e o p atrio tism o está sep arand o o ho m em
d o ho m em e m ilhõ es v iv em num reg im e d e restriçõ es,
im p o sto p elas crises eco n ô m icas, enq u an to o u tro s p ro s­
p eram ? C o m o p o d e h av er u nião en tre o s ho m ens
q u and o as c ren ç as no s sep aram , q u and o há d o m ínio
d e um g ru p o p o r o utro , q u and o o s rico s são p o d ero so s
e o s p o b res am b ic io n am ig u al p o d er, q u and o as terras
estão m al d istrib u íd as, q u and o uns and am b em n u tri­
d o s e m u ltid õ es a m o rrer d e fo m e?
Um d o s o b stácu lo s é q u e não estam o s seriam ente
interessad o s nessas co isas, p o is não d esejam o s su jei­
tar-no s a g rand es p ertu rb açõ es. Preferim o s alterar as
co isas d e m ane ira q u e no s sejam v antajo sas, e p o r isso
não lev am o s b astan te a sério no ssa p ró p ria inanid ad e
e cru ez a.
Po d e-se alc an ç ar a p az p ela v io lên c ia? Po d e-se
co nseg u ir a p az g rad u alm ente, atrav és d e um lento

77
p ro cesso d e tem p o ? O ra, o am o r, p o r certo , não é
co isa d ep en d en te d e ex erc íc io o u d o tem p o . A s d uas
últim as g u erras fo ram g anhas p ara a d e m o c racia —
creio eu — e ag o ra estam o s p rep aran d o o u tra g u erra
m aio r e m ais d estru tiv a, e o s p o v o s são m eno s liv res.
M as, q u e ac o n te c e ria se p u séssem o s d e p arte esses
ev id entes o b stácu lo s à co m p reensão , tais co m o a au to ­
rid ad e, a c ren ç a, o nacio nalism o e o esp írito hierár­
q u ico ? Seríam o s p esso as isentas d e au to rid ad e, entes
hu m ano s em relaç ão d ire ta uns co m o s o u tro s e talv ez
então ho u v esse am o r e co m p aixão .
N a ed u c aç ão , co m o em q u alq u er o u tro seto r, o
essencial é hav er p esso as co m p reensiv as e afetu o sas
q u e não ten ham o s co raçõ es ch eio s d e frases o cas,
cheio s d as co isas d a m ente.
Se a fin alid ad e d a v id a é v iv er feliz , co m co m ­
p reensão , co m d esv elo s, co m afe to , é então im p o rtan­
tíssim o co m p reend am o s a nó s m esm o s; e, se d esejam o s
ed ific ar um a so cied ad e v erd ad eiram ente esclarecid a,
necessitam o s d e ed u cad o res q u e co m p reend am o sig ni­
fic ad o d a in teg raç ão e estejam , p o r co nseg u inte, ap to s
a transm itir à c rian ç a essa co m p reensão .
T ais ed u cad o res rep resen tariam um p erig o p ara
a ho d ierna estru tu ra so cial. M as, não d esejam o s d ev e­
ras ed ific ar u m a so cied ad e esclarecid a, e q u alq u er p ro ­
fesso r q u e, rec o n he ce nd o o p ro fu nd o sig n ificad o da
p az , co m eçasse a d enu nciar o v erd ad eiro sentid o d o
nacio nalism o e a estu p id ez d a g uerra, seria lo g o d em i­
tid o . Sab end o d isso , a m aio ria d o s m estres c o n tem p o ­
riz a, aju d and o , assim , a m anter o atu al sistem a d e
exp lo ração e v io lência.
Sem d ú v id a, p ara d esco b rir a v erd ad e d ev em o s
estar liv res d e to d a lu ta, in terio r o u co m o no sso p ró ­

78
xim o . Se não no s ac ham o s em íntim o co n flito , não
tem o s c o n flito externo . É a lu ta in terio r q u e, p ro je­
tad a no ex terio r, se co nv erte em c o n flito m u nd ial.
A g u erra é a p ro jeç ão estro nd o sa e san g renta do
no sso v iv er d e c ad a d ia. N ó s a p recip itam o s co m a
aç ão d e no ssa v id a d iária; e, se não há transfo rm ação
em nó s m esm o s, fo rç o sam ente existirão antag o nism o s
nacio n ais e rac iais, d isp u tas infan tis em to rno d e id eo ­
lo g ias, so ld ad o s e m ais so ld ad o s, salv as às b an d eiras,
e to d as as b ru talid ad es d o assassínio o rg aniz ad o .
A ed u c aç ão está falhand o no m u nd o in teiro , p ro ­
d u z ind o d estru iç ão e m iséria c resc en tes. O s g o v erno s
ex erc itam o s jo v ens p ara serem o s efic ie n tes so ld ad o s
e té c n ic o s d e q u e nec essitam ; a estrita d iscip lina e os
p re co n c eito s estão send o cu ltiv ad o s e incu tid o s à v iv a
fo rç a. C o nsid eran d o esses fato s, cu m p re-no s in v e sti­
g ar o sentid o d a ex istênc ia e a sig nific ação e a fin ali­
d ad e d e no ssas v id as. C u m p re-no s d esc o b rir o s m eio s
b en éfic o s d e c riar um no v o am b ien te ; p o rq u e o
am b ien te p o d e c o n v erter a c rian ç a num b ru to , nu m
frio esp ec ialista, o u d ela faz e r um ente hu m ano sen­
sív el e in telig en te. Tem o s d e criar p ara o m u nd o um
g o v erno rad ic alm en te d iferen te , não b asead o no n ac io ­
nalism o , nas id eo lo g ias, na fo rça.
Tu d o isso im p lic a co m p reensão d as no ssas re c í­
p ro c as resp o nsab ilid ad es na v id a d e relaç ão ; m as, p ara
c o m p reen d er no ssa resp o nsab ilid ad e, p recisam o s ter
am o r no c o ração , e não ap enas eru d ição o u sab er.
Q u anto m aio r o no sso am o r, tan to m ais p ro fu n d a será
a sua in flu ên c ia na so cied ad e. N ó s, no entan to , só
tem o s c éreb ro e nenhu m c o ração ; cu ltiv am o s o in te ­
lec to e d esp rez am o s a hu m ild ad e. Se realm en te am ás­
sem o s no sso s filho s, d esejaríam o s salv á-lo s e p ro te-

79
g ê-lo s, não p e rm itiríam o s q u e fo ssem sac rific ad o s nas
g u erras.
Pare c e q u e d e fato nó s q u erem o s arm as; g o stam o s
d a o sten taç ão d o p o d er m ilitar, d o s uniformes, d o s
rito s, d as lib aç õ e s, d o b aru lh o , d a v io lên cia. N o ssa
v id a d iária é u m reflexo em m iniatu ra d a m esm a e b ru ­
tal su p erfic ialid ad e, e no s estam o s d estru ind o uns ao s
o u tro s p ela in v e ja e p ela inc o m p reensão .
Q u erem o s ser rico s, e q u anto m ais enriq u ecem o s
tanto m ais cru éis no s to rnam o s, aind a q u e façam o s
g rand es d o nativ o s a institu içõ es d e carid ad e e d e ed u ­
c ação . D ep o is d e assaltar a v ítim a, d ev o lv em o s-lhe
u m a p arte d o ro u b o , — e cham am o s a isso filan tro p ia.
C reio q u e não p rev em o s as catástro fes q u e estam o s
p rep arand o . Em g eral, v iv em o s c ad a d ia o m ais ráp i­
d a e d esp reo cu p ad am ente p o ssív el, ab and o nand o ao s
g o v erno s, ao s p o lítico s astu cio so s, a d ire ção d as no ssas
v id as.
To d o s o s g o v erno s so b erano s tem d e p rep arar a
g u erra, e o nosso g o v erno não é ex c eç ão . Para to rnar
o s cid ad ão s eficien tes na g u erra, p rep ará-lo s p ara
cu m p rir eficaz m en te o s seus d ev eres, é ó bv io q u e o
g o v erno p recisa co ntro lá-lo s e d o m iná-lo s. Prec isa
ed u cá-lo s p ara atu arem co m o m áq u inas, e p ara serem
im p ied o sam ente efic ientes. Se a finalid ad e e o alv o
d a v id a é d estruir o u ser d estru íd o , en íão a ed u cação
deve cu ltiv ar a cru eld ad e; e não esto u nad a c erto so b re
se não é isso o q u e intim am en te d esejam o s, v isto q u e
a cru eld ad e está em relaç ão d ireta co m o cu lto d o b o m
éxito .
O Estad o So b erano não q u er q u e seus cid ad ão s
sejam liv res, que p ensem p o r si m esm o s, e o s co n tro la

80
p o r m eio d a p ro p ag and a, p o r m eio d e falsas in te rp re ­
taç õ es d a h istó ria, etc . É p o r isso q u e a ed u c aç ão se
está to rnand o c ad a v ez m ais u m m eio d e ensinar o que
p ensar e não como p ensar. Se p ensássem o s in d e p en­
d en tem en te d o sistem a p o lític o v ig ente, seríam o s p e ri­
g o so s; in stitu içõ es liv res p o d eriam fo rm ar p ac ifistas o u
ind iv íd u o s c ap az es d e p ensar d e m aneira c o n trária ao
reg im e em v ig o r.
A ed u c aç ão c o rreta é ev id en tem en te um p erig o
p ara o s g o v erno s so b erano s, — e p o r isso ela é im p e­
d id a d e m ane ira ru d e o u su til. A ed u c aç ão e a ali­
m en taç ão , c o ntro lad as p o r uns p o u co s, se to rnaram o
m eio d e d o m inar o ho m em ; e o s g o v erno s, q u er d a
esq u erd a, q u er d a d ireita, não se interessam , d esd e
q u e co n tinu em o s a ser m áq u inas efic ie n tes d e fab ric ar
m ercad o rias e b alas d e fu z il.
O ra, o fato d e estar isso ac o n tec en d o no m u nd o
inteiro sig n ific a q u e, fu nd am en talm en te , não no s faz
d iferen ç a — a nó s, q u e so m o s o s cid ad ão s e os ed u c a­
d o res, e tam b ém o s resp o nsáv eis p elo s g o v erno s exis­
tentes — não no s faz d iferen ç a se há lib erd ad e o u
escrav id ão , p az o u g u erra, b em -estar o u so frim ento
p ara a hu m anid ad e. Q u erem o s u m a refo rm az in ha aq u i
e ali, m as q u ase to d o s nó s rec eam o s d eitar ab aixo a
p resen te so c ied ad e p ara co nstru ir u m a estru tu ra co m ­
p letam en te no v a, p o rq u e isso exig iria u m a rad ical
transfo rm aç ão d e nó s m esm o s.
D e o u tra p arte, há o s q u e p reco niz am a rev o lu ção
v io lenta. D ep o is d e terem aju d ad o a ed ific ar a v ig en ­
te o rd em so cial, co m to d o s o s seus c o nflito s, sua c o n ­
fusão e suas m isérias, d esejam ag o ra o rg aniz ar um a
so cied ad e p erfeita. M as p o d e q u alq u er d e nó s o rg a­
niz ar u m a so cied ad e p e rfeita q u and o fo m o s nó s m es­

81
m o s q u e criam o s a atu al? C re r q u e a p az se alc an ­
ç ará p e la v io lênc ia é sac rific ar o p re sente a u m id eal
fu tu ro ; e essa b u sc a d e um fim co rreto p o r m eio s errô ­
neo s é u m a d as cau sas d a p re sente calam id ad e.
A exp ansão e o p red o m ínio d o s v alo res senso riais
c ria o v eneno d o n ac io nalism o , d as fro n teiras e c o n ô ­
m icas, d o s g o v erno s so b erano s, e d o esp írito p atrió tico ,
q u e to rnam im p o ssív el a c o o p eraç ão d o ho m em co m
o ho m em e co rro m p em as re laç õ es hu m anas, q u e é a
so cied ad e. A so cied ad e são as re laç õ es existentes entre
as p esso as; e, se não fo rem co m p reend id as p ro fu nd a­
m en te essas relaçõ es, não nu m nív el ú n ico , m as d e
m o d o integ ral, co m o um p ro cesso to tal, criarem o s d e
no v o , infaliv elm ente, a m esm a esp éc ie d e estru tu ra
so cial, em b o ra m o d ificad a na su p e rfíc ie.
Se q u erem o s tran sfo rm ar rad ic alm en te no ssas
atu ais relaç õ es hu m anas, cau sad o ras d e inenarráv eis
so frim ento s p ara o m u nd o , no ssa ú n ic a e im ed iata tare ­
fa é a d e transfo rm ar-n o s p elo au to co n h ecim en to . E
v o ltam o s, assim , ao p o nto c en tral, q u e so m o s “ nó s
m esm o s” , p o nto q u e ev itam o s, tran sferind o a resp o n ­
sab ilid ad e p ara o s g o v erno s, as relig iõ es e as id eo lo ­
g ias. O g o v erno é o q u e nós so m o s; relig iõ es e id eo ­
lo g ias são ap enas p ro jeçõ es d e nó s m esm o s; e, en q u an ­
to não nos transformarmos fu nd am en talm en te , não h a­
v erá nem ed u c aç ão c o rreta nem u m m u nd o em p az.
. A seg u rança ex terio r p ara to d o s só v irá q u and o
ho u v er am o r e in telig ên c ia; e, co m o criam o s u m m und o
d e co nflito e so frim ento , no q u al a seg u rança exterio r
se está to rnand o im p o ssív el p ara to d o s, não in d ic a
isso a to tal inu tilid ad e d a ed u c aç ão d e h o je e a d a
antig a? C o m o p ais e co m o m estres, c ab e-n o s a res­
p o nsab ilid ad e d ire ta d e no s lib ertarm o s d o m o d o tra­

82
d icio n al d e p ensar, ev itand o c air na d ep end ên c ia d o s
esp ec ialistas e d as suas co nclu sõ es. A e fic iê n c ia té c n i­
ca d eu-no s c e rta c ap ac id ad e d e g anhar d inheiro e p o r
isso a m aio ria d e nó s está satisfeita co m a p resen te
estru tu ra so cial; m as ao v erd ad eiro ed u cad o r só in te ­
ressa o v iv er co rreto , a c o rreta ed u c aç ão , e o s m eio s
d e v id a ad eq u ad o s.
Q u anto m ais irresp o nsáv eis so m o s em relaç ão a
estas q u estõ es, tan to m ais o Estad o to m a a si a resp o n­
sab ilid ad e. O q u e tem o s à no ssa fre n te não é u m a
crise p o lític a o u ec o n ô m ic a, m as u m a crise d e d eg ra­
d ação hu m ana, q u e nenhu m p artid o p o lític o o u siste­
m a eco n ô m ic o é c ap az d e d eb elar.
O u tro d esastre, m aio r ain d a q u e o s anterio res,
ap ro xim a-se p erig o sam en te, e nó s, na g rand e m aio ria,
estam o s d e b raç o s cruz ad o s. C o ntinu am o s, d ia a d ia,
ex atam ente co m o d an tes; não q u erem o s d esp o jar-no s
d o s falso s v alo res e c o m eç ar d e no v o . Q u erem o s faz er
refo rm as d e rem end o s, q u e só lev arão a p ro b lem as
relativ o s a u lterio res refo rm as. M as o ed ifíc io está
d esab an d o , as p ared es ced em e o fo g o o está d estru in ­
d o . Tem o s d e ab an d o ná-lo e lan ç ar-n o s à o b ra, no u tro
terreno , co m d iferentes alic erc es, v alo res no v o s.
N ão p o d em o s ab an d o nar o s co n h ec im en to s té c n i­
co s, m as p o d em o s to rnar-no s in terio rm en te cô nscio s d e
no ssa leald ad e, no ssa c ru eld ad e, no ssa h ip o c risia e
d eso nestid ad e, no ssa ab so lu ta falta d e am o r. Só q u an ­
d o , in telig en tem en te, no s lib ertarm o s clo esp írito d e
nacio nalism o , d a inv eja, e d a sed e d e p o d er, será p o s­
sív el o estab ele c im en to d e u m a no v a o rd em .
A p az não p o d e ser co nseg u id a p o r u m a refo rm a
d e rem end o s, nem p o r u m a reo rg aniz ação d e v elhas

83
id éias e su p erstiçõ es. Só hav erá p az ao c o m p ree n ­
d erm o s o q u e está além d o su p erficial, e d essa m aneira
d etiv erm o s a o nd a d e d estru ição d esen c ad ead a p ela
no ssa p ró p ria ag ressiv id ad e e p elo s no sso s tem o res;
então hav erá esp eranç as p ara o s no sso s filho s e salv a­
ção p ara o m u nd o .

84
C A P IT U L O V

A ESC O L A

A ed u c a ç ã o c o rreta tem p o r esco p o a li­


b erd ad e ind iv id u al, p o is só esta p o d e p ro m o v er a v er­
d ad eira co o p eraç ão co m o to d o , co m a co letiv id ad e.
M as essa lib erd ad e não se alc an ç a q u and o o ind iv íd u o
só está interessad o no p ró p rio en g ran d ecim ento e bo m
êxito . A lib erd ad e v em co m o au to co n h ecim en to ,
m ed iante o q u al a m ente se elev a ac im a d o s em p ec i­
lho s q u e p ara si p ró p ria crio u ao ansiar p o r seg u rança.
É fu nç ão d a ed u c ação aju d ar c ad a ind iv íd u o a
d e sc o b rir to d o s esses em p ecilho s p sico ló g ico s, e não
ap enas im p o r-lh e no v o s m o d elo s d e co nd u ta, no v o s
m o d o s d e p ensar. Tais im p o siçõ es nu n ca d esp ertarão
a in telig ên c ia, a co m p reensão criad o ra, serv ind o ap e ­
nas p ara co nd ic io nar m ais ain d a o ind iv íd u o . Po r
c erto é isso o q u e está ac o n tec en d o no m u nd o inteiro ,
send o esta a raz ão p o r q u e o s no sso s p ro b lem as c o n ti­
nu am a existir e a m u ltip licar-se.
Só q u and o co m eçarm o s a c o m p reen d er o p ro fu n­
d o sig n ificad o d a v id a hu m ana, hav erá a v erd ad eira
ed u c aç ão ; m as, p ara co m p reend er, d ev e a m ente lib e r­
tar-se, in telig en tem en te, d o d esejo d e rec o m p en sa, q u e

8}
la/ . nascer o tem o r e o aju stam en to a p ad rõ es. Se
co nsid eram o s no sso s filho s co m o p ro p ried ad e no ssa,
se eles rep resen tam o p ro lo ng am ento d e no sso s p e q u e­
nino s “ eg o s” e o p reen ch im en to d e no ssas am b iç õ es,
então ed ificarem o s um am b iente, u m a estru tu ra so cial
o nd e não existirá o am o r e sim , tão -só , a lu ta p ela
o b ten ç ão d e v antag ens p esso ais.
U m a esco la p ró sp era, no sentid o m u nd ano , é, v ia
d e reg ra, um fracasso co m o centro ed u cativ o . U m a
g rand e e flo resc en te in stitu ição o nd e c en tenas d e
c rian ças são ed u cad as em c o nju n to p o d e, co m to d a a
sua en c en aç ão e reno m e, p ro d uz ir fu ncio nário s d e
b an co s e ex celen tes v end ed o res, ind u striais o u c o m is­
sário s, g ente su p erficial e tec n ic am en te e fic ie n te; só
p o d em o s, 110 en tanto , fu nd ar no ssas esp eranç as 110
ind iv íd u o “ in teg rad o ” , e este ap enas as esco las p e q u e ­
nas p o d em c o n trib u ir p ara fo rm á-lo . Eis p o r q u e é
m u ito m ais im p o rtante q u e tenham o s esco las co m um
lim itad o nú m ero d e aluno s e alu nas, e ed u cad o res ad e ­
q u ad o s, d o q u e p ô r ein p rátic a o s m ais m o d erno s e os
m elho res m éto d o s em g rand es institu içõ es.
In fe liz m en te , um d o s no sso s d esacerto s é sup o r
q u e d ev em o s o p erar em escala “ co lo ssal” . Em g eral,
q u erem o s am p las esco las, co m ed ifíc io s m ajesto so s —
m u ito em b o ra, ev id en tem en te, m ão sejam v erd ad eiro s
centro s ed u cativ o s — p o rq u e d esejam o s transfo rm ar
o u in flu en c iar o q u e cham am o s “ as m assas” .
M as, q u em são “ as m assas” ? N ó s e o u trem . N ão
no s d eixem o s sed u z ir p ela id éia d e q u e as m assas p re­
cisam tam b ém ser ed u cad as c o rretam en te. A co nsid e­
ração relativ a à “ m assa” é u m a fo rm a d e fu g a à ação
im ed iata. A ed u c aç ão co rreta se to rnará u niv ersal se
co m eçarm o s co m o q u e está em no ssa im ed iata p ro xi-

86
m id ad e, se estiv erm o s cô nscio s d e nó s m esm o s nas
relaç õ es co m o s filho s, o s am ig o s, e no sso s sem elhantes.
N o ssa ativ id ad e p esso al no m u nd o em q u e v iv em o s,
no m u nd o d a fam ília e d o s am ig o s, terá in flu ên c ia e
efeito exp ansiv o s.
C o m p len itu d e d e c o n sc iê n c ia em to d as as no s­
sas relaç õ es, d esc o b rirem o s as co nfu sõ es e lim itaçõ es
em nó s existentes e q u e ag o ra ig no ram o s; e, u m a v ez
cô nscio s d elas, p o d erem o s co m p reend ê-las e d isso lv ê-
-las. Sem esse p erc e b im en to e o au to co nh eciin ento
q u e o ac o m p an ha, q u alq u er refo rm a, na ed u c aç ão o u
no u tro s seto res, só há d e co nd u z ir a m ais antag o nism o
e m ais so frim ento s.
Fu n d an d o eno rm es institu içõ es e co ntratand o
p rece p to res q u e p re ferem seg u ir um sistem a a estar
d esp erto s e v ig ilantes em suas relaçõ es co m c ad a estu ­
d an te, não faz em o s m ais q u e in c en tiv ar a acu m u lação
d e fato s, o d esenv o lv im ento d e cap acid ad e s, o háb ito
d e p ensar m e c an ic am en te , em c o nfo rm id ad e co m um
p ad rão ; é ó b v io q u e nad a d isso aju d a o estu d an te a
to rn ar-se um ente hu m ano “ in teg rad o ” . Po d em o s sis­
tem as ter lim itad a ap lic aç ão , nas m ão s d e ed u cad o res
v ig ilantes e ju d icio so s, m as não co n co rrem p ara a fo r­
m ação d a in telig ên c ia. To d av ia, é estranho co m o as
p alav ras “ sistem a” , “ in stitu iç ão ” , e sem elhantes, assu ­
m em p ara nó s tan ta im p o rtânc ia. O s sím bo lo s to m a­
ram o lu g ar d a realid ad e, e m u ito fo lg am o s co m isso ,
p o rq u anto a realid ad e é p ertu rb ad o ra e as so m b ras(1)
no s d ão co nfo rto .
N ad a d e essen cial v alo r se p o d e realiz ar p ela in s­
tru ção em m assa, e sim , u nic am ente, p elo estu d o c u id a­

(1) Is to é , as sombras d a re a lid a d e ( o s s í m b o lo s ) . ( N . d o T . ).

87
d o so e a c o m p reen são d as d ificu ld ad es, tend ên c ias e
ap tid õ es d e c ad a c rianç a. O s q u e estão cô nscio s d esta
o rien taç ão e d esejam ard en te m en te c o m p reen d er a si
p ró p rio s e au xiliar o s jo v ens d ev eriam u nir-se e fu nd ar
um a esco la d e v ital sig n ific aç ão na v id a d a c rianç a,
aju d an d o -a a ser um en te integ rad o e in telig en te. Para
inau g u rar u m a esco la d esse g ênero , não é p reciso esp e­
rar o s recu rso s necessário s. Q u alq u er p esso a p o d e ser
um v erd ad eiro m estre na sua p ró p ria casa, e p ara tanto
não faltarão o p o rtu nid ad es àq u eles q u e sentem v erd a­
d eiro interesse.
O s q u e am am o s filho s e as crianç as d o seu p ró ­
p rio m eio , e q u e estão , p o r co n seg u in te, seriam ente
inten cio nad o s, hav erão d e in teressar-se p ela instalação
d e u m a esco la nas ad jac ên c ias o u na p ró p ria casa.
En tão ap are c e rá o d inheiro , q u e é a ú ltim a co isa em
o rd em d e im p o rtânc ia. A m an u ten ção d e u m a esco la
p e q u en a d o g ênero ad eq u ad o é, sem d ú v id a, fin an c e i­
ram ente d ifíc il; só p o d e ela flo resc er à cu sta d e sac ri­
fíc io s ind iv id u ais e não co m o ap o io d e u m a g o rd a
c o n ta b an c ária. O d inheiro co rro m p e, in v ariav el­
m en te, q u and o não há am o r e co m p reensão . M as, se
se tratar d e u m a esco la realm en te b o a, v irá a aju d a
n ec essária. H av end o am o r à c rian ça, tud o é p o ssív el.
En q u an to fo r atrib u íd a a m áxim a im p o rtân c ia à
institu ição , a c rian ç a não terá v alo r alg u m . A o v e rd a­
d eiro ed u c ad o r interessa o ind iv íd u o , e não , o nú m ero
d e d iscíp u lo s q u e tem ; e esse ed u cad o r d esco b rirá q u e
p o d erá m an ter u m a esco la d e sum a relev ân c ia e sig ni­
fic aç ão co m a aju d a d e alg u ns p ais. M as o mestre
d ev e ter a flam a d o interesse; se este fo r ap enas m o d e­
rad o , a institu ição será ig u al a o u tra q u alq u er.

88
O s p ais q u e d ev eras am am o s filho s rec o rrerão
à leg islaç ão e a o u tro s m eio s, p ara estab ele c erem esco ­
las d o tad as d e v erd ad eiro s ed u c ad o res; e não se d ei­
xarão d esalen tar p ela c irc u n stân c ia d e serem d isp en ­
d io sas as esco las p eq u en as, e d ifíc eis d e ac har o s v e r­
d ad eiro s ed u cad o res.
D ev erão , en tretan to , c o m p reend er q u e v ão en c o n ­
trar a inev itáv el o p o sição d o s q u e têm in teresses a
d efen d er, d o s g o v erno s e d as relig iõ es o rg aniz ad as,
u m a v ez q u e tais esco las não p o d em d eixar d e ser p ro ­
fu n d am en te rev o lu cio nárias. A v erd ad eira rev o lu ção
não é a rev o lu ção v io lenta, m as a q u e se realiz a p elo
cu ltiv o d a in teg raç ão e d a in telig ên c ia d e entes h u m a­
no s, o s q u ais, p ela in flu ên c ia d e suas v id as, p ro m o ­
v erão g rad u alm en te rad ic ais transfo rm aç õ es na so c ie ­
d ad e.
É d e sum a im p o rtân cia q u e to d o s o s m estres d e
u m a esco la d essa n atu rez a se u nam v o lu n tariam en te,
sem terem sid o p ersu ad id o s o u no m ead o s; p o rq u e a
v o lu n tária in d ep en d ên c ia d as co isas m u nd anas é a
ú n ica b ase ad eq u ad a a um v erd ad eiro c en tro ed u c a­
tiv o . Para q u e o s m estres p o ssam aju d ar-se m u tu a­
m ente e o s estu d antes c o m p reend er o s v erd ad eiro s
v alo res, é nec essária u m a v ig ilânc ia co nstante em suas
relaç õ es co tid ianas.
N a rec lu são d e u m a p eq u en a esco la, u m a p esso a
está su jeita a esq u ec er-se d a ex istên cia d e um m u nd o
ex terio r co m seus c resc en tes c o nflito s, d estru içõ es e
so frim ento s. Esse m u nd o não está sep arad o d e nó s.
Pelo co n trário , é p arte d e nó s m esm o s, u m a v ez q u e
nó s o fiz em o s tal co m o é: eis a raz ão p o r q u e, p ara
q u e p o ssa o p erar-se u m a alteraç ão fu nd am en tal na

89
estru tu ra d a so cied ad e, a e d u c aç ão co rreta rep resen ta
o p rim eiro p asso .
Só a ed u c aç ão co rreta, e não as id eo lo g ias, os
líd eres e as rev o lu çõ es eco n ó m ic as, p o d e d ar so lu ção
d efin itiv a ao s no sso s p ro b lem as e so frirp ento s. P e rc e ­
b er a v erd ad e d esse fato não é co isa q u e ex ija c o n v ic ­
ção in tele c tu al o u em o cio n al, o u arg u m en taç ão sutil.
Se o nú cleo d o co rp o d o ce nte d e u m a esco la ad e ­
q u ad a é d ed icad o e d inâm ico , atrairá a si o u tro s e le ­
m ento s ig u alm ente d ecid id o s, e aq u eles q u e não tiv e­
rem interesse sentir-se-ão , em b rev e , co m p letam en te
d eslo cad o s. Se o cen tro fo r reso lu to e v ig ilante, a p e ri­
feria in d iferen te p erd erá to d a a sig n ific ação e c airá
p o r si; m as, se o centro fo r in d iferen te, to d o o g rup o
será ind eciso e sem energ ia.
O c en tro não p o d e ser c o nstitu íd o u nicam en te
p elo d ireto r. O entu siasm o o u o interesse q u e d ep en­
d e d e u m a só p esso a está fad ad o a d efin h ar e a m o rrer.
T al interesse é su p erficial, in stáv el e sem nenhu m
v alo r, u m a v ez q u e p o d e ser d esv iad o p ara q u alq u er
lad o , to rnar-se su b serv ien te ao s cap rich o s e fantasias
d e o u tro . Se o d ireto r fo r u m a p erso nalid ad e d o m i­
nante, então , ev id en tem en te, não p o d erá existir n e ­
nhu m esp írito d e lib erd ad e e co o p eração . U m “ c ará­
ter fo rte” p o d erá erig ir u m a esco la d e p rim eira o rd em ,
m as, a p o u co e p o u co , su rg irá u m a atm o sfera d e tem o r
e su b serv iên cia e, c o n seq ü e n tem en te, em g eral ac o n ­
tec e q u e o resto d o p esso al é co nstitu íd o d e entid ad es
neg ativ as.
Um g rup o d essa esp éc ie não p o d e co nd u z ir n in ­
g uém à lib erd ad e e à co m p reensão ind iv id u ais. O
co rp o d o c en te não d ev e estar so b o d o m ínio d o d ireto r,

90
e o d ireto r não d ev e assu m ir to d a a resp o n sab ilid ad e;
ao c o ntrário , c ad a p ro fesso r d ev e sen tir-se resp o nsáv el
p elo to d o . H av end o ap enas interesse d a p arte d e uns
p o u co s, a in d iferen ç a o u a o p o sição d o resto to lherá
o u d eso rien tará o esfo rço g eral.
Po d e-se d u v id ar d e q u e seja p o ssív el m an ter um a
esco la sem u m a au to rid ad e c en tral; m as, n a v erd ad e,
não o sab em o s, v isto q u e isso jam ais se exp erim ento u .
Po r certo , nu m g ru p o d e v erd ad eiro s ed u cad o res nu n­
ca se ap re sentará o p ro b lem a d a au to rid ad e. Se to d o s
se esfo rç am p o r ser liv res e in telig en tes, é p o ssív el a
co o p eraç ão em to d o s o s p lano s. A o s q u e nu n ca se
ap lic aram p ro fu n d am en te e co m p ersev e ran ça à tarefa
d a ed u c aç ão c o rreta, a falta d e um a au to rid ad e c e n ­
tral p o d erá p are c e r u m a teo ria im p ratic áv el; m as,
q u and o u m a p esso a está d e d ic ad a p o r in teiro à ed u ­
c aç ão c o rreta, não há n ec essid ad e d e estim u lá-la, d iri­
g i-la o u c o n tro lá-la. O s m estres in telig en tes são f le ­
xív eis no ex erc íc io d e suas fu nç õ es; ao m esm o tem p o
q u e p ro cu ram ser ind iv id u alm en te liv res, su b o rd inam -
-se ao s reg u lam ento s e faz em o q u e é necessário faz er
em b e n e fíc io d e to d a a esco la. O v erd ad eiro interesse
é o c o m eço d a p ro fic iê n c ia, e um e o u tro se fo rtalec em
p ela ap lic aç ão .
Se, não c o m p reen d end o a sig nific aç ão p sico ló g ica
d a o b ed iên c ia, no s d ecid im o s sim p lesm ente a d eso b e­
d e c e r à au to rid ad e, isso só no s lev ará à co nfu são . N ão
se d ev e essa co nfu são à au sênc ia d e au to rid ad e, m as
à falta d e um interesse p ro fu nd o e m ú tu o na ed u cação
co rreta. Ex istin d o real in teresse, há aju stam en to co n s­
tan te e ju d icio so , p o r p arte d e to d o s os p ro fesso res,
ao s req u isito s e nec essid ad es d a m anu ten ção d e um a
esco la. Em to d as as relaç õ es são inev itáv eis atrito s e

91
d iv erg ên cias, o s q u ais, en tretan to , assu m em p ro p o r­
çõ es exag erad as q u and o não há a co esão e a co rd iali­
d ad e d eriv ad as d o interesse co m um .
N u m a esco la ad eq u ad a cu m p re h av er irrestrita
co o p eraç ão en tre o s p ro fesso res. O co rp o d o c en te d ev e
reu nir-se am iú d e p ara tratar d o s v ário s p ro b lem as
esco lares; e, u m a v ez cheg ad o s a aco rd o so b re d eter­
m inad a m ed id a, não hav erá ev id en te m en te nenhu m a
d ific u ld ad e em ex ec u tá-la. Se u m a d ecisão to m ad a
p ela m aio ria não tiv er a ap ro v ação d e um d o s lentes,
p o d erá ser no v am ente d e b atid a na reu nião seg u inte.
N enhu m m estre d ev e tem er o d ireto r, e este não
d ev e sentir tim id ez alg u m a p eran te os p ro fesso res m ais
id o so s. Só é p o ssív el p e rfe ita c o n có rd ia ao existir o
sentim ento d e ab so lu ta ig u ald ad e en tre to d o s. N um a
b o a esco la d ev e p rev alec er sem p re esse sentim ento d e
ig u ald ad e, p o rq u e só p o d e hav er v erd ad eira c o o p e ­
raç ão q u and o in ex isten te o sentim ento d e su p erio ri­
d ad e b em co m o o seu o p o sto . H av end o co n fian ç a
m ú tu a, q u alq u er d ific u ld ad e o u d iv erg ência, em v ez
d e ser elim in ad a d e m aneira su p e rficial, será d ev id a­
m en te lev ad a em c o n sid eração e a c o n fian ç a re sta­
b ele c id a.
N ão estand o o s m esíres b em co m p enetrad o s d e
sua m issão e firm es no seu in teresse, ha\ erá fo rç o sa­
m ente in v eja e antag o nism o en tre eles, q u e d esp en­
d erão to d as as energ ias em to rno d e p articu larid ad es
in sig nific an tes e em fú teis p en d ênc ias; enq u anto q u e
q u aisq u er irritaçõ es o u d isco rd ânc ias su p erficiais p o ­
d erão ser p ro ntam em e su p erad as se ho u v er um in te­
resse ard ente em p ro m o v er a ed u c aç ão c o rreta. Os
p o rm eno res q u e t í .j im p o rtantes se afig u rav am se re ­
d u z em às p ro p o rçõ es no rm ais, o s co n flito s e an tag o ­

92
nism o s p esso ais são rec o n h ecid o s co m o co isas v ãs e
d estru tiv as, e to d as as co nv ersas e tro cas d e id éias le v a­
rão c ad a um a re c o n h e c e r o que é razoável e não quem
tem raz ão .
To d as as d ificu ld ad es e d iv erg ências d ev erão ser
d e b atid as en tre o s q u e co o p eram p ara um fim co m u m ,
p o rq u anto isso c o n co rre rá p ara d issip ar a co nfu são
ex isten te no p ensar d e q u alq u er d eles. Q u and o h o u ­
v er firm e interesse, hav erá tam b ém fran q u ez a e c am a­
rad ag em en tre o s m estres e nu n ca p o d erá m an ifes-
tar-se antag o nism o alg u m en tre eles; faltan d o esse in te ­
resse, em b o ra su p erfic ialm en te p o ssam c o o p erar em
p ro v eito m ú tuo , hav erá sem p re c o n flito e inim iz ad e.
Po d e hav er, é certo , o u tro s fato res d e co nflito
en tre o s m em b ro s d o co rp o d o ce n te. U m m estre p o d e
estar fatig ad o p o r excesso d e trab alh o , o u tro p o d e ter
p reo cu p açõ es p esso ais o u d o m ésticas, e o u tro s, aind a,
talv ez não estejam p ro fu n d am en te interessad o s no q u e
estão faz end o . Sem d úv id a, to d o s esses p ro b lem as
p o d em ser co nsid erad o s m inu cio sam ente nas reu niõ es
d o s p ro fesso res, p o rq u anto o interesse m ú tu o p ro d uz
a co o p eração . É ó bv io q u e nad a se p o d e c riar le v er­
d ad eiram en te sig nific ativ o se só uns p o u co s faz em
tu d o e o s restan tes fic am na p enu m b ra.
A eq ü itati ?a d istrib u ição d o trab alh o p ro p o rcio na
fo lg as a to d o s, e c ad a q u al n atu ralm en te tem d ireito a
um p o u co d e d escanso . U m p ro fesso r esg o tad o p o r
excesso d e trab alh o se tran sfo rm a em p ro b lem a p ara
si m esm o e p ara o s o utro s. To d o ind iv íd u o su b m etid o
a um esfo rço excessiv o está su jeito a to rnar-se le tár­
g ico , ind o len te, so b retu d o se está faz end o alg o d e q u e
não g o sta. T o rn a-se im p o ssív el a rec u p eraç ão d as en er­
g ias se h á co nstante ativ id ad e físic a o u m en tal; m as

93
a q u estão d o rep o u so p o d e ser reso lv id a am ig av el­
m ente, em co nd içõ es ac eitáv eis p ara to d o s.
O q u e co n stitu i laz er v aria d e ind iv íd u o p ara in d i­
v íd uo . Para aq u eles q u e sentem ex trao rd inário in te­
resse no seu trab alh o , esse trab alh o , em si, é laz er;
a p ró p ria ação in sp irad a p elo interesse, co m o , p o r
exem p lo , o estu d o , é u m a fo rm a d e d escanso . Para
o u tro s, o d escanso p o d e co nsistir em rec o lh er-se ao iso ­
lam ento .
Para q u e o ed u cad o r tenh a alg u m tem p o liv re,
d ev e ser resp o nsáv el ap enas p o r um nú m ero d e estu ­
d antes co m q u e p o ssa lid ar fac ilm en te . É q u ase im p o s­
sív el estab ele c e rem -se relaçõ es d iretas e sig nificativ as
en tre m estre e d iscíp u lo q u and o o m estre tem a res­
p o nsab ilid ad e d e tu rm as m u ito nu m ero sas e inc o ntro -
láv eis.
Esta é m ais u m a raz ão p o r q u e as esco las d ev em
ser p eq u enas. M u ito im p o rta, ev id en tem en te, ter um
nú m ero lim itad o d e estu d antes em c ad a classe, p ara
q u e o ed u cad o r p o ssa d isp ensar to d a a aten ç ão a cad a
um . Isso não é p o ssív el q u and o o g rup o é g rand e
d em ais, e então o sistem a d e p u nição e rec o m p e nsa se
to rna um rec u rso cô m o d o p ara m an ter a d iscip lina.
N ão é p o ssív el a ed u c aç ão c o rreta en masse. O
estu d o d e c ad a c rian ç a exig e p ac iê n c ia, v ig ilânc ia e
in telig ên c ia. O b serv ar as tend ên c ias d a c rian ça, suas
ap tid õ es, seu tem p eram ento , c o m p ree n d e r suas d ifi­
cu ld ad es, lev ar em co nta o s fato res h ered itário s e a
in flu ên c ia d o s p ais, e não ap enas co nsid erá-la co m o
en q u ad rad a em c e rta c ate g o ria — tud o isso req u e r
m ente ág il e flexív el, d e sem b araç ad a d e sistem as e p re­
co n ceito s. Ex ig e hab ilid ad e, intenso interesse e so b re­
tud o um sentim ento d e afe iç ão ; e fo rm ar ed u cad o res

94
d o tad o s d essas q u alid ad es rep resen ta, h o je em d ia,
um d o s no sso s m aio res p ro b lem as.
To d a a esco la d ev e estar sem p re im b u íd a d o esp í­
rito d e lib erd ad e ind iv id u al e d e co m p reensão . Isso
d ificilm en te p o d erá fic ar ao acaso , e a fo rtu ita e in d i­
fe ren te m en ção d as p alav ras “ lib e rd ad e” e “ c o m p re­
ensão ” p o u co sig nific a.
So b rem o d o im p o rtan te é q u e estu d antes e m es­
tres se reú nam p erio d ic am en te a fim d e tratare m d o s
assu nto s c o n ce rnen tes ao b e m -estar d e to d o o g rup o .
D ev e tam b ém c o n stitu ir-se um co nselho d e estu d antes,
ju nto ao q u al estejam rep resen tad o s o s p ro fesso res,
p ara atend er ao s p ro b lem as relativ o s à d iscip lina, à
lim p ez a, à alim entaç ão , etc ., d ev end o co n trib u ir, tam ­
b ém , p ara o rien tar o s estu d antes q u e ac aso se m o strem
im o d erad o s, in d iferen te s, o u o b stinad o s.
D ev em o s estu d antes esco lh er d entre eles o s res­
p o nsáv eis p ela ex ec u ção d as d ecisõ es e p ela assistência
à su p erin ten d ên c ia g eral. C o m efeito , o au to g o v erno
na esco la é u m a p rep aração p ara o au to g o v erno na
v id a fu tu ra. Se, enq u an to está na esco la, o jo v em
ap rend e a ser atenc io so , im p esso al e in telig en te em
to d o s os d eb ates relativ o s ao s seus p ro b lem as d iário s,
q u and o tiv er m ais id ad e sab erá en fren tar, co m acerto
e sem p aixão , as d ificu ld ad es m aio res e m ais co m p lexas
d a v id a. D ev e a esco la estim u lar o s jo v ens a c o m p re­
en d er suas m ú tu as d ificu ld ad es e p ecu liarid ad es, índ o ­
les e tem p eram en to s; d esse m o d o , q u and o fo rem ad u l­
to s, serão m ais so lícito s e p ac ien tes em suas relaçõ es
co m o u trem .
Esse m esm o esp írito d e co m p reensão e lib erd ad e
d ev e tam b ém m an ifestar-se no s estu d o s d o jo v em .
Para to rn ar-se um ente criad o r e não m ero au tô m ato ,

95
o estu d ante nu n ca d ev e ser ind u z id o a ac eitar fó rm u las
e co nclu sõ es. M esm o no estu d o d e u m a c iê n c ia c ab e
ao m estre arg u m entar co m ele, aju d and o -o a p e rc eb e r
o p ro b lem a na sua inteirez a e a ex erc er o p ró p rio
d iscernim ento .
E q u anto à q u estão d e g u iar o estu d ante? N ão
se lhe d ev e d ar nenh u m a o rie n taç ão ? A resp o sta a
esta p erg u nta d ep en d e d o q u e se enten d e p o r “ o rien ­
tação . Se o s m estres tiv erem elim inad o d o s seus c o ra­
çõ es o tem o r e o d esejo d e d o m ínio , estarão ap to s a
aju d ar o estu d an te a d esc o b rir a co m p reensão c ria­
d o ra e a lib erd ad e; m as se, c o n sc ien te o u inc o nseien-
tam en te , tiv erem alg u m d esejo d e g u iá-lo a d eterm i­
nad o alv o , então , é ó b v io , estarão o b stan d o ao seu
d esenv o lv im ento . G u iar p ara d eterm inad o o b jetiv o ,
q u er p esso alm en te criad o , q u er estab ele c id o p o r
o u trem , p reju d ic a a c ap ac id ad e criad o ra.
Se ao ed u cad o r interessa a lib erd ad e d o ind iv í­
d uo , e não os p ró p rio s p reco nc eito s, ele aju d ará o
jo v em a d e sc o b rir aq u ela lib erd ad e, estim u land o -o a
c o m p reen d er seu p ró p rio am b ien te , seu tem p eram ento ,
sua ed u c aç ão rei g io sa e d o m éstica, co m to d as as p o s­
sív eis influ ênc ias. Se ho u v er am o r e lib erd ad e no c o ra­
ç ão d o s m estres, eles aten d erão a c ad a estu d ante, tend o
sem p re em m ente suas necessid ad es e d ificu ld ad es;
nessas c o nd iç õ es, não serão sim p les au tô m ato s, q u e
o p eram em c o nfo rm id ad e co m m éto d o s e fó rm u las,
m as entes hum ano s esp o ntâneo s, sem p re v ig ilantes e
o bserv ad o res.
A ed u c aç ão c o rreta d ev e, tam b ém , aju d ar o estu ­
d ante a d e sc o b rir o q u e m ais o interessa. N ão d e sc o ­
b rin d o sua v erd ad eira v o cação , to d a a v id a lh e p are­
c erá p erd id a; sentir-se-á fru strad o nu m a o c u p ação q u e

96
d esem p en ha a co ntrag o sto . Se d eseja ser artista e
em v ez d isso se to rna fu nc io nário d e escritó rio , p assará
a v id a a m u rm u rar e a lam entar-se. Im p o rta, p o is, q u e
cad a um d e sc u b ra o q u e d eseja faz er e v eja, em seg u i­
d a, se é co isa d ig na d e ser feita. Po d e um jo v em , p o r
exem p lo , d esejar ser m ilitar; antes, p o rém , d e in ic iar-se
na c arre ira m ilitar cu m p re-no s aju d á-lo a d esc o b rir
se a p ro fissão d e m ilitar traz b e n e fíc io s à hu m anid ad e
em g eral.
A ed u c aç ão co rreta d ev e aju d ar o estu d an te não só
a d esenv o lv er suas ap tid õ es, m as tam b ém a co m p ree n ­
d er aq u ilo q u e lh e d esp erta m aio r interesse. N um m u n­
d o ato rm en tad o p o r g u erras, d estru iç ão e m iséria, co m ­
p ete ao ind iv íd u o ser c ap az d e e d ific ar u m a no v a o r­
d em so cial e d e inau g u rar u m a no v a m an eira d e v iv er.
A m issão d e co nstru ir u m a so c ied ad e p ac ífic a e
esclarecid a in c u m b e so b retu d o ao ed u cad o r, e é b em
ev id en te — sem no s ag itarm o s em o c io n alm en te a esse
resp eito — q u e se lh e o fe rec e u m a o p o rtu nid ad e ex c ep ­
cio nal d e c o n trib u ir p ara essa tran sfo rm aç ão so cial.
A ed u c aç ão c o rreta não d ep en d e d as d eterm inaç õ es d e
g o v erno alg u m , nem d o s m éto d o s d e um sistem a; ela
está em no ssas p ró p rias m ão s, nas m ão s d o s p ais e d o s
m estres.
Se o s p ais tiv essem v erd ad eira afe iç ão ao s filho s,
cu id ariam d e ed ific ar u m a no v a so c ied ad e; m as, fu n ­
d am en talm en te, a m aio ria d o s p ais não tem essa afe i­
ção e, assim , não lhes so b ra tem p o p ara aten d er a esse
u rg entíssim o p ro b lem a. Tem p o têm eles p ara g anhar
d inheiro , p ara d iv ertim ento s, rito s e d ev o çõ es; nu nca,
p o rém , p ara re fle tir so b re a esp éc ie d e ed u c aç ão q u e
m ais co nv ém ao s filho s. A í está um fato q u e a m aio ­
ria d as p esso as não d eseja en c arar, p o rq u e isso sig ni­

97
fic aria ren u nc iar a seus d iv ertim ento s e d istraçõ es, o
qu e, p o r certo , não têm v o ntad e d e faz er. N essas
co nd içõ es, m and am o s filho s p ara esco las o nd e o p ro ­
fesso r é tão n eg lig en te q u anto eles. E p o rq u e d ev eria
d eixar d e sê-lo ? Para ele, o m ag istério é um sim p les
em p reg o , u m a fo rm a d e g anhar d inheiro .
Se erg u erm o s a co rtin a, v erem o s co m o é su p erfi­
cial, co m o é artific ial e feio o m u nd o q u e criam o s; nó s,
p o rém , ficam o s a ad o rnai- a co rtin a, esp erand o q u e d e
alg u m m o d o tud o saia certo . A m aio ria d as p esso as,
in feliz m en te , não e n c ara a v id a co m seried ad e, a não
ser, talv ez , q u and o se trata d e g anhar d inheiro , c o n ­
q u istar p o d er, o u b u scar ex c itaç õ es sexuais. N ão
d eseja e n fre n tar as o u tras co m p lexid ad es d a v id a, e
essa é a raz ão p o r q u e o s jo v ens cresc em e se to rnam
ind iv íd u o s im atu ro s e “ não -in te g rad o s” , co m o seus
p ais, em p enhad o s nu m a co nstan te b atalh a d entro d e
si e co m o m u nd o .
D iz em o s tão fac ilm e n te q u e am am o s no sso s f i­
lho s! M as existirá am o r em no sso s c o raçõ es se ac e i­
tam o s as co nd iç õ es so ciais v ig entes, se não d esejam o s
realiz ar u m a transfo rm aç ão fu n d am en tal n esta so c ie ­
d ad e d estru tiv a? E, enq u anto ad m itim o s q u e o s esp e­
cialistas ed u q u em no sso s filho s, c o n tin u ará hav end o
esta m esm a co nfu são e m iséria; p o rq u e o s e sp ec ia­
listas, u m a v ez q u e só lhes in teressa a p arte e não o
to d o , tam b ém são entes “ n ão -in te g rad o s” .
Em v ez d e ser a o c u p ação m ais ho nro sa e d e
m aio r resp o nsab ilid ad e, a ed u c aç ão é co nsid erad a h o je
em d ia co m m u ito p o u co caso e a m aio ria d o s p re c e p ­
to res se ac h a estab iliz ad a nu m a ro tina. N ão lhes in te­
ressa realm en te a in teg raç ão e a in telig ên c ia, m as só
a transm issão d e c o n h ec im en to s; e o ho m em q u e se

98
lim ita a transm itir c o n h ec im en to s, estand o o m u nd o a
d e sab ar em to rno d ele, não é um ed u cad o r.
O ed u cad o r não é um m ero transm isso r d e c o n h e­
cim en to s; é u m ho m em q u e m o stra o cam inho d a sab e ­
d o ria, d a v erd ad e. A v erd ad e relev a b em m ais q u e
o p recep to r. A b u sc a d a v erd ad e é relig ião , e a v e r­
d ad e não tem p átria, nem cred o , não se en c o n tra em
nenhu m tem p lo , ig reja o u m esq u ita. Sem a b u sc a d a
v erd ad e, a so cied ad e d ep ressa d ec ai. Para criarm o s
u m a no v a so cied ad e, cu m p re a c ad a um d e nó s ser
um v erd ad eiro m estre, e isso sig n ific a q u e d ev em o s
ser, sim u ltan eam ente, d iscíp u lo e m estre, q u e tem o s
d e ed u car-n o s a nó s m esm o s.
Se se d eseja e stab e le c e r u m a no v a o rd em so cial,
não há lu g ar p ara o s q u e ensinam ap enas a tro co d e
um salário . C o n sid erar a ed u c aç ão co m o m eio d e v id a
é exp lo rar o s jo v ens em b e n e fíc io p ró p rio . N um a
so cied ad e e sc larec id a não terão o s p rece p to res p reo ­
cu p aç ão alg u m a co m seu b em -e star p esso al, e a co m u ­
nid ad e p ro v erá às suas necessid ad es.
O v erd ad eiro ed u cad o r não é o ho m em q u e fu nd a
u m a im p o nen te o rg aniz ação ed u c ativ a, nem o q u e é
instru m ento d o s p o lítico s, nem o q u e está lig ad o a
alg um id eal, c ren ç a o u nação . C v erd ad eiro ed u cad o r
é in terio rm ente ric o e, p o r co n seg u in te, nad a d eseja
p ara si; não é am b ic io so e não b u sc a o p o d er so b n e ­
nhu m a fo rm a; não se serv e d o ensino co m o m eio d e
alc an ç ar p o sição o u au to rid ad e, e está liv re, p o rtanto ,
d a co m p u lsão d a so cied ad e e d o co n tro le d o s g o v erno s.
A o s p rece p to res d essa esp éc ie c ab e o p rim eiro lu g ar
nu m a civ iliz ação esclarecid a, p o rq u e a v erd ad eira c u l­
tu ra se fu nd a, não no s eng enheiro s e téc n ic o s, m as
no s ed u cad o res.

99
C A P ÍT U L O VI

PA IS E M EST R ES

A e d u c a ç ã o v erd ad eira c o m eç a co m o ed u ­
cad o r, q u e d ev e c o m p reend er-se e estar liv re d o s
p ad rõ es co n v en cio n ais d e p ensam ento . Po rq u e o q u e
ele é, ele transm ite. Se não fo i ed u c ad o c o rretam en te,
q u e p o d e transm itir senão o m esm o sab er m ecân ic o
q u e serv iu d e b ase à sua p ró p ria ed u c aç ão ? O p ro ­
b lem a, p o rtanto , não é a c rian ça, m as o p ai e o p re ­
c ep to r; o p ro b lem a é ed u c ar o ed u cad o r.
Se nó s, o s ed u cad o res, não co m p reend em o s a nó s
m esm o s, se não co m p reend em o s no ssas relaç õ es co m
a c rian ç a e ap enas a entu lham o s d e c o n hec im en to s e
a faz em o s p assar em exam es, d e q u e m an eira p o d e­
rem o s inau g u rar u m a ed u c aç ão d e no v a esp éc ie ? O
d iscíp u lo é p ara ser g u iad o e aju d ad o , m as, se o p ró ­
p rio g u ia e aju d an te está co nfu so , é tacanho , n ac io ­
nalista e d o g m ático , então , natu ralm ente, o d iscíp u lo
será ig u al a ele, to rn and o -se a ed u c aç ão u m a fo n te d e
m aio r co nfu são e lu ta.
Se p erce b e rm o s essa v erd ad e, co m p reend erem o s
q u e o im p o rtante é co m eçarm o s a ed u car-no s c o rreta­
m en te. In teressar-n o s p ela no ssa p ró p ria ed u c aç ão é

100
b em m ais n ecessário d o q u e p reo cu p ar-no s co m o
fu tu ro b em -estar e seg u ranç a d o jo v em .
* Ed u c ar o ed u cad o r — isto é, faz ê-lo c o m p reen d er
a si m esm o — é em p resa d as m ais d ifíce is, p o rq u e nó s,
em g eral, já estam o s cristaliz ad o s nu m sistem a d e p e n ­
sam ento o u p ad rão d e aç ão ; já no s entreg am o s in te ira­
m en te a alg u m a id eo lo g ia, relig ião , o u p ad rão d e c o n ­
d u ta, Fo r essa raz ão é q u e ensinam o s ao jo v em o que
p ensar e não como p ensar.
A lém d isso , o s p ais e o s m estres v iv em so b rem o d o
o cu p ad o s co m o s p ró p rio s co n flito s e trib u laç õ es. R i­
co s o u p o b res, a m aio ria d o s p ais está en g o lfad a nas
suas p reo cu p açõ es e atrib u laç õ es p esso ais. A d e terio ­
raç ão so cial e m o ral d e h o je não o s p reo cu p a seria­
m en te, e seu ú nico d esejo é q u e o s filho s se ap arelhem
p ara v en ce r na v id a. Sen tem -se ansio so s a resp eito d o
fu tu ro d o s filho s e d esejo so s d e q u e sejam ed u cad o s
p ara o c u p ar p o siçõ es seg u ras o u faz e r b o n s c asa­
m ento s.
A o co n trário d o q u e g eralm ente se crê, em reg ra
o s p ais não am am o s filho s, em b o ra d ig am o co n trário .
Se o s p ais am assem realm en te o s filho s, não se d aria
tan ta sig nific ação à fam ília e à naç ão co m o o p o sto s ao
to d o , v isto q u e isso g era d iv isõ es so ciais e rac iais en tre
os ho m ens e p ro d uz g u erras e m iséria. R ealm en te, é
ex trao rd inário v er co m o os ind iv íd u o s são su b m etid o s
a rig o ro so p rep aro p ara se to rn arem ad v o g ad o s o u m é ­
d ico s, enq u anto lhes é p erm itid o to rnar-se p ais sem
p rep aração d e esp éc ie alg u m a p ara esta im p o rtan tís­
sim a m issão .
D e o rd inário , a fam ília, co m suas ten d ên c ias d e
sep aração , fav o rec e o p ro cesso g eral d e iso lam ento ,
to rnand o -se assim u m fato r d e d eterio ração n a so c ie ­

101
d ad e. Só q u and o existe am o r e co m p reensão p o d em
ser d estru íd as as m u ralhas d o iso lam ento , e então a
fam ília já não é um c írcu lo fe ch ad o , já não é um a
p risão o u refú g io ; então , o s p ais se ach am em co m u ­
nhão não só co m o s filho s, m as tam b ém co m seus
sem elhantes.
Po r se ac h arem in teiram en te ab so ry id o s no s p ró ­
p rio s p ro b lem as, m u ito s p ais tran sfere m ao p rece p to r
a resp o nsab ilid ad e p elo b em -estar d o s filho s; co nse­
q ü en tem en te, im p o rta q u e o ed u cad o r co n trib u a tam ­
b ém p ara a ed u c aç ão d o s p ais.
D e v e falar-lh es, ex p lic ar-lh es q u e o co nfu so esta­
d o d o m u nd o esp elh a sua p ró p ria co nfu são ind iv id u al.
Im p en d e m o strar-lhes q u e o p ro g resso c ien tífic o em
si não p o d e o p erar nenh u m a transfo rm ação rad ic al no s
v alo res p red o m inantes; q u e o ensino téc n ic o , h o je c h a­
m ad o ed u c aç ão , não d eu ao ho m em lib erd ad e alg u m a
nem o to rno u m ais fe liz ; e q u e co nd ic io nar o estu ­
d ante p ara ac e itar o atu al am b ie n te não co nd u z à
in telig ên c ia. D e v e d iz er-lhes o q u e está faz en d o em
b e n e fíc io d o seu filho e d e q u e m ane ira o está faz end o .
C ab e -lh e d esp ertar a c o n fian ç a d o s p ais, sem assu m ir
a au to rid ad e d e u m esp ec ialista a tratar co m leig o s
ig no rantes, m as co nv ersand o co m eles a resp eito do
tem p eram en to , d as d ificu ld ad es, d as .ap tid õ es e tc ., d a
crianç a.
Se o m estre d em o nstra v erd ad eiro in teresse na
c rian ç a co m o ind iv íd u o , o s p ais co nfiarão nele. A ssim
p ro ced end o , o ed u c ad o r está ed u cand o o s p ais b em
co m o a si m esm o , u m a v ez q u e d eles tam b ém ap rend e.
A ed u c aç ão c o rreta é u m a tare fa m ú tu a, q u e req u er
p ac iê n c ia, c o n sid eraç ão e afe to . O s m estres esc la­
rec id o s, nu m a co m u nid ad e esclare cid a, p o d eriam re ­

102
so lv er esse p ro b lem a d a e d u c aç ão d o s jo v ens, e nesse
terreno d ev em realiz ar-se ex p e riê n cias em p eq u en a
escala p o r p arte d e p rece p to res interessad o s e d e p ais
criterio so s.
Perg u n tam o s p ais alg u m a v ez a si m esm o s p o r
q u e têm filho s? T êm filho s p ara p e rp etu ar o seu no m e,
c o nserv ar sua p ro p ried ad e? D esejam filho s u n ic a­
m ente p ara d ele ite p ró p rio , p ara satisfação d e suas
necessid ad es em o c io n ais? Se assim é, to rn am -se os
filho s m era p ro jeç ão d o s d esejo s e tem o res d o s p ais.
Po d em o s p ais p ro testar am o r ao s filho s q u and o ,
ed u cand o -o s erro ne am en te , fo m entam a inv eja, a in i­
m iz ad e e a am b iç ão ? É am o r estim u lar antag o nism o s
nac io nais e raciais, co n d u ce ntes à g u erra, à ru ína e à
afliç ão ex trem a? É am o r lan ç ar o s ho m ens uns co n tra
os o u tro s em no m e d e relig iõ es e id eo lo g ias?
M u ito s p ais im p elem o s filho s p ara as v ias d o
c o nflito e d o so frim ento , não só p erm itind o q u e sejam
in c o n v en ien tem en te ed u cad o s, m as tam b ém p e la p ró ­
p ria co nd u ta na v id a; e d ep o is, q u and o o s filho s c res­
c em e so frem , rez am p o r eles o u p ro cu ram escu sas p ara
seu co m p o rtam ento . O so frim ento d o s p ais p elo s
filho s é u m a esp éc ie d e au to co m p aixão , d e co rrente d o
sentim ento d e p o sse; tal co isa só p o d e ac o n te c er q u an ­
d o não existe am o r.
Se o s p ais am arem o s filho s, não serão n ac io n a­
listas, nem se id e n tific arão co m naç ão alg u m a, p o rq u e
o cu lto d o Estad o p ro d uz a g u erra, q u e m ata e lhe
m u tila o s filho s. Se o s p ais am arem o s filho s, d esc o ­
b rirão a relaç ão co rreta co m a p ro p ried ad e, p o rq u e
o instinto d e p o sse c o n feriu à p ro p ried ad e um ex trao r­
d inário e falso sig nificad o , q u e está d estru ind o o m u n­

103
d o . Se o s p ais am arem o s filho s d eixarão d e p erte n ce r
a q u alq u er o rg an iz aç ão relig io sa, p o rq u e o d o g m a e a
c re n ç a d iv id em o s ind iv íd u o s em g rup o s antag ô nico s,
c riand o inim iz ad e en tre o s ho m ens. Se o s p ais am arem
o s filho s p o rão fim à in v eja e à c o m p etiç ão e tratarão
d e alterar fu n d am en talm en te a estru tu ra d a ho d ierna
so cied ad e.
En q u an to d esejarm o s q u e no sso s filho s sejam
p o d ero so s, o cu p em p o siçõ es m ais im p o rtantes e m e­
lho res, alc an c e m êxito s c ad a v ez m aio res, não existirá
am o r em no sso s co raçõ es, p o is o cu lto d o b o m êxito
fo m enta o c o n flito e o so frim ento . A m ar o s filho s é
estar em p e rfe ita co m u nhão co m eles, é interessar-se
em q u e tenham a esp éc ie d e ed u c aç ão q u e o s aju d e
a ser sensív eis, in telig en tes e integ rad o s.
A p rim eira co isa q u e um p rece p to r d ev e p erg u n­
tar a si m esm o , q u and o d e cid e ensinar, é o q u e e n te n ­
d e, p recisam en te, p o r ensino . Preten d e e le ensinar as
m atérias co stu m eiras p ela m aneira h ab itu al? Preten d e
co nd ic io nar a c rian ç a p ara se to rnar um d en te d a
m áq u in a so cial, o u d eseja aju d á-la a ser um en te h u ­
m ano integ rad o e criad o r, u m a am eaça ao s falso s
v alo res? E p ara q u e o ed u cad o r p o ssa aju d ár o estu ­
d ante a exam inar e co m p ree nd er o s v alo res e in flu ên ­
cias q u e o ro d eiam e d e q u e ele se faz p arte, não d ev e,
p rim eiram ente, estar c o n sc ien te d eles? Se um in d iv í­
d uo é ceg o , co m o p o d e aju d ar o u tro s a atrav essar p ara
a o u tra m arg em ? Ev id en te m en te, d ev e o ed u cad o r,
antes, c o m eç ar a ver. C u m p re-lh e m anter-se sem p re
v ig ilante, in tensam en te cô nscio d o s p ró p rio s p ensa­
m ento s e sentim ento s, cô nscio d as m aneiras p o r q u e
está c o nd ic io n ad o , cô nscio d as suas ativ id ad es e suas
reaç õ es; p o rq u e d essa v ig ilân cia su rg e a in te lig ên c ia

104
e co m ela u m a tran sfo rm aç ão rad ic al d as suas relaçõ es
co m p esso as e co isas.
A in telig ên c ia não tem re laç ão alg u m a co m a
c ap ac id ad e d e p assar em exam es. In te lig ê n c ia é a
p e rce p ção esp o n tânea q u e to rna um ho m em liv re e
fo rte. Para d esp ertarm o s a in telig ên c ia nu m a crian ça,
d ev em o s c o m eç ar p o r co m p reend er, p o r nó s m esm o s,
o q u e é in telig ên c ia. C o m o p o d em o s exig ir q u e um a
c rian ç a seja in telig en te, se nó s m esm o s, a v ário s res­
p eito s, co ntinu am o s p o u co in telig en tes? O p ro b lem a
não são ap enas as d ificu ld ad es d a c rian ça, m as tam ­
b é m as no ssas, os co nstantes e c resc en tes tem o res, tris­
tez as e fru straçõ es d e q u e não estam o s isento s. Para
hab ilitar-n o s a aju d ar a c rian ç a a ser in telig en te, tem o s
d e d estru ir, d entro em nó s m esm o s, esses o b stácu lo s
q u e no s estão to rnand o em b o tad o s e inc ap az es d e
p ensar.
C o m o p o d em o s ensinar o s jo v ens a não b u sc ar a
seg u ran ça p esso al se nó s p ró p rio s a estam o s b u scand o ?
Q u e esp eranç as p o d e hav er p ara o s jo v ens se nó s, os
p ais e m estres, não estam o s in teiram en te ab erto s à
v id a, se lev antam o s m u ralhas p ro teto ras em red o r d e
nó s? Para d esco b rirm o s o v erd ad eiro sig n ificad o d esta
lu ta p ela seg u ran ça, q u e está cau sand o tam anh a d eso r­
d em no m u nd o , c ab e -n o s c o m eç ar p o r d esp ertar no ssa
p ró p ria in telig ên c ia, to rnand o -no s cô nscio s d o s no sso s
“ p ro cesso s” p sic o ló g ico s; cu m p re-no s c o m eç ar p o nd o
em d ú v id a to d o s o s v alo res q u e o ra no s ap risio nam .
N ão d ev em o s c o n tinu ar ac eitan d o , in c o n sid erad a­
m ente, o p ad rão em q u e p o r acaso fo m o s criad o s.
C o m o p o d e hav er h arm o n ia no ind iv íd u o e, p o r c o n ­
seg u inte, na so c ied ad e, se não co m p reend em o s a nó s
m esm o s? A m eno s q u e o ed u cad o r se co m p reend a,

105
a m eno s q u e p e rc e b a as p ró p rias reaç õ es c o n d ic io ­
nad as e c o m ec e a lib ertar-se d o s v alo res v ig entes, d e
q u e m aneira p o d erá d esp ertar a in telig ên c ia na c rian ­
ça? E, se é inc ap az d e d esp ertar a in telig ên c ia na
c rianç a, q u al é en tão sua fu nç ão ?
Só p ela co m p reen são d as ten d ên c ias d o no sso
p ensam ento e sentim ento p o d em o s realm en te aju d ar
a c rian ç a a ser um ente hu m ano liv re; e, se o ed u ­
cad o r estiv er m u ito interessad o nisso , m an ter-se-á
in tensam en te v ig ilante, não só d a c rian ça, m as tam ­
b ém d e si m esm o .
Po u co s d e nó s o b serv am o s no sso s p ró p rio s p ensa­
m ento s e sentim ento s. Se eles são m an ifestam en te
feio s, não lhes co m p reend em o s o inteiro sig nificad o ,
e p ro cu ram o s, ap enas, rep rim i-lo s o u afastá-lo s. N ão
estam o s p ro fu n d am en te cô nscio s d e nó s m esm o s; no s­
so s p ensam ento s e sentim ento s são estereo tip ad o s,
au to m ático s. A p rend em o s um as p o u cas m atérias,
acu m u lam o s alg u ns co nh ecim en to s e, d ep o is, te n ta­
m o s transm iti-lo s ao s jo v ens.
M as, se estam o s v iv am ente interessad o s, não tra­
tarem o s u nicam en te d e m anter-no s b em info rm ad o s
so b re as ex p eriênc ias q u e se estão faz end o em d ife ­
rentes p artes d o m u nd o , n a ed u c aç ão , m as tam b ém d e
c o n h ec er co m m u ita clarez a no ssa atitu d e p esso al co m
relaç ão a este p ro b lem a: p o r q u e e p ara q u e estam o s
ed u cand o os jo v ens e a nó s m esm o s. Inv estig arem o s
o sig n ificad o d a existênc ia, as re laç õ es d o ind iv íd u o
co m a so cied ad e, etc . Sem d úv id a, d ev em o s ed u c a­
d o res estar b em cô nscio s d esses p ro b lem as e p ro c u rar
aju d ar a c rian ç a a d e sc o b rir a v erd ad e a eles relativ a,
sem p ro je tar nelas as p ró p rias id io ssincrasias e háb ito s
d e p ensam ento .

106
A m era o b serv ân cia d e um sistem a p o lític o o u
ed u cativ o nu nc a reso lv erá o s nu m ero so s p ro b lem as
so ciais e é b em m ais im p o rtan te co m p reend erm o s a
no ssa atitu d e p esso al co m relaç ão a q u alq u er p ro b le-
nra, d o q u e co m p reend erm o s o p ro b lem a em si.
Se se q u er q u e o s jo v ens sejam liv res d e tem o r
— seja d o s p ais, se ja d o am b ie n te, seja d e D eu s — o
p ró p rio ed u c ad o r não d ev e tem er nad a. Esta, p o rém ,
é a d ific u ld ad e — en c o n trar p rece p to res q u e não este ­
jam so b o d o m ínio d e alg u m a esp éc ie d e m ed o . O
m ed o estre ita o p ensam ento e lim ita a in ic iativ a, e o
p rec ep to r q u e o sen te não p o d e, natu ralm en te, trans­
m itir o sig n ificad o p ro fu nd o d o ser sem m ed o . C o m o
a b o n d ad e, o tem o r é co ntag io so . Se o p ró p rio ed u ­
cad o r tem e se cre tam en te, transm itirá esse tem o r a seus
d iscíp u lo s, em b o ra a c o n tam in aç ão não seja lo g o p e r­
c eb id a.
Su p o nham o s, p o r exem p lo , q u e um m estre tenh a
m ed o d a o p inião p ú b lic a; q u e rec o n h e ç a o ab su rd o
d e tal tem o r e, en tretan to , seja inc ap az d e tran sc en ­
d ê-lo . Q u e d ev e faz er? Po d e, ao m eno s, rec o n h e cê -lo ,
d e si p ara co nsig o , e aju d ar o s d iscíp u lo s a c o m p ree n ­
d erem o tem o r, exp o nd o sua p ró p ria reaç ão p sic o ló ­
g ica e falan d o -lhes fran c am en te a esse resp eito . Esta
m ane ira ho ne sta e sin c era d e p ro c ed er m u ito estim u ­
lará o s d iscíp u lo s a serem tam b ém fran co s e d ireto s
co m re laç ão a si m esm o s e co m re laç ão ao m estre.
Para d ar à c rian ç a a lib erd ad e, cu m p re ao ed u ­
cad o r estar cô nsc io d e to d o o alc an c e e sig n ific aç ão
d a lib erd ad e. O exem p lo e a co m p u lsão , so b q u al­
q u er fo rm a q u e seja, não co n trib u em p ara a lib erd ad e,
e só na lib erd ad e p o d e hav er au to d esc o b rim en to e
p en etraç ão .

107
A c rian ç a é in flu en c iad a p elas p esso as e p elas c o i­
sas q u e a circu n d am , e ao v erd ad eiro ed u cad o r c ab e
aju d á-la a d e sc o b rir essas in flu ên c ias e seu exato v alo r.
O s v alo res co rreto s não se d esco b rem p o r influ ên c ia
d a au to rid ad e d a so c ied ad e o u d a trad iç ão ; só a re fle ­
xão ind iv id u al p o d e rev elá-lo s.
Se o m estre c o m p reend er isso a fu nd o , estim u lará
o d iscíp u lo , d esd e o co m eço , a d e sp ertar o d isce rn i­
m ento d o s v alo res ind iv id u ais e so ciais d a atu alid ad e.
Estim u la-lo -á a b u scar, não d eterm in ad a o rd em d e v a­
lo res, m as o v erd ad eiro v alo r d e to d as as co isas. A ju -
d a-lo -á a ser d estem ero so , o q u e sig n ific a estar liv re
d e q u alq u er d o m ínio , seja d o m estre, seja d a fam ília
o u d a so cied ad e, p ara q u e, co m o ind iv íd u o , ele p o ssa
“ flo resc er no am o r e na b o n d ad e” . A ju d and o d esse
m o d o o jo v em a alc an ç ar a lib erd ad e, o ed u cad o r está
m o d ificand o tam b ém o s p ró p rio s v alo res; tam b ém ele
está c o m eçand o a fic ar liv re d o “ eu ” e d o “ m eu ” , tam ­
b ém ele está “ flo resc en d o no am o r e na b o n d ad e” .
Esse p ro cesso d e ed u c aç ão m ú tu a c ria u m a relaç ão
in teiram ente d iferen te en tre m estre e d iscíp u lo .
O d o m ínio o u a co m p u lsão , d e q u alq u er esp écie,
é um o b stácu lo d ireto à lib erd ad e e à in telig ên c ia. O
v erd ad eiro ed u cad o r não se su b m ete a nenh u m a au to ­
rid ad e e nenhu m p o d er na so c ied ad e ; está fo ra d o
alc an c e d o s d ec reto s e sançõ es d a so c ied ad e. Se q u e ­
rem o s aju d ar o jo v em a fic ar liv re d o s em p ec ilh o s
criad o s p o r ele p ró p rio e p elo am b ie n te, to d a esp éc ie
d e co m p u lsão e d o m ínio d ev e ser co m p reend id a e
p o sta d e p arte; e isso não p o d e ser fe ito se o p ró p rio
ed u cad o r não se estiv er lib ertan d o d e to d as as p eias
d a au to rid ad e.

108
Seg u ir o u tra p esso a, p o r m ais em in en te q u e seja,
im p ed e o d esc o b rim en to d as ten d ên c ias d o “ eu ” ; c o r­
rer atrás d a p ro m essa d e alg u m a u to p ia “ já fe ita”
im p ed e o esp írito d e p e rc e b e r a aç ão env o lv ente d o
seu p ró p rio d esejo d e c o nfo rto , d e au to rid ad e, d e aju ­
d a p o r p arte d e o u trem . O sac erd o te, o p o lític o , o
ad v o g ad o aí estão p ara no s “ aju d ar” ; m as tal aju d a
d estró i a in te lig ên c ia e a lib erd ad e. A aju d a d e q u e
p recisam o s não se ac h a fo ra d e nó s. N ão necessitam o s
d e p ed ir aju d a; ela v em sem a p ro cu rarm o s, q u and o
so m o s hu m ild es no trab alh o d ev o tad o , q u and o estam o s
ab erto s p ara a co m p reen são d e no ssas trib u laç õ es e
ac id en tes d e c ad a d ia.
D ev em o s ev itar a ânsia, c o n sc ie n te o u in c o n sc i­
ente, d e ap o io e estím u lo , p o rq u e tal ânsia c ria a re a­
ç ão resp ec tiv a, q u e é sem p re a b u sc a d e satisfação .
É co n fo rtan te term o s alg u ém q u e no s in c en tiv e , no s
g u ie e no s tran q ü iliz e; m as esse háb ito d e rec o rrer a
o u trem , faz end o -o no sso g u ia, no ssa au to rid ad e, d e­
p ressa ^se c o n v erte nu m v eneno em no ssa estru tu ra.
D esd e q u e d ep end em o s d e o u tra p esso a p ara no ssa
o rien taç ão , esq u ec em o s no ssa in ten ç ão p rim itiv a, q u e
era a d e d esp ertar a lib erd ad e e a in telig ên c ia in d i­
v id uais.
T o d a esp éc ie d e au to rid ad e é um em p ec ilh o , e
é essenc ial q u e o ed u cad o r não se to rn e u m a au to ri­
d ad e p ara o d iscíp u lo . A g ênese d a au to rid ad e é um
p ro cesso tan to c o n sc ie n te co m o in c o n sc iente.
O estu d an te sente-se in c erto , a tatear, e o m estre
se m o stra m u ito c o n fian te no seu sab er, fo rte na sua
ex p eriênc ia. A fo rç a e a seg u ranç a d o m estre insp iram
co n fian ç a no d iscíp u lo , q u e ten d e então a “ aq u ec er-se
a esse so l” . M as essa c o n fian ç a não é d u rad o u ra nem

109
g enu ína. O m estre q u e, c o n sc ien te o u in c o n sc ie n te­
m ente, estim u la a d ep en d ên c ia, n u n ca p o d e ser d e
m u ita v alia p ara o s d iscíp ulo s. Po d e rá asso m b rá-lo s
co m seu sab er, o fu sc á-lo s co m su a p erso nalid ad e, m as
não é o ed u cad o r co n v en ien te, u m a v ez q u e sua c u l­
tu ra e ex p e riên c ia são sua p aixão , sua seg u rança e
sua p risão ; e, enq u anto ele p ró p rio não so u b er liv rar-
-se d eles, não p o d erá aju d ar os d iscíp u lo s a serem entes
hu m ano s integ rad o s. .
Para ser um v erd ad eiro ed u cad o r, cu m p re ao
m estre esq u ec er-se c o n stan tem en te d e liv ro s e lab o ­
rató rio s; d ev e estar sem p re v ig ilante, p ara im p ed ir q u e
os d iscíp u lo s faç am d ele um exem p lo , um id eal, u m a
au to rid ad e. Q u and o o m estre d eseja realiz ar suas
am b içõ es atrav és d e seus d iscíp u lo s, q u and o o sucesso
d eles rep resenta o p ró p rio su cesso , então seus ensi­
nam ento s são u m a esp éc ie d e c o n tinu aç ão d ele p ró ­
p rio , o q u e é p reju d ic ial ao au to co nh ecim en to e à
lib erd ad e. O v erd ad eiro ed u cad o r d ev e estar b em
cô nsc io d e to d o s esses em p ecilh o s, a fim d e p o d er aju ­
d ar os estu d antes a serem liv res não só d a sua au to ­
rid ad e, m as tam b ém d o s p ró p rio s in teresses eg o c ê n ­
trico s.
In fe liz m en te , q u and o se trata d e c o m p reend er um
p ro b lem a, a m aio ria d o s m estres não co nsid era o d isc í­
p ulo co m o um p arceiro no m esm o nív el q u e eles; d e
sua p o sição su p erio r, d itam instru çõ es ao d iscíp u lo ,
situ ad o m u ito ab aixo d eles. A s relaç õ es, em tais caso s,
só têm o efeito d e au m entar o tem o r, tan to d o m estre
co m o d o d iscíp u lo . C o m o se c ria essa relaç ão d esi­
g u al? Será q u e o m estre tem m ed o d e ser “ d e sc o ­
b e rto ” ? M antém ele u m a d istânc ia resp eitáv el a fim
d e p ro teg er suas su scetib ilid ad es, sua im p o rtânc ia?

110
Esse iso lam ento su p erio r não c o n trib u i d e m o d o n e ­
nhu m p ara d estru ir as b arreiras q u e sep aram o s in d i­
v íd uo s. A final d e co ntas, o ed u cad o r e o d iscíp u lo se
aju d am m u tu am ente a ed u car-se.
To d as as relaç õ es d ev eriam ser u m a ed u c aç ão
m ú tu a; e u m a v ez q u e o iso lam ento p ro teto r p ro p o r­
cio nad o p elo sab er, p elo b o m êxito , p ela am b iç ão , só
p o d e g erar in v e ja e antag o nism o , c ab e ao v erd ad eiro
ed u c ad o r tran sc en d er as m u ralhas q u e ele p ró p rio
erg u eu ao red o r d e si.
Po rq u e se d ed ic a to d o à lib erd ad e e à in teg raç ão
d o ind iv íd u o , o v erd ad eiro ed u c ad o r é p ro fu nd a e
sin c eram en te relig io so . N ão p erte n c e a nenh u m a seita,
o u relig ião o rg aniz ad a; está liv re d e c ren ç as e rito s,
p o is sab e q u e são ap enas ilu sõ es, fan tasias, su p ersti­
çõ es p ro jetad as p elo s d esejo s d aq u eles q u e as criaram .
Sab e q u e a realid ad e o u D e u s só p o d e m anifestar-se
q u and o há au to co n h ecim en to e, p o r co n seg u in te,
lib erd ad e.
A s p esso as não p o ssu id o ras d e d ip lo m as ac ad ê ­
m ico s são m u itas v ez es o s m elho res m estres, p o rq u e
têm d isp o sição p ara exp erim entar. N ão send o esp e­
cialistas, têm in teresse em ap rend er, em co m p reend er
a v id a. Para o v erd ad eiro ed u cad o r, ensinar não é
u m a té c n ic a, é v o c aç ão ; co m o um g rand e artista, p re­
feriria m o rrer à m íng u a a ren u n c iar ao trab alh o c ria­
d o r. Q u em não sentir esse ard en te d esejo d e ensinar
não d ev e ser p recep to r. É d e sum a im p o rtânc ia q u e o
ind iv íd u o d e sc u b ra p o r si m esm o se tem esse d o m ,
em v ez d e ap enas d eixar-se im p elir p ara o ensino , p o r
co n stitu ir um m eio d e v id a.
Se o ensino exp rim ir sim p les p ro fissão , um m eio
d e v id a e não u m a v o c aç ão c h eia d e d ev o tam ento ,

111
hav erá fo rç o sam ente sep aração en tre o m u nd o e nó s
m esm o s: no ssa v id a d o m éstic a e no sso trab alh o c o n ti­
nu arão sep arad o s e d istinto s. En q u an to a ed u c aç ão
fo r ap enas um em p reg o co m o o u tro q u alq u er, é in e ­
v itáv el o c o n flito e a inim iz ad e en tre o s ind iv íd u o s e
en tre as d iferen te s classes o u nív eis so ciais; hav erá
c re sc e n te co m p e tiç ão , a cru el lu ta d as am b iç õ es p e s­
so ais e o estab ele c im en to d e d iv isõ es en tre n aç õ es e
raças, criad o ras d e antag o nism o s e d e g u erras in te r­
m ináv eis.
C o m o v erd ad eiro s ed u cad o res, não criam o s b ar­
reiras en tre no ssa v id a no lar e a v id a na esco la, p o r­
q u e em to d a p arte o q u e no s interessa é sem p re a
lib erd ad e e a in telig ên c ia. Tratam o s em p é d e ig u al­
d ad e o s filho s d o ric o e o s filho s d o p o b re, c o n sid e­
rand o c ad a jo v em co m o um ind iv íd u o , co m seu te m p e ­
ram ento p esso al, suas p ecu liarid ad es here d itárias, suas
am b iç õ es, etc . Estam o s interessad o s, não em um a
classe, não no s p o d ero so s o u no s frac o s, m as na lib e r­
d ad e e na in teg raç ão d o ind iv íd u o .
O d ev o tam ento à ed u c aç ão c o rreta d ev e ser v o lu n­
tário . N ão resu lta d e nenh u m a p ersu asão o u esp e­
ran ç a d e g anho p esso al; e d ev e estar isento d o s tem o ­
res o riu nd o s d a ânsia d e su cesso e c eleb rid ad e. A
id e n tific aç ão d o ind iv íd u o co m o su cesso o u o insu ­
cesso d e u m a esco la aind a está co m p reend id a no c am ­
p o d o interesse p esso al. Se ensinar é no ssa v o caç ão ,
se co nsid eram o s a ed u c aç ão co rreta co m o u m a n e c e s­
sid ad e v ital d o ind iv íd u o , não no s d eixarem o s esto r­
v ar nem d esv iar d e m an eira alg u m a p o r no ssas p ró ­
p rias am b içõ es o u p elas am b içõ es d e o u trem ; ac h are ­
m o s tem p o e o p o rtu nid ad e p ara esse trab alh o e a ele
no s d ed ic arem o s sem b u sc ar reco m p en sa, ho nras o u

112
fam a. En tão , tu d o o m ais — fam ília, seg u rança p es­
so al, co nfo rto — se to rna d e im p o rtân c ia secu nd ária.
Se tem o s sinc ero em p enh o em ser g enu íno s ed u ­
cad o res, estarem o s c o m p letam en te in satisfeito s, não
ap enas co m d eterm inad o sistem a d e ed u c aç ão , m as
co m to d o s eles, p o rq u anto sab em o s q u e nenhu m m é ­
to d o ed u c ativ o p o d e lib ertar o ind iv íd u o . U m m éto d o
o u sistem a p o d erá c o n d ic io ná-lo a u m a d iferen te o rd em
d e v alo res, m as nu n ca faz ê -lo liv re.
D ev em o s tam b ém m anter-no s v ig ilantes, a fim d e
não d esc am b arm o s p ara no sso sistem a p esso al, q u e a
m en te está sem p re fo rm and o . Se g u ir um p ad rão d e
co nd u ta, d e aç ão , é u m a fo rm a c o nv en iente e seg u ra
d e p ro c ed er, e esta é a raz ão p o r q u e a m ente g o sta
d e ab rig ar-se nas suas fo rm u laçõ es. Estar co nstante-
fhente v ig ilante é incô m o d o e im p õ e c ertas ex ig ências,
m as d esenv o lv er e seg u ir um m éto d o não exig e re ­
flexão .
A rep etiç ão e o h áb ito co nc o rre m p ara to rnar a
m ente in d o len te; é p reciso então um c ho q u e p ara d es­
p ertá-la, e a esse c h o q u e cham am o s um p ro b lem a.
Pro cu ram o s reso lv er esse p ro b lem a d e aco rd o co m as
no ssas já m u ito u sad as ex p lic aç õ es, ju stific aç õ es e
co nd en açõ es, d o q u e resu lta p o rm o s a m ente d e no v o
a d o rm ir. A m ente é d e co ntínu o inv ad id a p o r essa
fo rm a d e ind o lên cia, e o v erd ad eiro ed u cad o r não só
a faz cessar em si m esm o , m as tam b ém aju d a o s d is­
cíp u lo s a estarem cô nscio s d ela.
Perg u n tarão alg u ns: “ C o m o p o d e alg u ém to rn ar-
-se um v erd ad eiro e d u c ad o r? ” O ra, p erg u ntar “ c o m o ”
in d ic a q u e a m en te não é liv re, m as tim o rata e in te ­
ressad a em v antag em , em resu ltad o . A esp eranç a e o
esfo rç o p ara no s to rnarm o s im p o rtantes só resu ltam

113
em aju star a m ente ao fim d esejad o , ao p asso q u e a
m ente liv re está sem p re v ig ilan te, sem p re ap rend end o
e, p o r co n seg u in te, lev and o d e v e n cid a o s o b stácu lo s
p o r ela p ró p ria p ro jetad o s.
A lib erd ad e está no co m eç o , não é co isa q u e se
g anha no fim . A o p erg u ntarm o s “ c o m o ” , esb arram o s
em o b stácu lo s insu p eráv eis, e o p rec ep to r q u e sente
m u ito em p enho em co nsag rar su a v id a à ed u c aç ão
nu nca fará tal p erg u nta, p o rq u e sab e não existir m é ­
to d o c ap az d e to rná-lo um v erd ad eiro ed u cad o r. Se
estam o s v iv am ente interessad o s, não p ed im o s nenhu m
m éto d o q u e no s g aranta o resu ltad o d esejad o .
Po d e alg u m sistem a to rnar-no s in telig en tes? P o ­
d em o s enfro nh ar-no s lab o rio sam en te num sistem a,
tirar d ip lo m as, etc ., m as serem o s então ed u cad o res o u
m eras p erso nific aç õ es d e um sistem a? Bu sc ar rec o m ­
p ensa, d esejar ser ch am ad o “ em in en te ed u c ad o r” é
asp irar a ap lau so s e lo u v o res e, co nq u an to se ja às
v ez es ag rad áv el sentir-no s ap reciad o s e estim u lad o s, se
d ep end erm o s d e tal co isa p ara su stentar no sso in te ­
resse, ela se to rn a co m o q u e u m a d ro g a d e q u e d ep res­
sa no s cansarem o s. Esp e rar ap re c iaç ão e estím u lo é
falta d e m ad u rez a.
Se d esejam o s se c rie alg o no v o , p recisam o s d e
v ig ilân cia e energ ia, não d e b rig as e q u iz ilas. Q u and o
em no sso trab alh o no s sentim o s fru strad o s, em g eral
v em lo g o o téd io e o c ansaç o . Q u em não se sente in te ­
ressad o não d ev e, é claro , c o ntinu ar a ensinar.
M as, p o r q u e existe tantas v ez es a falta d e v ital
interesse en tre o s p rece p to res? Q u e faz u m a p esso a
sentir-se fru strad a? A fru stração não resu lta d e ser
u m a p esso a fo rç ad a p elas c ircu nstânc ias a faz e r isso

114
o u aq u ilo ; m an ifesta-se p o r não sab erm o s nó s m esm o s
o q u e realm en te d esejam o s faz er. Po rq u e estam o s
co nfu so s, so m o s im p elid o s p ara aq u i e p ara ali e ac a­
b am o s ab raçan d o u m a ativ id ad e q u e ab so lu tam en te
não no s interessa.
Se ensinar é no ssa v erd ad eira v o c aç ão , p o d em o s
sentir tem p o rário m alo g ro p o r não enco ntrarm o s u m a
saíd a p ara o p re sente cao s em q u e se ac h a a ed u c aç ão ;
m as, ao p erce b erm o s e co m p reend erm o s to d o o alc an ­
c e d a ed u c aç ão c o rreta, v o ltarem o s a ter o inc en tiv o e
o entu siasm o necessário s. N ão é q u estão d e v o ntad e
o u d e reso lu ção , p o rém d e p e rc eb im en to e co m ­
p reensão .
Se ensinar é no ssa v o c aç ão e se v em o s a g rand e
im p o rtânc ia d a ed u c aç ão c o rreta, não p o d em o s d eixar
d e ser v erd ad eiro s ed u cad o res. N ão h á necessid ad e
d e seg u ir m éto d o alg u m . O p ró p rio fato d e c o m p re­
end erm o s q u e a ed u c aç ão c o rreta é ind isp ensáv el —
se q u erem o s realiz ar a lib erd ad e e a in teg raç ão d o
ind iv íd u o — o p era em nó s u m a transfo rm aç ão fu n d a­
m ental. Se p erce b e rm o s q u e só p o d e h av er p az e fe li­
cid ad e p ara o ho m em atrav és d a ed u c aç ão c o rreta,
então , natu ralm en te, a ela co nsag rarem o s to d a no ssa
v id a e in teresse.
Ensinam o s o jo v em p o rq u e d esejam o s faz ê-lo rico
interio rm ente, em v irtu d e d o q u e ele atrib u irá ao s
b ens m ateriais o seu exato v alo r. Q u and o não há
riq u ez as interio res, as co isas m u nd anas se to rnam
d em asiad o im p o rtan tes, lev and o d e v árias fo rm as à
d estru ição e ao 'So frim ento . En sinam o s p ara estim u lar
u d iscíp u lo a ac h ar sua v erd ad eira v o c aç ão e ev itar
.r. o c u p a ç õ e s q u e fo m entam o antag o nism o en tre os
In im rn s. Ensinam o s o s jo v ens p ara aju d á-lo s a alc an ­

115
ç ar o au to co n h ecim en to , sem o q u al não p o d e hav er
p az nem fe lic id ad e d u rad o u ras. En sin ar não rep re­
senta um p reen c him en to eg o ísta, m as ab neg aç ão .
Sem o ensino co rreto , a ilusão é to m ad a p ela re a­
lid ad e, e o ind iv íd u o se v ê num c o n flito p eren e d e n­
tro em si m esm o , e, co n seq ü en te m en te , em co n flito
nas suas relaçõ es co m o s o utro s, q u e co n stitu em a
so c ied ad e. En sinam o s p o rq u e sab em o s q u e só o au to ­
c o n hec im en to , e não o s d o g m as e o s rito s d a relig ião
o rg aniz ad a, p o d e p ro d uz ir esp írito s tran q ü ilo s; e q u e
a criação , a v erd ad e, D eu s, só p o d e m an ifestar-se d e­
p o is d e serem transcend id o s o “ eu ” e o “ m eu ” .
C A P ÍT U L O V II

SEX O E C A SA M EN T O

C o m o o u tro s p ro b lem as hu m ano s, o p ro ­


b lem a d as p aixõ es e im p u lso s sexu ais é co m p lexo e
d if íc il e, se o ed u cad o r não o ho u v er inv estig ad o p e s­
so alm ente, co m p ro fu nd ez a, e p e rc eb id o to d o o seu
co nteú d o , d e q u e m aneira p o d e aju d ar ao s q u e está
ed u c an d o ? Se o p ai o u o m estre está tam b ém à m erc ê
d as ag itaç õ es d o sexo , co m o p o d e g u iar a c rian ç a?
Po d em o s aju d ar as c rianç as se nó s m esm o s não c o m ­
p reend em o s o in teiro sig n ificad o d esse p ro b lem a? A
m ane ira co m o o ed u cad o r tran sm ite a co m p reensão
d o sexo d ep en d e d o seu p ró p rio estad o d e esp írito ; se
ele é m o d erad am ente d esap aixo nad o o u se está ab so r­
v id o p elo s p ró p rio s d esejo s.
O ra b em , p o r q u e é o sexo p ara a m aio ria d e nó s
um p ro b lem a ch eio d e co nfu são e d e c o n flito ? Po r
q u e se to rno u ele u m fato r d o m inan te em no ssas v id as?
U m a d as raz õ es p rin cip ais é q u e não so m o s criad o res;
e não o so m o s p o rq u e to d a no ssa c u ltu ra so cial e m o ­
r a l , assim co m o no sso s m éto d o s ed u cativ o s, b aseiam -se
no d esenv o lv im ento d o in tele c to . A so lu ção d este
p r o b l e m a d o sexo está em co m p reend erm o s q u e a c ria-

117
ção não é efeito d a ativ id ad e in tele c tu al. A o c o n trá­
rio , só p o d e h av er c riaç ão q u and o o in tele c to está
inativ o .
O in tele c to , a m ente, co m o tal, só é c ap az d e
rep etir, d e rec o rd ar-se, e está sem p re fab ric an d o p ala­
v ras no v as e reaju stand o p alav ras v elhas; e, co m o em
g eral nó s só sentim o s e exp erim entam o s p elo c éreb ro ,
v iv em o s exclu siv am ente d e p alav ras e rep etiç õ e s m e­
cân icas. Isso , ev id en tem en te, não é c riação , e v isto
q u e não so m o s criad o res, o ú nico m eio d e c riação q u e
no s resta é o sexo . O sexo é co isa d a m en te, e o q u e
é d a m ente exig e satisfação , p o is, d o co n trário , v em a
fru stração .
N o sso s p ensam ento s, no ssas v id as, são estreito s,
árid o s, v az io s, inú teis. Em o c io n alm en te, estam o s em
estad o d e in an iç ão ; relig io sa e ec o n o m ic am en te no s
su bm etem o s à d iscip lin a e ao co n tro le. N ão so m o s
entes feliz es, não tem o s v italid ad e nem aleg ria; no
lar, no s neg ó cio s, na ig reja, na esco la, nu n ca ex p eri­
m entam o s um “ estad o d e ser” criad o r, nu n ca há um
d esafo g o p ro fu nd o em no sso s p ensam ento s e açõ es
d e cad a d ia. Preso s e to lhid o s d e to d o s os lad o s, o í
sexo se to rna natu ralm en te a ú n ic a v ia d e escap e,
u m a ex p eriên c ia q u e tem o s d e b u sc ar co n tinu am ente,
p o rq u e no s o fe rec e, p o r um instante, aq u ele estad o d e
teheid ad e q u e se m anifesta na au sên c ia d o “ eu ” . N ão
é o sexo q u e co nstitu i um p ro b lem a, m as, sim , o d esejo
d e rec o b rar o estad o d e felicid ad e , o d esejo d e alc an ç ar
e co nserv ar o p raz er, sexu al o u d e o u tra esp éc ie.
O q u e em v erd ad e b u scam o s é essa intensa em o ­
ção d o au to -esq u e cim en to , essa id e n tific aç ão co m
alg o em q u e p o ssam o s esq u ecer-n o s co m p letam ente.

118
Po rq u e o “ eu ” é p e q u eno , in sig n ific an te , e fo n te d e
so frim ento s, d esejam o s, c o n sc ien te o u in c o n sc ie n te ­
m ente, esq u ec er-n o s, nas ag itaçõ es ind iv id u ais o u c o le ­
tiv as, no s p en sam ento s elev ad o s o u em alg u m a fo rm a
g ro sseira d e sensação .
Q u and o b u scam o s fu g ir d o “ eu ” , o s m eio s d e fu g a
são b em im p o rtantes e se to rnam , p o r su a v ez , p ara
nó s, p ro b lem as aflitiv o s. En q u an to não inv estig arm o s
e p erce b erm o s o s o b stácu lo s ao v iv er criad o r, q u e sig ni­
fic a estar liv re d o “ eu ” , não co m p reend erem o s o p ro ­
b le m a d o sexo .
U m d o s em p ecilho s ao v iv er criad o r é o m ed o ,
e a resp eitab ilid ad e c o n stitu i m an ifestaç ão d esse m ed o .
O s ind iv íd u o s resp eitáv eis, m o ralm en te ag rilho ad o s,
não c o n h ec em o in teg ral e v erd ad eiro sig nific ad o d a
v id a. Estão en cerrad o s d entro d o s m uro s d e sua v ir­
tu d e, nad a p o d em enxerg ar além d eles. Su a “ m o ra­
lid ad e d e v id raças co lo rid as” co m b ase em id eais e
c ren ças relig io sas, nad a tem em co m u m co m a re ali­
d ad e; e, q u and o atrás d ela se ab rig am , estão v iv end o
no m u nd o d as p ró p ria ilusõ es. A d esp eito d a m o ral
p esso alm ente im p o sta, e co m q u e se co m p raz em , as
p esso as resp eitáv eis ac h am -se tam b ém em co nfu são ,
so frim ento e co n flito .
O tem o r, resu ltad o d o no sso d esejo d e estar em
seg u rança, lev a-no s a aju star-no s, a im itar, a su b m e­
ter-no s a d o m ínio , im p ed ind o , p o r co n seg u in te, o v iv er
criad o r. V iv er c riad o ram en te é v iv er em lib erd ad e,
q u e sig n ific a ser sem m ed o . Só p o d e h av er estad o d e
c riaç ão se a m ente não se ac h a p resa nas red es d o
d esejo e d a satisfaç ão d o d esejo . Só ao o b serv arm o s o
c o ração e a m ente co m aten ç ão sensív el, p o d em o s d es­
c o b rir o s m o v im ento s o c u lto s d o d esejo . Q u anto m ais

119
atencio so s e afetu o so s so m o s, tan to m eno s o d esejo
d o m ina a m ente. Só q u and o não há am o r, a sensação
se to rn a u m p ro b le m a o b sessiv o .
Para co m p reend erm o s esse p ro b lem a d a sensação ,
tem o s d e no s ap ro xim ar d ele, não d e d eterm inad a
d ireção , m as d e to d o s o s lad o s — o ed u c ativ o , o re li­
g io so , o so cial e o m o ral. A s sensaçõ es se to rnaram
p ara nó s tão sig n ificativ as p o r en c arec erm o s em d e m a­
sia o s v alo res d o s sentid o s.
Po r m eio d o s liv ro s, d o s anú ncio s, d o c in em a e
d e m u itas o u tras m aneiras, estam o s sem p re exaltand o
o s v ário s asp ec to s d a sensação . A s p o m p as relig io sas
e p o lític as, o teatro e o u tro s g ênero s d e d iv ersão , tud o
no s co nv id a a b u sc ar estim u lan tes em d iferen te s nív eis
d o no sso ser; e d eleitam o -n o s co m esse co nv ite. A o
m esm o tem p o q u e, d e to d o s o s m o d o s p o ssív eis, se
estim u la a sensu alid ad e, p re g a-se o id eal d a castid ad e.
Fo rm a-se, assim , u m a c o n trad iç ão d entro em nó s; e
— fato estranho — essa p ró p ria c o n trad iç ão é in c en -
tiv ante.
Só q u and o co m p reend em o s a b u sc a d e sensação ,
— u m a d as p rin cip ais ativ id ad es d a m en te — o p raz er,
o ex c itam en to e a v io lên c ia d eixam d e co n stitu ir u m a ‘
p reo cu p aç ão d o m inante em no ssas v id as. Po rq u e não
am am o s, o sexo , a b u sc a d e sensaç ão transfo rm a-se
nu m p ro b lem a ab so rv ente. H av end o am o r, há c asti­
d ad e; m as q u em se esforça p ara ser casto não o é. A
v irtu d e v em co m a lib erd ad e, co m a co m p reensão d o
que é.
N a ju v entu d e, tem o s fo rtes im p u lso s sexu ais e
em g eral p ro cu ram o s su b m eter esses d esejo s a c o n ­
tro le e d iscip lin a, p ensand o q u e, se não co nseg u irm o s
refreá-lo s, no s to rnarem o s irrep rim iv elm en te lasciv o s.

120
' A s relig iõ es o rg aniz ad as se p reo c u p am m u ito co m a
m o ralid ad e sexu al, m as d eixam -no s p e rp etrar a v io ­
lê n c ia e o assassínio , em no m e d o p atrio tism o , en tre­
g ar-no s à in v e ja e à cru eld ad e astu cio sa, e b u sc ar o
p o d er e o b o m êxito. Po r q u e se interessam tan to p o r
esse asp ec to esp ec ial d a m o ralid ad e e se ab stêm d e
c o m b ate r a exp lo ração , a g anânc ia, a g u erra? N ão
é p o rq u e as relig iõ es o rg aniz ad as, u m a v ez q u e faz em
p arte d o am b ie n te q u e criam o s, d ep en d em p ara sua
p ró p ria ex istên c ia d e no sso s tem o res e esp eranç as, d e
no ssa in v e ja e sep aratism o ? A ssim , no terren o reli­
g io so , co m o no u tro q u alq u er, está a m ente ap risio ­
nad a nas p ro jeç õ es d o s seus p ró p rio s d esejo s.
En q u an to não ho u v er co m p reensão p ro fu n d a d e
to d o o p ro cesso d o d esejo , a in stitu ição d o m atrim ô nio ,
tal co m o h o je existe, q u er no O rien te, q u er no O c i­
d ente, não p o d e so lu cio nar o p ro b lem a sexual. O
am o r não nasc e em v irtu d e d a assinatu ra d e um c o n ­
trato nem d e p en d e d e u m a p erm u taç ão d e p raz eres
o u d e m ú tu a seg u ran ça e co n fo rto . To d as essas co isas
p erte n ce m à m ente, e é p o r isso q u e o am o r o c u p a
lu g ar tão in sig n ific an te em no ssas v id as. O am o r não
é d a m en te, é d e to d o in d ep en d en te d o p ensam ento
co m seus cálcu lo s su tis, suas reaç õ es e seus d esejo s
d e au to p ro teç ão . H av en d o am o r, o sexo n u n ca é um
p ro b lem a; a falta d e am o r é q u e g era o p ro b lem a.
O s o b stácu lo s e as fu g as d a m ente co nstitu em
o p ro b lem a, e não o sexo o u o u tra q u alq u er q u estão
e sp e c ífic a; e, p o r isso , relev a so b rem o d o c o m p ree n­
d erm o s o p ro cesso d a m ente, suas atraç õ e s e rep ulsas,
suas reaç õ es à b e le z a e à fe ald ad e. D ev em o s o b ser­
v ar-no s, to rnar-no s cô nscio s d a m an eira co m o co nsid e­
ram o s as p esso as, co m o o lham o s p ara ho m ens e m u -

121
lheres. C u m p re p e rc e b e r q u e a fam ília se to rna um
c en tro d e sep aratism o e d e ativ id ad es anti-so ciais
q u and o no s serv e co m o m eio d e au to p erp etu aç ão e
co m o d efesa d e no ssa im p o rtânc ia p esso al. A fam ília
e a p ro p ried ad e, u m a v ez centraliz ad as em to rno d o
“ eu ” co m seus sem p re lim itan tes d esejo s e lu tas, se
transfo rm am em instru m ento s d o p o d er e d a d o m i­
nação , nu m a fo n te d e c o n flito en tre o ind iv íd u o e a
so c ied ad e.
A d ificu ld ad e d e to d as essas q u estõ es hu m anas
é q u e nó s m esm o s, p ais e ed u cad o res, estam o s exau s­
to s e d esesp erançad o s, in teiram e n te co nfu so s e sem
p az ; a v id a no s p esa em d em asia, e d esejam o s ser
co nfo rtad o s, d esejam o s ser am ad o s. In terio rm en te p o ­
b res e in su fic ientes, co m o p o d em o s d ar ao jo v em a
e d u c aç ão ad eq u ad a?
Eis p o r q u e o p ro b lem a p rin c ip al não é o d isc í­
p u lo , m as o ed u c ad o r; no sso co ração e no ssa m ente
p recisam p u rific ar-se, p ara serm o s cap az es d e ed u c ar
os jo v ens. Se o p ró p rio ed u c ad o r se ac h a co nfu so ,
fo ra d o cam inho reto , p erd id o no lab irin to d o s seus
p ró p rio s d esejo s, d e q u e m an eira p o d e transm itir sab e ­
d o ria o u aju d ar o s o u tro s a seg u ir o cam inho reto ?
N ó s não so m o s m áq u inas p ara serm o s co m p reend id o s e
aju stad o s p o r esp ec ialistas; so m o s o resu ltad o d e um a
lo ng a série d e in flu ên c ias e ac id en te s, e a c ad a um d e
nó s c o m p e te d esc o b rir e c o m p reend er p o r si m esm o a
co nfu são d a sua p ró p ria natu rez a.

122
C A P IT U L O V III

A R T E, BEL EZ A E C R IA Ç Ã O

Q u a se to d o s nó s estam o s sem p re p ro ­
cu rand o fu g ir d e nó s m esm o s e, co m o a arte o fe rec e
um m eio fác il e resp eitáv e l d e o faz erm o s, tem ela
p ap e l im p o rtante na v id a d e m u itas p esso as. N o d ese­
jo d e au to -esq u ecim en to , alg u ns se v o ltam p ara a arte,
o u tro s d ão p ara b e b e r, e o u tro s m ais se p õ em a seg uir
m isterio sas e fan tástic as d o u trinas relig io sas.
Q u and o , c o n sc ie n te o u in c o n sc ie n tem en te, u tili­
z am o s alg u m a co isa p ara fu g irm o s d e nó s p ró p rio s,
to m am o -no s d e p aixão p o r ela. D ep en d erm o s d e um a
p esso a, d e u m a p o esia o u d o q u e q u er q u e seja, co m o
m eio d e alív io d as no ssas p reo cu p aç õ es e ansied ad es,
em b o ra p o ssa m o m en taneam en te en riq u e cer-n o s, só
c ria m ais co n flito e m ais co n trad iç ão em no ssas v id as.
N ão p o d e h av er estad o criad o r o nd e há co nflito ,**-
e a ed u c aç ão c o rreta d ev e, p o r co n seg u in te, aju d ar o
ind iv íd u o a en fren tar seus p ro b lem as e a não g lo ri­
fic ar o s m eio s d e fu g a; d ev e aju d á-lo a co m p reend er
e a elim inar o c o n flito , p o rq u e só então p o d e m an i­
festar-se o estad o d e criação .

123
D iv o rciad a d a v id a, a arte p o u co sig n ifica. Estan ­
d o a arte sep arad a d o no sso v iv er d e c ad a d ia, exis­
tind o um v az io en tre no ssa v id a instin tiv a e no ssas
p ro d u çõ es na tela, no m árm o re, o u em p alav ras, a
arte se to rn a sim p les exp ressão d o d esejo su p erficial
d e fu g ir à realid ad e d o q u e é. É d ific ílim o elim inar
esse v az io , so b retu d o p ara o s q u e são talento so s e
tec n ic am en te p ro fic ie n te s; m as, só d ep o is d e elim i­
nad o , no ssa v id a se to rna integ rad a e a arte u m a
exp ressão integ ral d e nó s m esm o s.
1 A m e n te tem o p o d er d e c riar ilu sõ es; p ro cu rar
insp iração , sem c o m p ree nd er suas ten d ên cias, é p ro ­
v o car ilu sõ es. V em -no s a insp iraç ão q u and o a ela esta­
m o s ab erto s, e não q u and o a b u scam o s. T e n tar c o n se­
g u ir a insp iração m ed ian te q u alq u er esp éc ie d e estí­
m ulo lev a a ilu sõ es d e to d o g ênero .
A m eno s q u e estejam o s p e rfeitam e n te cô nscio s d o
sig n ificad o d a existên cia, a c ap ac id ad e e o talento d ão
realc e e im p o rtân c ia ao “ eu ” e às suas ânsias. Ten d em
a to m ar o ind iv íd u o eg o cê n trico e p ro p enso à sep a­
raç ão ; a faz ê-lo sen tir-se u m a en tid ad e d istinta, um
en te sup erio r, o q u e g era m u ito s m ales e cau sa lu tas e
so frim ento s in term ináv eis. O “ eu ” é u m feixe d e m u i­
tas entid ad es, c ad a u m a d elas o p o sta a to d as as o u tras.
É um cam p o d e b atalh a d e d esejo s co n trad itó rio s, um
centro d e lu ta co n stan te en tre o “ m eu ” e o “ n ão -m eu ” ;
e, enq u an to d erm o s im p o rtânc ia ao “ eu ” , ao “ m im ” , ao
“ m eu ” , hav erá c re sc e n te c o n flito d entro d e nó s m es­
m o s e no m u nd o .
O v erd ad eiro artista está ac im a d a v aid ad e e d as
am b içõ es d o “ eu ” . Se o ind iv íd u o p o ssui b rilh an te
c ap ac id ad e d e exp ressão , e ao m esm o tem p o está

124
enred ad o no s in teresses m u nd ano s, isso ten d e a to rn ar-
-lhe a v id a c h e ia d e co n trad iç õ es e d e lu tas. O lo u v o r
e a ad u lação , q u and o se lhes atrib u i m u ita im p o rtân c ia,
enc h em d e v ento o “ eg o ” e d estro em a rec ep tiv id ad e;
e o cu lto d o b o m êxito , em q u alq u er terren o , é ev id en ­
tem en te p reju d ic ial à in telig ên c ia.
To d a ten d ê n c ia o u talento q u e co nc o rra p ara o
iso lam ento , to d a esp éc ie d e au to -id e n tifíc aç ão , p o r
m ais estim u lante q u e seja, d esfig u ra a exp ressão d a
sen sib ilid ad e e p ro d uz o em b o tam en to . Em b o ta-se a
sen sib ilid ad e q u and o o talen to se to rna “ p esso al” ,
q u and o se atrib u i im p o rtân c ia ao “ eu ” e ao “ m eu ” —
EU p into , EU escrev o , EU inv ento . Só ao estarm o s
cô nscio s d e c ad a m o v im ento d e no sso s p ensam ento s e
sentim ento s em no ssas relaç õ es co m p esso as, co m co i-
- sas e co m a natu rez a, só então a m en te está ab e rta e
flexív el, não v inc u lad a a d esejo s e interesses d e au to -
p ro teç ão , só en tão há sensib ilid ad e p ara o fe io e p ara
o b elo , não p ertu rb ad a p elo “ eu ” .
A sensib ilid ad e ao b elo e ao feio não é efeito d e
ap eg o ; su rg e co m o am o r, q u and o não há m ais c o n fli­
to s g erad o s p elo “ eu ” . Se so m o s in terio rm en te p o b res,
d eleitam o -no s co m to d as as fo rm as d e o sten taç ão ex te­
rio r, co m a riq u ez a, co m o p o d er, co m o s b en s m ate­
riais. Estan d o v az io s no sso s c o raçõ es, co lec io nam o s
co isas. Se tem o s recu rso s, ro d eam o -no s d e o b je to s q u e
co nsid eram o s b elo s, e p o rq u e a eles lig am o s d esm e­
d id a im p o rtânc ia, so m o s resp o nsáv eis p o r m u ito s so fri­
m ento s e d estru içõ es.
O esp írito d e aq u isição não sig n ific a am o r ao b e lo ;
resu lta d o d esejo d e seg u ranç a, e estar-se em seg u ­
ranç a é ser insensív el. O d esejo d e estar em seg u rança

125
g era tem o r; p õ e em fu n c io nam en to um p ro cesso d e
iso lam ento q u e co n stró i m u ralhas d e resistên c ia em
to rno d e nó s, m u ralhas q u e im p ed em to d a sensib ili­
d ad e. Po r m ais b elo q u e seja, um o b je to d ep ressa
p erd e a su a atraç ão so b re nó s; ac o stu m am o -no s a ele,
e o q u e era u m d eleite se to rna u m a co isa v az ia e
m o nó to na. A b e le z a co n tin u a a existir nele, m as já
não estam o s ab erto s p ara ela, ab so rv id a q u e fo i na
m o no to n ia d a no ssa ex istên c ia co tid iana.
V isto q u e no sso s c o raçõ es estão m irrad o s e já no s
esq u ec em o s d e co m o ser b o nd o so s, co m o c o ntem p lar
as estrelas, as árv o res, o s reflexo s n a ág u a, n ec essita­
m o s d o estím u lo d o s q u ad ro s e d as jó ias, d o s liv ro s e
d o s d iv ertim ento s co nstan tes. A nd am o s sem p re em
b u sca d e no v as ex c itaç õ es, no v as sensaç õ es; ansiam o s
p o r u m a v aried ad e c ad a v ez m aio r d e sensaçõ es. É
essa ânsia e su a satisfaç ão q u e to rnam a m ente e o
co ração cansad o s e insensív eis. En q u an to estam o s em
b u sc a d e sensação , as co isas d eno m inad as b elas e feias
têm ap enas um sentid o su p erficial. Só h á aleg ria p e re ­
ne ao serm o s cap az es d e ap reciar to d as as co isas sem ­
p re d e m aneira no v a — e isso não é p o ssív el enq u anto
estiv erm o s ag rilho ad o s p elo s no sso s d esejo s. A ânsia
d e sensação e satisfaç ão im p ed e ex p erim entem o s aq u i­
lo q u e é sem p re no v o . Po d em -se co m p rar sensaçõ es,
m as não se p o d e co m p rar o am o r e a b elez a.
Q u and o estiv erm o s cô nscio s d o v az io d a no ssa
m en te e c o raç ão e não fu g irm o s d esse v az io p ara q u al­
q u er g ênero d e estím u lo o u sensação , q u and o estiv er­
m o s c o m p le tam en te ab erto s, e b e m sensív eis, só então
hav erá c riação , só en tão enco n trarem o s a aleg ria c ria­
d o ra. O cu ltiv o d o exterio r, sem co m p reensão d o

126
interio r, tem d e fo rm ar, in ev itav elm en te, aq u eles v alo ­
res q u e lev am o s ho m ens à d estru ição e ao so frim ento .
A p rend er u m a té c n ic a p o d erá p ro p o rcio nar-no s
um em p reg o , m as não no s faz criad o res, ao p asso q u e,
se h á aleg ria, se há o fo g o criad o r, isso en c o n trará u m a
fo rm a d e exp ressar-se e não tem o s nec essid ad e d e
estu d ar nenhu m m éto d o d e exp ressão . Q u and o d ev e­
ras d esejam o s escrev er um p o em a, escrev em o -lo , e, se
p o ssuím o s a resp ec tiv a téc n ic a, tan to m elh o r; m as, p o r
q u e d ar im p o rtân c ia àq u ilo q u e é ap enas um m eio d e
co m u nicaç ão , se nad a tem o s p ara d iz er? Ex istin d o
am o r em no sso s co raçõ es, não p ro cu ram o s u m a fo rm a
d e alinh ar p alav ras.
O s g rand es artistas e o s g rand es escrito res p o d em
ser criad o res, m as nó s não so m o s; so m o s m ero s esp e c ­
tad o res. Le m o s eno rm es q u an tid ad es d e liv ro s, o u v i­
m o s m ú sica ex c ele n te, co n tem p lam o s o b ras d e arte,
m as nu nc a exp erim entam o s d iretam en te o su b lim e;
no ssa ex p eriên c ia d e p en d e sem p re d e um p o em a, d e
um q u ad ro , d a p erso nalid ad e d e um santo . Para p o ­
d erm o s c an tar, cu m p re te r u m a c an ção em no sso s
co raç õ es; m as co m o p erd em o s a c an ção , seg u im o s o
can to r. Sem um in term ed iário , sentim o -no s p erd id o s;
p o rém , devemos estar p erd id o s p ara p o d er d esco b rir
alg u m a co isa. D e sc o b rir é c o m eç ar a criar, e sem ação
criad o ra, não im p o rta o q u e faç am o s, n u nc a hav erá
p az nem fe lic id ad e p ara o ho m em .
Su p o m o s q u e p o d erem o s v iv er feliz es, criad o ra-
m ente, ap rend end o um m éto d o , u m a té c n ic a, um esti­
lo ; m as a fe lic id ad e c riad o ra só p o d e v ir co m a riq u ez a
interio r, n u n ca p o d e ser alc an ç ad a p o r m eio d e sis­
tem a alg u m . O ap erfeiç o am en to p esso al, q u e é o u tra

227
m an eira d e g arantir a seg u rança d o “ eu ” e d o “ m eu ” ,
não é ativ id ad e c riad o ra e nem sig n ific a am o r à b e le ­
za. Só existe c riaç ão q u and o há v ig ilân cia c o nstante
d as ten d ên c ias d a m ente e d o s o b stácu lo s q u e ela crio u
p ara si p ró p ria.
A lib erd ad e d e c riar su rg e co m o au to co nh eci-
m ento , m as o au to co nh ecim en to não é u m d o m . Po d e-
-se ser criad o r sem p o ssu ir nenh u m talen to esp ec ial.
< A c riaç ão é um “ estad o d e se r” d o q u al estão au sentes
o s co n flito s e as afliç õ es d o “ eu ” , estad o em q u e a
m en te não se d eixa p re n d er p elas ex ig ênc ias e lu tas
d o d esejo .
Ser criad o r não sig n ific a ap enas p ro d u z ir p o em as
o u estátu as o u filh o s; é ac h ar-se n aq u ele estad o em
q u e a v erd ad e p o d e m an ifestar-se. Su rg e a v erd ad e
co m a im o b iliz aç ão to tal d o p ensam ento , q u e só p o d e
cessar estand o o “ eu ” au sente, q u and o a m en te d eixa
d e criar, isto é, q u and o já não se em p en ha na p e rse­
g u ição d o s seus p ró p rio s alv o s. A chand o -se a m en te
d e to d o tran q ü ila — sem te r sid o fo rç ad a o u e x e rc i­
tad a p ara a tran q ü ilid ad e — se está em silêncio p o r­
q u e o “ eu ” se to rno u in ativ o , então , h á criação .
O am o r à b ele z a p o d e exp ressar-se nu m a c an ção ,
num so rriso , o u no silêncio , m as, em g eral, não tem o s
in c lin ação p ara o silêncio . N ão tem o s tem p o p ara
o b serv ar o s p ássaro s, as nuv ens em m o v im ento , p o r­
q u e and am o s m u ito o cu p ad o s co m a p erseg u ição d o s
no sso s o b jetiv o s e co m no sso s p raz eres. Se não existe
b e le z a em no sso s c o raçõ es, co m o p o d em o s aju d ar os
jo v ens a serem v ig ilantes e sensív eis? Pro cu ram o s ser
sensív eis à b e le z a e ev itar o fe io ; m as ev itar o feio ,
p ro d uz insen sib ilid ad e. Se d esejam o s d esenv o lv er a

128
sensib ilid ad e d o s jo v ens, d ev em o s nó s m esm o s ser sen ­
sív eis ao b e lo e ao feio , e ap ro v eitar to d as as o p o rtu ­
nid ad es d e d esp ertar neles a aleg ria q u e se enc o n tra
no v er não ap enas a b e le z a c riad a p elo ho m em , m as
tam b ém a b ele z a d a natu rez a.

129

Você também pode gostar