Você está na página 1de 130

Leandro O liveira •

Falando de música
O it o lições sobre m ú sica clássica
A m ú sica eru d it a é u m a form a elevada
de cu lt u r a. O s com p osit ores da t rad ição
clássica, todos m or t os, form am u m cân on e
im u t ável, que n ão se m ist u r a ao m ero
en t ret en im en t o da cu lt u r a pop. Gu ar d iõ es
de valores u n iver sais e da t r an scen d ên cia
art íst ica, os m aest ros e as orqu est ras
im p õ em u m cód igo rígid o de con d u t a n as
salas de con cer t o, cu jo d escon h ecim en t o
revela ign orân cia e vu lgarid ad e.
Agora esq u eça o parágrafo acim a.
Est e livr o desfaz u m a u m os p recon ceit os
escon d id os por t rás dessa visão esq u em át ica
e elit ist a da m ú sica clássica.
A m ú sica que o au t or apresen t a aqu i
faz part e de u m a t rad ição viva , abert a à
rein ven ção do passad o, aos com p osit ores
joven s e ao fu t u ro. As p eças can ón icas
são tratadas ao lado de clássicos do pop —
Met allica e Bob D yla n , n est e livr o , p od em
ser t ão ou m ais t ran scen d en t es que Fr an z
Lisz t . Tu d o d epen d e do con t ext o.
Aliás, o p róp rio t er m o "m ú sica e r u d it a "
é solen em en t e ign orado: o aut or o rejeit a
por con sid erá-lo p er n óst ico e red u n d an t e.
Exp er ien t e crít ico m u sical e frequen t ador
de salas de con cert o — Lean d ro O liveir a
é m aest ro de form ação e desde 2008 dá
palestras regulares n a Sala São Paulo sobre
a program ação corren t e —, o autor n os
con d u z com ext rem a clareza e gen erosidade
por u m u n iverso fascin an t e, ain da que por
vezes povoado de excên t ricos e pon tuado
pela arrogân cia dos "in iciad os".
Lean dro O liveira

Falando de m úsica
O it o lições sobre
m úsica clássica

to d avia
A Beatriz, que espero um dia se divirta com este livro

A m eus alunos, que são a sua razão de ser

À m em ória de Cesarina Riso, que m efez entender


coisas m ais valiosas que a m úsica
In t r o d u çã o 9

1. Afin a l, o qu e é a m ú sica clássica? 11


2. "Fr a gm e n t o s d o d iscu r so m u s i c a l " 28
3. Rehearsing, re-hearing: O u vi n d o a Nona sinfonia
d e Be e t h o ve n p ela ce n t é sim a ve z ... 37
4. O o u vin t e elegan t e: So b r e a et iq u et a das
salas d e co n ce r t o 46
5. O clá ssico co m o co n t r a cu lt u r a e a vid a en t r e
am igos qu e a m a m p op 6 0
6. O Silê n c io , c o m S m a iú scu lo 76
7. O m ín im o qu e vo c ê p r e cisa o u vir p ara o u vir
m ú sica clá ssica ... 98
8. Bi s , "t r i s " e o u t r o s p e n d u r ica lh o s 117
In t rodução

Fu i ap r esen t ad o à m ú sica clássica p ela d isco t eca d e casa, e a


p r im e ir a vez qu e v i u m co n cer t o sin fón ico ao vivo foi c o m m e u
p a i, n o Th e a t r o M u n ic ip a l d o Rio d e Ja n e ir o , q u an d o e u t in h a
p ou co m a is d e d ez an os. O m aest r o Alc e o Bo c c h in o d ir igia a
O r q u e s t r a Sin fó n ica Br a sile ir a e m d ois co n ce r t o s p ar a p ian o
c o m N e l s o n Fr e ir e — u m d os co n ce r t o s d e M o z a r t e o c o n -
ce r t o d e Gr i e g . A p r i m e i r a p ar t e d o p r o gr a m a ( e xt e n so , p or-
t an t o) foi c o m obras p ara p ian o solo d e Ch o p i n .
An t e s ain d a da ch egad a d a o r q u est r a , n o m o m e n t o e m qu e
N e ls o n agr ad eceu ao p ú b lico e, sen t ad o ao p ia n o , in ic io u a se-
leção d e cin co est u d os d o co m p o sit o r p o lo n ê s, e u sou b e qu e a
m ú sica faria p ar t e d efin it iva d a m in h a vid a . E r a u m est u d an t e
c o m p ar cos r e cu r so s financeiros e t é c n ic o s , e u m a fo r m ação
m u s i c a l a in d a t it u b e a n t e , m a s t u d o q u e p u d e p e n sa r d esd e
en t ão foi e m m e t o r n a r u m p r o fissio n al. M i n h a p r im e ir a ap re-
se n t a çã o p ú b lica a co n t e ce u algu n s an os d ep o is, n o a m b ie n t e
d a facu ld ad e d e m ú sica da Un ive r sid a d e Fe d e r a l d o Ri o d e Ja-
n e ir o ( U F RJ) , e d esd e en t ão t ive o p r ivilé gio de co n vive r c o m
algu n s dos gran d es art ist as d a m ú sica clássica de n osso t em p o .
E m 20 0 8 , c o m o p r o je t o Fa la n d o d e M ú s i c a , p r o m o vid o
p ela O r q u e st r a Sin fó n ica d o Est a d o d e Sã o Pa u lo , e n co n t r e i a
op ort u n id ad e de d ivid ir c o m as pessoas m in h a p aixão . O su m o
d e t o d o s esses an o s d e t r ab alh o est á n e st e livr o . Ap r o xi m e i -
-m e d a e d it o r a To d a via a in d a c o m u m a id e ia m u it o ger al d o
qu e m e p ar ecia ser u m a d em an d a e vid e n t e d o p ú b lico e, t a m -
b é m , d o m ercad o ed it or ial: u m livr o sobre m ú sica clássica para

9
leigos. P e r ce b i im e d ia t a m e n t e q u e o esco p o d a ob r a d e ve r ia
ser gen er o so , m e sm o qu e jam ais b arat easse algu m as q u e st õ e s
co m p le xa s. Te n t e i ser p r a gm á t ico m as in sp ir a d o r , s e m d e ixa r
co m isso de ser in for m at ivo. O desafio era t r azer co n t e ú d o ú t il
t an t o ao m e lô m a n o m é d io qu an t o ao r e cé m - ch e ga d o , t an t o ao
cu r io so q u an t o ao m ú s ic o p r o fissio n a l. Ap ó s algu n s an os d e
t r ab alh o , fico feliz d e t er en co n t r ad o o form at o e o co n t e ú d o
qu e ap r esen t o a q u i.
Mu it a s p essoas p a r t icip a r a m d a cr ia çã o d est e livr o . D e vo
a elas a gr a d e cim e n t o s, d escu lp as e salam aleq u es. Na d a se r ia
p o ssíve l s e m a aju d a ob jet iva d e M a r is a P o r t o , In a ld a e O r e s -
t es Go n ç a lve s , Jan os Ko ve si e Ce cília Ra ys, Ar o n e Re gin a D i a -
m e n t , a fam ília Maffei, n om ead os aq u i p or r ep r esen t ar em t od a
exp er iên cia e in t eligên cia de m e u s m u it o s alu n o s, pessoas se m
as q u ais est e livr o se r ia im p o ssíve l, t an t o q u an t o d e sn e ce ssá -
r io . N ã o p o sso d e ixa r d e m e n c i o n a r Fa b ia n a G u g l i , m ã e d a
n ossa p eq u en a Be a t r iz , qu e se m a n t e ve a h e r o ín a de se m p r e ,
cu id a n d o d a co isa m a is p r e cio sa q u e t e n h o e, a s s i m , p e r m i -
t in d o a t r a n q u ilid a d e n e ce ssá r ia p ar a a p r o d u çã o d e u m p r o -
jet o d essa n a t u r e z a . Se m m e e xi m i r d a r esp on sab ilid ad e p elas
even t u ais falh as qu e o le it o r p ossa e n co n t r a r , a gr a d e ço à q u e -
les que acom p an h ar am a red ação dos cap ít u lo s, co m su ge st õ e s,
e st ím u lo s e m u it a s ap r op r iad as c o r r e ç õ e s : a t r a vé s d o am igo
Flá vio M o u r a , t od a a fan t ást ica eq u ip e da ed it o r a To d a via .

10
I.
Afin al, o que é a m úsica clássica?

En t r e os in ú m e r o s e st ilo s m u s ic a is d e n o sso t e m p o , n ã o h á
m e io s d e sit u a r a m ú sica clássica — p o r q u alq u er m e d id a q u e
se esco lh a — co m o o u t r a co isa se n ã o u m gé n e r o co n t r a cu lt u -
r a l. Seja p or su a p r e se n ça e xígu a n os ve ícu lo s de co m u n ica çã o
d e m a ssa , p ela p ar cela d e p ú b lico r e la t iva m e n t e p eq u en a q u e
agrega, p elo m o n t a n t e de d in h e ir o ir r elevan t e qu e faz cir cu la r
e, m a is qu e t u d o , p o r su a qu ase n e n h u m a in flu ên cia e n t r e for-
m ad o r es de o p in iã o e p od er osos e m ge r a l, o u ain d a p o r q u al-
q u e r o u t r o p a r â m e t r o q u e se q u e ir a u sa r , a m ú sica clássica é
u m a at ivid ad e qu ase e so t é r ica .
Si m , pois t al com o algu m as seit as d escrit as e m livr os de D a n
Br o w n , ela con t a co m u m p ú b lico fiel, m ais ou m en o s d ed icad o
às su as p r óp r ias r efer ên cias, exigen t e qu an t o a p rot ocolos e r e-
gras, c o m có d igo p r ó p r io de co m p o r t am en t o , u su ár io d e espa-
ços especializad os e jargão esp ecífico. O u seja: apesar de n ão ser,
com o de fato n ão é, u m a socied ad e secr et a, ela cer t am en t e co m -
p ar t ilh a co m aqu ela u m a sér ie n ão p eq u en a de car act er íst icas.
Alg u n s t o m a m a m ú sica clá ssica , t alvez p o r isso , p or u m a
m a n ife st a çã o c u lt u r a l e lit ist a . M a s t od os q u e e m a lgu m m o -
m e n t o d a vid a t ive r a m o p o r t u n id ad e d e ir a u m a sala de c o n -
ce r t o co n st a t a r a m q u e n ã o h á n ad a d e esn o b e o u ch iq u e o u
m ís t ic o a li: q u a n d o n ã o são e ve n t o s gr a t u it o s, os in gr e sso s

II
co st u m a m ser t ão o u m a is b arat os qu e os de cin e m a s; seu p ú -
b lico ger alm en t e in c lu i p essoas d e t od as as id ad es e classes so-
cia is; e o ob jet ivo da r e u n iã o , d iscr e t o o u d eclar ad o, é ap en as
o u vir m ú sica — b oa e r u i m — , n ad a m a is.
M a s , e n t ã o , vo lt am o s à p er gu n t a t ão co m p le xa q u an t o an -
t iga: afin al, o que é a m ú sica clássica? An t e s de t en t ar r esp o n d ê-
-la, con vid o à exp er iên cia: eleger u m fóru m qu alqu er, seja ele de
d iscu ssã o de m ú sica , am igos o u de an t en ad os e m ger al, e per-
gu n t ar à q u eim a-r ou p a: " O qu e é m ú sica clássica?". An t e c ip o
t an t as respost as qu an t o pessoas a resp on d er. O s que p r ez a m as
ap arên cias — com o d izia O sca r W i l d e , som en t e as pessoas su -
p erficiais não ju lgam pelas ap arên cias — vão d iz er , co m algu m a
co n vicção : " E a m ú sica do passado", o u " E a m ú sica que se t oca
co m or q u est r a", e ain d a, m ais cu r io so , " E a m ú sica u n iver sal".
N ã o p r e ciso m e ap rofu n d ar e m t écn icas socr át icas p ara d is-
c u t ir t a is r esp o st a s. Algu m a s e s q u e c e m , é cla r o , qu e h á m ú -
sica clá ssica feit a p o r gen t e vivís s im a , p o r e xe m p lo o a u t o r
d est e t e xt o e o u t r o s m a is c é le b r e s , o u q u e h á m ú s ic a p o p u -
lar feit a p or "m o r t o s da silva ", co m o Co le Po r t er , Jacq u es Br e l
e Ra u l Se ixa s. O u t r a s in c o r r e m e m u m e r r o n ã o i n c o m u m , o
d e c o n fu n d ir in s t r u m e n t o s c o m g é n e r o — víc io d e m u it o s
o b ser vad o r es da m ú sica clá ssica , m as t a m p o u co r ar o e m o u -
t ras p aragen s, com o d e m o n st r a m os "p u r is t a s " das d écad as de
1960 e 1970, qu e at acar am Bo b D yl a n e os n ossos t r o p icalist as
p o r u sa r e m gu it ar r as elét r icas e m seu s ar r an jo s.
D e fat o, h á m ú sica clássica e scr it a p ara or q u est r as de d iver -
sas d im e n s õ e s , a ssim co m o p ar a vio lã o (os Prelúdios d e Villa -
- Lo b o s ) , p a r a vo z , p a lm a s e o u t r o s e le m e n t o s d e p e r c u s s ã o
co r p o r a l (co m o No Plaee Like, d e Ke r r y An d r e w ) . Ma s m e sm o
o cr it é r io d o s o m "a c ú s t i c o ", o u se ja , s e m a m p lifica d o r e s e
m icr o fo n e s, é m e r a im p o siçã o lo gíst ica , t en d o d eixad o de ser
n e ce ssid a d e p a r a o clá ssico a n t e s a in d a d a in s e r ç ã o d os r e -
cu r so s e le t r o m a gn é t ico s n a cu lt u r a p op . Já n a d éca d a d e 1920,

12
in s t r u m e n t o s c o m o o t e r e m i m , o u o "o n d a s m a r t e n o t " e a l-
gu n s o u t r o s, fo r a m in ve n t a d o s e p a ssa r a m a se r e xp lo r a d o s
p or co m p o sit o r es de van gu ar d a, in q u iet an d o as p lat eias d esd e
aqu ela é p o ca , c o m seu s form at os est r an h os e son or id ad es e xó -
t icas. H o je , n ã o são in c o m u n s p e ça s clássicas c o m e p ara gu i-
t ar r as elét r icas {Electric Counterpoint, d e St eve Re i c h , Miserere,
d e Ar vo Pãrt , as sin fon ias i , 2 e 3 de Alfr e d Sch n it t k e , o u o Con-
certo para violoncelo rfii, d e Kr z ys z t o f P e n d e r e ck i) , o u m e sm o
p a r a co m p u t a d o r e s p o r t á t e is e so ft war es e sp e cífico s {Mass
Transm ission, d e M a s o n Ba t e s) .
O q u e é im p o r t a n t e n o t a r , e t alvez va lh a a r e ssa lva , é q u e
a ssim co m o a or q u est r a sin fón ica e seu s in st r u m e n t o s n ão são
co n d içã o n e ce ssá r ia p ara q u e a m ú sica d e Be e t h o ve n seja ch a-
m a d a d e clá ssica , t a m p o u co a p r e s e n ç a d a o r q u e st r a afere o
selo d e "c lá s s ic o " àq u ilo q u e se e xe cu t a . E sab id a e celeb r ad a
a gr a va çã o d e 1999 da b an d a d e h eavy m e t a l M e t a llic a c o m a
O r q u e s t r a Sin fó n ica de Sa n Fr a n cisco . O á lb u m foi ch am ad o
de S &M (n ão u m a ab r eviação d e "sá d ico e m asoq u ist a", m as de
Sym phony and Metallica). Em b o r a t raga algu n s ach ad os ext raor-
d in ár io s de in st r u m e n t a çã o , o n ovo ar r an jo p ara as ca n çõ e s cé -
leb r es d o gr u p o n ã o faz d as m ú sica s d o Álbum negro p e ça s d o
r e p e r t ó r io de co n cer t o — a m u d a n ça d o t im b r e , p or si só , n ão
é e le m e n t o su ficien t e p ara t an t o .
M a s já q u e falam os d e M e t a llic a , p r o p o n h o u m a q u e st ã o
in st iga n t e : a fin a l, And Justice for AU, o á lb u m o r igin a l, c o m
su as gu it ar r as e b at er ia e n é r gic a s , e se u vigo r m a d u r o , n ão é
u m clássico d o r o ck ? Ma is esp ecificam en t e, " O n e " é u m a ca n -
ção m o n u m e n t a l, d a alt u r a o u t alvez m a io r q u e q u alq u er u m a
d as Rapsódias húngaras d e Fr a n z Li s z t , p o r e xe m p lo — p e -
ças de in t er esse vir t u o síst ico , qu ase cir ce n se , e ob jet ivam en t e
p en sad as p ara im p r e ssio n a r m ais qu e elevar. As s i m , at é p or r e-
q u isit o s h u m a n íst ico s, p or qu e ch a m a r as obras p ian íst icas d o
co m p o sit o r h ú n ga r o d e "m ú s i c a c lá ssic a " q u an d o é n aq u ele

13
ou t r o r e p e r t ó r io q u e e n co n t r a m o s a e xp r e ssã o d o ve r d a d e ir o
d r a m a h u m a n o — a gu e r r a in e vit á ve l, a co r a ge m q u e n ã o t e-
m o s e, cla r o , a finitude?
Im a gin a r q u e a m ú sic a clá ssica se ja , p o r a s s im d iz e r , a r e -
ser va m o r a l d a p r o d u çã o m u s ic a l da h u m a n id a d e é o u t r o m a l-
- e n t e n d id o . Ta lve z o m a is c o m u m d e le s, q u a n d o se d is c u t e
u m a d efin ição para o gé n e r o . E o que faz algu n s ar gu m en t ar em
qu e ela é "u n ive r s a l". M u it o d aq u ilo qu e é m a t ér ia d e d iscu s-
são sobre a m ú sica clássica — a p ost u r a p ar t icu lar dos o u vin t es,
o t ip o de co n t r içã o d e algu n s d e seu s co m p o sit o r e s — d eve a
essa p r e m issa , qu e p ou co t e m de abran gen t e o u ob jet ivam en t e
d e scr it iva . Q u a n d o falam os d e ar t e e m ge r a l, lid a m o s c o m o
escop o d aq u ilo q u e é h u m a n o , e m t od a su a r ica var ied ad e. E
a ssim co m o h á m u it a m ú sica p op d e e xt r e m a d en sid ad e em o -
cio n a l o u m et afísica, h á m u it a m ú sica clássica d esp r et en sio sa,
p o u co in t eligen t e e, s i m , t o r p e. D e lib e r a d a m e n t e t o r p e.
"Le c k m i c h i m A r s c h " é u m a p e q u e n a ob r a d e W . A . M o -
z a r t , co m p o st a p r o va ve lm e n t e q u an d o o co m p o sit o r já h a via
se t r an sfer id o p ara Vi e n a , n o glor ioso an o d e 1782. Fe it o p r o -
va ve lm e n t e co m o p r esen t e de a n ive r sá r io p ar a algu n s am igo s,
su a e st r u t u r a r igor osa — u m câ n o n e a t r ê s, p o r t an t o e m r ep e-
t ição defasada de vo zes in d e p e n d e n t e s e igu a is, o qu e só p od e
soar b e m se co n t ar c o m u m a e n ge n h a r ia in t eligen t e n a co n s-
t r u çã o da p r im e ir a frase — esco n d e u m t e xt o m e n o s q u e m e -
d ío cr e , e cu ja t r ad u ção lit er al de seu p r im e ir o ve r so é "La m b a -
-m e n a b u n d a". H o je q u est ion a-se a au t o r ia d a m ú sica , m as e m
t e r m o s os m a is con st r an ged or es p ara o n o sso q u er id o W o lfie :
é p o ssíve l q u e as n ot as (a p ar t e sofist icad a da co m p o siçã o ) se-
ja m de W e n z e l T r n k a (1739-91), c o m a co lab o r ação de M o z a r t
lim it a n d o -se à b an alid ad e da le t r a .
D e q u alq u er m o d o , seja de q u e m for, "Le c k m ic h i m Ar s c h "
est á n o cat álogo das obras com p let as de Mo z a r t , co m a id en t ifi-
cação K. 231, e é, p or t an t o, u m a obra de m ú sica clássica. As s i m

14
c o m o é clá ssica a ca n t a t a "Sc h w e i g t s t ille , p la u d e r t n i c h t ",
o BWV 211 d e J. S. Ba ch . Co n h e c id a p elos m e lô m a n o s co m o a
"Ca n t a t a do café", foi e scr it a p elo co m p o sit o r n o au ge d e su a
m at u r id ad e. Ba c h já era àq u ela alt u r a o d ir et o r das at ivid ad es
m u sicais de Le ip z ig, e a can t at a é criad a para agradar u m am igo,
Go t t fr ie d Zi m m e r m a n n , d on o da Zi m m e r m a n n s c h e n Kaffee-
h au s — en t ã o , e p or m u it o t e m p o , a m ais frequ en t ad a cafet eria
d a cid ad e. Ap ó s su a co m p o siçã o , ao qu e p ar ece, a p eça foi ap re-
sen t ad a an u alm en t e (p or t an t o m ais qu e q u alq u er u m a d e su as
Paixões), e co n t a c o m t r ech o s ed ifican t es co m o est e:

Paizinho, não sejas tão m au.


Se eu não beber m eu café,
as m inhas curvas vão secar,
as m inhas pernas vão m urchar,
ninguém com igo irá casar.

M e s m o lid an d o c o m a m ú sica in st r u m e n t a l, o leit o r h á de ficar


p asm o c o m algu m as c o m p o s iç õ e s cu jas r efer ên cia s p o u co n o -
b r es são m ais o u m en o s velad as — m e sm o qu e even t u alm en t e
d e sco n h e cid a s p ar a n ó s , e r a m a b so lu t a m en t e r e c o n h e c íve is
p a r a os o u vin t e s à é p o c a d e su a c r ia ç ã o . H á algo a s s im e m
ob ras co m o as sin fon ias d e Gu s t a v Ma h le r . E m algu m as d elas,
o co m p o sit o r in ser e m ú sica r ú st ica, can t igas de r o d a, fan farras
m ilit a r e s e m ú sica s de ca fé, fazen d o d e su as p a r t it u r a s os m o -
saicos d e d ifer en t es gé n e r o s e d eco r o s q u e h oje co n h e ce m o s.
N a su a Prim eira sinfonia, o t e r c e ir o m o vi m e n t o {Krãfiig
bewegt, doch nicht zu schnell) é d e scr it o p o r u m co n t e m p o r â -
n eo e am igo d e M a h le r , Au gu st Be e r , co m o u m a ce n a "n o b ar
d a cid a d e ; ele t e m p o u co d e u m s c h e r z o — é m a is a d a n ça
[r ú st ica] e n t r e b o n s cam ar ad as [b ê b a d o s]". An t e s , ap r esen t a-
-se a fam osa p a r ó d ia d a m e lo d ia d e "Fr è r e Ja c q u e s " ( ca n çã o
q u e , n os p a íse s d e lín gu a a le m ã , e r a co n h e cid a à é p o ca co m o

i5
"Br u d e r M a r t i n ") , e m t o m m e n o r , q u e , se gu n d o o p r ó p r io
M a h l e r e m c a r t a a su a a m iga N a t a lie Ba u e r - Le c h n e r , é u m
m o vim e n t o :

[...] a ser execu t ad o d e m a n e ir a r u d e , t al co m o u m a b an d a


de m ú sic o s m u it o r u in s , co m o aq u eles q u e u su a lm e n t e se-
gu e m co r t ejo s fú n e b r e s; a in co n ve n iê n cia d a alegr ia e d a
b an alid ad e d est e m u n d o a p a r e ce m en t ã o n o s son s d e m ú -
sico s lo ca is, qu e in t e r r o m p e m o la m e n t o d o h e r ó i *

A d u b ied ad e é r e co r r e n t e e d elib er a d a ; e q u e fique cla r o , é a


cau sa da força m e sm o d a visão m a h ler ia n a e m o d e r n a d e u m a
sin fon ia. A ép o ca d e Ma h le r , essa p olifon ia co r r iq u e ir a , t íp ica
d a vid a r e a l, q u e faz c o n vive r e m e le m e n t o s b aixo s e a lt o s, é
m u it o m a is q u e u m p r o b lem a e st é t ico : é u m b e m co n h e cid o
d ile m a é t ico . E m 1909, p o r o ca siã o d e u m a e xe c u ç ã o d a Ter-
ceira sinfonia do com p osit or , Ro b er t H ir sch fe ld com en t ava que

os gr an d es sin fo n ist as s e n t e m e r e ve la m a gr a n d io sid a d e,


a for ça, a n o b r eza e a in t egr id ad e — n ão as ca r a ct e r íst ica s
n egat ivas — d e se u t e m p o . N o e n t a n t o , q u ã o fr ívo la , i n -
fa n t il e s e m for ça n o ssa é p o c a ap ar ece a t r a vé s d as sin fo -
n ias d e Ma h le r .**

O qu e q u er o d izer : n ão h á n ad a d e in t r in se ca m e n t e elevad o n a
m ú sica clá ssica , a ssim co m o n ão h á d e h aver n ad a de in t r in s e -
ca m e n t e b aixo n a m ú sica p op u lar . Exe m p l o s d e ca n çõ e s p u n -
ge n t e s, d e alt a d e n sid a d e e m o t iva , o u c o m an seio s m et a físi-
co s e e s p ir it u a is , fa cilm e n t e e n co n t r a d a s n o ca n cio n e ir o d e

* Con st an t in Flor os, Gustav Mahler: The Sym phonies. Port lan d : Am ad eu s
Press, 1993, p. 40. ** Jeremy Barham , The Cam bridge Com panlon to Mahler.
Cam bridge: Cam bridge Un iversit y Press, 2007, p. 294.

16
ar t ist as co m o Bo b D yl a n ( "M a n o f Co n s t a n t So r r o w ", "Sa d -
-eyed La d y o f t h e Lo w la n d s ", p ara elen car as p r efer id as), Le o -
n a r d C o h e n ( "Si s t e r s o f M e r c y " e "La s t Ye a r ' s M a n ", p ar a
ficar e m d u as), D o r iva l C a y m m i ( "Sa r ga ço m a r ", o u t od o o ál-
b u m Cançõespraieiras), Ca e t a n o Velo so e u m a o u o u t r a de G i l -
b er t o G i l ( "Fo r ça e s t r a n h a " e "Se e u q u ise r falar c o m D e u s ",
as m a is d id á t ica s) , são n o t ó r io s . O m e s m o o co r r e a in d a e m
p ar t e d o ca t á lo go d e gr u p o s co m o P i n k Fl o yd ( co m a p o u co
ó b via " W i s h Yo u W e r e H e r e ") e Se co s e Mo lh a d o s (a m ist e -
r io sa "P r e c e c ó s m ic a ") , en t r e m u it o s o u t r o s!
E m r e su m o : se o o u vin t e ach a q u e a m ú sica p o p u la r é r e-
se r va d e a n se io s "b a i xo s " o u vu lga r e s, é im p o r t a n t e d e ixa r
cla r o : e st á o u vin d o a m ú s ic a p o p u la r e r r a d a . E se a ch a q u e
t od a m ú sica clássica eleva, t alvez n ão est eja o u vin d o b e m . . .

M a s n ão p osso d e ixa r d e falar ap r o p r iad am en t e d e ce r t a id eia


e m ger al a ce it a d o "c lá s s ic o ", aq u ela q u e r e ve r b e r a u m c o n -
ceit o c o m u m às h u m an id ad es. Se r ia m "clá ssica s" as obras qu e
a t r a vessa m se u t e m p o , p e r sist e m p o r ge r a ç õ e s , ir m a n a m - se
e m e, ao m e sm o t e m p o , fo r m a m u m a t r a d içã o . As s i m , a m ú -
sica clássica se r ia aq u ela qu e d e ce r t a m a n e ir a "t o r n a - s e " clás-
sica , e t e r ia en t r ad o p ara t al p a n t eã o p o r su a cap acid ad e de so-
b r e vivê n cia , p or se u m é r it o r e co n h e cid o e m u m câ n o n e , p or
su as r e ve r b e r a çõ e s n a cu lt u r a e n o p assar d os an os.
N a d efesa d essa d efin içã o r est a ao m e n o s u m d ad o h ist ó -
r ico : o co n ce it o d e "c lá s s ic o " n a m ú sica su r ge exat am en t e d e
t al id e ia , p rop agad a en t r e algu n s co m p o sit o r es e cr ít ico s m u -
sicais a le m ã e s e m m ead os da d éca d a d e 1830. El e s t e n t a m d is-
t in gu ir u m p e r ío d o áu r eo da h ist ór ia da m ú sica , p e r ío d o q u e ,
segu n d o a r gu m e n t a m , t er ia o co r r id o en t r e Ba c h , qu e vive u de
1685 a 1750, e Be e t h o ve n , qu e m o r r e r a p o u co s an os an t es, e m
1827. Es t a é a "k la ssisch e M u s i k ", a m ú sica clássica qu e se r vi-
r ia d e p a r â m e t r o p ara t od as as ou t r as. Me n o s qu e u m p e r ío d o ,

17
é a m ú s i c a de u m p a n t e ã o d e n o t á v e i s , a f o r m a r u m a e s p é c i e
d e câ n o n e a ser r esp eit ad o p or cr iad o r es e p ú b lico .
E c la r o , seu s lim it e s t e m p o r a is d ila t a m -se s e ve r a m e n t e .
Afin a l, d e q u e ser ve u m c â n o n e se n ão p od e ser e xp a n d id o ?
E já a ge r a çã o d e M e n d e l s s o h n , Sc h u m a n n e t a n t o s o u t r o s
b u sca r a m e m u la r a gr an d eza d e seu s r e ce n t e s an t ecessor es e
d ist in gu ir - se p elo d iá lo go c o m os gigan t es d o p assad o. T e n -
t a va m a b r ir , a s s im , se u p r ó p r io c a m in h o p ar a a p o st e r id a d e ,
c o m cu r io so s olh os n o r e t r o viso r (a p r o p ó sit o , é e m p art e co n -
t r a isso qu e W a gn e r h a ve r ia de ad vogar u m a "a r t e do fu t u r o ") .
Par a a ssu m ir o clá ssico n esse se n t id o h u m a n ís t ic o , p r e ci-
sa r ía m o s n os e xe r cit a r e m algu m as p er gu n t as: q u an t o t e m p o
d eco r r id o afin al é n e ce ssá r io p ara u m a m ú sica gan h ar o st at u s
d e clá ssica ? Lo go n o an o da m o r t e d o co m p o sit o r , d ez an os
d e p o is, c e m ? M a s se "c l á s s i c o " é o co m p o sit o r e n ão a o b r a ,
qu an t as ob ras clássicas fazem de u m co m p o sit o r u m clá ssico ?
U m a ve z clássico se m p r e clássico — e t od as as ob ras d o c o m -
p osit or clássico sã o , p o r t an t o , clássicas? E a p er gu n t a co n t e m -
p o r â n e a q u e t od o d ir e t o r d e m a r k e t in g d a in d ú st r ia fon ogr á-
fica r esp on d e se m q u er er : é clássico p orq u e faz su cesso o u faz
su cesso p or q u e é clá ssico ?
D e q u alq u er m o d o , p ara n ó s, o ce r n e d a t ese n ão se ap lica.
At u a lm e n t e , o t e m p o d a m ú sic a clá ssica n ã o é d e t e r m in a d o
p elo r e p e r t ó r io d e n o sso s a n t e ce sso r e s. Q u a n d o falam os d e
m ú s ic a clá ssica t e m o s q u e lid a r c o m u m d ad o d a r e a lid a d e
in e sca p á ve l, o da co n vivê n cia c o m co m p o sit o r e s qu e são n os-
sos c o n t e m p o r â n e o s e, m u it o e m b o r a p o ssa m r e ivin d ic a r a
e t e r n id a d e , só o fa z e m co m o fazem os t o d o s n ó s , r ele s m o r -
t ais — o u seja, se m q u alq u er garan t ia. Su as obras só p o d em ser
avaliad as p elo "va lo r d e face" en q u an t o esp er am a valo r ização
o u d e sva lo r iz a çã o p ó st u m a . M a s , en q u an t o esp er a, a m ú sica
d o b r a sileir o Fe lip e La r a , d os b r it â n ico s T h o m a s Ad è s e An n a
C l yn e o u d a r u ssa Le r a Au e r b a c h ( e n q u a n t o e scr e vo , t o d o s

18
vivo s, at ivos e n ascid os e n t r e 1970 e 1980) é ch am ad a "clá ssica "
n os q u at r o can t os d o m u n d o , n ão só p elos cr ít ico s, m as t a m -
b é m p elo m e r ca d o , p o r p r ogr am ad or es d e co n ce r t o , m u sic ó -
logos e p elo p ú b lico e m ger al.

II

Afin a l, do q u e t r at am os exat am en t e q u an d o lid a m o s c o m t ais


d ist in çõ e s? E são elas r e a lm e n t e im p o r t a n t e s? M ú s ic a boa e
r u i m , n ão ser ia o su ficien t e? M a is d o q u e isso , falam os de clás-
sico p a r a lid a r c o m u m d ad o p r e c is o d a r e a lid a d e o u m e r a -
m e n t e p r o jet am o s n osso gost o p esso al, at é c o m ce r t o p e r n o s-
t icism o , r ever b er an d o as id io ssin cr asias dos cr ít icos cu lt u r a is?
H á u m p r o b le m a d a m e s m a o r d e m q u e t o d o s r e co n h e ce -
m o s. Le m b r o se m p r e d e m e u asso m b r o ju ve n il q u an d o p ela
p r im e ir a ve z d e sco b r i q u e a b aleia n ã o er a u m p e ixe , e q u e , à
p ar t e su a an at o m ia ad apt ad a à vid a aq u át ica, t rat ava-se d e u m
a n im a l m ais p r ó xim o dos elefan t es e de n ó s, h u m a n o s, d o qu e
e fe t iva m e n t e d e u m t u b a r ã o (co isa q u e t a lve z ap en as os e n -
saios "c i e n t í fi c o s " d e It a lo Ca l vi n o m e p e r m i t i a m im a gin a r
se m os t e cn icism o s da t a xo n o m ia b io ló gica ) . E u sou b e, e n t ã o ,
q u e b u scar e n t e n d e r a d ist in çã o e n t r e os d ois m o n st r o s aq u á-
t ico s e r a , e m algu m a in st â n cia , ú t il.
D e fat o, u m dos e xe r cício s m ais or d in ár ios qu e fazem os é o
d e est ab elecer lim it e s , p r o cu r a r car act er íst icas essen ciais q u e
p e r m it a m co m p r e e n d e r algo sob re a in t egr id ad e d e d e t e r m i-
n ad a coisa o u sit u ação — o u , ao m e n o s, a in t u ição d e dada sin -
gu lar id ad e. D e cer t o m o d o , t e n t a r d e fin ir "o q u e é a m ú sic a
clá ssica " é r e a liz a r o m e s m o e xe r cício : p r o cu r a r e n t e n d e r os
lim it e s , as car act er íst icas essen ciais d e d e t e r m in a d a co isa o u
sit u ação — e sab em o s, t a l co m o e n t r e a cach alot e e o t u b ar ão -
-b r a n co , q u e as ca r a ct e r íst ica s m u it a s ve z e s n ã o são r e co n h e -
cíve is p ela m e r a an álise das a p a r ê n cia s.

19
Par a p r o jet ar n o t e m p o , c o m a lgu m cr it é r io cla r o , a t r a d i-
ção da "m ú s ic a clá ssica " n as p r át icas co n h ecid as n o O c id e n t e
(n ão cu st a le m b r a r qu e e xist e a m ú sica clássica in d ia n a , a m ú -
sica clássica jap on esa e t c ) , é n e ce ssá r io r eflet ir sobre as b ases
t é cn ica s o n d e o gé n e r o est á assen t ad o . E só e n t ã o , n e ce ssa -
r ia m e n t e , gan h ar ia co r p o u m a d ist in çã o fu n d a m e n t a l: a co m -
p r e e n sã o d e qu e a t r ad ição da m ú sica clássica se fu n d am en t a
e m u m a t ecn ologia p r ó p r ia de r e gist r o , a e scr it a m u s ic a l.
A p r e m is s a d essa t ese é a se gu in t e : as t e cn o lo gia s d e co -
m u n ic a ç ã o n ã o são n e u t r a s , elas a lt e r a m a e s t r u t u r a d o d is-
c u r s o e a t u a m , d e m a n e ir a m a is o u m e n o s r a d ic a l, n as r e la -
çõ e s qu e o d in a m iz a m . Se m q u alq u er ju íz o d e valo r , a ssu m o
t r ês m od os d ist in t o s de r egist r o m u s ic a l: p elo o u vid o , n a par-
t it u r a ( m a n u s c r it a e im p r e ssa ) o u p o r m e io s m e c â n i c o , e lé -
t r ico o u e le t r ô n ico .
A t ese d e qu e os p r o ce d im e n t o s d e r egist r o au d it ivo — o u ,
t e c n ic a m e n t e , p or t ecn o lo gias d e c o m u n ic a ç ã o o r a l — d et er-
m i n a m as m a n ife st a çõ e s d e dada cu lt u r a é in au gu r ad a c o m os
est u d os d o h e le n ist a M i l m a n P a r r y, e d esen vo lve-se p ela a n -
t r o p o lo gia d e Jack Go o d y, Ed m u n d Ca r p e n t e r e Ru t h Fi n n e -
gan , b e m co m o n a le it u r a das t eses p la t ó n ica s p o r Er i c H a ve -
lo c k o u n a o b r a d o lin gu is t a e filósofo a m e r ic a n o W a l t e r J.
O n g (seu livr o Orality and Literacy a in d a é o m e lh o r gu ia i n -
t r o d u t ó r io sob re o a ssu n t o ) . P a r t in d o d esses est u d os lin gu ís-
t ico s e s o c io c u lt u r a is , a n a lo ga m e n t e , r e c o n h e c e m o s c o m o
"m ú s i c a fo lcló r ica " aq u ela r e p r o d u z id a a p a r t ir d a m e m o r iz a -
ção e da p e r fo r m a n ce . E a s s im , co m o q u alq u er m a n ife st a çã o
d e c u lt u r a o r a l, essa m ú s ic a d eve t e r u m a d in â m ica p r ó p r ia ,
e st r u t u r a r -se a p a r t ir d e e le m e n t o s d e se n t id o e p e r e n id a d e
ab so lu t am en t e sin gu la r e s.
U m e xe m p lo qu e ser ve d e p r o va e m p ír ica d a t ese — e qu e
p o d e se r r e p r o d u z id o p o r q u a lq u e r c u r io s o e n t r e os le it o -
r es d est e livr o — foi vivid o p or m i m , e p or isso in vo co -o e m

20
se m in á r io s e co n fer ên cias sob re o assu n t o , com o u m a e sp é cie
de e xp e r im e n t o qu e ch a m o d e "t elefo n e s e m fio exp a n d id o ".
Q u a n d o m e t r a n sfe r i p ar a Sã o P a u lo , vi n d o d o Ri o d e Ja-
n e ir o , a ssu m i u m a classe d e in iciação m u s ic a l p r iva d a . Er a m
a lu n o s d e q u a t r o a d ez an o s — e u c o m 25. Ap ó s d o m a r as
cr ia n ça s — e "d o m a r " é o ve r b o a p r o p r ia d o ... — fin alm en t e
co n segu i sen t á-las p ara o u vir u m a "ca n çã o b an al". A esco lh id a
h a via sid o " C a i , c a i, b a lã o " q u e , e u im a gin a va , t od os os m e u s
alu n o s r e co n h e ce r ia m . Pois b e m , a t r an q u ilid ad e r e sist iu at é
o t e r ce ir o ve r so , "a q u i n a m in h a m ã o " ( r e sist iu m u it o p o u co ,
p or t an t o). O s m e n in o s se en t r eo lh a r a m e co r r igir a m : ' "N a r u a
d o sab ão', p r ofessor ".
A ve r sã o q u e eles c o n h e c ia m er a d ifer en t e d a m i n h a . Per-
gu n t e i co m o h a via m en t r ad o e m con t at o c o m ela. Ap ó s o u vi-
d a n a ín t e gr a , p e r ce b i qu e a e st r u t u r a p r o só d ica se m a n t in h a
in t a ct a — ver so s d e q u at ro sílab as, n u m d u p lo iâ m b ico ( u m a
sílab a fraca segu id a d e u m a fort e) — e a "fr a se o lo gia " segu ia,
s e m q u alq u er alt er n ân cia de p u lsa çã o , u m co m p a sso b in ár io
clá ssico , c o m ên fase n o p r im e ir o t e m p o . N o en t an t o , t od as as
p alavras qu e c o m p u n h a m o ver so e r a m d ifer en t es!
N a d a m a is n a t u r a l, se le va r m o s e m co n t a as d ist ân cias e n -
t r e a ve r sã o qu e o u vi n a m in h a in fân cia e a qu e m e u s alu n os t i -
ve r a m a cesso , q u at r o cen t o s q u iló m e t r o s e vin t e an os d ep ois.
O in u sit a d o se r ia o co n t r á r io . D e fat o, t ais a d a p t a çõ e s a co n -
t e ce m e m m a io r o u m e n o r gr au c o m t od as as ca n çõ e s de r od a
t r ad icio n ais, o qu e é p r evist o p elos est u d os de oralid ad e acim a
cit ad os e ju st ifica qu e os e t n o m u sicó lo go s d e p r e e n d a m d aí as
car act er íst icas est ét icas e p sico d in â m ica s da m ú sica folclórica.
Q u e s t õ e s co m o as r ela çõ es de au t or ia ( q u e m fez " C a i , ca i, ba-
lã o ") , fidelidade e d e se m p e n h o (velo cid ad e, p r e cisã o r ít m ica ,
d ia p a sã o , n at u r alid ad e p ar a a b so r çã o de o r n a m e n t a çã o e e m -
b elezam en t os) d e ve m ser t rat ad as de for m a ab solu t am en t e sin -
gu lar n e sse u n ive r s o , e é a ssim p o r se t r at ar d e u m a m ú sica

21
viva , qu e se r e n o va a cad a a p r e se n t a çã o , ab ert a a a d a p t a çõ es e
à co m p le xid a d e d a p er fo r m a n ce e m at o.
São exem p lo s acabad os d essa t r ad ição da m ú sica fo lcló r ica,
n esse se n t id o t é c n ic o , as can t igas d e r o d a , as ca n çõ e s d e co -
m u n id a d e s a u t ó ct o n e s o u isolad as — co m o as d e in d íge n a s ,
escr avizad o s alfor r iad os, o u de shtetlekh e p ovoad os r u r a is do
Le s t e Eu r o p e u — , b e m co m o m u it o da m ú sica de r e cr e a çã o ,
can t o s d e t r ab alh o e b o r d õ e s d e ce n t r o s u r b a n o s. M e s m o o
b lu e s o r igin a l, a d e sp e it o de su a fort e in se r çã o p o st e r io r n o
m e r ca d o fo n o gr á fico , p od e se r e n t e n d id o co m o d e co r r e n t e
d ir et o d esse u n ive r so .

N ã o são in c o m u n s as avaliaçõ es er r ad as — d e m a sia d a m e n t e


er r ad as — q u e gr an d es in t e le ct u a is fazem q u an d o p r e c is a m
an alisar a p o ssib ilid ad e o u o im p a ct o de u m a n o vid ad e t e cn o -
ló gica . E m 1998, p o r e xe m p lo , o e co n o m ist a P a u l Kr u g m a n
co m e n t o u q u e "p o r vo lt a de 20 0 5, m a is o u m e n o s, ficará clar o
q u e o im p a c t o d a in t e r n e t n a e c o n o m ia n ã o se r á m a io r q u e
aq u ele d os ap ar elh o s d e fax". Im a gin e o le it o r : Kr u g m a n s u -
gere q u e o im p a ct o e c o n ó m ic o d a in t e r n e t se r ia ir r e le va n t e !
N ã o d e ixa d e ser ir ó n ic o q u e p o r vo lt a d e 20 0 5 ( m a is e xa t a -
m e n t e , e m 20 0 8 ) , a d esp eit o d o im p r e ssio n a n t e e r r o d e p r e vi-
sã o , Kr u g m a n t e n h a gan h ad o o N o b e l de Ec o n o m i a . . .
D o m e sm o m o d o , ou t r o n ot ável, san t o Isid o r o de Se vilh a —
au t or , e m su a Etym ologiae, do qu e r e co n h e ce m o s co m o o p r i-
m eir o esfor ço e n ciclo p é d ico da cu lt u r a o cid en t al —, va t icin o u
e m a lgu m m o m e n t o das p r im e ir a s d é ca d a s do sé cu lo VI I : Nisi
enim ab hom ine m em oria teneantur, sonipereunt, quia seribi non
possunt.* Tr a d u z in d o : " A n ão se r q u e se ja m le m b r a d o s p elos
h o m e n s , os son s p e r e c e m , p ois eles n ão p o d e m ser e scr it o s".

* Isidoro de Sevilh a, Etym ologiarum sive Originum . O rg. de W . M. Lindsay.


O xford : O xford Un iversit y Press, 1911, v. 3, cap. 15, p. 2.

22
Co m o ? Si m , o d ou t or da Igr eja su ge r iu qu e er a im p o ssíve l es-
cr ever m ú sica. A lu z da h ist ór ia, a in gen u id ad e d essa ou t r a p r e-
visã o t a m b é m é có m ica . M a s n os é ú t il p or d e m o n st r a r a ver -
d ad eir a r evo lu ção qu e a e scr it a r ea liz a , e n ão ap en as n a m en t e
d os in t e le ct u a is, m as n a cu lt u r a m u s ic a l co m o u m t od o.
Exp e r i m e n t o s d e n o t a çã o m u s ic a l e xis t ir a m d e for m a i n -
cip ie n t e d esd e a m a is r e m o t a an t igu id ad e. N o e n t a n t o , a p r o-
p ost a d e n o t ação co m o u m có d igo r e co n h e cíve l p o r ge r a çõ e s
é r e vo lu cio n á r ia e or igin a-se e m m ead o s d o sé cu lo I X. In ic ia l-
m e n t e d esen volvid o p or q u e st õ e s m e r a m e n t e a d m in ist r a t iva s,
n o a m b ie n t e d a Igr e ja ca t ó lica , su as p r im e ir a s n o t a ç õ e s , p o r
neum as — u m sist e m a d e p on t os e t r a ço s p o sicio n ad o s a cim a
d o t e xt o a lfa b é t ico — , d iz t an t o d a n o t a çã o a t u a l q u a n t o o
áb aco d iz d o sist e m a o p er acio n al da Ap p le .
A h ist ór ia d a grafia m u sica l é fascin an t e. H o je n os é p e r m i-
t id o t r açar u m a gen ealogia m ais o u m e n o s r e co n h e cíve l, d os
neum as à e scr it a a t u a l, c o m e xp e d ie n t e s e in o va çõ e s q u e , ao
lon go d a h ist ó r ia, p or in icia t iva de gr u p o s co m o d o Ar s N o va
o u in d ivíd u o s c o m o Gu i d o D ' Ar e z z o (os ve r d a d e ir o s T i m
Be r n e r s - Le e e La r r y Page d a m ú s ic a ) , r e vo lu c io n a r a m o a m -
b ie n t e in fo r m a c io n a l*
Q u e n a e xp e r iê n c ia o r a l as figuras d o co m p o sit o r , e d it o r ,
in t é r p r e t e , m u sicó lo go , cr ít ico e o u vin t e est ejam organ izad os
n a cad eia cr ia t iva d u a l in t é r p r e t e / o u vin t e ser ia p or si só ar gu -
m e n t o su ficie n t e p ar a e n t e n d e r a r e vo lu çã o e o im p a ct o d o
p en t agram a (ou p au t a), e, m ais ain d a, do p en t agram a im p r esso .
M a s t a l r e vo lu çã o , vist a d e p e r t o , co n t a c o m e st r u t u r a s ain d a
m ais co m p le xa s. Se r á ap en as a p ar t ir d a t r ad ição escr it a que se
c r i a m , t ais co m o as qu e co n h e ce m o s h o je , as q u e st õ e s d e fi-
d elid ad e (a m ú sica co m o ob ra cu jo m a p a , a p a r t it u r a , d eve ser

* T i m Bern ers-Lee é recon hecido como o in ven t or da in t ern et ; Larry Page


(ao lado de Sergey Br in ) é o criador do Google.

23
r esp eit ad o ), au t o r ia (id en t ificação c o m o cr ia d o r da o b r a ) , d is-
se m in a çã o (t ocar a m e sm a m ú sica e m d ifer en t es cid a d e s, e m
o u t r as er as e e m o u t r o s co n t e xt o s) , est iliz a çã o (for m as p a r t i-
cu lar es de n ot ar a p a r t it u r a ) , p r e se r va çã o o u in t er p r et ação (for-
m as de le r a p a r t it u r a e execu t á-las).
Ch a m a r essa gran d e p r o d u çã o d e "m ú s ic a clá ssica " é t an t o
r esp eit ar u m d ad o e st é t ico q u an t o ca r a ct e r iz a r p r e cisa m e n t e
u m a r ealid ad e o n t o ló gica . Afin a l, se e xist e algo qu e n o s p er-
m it e sit u a r n u m a m e s m a lin h a d e t r a d içã o as r a d ic a lm e n t e
d ist in t a s so n o r id ad es d e H ild e ga r d vo n Bin g e n (1098-1179) e
Jo h n Ca ge (1912-92), é exat am en t e a r elação q u e cad a u m a d e
su as obras t e m co m a t ecn ologia de r egist r o, a relação de co m o
am b os au t ores e st r u t u r a m su as m ú sica s p or e a p a r t ir d o t ext o
m u sica l e scr it o .

O fon ógrafo foi in ven t ad o n o fim d o sé cu lo x i x . O ap arelh o i n -


se r iu t ecn ologia e p r o ced im en t o s m e câ n ico s e elét r icos n a gra-
va çã o e r e p r o d u çã o d as on d as so n o r as. A t e cn o lo gia , q u e in i-
cia lm e n t e foi in ven t a d a co m o m e r o r egist r o d o s o m , acab ou
p or r eo r gan izar e a b r ir ou t r as var iáveis p ara a p r ó p r ia cr ia çã o
m u sica l. O m u sicó lo go a m e r ica n o M a r k Ka t z * n os ap on t a a l-
gu n s d esses n ovos asp ect os: t an gib ilid ad e ( "t e r " e co le cio n a r
m ú sica ) , p or t ab ilid ad e (levar a m ú sica do t eat r o p ara casa), i n -
visib ilid a d e (n ão fazer q u e st ã o d e ve r q u e m est á t o ca n d o ) , r e-
p e t içã o (o u vir a m e sm a p er fo r m a n ce d iver sas ve z e s, às ve z e s
p or h oras a fio), lim it ação de t em p o ( u m d isco n o in ício d a er a
do fon ogram a t in h a p ou co m ais d e t r ês m in u t o s, o que acab ou
cr ia n d o o for m at o p a d r ã o p ara o gé n e r o q u e t e m esse su p o r t e
co m o p on t o de p ar t id a) e m an ip u lação (qu e t al falar e m e d içã o
d e m e lh o r e s e xce r t o s, o u m ais m o d e r n a m e n t e n o D J?) . Essa s

* Mark Kat z, Capturing Sound: How Technology Has Changed Music. Berkeley:
Un iversit y of Califórnia Press, 2010, pp. 8-48.

24
q u e st õ e s são colocad as d ir e t a m e n t e p ela t ecn ologia e fu n d am
u m n ovo m o d o d e p r o d u çã o m u sica l. Q u a l Isid o r o d e Se vilh a ,
n ão p o d e r ía m o s seq u er im a gin a r algo sem elh an t e a isso an t es
d o fo n ó gr a fo ...
A t rad ição fon ográfica é a da m ú sica popu lar. U m a part e d ela
cu lm in a n o jazz (para en t en d er com o o jazz é in flu en ciad o p ela
t ecn ologia do fon ógrafo, su giro a leit u r a do m e sm o M a r k Ka t z ) ,
ou t r a r e visit a o r ico r e p e r t ó r io folclór ico e se su b d ivid e en t r e
as in ú m e r a s m an ifest açõ es d o n osso d ia a d ia — co m o o b lu es
m o d e r n o , o r o ck , a d it a w o r ld m u sic o u m e sm o o n osso sam b a.
A n ova t ecn ologia gera co n se q u ê n cia s b ast an t e evid en t es:

• Par a o p ú b lic o , a m ú sica ficou m a is a ce ssíve l e m a is


barat a; por ou t ro lad o, seu cu lt ivo t orn ou -se m ais passivo
e d escon t ext u alizad o;
• Para o in t é r p r e t e , e xist e a p ossib ilid ad e de t er acesso a
e xe cu t a n t e s de o u t r o s t em p o s o u esco las, e o ca r á t e r
p ed agógico da gravação é in con t est ável; p or ou t ro lad o, a
"cad eia p r o d u t iva" se t or n ou m ais com p lexa e agora, para
evolu ir p rofission alm en t e, o m ú sico deve lid ar co m t odo
u m aparato in d u st rial de com ercialização, co m est rat égias
próprias de m ercad o, m arket in g e produt os agregados que
ext rap olam e m m u it o o m er o con h ecim en t o m u sical;
• Para o com posit or, a t en d ên cia n at u ral é con íú n d ir-se cada
vez m ais co m o in t érp ret e da ob ra, vist o q u e, com o au t or,
fica cred en ciad o n at u ralm en t e com o voz cert ificad a; u m a
vez regist rad a, a m ú sica p erd u rará para sem p r e, ser vin d o
de m odelo para in t erpret ações post eriores, com o acon tece
co m os gran des álbu n s de Mile s Da vis ou João Gilb e r t o —
u m efeit o sim ila r qu e ocor r e t a m b é m co m as gr avaçõ es
de obras de Villa-Lo b o s ou St ravín ski a que t em os acesso,
d irigid as pelos p r óp r ios com p osit ores.

25
C o m a r e p r o d u çã o p o r m e io s m e c â n ic o s o u d igit a is, a e scr it a
m u sic a l se t o r n a n e ce ssa r ia m e n t e ob solet a? E clar o q u e n ã o .
M a s , d e cer t a m a n e ir a , t od a cr iação clássica d o p ó s-gu e r r a p r o-
b le m a t iz a o r e gist r o e s c r it o , a fo r m a m e s m a p o r on d e e la se
p r o c e s s a , o q u e p o d e r ia e xp lic a r a e m e r g ê n c i a d e t é c n ic a s
se r ia is, co m o as p r op ost as p or Ar n o l d Sch o e n b e r g (1874-1951)
e O livie r Me ssia e n (1908-92), o u ain d a as p ar t it u r as gráficas d e
Ge o r ge C r u m b (1929-) e M u r r a y Sch afer (1933-).
A p ar t ir das t rês form as d e regist ro — au d it ivo , gráfico e fo-
n ográfico — t orn a-se p ossível d et er m in ar os gén er o s exist en t es,
su as p r op r ied ad es esp ecíficas e co m p le xid a d e s ap ar en t es. Sa-
ben d o d isso, o m e lô m a n o pode exercit ar-se e t en t ar d ist in gu ir ,
d en t ro d e cada gén er o , as m ú sicas de m aior ou m en or d en sid ad e.
Afin a l, a m ú sica folclórica con t a c o m as can çõ es d e Ku a r u p e as
r iq u íssim as obras klezm er de raiz ju d aica, p or exem p lo. N a m ú -
sica clássica e n t r a m coisas d eliciosas e d ifer en t íssim as co m o as
valsas d a fam ília St r a u ss, as sin fon ias d e Sib e liu s, as su it es o u
can t at as de Ba ch , e Gruppen de St o ckh au sen . O gé n e r o p op u lar
guarda e m si D u k e Ellin gt o n , Rob ert o Ca r lo s, ABBA e Pin k Floyd .
Aí , e so m en t e aí, e n t r a a q u e st ã o d o gost o, q u e é d efin it iva -
m e n t e u m p r o b le m a m a is co m p le xo a ser p o n d er ad o a p a r t ir
d as e xp e ct a t iva s c u lt u r a is e a d isp o n ib ilid a d e p esso al d o o u -
vin t e ; p od e-se ju lgar cad a obra n ão só p elo seu valor in t r ín se co ,
m as t a m b é m — e p r in cip a lm e n t e — p ela su a p o siçã o p er an t e
t od a a t r ad ição n a q u al est á in se r id a . O q u e n ã o d á é im a gin a r
que u m gé n e r o p or si só seja su ficien t e p ara qu alificar q u alq u er
coisa: t e m m ú sica clássica r u i m , m ú sica folclórica boa, m ú sica
p op u lar e xce le n t e . E t a m b é m o in ve r so .
A aven t u ra da arte e m n osso t em p o é su b m ergir e em ergir e m
cada u m dos gén er os d isp on íveis e t irar dessa exp er iên cia aqu ilo
qu e d efin it ivam en t e t e m o p od er de t ran sform ar cad a u m . Esse
é o n osso p r ivilégio. Nesse p on t o, e som en t e n esse, é qu e t an t o
faz se o u vim o s alh os ou b u galh os, clássico o u r o ck, vest id os d e

26
fraque ou m aiô de p raia. Para o u vir m ú sica som os t od os m eio i n -
fan t is, e "p e i xe " passa a ser t u d o que est á n a águ a — b aleia, t u -
b ar ão , sereia o u t art aru ga; o im p or t an t e é b r in car e se m olh ar.

Post scriptum : t e m o s n o Br a s il u m h á b it o c u r io s o , q u e é ch a -
m a r a m ú sica clássica p o r "m ú s ic a e r u d it a ". E cu r io so p or vá-
r ios m o t ivo s, sen d o o m a is im p r e ssio n a n t e d eles o d e ser u m a
e sp é cie de jab ot icab a, a d ar apen as e m n osso solo. N e m sequ er
e m Po r t u ga l é a ssim . Música clásica, m usique classique, classi-
cal m usic e klassische m usik são os t e r m o s e m e sp a n h o l, fr an cês,
in glês e alem ão q u e d esign am o gé n e r o e m t od os os can t os do
m u n d o . A ver d ad e é q u e o p r im e ir o d o cu m e n t o d e q u e t e n h o
co n h e cim e n t o a u sar o t e r m o "m ú s ic a e r u d it a " é do sécu lo X X ,
e t rat a-se d e u m art igo escr it o p or M á r io de An d r a d e . Em b o r a
seu u so p r eser ve a boa in t en ção de d ist in gu ir o gé n e r o clássico
d o est ilo clá ssico ( u m a q u e st ã o esp ecífica de r elevân cia m u si-
co ló gica), ach o sin ce r a m e n t e u m a n o m e n cla t u r a ar t ificial — e
s i m , u m t an t o elit ist a. D e m in h a p a r t e , ab oli d elib er ad am en t e
o u so d o t e r m o d esd e o in ício de m in h a at ivid ad e d id át ica. Re -
co m e n d o o m e sm o a t od o leit o r .

Sugestões de leitura

Para aprofun dar o t em a dest e cap ít u lo, r ecom en d o o p equ en o li-


vr o de Ma r k Ka t z , Capturing Sound: How Technology Has Changed
Music ( Ber keley: U n ive r s it y o f Califór n ia Pr e ss, 2010); é u m de-
leit e para t od o aficion ad o e m m ú sica ou cu r ioso da h ist ór ia da
cu lt u r a . Alé m d ele, r eco m en d ar ia t u d o de W a lt e r J. O n g . Ca so
p r ecise escolh er , a m e lh o r sín t ese de su as t eses est á n o cit ad o
Orality and Literacy: The Technologizing of the W ord (Ab in gd o n :
Rou t led ge, 1982), que en co n t r o u h á algu n s an os u m a excelen t e
ed ição e m p o r t u gu ê s {Oralidade e cultura escrita. Tr a d . de En i d
Ab r e u Do b r án sky. São Pau lo: Pa p ir u s, 1998).

27
2.
"Fragm en t os do discurso m u sica l"

Maest ro

O t e r m o , e m it a lia n o , q u er d iz e r "m e st r e ". As s i m , é u sad o o r i-


gin alm en t e p ar a t od o t ip o de p er son alid ad e qu e alcan ce cer t o
n íve l de r e sp e it o e p r e st ígio e n t r e seu s p ar es: at o r es, p ia n is-
t a s, p in t o r e s, e scr it o r e s, jo r n alist as e at é r egen t es d e or q u es-
t r a (qu e e m it alian o é ch am ad o de direttore d'orchestra). A r igo r ,
n e m t od o r egen t e d e o r q u est r a é u m m a est r o .
Se u fe m in in o e m it a lia n o é m aestra, e n ã o m aestrina, qu e,
a in d a e m it a lia n o , d esign a as p r ofessor as d e escolas in fa n t is,
sign ifican d o , lit e r a lm e n t e , "p r o fe sso r in h a ".

Sp a lla

E o p r i m e i r o e n t r e os p r i m e i r o s vio lin o s d e u m a o r q u e st r a .
P r o t o co la r m e n t e , é o r e p r e se n t a n t e d o co n ju n t o d e m ú s ic o s
fr en t e ao p ú b lico e ao m a e st r o , p o r isso r e ce b e n d o os ap lau -
sos n o in ício d o e sp e t á cu lo . O sp alla é r e sp o n sá ve l p ela "e co -
lo gia " d o gr u p o e, e n t r e o u t r o s p r e d ica d o s, gar an t e a afin a-
çã o , além d e in d ica r à o r q u est r a a co n ve n iê n cia d e se levan t ar
n os agr ad ecim en t o s ao fin al de cad a ob ra o u d o e sp e t á cu lo . O
t e r m o é it alian o e a fu n ção é ch am ad a d e concertm aster n os Es -
t ad os U n id o s e leader n a In gla t e r r a .

28
-

At o x M o v i m e n t o

As p ar t es d e u m a p e ça in s t r u m e n t a l, co m o cap ít u lo s d e u m l i -
vr o , são ch am ad as d e "m o vim e n t o ". As p ar t es d e u m a ó p e r a ,
t a m b é m co m o ca p ít u lo s d e livr o , são ch am ad as d e "a t o ". As -
s i m , falam os d o p r im e ir o "a t o " de u m a ó p e r a , d o q u ar t o "m o -
vi m e n t o " de u m a sin fo n ia , su it e o u co n ce r t o . A Sonata ao luar
d e Be e t h o ve n , p o r e xe m p l o , p o s s u i t r ê s m o vi m e n t o s ; já a
ó p e r a La Bohèm e, d e P u c c i n i , t e m q u at r o at os.
U m e sp e t á cu lo sin fó n ico t e m m u it a s vez es d u as p ar t es se-
p ar ad as p o r u m in t e r va lo ; são d u as "p a r t e s ", n ã o d o is m o vi-
m e n t o s o u d ois at o s...

Ar i a e r e c it a t ivo

M u it o s co m p o sit o r es d e ó p e r a u sa m a est r at égia d e c o n st r u ir


as p ar t es de se u e sp e t á cu lo d ivid in d o o t e xt o d o lib r e t o — o
r o t eir o d a ó p e r a — e n t r e árias e r e cit a t ivo s. El e s sã o , r e sp e ct i-
va m e n t e , a p ar t e e m qu e o can t o r en t oa as m elo d ias q u e t od o
p ú b lic o sa ir á c a n t a r o la n d o , e a q u e la o u t r a e m q u e os p e r -
so n a ge n s c o n ve r s a m e fa z e m c a m in h a r a t r a m a n u m a e s p é -
cie d e "fa la afin ad a". É u m a n o m e n c la t u r a t é c n ic a , m as q u e
acaba sen d o m u it o u sad a n o d ia a d ia en t r e p r ofission ais. O lei-
t o r , u m p o u co co m o o p e r so n a ge m de M o liè r e , q u e , q u an d o
a p r e n d e a d ife r e n ça e n t r e p o e sia e p r o sa , ch o ca-se ao sab er
q u e falou "p r o s a " p o r t od a a vid a , p r o va ve lm e n t e o u vi u r e ci-
t at ivos e árias s e m n u n c a p r e cisa r d ar-se co n t a da d ifer en ça .

Al l e g r o , a n d a n t e , p r e s t o . . .

Sã o in d ica çõ e s d o car át er de cad a se çã o o u ob ra m u s ic a l, u m a


e s p é c ie de s u ge s t ã o e m o c io n a l o u d e t e m p e r a m e n t o p ar a o
in t é r p r e t e e o u vi n t e . C o m o u m d e sd o b r a m e n t o e m p í r i c o ,

29
t o r n a m - s e i n d i c a t i vo s d o a n d a m e n t o : u m a lle gr o d e ve so a r
r á p id o , u m lar go, vagaroso. Es t a r elação se est ab elece in e q u i-
vo ca m e n t e , n o e n t a n t o , ap en as n o ad ian t ad o d a h ist ó r ia , c o m
a in ve n çã o d e u m e q u ip a m e n t o e sp e cífico p ar a m e d iç ã o d o
t e m p o , o m e t r ô n o m o , p or Joh an n Ma e lz e l (1772-1838), e m 1816.
D e sd e o final d o sé cu lo X I X , os t e r m o s o r igin a is e m it alian o
são m u it o co m u m e n t e t r a d u z id o s, c o m seu s cor r elat os e m ale-
m ã o (sehrschnell, lustig, langsam et c.) o u p o r t u gu ê s (r áp id o , i n -
d o len t e, vagar osam en t e e t c ) , co n fo r m e u t iliz a d o s p o r Gu s t a v
M a h le r e Ca m a r go Gu a r n i e r i .

So n a t a

E m m ú sica , ch am am o s d e "so n a t a " d u as coisas d ist in t as. U m a


d elas r efer e-se a u m a fo r m a e sp e cífica , q u e o r ga n iz a u m d is-
cu r so ú n ico e m t r ês s e ç õ e s , c o m t em as e m ao m e n o s d u as t o-
n alid ad es d ifer en t es. A son at a é o m ais co m p le xo d iscu r so m u -
sica l d a c u lt u r a o cid e n t a l — at é e xis t e m e st r u t u r a s m a io r e s ,
m as ap en as as son at as p r e vê e m a co n ca t e n a çã o e m u m t od o
coeso d e t em as e t on alid ad es d ist in t a s.
U m a o u t r a a ce p çã o d e "s o n a t a " d esign a u m a p e ça p ar a u m
o u d ois in s t r u m e n t o s e m m a is d e u m m o vim e n t o (o n o m e é
u m a m e t o n ím ia , o u s in é d o q u e , q u e a t r ib u i ao t od o o n o m e
d e u m a p a r t e , já q u e m u it o s d os m o vim e n t o s d e u m a "s o n a t a "
se o r ga n iz a m n a "fo r m a so n a t a " d e scr it a n o p ar ágr afo a cim a ) .
Q u a n d o c o m m ais in st r u m e n t o s, essa m e sm a o r gan ização e m
m o vim e n t o s ch am a-se t r io , q u ar t et o , sext et o o u sin fon ia (p ara
o r q u est r a sin fón ica).

Sin fó n ic a e Fi l a r m ó n i c a

A "o r q u e st r a sin fó n ica " é o n o m e d a for m ação c o m n aip es d e


in st r u m en t o s d ivid id os e m : cordas (violin os, vio las, violon celos

30
e con t r ab aixos), m ad eiras (flau t a, o b o é , clar in et e e fagote), m e -
tais (t rom p et e, t rom bon e e t uba) e p ercu ssão (t ím pan os e ou t ros).
Eve n t u a lm e n t e , con t a co m u m a ou m ais h arp as, p ian o ou o in s-
t r u m e n t o p r evist o pelo com p osit or , qu e é livr e p ara escolh er o
t im b r e que d esejar (gu it arras elét r icas, b an d olin s e o que for).
"Fi l a r m ó n i c a " é o n o m e p elo q u al se i n t i t u la m m u it a s so-
cie d a d e s de a m a n t es d a m ú sica (de philos + h a r m o n ia ) ; n a t u -
r a lm e n t e , algu m as d essas socied ad es e st ive r a m p o r t rás d o fi-
n a n cia m e n t o e da e st r u t u r a çã o d e or q u est r as sin fó n ica s, qu e
r e c e b ia m p o r isso o n o m e c o m e r c ia l d e "o r q u e s t r a filarmó-
n ica ". As s i m , t od a filarmónica é u m a sin fó n ica, m as n e m t od a
sin fón ica é u m a filarmónica.

Opus

At é o fim d o sé cu lo XVIII n ão h avia u m m er cad o est r u t u r a d o


d e e d iç ã o d e p a r t it u r a s m u s i c a i s , t a m p o u co h a via m e r ca d o
c o n s u m id o r p ar a t ais p r o d u t o s. Q u a n d o finalmente u m p ú -
b lico n ão ar ist o cr át ico c o m e ç o u a cu lt iva r a m ú sica e m d o m i-
cílio , os co m p o sit o r es p assar am a p u b licar su as p e ça s. O Opus
t r at a d a o r d e m d e t ais p u b lica çõ e s. Opus i d esign a a p r im e ir a
ob r a p u b lica d a ; Opus 45, a q u a d r a gé sim a q u in t a . Por ve z e s a
p u b lica çã o er a e m for m a d e co le çã o , p o r isso Opus 1, n-4, sig-
n ifica qu e se t rat a da qu art a p eça da p r im e ir a coleção p u b licad a.
D u a s coisas cu riosas dign as de n ot a. A p r im eir a: n e m sem p re
a or d em de p u b licação segu e a or d em cron ológica de criação. O
Opus 21 de Ch o p in , por exem p lo , foi criad o an t es de seu Opus 11
(seus dois con cert os para pian o). Ain d a : com o a cat alogação do re-
p er t ór io an t erior ao u n iver so ed it orial da m ú sica era d escu id ad a,
m u it o do r ep er t ór io até fins do sécu lo x v m foi organ izad o a pos-
t e r io r i. Nesses casos, su b st it u i-se o Opus. Para J. S. Ba ch (1685-
-1750), p or e xe m p lo , u sa-se o t er m o BWV {Bach-W erke-Verzeich-
nis, ou "Cat álo go de O b ras de Ba ch ") ; já para Do m ê n ico Scarlat t i

31
(1685-1757)' usa-se L. o u K. — abreviat u ras qu e r esu lt am , respec-
t ivam en t e, dos esforços de cat alogação de Alessan d r o Lo n go , n a
d écad a de 1910, e d e Ra lp h Kir k p a t r ic k , n a d écad a de 1950. N a
obra de W . A. Mo z a r t , u sam os o cat álogo Kõ ch e l, co m a abrevia-
t u ra K., organ izad o e m or d em cron ológica (ou quase) pelo m u si-
cólogo au st ríaco Lu d w ig vo n Kõ ch e l, e m 1862.

Tim b r e

O t im b r e faz r efer ên cia à p er son alid ad e d os in st r u m e n t o s. E o


qu e d ifer en cia u m a flauta d e u m p ian o qu an d o t ocam a m e sm a
n o t a (h á co m p le xo s asp ect os a cú st ico s e n vo lvid o s, cu ja an á-
lise aq u i é d e sn e ce ssá r ia ) . Algu n s alm an aq u es c h a m a m o t im -
b r e de a "c o r d o so m ". E u m a an alogia sim p á t ica .

So p r a n o , t e n o r e o u t r o s

O s t ip o s d e vo z s ã o : b a ixo , b a r ít o n o e t e n o r ( vo z e s m a s c u li-
n as); co n t r a lt o , m ezzo -so p r an o e sop ran o (fem in in as). Ele n c o -
-as a q u i, e m am b os os gr u p o s, d a m a is grave à m a is agu d a. E s -
sas referên cias d iz e m resp eit o ao q u e ch am am o s de "t e ssit u r a ",
ou seja, a e xt e n sã o da vo z . Im a gin e q u e as vo zes d evam e m u la r
as n ot as de u m p ian o : o b aixo (voz grave m a scu lin a ) p e r co r r e -
r ia m a is n a t u r a lm e n t e aqu elas t eclas à esq u er d a d o p ia n ist a , a
so p r an o , aqu elas à d ir e it a . E t od as as ou t r as vo z e s o cu p a r ia m ,
p a u la t in a m e n t e , a r egião in t e r m e d iá r ia . O u t r a s vo zes — co n -
t r at en or , sop ran in o e q u e t ais — p o d em ser en t en d id as, grosso
m o d o , co m o d esd o b r am en t o s d a classificação p r in cip a l.
O t im b r e d a vo z , e m algu n s ca so s, t a m b é m p o ssu i u m es-
b o ç o d e classificação: t e n o r h e r ó ico o u d r a m á t ico , sop r an o l i -
ge ir o , lír ico o u d r a m á t ic o , b a ixo p r o fu n d o e t c . Pe la gr a n d e
var ied ad e d e t ip o s, r ar am en t e essas cat egorias p o d e m se r e n -
t en d id as de m od o t a xa t ivo .

32
Afin a ç ã o

Tr a t a d a a d e q u a çã o d as fr e q u ê n cia s d as n ot as p ar a efeit o das


h a r m o n ia s, d isso n â n cia s e co n so n â n cia s p r e vist a s segu n d o a
e xp e ct a t iva d e n o ssa sen sib ilid ad e. Afin a çã o é, a s s im , sem p r e
u m a r elação e n t r e n ot as. D e m o d o ge r a l, ela p ar t e d e co n ve n -
ç õ e s in t e r n a c io n a is p ar a u m a n o t a d e t e r m in a d a . O "lá ", p o r
e xe m p lo , d eve soar en t r e 436 e 4 4 8 h e r t z , t en d o n o m a is das
vezes con sagrad a a r efer ên cia e m 440 h e r t z . A p ar t ir d essa n o t a,
p o r sist em a s var iad os d e cá lcu lo d e p r o p o r çõ e s (2/ 1, 3/ 2, 4 / 3,
5/ 4 o u 6/ 5 d o valo r o r igin a l) , ch ega-se às d em ais n ot as.
Sist em as var iad os? Si m . Exi s t e m ao m en o s t r ês sist em as de
afin ação con sagrad os: o n a t u r a l o u p it a gó r ico , o m e so t ô n ico e,
p or fim, o t e m p e r a m e n t o igu al (u sad o n o s p ian o s m o d e r n o s) .
H á o u t r o s. O s m o t ivo s d a d e sa fin a çã o , n o e n t a n t o , n ã o sã o
m e r a m e n t e m a t e m á t ico s. N a m ú sica d e co n ju n t o , exat am en t e
p or co n t a d a co m p le xid a d e t ím b r ica e das on d as son or as r e su l-
t an t es d o aglom erad o de n o t as, as alt u r as p r e cisa m ser a t od o
m o m e n t o d e lica d a m e n t e aju st ad as p elos in s t r u m e n t is t a s , d e
for m a m ais o u m e n o s in t u it iva .

Mú sica t on al e at on al

Co s t u m o d e fin ir p o r "t o n a l " u m a e sp é cie de se n sib ilid a d e —


aqu ela qu e n os p e r m it e p r ever cer t a lógica das son or id ad es, e
d ela in fer ir , m esm o se m t ext o , que a m ú sica co n clu iu u m a id eia,
d e se n vo lve u o u t r a o u ch ego u ao fim. Pod em os e n t e n d e r essa
"ló g ic a " e m q u alq u er das obras de Ba c h o u de Mo z a r t . Ma s m i -
n h a d efin ição é a p r o xim a d a , p ois m u it o d essa cap acid ad e d e
in t e r lo cu çã o en t r e o u vin t e e m ú sica já est á p r esen t e n o rep er-
t ór io de t r ad ição o r al, e m co m u n id ad es dos cin co co n t in e n t e s,
cu ja p r át ica ch am am o s de "m o d a l". Q u a lq u e r raga in d ia n a , p or
e xe m p lo , se r vir ia p ara ilu st r a r essa r essalva.

33
Às sen sib ilid ad es t on al e m o d a l, a ssim , co n t r a p õ e m - se
àq u ela "a t o n a l", u m a in ve n çã o d a segu n d a m et ad e d o sé cu lo
X I X . O "a t o n a l" é id en t ificad o e m u m a m ú sica , n o t od o o u e m
p a r t e s, q u an d o d ela é e lim in a d o o asp ect o co m u n ica n t e q u e
garan t e ce r t o se n t id o ló gico n a r r a t ivo . Po r isso , d e m o d o ge-
r a l, se n t im o s n a m ú s ic a a t o n a l c e r t a ve r t i g e m , a d e so r ie n t a -
ção m e sm a q u e n ã o n o s p e r m it e an t ecip ar in ício , m e io e fim
d e u m a id eia o u d iscu r so . Par a e xe m p lifica r , sem p r e su gir o a
e scu t a d a sin gela Nuages gris, d e Fr a n z Li s z t .

T é c n i c a d o d e c a fô n ic a

A t é cn ica d o d e ca fô n ica foi in ve n t a d a p elo co m p o sit o r Ar n o l d


Sc h o e n b e r g (1874-1951). Se u o b je t ivo e r a c r ia r u m p r o ce sso
s is t e m á t ic o , o u ao m e n o s in t e ligíve l, p ar a a cr ia çã o d e ob ras
d e se n sib ilid a d e a t o n a l. Es s a t é cn ica fu n cio n a c o m a u t iliz a -
çã o d as set e n o t as co n h e cid a s ( d ó , r é , m i , fá, s o l , lá , si) e as
c in c o e n t r e a lgu m a s d elas (as t e cla s p r e t a s d o p ia n o ) , p er fa-
z e n d o d o z e n o t a s, d a í s e u n o m e s e r fo r m ad o p elas p a r t ícu -
las "d o d e c a " (d oze) + "fo n o s " ( so n s) . U m a ve z ap r esen t ad as
e m q u a lq u e r o r d e m , s e m r e p e t i ç ã o , as d o z e n o t as fo r m a m
u m a s é r ie , q u e p od e se r r e p e t id a va r ia d a m e n t e p o r m e io d e
a lgu n s t ip o s d e p e r m u t a ç ã o . Ag i n d o a s s i m , a m ú s ic a r e s u l -
t a n t e n ã o p o s s u ir á u m "c e n t r o t o n a l ", o u se ja , n ã o d a r á ao
o u vin t e u m a r e fe r ê n c ia e xp líc it a d e q u a l é a n o t a m a is i m -
p o r t a n t e . T e n d o p o r o r ig e m u m a p r e o c u p a ç ã o p e d a g ó g i c a ,
a t é c n ic a d o d e c a fô n ic a acab a in a u gu r a n d o u m a form a m en-
tis a b so lu t a m e n t e n o va , a q u e c h a m a m o s d e "s e r i a l". M i n h a
ob ra d o d e ca fô n ica p r efer id a são as Variações p ar a p ia n o , Opus
2j, d e An t o n W e b e r n .

34
To n a lid a d e

Se a "m ú s i c a t o n a l " t r at a d e u m a ce r t a se n sib ilid a d e , a t o n ali-


d ad e é a d e t e r m in a çã o ob jet iva d est a sen sib ilid a d e: d ó m a io r ,
si b e m o l m a io r , fá su st en id o m e n o r . O u seja, a t on alid ad e d es-
cr e ve ao o u vin t e a t opografia o u , ao m e n o s, o "c e n t r o d e gra-
vid a d e " d e cer t as p aisagen s son or as: o "d ó " sign ifican d o a fre-
q u ê n cia d o m in a n t e , e "m a i o r " a r elação q u e essa fr eq u ên cia
t e m c o m as ou t r as n ot as p r evist as n o sist em a o cid e n t a l. Ma io r
o u m e n o r são d e scr içõ e s d e u m co n ju n t o de n ot as cu ja exp ec-
t at iva d e co n vívio é "n a t u r a l " n a m a io r p art e d o t e m p o . E at ra-
vé s d a p e r c e p ç ã o e c o m p r e e n s ã o d essas n o t as q u e co n st r u í-
m o s e xp e ct a t iva s, t e n sã o e r e so lu çã o n as id eias m u sica is.

Ri t m o

E m m ú sica , "r i t m o " t r at a, e m u m sen t id o m ais a m p lo , de t od a


a gam a de r e la çõ e s e in t e r co r r ê n cia s d o so m n o t e m p o . Pa r a
u m m ú s ic o , o r it m o se o r gan iza e m d iver so s n íve is, d escr it o s
e m t r ê s t e r m o s : p u lso , co m p a sso e r it m o . O p u lso lid a c o m
u m a r egu lar id ad e in t u íd a e su b jacen t e e m p r a t ica m e n t e t od o
o r e p e r t ó r io ; o co m p a sso , c o m a aglu t in ação e m t e r m o s m a is
o u m e n o s h o m o g é n e o s d o p u lso . U m e xe m p lo co n cr e t o : n a
ca n çã o "P a r a b é n s p r a vo c ê ", o p u lso é m ar cad o p elas p alm as
q u e b at em os d esd e t e n r a id ad e; já o com p asso est á n a p ad r o-
n iz a çã o d e t e m p o s fort es e fr acos, q u e fa cilm e n t e co n se gu i-
m o s id e n t ifica r , a cad a gr u p o d e t r ê s p alm as (t rês p u lso s) ba-
t id o n o d e c o r r e r d a c a n ç ã o . Po r isso p o d e m o s d iz e r q u e ela
p o ssu i com p asso t e r n á r io .
E m seu sen t id o m a is e st r it o , ch a m a m o s p o r r i t m o , a in d a ,
t od a a c o m p le xa r ed e de n ot as cu r t a s e lon gas n e ssa m e s m a
ca n çã o , aq u ilo q u e é en t oad o p elas sílab as, o u seja, t od a e st r u -
t u r a p r esen t e n a m e lo d ia q u e n ão as n ot as afin ad as.

35
Sugestões de leitura

Fo i p u b licad o n o Br a s il, h á a lgu m t e m p o , u m sim p á t ico Guia


ilustrado de m úsica clássica (São Pau lo : Za h a r , 20 0 6 ) . E u m a t r a-
d u çã o d e u m vo lu m e da sér ie "Eye w i t n e s s Co m p a n io n s ", da
ed it or a D K Ad u lt ( n a e d içã o o r igin a l, de 20 0 5, in t it u la -se Clas-
sicalMusic), e faz, co m o os ou t r os vo lu m e s da co le çã o , u m es-
for ço e n ciclo p é d ico . M u i t o ú t il co m o u m alm an aq u e d e co n -
su lt a p ara q u e st õ e s p a n o r â m ica s. Ro y Be n n e t t p u b lico u d ois
livr in h o s in t er essan t es p ela Un ive r sid a d e d e Ca m b r id ge , am -
b os t r ad u zid o s p ara o p o r t u gu ê s, t a m b é m p ela Za h a r : Elem en-
tos básicos da m úsica (1990) e Um a breve história da m úsica (1986).
A ed it or a Glo b o la n ço u , a in d a , O livro da m úsica clássica ( Rio
d e Jan eir o : Glo b o , 2019), qu e p od e se r fu n cio n a l p ela cat alo-
gação de in fo r m açõ es gerais e boas cu r io sid ad es; n ão h á m u it a
exat id ão a ca d é m ica , e n e m é o caso , p ois o livr o in ser e-se n o
b ojo de u m a co le çã o d ed icad a a t em as d ive r so s.

36
Rehearsing, re-hearing: O u vin d o a Nona
sinfonia de Beeth oven pela cen tésim a vez..

N ã o é n o vid a d e a lgu m a q u e h o je u m a m a n t e m é d i o de m ú -
sica clássica o u viu m ais m ú sica q u e, p or e xe m p lo , Be e t h o ve n .
U m t ip o m ais e sp ir it u o so p o d e r á a r gu m e n t a r qu e a co m p ar a-
ção n ão é b oa, p ois Beet h o ven m o r r e u su r d o. Ad ia n t o , d esd e já,
q u e m in h a afirm ação an t er io r n ão t e m n ad a a ve r c o m a cap aci-
d ad e a u d it iva d o gé n io d e Bo n n . Ap e n a s m e p ar ece in q u e st io -
n ável t er m o s t id o , cada u m de n ó s, m ais op or t u n id ad es do qu e
o p r ó p r io co m p o sit o r de o u vir su a Nona sinfonia. Afin a l, sabe-
m o s p o r d o cu m e n t o s q u e Be e t h o ve n a ssist iu ( n o caso , m a is
vi u q u e o u viu ) a u m a ú n ica p er fo r m a n ce da o b r a, n o d ia 7 d e
m aio de 1824, e m Vi e n a .
Seja p or m eio de p rogram as de r ád io, ap licat ivos, gr avações
e m C D ou Blu - Ra y, o u m e sm o c o m a p r e se n t a çõ e s e m salas d e
co n ce r t o o u p ar q u es, o p ú b lico m e lô m a n o t e m à su a d isp o si-
ção u m r e p e r t ó r io m a is vast o e su a a u d içã o est á m a is aco st u -
m a d a à m ú s i c a c lá s s ic a , d e t o d o s os s é c u l o s , q u e os ve r d a -
d eir o s p r ofission ais d o r am o at é c e m an os at r ás. E m a is: h oje
selecio n a m o s o qu e n os in t e r e ssa , e r e p e t im o s e m se q u ê n cia ,
d iver sas ve z e s, t r ech o s in t e ir o s o u a ín t egr a de u m cat álogo es-
p ecífico o u ge n é r ic o , u m a im p o ssib ilid a d e evid en t e p ara q u al-
q u er com p osit or at é pelo m en o s a d écad a de 1920. Pod em os ao
lon go d e u m a vid a escu t ar a t ot alid ad e d a ob ra d e C h o p i n , o u
t e r , n a p o n t a d os d ed o s, u m a p a n o r â m ica d a m ú sic a it alian a
d a d é ca d a d e 1920; e a in d a c o n s e gu im o s , d e p e n d e n d o ap e-
n as d a n ossa vo n t a d e , o u vir m a is m ú sica q u e M o z a r t , Ro b e r t

37
Sc h u m a n n , Joh an n es Br a h m s o u Gu s t a v M a h le r — e n ão é i n -
crível p en sar qu e o m ais p r ovável é que Rich a r d W a gn e r jam ais
t e n h a escu t ad o a m ú sica d e An t o n io Viva ld i?
Si m , são o b se r va çõ e s d esp r ovid as de co n se q u ê n cia cien t í-
fica, m as elas m e d e ixa m p er p lexo m e sm o a ssim . H o je o t e m a
d o ú lt im o m o vim e n t o d a Nona sinfonia p o d e se r o u vid o e m
sh o ws d e r o ck e assob iad o p or cr ia n ça s. E p e ça e m b le m á t ica
p a r a o h u m a n is t a c u lt o , e a in d a p a r t ic ip a d e e ve n t o s m id iá -
t ic o s , c o m o o c o n c e r t o - s h o w e m c o m e m o r a ç ã o à q u ed a d o
M u r o d e Be r l i m . E m su m a : algu m as obras de Be e t h o ve n , n ão
apen as a Nona sinfonia, m as os p r im e ir o s com p assos da Quinta
sinfonia, o u a sin gela bagat ela p ara p ian o "P o u r El i s e " (qu e o u -
vía m o s e m algu n s ca r r o s d e gás p o r Sã o Pa u lo ) , são p ar t e d o
r e p e r t ó r io co t id ia n o in t e r n a c io n a l e p o d e m o s d iz e r , n e st e s
t e r m o s, qu e são t an t o d e Be e t h o ve n q u an t o n o ssas.

E cla r o , se m p r e qu e falam os de q u an t id ad e d e a u d içõ e s d eve-


m o s e n fr e n t a r se u d u p lo e, p o r ve z e s , se u co n t r á r io : a q u ali-
d ad e das a u d içõ e s. H á d ois asp ect os n essa q u e st ã o . U m lid a
c o m a c o n d iç ã o d as o r q u e st r a s e d os a r t ist a s, so b r e t u d o os
gr a n d es. Po d e m o s d ar p o r ce r t o qu e as o r q u e st r a s p r o fissio -
n ais da at u alid ad e est ão h ab it u ad as t an t o à lin gu a ge m d e u m
co m p o sit o r r o m â n t ico q u an t o à d e u m m o d e r n ist a r e vo lu cio -
n ár io do p r in cíp io do sé cu lo XX; além d isso , m a n t ê m - se for ço-
sam en t e m a is b e m en saiad as qu e q u alq u er u m a d e su as co n gé -
n er es do in ício do sécu lo x i x (ao qu e p ar ece, Beet h o ven d isp ô s
de apen as d ois en saios p ar a a a p r e se n t a çã o d a Nona sinfonia).
O u seja, o u vim o s su as obras m ais e m e lh o r d o qu e ele e seu s
c o n t e m p o r â n e o s jam ais p u d e r a m o u vir .
M a s h á o se gu n d o asp ect o d a q u e st ã o . D e m o d o ge r a l, a
est r at égia qu e o p ú b lico m é d io u sa p ar a o u vir m ú sica clássica
n ão é lá m u it o o r t o d o xa. Pou cos d e fato se c o n c e n t r a m , e m e -
n o s a in d a c o n s e gu e m le r o t e xt o m u s i c a l d a q u ilo qu e e st ã o

38
o u vin d o . H á , n a m é d ia , u m a m e n o r cap acid ad e de co n ce n t r a -
ção e e n vo lvim e n t o .
Ao m e n o s e ssa é a a c u sa ç ã o c o r r e n t e . D i s p e r s o p e la at -
m osfer a in fo r m a t iva da cu lt u r a d igit a l, o o u vin t e escu t a o co -
r al "Alie M e n s c h e n w e r d e n Br ú d e r " au sen t e e m e sp ír it o — o
op ost o sim é t r ico d e Be e t h o ve n , p r esen t e e m e sp ír it o m as au -
sen t e e m ca r n e , co m p le t a m e n t e su r d o já n a p e r fo r m a n ce d e
1824. Co n ve n h a m o s , n o s d ias d e h o je , n ã o é i n c o m u m , o u
m e s m o i m p r ó p r i o , u sa r o co r a l c o m o m ú sic a d e fu n d o p ar a
afazeres r o t in e ir o s : a fin a l, c o m o sm a r t p h o n e co n e ct a d o ao
b lu e t o o t h , p o r q u e n ã o u m p o u co d o ú lt im o m o vi m e n t o d a
Nona sinfonia p ar a a n im a r a lavagem d a lo u ça?
O qu e cr ia d o r e s e p esq u isad or es da m ú sica a m b ie n t e t ê m
d iscu t id o é q u e t od o t ip o d e est r a t égia d e e scu t a , e su as d ife-
r e n t e s sit u a ç õ e s, p o d e m e s t im u la r a t iva m e n t e a p e r c e p ç ã o *
Se gu n d o e le s , o gr au d e a p r e e n s ã o d a m ú s ic a d e p e n d e , so-
b r e t u d o , das n ecessid ad es o u at ivid ad es c o m as q u ais a escu t a
c o m p e t e . A m ú s ic a a m b ie n t e n ã o é , d e q u a lq u e r m o d o , n e -
ce ssa r ia m e n t e n e u t r a , m e r o "p a n o d e fu n d o". En q u a n t o so a,
o cu p a a sp ect o s im p o r t a n t e s d e n o ssa r e la çã o c o m t e m p o e
e sp a ço e m in t e r a çõ e s a t iva s, m e sm o q u e e m n íve is se n so r ia is
m a is b á sico s. H á m e sm o p r ofission ais q u e se va le m e xp licit a -
m e n t e d essa est r at égia. E m u m a e n t r e vist a de 20 0 6 , o p ian ist a
p o lo n ê s Kr ys t i a n Zi m e r m a n d isse q u e , p or ve z e s , m e m o r iz a
algu m as ob ras d o seu r e p e r t ó r io ou vin d o-as en q u an t o d ir ige
p elas est rad as eu r op eias!

* Muzak é o nome técnico do género de música composta para ser usada


como música ambiente. Sua longa história remonta aos prim eiros experim en -
tos futuristas, de artistas italianos como Lu igi Russolo, ou outros da vanguarda
francesa, como Er ik Satie. O compositor Brian En o (1948-) é o mais influente
propositor do género em atividade. Talvez seja importante notar que mesmo
se ouvirm os a Nona sinfonia de Beethoven enquanto dirigim os, ou trabalha-
mos no computador, não fazemos dela Muzak.

39
Cl a r o , a Nona sinfonia d e Be e t h o ve n q u e se e scu t a ao vo -
lan t e — m e sm o qu e est ejam os d ir igin d o p elas r et ilín eas est r a-
das eu r op eias — é r eceb id a de ou t r o m o d o , d ifer en t e d aq u ela
a q u e a ssist im o s ao vi vo , n a m o ld u r a de silê n cio das salas de
co n ce r t o . O m e s m o aco n t ece e n t r e a Nona sinfonia q u e se n -
t am os p ar a ve r e o u vir e m p er fo r m an ces ao vi vo , ab ert os a o u -
t r o t ip o d e e n vo lvim e n t o , e aq u ela q u e o u vim o s e ve m o s co n -
cen t r ad o s n a t ard e d e d o m in go , u san d o o Blu - Ra y.
Po r is s o , a ch o ir r e le va n t e p e r gu n t a r se e st a m o s lid a n d o
c o m a u d içõ e s m e lh o r e s o u p io r e s. M e u p on t o é o u t r o : e m s i-
t u a çõ e s co n cr e t a s, c o m t ais e t ão r eit er ad as o p o r t u n id a d e s, ja-
m a is o u vim o s a m ú sica d o m e sm o je it o . E é a ssim n ão ap en as
p o r cau sa d a n o ssa c o n c e n t r a ç ã o o u p o st u r a . Po d e m o s est ar
co m p le t a m e n t e d ed icad os à p e r fo r m a n ce , m as n o ssa au d ição
e c o m p r e e n s ã o , m e sm o n essas sit u a çõ e s d e ab solu t a co n ce n -
t r a çã o , m u d a m r a d ica lm e n t e ao lon go d o t e m p o .

A p r i m e i r a ve z q u e a ssist i à Nona sinfonia foi p e la t e le visã o .


Er a a gr avação de Ku r t M a s u r e su a or q u est r a do Ge wa n d h a u s ,
d e Le i p z i g . E u e n t ã o n ã o sa b ia, m a s a p e r fo r m a n ce co n t a va
c o m p e q u e n a s est r ela s d e se gu n d o t i m e d a m ú s ic a clá ssica ,
ca n t o r e s c o m o Ve n ce sla va H r u b a - Fr e ib e r ge r ( so p r a n o ) , D ó -
r is Soffel ( m e z z o -so p r a n o ) , Jam es W a g n e r ( t en o r ) e G w y n n e
H o w e l l ( b a ixo ) . M a s u r , à é p o ca d a p e r fo r m a n c e , e r a já u m a
len d a n o am b ien t e m u sica l, p or su a p osição p olít ica qu alificad a
n o t en so p e r ío d o p ó s-q u e d a do M u r o d e Be r lim . D isso e u t am -
b é m n ad a sab ia e, a b e m d a ve r d a d e , n ã o p ar ecia im p o r t a n t e .
O m a e st r o , c o m seu m o d o p it o r esco de r eger , se m b a t u t a ,
e c o m p eq u en o s "e sp a sm o s" n a m ã o d ir e it a , m e m a gn e t iz o u ;
su a im a ge m foi p ar a m i m u m a d u r a d o u r a r e fe r ê n cia , e co n t i-
n u a va sen d o d ez an os d e p o is, q u a n d o c o m e c e i a e st u d a r d i -
r e çã o d e o r q u e st r a . O t e n o r , n egr o c o m o m i n h a m ã e , m e u s
a vó s e m e u s t io s, e c o m u m m o d o d e ca n t a r e m q u e já p u d e

40
id en t ificar u m gin gad o i n c o m u m p ara Be e t h o ve n , m e fez cr e r
ser p o ssíve l t er u m a ca r r e ir a n a m ú sica clássica. O t e m a do ú l-
t im o m o vim e n t o m e er a co n h e cid o , m as o qu e e u o u via qu ase
so n h a n d o e r a m as co r e s e a r ít m ica c o m p u ls i va , algo h eavy
m e t a l, d o s c h e r z o . D e s d e e n t ã o , o t ím p a n o t o r n o u - se m e u
in st r u m e n t o d e p r e d ile çã o , e a Nona sinfonia, su a ap ot eose!
Pou co d e p o is, o sch e r z o se r eco n figu r o u . Fo i q u an d o v i o
filme Laranja m ecânica, d e St an ley Ku b r i c k , e im e d ia t a m en t e
d e vo r e i o livr o h o m ó n i m o d e An t h o n y Bu r ge ss. A figura d o
p r ot agon ist a Al e x, u m jo ve m at o r m en t ad o e c r im in o s o , ap ai-
xon ad o p ela m ú sica de Be e t h o ve n — e ap aixon ad o p elas im a-
gen s at rozes qu e a m ú sica lh e p r ovocava — , foi u m a das m a is
r e co r r e n t e s d a m in h a a d o lescên cia . N ã o co n segu i en t en d er as
forças en volvid as n aq u ilo t u d o at é qu e li algu n s en saios de Bu r -
gess. Par a o au t or, a h ist ór ia d e Al e x ver sava sobre o livr e-ar b í-
t r io , e Be e t h o ve n er a u sad o, n o livr o e n o filme, co m o u m a sín -
t ese, o sím b o lo de algo m u it o m aio r : a p r ó p r ia Be le z a . E e la , a
Be le z a , se r via p ara cor r ob or ar a h u m an id ad e do p r ot agon ist a.
Bu r ge ss, p o r t a n t o , r e c o r r ia a u m ar t ifício so fist icad o . Afi -
n a l, su ger e e le , se o jo ve m Al e x o u via e am ava algo co m o u m a
sin fon ia de Be e t h o ve n , se o u via e r esp eit ava, p or a ssim d iz e r ,
a Gr a n d e Be le z a , é p or q u e p r eser vava e m si as r aízes da h u m a -
n id a d e — m u it o e m b o r a , p e r ve r s o , fizesse d elas b r o t a r ob s-
cen id ad es e vio lê n cia s. O p r ó p r io t e xt o de Sch ille r u sad o p o r
Be e t h o ve n r efor ça a id eia d e u m a fr at er n id ad e u n ive r s a l, e o
a r gu m e n t o d e Bu r ge ss é q u e o h o m e m , q u a n d o ve r d a d e ir a -
m e n t e en gajad o n a lib er d ad e, d eve sab er qu e r esp eit ar a lib er -
d ad e h u m a n a é , a cim a d e t u d o , r e sp e it a r o h o m e m e su a op -
ção de fazer coisas errad as. Al e x gost ava do m a l, e a ver d ad eir a
lib er d ad e h u m a n a r esid e n a p o ssib ilid ad e de fazer o m a l. Bu r -
gess q u e r ia q u e o livr o fosse qu ase u m p eq u en o p r ojet o apolo-
gé t ico , co m a r ed en çã o final do p rot agon ist a q u e, in felizm en t e
p ara o au t or , Ku b r i c k n ão in c lu ir ia n o filme.

41
N o filme e n o l i v r o , Al e x é h u m a n o c o m o t o d o s n ó s . E i s s o
d ever ia n os levar a p en sar p o r qu e n ão se r ía m o s, ao m e n o s po-
t e n cia lm e n t e , igu alm en t e abjet os e vis . "~Alle Menschen werden
Briider": "t o d o s h o m e n s são ir m ã o s ", e t a lve z fosse ve r d a d e
qu e o segr ed o de u m a visã o de m u n d o sã é en xer gar a vir t u d e
n os ou t r os e as r aízes d o caos e m si m e sm o s. O u vi d esd e e n -
t ão algu m as d ezen as de vezes a Nona sinfonia, e ela foi d u r an t e
e sse t e m p o , e m m u it o s se n t id o s, u m gat ilh o p ar a r e fle xõ e s
e xist e n cia is, in q u ie t a çõ e s m o r a is qu e eu n ã o est ava e vid e n t e -
m e n t e m a d u r o p ara levar ad ian t e. E a ssim , at r avés de Ku b r i c k
e Bu r ge ss, o p ob re e ve lh o Lu d w i g va n sed im en t o u -se co m o
co m p o sit o r d e u m a sin fo n ia an t es de t u d o filosófica. C o m La-
ranja m ecânica, a Nona d e Beet h o ven vir o u p ara m i m , p or an os,
a t r ilh a so n o r a de t ais d evan eios. Afin a l, se am ar a Be le z a n ão
n os faz m e lh o r e s, faz o q u ê ?

U m d os co r o lá r io s d a filosofia d a ar t e de Fr i e d r i c h Sc h e llin g
d iz qu e "a a r q u it e t u r a , n e ce ssa r ia m e n t e , co n st r ó i segu n d o r e-
lações ar it m ét icas o u , porque éa m úsica no espaço, segu n d o rela-
çõ e s ge o m é t r ic a s " (grifo m e u ) . A r efer ên cia é e vid e n t e m e n t e
co n t e xt u a liz a d a apen as à lu z d a d o u t r in a id ealist a alem ã. M a s
a id eia d e a a r q u it et u r a ser a m ú sica n o e sp a ço é p r o vo cat iva e
p o ét ica d e m a is p ara n ão ser levad a ad ian t e.
Q u a n d o in icie i m in h a at ivid ad e com o regen t e de o r q u est r a,
as sin fon ias de Beet h oven se t o r n ar am m at er ial ord in ário — foi
q u an d o, co n h e cid a s c o m algu m a p r o fu n d id ad e, c o m t r e ch o s
e m o vim e n t o s in t e ir o s de co r , fichadas cu id ad osa e d et alh ad a-
m e n t e , elas c o m e ç a r a m a fazer p ar t e d o m e u r e p e r t ó r io p r o -
fissional. Ne ssa sit u ação — é c o m u m acon t ecer — , p er d em o s
u m p ou co d a cap acid ad e d e n os su r p r e e n d e r , e os t er m o s p o é -
t ico s d e u m a o u o u t r a p er fo r m an ce acab am p or ser avaliad os
a p a r t ir d e su as id io ssin cr a sia s t é cn ica s. U m p eq u en o a va n ço
p ara a m e n t e , m as u m a gran d e p er d a p ara o co r a çã o .

42
M a s o co r a çã o se r e ge n e r a . E m o u t r o m o m e n t o d a vid a
a d u lt a , t ive a o p o r t u n id a d e d e u m a p eq u en a t e m p o r a d a e m
Be r li m . Fo i q u an d o, p r ó xim o às festas d e fim d e an o, v i p rogra-
m ad a a Nona sinfonia d e Be e t h o ve n , q u e é obra r e co r r e n t e n a
ép oca de Nat al e m várias in st it u ições m u sica is alem ães. A apre-
sen t ação se d aria n o fim da t ard e do d ia 31 d e d e z e m b r o , co m a
O r q u e st r a Sin fón ica da Rá d io d e Be r l i m , sob a r e gê n cia de seu
d ir et o r m u s ic a l, o len d ár io m aest r o p o lo n ê s Ma r e k Ja n o wsk i.
Se n d o aqu ela a q u art a o r q u est r a b e r lin e n se — m e n o s p r es-
t igiosa qu e a filarmónica, a or q u est r a da ó p e r a , o u m e sm o a or-
q u est r a sin fón ica local — , n ão m e p a r e ce u u m even t o n ot ável
se n ã o p ela o p o r t u n id ad e d e levar m i n h a m ã e a co n h e ce r o es-
p a ço a r q u it e t ô n ico e o u vir o q u e afin al er a u m blockbuster d o
r e p e r t ó r io clá ssico . El a ir ia gost ar, e u sab ia. Fo i n esse esp ír it o
d e b oa-fé q u e se n t e i n aq u elas n ão m u it o có m o d a s fileiras d a
sala p r in cip a l d o Ko n z e r t h a u s Be r lin .
Par a q u e m n ã o co n h e ce , vale a d e scr içã o . Tr at a-se d e u m a
sala r et an gu lar , n o t r a d icio n a l form at o qu e os am an t es d e m ú -
sica ch a m a m de "ca ixa de sapat o", apelid o u m p ou co r u d e , m as
m u it o ad eq u ad o p ar a d e scr e ve r su as p r o p o r ç õ e s d e la r gu r a ,
c o m p r i m e n t o e a lt u r a . O p ú b lic o p a u list a h á d e r e c o n h e c ê -
-las, p o is é o m e sm o form at o d a Sala Sã o Pa u lo . O p r ojet o d a
Ko n z e r t h a u s é do arqu it et o e u r b an ist a Ka r l Fr ie d r ich Sch in k e l
(1781-1841), e su a co n st r u çã o o co r r e u e n t r e 1818 e 1821. D e es-
t ilo n e o c lá s s ic o , s e u e xt e r io r é d eco r ad o c o m e scu lt u r a s d e
Fr i e d r i c h T i e c k (1776-1851) e s e u in t e r io r é a u st e r o , n u m ar-
r a n jo d e b u st os e m m á r m o r e e co lu n a s lisa s. O s assen t os d o
p ú b lico são d isp ost os e m d ois gran d es gru p os d e filas en o r m es.
O s assen t os são d e m a d e ir a , e n ão n ecessar iam en t e m u it o co n -
for t áveis. A a cú st ica , n o e n t a n t o , é q u ase p er feit a.
Alg o n o a m b ie n t e m e i m p r e s s i o n o u d e sd e os p r i m e i r o s
co m p a sso s d a a p r e se n t a çã o , in t e gr a lm e n t e d ed icad a à Nona
sinfonia. T a l c o m o fo i e xe cu t a d a p e la o r q u e s t r a , e sse fat or

43
m ist e r io so m e fez im a gin a r u m a r e la çã o e n t r e a a r q u it e t u r a
d a sala e a p r ó p r ia fo r m a d o m o vim e n t o d e a b e r t u r a d a s i n -
fon ia. U m p eq u en o e xp e r im e n t o sin e st é sico in t r ad u zível e m
d et alh es, e qu e jam ais se r e p e t iu . M a s n a o casião m e p a r e ce u
co n vin ce n t e e co m o ve n t e . D e p o is , já e m casa, p e r ce b i qu e o
p e r ío d o d e co n st r u çã o d o p r é d io e da sin fo n ia e r a m os m e s-
m o s , d an d o-m e co n t a , cla r o , qu e algu m a r elação e ve n t u a l p o-
d er ia se est ab elecer en t r e am b os. M i n h a e m o ç ã o , h oras a n t es,
ao lon go d a p e r fo r m a n c e , n ã o co n t a r a c o m n e n h u m d e sse s
elem en t o s r a cio n a is, h a via sid o e sp o n t â n e a e fort e o b ast an t e
p ara m e levar às lá gr im a s.

Po u co h á d e c o m u m e n t r e m in h a s in t e r p r e t a çõ e s da Nona e
aqu elas d e seu s ou t r os cu lt u ad o r es, o u a de seu cr iad or . O qu e
Be e t h o ve n q u is d iz e r , o qu e Bu r ge ss esp er ava co m o efeit o, o
qu e Ku b r i c k fez, o qu e Sc h in k e l c o n s t r u iu , o qu e a o r q u est r a
in t e r p r e t o u e o qu e e u e n t e n d i fo r am co isas a b so lu t a m e n t e
d ifer en t es. As m in h a s co n je ct u r a s r e su lt a va m , afin al, e m No-
nas sinfonias p essoais, d ísp a r e s, q u e , se co m p ar ad as, p o u co t i -
n h a m a ve r en t r e s i. As d a "e r a " M a s u r ger avam e m m i m u m
fr isso n qu ase ju ve n il, en q u an t o as p ó s- Ku b r ick e r a m co n vit e s
à in t r o sp e cçã o ( co m u m a p eq u en a cat arse ao fim, se m d ú vid a).
A ep ifan ia e m Be r l i m , em b o r a p u d esse d esd ob rar-se e m t eses
a ca d é m ica s p r e t e n sio sa s, er a fr u t o d e m e r a p e r c e p ç ã o e m o -
t iva , algo q u ase in fa n t il.
E aqu i volt am os ao in ício d o cap ít u lo . Pois o qu e r ealm en t e
im p o r t a é qu e t ais p er sp ect ivas n ão d e p e n d ia m da q u alid ad e
d a m in h a at en ção . D e p e n d ia m , isso s i m , do fato de eu vo lt ar à
Nona sinfonia e m m o m e n t o s d ifer en t es da vid a , e fazê-lo sofis-
t icad o p elo t em p o , p or e xp e r iê n cia s vivid a s e n ovos d evan eios.
H o je sei q u e , n o fim das co n t a s, é n o r m a l q u e seja a ssim .
A p r im e ir a p ar t e d e ap r en d er a o u vir clássico s n a er a p ó s- m o -
d e r n a , e n t r e t an t as o p o r t u n id a d e s e gr a va çõ e s, a p lica t ivo s e

44
celu lar es, e m salas de con cer t o ou ao ar livr e , é de algu m m od o
ap r en d er a lid ar c o m as in ú m e r a s se n sa çõ e s qu e co n h e ce m o s
qu an d o in t er agim o s, ao lon go do t em p o , co m u m a m e sm a m ú -
sica . Saber o u vir os clássico s n os d ias de h oje é, a cad a o ca siã o ,
t a m b é m r eap r en d ê-lo s in t im a m e n t e .
O n osso é u m t em p o q u e, se p r ecisasse ser t r ad u zid o m at e-
m a t ica m e n t e , ser ia co m o u m sist em a de var iáveis m ú lt ip las e
co m p le xa s. No ssa r elação c o m o r e p e r t ó r io da m ú sica clássica
acaba p o r se d ar, q u eir am o s o u n ã o , n esses t e r m o s. O m u n d o
c o n t e m p o r â n e o exige essa p r e d is p o s iç ã o p lu r a l, u m a e xp e -
r iên cia au d it iva r ica e m u t á ve l, in t en sa exat am en t e p or n ão ser
u n ívo ca . O u vi m o s e e sq u e ce m o s, o u vim o s e p e n sa m o s, o u vi-
m o s p ela t elevisão e p elo r á d io , o u vim o s t r ist e s, o u vim o s o cu -
p ad os, o u vim o s se m q u e r e r ...
At u a lm e n t e , a m ú sica clássica, co m o q u alq u er ob ra de ar t e,
se d esafia e m n ó s. El a exige u m o u vin t e qu e seja t a m b é m u m
co cr iad o r . N e ssa e xigê n cia , ela p r e cisa e n co n t r a r in t e r lo cu t o -
r es à alt u r a p ara qu e d esab r och e co m o n o va. Pois som os n ó s ,
h oje m a is qu e n u n c a , qu e a fazem os gr an d e.

Sugestões de leitura

Al é m d o in d is p e n s á ve l Laranja m ecânica (São P a u lo : Al e p h ,


20 0 4 ) , d e An t h o n y Bu r ge s s , o le it o r p o d e r á le r A Nona sinfo-
nia: A obra-prim a de Beethoven e o m undo na época de sua cria-
ção ( Ri o d e Ja n e ir o : Jo s é O l y m p i o , 2017), d e H a r ve y Sa c h s .
Sã o d u as fo n t e s, u m a lit er ár ia ficcional, o u t r a m u s ic o ló gic a ,
qu e p e r m it ir ã o ao le it o r e n t e n d e r a p o t ê n cia avassalad ora d e
u m a gran d e ob r a d e ar t e. O u t r o livr o qu e m e aju d ou a p en sar
m ú sica "fo r a d a c a i xi n h a " foi The Danger of Music and Other
Anti-Utopian Essays ( Be r k e le y: U n i ve r s i t y o f Ca lifó r n ia P r e ss,
20 0 8 ) , d e Ri c h a r d T a r u s k i n : c o n t r o ve r s o , m as se m p r e p e r t i-
n e n t e e e st im u la n t e .

45
4-
O ouvin t e elegante: Sobre a
etiqueta das salas de con cert o

Co n vi ve m o s c o m r egr as q u an d o ch ega m o s a q u alq u er lu gar ,


at é m e s m o e m n o ssa ca sa , q u e r m o r e m o s c o m n o sso s p a is,
q u e r t e n h a m o s m u d a d o p ar a u m a casa p r ó p r ia . E seja n o a l-
m o ç o c o m am igo s, seja e m le it u r a s de b ib lio t e ca , e m algu m a
m e d id a s e m p r e a d e q u a m o s n o sso c o m p o r t a m e n t o ao a m -
b ien t e e às p essoas qu e ali e st ã o . A isso p o d e m o s ch a m a r "d e-
co r o ". Alg u n s p o d e m su sp eit ar t r at ar -se d e t e r m o o u p r át ica
an acr ó n ica, e p ara est es su gir o a e xp e r iê n cia e m co n t r ár io : e m
u m a lm o ço n a casa d e seu s so gr o s, p asse t od o o t em p o calad o
n o ca n t o , c o m seu m a is n o vo e e st im u la n t e livr o . A r esp o st a
ap ar ecer á p r o n t a m e n t e , e da m a n e ir a m ais co n cr e t a p o ssíve l...
A co isa é at é ce r t o p o n t o c o r r i q u e i r a , t a n t o q u e m e s m o
os su r fist as, sem p r e d e sco n t r a íd o s e, a se u m o d o , a u t ê n t ico s
b o n s viva n t s , t ê m u m a p alavr a p ar a ca r a ct e r iz a r o su jeit o so-
cialm en t e in ad equ ad o: haole (o " h " soa co m o u m " r " asp irad o).
O r igin á r ia d o H a va í, a gír ia d iz d e p esso as q u e vê m d e fo r a ,
n ão p o ssu e m a d est r eza n e ce ssá r ia p ara su rfar e são est r an h as
ao c ó d igo e sp e cífico d a p r a ia — a t r o p e la m q u e m t e m p r efe-
r ên cia n a o n d a , p o r e xe m p lo , o u falam alt o n o m a r , e m p o r ca -
lh a m a ar eia e t c.
O fato é q u e é p o ssíve l ser haole e m m u it o s lu gar es, in c lu -
sive n u m a sala de co n ce r t o . Por sor t e, as regras d esses e sp a ço s
n ã o são fisicamente e xige n t e s n e m t ão e st r it a s e co m p le xa s
qu an t o as da p raia d e W a im e a . Mu t a t is m u t a n d is, o coeficien t e
d e a d e q u a çã o e xigid o d e a lgu é m q u e va i a u m c o n c e r t o d e

46
m ú sica clássica é m ais o u m e n o s o m e sm o d aqu ele q u e se es-
p e r a r ia de a lgu é m q u e , n os an os 1960, d ecid isse ir ao fest ival
de W o o d s t o c k , o u , p ara ficar e m r efer ên cias m ais p r ó xim a s , a
u m b aile fu n k d o Rio d e Jan eir o .
Isso n ão q u e r d iz e r q u e as r egr as, e m cad a u m d esses a m -
b ie n t e s , se ja m as m e s m a s . Ao m e r e fe r ir a W o o d s t o c k , n ã o
e st o u su ge r in d o qu e o o u vin t e , q u an d o for a u m e sp e t á cu lo
clá ssico , b esu n t e-se d e la m a d a ca b e ça aos p é s , o u p r ove u m
co q u e t e l d e d rogas ilícit as. Se evoco u m b aile fu n k , n e m p o r
isso cr e io ser d e b o m t o m u sa r b o n é s e co lar es d e co r r e n t e s
gr ossas n a sala d e co n ce r t o s. Lá t a m b é m est ão p r e vist a s algu -
m a s "r e g r a s " e sp e cífica s, d e co m p o r t a m e n t o e n o m o d o d e
se ve st ir .
C o m o sabe q u a lq u e r c o n s u lt o r d e e t iq u e t a , o c ó d igo d e
c o m p o r t a m e n t o é , an t es d e t u d o , u m có d igo d e a d e q u a çã o .
N ã o e xist e e st a r b e m o u m a l ve s t id o , se r b e m o u m a l c o m -
p o r t ad o , e m t e r m o s ab solu t os; a p essoa se p õ e b e m o u m a l d e
acor d o c o m as e xigê n cia s d e d e t e r m in a d a sit u ação .
Ra r a m e n t e p r e cisa m o s o b e d e ce r a u m dress code, c o m r e -
gras e xp lícit a s d e ve st u á r io . E n a t u r a l q u e se ve st ir p ara o d ia
"e xi j a " r o u p as d ifer en t es d a n o it e , u m e n co n t r o in fo r m a l e n -
t r e am igos "e xi ja " rou p as d ifer en t es d e u m a e n t r e vist a de e m -
p r ego. N o Ri o d e Ja n e ir o , co m o o le it o r h á d e r e co n h e ce r , é
c o m u m ca m in h a r - se p elas r u a s d a Zo n a Su l c o m r o u p as d e
b an h o à vist a ; e m Sã o Pa u lo , in co m o d a a m i m , ca r io ca , ve r a l-
g u é m n e sse s t r a je s d e sce n d o n o e le va d o r e m d ir e ç ã o à p is-
cin a . Algo se m e lh a n t e o co r r e c o m o su jeit o q u e va i à p r aia d e
t e r n o e gr avat a, m e sm o q u e o t e r n o e a gr avat a, le gít im o s Ar -
m a n i , sejam m u it o b e m cor t ad os. O haole est á ab ert o ao co n s-
t r a n gim e n t o in vo lu n t ár io t a m b é m n os a m b ie n t e s m u sic a is, e
isso in c lu i a sala de co n ce r t o .
Ce r t a ve z , c o m am igos d a o r q u e st r a , fu i a u m en saio d e es-
co la d e sam b a n o Rio d e Jan eir o . Fo m o s m u it o b e m r eceb id os

47
p elos ar t ist as d a b at er ia e algu n s d os n ossos p e r cu ssio n ist a s
ch e ga r a m a t ocar c o m eles. Por m a is qu e e st ivé sse m o s co m o
r ep r esen t an t es da O r q u e st r a Sin fón ica do Est a d o de São Pau lo ,
n ã o h a via q u a lq u e r m o t ivo p ar a ve s t ir m o s fr aq u e e, le m b r o
b e m , n ã o s e m ach ar u m p o u co d e gr a ça , q u e algu n s t u r ist a s
est avam n it id a m e n t e vest id os d em ais p ara o calor e, p or a ssim
d iz e r , p ar a a d isp o n ib ilid a d e física q u e a o ca siã o e xigia . Su a -
va m co m o cab r it o s. E m r e su m o : n ossos p e r cu ssio n ist a s est a-
va m b em -vest id o s d e b e r m u d a , en q u an t o os gr in gos est avam
in a p r o p r ia d o s, ap esar d e seu s sap at os d e c o u r o , d e su as ca l-
ças jean s e cam isas so cia is. N ã o p r e ciso d iz e r q u e m , n aq u ela
sit u a çã o , er a haole.
Le m b r o a in d a de o u t r a o p o r t u n id ad e q u a n d o , ao vo lt a r d e
u m a via ge m p ela ín d ia , p a r e i algu n s d ias n a It ália. D e c i d i v i -
sit ar u m p rofessor e m Pa le r m o . El e , u m m a e st r o , er a e n t ã o o
d ir e t o r d o Te a t r o M a s s i m o , fam oso co m o ce n á r io de algu m as
cen as d o film e O poderoso chefão III. Co n s id e r e i u sar algu m as
das elegan t es rou p as or ien t ais qu e t an t o m e h a via m im p r essio -
n ad o (sen d o as m u lh e r e s e os r ap azes in d ia n o s n o t o r ia m e n t e
b elíssim o s). Ve st i m e u m e lh o r e r e cé m - co m p r a d o pijam a, u m a
e sp é cie d e b at a t íp ica in d ia n a , e ca lce i as m u it o co n fo r t á veis
san d álias d e co u r o . N ã o fu i p r o ib id o de e n t r a r n o t eat ro h ist ó -
r ic o , lon ge d isso , co n t u d o p e r ce b i est ar m a is b e m -ve st id o —
em b o r a m u it o m e n o s con for t ável — d ois d ias d ep ois, q u an d o
vo lt e i ao t eat r o u san d o u m t e r n o . D a segu n d a ve z , ao m e n o s ,
as p essoas n ã o p ar avam a co n ve r sa c o m olh ar es de p â n ico ao
m e ve r p assar ; n a p r im e ir a ve z , e u , o b r a sile ir o d e pijam a n o
Tea t r o M a s s im o d e P a le r m o , er a o haole.

Afora essas exp er iên cias, por assim d izer , ext rem as (u m a esp écie
de p esq u isa t r a n scu lt u r a l ap licad a de rara p e r t in ê n cia ) , m u it a s
d e n ossas regras de et iq u et a n as salas de co n ce r t o d iz e m r es-
p eit o a u m b o m sen so r azoável, p or e xe m p lo , a r e co m e n d a çã o

48
q u ase sem p r e im p lícit a d e n ão se ir a ó p e r a e co n ce r t o s c o m
r ou p as d e b a n h o , o u de b e r m u d a e ca m ise t a . Se n ão fosse p or
m ais n ad a, o ar -con d icion ad o p od er ia d e ixa r o o u vin t e grip ad o.
Ai n d a e xis t e m , n o e n t a n t o , algu n s even t o s clá ssico s qu e t ê m
e xigê n c ia s e st r it a s q u an t o ao dress code. Sã o r a r íssim o s e ge-
r a lm e n t e m u it o e xp lícit o s q u an t o a essa d e m a n d a . A cad a a n o ,
p a r e ce m m ais a n a cr ó n ico s.
O im p o r t a n t e é n o t ar q u e o p r in cíp io geral p ara o com p or -
t a m en t o e m salas d e co n ce r t o é sim p le s e visa p e r m it ir qu e os
o u t r o s o u ça m a m ú sica s e m ser in co m o d a d o s. N a m a io r ia ab-
so lu t a d as ve z e s , in s t r u m e n t o s e vo z e s n ão são a m p lifica d o s,
e co m o lid a m o s c o m u m a m ú sica r ica e m d et a lh es, c o m p as-
sagen s m u it o su a ve s, d evem o s d e ixa r e m p az os m e m b r o s da
p lat eia qu e q u e r e m o u vir t u d o . A r o u p a p ou co in t er fer e n o as-
su n t o . Fa lei m u it o da ve st im e n t a p o r ser p o t e n cia lm e n t e u m
assu n t o e sp in h o so , já q u e o p ú b lico m u it a s vez e s é r eceb id o
p or u m a o r q u est r a de fraqu e. Isso é a ssim d evid o a u m an t igo
p r o t o co lo , segu n d o o q u a l o an fit rião d eve est ar t ão b em -ves-
t id o q u an t o o m a is b em -vest id o de seu s co n vid a d o s. D a í, t al-
ve z , t e r m o s t id o , n o Rio d e Jan eir o d a d écad a 1950, sen h or as
q u e, m e sm o sob u m calor de 4 0 °C , ve st ia m seu m e lh o r casaco
de p ele! Por so r t e , n o m u n d o t o d o , foi h á m u it o ab olid a a co n -
ve n ç ã o d o u so d o fraqu e e d e m a is t r ajes lu xu o so s. Po d e m o s
d iz e r q u e a r ou p a d a o r q u est r a, h o je, é m e r o figurino d e ép o ca.
N o Br a s il, b e m co m o n os p aíses d a Eu r o p a e n o s Est a d o s
U n i d o s , já se p o d e fr e q u e n t a r as salas d e c o n c e r t o e os t ea-
t r o s d e ó p e r a c o m r o u p a s b ast an t e in fo r m a is. O p ú b lico ge-
r a lm e n t e at en d e ao p a d r ã o d e r o u p a "c a s u a l", c o m algu m as
in st it u içõ e s d iz e n d o e xp lic it a m e n t e q u e o e sp e ct a d o r d eve
u sar aq u ilo q u e o d e ixa co n fo r t ável. As s i m , p ara e n cu r t a r u m a
co n ve r sa já m u it o lo n ga , su gir o a t od o n e ó fit o , s e m t it u b e a r ,
u m t raje sim p le s e eficien t e, n ão m u it o d ifer en t e d aqu ele q u e
se u sa n u m a id a ao c in e m a , on d e t a m b é m h á ap ar elh os d e ar

49
c o n d ic io n a d o : sap at os o u t é n is, calça c o m p r i d a e c a m is a p a r a
o s h o m e n s ; sap at os co n fo r t á ve is, ve st id o e saias n a a lt u r a d o
jo e lh o , o u calças e b lu sa s, p ara as m u lh e r e s. A e le gâ n cia , a par-
t ir d esses d e n o m in a d o r e s c o m u n s , fica ao gost o do fr e gu ê s.
Ch a p é u s e b o n é s sã o r e m o vid o s n o in ício d a a p r e se n t a -
ç ã o , p o is a t r a p a lh a m a visã o q u e os vi z i n h o s d e assen t o t ê m
d o p a lco . Evi t a m - s e os casacos o u jó ia s e xu b e r a n t e s ; se es-
sas fo r e m in d isp e n sá ve is, p ed e-se q u e n ão as fiq u em ch aco a-
lh a n d o , e t a m p o u co u sem -n as p ara m a r ca r o r it m o da m ú sica ,
co m o fazia, e m ou t r os t e m p o s, n os t eat r os d o Ri o de Ja n e ir o ,
d a p la t e ia , u m a fam osa p e r cu ssio n ist a d e jó ia s. E , m u it o i m -
p o r t a n t e , e vit a r sap at os n ovos q u e a p e r t e m . N a p r im e ir a ve z
e m qu e a ssist i a Parsifal, e u calçava sapat os n ovos; o p é d ir eit o
esm igalh ava-m e algu n s d ed o s, o esq u er d o fazia o m e s m o ao
p eit o d o p é . At é h o je , o u vin d o algu n s acor d es d a ó p e r a wa g-
n e r ia n a , t e n h o reflexos p sico ló gico s qu e m e fazem d oer algu -
m as falan ges...
O cu id a d o e m u sa r a r o u p a a p r o p r ia d a n ã o e vit a r á sit u a -
ç õ e s in co n ve n ie n t e s. Re c e n t e m e n t e , d an d o au las n a Sala Sã o
Pau lo , u m a lu n o m e r e p r e e n d e u p o r n ão est ar d e t e r n o e gra-
vat a. So r r i e m silê n cio . A p ar t e o fato de sab er, e m 35 an os de
vid a m u sica l n o Br a s il, q u e o figurino su ger id o jam ais foi u m
p rot ocolo ( e m p ou cos p aíses da Eu r o p a ain d a p od e ser, at é p or
n ecessid a d es p r e cíp u a s d e ab rigo co n t r a t e m p e r a t u r a s m a is
b a ixa s) , n essas h o r a s é p r e ciso a m ín im a a u t o e st im a e r e co -
n h e ce r q u e t ais p r o je çõ e s p or p ar t e d os o u t r o s são in c o n t r o -
láveis. O s even t o s d e m ú sica clá ssica n ão são feit os p ar a m e -
xe r ico s e b ob agen s d esse t ip o , e, e n t r e os p r ed icad os p ar a se
ju lgar e a p r e cia r b oa m ú s ic a , agrad ar às e xp e ct a t iva s d os o u -
t r os q u an t o ao figurino n ão é u m it e m r azo ável. N ã o p r e cise i
ser an t ip át ico p ara ign o r ar so le n e m e n t e a e xigê n cia d o a lu n o ,
se m q u alq u er co n st r a n gim e n t o .

50
Co m o já foi d it o , o gest o de co r t esia e sse n cia l é sim p le sm e n t e
ficar e m silê n cio en q u an t o a m ú sica est á sen d o execu t ad a. O s
o u vin t e s e xp e r ie n t e s e vit a m co n ve r sa s, t e n t a m s u p r im ir t os-
ses e esp ir r o s at é algu m a p assagem m ais r u id o sa , ou os abafam
c o m le n ço s. E p o r isso , n ã o p o r o u t r a co isa , q u e d isp o sit ivo s
e le t r ô n ico s são d esligad os e o p ú b lico é acon selh ad o a ch egar
e se n t a r a n t e s d e a m ú s ic a c o m e ç a r , c o m os at r asad os esp e-
r an d o o in t e r va lo p ara t o m a r e m seu s lu gar es.
M a s h á q u e st õ e s de co m p o r t a m e n t o qu e são t a m b é m m u i -
t íssim o r e le va n t e s, p ela r e in cid ê n cia e a b r a n gên cia. Co s t u m a -
-se d iz e r que a art e de d esagrad ar a t od os é falar a ver d a d e, p ois
b e m , aq u i va i: n o Br a s il, e sq u e ce m o s co m o ap lau d ir .
N ã o m e r e fir o , é c la r o , à h a b ilid a d e m o t o r a d e b a t e r as
p a lm a s das m ã o s u m a c o n t r a a o u t r a e t ir a r d elas a lgu m s o m ,
m a s ao fato d e t e r m o s p e r d id o os asp ect o s sign ifica n t e s d o
a p la u so . Aq u i , a p la u d im o s a t u d o e a t o d o s i n d i s c r i m i n a d a -
m e n t e , e d e p é . N a s salas d e c o n c e r t o , b a st a a ca b a r o ú l-
t im o co m p a sso d e d e t e r m in a d a m ú s ic a , q u a lq u e r m ú s ic a , e
é c o m o se a c a d e ir a fe r ve sse o u o c a n s a ç o d a m u s c u l a t u r a
glú t e a e xigisse d as p e r n a s q u e se e st ica sse m . To d a a p la t eia
p r o n t a m e n t e se le va n t a e m o va ç õ e s . Pa r a o m ú s i c o , q u e se
d iga d e u m a ve z p o r t o d a s, h á algo d e p r o fu n d a m e n t e in c ó -
m o d o n is s o . P a r a u sa r u m a p o b r e a n a lo gia c o m os a p lica t i-
vo s d e t r a n sp o r t e , esse ap lau so a u t o m á t ico é co m o p o n t u a r o
m o t o r is t a , q u a lq u e r q u e seja o e sfo r ço o u a q u alid ad e d e se u
s e r vi ç o , c o m c in c o e st r e la s.
Ao o vacio n ar d e p é e in d is c r im in a d a m e n t e , o p ú b lico d es-
faz a d ist in çã o e n t r e "vi a g e n s " m e lh o r e s e p io r e s, e n t r e co n -
ce r t o s e m qu e a o r q u est r a t r a n sce n d e u seu s lim it e s e aq u eles
e m q u e ap en as e n t r e go u o feijão c o m a r r o z . U m a o r q u e st r a
e os a r t ist a s n o p alco sa b e m q u a n d o e st ã o t o ca n d o i n c r i ve l-
m e n t e b e m , o u r a z o a ve lm e n t e m a l , e ve r e m seu s m e lh o r e s
e sfo r ço s r e co n h e cid o s p elo p ú b lico é , a lém d e u m a sat isfação

5i
e xt r a o r d in á r ia , a m a is t r a n sce n d e n t e for m a d e c o m u n ic a ç ã o
h u m an a que con h eço.
En t ã o , t e n h o a h o n r a d e r e gist r a r , at é o n d e se i p e la p r i -
m e ir a ve z n a b ib liogr afia e m p o r t u gu ê s , as r egr as in t e r n a cio -
n ais d o ap lau so e m salas d e co n ce r t o .
Re fle t in d o u m a o r d e m cr e sce n t e d e sa t isfa çã o , sã o elas:
ap lau sos sen t ad os e p a r co s, ap lau sos sen t ad os e e n t u sia sm a -
d o s, ap lau sos d e p é . Al é m d isso , o e n t u sia sm o d a p la t eia se
m e d e t a m b é m p ela q u an t id ad e d e ap lau sos p o r m in u t o , a lé m ,
é cla r o , da for ça das p a lm a s. Sim p le s ? Si m . E m m u it o s lu ga-
r es d o H e m is fé r io N o r t e u sa-se a in d a u m a q u a r t a gr a d a ç ã o ,
ao ju n t a r às p a lm a s o b a t e r de p é s n o c h ã o , sin a l d e ap r o va-
ção ab solu t a.
O u t r a in for m ação im p o r t an t e: h á algu m t e m p o , cost u m ava-
-se ap lau d ir m aest r o s e solist as aco m p an h an d o -o s at é q u e d ei-
xa sse m o p a lco , e d ep ois co n t in u a r a p la u d in d o , ch am an d o-os
d e vo lt a ao p alco . Es s e ch am ad o er a sin a l de e n t u sia sm o r eit e-
rad o p or p ar t e d o p ú b lico , e o a r t ist a n ão t o r n ava a su r gir p ara
d ar u m b is , ap en as p ar a agr ad ecer à gen er o sid ad e d a p lat eia.
Ge r a lm e n t e er a n o segu n d o o u t e r ce ir o r et o r n o q u e o p ú b lico
in icia va su a r e ivin d ica çã o , n egocian d o o b is. E er a n o r m a l ele
n ã o ser d ad o.
N o se n t id o c o n t r á r i o , i n t e r r o m p e r os a p la u so s c o m os
a r t ist a s a in d a vis íve is , c a m in h a n d o p elo p alco e m d ir e çã o à
c o xia , é u m sin a l d e d e s â n im o , e e m o u t r o s t e m p o s p o d e r ia
facilm en t e ser en t en d id o — p elo p ú b lico , cr ít ico s e ar t ist as —
co m o u m a a p r o va çã o b u r o cr á t ica , d esin t er essad a, qu ase u m a
d e sa p r o va çã o . E m t e r m o s d e sim b o lism o , an t eced ia a va ia .
U m e xe m p lo h is t ó r ic o é o d a e st r e ia d a Terceira sinfonia
de Be e t h o ve n , ch am ad a Eroica ( a ssim m e s m o , e m it alian o). A
obra r ep r esen t o u u m a evid en t e qu eb ra co m a t r ad ição, m e sm o
p ar a aq u eles q u e c o n h e c ia m o co m p o sit o r d e su as p r im e ir a s
sin fo n ia s e d e o u t r a s p e ç a s . A p r ó p r ia d im e n s ã o d a Terceira

52
sinfonia er a h e t e r o d o xa , c o m ce r ca d e d u as ve z e s a d u r a çã o
d e u m a sin fo n ia "n o r m a l ". Q u a n d o a ob r a e st r e o u e m Vi e n a ,
n o d ia 7 d e a b r il d e 1805, u m co r r e sp o n d e n t e d o jo r n a l ale-
m ã o Der Freym úthige r e s e n h o u as i m p r e s s õ e s ger ais e a r e s-
p ost a d o p ú b lico :

Alg u n s , e sp e cia lm e n t e am igos p a r t icu la r e s d e Be e t h o ve n ,


assever am q u e est a sin fon ia é su a o b r a-p r im a, qu e ela é que
p e r m it e vis lu m b r a r o ve r d a d e ir o est ilo da m ú sic a d e alt o
n íve l, e q u e se p or ora n ão agrad a, é p or q u e o p ú b lico n ão
est á cu lt iva d o o b ast an t e, a r t ist ica m e n t e , p ar a co m p r e e n -
d er t od as as su as b elezas. Ap ó s algu m as cen t en a s de a n o s,
ela n ão p a ssa r á d esp er ceb id a. O u t r a facção n ega h aver n a
ob ra q u alq u er va lo r ar t íst ico e ju st ifica-se ve n d o n ela u m a
lu t a in d o m á ve l p ela sin gu la r id a d e , q u e falh a e m a lca n ça r ,
n o e n t a n t o , e m q u alq u er m o m e n t o , b eleza o u ve r d a d e ir a
su b lim id a d e e força. [...] Te m e -se n o en t an t o q u e , se Bee-
t h o ve n co n t in u a r e m se u ca m in h o at u al, am b o s, ele e o p ú -
b lico , sofrerão. Su a m ú sica pod e e m breve alcan çar o p on t o
on d e n in gu é m e n co n t r a p r azer , a n ão ser aq u eles b e m t r e i-
n ad os n as regras e d ificu ld ad es da ar t e; os d em ais sairão da
sala de co n ce r t o c o m u m se n t im e n t o d e sa gr a d á ve l de can -
sa ço , a p ó s t e r e m sid o at rop elad os p or u m a m assa de id eias
d e sco n e xa s e p r o lixa s , e p e lo t u m u l t o c o n t ín u o d os in s -
t r u m e n t o s. O p ú b lico e o sr. Be e t h o ve n , q u e d ir igiu a p er-
fo r m a n ce , n ã o ficaram sat isfeit os u m c o m o o u t r o n e st a
t ar d e; a p lat eia ju lgo u a sin fon ia m u it o p esad a, m u it o lon ga,
e o co m p o sit o r m u it o d e sco r t ê s, p o r n ão h aver agr ad ecid o
c o m a ca b e ça os ap lau sos q u e vi n h a m d e p ar t e d o t e a t r o .
Ao co n t r á r io , Be e t h o ve n co n sid e r o u q u e os ap lau sos n ã o
foram in t e n so s o su ficie n t e .

53
Si m , h á co m o d esap rovar u m co n ce r t o . Em b o r a t en h am o s per-
d id o esse h á b it o n as salas d e m ú s ic a b r a sile ir a s, h á p elo m e -
n os q u at ro m od os ed u cad os de exp r essa r n o ssa d e sa p r o va çã o
(e n ão é t o ssin d o en t r e os m o vim e n t o s) . Sã o eles, e m o r d e m
cr e sce n t e de in sat isfação: i ) sair da sala de co n ce r t o s e m silên -
c io , n o m e io o u ao fim d a p e r fo r m a n ce , 2) sair da sala d e co n -
cer t o s fazen d o a lgu m t ip o de b a r u lh o ao final, 3) vaiar .
São t od os m é t o d o s civiliz a d o s. A vaia d eve exp r essar a exas-
p er ação m á xim a , ab solu t am en t e ju st ificad a, de u m su jeit o q u e,
in sat isfeit o, d elib er ad am en t e r esist e at é o fim da obra o u esp e-
t ácu lo exat am en t e p ar a exp r essa r su a d e sa p r o va çã o . E o m a is
alt o gr au d e civiliz a çã o p o ssíve l n o u n ive r s o a r t íst ico , e e m
n ossos d ias algo ab solu t am en t e d e se já ve l, já qu e n ão en vo lve
r et aliação co r p o r a l o u xin ga m e n t o s. Si m , m a is u m a ve z , viva
a vaia!
A b e m d a ve r d a d e , sã o p a r co s os r e gist r o s h ist ó r ico s d e
vaias e m salas d e co n ce r t o . Peças cu ja p r im e ir a au d ição su sci-
t a r a m d e sco n fia n ça , co m o algu m as obras de Be e t h o ve n o u os
co n ce r t o s e as sin fo n ias d e Tc h a ik o vs k y, são cr it ica d a s d u r a -
m e n t e p o r a m igo s, e m jo r n a is e r evist as esp ecia liz a d a s, m as
r a r a m e n t e p elo p ú b lic o , q u e , p elo m u n d o afora, p ar ece p r e -
fer ir o a m b ien t e cam ar ad a e ed u cad o da r e ce p çã o c o m ap lau -
sos p a r cim o n io so s.
D is s e qu e h á qu at ro m od os e cit e i t r ê s. Pois ao lad o da vaia
h á o assob io. Cu r io s a m e n t e , o m e sm o assobio q u e , e m sh o ws
d e r o ck , eq u ivale a u m sin a l de a p r o va çã o , n o m e io da m ú sica
clássica sign ifica o op ost o. N a It ália, o assob io é a e xp r e s s ã o
d o co m p le t o "fia sco " (p alavr a cu jas r aízes e t im o ló gica s ap ro-
xi m a m - n a m u i t o d o q u e s e r ia , n a lín gu a d e D a n t e , u m "a s-
s o b i a ç o ") , s u c e d â n e o o b je t ivo d a va ia . As s i m , ele acab a p o r
o ca sio n a r algu n s e m b a r a ç o s n as salas d e co n ce r t o s d o r est o
d o m u n d o , so b r e t u d o c o m so list a s e ca n t o r e s it a lia n o s , e
ain d a m a is n o m u n d o da ó p er a. E u aco n selh ar ia ao le it o r qu e

54
evit asse os assob ios d e m o d o geral co m o gest o d e a p r o va çã o .
Afin a l, lid am o s, p or força m e sm o das cir cu n st â n cia s, co m u m a
socied ad e co sm o p o lit a ...

N ã o foi n o sé cu lo X X q u e in icia m o s os d ebat es sob r e co m p o r -


t a m e n t o d a p la t e ia . M a s n a d é ca d a d e 1920 o p ia n ist a O s s i p
Ga b r ilo w it s c h ch ego u a co m e n t a r , fren t e aos p r ot ocolos cad a
ve z m a is co m p le xo s q u e c o m e ç a va m a t o m a r co n t a das salas
de co n cer t o a le m ã s, su a p r efer ên cia p elos "p a íse s d o su l d a E u -
r o p a , on d e os esp ect ad or es gr it a m q u an d o ficam sat isfeit os e,
q u an d o n ão fica m , assob iam e jogam b at at as". E ele c o n c lu iu
c o m u m a frase q u e e u ad or ar ia p e n d u r a r n as b ilh e t e r ia s d e t o-
das as salas d e m ú sica d o p aís: " E u m er r o vo cê p en sar qu e fez
su a p ar t e ap en as co m p r a n d o os b ilh e t e s".
A r e c e p ç ã o d o p ú b lic o m u d a d ive r sa s ob r as e so b r e isso
h á casos im p r e ssio n a n t e s n a h ist ó r ia . A m a n ife st a çã o d a va ia ,
e s p o n t â n e a e ge n e r o s a , t e m ao m e n o s u m ca so n o t ó r i o , o
d a e st r e ia d a Sagração da prim avera, d e Igo r St r a ví n s k i , es-
c â n d a lo so b r e o q u a l já se e s c r e ve u u m a la r ga b ib lio gr a fia .
Cu r i o s a m e n t e , co m o c o m e n t a o m u s ic ó lo go Va n d e n T o o r n ,
a p e ç a t eve u m a a co lh id a ca lo r o sa q u ase u m an o a p ó s su a es-
t r e ia e m P a r i s , q u a n d o P i e r r e M o n t e u x — o m e s m o m a e s-
t r o q u e h a via r egid o a o r q u e st r a n a fat íd ica n o it e d e e s t r e ia ,
29 d e m a io d e 1913, n a m o n t a g e m q u e in c lu ía a co r e o gr a -
fia d e N i j i n s k i p a r a os Ba lé s Ru s s o s — r e a li z o u , n o d ia 5 d e
a b r il d e 1914, u m a ve r sã o p u r a m e n t e i n s t r u m e n t a l . E m 1914,
e m ve z d e r e ce b e r va ia s, assob ios (d e r e p r o va çã o ) e d esafios
p a r a d u e lo s , o c o m p o s it o r foi o va cio n a d o e ca r r e ga d o p e la
m u lt id ã o d e a d m ir a d o r e s , e m t r iu n fo , d a sala d o Ca s i n o d e
P a r is às r u a s d a cid a d e . "N o s s o p e q u e n o Igo r agor a p r e c is a
d e e sco lt a p o lic ia l e m seu s c o n c e r t o s , co m o u m lu t a d o r p r e -
m ia d o ", gr a c e jo u D iá g u ile v, o c é le b r e e m p r e s á r i o id e a liz a -
d o r d a Sagração, e m u m a ca r t a .

55
H á o u t r o caso, o d a au d ição b e r lin e n se d a Prim eira sinfonia
d e Ma h le r . El a foi ovacion ad a ao fim d e cad a u m d os d ois p r i-
m e ir o s m o vim e n t o s , co n t u d o r e ce b e u p o u co m a is qu e u m s i-
lê n cio ob seq u ioso n os o u t r o s. M a h le r p arece t er m u d ad o a p r ó -
p r ia est r u t u r a da obra ap ós esse in su cesso p ar cial, o que m o st r a
o valor ed u cat ivo (e, p or qu e n ã o , est ét ico) q u e a e xp r e ssã o ade-
qu ad a d o gost o, p o r p ar t e do p ú b lico , t e m p ar a u m jo ve m cr ia -
d or . O m e s m o M a h le r , n o e n t a n t o , an os m a is t a r d e , su ge r iu
q u e o ciclo d e ca n çõ e s Kindertotenlieder fosse execu t ad o s e m
in t e r r u p çã o d a p lat eia e n t r e m o vim e n t o s.

Aq u i ch egam o s à m ais d elicad a q u e st ã o de et iq u et a e m u m es-


p e t á cu lo d e m ú sica clássica: o silê n cio e n t r e m o vim e n t o s. D e
fat o, n ão ap en as e n t r e m o vim e n t o s , m as t a m b é m d u r a n t e as
p assagen s b r i lh a n t e s , o silê n cio é u m e sfo r ço a n t in a t u r a l, e
t a n t o é a s s im q u e t a lve z c o n t in u e o p o n t o m a is in q u ie t a n t e
p ar a o n e ó fit o . Afi n a l, p e n sa ele c o m r a z ã o , se go st ei d o q u e
acab ei d e o u vir , e se o c o m p o sit o r e os in t é r p r e t e s p a r e c e m
p o n t u a r c o m t ais e xcla m a çõ e s est a p assagem o u fim d e "ca p í-
t u lo ", p or q u e n ã o p osso r e sp o n d e r -lh e s, m e xe r -m e u m p o u co ,
e ve n t u a lm e n t e ap lau d ir ?
O p ian ist a e m aest ro D a n ie l Bar en b o im é, en t re os art ist as de
n osso t em p o , t alvez o qu e m ais r eit er ad am en t e p arece in co m o -
dar-se co m os son s da p lat eia en t re os m o vim en t o s. O u d u r an t e.
E m 20 0 8, n a Sala São Pau lo, Ba r e n b o im apresen t ou -se co m su a
or q u est r a, a St aat skap elle Be r lin . Le m b r o de p r esen ciar u m ve-
xa m e : ao t ér m in o do p r im e ir o m o vim e n t o da Sétim a sinfonia de
An t o n Br u ck n e r , as t osses e o ran ger d e cad eiras fizeram o m aes-
t r o vir ar -se p ara a p lat eia e, t ir an d o u m len ço do b olso, p osicio-
n an do-o fren t e à boca, su gerir para que as t osses fossem abafadas.
As lições d e ed u cação b ásica segu ir am os su ssu r r o s do p ú b lico
e os risos con t id os da or q u est r a, que d em o n st r ar am o con st r an -
gim en t o evid en t e e gen er alizad o. N o in t er valo segu in t e en t r e

56
m o vim e n t o s, o am b ien t e t in h a m en os da co n cen t r ação que leva
n at u r alm en t e ao silên cio do que u m a cer t a t en são obsequ iosa.
O p ú b lic o n ã o t in h a c o m o sab er , m a s n a d a a li e r a id io s -
sin cr a sia b r a sile ir a . H á r elat o s d e co n ce r t o s e m N o va Yo r k e
Bu e n o s Ai r e s e m q u e Ba r e n b o i m , e n t r e os m o vim e n t o s d as
p e ça s sen d o execu t ad as, d e m o n st r o u ao p ú b lico id ê n t ica ir r i-
t ação c o m as t osses e o r an ger de ca d eir a . N a biografia d o p ia-
n ist a Ar t h u r Ru b in st e in , u m a fam osa p assagem su gere q u e, p or
vo lt a d os an os 1960, ele já d e m o n st r a va u m p ou co m a is d e h u -
m o r p ar a lid a r c o m t ais sit u a çõ e s, a p o n t o d e d iz e r : "Pesso a s
de t od o m u n d o , q u an d o t ê m p r o b lem as n as vias r e sp ir a t ó r ia s,
c o s t u m a m b u sca r o o t o r r in o la r in go lo gist a ; a q u i e m T e l Avi v,
elas vê m ao m e u co n ce r t o ".

Q u a n t o à et iq u et a das salas d e co n ce r t o , p ara ser sin ce r o , ape-


n as u m a co isa d e fato m e e n e r va . E o su jeit o q u e, co n h e ce n d o
o r e p e r t ó r io , sen t e-se n a o b r iga çã o d e m o st r a r ao r est o do p ú -
b lico o qu an t o ele con h ece. Aco n t e ce e m t odo lu gar, e é n ot ável
so b r et u d o e m ob ras co m o a Sexta sinfonia d e Tc h a ik o vs k y o u
a Nona sinfonia d e Gu s t a v Ma h le r . Ela s t ê m e m c o m u m o fato
d e s e r e m p e ç a s cu jo s finais a lca n ça m as alt u r as d o ê xt a se r o -
m â n t ico , u m a m ú sica p en sad a n ão p ar a t e r m in a r , m as s i m d e-
sin t egr ar -se e m acord es su a ve s, q u e p a r e ce m q u e r e r qu e o p ú -
b lico se eleve ao in fin it o . O silê n cio a p ó s a e xe cu çã o é a ú n ica
ch a n ce d e d e ixa r e m e r gir a d im e n s ã o m et afísica d e u m a m ú -
sica cu ja ar q u it et u r a e son or id ad es são m u it o ap r op r iad am en t e
ch am ad as p o r ve z e s de "c ó s m ic a s ".
Ge r a lm e n t e é n esse m o m e n t o d e a r r e b a t a m e n t o co le t ivo
q u e a lgu é m faz q u e st ã o d e m o st r a r qu e co n h e ce o r e p e r t ó r io .
E ele u r r a . "M a r a vilh a !", "Br a vo !", "Se n sa cio n a l!", o u ou t r o elo-
gio qu alqu er, vin d o de algu m cam ar ot e, é escan d alosam en t e gr i-
t ad o an t es q u e q u alq u er u m d e n ó s, in clu in d o a o r q u e st r a , t e-
n h a t id o a ch an ce d e r et o r n ar ao cor p o.

57
Ta is a r r o u b o s e q u iva le m , n as salas d e c o n c e r t o , aos gr i-
t os de gu e r r a das t r ib o s b á r b a r a s ao in va d ir e m as ald eias d o
I m p é r io Ro m a n o . N ã o h á vio lê n c ia m a io r p o r p ar t e d e u m
esp ect ad or qu e se valer d esse m o m e n t o ú n ico , n o qu al o co m -
p osit or e os in t é r p r e t e s n o p alco p a r e ce m in t e r r o m p e r o p as-
sar do t e m p o , p ar a se e xib ir . Ao final d e u m a gr an d e p erfor-
m a n c e , t a is e xce sso s d e e n t u s ia s m o p o d e r ia m m u it o b e m
r eceb er m u lt a s, sa n çõ e s c r im in a is e cíve is, d e m o d o a im p e -
d ir qu e seu s au t o r es, n o fu t u r o , u su fr u a m d o d ir e it o d e o u vir
Tch a ik o vsk y, M a h le r o u Br u c k n e r e m p ú b lico , ap en an d o-os
ain d a c o m u m r egim e de r e e d u ca çã o , p ara qu e en t en d a m qu e
n ão im p o r t a n ad a se são m ais "e sp e r t o s" qu e t od os os o u t r o s.
As s i m , n ão m e p r eocu p o c o m aplau sos en t r e m o vim e n t o s.
D e fat o, co m o ve r e m o s m a is t ar d e, t rat a-se de algo m ais co m -
p lexo e cu jo ar t ificialism o p r e cisa ser d evid am en t e co n t e xt u a -
lizad o e m su as r aízes h ist ó r icas. Cu id a r e m o s d o assu n t o c o m
a t e n çã o e u m p ou co m a is de cu id ad o e m o u t r o ca p ít u lo . Por
o r a , q u an t o ao t e m a d a b oa e d u c a ç ã o , su gir o ap en as p a ciê n -
cia c o m os n eó fit o s. El e s , q u an d o a p la u d e m , est ão ap en as a
d ar u m a resp ost a esp o n t ân ea ao qu e o u vir a m , e isso, t al co m o
o so r r iso d e u m a cr ia n ça , é b elo. Se o o u vin t e é p ar t e d o p ú -
b lico m a is e xige n t e , d eve t en t a r ab st er -se, t alvez r e sp o n d e r
ao viz in h o d e cad eir a c o m u m o lh ar gen er oso e in e xp r e ssivo ,
t alvez c o m u m largo e sile n cio so so r r iso d e a ce it a çã o . E , afi-
n a l, n ã o d e ve r ia in co m o d a r t an t o a ssim o m e r o e n t u sia sm o
de o u t r a p essoa.
M i n h a e xp e r iê n c ia d iz qu e t ais ap lau so s, q u an d o n ã o r e -
ver b er ad os p elo rest o d o p ú b lico , t e n d e m a ser n a t u r a lm e n t e
r eco lh id o s. O im p o r t a n t e é qu e n u n c a , ja m a is, com et a-se a i n -
d elicad eza de su ger ir à pessoa que est á a p ar t ilh ar con osco t ais
alt u r as qu e se cale. Ta n t o p io r se a su ge st ã o se d á m ed ia n t e o
in d efect ível "P s h h h h !!!!", u m b ar u lh o qu e se faz p ara esp an t ar
ca ch o r r o s, m as n ão se d ir ige a o u t r o o u vin t e civiliz a d o . Ao s

58
e sp ír it o s s e n s íve is , se o q u e ap lau d e é t alvez e sp o n t â n e o d e-
m a is , o su jeit o qu e faz "P s h h h h !!!" é p e r n ó st ic o , t alvez ir r it a -
d iço e in fe liz . El e p od e at é n ão se in co m o d a r e m p ar ecer sê -lo ,
m as d eve sab er q u e, e xigin d o d esse m o d o o silê n cio d o o u t r o ,
in co m o d a m u it o m a is qu e o n eófit o.

Sugestões de leitura

Re gr a s d e e t iq u e t a e m m ú s ic a clá ssica são s e m p r e a ssu n t o


co n t r o ve r so , e a t r ad ição o r al é m ais im p o r t a n t e qu e q u alq u er
co m p ê n d io . O assu n t o é t an gen cialm en t e abordado e m cart as
d e gran d es a r t ist a s, livr o s b ib liogr áficos e ou t r as fon t es p r im á-
r ia s. Ne sse se n t id o , u m a b oa an t ologia de d o cu m e n t o s h ist ó -
r i c o s , c o m o Music in the W estern W orld: A History in Docu-
m ents ( N o va Yo r k : T h o m s o n Sc h ir m e r , 20 0 8 ) , de P ie r o W e i s s
e Ri c h a r d T a r u s k i n , é b ast an t e in fo r m a t ivo .

59
O clássico com o con t racu lt u ra e a vid a
en tre amigos que am am pop

Exige -se u m p ou co d e r esist ên cia in d ivid u a l ao cu lt ivar os clás-


sicos. Post o m e lh o r , o su jeit o qu e op t a p or se d ed icar à m ú sica
clássica p r e cisa r e sist ir u m p ou co a p r e ssõ e s co m u n it á r ia s o u
e st é t ica s q u e p o d e r ia m se r r e d u z id a s, se fô sse m o s e r u d it o s ,
a u m t e r m o q u ase a ca d é m ico : p r e ssõ e s "e s p i r i t u a i s " — isso ,
cla r o , se e n t e n d e r m o s o t e r m o "e s p i r i t u a l " n a m e s m a ch ave
qu e a e xp r e ssã o h egelian a "e sp ír it o d o t em p o ".
N o s d ias de h o je , o cu lt ivo p ú b lico da m ú sica clássica, p elo
m en o s aqu ele fora d os am b ien t es con t r olad os das salas de co n -
cer t o e de even t os e sp e cífico s, e n co n t r a as co n d içõ e s m e n o s
p r o m isso r a s p o ssíve is. Est a m o s n a er a da ve lo cid a d e , d a co n -
cisã o , da co n e xã o p e r m a n e n t e e d isp er sa d os b r a in st o r m in gs
e d o excesso .
M u s i c a l m e n t e , t a lve z t e n h a m o s n o r m a t iz a d o u m a c e r t a
m o n o t o n ia . Gr a n d e p art e das p essoas co n sid er a a m ú sica clás-
sica ch a t a (p elo fato d e n ão t e r le t r a o u r i t m o d e d a n ça r e co -
n h e cíve l) , b a r u lh e n t a (p ela gam a d in â m ica qu e va i d o m u it o
su ave ao fo r t íssim o ) , in in t e ligíve l (su as h ist ó r ia s s e m n a r r a -
t iva qu e r e q u e r e m u m a at en ção esp ecial) e e lit ist a (o qu e é ex-
p licável m e n o s p or q u e st õ e s so cio e co n ó m ica s qu e p sico e m o -
cio n ais). Te n t e su ger ir u m a son at a de Be e t h o ve n n a p laylist d o
t r ab alh o e ve r á o qu e va i acon t ecer .

6o
N o m er cad o d e id e ia s, h á in ú m e r a s p u b lica çõ e s qu e a r r is-
c a m ju st ificat ivas p ara o e m p e n h o qu e d evem o s t er p ara c o m
a m ú sica clássica. H á ar gu m en t o s p o lít ico s e m e t a físico s, h u -
m a n it á r io s e co gn it ivo s e at é aqu eles c o m r efer ên cias q u ân t i-
cas. Eve n t u a lm e n t e sé r io s, q u an d o fru t o d e p esq u isas cien t ífi-
cas, algu n s d esses est u d os e n co n t r a m m ed id as e m é t r ica s qu e
p e r m it e m se ch egar a co n clu sõ e s en gen h osas, ain d a qu e n e m
t od as sejam in t e ir a m e n t e co n vin ce n t e s ou ver d ad eir as. Afin a l,
de q u alq u er m o d o , su a le it u r a n os p e r m it e im a gin a r a m ú sica
clássica co m o e st im u la n t e a id eias r e vo lu cio n á r ia s, o u t alvez
e q u iva le n t e à m e d it a çã o e à o r a çã o ; p o d e m o s vê -la t a m b é m
co m o u m a fo r m a d e e sm o la aos d esvalid os o u r egu lad o r a d a
p r essão ar t er ial; p ara n ão falar d e su a con t r ib u ição p ara o n osso
e q u ilíb r io b io e n e r gé t ico , seja lá o qu e isso for ...
Se r ia p o s s íve l, e n ão s e m in t e r e sse , e le n ca r as p r e m issa s
e os d e sd o b r a m e n t o s d e t od os esses a r gu m e n t o s. M a s t em o
ca ir n o lu ga r - c o m u m d o p r o s e lit is m o , o u r e d u n d a r n aq u ele
t ip o p a r t icu la r d e p ed agogia q u e , p ar a m o ve r o in t e r lo cu t o r ,
in icia m o r a liz a n d o su as esco lh as. E est e livr o n ão é sob re isso .
D e q u alq u er m o d o , h á d u as coisas a se r e m n ot ad as. Ba n id a
do m ainstream , a m ú sica clássica é h oje p art e ir r elevan t e da i n -
d ú st ria do en t r et en im en t o , t orn an d o-se co m sort e u m p rod u t o
de n ich o do m ercad o de lu xo . Algu m as in st it u ições organ izad o-
ras de co n cer t o s n os Est ad o s U n id o s e n a Eu r o p a p r o m o ve m -
-n a co m o at ivo de b o m gost o p ar a gen t e m a d u r a e d e alt o p o-
d er a q u isit ivo , o qu e as leva a t en t ar d ifu n d ir a m ú sica clássica
a p a r t ir de u m sim b o lism o cu r io so , co m o se a au d ição dos ú lt i-
m os q u art et os de Be e t h o ve n fosse assu n t o a ser t rat ad o e m l u -
gares car os, ao lad o de car r os e r eló gio s sofist icad os, qu e o cu -
p a m as garagen s e os p u lsos de sen h o r es a t lé t ico s, e vo lu íd o s
e refin ad os. Seu s p ar ceir os de p o sicio n am en t o n esse u n ive r so
se r ia m os ch ar u t os e os vin h o s. Su a asp ir ação é t er a p o p u lar i-
d ad e ou t r or a ch iq u e das m áq u in as p o r t át eis de café exp r esso .

61
Po r o u t r o la d o , e n ã o m u it o t e m p o a t r á s, a fa m ilia r id a d e
c o m a m ú sica clássica er a co n sid er a d a p ar t e d a alfab et ização
cu lt u r a l. Mo z a r t o cu p a va , ao lad o d e Sh a kesp ea r e, u m e sp a ço
d a sen sib ilid ad e d e u m cid ad ão m é d io . Br a h m s p o d er ia se r vir
de r efer ên cia segu r a, se n ão p ara t od os, ao m e n o s p ara aqu eles
q u e a sp ir a sse m ao u n ive r so u r b a n o co sm o p o lit a . N ã o n eces-
sa r ia m e n t e p a r t ilh a n d o d os t e r m o s d esse e sn o b ism o c o n t e m -
p o r â n e o , t rat ava-se de u m a classe m é d ia cu lt a q u e, le n d o Ga -
b r ie l Ga r c i a M á r q u e z e o u vin d o D u k e Ellin g t o n , t en t ava n ão
se esp an t ar c o m Ja ckso n Po llo ck e Jo h n Co lt r a n e .
Ma s t u d o m u d o u . Q u a n d o n a h ist ória a m ú sica clássica veio
a t orn ar-se — d escu lp em -m e a p alavra t er r ível — "ir r e le va n t e ",
n ão sab em os ao cer t o. O m u sicó lo go n or t e-am er ican o Rich a r d
T a r u s k i n id e n t ifica u m m o m e n t o e sp e cífico p a r a esse fe n ó -
m e n o (a q u e ch a m a d e Trahison des deres, valen d o-se d o t ít u lo
d o m a is fam oso livr o d o e scr it o r fr a n cê s Ju lie n Be n d a ) , q u e
t er ia se in icia d o n a d é ca d a d e 1960, e m p ar t e co m o r esp o st a
a t od a a t u r b u lê n cia so cia l e c u lt u r a l q u e o p e r ío d o t e s t e m u -
n h o u . Te r ia h avid o, e n t ã o , u m a d eser ção dos in t elect u ais r u m o
à cu lt u r a p op . M a s , ele a r gu m e n t a , en q u an t o os in t e le ct u a is,
n o u n iver so lit er ár io, segu em d ist in gu in d o ficção co m e r cia l de
ficção a u t o r a l, n o m u n d o das ar t es p lá st ica s, o p u b licit ár io e o
m u se o gr á fico , e n o c in e m a o m er ca d o d e m assa e a p r o d u çã o
de au t or , n a m ú sica as fr on t eir as n ão são m a is levad as e m co n -
sid e r a çã o , "e xce t o p elos p r ofission ais en vo lvid o s". E q u an d o
o p r e st ígio da an álise e d a d ed icação cr ít ica e m m ú sica p assa a
r e ca ir n a p r o d u çã o p op . Ta lve z ele est eja ce r t o .
M a s co n sid e r o im p o r t a n t e m o ve r m o - n o s d esse b e co apa-
r e n t e m e n t e se m saíd a. H á m o t ivo s p ara t a n t o , e vo u t en t ar ex-
p licar o p o r q u ê , p ois id en t ifico u m su t il p arad oxo n a p o siçã o
d e Ta r u s k in . D e fat o, a q u e st ã o t a l co m o p ost a é válid a ap en as
se d ist in gu ir m o s a Cu lt u r a , co m C m a iú scu lo , d aqu ilo q u e, p or
falta d e u m n o m e m e lh o r , p o d em o s ch a m a r de Me r ca d o . M a s

62
aq u eles q u e t ê m algu m a fam iliar id ad e c o m a h ist ó r ia sa b e m
qu e essa é u m a d ico t o m ia ar t ificial. To d o s os clá ssico s for am
co m e r cia is e m a lgu m m o m e n t o , e m e s m o os n ovos clá ssico s
p r e cisa m e n co n t r a r a lgu m lu gar ju n t o ao p ú b lico . Ca d a u m o
faz a se u m o d o , é ce r t o , m as o m o d o m a is segu r o , d esd e o in í-
cio d a p r o d u çã o m u sica l p or m e io das t r ocas livr e s en t r e agen -
t es e c o n ó m ic o s , at é os d ias d e h o je , segu e sen d o o Me r ca d o .
An t o n i o Vi va l d i (1678-1741) é h oje u m d os d e z m a is p o p u -
lar es co m p o sit o r e s clá ssico s e m q u alq u er se le çã o d e m ú sica
a q u e se t e n h a acesso. Já e r a a ssim e m s e u t e m p o , q u an d o o
co m p o sit o r cau sava sen sa çã o p or t od a Eu r o p a . A d im e n sã o d o
su cesso de Viva ld i p od e ser m e n su r a d a p o r u m fato: é d os p r i-
m e ir o s ar t ist as a t e r p a r t it u r a s ed it ad as e p u b licad as e m vid a
e m vá r io s p a íse s. N u m a é p o ca e m qu e o m er cad o ed it o r ial er a
a in d a in c ip ie n t e , o im p a ct o d e su a ob r a fez c o m q u e ela fosse
co p iad a e m m a n u s c r it o o u m e s m o ed it ad a s e m a u t o r iz a çã o
(o q u e , n o s t e r m o s d e h o je , su scit a r ia u m a r ica d iscu ssã o so -
b r e p ir a t a r ia ) .
O su cesso d e Viva ld i p od e ain d a se r e n t e n d id o e m ou t r os
t e r m o s. El e v i u gr an d es au t or es e m u la n d o se u est ilo p or t od a
a Eu r o p a . M e s m o o h oje r e co n h e cid o p at r on o d a m ú sica clás-
sica , J. S. Ba c h , abu sa d o p r e st ígio "c o m e r c i a l " d e Viva ld i p ara
in cr e m e n t a r se u ca t á lo go . E e m p ar t e p elo d esejo d e in co r p o -
r ar a fru galid ad e d o it a lia n o , e m p ar t e p o r saber se r u m a m ú -
sica d e ap elo "s e g u r o " p a r a o p ú b lic o , q u e Ba c h r e a liz a in ú -
m e r a s "ve r s õ e s p e sso a is" d e obras d o seu co n t e m p o r â n e o d e
Ve n e z a . D e Vi va l d i , Ba c h t r a n s c r e ve u p ar a s e u in s t r u m e n t o
d e p r e d ile ç ã o , o ó r gã o , t r ê s co n ce r t o s o r igin a is p ar a vio lin o
(BWV 59 3,59 4 e 59 6 ) ; além d esses, fez p elo m e n o s ou t r as seis
t r a n s c r iç õ e s d e ob r as c o n c e r t a n t e s p a r a cr a vo d e sa co m p a -
n h ad o (BWV 9 72,9 73,9 75,9 76 ,9 78 e 9 8 0 ) , e ain d a u m a ú lt im a
"t r a n s c r i a ç ã o " c o m o b elo e e xó t ico Concerto para quatro cra-
vos e cordas (BWV 1065).

63
Se o leit or fica i n c o m o d a d o c o m o d i s c o e m que o gru p o de
r o ck Em e r s o n , La k e & Pa lm e r faz u m a r e le it u r a d e "Q u a d r o s
de u m a e xp o siçã o ", do co m p o sit o r r u sso Mo d e st Mu sso r gsk y
(1839-81), d e ve r ia in t e ir a r -se d os e xp e d ie n t e s b a ch ia n o s so-
b r e a ob r a d e Viva ld i. M e s m o n ão sab en d o m u it o sob re o u n i-
ve r so d o e n t r e t e n im e n t o n a It ália n o sé cu lo X V I I I , é segu r o
d iz e r q u e m u it o d aq u ilo qu e Vi va l d i escr eve e m su as ó p e r a s
o u co n ce r t o s er a d e ap elo p op u lar , u m a m ú sica qu e e xcit a va
o p ú b lico , fazen d o-o r e t o r n a r a o u t r as p e r fo r m a n ce s e r e co -
m en d á-las a am igos. U m a m ú sica co m e r cia l.
Co m o co st u m a va aco n t ecer , Viva ld i se r ia esq u ecid o a p ó s
su a m o r t e . Su a fam a r e vive r ia p o r u m go lp e d o a ca so , n as
m ã o s d e Fr i t z Kr e i s l e r (1875-1962), u m d os p r in c ip a is vi o li -
n ist a s d e se u t e m p o , figura est elar n o jo ve m m as já p u ja n t e
m er cad o fon ográfico. Part e da p op u larid ad e de Kr e isle r d ecor-
r ia d e s u a h a b ilid a d e c o m u m r e p e r t ó r i o d e sa lã o , q u a se
cir ce n se de t an t o vir t u o s is m o , m u it o e xp r e ssivo e lír ico , m as
ele gan h ou p r e st ígio t a m b é m p or ap r esen t ar clá ssico s "p e r d i-
d o s", d e co m p o sit o r es o u t r o r a fam osos e esq u ecid os. Ao lad o
de seu Liebesleid, qu e ain d a h oje e m o cio n a h ó sp e d e s e visit a n -
t es e m lob b ys de h o t e l, ele gravava t a m b é m ob ras de Vi va l d i ,
Bo c c h e r in i, Po r p o r a, M a r t in i o u Co u p e r i n , c o m as qu ais em o-
cio n a va o p ú b lico e ve n d ia m u it o s d isco s.
At é d ad o m o m e n t o , Kr e is le r e xp lica va t er en co n t r a d o t al
a ce r vo e m b ib lio t e ca s e m o st e ir o s d e t od a a Eu r o p a , o q u e
cau sava ce r t o e m b a r a ç o n o s m e io s m u s ic a is . M a s e m 1935,
q u an d o o cr ít ico d e m ú sica d o Tim es, O l i n D o w n e s , p e r gu n -
t o u ao vio lin is t a a r eal fon t e d e t od os os "clá ssico s p e r d id o s "
qu e o h a via m feit o t ão fam oso, Kr e is le r ca su a lm e n t e r e sp o n -
d eu que a fon te era ele m e sm o . Fr it z Kr e isle r era o com p osit or
da m ú sica ap resen t ad a co m o se fosse d e ar t ist as d o passad o. A
r evelação ch o co u a in d ú st r ia fon ográfica e as salas de co n cer t o .
M a is t a r d e , e m d iver sas e n t r e vist a s, Kr e is le r co m e n t o u q u e

64
n ão d ever ia fazer q u alq u er d ifer en ça p ara o o u vin t e q u e m h a-
via escr it o as ob r as, afin al, n in gu é m t e r ia p r est ad o at en ção n o
Concerto em dó m aior d e An t o n io Vi va l d i se t ivesse sid o id e n -
t ificad o co m o d e Fr it z Kr e is le r !
Trat ava-se d e u m dos m aior es su cessos da ca r r e ir a fon ográ-
fica do vio lin ist a. Ap r esen t ad o h oje com o Concerto em dó m aior,
ao m odo de Antonio Vivaldi, d an d o e m segu id a o cr éd it o da co m -
p osição ao seu verd ad eiro cr iad or , p od em os pen sar que Kr e isle r
valeu -se do n o m e de Viva ld i p ara su a a u t o p r o m o çã o . Ma s n ão
d evem os esqu ecer qu e, aos ou vid os d o gran de p ú b lico , Kr e isle r
foi o r esp on sável p or r eviver o com p osit or ven ezian o. E m u m a
ép oca sem qu alqu er referên cia de com o Viva ld i soaria, foi quase
n a t u r a l, ain d a qu e ir ó n ico , o su cesso co m e r cia l d e u m ar t ist a
q u e, m esm o c o m gr avações fake, t r ou xe o com p osit or b arroco
it alian o de volt a à at en ção das p lat eias, m u sicó lo go s e cr ít icos.
Cu l t u r a o u Me r ca d o ? O caso se t o r n a a in d a m a is e s t im u -
la n t e c o m o r e p e r t ó r io d e c o m p o s it o r e s c o n t e m p o r â n e o s ,
c o m o P h i l i p Gl a s s (1937-). En t r e os p o u co s a u t o r e s co m e r -
cia lm e n t e viá ve is d a n o va m ú sica clá ssica , Gla s s t eve qu e es-
p er ar a c o m e m o r a ç ã o d e seu s o it e n t a an os p ara ve r a or q u es-
t r a d a cid ad e on d e m o r a h á an o s, a Fila r m ó n ica de N o va Yo r k ,
p r ogr am ar e m su a t em p or ad a oficial algu m a de su as ob ras. At é
e n t ã o , e m b o r a celeb r ad o e m t od o o m u n d o e am ad o p elo p ú -
b lico , ele er a sim p le sm e n t e d esco n sid er ad o n as salas de co n -
ce r t o . Po r ca u sa d o ap elo c o m e r c ia l d e m u it a s d e su as p a r t i-
t u r as p ara o c in e m a , Gla ss é acu sad o d e p r o d u z ir u m a m ú sica
t r ivia l (a ch a m a d a wallpaper m usic, p a r e n t e p r ó xim a d a m usi-
que d'am eublem ent, o u "m ú s i c a de m o b iliá r io ", d e n o m in a çã o
c u n h a d a p o r E r i k Sat ie h á q u ase u m sé cu lo ) . M u i t o p elo ca-
r á t e r r e p e t it ivo d e h a r m o n ia s co n so n a n t e s, m as t a m b é m p e-
las obras c o m a lu sõ e s clar as a figuras p o p , co m o ca n çõ e s e ál-
b u n s d e D a vi d Bo wie , a m ú sica de co n ce r t o de Gla ss é m u it a s
ve z e s acu sad a d e sim p ló r ia e p o p u list a .

65
E u m e p e r gu n t o : se r á m e s m o ? N ã o é fácil im a gin a r q u a l-
q u e r c o m p o s it o r c lá ssic o m o d e r n o q u e n ã o t e n h a sid o afe-
t ad o p elo p o p . E a ver d ad e é q u e m u it o s co m p o sit o r e s clássi-
cos n u t r e m e cu lt iva m sin ce r o a m o r p ela m ú sica p op — o q u e ,
n o caso d e Gla s s , t alvez va lh a a p en a d iz e r , r o m p e n d o c o m a
afet ação va z ia d e m u it o s d e seu s p a r e s, é o m e lh o r m o d o d e
t o r n ar su a m ú sica ve r d a d e ir a m e n t e clássica. A e xp e ct a t iva d e
u m a sen sib ilid ad e p u r a , vin cu la d a exclu sivam en t e a u m a ú n ica
t r a d içã o , é u m p o u co a r t ificia l, e é d ifícil at é im a gin a r , n o s
d ias d e h o je , a e xist ê n cia d e u m a m e n t e cr ia t iva t ão isolad a a
p o n t o d e n ã o t e r co n t at o c o m q u a lq u er r e fe r ê n cia d a p r o d u -
ção le git im a d a p elo u n ive r so d o co n su m o d e m assa.
Seja n a vid a , seja n a cr ia çã o , n ã o h á m o d o d e d ivid ir r igid a -
m e n t e Cu l t u r a e Me r ca d o . U m a ob r a d e art e d eve ser avaliad a
p or su a vit alid ad e in t e r io r , n ão p elo s e u p r e st ígio e n t r e in icia -
d o s. Afi n a l, o p r e st ígio p e r se ja m a is foi su ficie n t e p ar a a so-
b r e vivê n cia d e u m clá ssico . Se fosse a s s im , a ob ra d e An t o n io
Sa lie r i (1750-1825) so b r e vive r ia c o m folga n os p alcos e salas d e
co n ce r t o d e t od o o m u n d o , e n o en t an t o p r e fe r im o s, co m o o
p ú b lico d o sé cu lo x v m , a p r o d u çã o m a is p o p u lar d e M o z a r t ,
seu co n t e m p o r â n e o e am igo.
Falo d e vit alid ad e in t e r io r e, se p u d esse ap ost ar, d ir ia q u e
o segr ed o d essa vit a lid a d e est á n a sofist icad a in t er a çã o e n t r e
cr iat ivid ad e e cu lt ivo d o p assad o, u m a in t er ação qu ase sem p r e
in t u íd a, m u it as vezes at ávica. E é a ssim p or ser d it ad a p r im e ir o
p elo d iá lo go , m a is o u m e n o s in t e n so , c o m a t r a m a co m p le xa
qu e c o m p õ e o q u e, e m ou t r o co n t e xt o , o ed u cad or n or t e-am e-
r ica n o N e i l P o st m a n ch a m o u d e "Gr a n d e Co n ve r sa ç ã o ". M a s
ela é d it a d a t a m b é m p elo d esejo n a t u r a l d e a t u a liz a çã o q u e
apen as o m u n d o d os vivo s p od e p r o d u z ir . A vit alid ad e d e u m a
ob ra d e ar t e é , p o r t a n t o , u m e le m e n t o e sp o n t â n e o q u e n ad a
t e m a ve r c o m p r e m e d it a ç ã o o u e r u d iç ã o . C o m o d i z Eu g é -
n io Mo n t a le n o est on t ean t e en saio "St i l e e t r a d iz io n e ": "u m a

66
t r ad ição n ão segu e q u e m q u er , m as q u e m p o d e, e qu e m u it a s
ve z e s é q u e m m e n o s a co n h e ce . Par a segu ir a t r a d içã o , p ou co
co n t a m os p r ogr am as e as boas in t e n çõ e s".* En t r e os am igos
ar t ist as e cr ít ico s cu lt u r a is qu e d esejam resgat ar o qu e im agi-
n a m ser a alt a c u lt u r a , essa d ever ia ser u m a lição d e cab eceir a.
E afin al, para além de u m a falsa d icot om ia co m o Me r ca d o , n ão
são in o va çã o e t r a d içã o os t e r m o s exat o s qu e d e t e r m in a m o
qu e é a Cu lt u r a ?

II

O p a p e l d a Cu l t u r a co m o e le m e n t o d e r e d e n ç ã o d a e xist ê n -
cia , d e algu m m od o o filhote laico da r eligiosid ad e m o d e r n a , é
u m t an t o e m b a r a ço so , sob r et u d o d ep ois das t r agéd ias h ist ó r i-
cas o co r r id as ao lon go d o sé cu lo XX. M a s algu n s in t e le ct u a is
im p o r t a n t e s ap ost am n isso . D e cer t o m o d o , sa b em o s, t al e n -
t e n d im e n t o d e Cu l t u r a é u m d esd ob r am en t o d o u n ive r so aca-
d é m ic o r o m â n t ico , qu e ch ega ao p a r o xism o e m t ext o s d o h is-
t o r iad o r M a t t h e w Ar n o l d , e m ais r e ce n t e m e n t e foi at u alizad o
p o r u m gé n io d o calib r e d e Ge o r ge St e in e r . M e s m o e m St e i-
n e r , p o r é m , e m e sm o n o au ge d e su as a r gu m e n t a ç õ e s, e n co n -
t r a m o s a m e la n co lia co m o ve n t e de ce r t a r e sign a çã o . O au t or
fran cês sabe qu e a ar t e, c o m t od a su a cap acid ad e d e n os elevar,
o u e n ca r n a r a an t essala d aq u ilo qu e é p erfeit o e fér t il, n ão i m -
p e d iu os a le m ã e s am an t es d a c u lt u r a , aqu eles "q u e ca n t a va m
Sch u b e r t à n o it e ", de ap o iar em e p a r t icip a r e m de "s e s s õ e s d e
t o r t u r a p ela m a n h ã ". "Es t o u ch egan d o ao fim da m i n h a vid a ",
con fessou St e in e r , "asso m b r ad o cad a ve z m a is p ela p er gu n t a:

* En saio de 1925, publicado na revista cultural / / Baretti (ano I I , n . 1,15 jan .


1925). Min h a tradução foi feita com base na versão disponível na coletânea
Auto da fé (Milão: II Saggiatore, 1966, p. 19).

67
'P o r qu e as h u m a n id a d e s n ão os h u m a n iz a r a m ?'. E u n ão t en h o
u m a r esp o st a."*
Difícil, d e fat o, im a gin a r u m a r esp ost a. St e in e r p r o p õ e , ao
lon go d e su a e xt e n sa e sofist icad a o b r a, u m a so lu ção qu e é u m
ap aren t e p ar ad oxo: a Cu l t u r a m e sm a é qu e en seja a b a r b á r ie .

Fo r a m r ar os os q u e co lo ca r a m o u an alisar am a q u est ão das


ín t im a s r e la çõ e s e xist e n t e s e n t r e as fo r m as d o in u m a n o
e a m a t r i z a m b ie n t e c o n t e m p o r â n e a d a civiliz a çã o a va n -
çad a. M a s o ce r t o é q u e a b a r b á r ie q u e so fr em o s r e fle t e ,
e m n u m e r o so s p o n t o s p r e ciso s, a cu lt u r a d e on d e b r o t o u
e q u is p r ofan ar [ ...] . Po r q u e é q u e as t r a d içõ e s h u m a n i s -
t as e os m o d e lo s d e co m p o r t a m e n t o co r r e sp o n d e n t e s se
r e ve la m d efesas t ão frágeis co n t r a a b est ialid ad e p o lít ica?
D e fato se r ia m u m a d efesa, o u ser á m a is r e a list a id e n t ifi-
ca r m o s n a cu lt u r a h u m a n ist a ap elos exp r esso s ao au t o r it a-
r ism o e à cr u eld ad e? N ã o vejo co m o u m d eb at e sob re a d e-
fin ição de cu lt u r a e sob re a viab ilid ad e da id eia d e valo r es
m o r a is p ossa evit ar essas q u e st õ e s. U m a t eo r ia d a c u lt u r a ,
u m a an álise da n o ssa sit u ação d e h o je , q u e n ão logre co n -
sid er ar n o seu e ixo as m od alid ad es do t e r r o r qu e le va r a m à
m o r t e , p o r m e io da gu e r r a , d a fom e e d o m assacr e d elib e-
r ad o, cer ca de 70 m ilh õ e s de seres h u m an o s n a Eu r o p a e n a
Rú ssia , e n t r e o in ício da P r i m e i r a Gu e r r a M u n d i a l e o fim
da Segu n d a, n ão pod e d eixar de m e p arecer ir r esp on sável.**

N o ca so d o u n ive r s o e sp e cífico d a a r t e , n ã o so u c o m p le t a -
m e n t e o r i g i n a l ao a r r is c a r q u e a s o lu ç ã o d o p r o b le m a , t a l
co m o p o st o p ela h ist ó r ia d o s é c u lo XX, t a lve z n ã o est eja n a

* O trech o, em in glês, está num a entrevista concedida a Peter Applebome ("A


H u m an ist and Elit ist ? Perhaps". New York Tim es, 18 abr. 1998). ** George
St ein er, No castelo do Barba Azul: Algum as notas para a redefinição da cultura.
Lisboa: Relógio d'Água, 1992, p. 40.

68
d en sid ad e d a r esp o st a, m as n a in gen u id ad e da p e r gu n t a . Pois
o qu e a h ist ó r ia n os e n s in o u , e d e ve r ia r est a r ó b vio , é qu e o
am o r a Sch u b e r t n ão n os t o r n a m e lh o r e s, e e n sin a r às p essoas
o gr an d e r e p e r t ó r io da m ú sica e d as a r t e s, e m b o r a e ve n t u a l-
m e n t e garan t a algo d e au t o est im a a seu s in icia d o s, d efin it iva-
m e n t e n ão in c r e m e n t a su a cap acid ad e d e ju lga m e n t o .
Es s a p assagem de St e in e r evoca, é cla r o , Plat ão, p ara q u e m
a m ú s ic a p o d e e xp r e ssa r e in c e n t iva r vir t u d e s t an t o q u an t o
p od e exp r essa r e in ce n t iva r vício s. U m d esd o b r am en t o d essa
a r gu m e n t a çã o é at u alizad o d e m od o b r ilh a n t e , em b or a co n t r o -
ve r so , p elo filósofo in glês Ro ger Scr u t o n . N o art igo "M ú s i c a e
m o r alid ad e", Sc r u t o n d iz h aver u m a d ifer en ça en t r e so n o r id a-
d es qu e a t u a m sobre u m in d ivíd u o e aqu elas qu e a t u a m com o
in d ivíd u o . Gr o sso m o d o , o r it m o p r esen t e n a m ú sica pop e n a
m ú sica cu lt a é o e xe m p lo qu e ele su gere. Sc r u t o n ju st ifica su a
t ese a p a r t ir d e u m a o b se r va çã o ast u t a, qu e ap on t a p ara as d is-
t in t as resp ost as fisiológicas qu e os d ois gé n e r o s su scit a m . Se u
ar gu m en t o ve r sa sob re as d ifer en t es at it u d es co r p o r a is qu e o
h eavy m e t a l e u m a cir a n d a escocesa p r o vo ca m . A p a r t ir d isso ,
co n st r ó i u m ju íz o d e valo r sob re o qu e h a ve r ia d e ser co n st r u -
t ivo p ara a p siq u e h u m a n a , e co n clu i c o m u m elogio às form as
m e n o s co m e r cia is.

N ó s n ã o p r o ib im o s u m a lin gu a ge m m u s i c a l p o r d e cr e t o ,
m a s d e ve m o s le m b r a r q u e as le is sã o feit as p o r p esso as
qu e p o ssu e m gost o m u s ic a l. Ta lve z Plat ão t e n h a acer t ad o
at é e m r elação a u m a d e m o cr a cia m o d e r n a , q u an d o d isse
qu e m u d a n ça s n a cu lt u r a m u sica l acar r et am m u d a n ça s n as
le is, vist o qu e m o d ifica çõ e s n as leis m u it a s ve z e s são co n -
se q u ê n cia s d e p r e ssõ e s n a cu lt u r a . N ã o h á d ú vid a d e qu e a
m ú sica p op d e h oje p o ssu i u m st at u s m ais elevad o do qu e
q u alq u er ou t r o p r od u t o cu lt u r a l. Ast r o s da m ú sica pop são
os p r im e ir o s en t r e as celeb r id ad es, id olat r ad os p o r jo ven s

69
e vist o s co m o e xe m p lo , cor t ejad os p o r p o lít ico s e, e m ge-
r a l, en vo lt o s e m u m a au ra m á gica qu e lh e s dá p od er sob r e
as m u lt id õ e s. E b e m p r o vá ve l, p o r t a n t o , q u e algo da m e n -
sagem d eles in flu en cie as leis aprovadas p elos p olít icos qu e
os a d m ir a m . Se a m e n sa ge m for se n su a l, e go cê n t r ica e m a -
t e r ia list a (o q u e d e fato a co n t e ce , ge r a lm e n t e ) , e n t ã o n ã o
d e ve m o s e sp e r a r q u e n ossas le is n o s r e m e t a m a u m a es-
fera su p e r io r àq u ela q u e a m e n sa ge m [m u sica l] i m p l i c a *

Po d e r ía m o s co n co r d a r c o m a d e scr içã o se t ivé sse m o s e le m e n -


t os e m p ír ico s p ara isso. M a s n ão t em o s — n e m Sc r u t o n t e m .
E n ão t e m p o r q u e , a lé m d e c o n c lu ir sob re b ases im p o ssíve is
d e s e r e m co m p r o va d a s, u m a p ar t e sign ifica t iva d o se u ar gu -
m e n t o est á calcad o n a n ecessid ad e d e u m a d efin ição p r ó p r ia
p ara "sen su alid ad e", "e go ce n t r ism o " e "m a t e r ia lis m o " e m m ú -
sica . E m q u e t e r m o s o r it m o do h eavy m e t a l é m a is o u m e n o s
se n su a l, ego ico o u m a t e r ia list a q u e o r i t m o d e u m a c ir a n d a
esco cesa? Sc r u t o n t alvez est ivesse fazen d o r efer ên cia d ir e t a -
m en t e ao t ext o can t ad o d a m ú sica , m as isso é t er giver sar en or-
m e m e n t e o ce r n e d o p r o b le m a ...
O u t r o p on t o d e su a a r gu m e n t a çã o é ilu st r ad o p or u m a pas-
sagem d o livr o IVhy Classical Music Still Matters, d e La w r e n c e
Kr a m e r . E m t o m in e q u ivo c a m e n t e e s t im u la n t e , Kr a m e r ex-
p lo r a asp ect os da n a t u r e z a su b jet iva h u m a n a , aq u eles e m qu e
a m ú sica clássica p o d er ia ser u m a ch ave p ara a "h a r m o n iz a çã o
en t r e h u m a n id a d e e t ecn ologia". Refir o -m e ao cu lt ivo da at en -
ção. E n est es t er m o s qu e o au t or co m en t a : "t o d a m ú sica t r e in a
o o u vid o [ . . . ] , m as a m ú sica clássica t r e in a o o u vid o p ar a u m a
acu id ad e p ecu lia r . El a q u er ser e xp lo r a d a , n ão ap en as o u vid a

* Com o sem pre costum a fazer, Scru t on publica diversas versões do m esm o
artigo. Co m "Mu sic and Mor alit y" não é diferen te, e a passagem t ran scrit a
e traduzida aqui foi retirada de um a con ferên cia para o Am erican En t erp rise
In st it u t e, em u de fevereiro de 2010.

70
[...] ela t r e in a a au d ição d e am b o s, o cor p o e a m e n t e , p ara a i n -
ve st iga çã o , p ara u m a e scu t a at en t a co m o aqu ela q u e b u sca o u -
vi r algo qu e n ão p od e ser p er d id o".*
Co n fo r m e p r at ica, o jogad or de xad r ez m elh or a su a in t eligên -
cia para o jogo; de algu m m od o, essa "in t e ligê n cia " pod e con ec-
t ar-se a ou t ras e p ot en cialm en t e in cr e m e n t a r a saú d e in t elect iva
co m o u m t od o. Talvez o m esm o m ecan ism o fu n cion e co m a m ú -
sica clássica, é o que parece afin al argu m en t ar Kr am er . Nã o d eixa
de ser u m a ju st ificat iva p ragm át ica: o u vir m ú sica clássica para ou -
vir m e lh o r qu ase t od o o rest o. Co m o u m d esd ob ram en t o da es-
cu t a at en t a, su b en t en d e-se, pelo ar gu m en t o, que a m ú sica clás-
sica abrirá ca m in h o a u m a p ost u r a de p er m an en t e cu r iosid ad e
e exp lo r ação , t r ein an d o os sen t id os in d ivid u ais p ara ou t ras des-
cobert as da vid a . A m ú sica clássica é, a ssim , e m ú lt im a an álise, a
p or t a para u m a cer t a im p et u osid ad e de carát er.
O n e o p la t o n is m o p r a g m á t i c o d e Sc r u t o n e Kr a m e r n ã o
p od e ser , p o r si s ó , co n d e n á ve l. C o m su as boas in t e n ç õ e s, n o
e n t a n t o , ele esco n d e u m a ver d ad e in co n ve n ie n t e , e su as t eses
fu n cio n am à von t ad e apen as se d eixam o s de r eco n h ecer que h á
u m m o vim e n t o co n scien t e d o o u vin t e. N a vid a r e a l, o que m ais
co n t a é o d esejo d o in d ivíd u o de segu ir aq u ilo q u e se in t er essa
p o r co n h e ce r . N ã o é a m ú sica qu e "d eseja ser exp lo r a d a ", são
as p essoas q u e q u e r e m so cializar o u se isolar , e e n co n t r a m r e s-
p ost a a seu d esejo o u co m o o u vin t e s d e cir an d as escocesas o u
d o h eavy m e t a l.
Es t o u co n ven cid o de qu e n ão é a m ú sica que faz as pessoas
in t eligen t es; m as é u m a m e n t e ast u t a e cu r io sa aqu ela qu e e n -
co n t r a cam p o fért il n a m ú sica clássica. O o u vin t e in t er essad o
p o d e, n u m e ve n t u a l e e n r iq u e ce d o r feed b ack, ve r su a cu r io si-
dade e su a ast ú cia est im u lad as pela com p lexid ad e do r ep er t ór io

* Lawren ce Kram er, W hy Classical Music Still Matters. Berkeley: Un iversit y of


Califórnia Press, 2007, p. n . (Tradução m inha.)

71
qu e n ela en co n t r a. O s t r aços ín t im o s da p siq u e são com p ost os
p or var iáveis h ip e r co m p le xa s. Q u e st õ e s de gost o — o u sexu a-
lid ad e, p or exem p lo — n ão p od em ser t raçad as p or u m aspect o
u n ívo co . D o m e sm o m o d o , u m su jeit o in t r o sp e ct ivo qu e p r e-
t en d e cu lt iva r laços de am izad e, p or e xe m p lo , at ravés do cor p o
n as cir an d as d e r od a, b u sca a m ú sica de d a n ça , e t alvez p ossa
t er aversão aos con cert os de rock; ou t ro pode ver-se est im u lad o
p ela alt a carga de en er gia e vigor de u m sh o w de h eavy m e t a l.
O q u e as p r op ost as d e Kr a m e r e d e Sc r u t o n cu r io sa m e n t e
d e ixa m de co n sid e r a r é , p ara m i m , o m a is fu n d am en t al e n t r e
os elem en t os que c o m p õ e m a r e ce p çã o da m ú sica e da art e e m
ger al: ela t r at a d e p essoas viva s. E os vivo s n ã o são m e r o s p a-
cie n t e s n e u t r o s de ob ras d e a r t e, m as at ores e m co n st an t e i n -
t e r a çã o . Afin a l, est e é o p r in c ip a l p r ed ica d o d e se est ar vivo :
agir sobre as coisas. Por isso , q u alq u er d iscu ssã o sobre a r ecep -
ção da m ú sica d eve levar e m co n sid e r a çã o , p or n ecessid ad e pe-
r e m p t ó r ia , o an seio d aqu ele que escu t a. Scr u t o n e Kr a m e r d es-
co n sid e r a m a au d ição at iva d o p ú b lico , a r ea çã o d o in d ivíd u o
q u e avan ça e se r e t r a i c o m base n o qu e vê e o u ve , o d esejo do
in d ivíd u o qu e e n co n t r a o u n ã o , acolh e o u r e je it a , aq u ilo q u e
e scu t a . N a vid a r e a l, a m ú sica e a ob r a de art e t ê m p o u ca r es-
p o n sa b ilid a d e so b r e a q u ilo q u e afet am . M i n h a p e q u e n a ex-
p e r iê n cia m e p e r m it e d iz e r : r a r a m e n t e aco n t ece o co n t r á r io .

III

It alo Ca lvin o escreve u m a passagem m u it o elegan t e em seu livr o


Porque ler os clássicos, quan do sugere ser clássico aquilo "q u e ve m
an t es de ou t ros clássicos, m as q u em le u an t es os ou t ros e d epois
lê aqu ele, r econ h ece logo o seu lu gar n a gen ealogia".* Esse ele-

* Italo Calvin o, Por que ler os clássicos. Trad . de Nilt on Mou lin . São Paulo:
Com pan h ia das Let ras, 1991, p. 14.

72
m en t o de p aren t esco m e in t er essa. Co m o sab em os, a sen sação
de co n t in u id ad e dada p elos filh os e n et os é u m a das n ossas es-
t rat égias p ara desafiar a m o r t e. U m a ou t ra é a art e. Par t icip ar da
Gr a n d e Co n ve r sa çã o , m ais u m a vez u san d o a exp r essão de N e il
Po st m an , é u m a vir t u d e in t r ín seca da m ú sica clássica, q u e, p or
h ist ória e est r u t u r a t écn ica, n ecessariam en t e at u aliza os t er m os
do passado. At u aliza-os p ois dialoga co m eles.
Ta lve z p o r ser b r a sile ir o , vejo -m e co m o u m p ó s - m o d e r n o
d ed ica d o : é n a t u r a l, p ar a m i m , e le n ca r r e fe r ê n cia s d a ar t e e
d o esp o r t e, d a vid a in t e le ct u a l e d a m o d a n u m m e s m o sop r o.
N ã o m e p arece in d ecor oso t rat ar Pelé co m o t rat o Ba r ysh n ik o v,
d isco r r e r n a m e s m a frase sob r e as cr ó n ica s d e N e ls o n Ro d r i-
gu es e os r o m a n c e s d e D o s t o ié vs k i. N ã o m e e st r a n h a r e co -
n h e c e r Ta r k o vs k i n a t r a d içã o d e W i l l i a m Bla k e , e elogiar Au -
d r e y H e p b u r n co m o u m a a n t íp o d a d e Lo u An d r e a s - Sa lo m é .
H o m e r o e Ge o r ge R. R. M a r t i n são fr eq u en t ad or es d a m e sm a
p r a ia , m e sm o im a gin a n d o q u e d isp u t a r ã o as m e lh o r e s on d as
e, n o fim, t u d o t e r m in a r á e m xin ga m e n t o .
A m e u ve r , a m ú sica clá ssica , seja co m o ar t e d e co n se r va -
çã o , seja co m o art e de su b ve r sã o , h ab it a a m e s m a esfera d e t o-
dos esses ar t ist as n o t áveis, ist o é, a d os p rod u t os excelen t es da
at ivid ad e cr ia t iva . E co m o t a l, r esp eit a n d o os t e r m o s d e Ca l -
vi n o , se u r e p e r t ó r io ir m a n a -se c o m m u it o d aq u ilo qu e já o u -
vi m o s o u t a lve z ve n h a m o s a o u vir . Se n d o cu lt iva d a , ela é ca-
p az d e acr escen t ar à sen sib ilid ad e d os o u vin t es algu m as n ovas
co r es. Su as p r óp r ias cor es. E a p a r t ir d esse co lo r id o , dado p elo
am álgam a p o ssíve l apen as n o con t at o c o m in d ivíd u o s vivo s, é
q u e ela p od e segu ir ad ian t e. Su a p r e se r va çã o é u m a t arefa h u -
m a n íst ica , n a m e d id a e m q u e p e r m it e o in cr e m e n t o da p alet a
e xp r e ssiva d a h u m a n id a d e , a var ied ad e co lo r id a d as garrafas
jogad as ao m a r , c o m as q u ais h o m e n s e m u lh e r e s d e ge r a çõ e s
p assad as, at u ais e fu t u r as, t en t ar am e t en t ar ão est ab elecer co n -
t at o e n t r e p o n t o s d ist an t es n o t e m p o e n o p lan et a.

73
No ssa t arefa é r e co lh e r essas garrafas, ab ri-las e ve r as m e n -
sagen s que t r a z e m . Te n t a r m o s en t en d ê-las e, se t iver m o s sort e
e in t e r e s s e , p a ssá -la s a d ia n t e . C o m isso , n ã o n o s t o r n a m o s
p esso as m e lh o r e s , m a s m a n t e m o s o elo d a u n id a d e e c o n t i-
n u id a d e d a e xp e r iê n c ia h u m a n a . O s vivo s e os m o r t o s q u e
n os legar am as t r a d içõ e s ar t íst icas c o m as q u ais co n vive m o s
p r o vê m de d iver sas cu lt u r a s. Po d er ia h aver p essoas m a is d ife-
r e n t e s qu e Jo h an n es Ke p le r e St e p h e n H a w k i n g ? M ig u e l de
Ce r va n t e s e Co r m a c M c Ca r t h y? J. S. Ba c h e T h o m Yo r k e ? A l -
gu n s d eles, en t r e t an t os o u t r o s, p o d e m ser d ive r t id o s, o u t r o s,
sé r io s o u t r á gico s. M a s t od os p r e t e n d e r a m est ab elecer co n e-
xõ e s sign ificat ivas c o m pessoas c o m as qu ais co n vivia m , e h oje
p o d e m segu ir e m con t at o co n o sco , p essoas qu e n u n c a im a gi-
n a r ia m co n h e ce r . Es s e s in d ivíd u o s p a r t icip a m , at r avés d o es-
p a ço e d o t e m p o , c o m os m eio s qu e lh es foram e são p o ssíve is,
c o m id e ia s, o b r a s, d ú vid a s e p o n d e r a ç õ e s , d a Gr a n d e C o n -
ve r s a ç ã o . N o s s o p r ivilé gio e m t a m b é m p a r t icip a r d ela é p o-
d er co n ve r sa r c o m eles e c o m m u it o s o u t r o s — e r efu t á-lo s,
aceit á-lo s, a m á -lo s, e sq u e cê -lo s et c. Q u a lq u e r qu e seja n o ssa
d ecisão , p r im e ir o p r ecisam os o u vir o que eles t ê m a d izer : esse
é o p r im e ir o p asso e, co m o n a Lu a , o m ais im p o r t a n t e .

Sugestões de leitura

A gr a n d e b ib lio gr afia h u m a n ís t ic a , d is p o n íve l e m vá r ia s lín -


gu a s, é a q u i in e vit á ve l. An t e s d e t u d o , su gir o os livr o s d e
Ge o r ge St e in e r , de q u e m p od e-se le r t u d o , se m p r e c o m in t e -
r esse r en o vad o . Ac h o qu e u m a b oa in t r o d u çã o às su as id eias
e st á n o l i vr o d e e n t r e vis t a s feit as p o r Ra m i n Ja h a n b e glo o ,
George Steiner, a luz de si m esm o (São Pau lo: Pe r sp e ct iva , 2003).
O u t r o au t or m u it o im p o r t a n t e p ar a m in h a s r eflexõ es é o ed u -
cad o r n o r t e - a m e r ica n o N e i l P o s t m a n . D e p r o sa fácil, e m u i -
t os bon s livr o s já p u b licad os n o p a ís, r est am d o is, in felizm en t e

74
in é d it o s e m p o r t u gu ê s, qu e vão ao ce n t r o da q u e st ã o aq u i es-
b o ça d a : Teaching as a Subversive Activity ( N o va Yo r k : D e l t a ,
1971) e Teaching as a Conserving Activity ( No va Yo r k : D e la co r t e ,
1979). O en saio "St i l e e t r a d iz io n e " (1925), d e Eu g é n io M o n -
t a le, est á d isp o n íve l, e m it a lia n o , n a in t e r n e t .
N o am b ien t e m ais esp ecífico d a m ú sica , cit e i t ext os de Ro -
ger Sc r u t o n . Se u s p e n sa m e n t o s sob r e a m at ér ia est ão or gan i-
zad os e m d ois livr o s: The Aesthetics of Music ( O xfo r d : O xfo r d
U n ive r s it y P r e ss, 1999) e Understanding Music: Philosophy and
Interpretation ( Lo n d r e s : C o n t i n u u m , 20 0 9 ). Sã o livr o s filosófi-
co s, aq u i e ali u m t an t o d ifíceis. O m e lh o r an t íd o t o p ara co m -
b at er o h e r m e t ism o é o t a m b é m cit ad o W hy Classical Music
Still Matters ( Be r k e le y: U n i ve r s i t y o f Ca lifó r n ia P r e s s , 20 0 9 ) ,
d e La w r e n c e Kr a m e r , livr o m u it o in t e lige n t e e sed u t o r , qu e
r e co m e n d o en fat icam en t e.

75
6.
O Silên cio, com S m aiúsculo

Eu tenho um a grande reclam ação contra as plateias de todos os países,


que éa restrição artificial de aplausos entre m ovim entos em um concerto
ou sinfonia. Não sei onde o hábito com eçou, m as certam ente não se
encaixa nas intenções dos com positores.

Pierre Mon t eu x, 1959

É bárbaro dizer às pessoas que é incivilizado aplaudir algo de que gostam .

Ar t h u r Ru b in st ein , 1966

Quando a m úsica pede aplausos — por exem plo, no final do prim eiro
m ovim ento do concerto para violino de Tchaikovsky — não m e im porto,
porque é um a resposta espontânea, em ocional e instintiva. As vezes em
queficoincom odada por aplausos são quando eles parecem superficiais ou
protocolares, surgindo sim plesm ente por algo ter acabado — por exem plo,
no final de um m ovim ento lento de um a sinfonia de Mahler.

Mar in Alsop , 2013

Devem os dar boas-vindas aos aplausos, onde quer que aconteçam .

Em an u el Ax, 2015

Jo h n Ca ge d e scr e ve u su a e xp e r iê n c ia n u m e sp a ço h e r m e t ic a -
m en t e à p r ova d e so m , on d e p er ceb eu d iver sas son or id ad es. O
"ab solu t o silê n cio " da câm ara an ecoica era r u id oso, o que n os leva
a p en sar qu e t alvez o silên cio seja u m p r o b lem a co n ce it u a i, filo-
sófico. O exp er im en t o de Cage d escreve cer t a in d isp osição do si-
lên cio e m se co n cr e t iz a r , e isso p od e ser com p r ovad o e m p ir ica -
m en t e p or t od os n ó s, e m e sp a ço s er m o s o u e m lu gares isolad os.
N a m ú s i c a , a d is c u s s ã o so b r e o s ilê n c io d e ve r ia t e r s e m -
p r e c o m o p o n t o d e p a r t id a a d ificu ld a d e d e se e st a b e le ce r o

76
silê n cio d e fat o. Lid a r c o m o "s o m d o s ilê n c io " é u m a co n t r a -
d içã o e vid e n t e m e n t e in gé n u a ; m as e n t e n d e r o silê n cio co m o
a a u sê n cia d o s o m , co m p r o vad o e st á , é ap en as u m a id eia abs-
t r aía. Por isso , t u d o o q u e p o d e m o s é d is c e r n ir n íve is de ap ro-
xim a ç ã o ao silê n cio . Gr a d a ç õ e s q u e se a p r o xim a m d a a u sê n -
cia d o so m , e que jam ais p od er iam ser en t en d id as est r it am en t e
co m o o silê n cio e m seu "z e r o ab solu t o".
As s i m , faz-se n e ce ssá r io co m p r e e n d e r o silên cio co m o u m
c o n s t r u c t o , cu ja o p e r a çã o o ca r a ct e r iz a c o m o u m e le m e n t o
c u lt u r a l. O silê n cio é algo in s t r u m e n t a liz a d o , r e su lt a n t e d e
aco r d o s est ab elecid o s e n t r e m e m b r o s d e u m a d ad a c o m u n i -
d ad e, q u e p od e ser vir -se d ele n os m a is d ist in t o s â m b it o s: or a
co m o o esp aço d elim it ad or do p r ó p r io sen t id o de algu m objet o
son or o (o e sp a ço cu ja co n ve n çã o exige q u e se fiqu e q u iet o n as
ob ras t r a d icio n a is da m ú sica das salas d e co n ce r t o ) ; ora co m o
elem en t o exp r essivo da m ú sica e gest o d e im p act o r et ó r ico (as
p au sas t ais q u ais p r e vist a s n o m e io d as n o t a s) ; or a co m o ele-
m en t o co sm o ló gico (tal com o en t en d id o e m algu m as t r ad ições
r eligiosas — "n o p r in cíp io er a o silê n cio ") .
N a m ú sica clássica o cid e n t a l, o m e sm o Jo h n Ca ge leva ao li-
m it e o silên cio co m o objet o m u sica l p er se, co m o e m su a p e ça
4'33". Co m p o s t a e m 1952, p ara q u alq u er in s t r u m e n t o , p r e vê
q u e o(s) e xecu t a n t e( s) fique(m) s e m e m it ir q u a lq u er n ot a d u -
r an t e t od a a d u r ação de seu s t r ês m o vim e n t o s. Co m o d em o n s-
t r a m as an álises d a ob ra r ealizad as p o r Pet er Gu t m a n n , a su a
p e r fo r m a n ce t o r n a clar a u m a p lê ia d e de so n o r id ad es p r e se n -
t es e o r d in ar iam en t e su b lim ad as e m q u alq u er sala d e co n cer t o .
Ca ge d e m o n st r a qu e o silê n cio e o r u íd o sã o , p o r u m lad o, d is-
p o n ib ilid ad es m e n t a is e, p or o u t r o , acor d os cu lt u r a is qu e n os
p e r m it e m d ar sen t id o a q u alq u er ob r a m u sic a l.

Em b o r a frequ en t em en t e d escr it a com o u m a p eça silen ciosa,


4 '33 " n ã o é sile n cio sa à t oa. En q u a n t o o e xe cu t a n t e faz o

77
m á xim o d e silên cio p o ssíve l, Ca ge q u eb r a as b ar r eir as t r a-
d icio n ais, levan d o a at en ção do p alco para a au d iên cia, e at é
para fora da sala de con cer t o. Pr on t am en t e p erceb em os u m a
en o r m e qu an t id ad e de son or id ad es, das m ais m u n d an as às
m ais p r ofu n d as, das esp erad as às su r p r e e n d e n t e s, das ín t i-
m as às có sm ica s: m o vim e n t o s n as cad eir as, folh ear de p r o-
gram as (para en t en d er o que est á acon t ecen d o), r esp ir ação ,
o b ar u lh o d o ar -con d icion ad o, o ran ger de u m a p or t a, o ba-
r u lh o do t ráfego, u m avião, zu m b id o s n os ou vid os, u m a lem -
bran ça. Est a é u m a m ú sica profu n d am en t e pessoal. Ca d a pes-
soa cr ia su a p r óp r ia [...]. E , e m ú lt im a in st ân cia, o m om en t o
e m que a au d iên cia e o m u n d o se t o r n a m os p e r fo r m e r s*

A p er gu n t a n e ce ssá r ia qu e se segu e à obra de Ca ge é a m ais es-


sen cial da p r od u ção m u sica l co n t em p o r ân ea: esse "silê n cio " de
qu at ro m in u t o s e 33 segu n d os co n sist e, afin al, e m u m a m ú sica
o u e m u m co n ju n t o d e r u íd o s? O acord o r o m p id o p or Ca ge é
t íp ico d a p r o d u çã o d e n osso t e m p o , já qu e d esloca o sen t id o
da p er for m an ce do cr iad o r p ara o o u vin t e . O co m p o sit o r se dá
con t a de q u e, qu an d o n o r ep er t ór io t r ad icio n al se p r evê o silên -
cio , ele é p r eser vad o e m u m sen t id o p r ó p r io , an t eced en d o o u
(raras vezes) segu in d o o d iscu r so m u sica l p r evist o pelo com p o-
sit or. A p erp lexid ad e qu e leva Cage a fazer seu q u est ion am en t o
ar t íst ico é en gen h osam en t e adapt ada do m u n d o das art es p lás-
t icas: 4 '33 " faz r efer ên cia exp lícit a aos qu ad ros de Ro b er t Ra u s-
ch e n b e r g, esp ecificam en t e su a exp o siçã o co m t elas e m b r an co.
O silên cio e m m ú sica clássica o cid e n t a l t r a d icio n a l é co m o a
m oldura p ara os so n s; o q u e Ca ge faz é e xp o r os o u vin t e s, as-
s im co m o Ra u sch e n b e r g, à tela da m ú sica .

* Peter Gu t m an n , "Th e Sounds of Silen ce". In : Classical Notes. Dispon ível


em : <www.classicalnotes.net/ colum ns/ silence.htm l>. Acesso em : 4 dez. 2019.
(Tradução m inha.)

78
II

Co s t u m a va m ser p art e da agen d a da Ca sa Br a n ca , at é p elo m e-


n os o in ício d a d écad a de 1990, os r ecit ais d e gr an d es ar t ist as
clá ssico s. Ser gei Ra ch m a n in o ff (d u r an t e a p r e sid ê n cia de Ca l -
v i n Co o lid ge ) , Ar t h u r Ru b i n s t e i n ( n o p e r ío d o d e D w i g h t E i -
se n h o we r ) e Va n Cl i b u r n (que at ravessou as ad m in ist r açõ es de
Lyn d o n Jo h n so n , Ro n a ld Reagan e Bill Cl i n t o n ) , e n t r e m u it o s
o u t r o s, foram algu n s dos n o m e s que p assar am p or a li. Jim m y
Cá r t e r , t alvez o p resid en t e m ais d ed icad o ao gé n e r o , t r ou xe aos
salões da casa p r e sid e n cia l gr u p os co m o o To k yo St r in g Q u a r -
t et e o Gu a r n e r i St r in g Q u a r t e t , além d e ar t ist as co m o Ru d o lf
Se r k in , Isaac St e r n o u An d r é P r e vin , e in d ir et am en t e viab ilizo u
u m a sér ie t r a n sm it id a p ela PBS, c o m Ro st r o p o vich , Le o n t yn e
P r ic e , Ba r ysh n ik o v, An d r é s Segovia e Vla d im ir H o r o w i t z .
Re t o m a n d o a t r a d içã o , e m 20 0 9 , o ca r ism á t ico p r e sid e n t e
Ba r a ck O b a m a o r ga n iz o u u m a so ir é e q u e t in h a n o p r o gr am a
o vio lin is t a Jo sh u a Be l l , a vio lo n ist a Sh a r o n I s b i n , o p ia n ist a
Awa d a gin Pr at t e a vio lo n ce list a Alis a W e ile r s t e in . N a o ca siã o ,
o p r e sid e n t e co n t o u u m a h ist ór ia:

Se algu m de vo cê s n a p lat eia é r ecém -ch ega d o à m ú sica clás-


sica , e n ã o t e m ce r t e z a de q u an d o ap lau d ir , n ão fique n er -
voso. Ap a r e n t e m e n t e , o p r esid en t e Ke n n e d y t eve o m e sm o
p r o b le m a . El e e Jackie r e a liz a r a m vá r io s e ve n t o s de m ú -
sica clássica a q u i, e m ais de u m a ve z ele co m e ço u a ap lau d ir
qu an d o n ão d ever ia. A ch efe do ce r im o n ia l, e n t ã o , elab orou
u m esq u em a n o qu al ela in d ica r ia , at ravés de u m a frest a n a
p or t a d o cor r ed or , o m o m e n t o cor r et o de a p la u d ir *

* O discurso origin al está dispon ível em : <obam awhitehouse.archives.gov/


r ea lit ych eck/ t h e -p r e ss-o ffice / r e m a r k s-p r e sid e n t -p er fo r m a n ce-wh it e -
-h ouse-classical-m usic-con cert>. Acesso em : 4 dez. 2019. (Tradução m in h a.)

79
Ao final, O b a m a c o m e n t o u , n ã o s e m u m a p it a d a d e a u t o ir o -
n ia: "Ago r a , fe liz m e n t e , t en h o M ic h e lle para m e d iz e r q u an d o
ap lau d ir ". Ap ó s r iso s, ele co m p le t o u : "Vo c ê s vã o t er q u e se v i -
r ar de o u t r o jeit o ".
O p r e sid e n t e n o r t e - a m e r ica n o b r in ca va ao d iz e r su as ver -
d ad es. D e a lgu m m o d o , e st a m o s t o d o s s o z in h o s ao d e c id ir
q u an d o d e ve m o s o u n ão ap lau d ir . A h ist ó r ia d a fo r m a çã o d e
u m p ú b lico n ão ar ist ocr át ico n as salas de co n cer t o s é e m si u m
assu n t o fascin an t e, e u m t ó p ico d e in t er esse n ão m e n o r d esse
p rocesso é a q u est ão de com o a regra sobre o aplau so — o u m e-
lh or , do n ão aplauso — veio a se est ab elecer co m o t al. At é h o je,
n e n h u m asp ect o d o r it u a l de co n ce r t o clá ssico p ar ece cau sar
m ais p er p lexid ad e do qu e o p r in cíp io da et iq u et a, r ecen t e e ar-
t ificialíssim a, qu e ad vert e que só se d eve b at er p alm as q u an d o
t od os os m o vim e n t o s de u m a obra t e n h a m sid o t ocad os.
O p r o t o co lo reflet e m u d a n ça s m a is am p las n o p ap el so cial
d a m ú s ic a clá ssica n o sé c u lo XX. O in t e lige n t e cr ít ico Al e x
Ro s s , r e sp o n sá ve l p ela e d it o r ia d e m ú sica clá ssica d a r e vist a
New Yorker, faz b e m ao le m b r a r q u e o p r o b le m a n ã o é a r e -
gra do ap lau so — t ão m ist e r io sa q u e at é m e sm o u m p r ofessor
d e d ir e it o , t r an sfo r m ad o e m p r e sid e n t e da n a çã o m a is p od e-
r osa e co m p le xa do m u n d o , n ão p ossa in t rojet á-la — , m as s i m
q u e, p or ve z e s, ao o b ed ecê-la, o p ú b lico con t rad iga os p r ó p r io s
co m p o sit o r e s fren t e àq u ilo q u e cr ia r a m !
Pois n ão é n ovidade que o am bien t e do con cert o clássico do sé-
cu lo XVIII e do in ício do XI X era rad icalm en t e diferen t e do clim a
lit ú r gico (qu ase fú n ebre) que t em os h oje. A m e u ve r , u m a das
evid ên cias m ais saborosas ve m de u m a cart a qu e Mo z a r t escre-
ve u para seu p ai e m 1778, n a ocasião da est reia da sin fon ia Paris:

Exa t a m e n t e n o m e io d o p r im e ir o allegro h a via u m a p assa-


ge m qu e e u t in h a ce r t e z a d e qu e ir ia agrad ar, ar r eb at an d o
t od a a p lat eia — h o u ve u m gr an d e t u r b ilh ã o d e ap lau sos.

80
E co m o p r e vi seu efeit o n o t á ve l, e u a r eap r esen t ei ao final
d o m o vim e n t o ; e o p ú b lico a p la u d iu d e n o vo , da cap o. O
an d an t e foi b e m r eceb id o do m e sm o m o d o , m as o allegro
final a gr a d o u e s p e c ia lm e n t e ; e u o u vir a q u e a q u i os a lle -
gros finais c o m e ç a m co m o os in ic ia is , a sab er, c o m t od os
os in s t r u m e n t o s t o ca n d o q u ase e m u n í s s o n o , e p o r isso
co m e ce i o m o vim e n t o c o m ap en as d ois vio lin o s t ocan d o
d e lica d a m e n t e p o r oit o co m p a sso s... e d e r e p e n t e ve io o
for t e, m as a a u d iê n cia est ava su ssu r r a n d o p o r silê n cio e n -
t r e s i , p o r co n t a d o in ício t r a n q u ilo , co m o im a gin e i. M a s
q u an d o ve io o for t e, b e m , o u vi-lo e ap lau d i-lo foi q u ase a
m e s m a co isa . Fi q u e i m u it o feliz. Ap ó s a sin fo n ia fu i d ir e -
t a m en t e ao Palais Ro ya i, co m p r e i u m so r ve t e , r e z e i u m r o -
sá r io , co m o h avia p r o m e t id o , e fu i p ara casa.

Ao in vest iga r p assagen s co m o essa é q u e o m u sicó lo go Ri c h -


a r d T a r u s k i n su ger e q u e o co n t e xt o t a lve z d eva se r co n sid e -
r a d o , caso q u e ir a m o s le va r a d ia n t e a id e ia d e o u vi r M o z a r t
c o m o M o z a r t esp er ava se r o u vid o . Se u c o m e n t á r i o , é c la r o ,
v e m ch e io d e ir o n ia e m r e la çã o a u m fe t ich e r e c o r r e n t e d o
m o vi m e n t o ch a m a d o historische Auffuhrungspraxis, o u "p r á -
t ica h ist o r ica m e n t e in fo r m a d a ", qu e h oje é u m e n o r m e n ic h o
d e m e r ca d o , c o m in t er p r et a çõ es m u sica is feit as u san d o-se in s-
t r u m e n t o s de ép o ca. Ta r u s k in su gere que n ão apen as os in st r u -
m en t o s de é p o ca , c o m su as cord as d e t r ip a de ca r n e ir o e arcos
s e m co n t r a p eso d e c h u m b o , são n e c e ssá r io s. Pa r a o u vir M o -
zar t co m o ele gost aria de ser o u vid o , e p ara ser m o s r ealm en t e
fiéis ao co m p o sit o r , é p r eciso h aver aplau sos en t r e e (p asm em )
d u r an t e os m o vim e n t o s!
Cla r o , se for m e sm o o caso, agin d o a ssim , im p licit a m e n t e
at en t am os con t r a o st at us de Mo zar t com o u m clássico. O u pelo
m e n o s d esafiar íam os algu n s co n ceit o s ca r íssim o s a m u it o fre-
quen tadores de salas de con cert o, sobre com o d evem ser tratadas

81
as p erform an ces desse r ep er t ór io. Se para n ós pode p arecer es-
t r an h o que gran d es obras clássicas t en h a m se origin ad o e m ce-
n ários b ar u lh en t os, m esm o sen d o u m pou co difícil p recisar e m
que m om en t o os aplausos d evem acon t ecer, a d escrição feita por
Mozar t revela que o am bien t e do salão parisien se de 1778 se apro-
xim a m ais dos n ossos clu b es de jazz que da Sala São Pau lo.
As s i m , ao co n t r á r io d o q u e p o d e p a r e ce r e m p e r fo r m a n -
ces a t u a is, as in t e r ve n ç õ e s da p lat eia n ão e r a m sin a is de d es-
r e sp e it o , m as d e m o n st r a va m a ap r o vação e sp o n t â n e a d e u m a
escu t a at en t a — at en t a o p on t o d e co n se gu ir d e m a r ca r , a p ó s
cad a solo e xu b e r a n t e , ap ós cad a p assagem co m o ve n t e , a ssim
co m o ao final d e cad a p e ç a , o e n t u sia sm o n ã o ap en as c o m a
r e a liz a çã o e p e r fo r m a n ce d o a r t ist a m as t a m b é m c o m a p r ó -
p r ia e st r u t u r a d a a p r e se n t a çã o .
Para o p ú b lico at u al das salas de con cer t o, há m om en t os obje-
t ivam en t e espin h osos para a con t en ção das palm as. Por exem p lo,
as cad ên cias de cada u m dos 27 con cert os para pian o de Mo zar t .
O u as passagen s assom brosas ao lon go dos con cert os para violin o
de Nicco lò Pagan in i. Ain d a , o final do p r im eir o m ovim en t o dos
cin co con cert os para pian o de Beet h oven — cu jos acordes finais,
alt isson an t es e vir is, são n ad a m en os que u m con vit e ao aplau so.
D e q u a lq u e r m o d o , a ob ra m a is co n t r o ve r sa e, n esse se n -
t id o , d id át ica é, se m som b r a de d ú vid a , a Sexta sinfonia de Pio t r
I l i t c h Tch a ik o vsk y. O m e st r e r u sso d e c id iu in c lu ir u m a m ar -
ch a p o m p o sa e e n é r gica n o t e r ce ir o m o vim e n t o , e seu s c o m -
p assos finais, e m cr e sce n d o vigo r o so , in vo c a m ap lau sos at é
p ar a aq u eles o u vin t e s q u e est ão c o m a ca b e ça n o m u n d o d a
lu a. A e xce çã o é, cla r o , a p art e d o p ú b lico r e a lm e n t e d e cid id a
a jam ais q u eb r ar a r egr a d o n ão ap lau so e n t r e m o vim e n t o s —
m e s m o est a ú lt im a , p o r é m , d eve e xe r cit a r , a cad a ap r esen t a-
çã o , u m a u t o co n t r o le fé r r e o . In e q u ivo c a m e n t e , Tc h a ik o vs k y
c o n s t r u i u essa se çã o e sp e cífica p a r a p r o vo ca r u m a r e sp o st a
e sp o n t â n e a n o p ú b lico , e a ssim foi d esd e a o ca sião da e st r e ia .

82
O ap lau so ao fim d o t e r ce ir o m o vim e n t o é a cat arse n e ce ssá r ia
p ara a co n t e n çã o ao final d o q u ar t o m o vim e n t o , u m gran d e la-
m e n t o in s t r u m e n t a l de oit o m in u t o s.
Aco n t ece q u e, por vezes, h oje e m d ia, n o fim do t er ceir o m o vi-
m en t o , m esm o quan do o aplauso co m e ça , algun s m aest ros vão d i-
ret o para o Ad agio lam en t oso final. Im p õ e m à p art it u ra, assim , u m
sin al At t acca, n ão previst o pelo com posit or, e fazem co m que parte
d o p ú b lico d eixe de o u vir os p er t u r b ad or es com p assos de aber-
t u ra do ú lt im o m o vim en t o . No vam en t e, é Ale x Ro ss q u em n ar r a
u m caso m ais grot esco, de u m a p erform an ce da sin fon ia Patética
p ela O r q u est r a Sin fón ica de Syd n ey, e m 2003. O m aest ro (que o
n o m e fique regist rad o n a p ost er id ad e, o r u sso Ale xa n d e r La z a -
rev) ficou t ão irr it ad o co m os aplausos da plat eia q u e, zom b et eira-
m e n t e , ap lau d iu de volt a. O crít ico Pet er M c Ca l l u m relat a o caso:

A o va çã o foi t ão e n t u sia sm a d a q u e a o r q u e st r a se le va n t o u
p ar a r e ce b e r os ap lau sos. As s i m , e m ve z d e c r ia r u m silên -
cio co n st r a n ge d o r p a r a o t r á gico final d e Tc h a ik o vs k y, os
ap lau sos a u m e n t a r a m , gr it o s d e "Br a v o !" c r e s c e r a m , e a l-
gu n s o u vin t e s p e ga r a m seu s ca sa co s e c o r r e r a m p ar a os
t r e n s ; e p a r e ce u p or u m m o m e n t o q u e o t r ab alh o m ais t rá-
gico d e Tch a ik o vsk y t ivesse se t or n ad o o m a is o t im ist a , se u
p r o gr a m a o c u lt o , d o q u a l falava m a s n u n c a r e ve lo u , r e e s-
cr it o co m o u m final feliz. Er a co m o Be ck e t t c o m Go d o t apa-
r e ce n d o n o final d o At o 1, e t od os in d o p ara c a s a *

O q u e m a is in c o m o d a n e ssa h ist ó r ia é a p o st u r a d o m a e st r o ,
n ã o a d o p ú b lico , q u e h a via ap en as segu id o — in t u it iva , esp o n -
t ân ea e fr a n ca m e n t e , co m o e m t od o o m u n d o — as in st r u çõ e s
do co m p o sit o r .

* Peter McCa llu m , "Syd n ey Sym ph on y". The Sydney Morning Herald, 15 ago.
2003. (Tradução m in h a.)

83
III

Algu m a s t r ad ições or ien t ais en car am essa t en são en t re so m e si-


lên cio de ou t ra m an eir a. Para m u it as cu lt u r as, o silên cio é a base
da m ú sica, o esp aço a p ar t ir do qu al b r ot am os son s; por isso, a
p r esen ça do so m é m o t ivo de u m a celeb r ação en gen h osa, u m a
e sp é cie de a p r o xim a çã o c o m as forças p r im o r d ia is. As s i m , os
son s n ão são n ecessar iam en t e organ izad os p ara u m fim o u ex-
p r essão d et er m in ad o s, eles são d eixad os livr e s, qu an d o m u it o
r eu n id os gen t ilm en t e ou post os e m m o vim e n t o . U m a r eu n ião
fest iva e d e d ialét ica d elicad a — so m / silê n cio — q u e, e n t r e -
t an t o, cr ia a m ú sica. O com p osit or jap on ês To r u Ta k e m it su r e-
su m e part e d essa sen sib ilid ad e do segu in t e m od o:

Mo vim e n t a r os son s e m volt a de n ó s, do m e sm o jeit o co m o


d ir igim o s u m ca r r o , é a p io r coisa qu e vo cê p od e fazer co m
eles. M i n h a for m a m u sica l é r esu lt ad o d ir et o e n a t u r a l de
com o os son s eles m esm o s se im p õ e m , e n ad a pod e d ecid ir
de an t em ão o seu p on t o de p ar t id a. E u n ão m e exp r esso de
qu alqu er form a at ravés d esses son s; apen as reajo a eles e, ao
reagir, d eixo que a ob ra floresça p or si m e s m a *

IV

A "gr a n d e t r an sfo r m ação d o gost o m u s i c a l " (ap r o p r ian d o -m e


d o t ít u lo de u m im p o r t an t e livr o de W i l l i a m W e b e r ) c o m e ç o u
c o m o in ício d a er a r o m â n t ic a , a p a r t ir da ú lt im a d é ca d a d o
sé cu lo x v i l l . O r o m a n t ism o , afin al, é ca r a ct e r iz a d o , e n t r e o u -
t r as co isa s, p ela va lo r iz a çã o da d ife r e n ça , p ela b u sca d a o r igi-
n alid ad e. E m t er m os e xist e n cia is, t ais p red icad os t r ad u zem -se

* Tor u Takem it su é citado no caderno que acompanha o C D Toru Takem itsu:


Miniatur II (Deu t sch e Gram m op h on , M G 2411). (Tradução m in h a.)

84
n o r o m a n t ism o p o r m e io d e u m a sen sib ilid ad e t íp ica , qu e an -
seia p o r aq u ilo q u e m u it o s at é h oje co n sid e r a m fu n d a m e n t a l:
u m a vid a d evot ad a à au t o r r ealização . E m t e r m o s e st é t ico s, o
r o m a n t ism o t r ad u z-se p ela e xp r e ssã o da p er son alid ad e ú n ica ,
aq u ela cu ja sin gu la r id a d e e xp r e ssa a "ve r d a d e i r a " e xp e r iê n -
cia d a realid ad e in t e r io r , co m p o n d o as d it as ob ras de "gé n io ".
H á m u it a filosofia e in q u iet a çã o so cio cu lt u r a l n os b ast id o-
r es d essa n o va e st é t ica . E o q u e p o u co s h ist o r ia d o r e s d isco r -
d am é que Beet h oven foi u m a figura cr u cial n a gran d e m u d an ça.
Su a m ú sica ser á a p r im e ir a , ao m en o s c o m im p act o r elevan t e,
a co n sid e r a r essa n o va at it u d e d o a r t ist a e m r ela çã o a su a au -
d iê n cia . N e m se m p r e p r e t e n d e n d o se r in t e ligíve l o u agr ad á-
ve l , é a m ú sica d e Be e t h o ve n aq u ela q u e p io n e ir a m e n t e p r e-
t en d e e n ca r n a r a e n cr u z ilh a d a de d u as id eias co n t r ad it ó r ias, a
do Su b lim e sob re o Be lo , d o "gr a n d io so " ve r su s o "p r azer o so ".
A m ú sica d ele é vist a p elo p ú b lico de su a ép o ca n ão m ais co m o
"u m en t r et en im en t o que vale a p en a ser p r od u zid o e m h on r a do
gran d e aco n t ecim en t o a q u al se refere",* u san d o as p alavras de
Ma d a m e de St aêl sob re A criação d e H a yd n (feit a p ara ilu st r a r
gr aciosam en t e n ad a m e n o s qu e a cr iação do m u n d o segu n d o
as Es c r i t u r a s ) . Be e t h o ve n p r e t e n d e "fa z e r m o ve r o m e d o , o
d e slu m b r a m e n t o , o h o r r o r , o so fr im e n t o e [a ssim ] d esp er t ar
aqu ele d esejo p elo in fin it o qu e é a e ssê n cia do r o m a n t ism o ",**
co m o d iz E. T. A. H o ffm a n n sobre a Quinta sinfonia (qu e ilu st r a
n ad a além de si m e sm a o u , q u içá, o in fer n o in t e r io r d o co m p o -
sit or e m su a b at alh a co n t r a o p r ó p r io d est in o ).
E essa n o va e sa cr a liz a d a visã o d a o b r a d e ar t e q u e r ep er -
cu t ir á n o d ia a d ia das e n t ã o e m b r io n á r ia s salas d e c o n c e r t o .

* Baronesa Staêl H olst ein , Germ any. Nova York: East b u r n , Kir k and Co .,
v. 2. p. 106,1814. (Tradução m in h a.) ** E.T. A. Hoffmann, A. T.A. Hqffm anris
Musical W ritings. Cam bridge: Cambridge Un iversit y Press, 2003, p. 98. (Tra-
dução m inha.)

85
E o cu lt o d a "gr a n d e m ú s ic a ", im p r e s s io n a n t e e m su as i m -
p lic a ç õ e s , s u b s t it u iu a fo r m a m e n t a l qu e p e r m it ia a "m ú s i c a
a gr a d á ve l" d os e n t r e t e n im e n t o s e sp o r á d ico s d o sé cu lo XVI I I .
M u d a a p o s t u r a c r i a t i va , m u d a a p o s t u r a d o p ú b l i c o . Sa i a
a r ist o cr a cia c o m su a n o b r e z a sa n gu ín e a , e n t r a o p ú b lico b u r -
g u ê s c o m se u d e se jo p ela n o b r e z a e s p ir it u a l. C o m o d iz Ly-
d ia Go e h r , e m se u livr o d e r e fe r ê n cia O m useu im aginário de
obras m usicais:

As s i m co m o a t r a n sp a r ê n cia at r avés da fidelidade t or n a-se


o id ea l a r egu lar a p e r fo r m a n ce [ in s t r u m e n t a l] e a r e gê n -
cia [de o r q u e st r a ], u m cer t o id eal é p r op ost o p ara r egu lar
o c o m p o r t a m e n t o d a a u d iê n c ia . C o m o a r t ist a s e m a e s-
t r o s, o p ú b lico é solicit ad o a ser lit er al e m et afo r icam en t e
sile n cio so , d e m od o qu e a ( V) ve r d a d e o u a (B)b eleza do t r a-
b alh o p o ssa m ser o u vid as e m si m e s m a s *

N o caso d e Be e t h o ve n , as e st r a t é gia s p r á t ica s p ar a a im p o si-


ção d e ce r t a p o st u r a r e ve r e n cia i — o u ao m e n o s d e cer t a co n -
t e n çã o d ecor osa — são m u it a s. N a Quinta e n a Sexta sin fon ias,
o u n o Concerto n a 5para piano, Be e t h o ve n e xp e r im e n t o u u m a
co st u r a s e m in t e r r u p çã o en t r e m o vim e n t o s , sob r et u d o en t r e
os d ois ú lt im o s, d an d o n ão ap en as u m a co e sã o m a io r à e st r u -
t u r a das o b r as, m as p r even d o t a m b é m u m a e xp e ct a t iva cr e s-
cen t e e ló gica e m d ir e çã o ao m o vim e n t o final.
En t r e t ais m o vi m e n t o s , evit a-se o ap lau so n a t u r a lm e n t e ,
p ois ele é, d e fat o, in viável. D e Be e t h o ve n , p od e-se ain d a cit a r
o u t r o r e c u r s o , co m o o d e in t r o d u çã o e m p ia n íssim o ao Con-
certo n- 4 para piano o u , m a is co n se q u e n t e p ar a a h ist ó r ia da
m ú sica , a ab er t u r a da Nona sinfonia, e m seu s co m p asso s qu e

* Lydia Goeh r, The Im aginary Museum of Musical W orks. O xford: O xford Un i-


versity Press, 1992, p. 236. (Tradução m in h a.)

86
s u r ge m d o n a d a , e x n ih ilo . Ta is e st r a t é gia s, d e u m a m ú s ic a
qu e su rge "d o n ad a", fazem c o m qu e o in t ér p r et e e xija silên cio
p ara qu e o d r am a en cen ad o n o p alco faça sen t id o. Me sm o n ão
h a ve n d o q u a lq u e r r e fe r ê n cia d o cu m e n t a l das r e sp e ct iva s es-
t r e ia s, p o d e m o s im agin ar o in t é r p r e t e im ó ve l, at é qu e o silên -
cio h o u vesse p r e e n ch id o a sala, p ara e n t ã o , finalmente, t en d o
ob rigad o o p ú b lico a se calar an t es do in ício , in au gu r ar o gest o
t eat r al q u e , logo n os p r im e ir o s co m p a sso s, cr ia d ian t e d e t o-
d os u m m u n d o son or o ab so lu t am en t e n o vo .
Es s a s e st r a t é gia s a b r e m c a m in h o p ar a a lgu m a s ob r as d e
Sc h u b e r t , e m u it a s d e Sc h u m a n n e M e n d e ls s o h n . D e s t e ú l-
t i m o , t em o s o efeit o n o t ó r io d o Concerto para violino e, cla r o ,
a Sinfonia escocesa, qu e p e d e m e xp lic it a m e n t e ( c o m a sin a li-
zação at t acca n a p a r t it u r a ) qu e os t r ê s o u q u at ro m o vim e n t o s
qu e co n st it u e m a obra sejam t ocad os se m in t er valo s. Me n d e ls-
so h n p r e t e n d ia a ssim , e d e ixa r egist r ad o e m algu n s d o cu m e n -
t o s, evit ar "as lon gas in t e r r u p çõ e s u su a is". Sc h u m a n n u sa r e-
cu r so s sem elh an t es e m m u it as de su as p eças p ara p ian o, a ssim
co m o fica clar o e m su as Prim eira e Quarta sin fo n ias, o u ain d a
e m seu s co n cer t o s para p ian o e vio lo n ce lo . Eve n t u a lm e n t e , es-
sas in o vaçõ es ser ão exp lorad as e m m u it as obras d e Fr a n z Li s z t ,
da son at a aos p o em as sin fó n ico s.
A en t r ad a p ar a "a p la u so s" n a 11a e d içã o d a Encyclopedia Bri-
tannica (1910-11) ob ser va: " O e sp ír it o r ever en t e qu e ab o liu os
ap lau sos n a igr eja t e n d e u a se esp alh ar p ar a o t eat r o e a sala
d e co n ce r t o s, e m gr an d e p ar t e sob a in flu ên cia d a at m osfer a
q u ase r e ligio sa d as a p r e s e n t a ç õ e s d e W a g n e r e m Ba yr e u t h ".
D e fat o, e m b o r a an t agon ist a ob jet ivo d o t ip o d e m ú sica qu e
Sc h u m a n n e M e n d e l s s o h n p r o d u z i a m , Ri c h a r d W a g n e r d e-
se m p e n h o u u m p ap el n ão m e n o s cr u cia l n a t r an sfo r m ação d o
co m p o r t a m e n t o da a u d iê n cia .
O co m p o sit o r a le m ã o já h a via p assad o algu n s m a u s b oca-
d os p o r co n t a d a "e sp o n t a n e id a d e " p ú b lica. E m 13 d e m a r ço

87
de 1861, a Gr a n d e Ó p e r a d e Pa r is a b r iu su as p or t as p ar a a es-
t r e ia fr a n ce sa d e se u Tannhãuser. En t r e os p r e s e n t e s , o i m -
p er ad o r N a p o le ã o I I , a im p e r a t r iz e p r in c e sa d e M e t t e r n i c h ,
H e c t o r Be r l i o z , Ch a r le s Go u n o d , Ch a r le s Ba u d e la ir e , H a n s
vo n Bú llo w e Th é o p h ile Ga u t ie r . M u n id o s d e ap it os e m at r a-
ca s, p ar t e d o p ú b lico ir r o m p e u e m vaias qu e d u r a r a m d o p r i-
m e ir o ato ao final da ó p e r a . Ci n c o d ias d ep o is, n o va m e n t e n a
p r e se n ça d o im p er a d o r , foi r ealizad a a segu n d a a p r e se n t a çã o ,
t en d o o p r im e ir o ato t r a n sco r r id o n o r m a lm e n t e . M a s ao in i-
ciar o segu n d o at o, o d ist ú r b io foi t ão gran d e qu e os m ú sico s
e os can t or es for am for çad os a in t e r r o m p e r a a p r e se n t a çã o vá-
r ias ve z e s. O caos se in st a lo u de m a n e ir a d efin it iva n a t e r ce ir a
a p r e se n t a çã o , p on d o fim às e sp e r a n ça s d o co m p o sit o r e m r e-
lação à m e la n có lica t em p o r ad a p a r isie n se .
Algo ext r ao r d in ár io t a m b é m aco n t eceu q u an d o das p r im e i-
ras a p r e se n t a çõ e s d e Parsifal, e m Ba yr e u t h , an os m a is t a r d e ,
e m 1882. W a g n e r su ge r iu ao p ú b lico qu e evit asse ch a m a r os
solist as à fr en t e d a co r t in a a p ó s o final d e cad a at o, se gu n d o
e le , p ara n ão em b o t ar o efeit o ger al. O p ú b lico e n t e n d e u m a l
a su ge st ã o e sim p le sm e n t e ab st eve-se d e ap lau d ir , e a ssim , de
ato e m at o, u m silê n cio ab solu t o a co m p a n h o u a co r t in a final.
W a gn e r , in q u ie t o , t er ia d it o a seu s co m p a n h e ir o s: "Ago r a e u
n ão sei se o p ú b lico gost ou ou n ão ...". Ao que p ar ece, ao fim do
esp et á cu lo ele t er ia se d ir igid o à p lat eia, exp lican d o que en t ão
já se r ia ap r o p r iad o a p la u d ir , m as os ca n t o r e s, e m seu s ca m a -
r in s , n ão p u d e r a m m ais vo lt ar p ara os agr ad ecim en t o s.
A co n fu são t er ia p e r sist id o n a r écit a segu in t e. A esp osa d o
co m p o sit o r , Có s i m a W a g n e r , e sc r e ve u e m se u d iá r io : " D e -
p o is d o p r i m e i r o at o h o u ve u m silê n cio r e ve r e n t e , c o m u m
in d u b it á ve l efeit o a gr a d á ve l. M a s q u a n d o , a p ó s o se gu n d o
at o, os ap lau sos fo r am n o va m e n t e calad o s, t u d o c o m e ç o u a
se t o r n a r e m b a r a ço so ". Ao qu e p a r e ce , d u as sem an as d ep o is,
q u an d o W a g n e r e n t r o u e m se u cam ar o t e p ara a ssist ir a u m a

88
ce n a p r e fe r id a e gr it o u e n t u sia st ica m e n t e q u an d o ela t e r m i -
n o u , seu s gr it o s d e "Br a v o !" for am calad os p elo p ú b lico ! O s
wa gn e r ia n o s, ao qu e p a r ece, p r o n t a m e n t e se m o st r a r a m m a is
cat ó lico s qu e o p ap a.
E m p ar t e p elo im p a ct o das r e fo r m a s wa gn e r ia n a s n a Al e -
m a n h a — ilu m in a ç ã o r e vo lu c io n á r ia , fosso m á g i c o e s c o n -
d en d o a o r q u e st r a , silê n cio ob seq u ioso — , m u it a s r evist as d e
m ú sica i n i c i a m a t e n t a t iva d e est ab elecer an alogias e n t r e as
salas d e co n ce r t o e os p r in cíp io s d o Fe st iva l d e Ba yr e u t h . O
u n ive r s o d o fest ival p a r e cia p r o m e t e r m a is a d e q u a d a m e n t e
a p o st u r a d e se já ve l p ar a a fr u içã o d a "gr a n d e m ú sica ". W a g -
n e r , d e p r ó p r io p u n h o , c r it ic a t od o o u n ive r s o d e e n t r e t e n i-
m e n t o qu e m u it o da m ú sica d e su a é p o ca h a via celeb r ad o , e,
p a u la t in a m e n t e , cr ít ico s e m u sicó lo go s e n d o ssa m a acu sação
d o m e st r e co n t r a o vi r t u o s i s m o , a seu s o lh o s m e r o e xib ic io -
n is m o , e co n t r a a e xt r e m a o r n a m e n t a çã o d os e sp a ço s d e co n -
ce r t o . To r n a -se c o m u m a su ge st ã o de co n cer t o s ap r esen t ad os
sob lu z su ave, algu n s im a gin a n d o , in c lu s ive , as or q u est r as es-
co n d id as at rás d e u m a t ela.
Al g u n s h ist o r ia d o r e s d e s c r e ve m c o m o , n o p e r ío d o im e -
d iat am en t e p o st er io r a 1900, a "r e fo r m a da sala d e co n ce r t o s"
foi t em a de m u it a d iscu ssã o . Ka r l Klin gle r , o líd er d o qu art et o
Klin gle r , t er ia r eivin d icad o o cr éd it o p or in st it u ir a regra do n ão
ap lau so e m seu s co n cer t o s e m Be r lim d u r an t e a t em p or ad a de
1909-10, m as u m p ou co an t es, e m 1905, n a cid ad e de Lú b e ck , o
m aest r o H e r m a n n Ab e n d r o t h já h avia in st r u íd o seu p ú b lico a
n ão b at er p alm as en t r e os m o vim e n t o s d e u m a sin fo n ia.
N ã o p o d e m o s im a gin a r q u e , t a n t o p o r p a r t e d o p ú b lic o
q u an t o d os co m p o sit o r e s, essa n o va p o st u r a t e n h a se p r o p a-
gado im e d ia t a m e n t e , o u d e for m a in d o lo r . A ver d ad e é qu e a
falt a d e ap lau sos foi u m sin a l p e r t u r b a d o r p o r m u it o t e m p o .
Br a h m s r e co n h e ce o fracasso d e se u Concerto para piano «2 /
q u a n d o o silê n cio r e i n o u n a e st r e ia a p ó s os d o is p r i m e i r o s

89
m o vim e n t o s . E c la r o , q u an d o Tc h a ik o vs k y su ger e q u e "algo
e st r a n h o est á a co n t e ce n d o c o m est a sin fo n ia ", ele est ava se
r efer in d o a u m a fr ieza p e r ce p t íve l q u e o p ú b lico m o st r o u n a
est r eia d e su a Sexta sinfonia — os m o vim e n t o s for am "i n e q u i -
vo cam en t e ap lau d id os", co m o d isse u m cr ít ico , m as n ão t an t o
qu an t o o esp erad o. Q u a n d o a Quarta sinfonia de Br a h m s foi t o-
cad a d ian t e do co m p o sit o r , e m Vi e n a , n o an o de 1897, c o m fi-
n ais p e r e m p t ó r io s e n t r e seu s q u at r o m o vim e n t o s , "o ap lau so
q u e se e sp a lh o u a p ó s cad a m o vim e n t o foi in d e scr it íve l". N a
p r im e ir a a p r e se n t a çã o d e Lo n d r e s d a Prim eira sinfonia de E l -
gar, e m 1908, o co m p o sit o r foi ch am ad o ao p alco vár ias ve z e s
a p ó s o p r im e ir o m o vim e n t o .
Já n o ad ian t ad o d a d é ca d a d e 1920, vá r io s r egen t es d e r e -
n o m e co m o T o s c a n i n i , Kle m p e r e r , St o k o wsk i e Fu r t wá n gle r
se gu ia m n u m a e s p é c ie d e cr u z a d a p ar a d e s e s t ím u lo d o q u e
co n sid e r a va m u m excesso d e ap lau sos n as salas d e co n ce r t o ,
e n aq u ele m e sm o p e r ío d o , m u it o s o u vin t e s r e sist ia m à p r o ib i-
çã o , co n sid er an d o -a u m sin a l de ar r o gân cia p or p ar t e de u m a
n ova ge r a çã o de m aest r o s-d ivo s.
E m 1927, u m a cart a ao New York Tim es r id icu lar izou a prát ica:
"Ve ja , e u n ão apen as t en h o m in h a gran d e o r q u est r a n as m ã o s,
m as t a m b é m p osso, co m u m p equ en o gest o, con t rolar u m a m u l-
t id ão en o r m e!". O com p osit or D a n ie l Gr e go r y Ma so n , ir o n ica -
m e n t e , escr eveu que "d ep ois da m a r ch a fú n ebre da Eroica, o sr.
St o k o wsk i p od er ia p elo m en o s ap ert ar u m b o t ão e in fo r m ar à
au d iên cia, p or u m sin al lu m in o so (silen cioso), 'agora vo cê pod e
cr u zar a ou t ra p ern a'". O l i n D o wn e s, o p r in cip al crít ico do Tim es,
fez cam p an h a ob st in ad a co n t r a a r egr a do silên cio e m su as co-
lu n as e, e m 1938, co n d en o u o gest o d e d esap r o vação feito p or
Ko u sse vit z k y e m d ir eção ao p ú b lico , d evid o às p alm as que soa-
r am após o t erceiro m o vim en t o da Sexta sinfonia de Tch aikovsky,
e p r ot est ou : "Q u e id eia an t im u sical! Esn o b ism o i n excelsis!".

90
V

Es n o b i s m o ? Po is se o p o et a d isse se r a b r il o m a is c r u e l d os
m e s e s , p o d e r ía m o s t o m á -lo t a m b é m , p ar a a h ist ó r ia da m ú -
sica clássica, p elo m ais esn ob e. Fo i n aq u ele m ê s , e m 2011, q u e,
ao est ilo das Sagrad as Es c r it u r a s , a lgu é m t eve a au d ácia d e p u -
b lica r u m a e sp é cie de Táb u a das Le i s da et iq u et a de co n ce r t o s.
Essa s for am as co n t r o ver sas r e c o m e n d a ç õ e s d o cr ít ico n o r t e-
-am er ican o Byr o n Be lt , o r igin a lm e n t e escr it as p ar a a Fila r m ó -
n ica de N o va Yo r k e r ep licad as p or m u it a s ou t r as in st it u içõ e s
de co n ce r t o n o r t e -a m e r ica n a s.
O s efeit os d e le t é r io s d e se m e lh a n t e d o cu m e n t o p ara a r e -
ce p çã o da m ú sica clássica n ã o p o d e m ser su b e st im a d o s. O t í-
t u lo — ab su r d o sob t o d o s os p a r â m e t r o s , p ar a a lé m d a r e t ó -
r ic a b íb lica — é u m gr a n d e m a n u a l d o q u e não se p od e fazer.
Re p r o d u z o - o a q u i, m as c o m a r e ssa lva d e q u e , p o r se t r a t a r
d e u m a r t igo s é r i o , u m a r e c o m e n d a ç ã o a se r lid a cu id a d o -
s a m e n t e , t a m a n h a r a b u gice n ã o p o d e d e ixa r d e co b r a r se u
p r e ç o : é p o r co isa s a ssim q u e m u it o s fogem d as salas de c o n -
ce r t o e m t od o o m u n d o .
Ma s as n ot as irrit ad as do cr ít ico são in t eressan t es com o do-
cu m en t o h ist ó r ico , d escr ição d o p ar oxism o m esm o do qu ão pa-
t ét ico pode ser o u n iver so clássico, se vist o por pessoas n o r m ais,
ou seja, as pessoas que d esejam assist ir à m ú sica para se en t ret er:

0 5 MANDAMENTOS DA ETIQUETA

A t em p o r ad a d e even t os est á co m e ça n d o . As p lat eias est ão


p rep arad as p ara d esfr u t ar do e n t r e t e n im e n t o e da in sp ir a -
ção de co n ju n t o s d e t od os os t ip o s.
U m a co isa é ce r t a : p ara m u it o s, as p er fo r m an ces ser ão
m ar cad as p ela im p e r t in ê n cia d e ou t r as p essoas qu e se co n -
sid e r a m b o n s cid a d ã o s. Sã o aq u eles qu e ign o r a m as r egr as

91
s im p le s d e co r t e sia o u , i n c o n s c i e n t e m e n t e , d e s t r o e m o
am b ien t e p acífico n e ce ssá r io p ara o d esfru t e d e m u it as das
m ar avilh o sas p er fo r m an ces oferecid as a u m p ú b lico geral-
m e n t e an sioso e d isp ost o.
Aq u i e st ã o algu m as regras qu e d e ve m ser r e im p r e ssa s
e m t od os os p r ogr am as de co n ce r t o s d os Est a d o s U n id o s .
Sim p le s sen so c o m u m e co r t e sia qu e irão m e lh o r a r m u it o
a ser en id ad e e a felicid ad e d os p ar t icip an t es n a m ágica das
ar t es. ( Fu n c io n a t a m b é m p ara cin e m a s.)
H á ou t r os p o n t o s, é cla r o , e cad a leit o r t erá u m a q u e ixa
d e e st im a çã o qu e o m it im o s . N o e n t a n t o , se ap en as est es
for em o b ed ecid o s, ir a co n ce r t o s ser á u m a alegr ia e t od os
n ó s sair em o s m ais r evigor ad os.

N ã o d e ve r á
Conversar. O p r i m e i r o e m a io r m a n d a m e n t o . Fi q u e e m
casa se n ã o e st ive r c o m vo n t a d e d e d ar a t e n çã o t o t a l ao
qu e e st á se n d o r e a liz a d o n o p a lco . Ist o é e sp e cia lm e n t e
ver d ad eir o c o m t elefon es celu la r es. N ã o at en d a a ligação.

Murm urar, cantar ou acom panhar com os dedos ou os pés. O s


m ú sico s n ão p r e cisa m da su a aju d a e seu s viz in h o s d e p o l-
t r o n a p r e cisa m d e silê n cio . Ap r e n d a a b at er os d ed os d e n -
t r o d os sapat os. Isso e co n o m iz a m u it o a b o r r e cim e n t o p ara
os o u t r o s, e é u m excelen t e e xe r cício .

Folhear o seu program a. Le it o r e s in q u ie t o s e vir a d o r e s d e


p ágin a n ão são b on s o u vin t e s e d ist r a e m m u it o os q u e os
r o d e ia m .

Mascar chicletes nos ouvidos dos seus vizinhos. O baru-


lh o é c o m p le t a m e n t e in d e s c u lp á ve l e e m ge r a l i n c o n s -
cie n t e . A visã o das sen h oras e d os sen h or es elegan t em en t e

92
b em -p ost os qu e r u m i n a m é u m a das e xp e r iê n cia s m a is r e-
vo lt an t es e a n t iest ét ica s da at u alid ad e.

Usar relógios de tique-taque ou chacoalhar as jóias. O s p r o -


p r ie t á r io s ger a lm en t e são im u n e s , m as a p e r cu ssã o é p er-
t u r b ad or a p ar a os o u t r o s.

Abrir doces em brulhados em celofane. Afo r a a co n ve r sa p ar a-


le la , est a é a ofen sa m a is geral p ara a paz n o a u d it ó r io . Se
vo cê est á c o m a gargan t a r u i m , d esem b r u lh e su as p ast ilh as
p ara gargan t a en t r e at os o u m o vim e n t o s m u sica is. Se pego
d e su r p r e sa , ab r a r á p id o o e m b r u lh o . Te n t a r ficar q u iet o
ab r in d o in vó lu cr o s le n t a m e n t e ap en as p r olon ga a t o r t u r a
p ara t od os ao seu r ed or .

Abrir efechar a sua bolsa. Es t e p r o b le m a co st u m ava se ap li-


ca r ap en as às m u lh e r e s , m as h oje e m d ia os h o m e n s são
fr e q u e n t e m e n t e o fe n sivo s, da m e s m a fo r m a . D e i xe q u a l-
q u er b olsa o u ca r t e ir a d est ravad a d u r an t e a a p r e se n t a çã o .

Suspirar com tédio. Se vo c ê e st á ago n iad o , gu ar d e p ar a si


m e sm o . Se u viz in h o p od e est ar e m ê xt a se , o qu e t a m b é m
d eve ser m a n t id o sob co n t r o le sile n cio so .

Ler. Isso é m en os u m pecado an t issocial do que u m a p rivação


pessoal. E t íp ico que os ou vin t es le ia m n ot as de p rogram as,
an ú n cios e o que for. Ma s n ão. Escu t a r sign ifica apen as escu -
tar. In form ações e n ot as d evem ser digeridas an t es ou depois
da m ú sica , n ão d u r an t e. Pod e, n o en t an t o, ser m e lh o r p ara
aqueles ao seu red or que vo cê leia e m vez de d o r m ir e ron car.

Chegar atrasado ou sair cedo. E in ju s t o p ar a os a r t ist a s e


p ara o p ú b lico e xigir assen t os q u an d o se est á at rasad o, o u

93
at rapalh ar-se co m su a ch egad a, o u ap licar m aq u iagem e sair
ced o. A m aio r ia das a p r esen t a çõ es t e m h or ár ios agen d ad os.
Te n t e ob ed ecer a e le s *

VI

O co m p o sit o r Jo h n Ca ge co m e n t a e m seu livr o Silence sob re


su a e xp e r iê n cia c o m u m a câm ar a an eco ica:

[...] qu an d o e n t r e i e u o u vi d ois son s — u m alt o e u m grave.


Ao d escr evê-lo s ao en gen h eir o en car r egad o, fu i in for m ad o
d e qu e o agu d o er a m e u sist e m a n e r vo so e m o p e r a çã o ; o
gr ave, m e u san gu e e m cir cu la çã o . At é n a m i n h a m o r t e h a-
ve r á so n s. E eles c o n t in u a r ã o a p ó s a m i n h a m o r t e . N i n -
gu é m p r e cisa t e m e r p elo fu t u ro da m ú sica .**

P u b lica d o e m 2007, o livr o The Rest Is Noise: Listening to the


Twentieth Century ( N o va Yo r k : Fa r r a r , St r a u s a n d Gi r o u x) , de
Al e x Ro s s , é , an t es d e t u d o , u m a d e licio sa e b e m in fo r m a d a
via ge m p elos cr iad o r es e, p or qu e n ã o , in ve n t o r e s de m ú sica
d o s é c u lo XX. O t ít u lo e m p o r t u g u ê s , O resto é ruído: Escu-
tando o século XX, dá apen as u m a d im e n sã o do o r igin a l. "Re s t ",
e m p o r t u g u ê s , p od e d iz e r "d e sca n so ", e vid e n t e m e n t e . M a s
e m "m u s i q u ê s " t e m u m a t r a d u çã o m u it o clar a e t é cn ica , qu e
se refere às p au sas, o silê n cio d o d iscu r so m u s ic a l. To d o o ar-
gu m e n t o d o livr o n ã o d e ixa d e ser est e: o sé cu lo XX foi o p e-
r ío d o e m qu e n ad a p a r o u , e m qu e m e sm o as p au sas se t o r n a -
r a m r u íd o s; n a ver d ad e, foi o sécu lo e m que sobretudo as pausas

* Essa tábua de proibições foi publicada originalm ente no caderno de pro-


gramação do Metropolitan O pera de Nova York, e depois saiu na revista
Stagebill. Versões editadas são usadas por diversas sociedades de concerto
norte-am ericanas. (Tradução m in h a.) ** John Cage, Silence. Middletown :
Wesleyan Un iversit y Press, 1973, p. 8. (Tradução minha.)

94
se t o r n ar am r u íd o s, e m que n in gu é m alm ejava a t r an q u ilid ad e.
Ta l c o m o t r a d u z id a e n t r e n ó s , o se n t id o d a p a la vr a "r e s t " fi-
co u sen d o o d e "r e st o ", o qu e sob r a. Pr e se r va n d o o d iscu r so
au t or it ár io d os va n gu a r d ist a s, segu n d o o q u al "o qu e sob ra é
r u íd o — m ú sica boa m e sm o é est a a q u i, a do jo ve m e b o m sé -
cu lo XX", p e r d e m o s o elogio à in t r o sp e cçã o .
Tr a d u z ir é escolh er. A verd ad e é que a escolh a da t rad u ção é
in d u zid a e ju st ificad a. Ro ss cit a n o fron t isp ício a passagem final
de H a m le t : "The rest is silence", que qu er d izer , evid en t em en t e,
"o rep ou so (d escan so, son o) é silên cio". O t ext o já h avia sid o t ra-
d u zid o em 1978, por O scar Men d es, com o " O rest o é silên cio", e
d epois por Millô r Fer n an d es, que p reserva a m esm a con st r u ção.
Ga n h a m o s u m d iálogo e m p o r t u gu ê s, u m d iálogo n ad a p r ová-
ve l, en t r e o livr o de Ro ss e O resto e'silêncio de Er ic o Ve r ís s im o *
D e q u alq u er m o d o , q u an d o Ro ss p r o vo ca c o m "o r e st o / si-
lê n cio é r u íd o ", ele p r e se r va u m p arad oxo ap aren t e. D o p on t o
d e vist a p e r ce p t ivo , a au sên cia d e so m é an t es d e t u d o u m a i m -
p o ssib ilid ad e. N e u r o lo gica m e n t e , o silê n cio só p od e ser co m -
p r e e n d id o at r avés d e ce r t o gr au d e a b st r a çã o c o n c e it u a i, o u
in c o n s c iê n c ia m e s m o , d as a t ivid a d e s so n o r a s; m e s m o u m a
p essoa su r d a d eve t er r efer ên cias a u d it iva s. Co m o d e scr e ve u
Joh n Ca ge , abst er-se da exp er iên cia au d it iva com p let am en t e —
o u vir o silê n cio n o sen t id o est r it o — é im p o ssíve l.

* O s tradutores do português já nos brindaram com algumas gafes deliciosas.


O resto é ruído n em se aproxim a da graciosa Filosofia em nova chave, como
foi traduzido o título da obra de Susanne Lan ger, por exem plo, cujo origin al
é Philosophy in a New Key, o que quer dizer Filosofia em um nova tonalidade —
tonalidade m u sical m esm o, d ó, ré, m i m aior e t c ; a música como sím bolo
sem iót ico é a prin cipal preocupação da pensadora norte-am ericana ao longo
do livro. O ut ra gafe famosa é a de uma biografia de Brah m s, quando a refe-
rência à "form a AB A" se traduz pela "form a Lá-Si-Lá" — u m erro crasso que
toma a estrutura pela transliteração m usical das notas latinas e seu correlato
anglo-saxão. Coisas de Google Tran slator avant la let t re.

95
VI I

E m 2003 p r esen ciei u m dos even t os m ais im p ort an t es da m in h a


vid a m u sica l. Fo i u m r ecit al c o m o vio lo n ce list a b r asileir o An -
t on io Men eses e o p ian ist a n ort e-am erican o Me n a h e m Pressler.
N o p r ogr am a, algu m as son at as para violon celo de Beet h oven .
A p r i m e i r a p a r t e d o p r o gr a m a in icia va - se c o m a Sonata
Opus 102 n?i, cu jo p r im e ir o m o vim e n t o d ivid e-se e m d u as par-
t es, an d an t e e allegro viva ce . O an d an t e, c o m n ão m ais de t r ês
m in u t o s , r e se r va u m d os m o m e n t o s m ais su b lim e s d e t od o o
ca t á lo go b e e t h o ve n ia n o . D e a lgu m m o d o , o q u e M e n e s e s e
Pr essler r ealizar am n ão er a p o ssíve l, est ava fora de q u alq u er r a-
zoab ilid ad e d e b o m o u ó t im o n u m a p er fo r m a n ce m u sica l: o u -
vim o s algo sim p le sm e n t e p er feit o. O p ú b lico da Sala Ce cília
M e ir e le s , in c lu in d o e u , ap lau d im o s em o cio n ad o s o q u e o u vi-
m o s. O s ar t ist as r e ce b e r a m os ap lau sos e n t r e o lh a n d o -se , an -
t es de segu ir a p e r fo r m a n ce .
Ap ó s o c o n c e r t o , sa ím o s p a r a ja n t a r , os a r t ist a s e a lgu n s
am igos. Ap ó s t aças d e vi n h o , t ive a co r agem d e co m e n t a r os
ap lau sos fora d e h o r a , d iz e n d o q u e t u d o p a r e cia t ão su b lim e
q u e e u m e sm o m e ju n t a r a aos r e ca lcit r a n t e s.
Fo i q u an d o An t o n i o n os s u r p r e e n d e u . E co n t o u q u e eles
h a via m feit o a so n a t a e m o u t r a s t r ê s cid a d e s an t es d a q u ela
p er fo r m a n ce n o Rio d e Jan eir o . E e m t od as elas o p ú b lico h a-
via ap lau d id o e xa t a m e n t e n aq u ele m o m e n t o , n a p au sa e n t r e
as d u as p art es do p r im e ir o m o vim e n t o . An t e s da p er fo r m an ce
n a sala de co n ce it o s car io ca, segu iu Me n e se s, ele e Pr essler es-
t avam an sio so s: q u e r ia m m a n t e r o alt o n ível das ú lt im as ap re-
se n t a çõ e s e im a gin a va m o q u ão b o m ser ia se a p lat eia ca r io ca
r esp o n d esse esp o n t an eam en t e, n aq u ele lu gar "in a p r o p r ia d o ",
c o m ap lau sos.
Ap r e n d i u m a lição . Ap la u d in d o , o u seja, o u vin d o e r esp o n -
d en d o aos ar t ist as, h a vía m o s feit o o q u e d evia ser feit o.

96
Sugestões de leitura

Lyd ia Go e h r co m seu The Im aginary Museum of Musical W orks:


An Essay in the Philosophy of Music ( O xfo r d : O xfo r d U n ive r s it y
P r e s s , 2007) segu e o m e lh o r in ve n t á r io das forças id e o ló gica s
qu e or gan izam as salas de co n cer t o . Al e x Ro ss lid a c o m o t em a
e m en saios esp ar so s, e u m a co n fe r ê n cia b ast an t e e st im u la n t e
p a r a a Ro ya i P h i l h a r m o n i c So cie t y, sob o t ít u lo " H o l d Yo u r
Ap p la u se : In ve n t in g a n d Re in ve n t in g t h e Cla s s ic a l Co n c e r t ",
est á d isp o n íve l n a in t e r n e t . Ric h a r d T a r u s k i n , n o t e r ce ir o vo -
lu m e d e seu The Oxford History of W estern Music ( O xfo r d : O x-
ford U n ive r s it y P r e ss, 20 0 9 ) , d á excelen t es in sigh t s sob re o t ó-
p ico . N ã o é p o ssíve l, t a m b é m , d eixar de r eco m en d ar Bayreuth:
A History of the W agner Festival de Frederic Spotts ( N e w H a ve n :
Ya le U n ive r s it y P r e ss, 1996).
D o p o n t o d e vis t a d a d is c u s s ã o e s t r it a m e n t e p o é t ic a , as
co n fe r ê n cia s de Jo h n Ca ge , a ce ssíve is n o s livr o s Silence ( M i d -
d le t o wn : W e s l e ya n U n i ve r s i t y P r e s s , 1961), A Yearfrom Mon-
day ( M i d d le t o w n : W e s l e ya n U n i ve r s i t y P r e s s , 1967) e Em pty
W ords ( M id d le t o wn : W e s le ya n , 1979), são r evelad or as. Algu n s
d eles já for am p u b licad os e m p o r t u gu ê s.

97
7-
O m ín im o que você precisa ou vir
para ou vir m úsica clássica...

To d o s qu e gost am os de m ú sica clássica acab am os u m d ia p o r


p er gu n t ar co m o o r gan izar n osso co n h e cim e n t o a r esp eit o . To -
d os que ad or ar iam gost ar d e m ú sica clássica b u sca m in e vit a ve l-
m e n t e p esq u isar u m m o d o d e co n h e cê -la m e lh o r , e p r o c u r a m ,
m u it a s ve z e s , u m a e s p é c ie d e m inim a m oralia, u m a p e q u e n a
ét ica d o o u vin t e d ed icad o. D e u m lad o o u de o u t r o , en t r e m e -
lô m a n o s e in ic ia n t e s , a su ge st ã o q u e se p od e d ar é se m p r e a
m e sm a : o u vir , o u vir e o u vir .
E co m o n ã o h á r egr as p ar a a e scu t a , c o m o n ã o h á e s p a ç o
m ais ou m en o s ad equ ad o e t od a op or t u n id ad e d isp o n ível p od e
gar an t ir u m a b oa fr u ição , o n osso é o m e lh o r d os m u n d o s. Po-
d e m o s o u vir e m ca sa , n o c a r r o , n as salas d e c o n c e r t o , d e it a -
d o s, p r est an d o a t e n çã o , cu r t in d o os filhos o u lavan d o a lo u ça .
A m a io r q u e st ã o , n a ve r d a d e , est á n o fato d e a m ú sica clássica
se r u m u n ive r s o va st o , c o m u m r e p e r t ó r io d e s é c u lo s . A p r i -
m e ir a d ificu ld ad e d a t arefa, e t alvez a m a io r , é d e fato cu r at o -
r ia l: d e cid ir o qu e se d eve co n h e ce r .
Est e capít ulo p rop õe u m a seleção guiada pelo rep ert ório, n u m a
esp écie de p an orâm ica básica para u m ou vin t e cu rioso, ou aquele
ou t ro, d ed icad o, que pret en d e organ izar part e de sua d iscot eca.
Algu n s p od em pergu n t ar, além d isso: em que ord em as p eças
aqui recom en dadas d evem ser ouvidas? A p rin cíp io, sugiro que n ão
se p reocu p em co m u m a ord em d et erm in ad a. Ma s, é claro, o reper-
t ório prod u zid o en t re os sécu los x v i l l e XIX cost u m a ser o m ais pa-
lat ável. D e qualquer m od o, após est e pequ en o p er cu r so, m esm o

98
que sirva apen as com o in t rod u ção, será m ais fácil cada u m id en t i-
ficar suas preferên cias e escolh er e m que gostaria de se aprofundar.
Pa r a q u a lq u e r se le çã o p r o p o st a , e st o u c o n ve n c id o d e q u e
im p o r t a t an t o sab er "o q u e " e o "c o m o ", q u an t o o "c o m q u e m ".
E m m ú sica , os in t é r p r e t e s são se m p r e o ver d ad eir o can al p ara
n ossa sen sib ilid ad e (e su sp eit o de livr o s d e h ist ór ia d a m ú sica
qu e n ã o os le va m e m co n sid e r a çã o ) . Por isso , m a is d o qu e t u d o ,
est e se r á u m gu ia s u i ge n e r is, a a p o n t a r n ã o ap en as co m p o si-
çõ e s e co m p o sit o r e s, m as in t é r p r e t e s e gr a va çõ e s e sp e cífica s,
p o is, c o m so r t e , m u it a s d elas est ar ão d isp o n íve is p elos ap lica-
t ivo s d e st r e a m in g o u p elo Yo u Tu b e .
O gu ia aq u i su gerid o ser á p ecu lia r t a m b é m p o r ser absolu t a-
m en t e id io ssin cr át ico . N ã o cr eio que h aja u m câ n o n e d efin it ivo ,
e n t ã o , as obras qu e elen co a segu ir são t an t o as qu e co n sid er o
fu n d a m e n t a is q u a n t o aq u elas q u e m e a p r o xim a r a m p e sso a l-
m e n t e d a m ú sica clássica. Para san ar even t u ais p r o b lem as, e m
a m b o s os ca so s, se m p r e q u e p o ssíve l t e n t a r e i ju st ifica r a p r e -
sen ça d e d et er m in ad a p eça co m o p ar t e d e u m r ot eir o d id át ico .
D e ve ficar clar o ain d a qu e a list a só t e m p e r t in ê n cia se se r vir
d e e st ím u lo à cu r io sid a d e . A t arefa p o st e r io r — t arefa de t od a
u m a vid a — d ever á ser a de co n st r u ir u m a list a p r ó p r ia, que d eve
ext r ap o lar e m d ezen as d e p ágin as as m in h a s in d ica çõ e s. Aliá s,
est e ca p ít u lo e su as p á gin a s n ã o p o d e m se r e n t e n d id o s se n ã o
co m o ist o: e xp lo r a çõ e s in icia is p ara u m a seleção p essoal.

Seis quartetos, Opus 33, d e Jo se p h H a y d n

Q u e r saber q u al o seu lim it e para coisas ót im as? O s Seis quartetos,


Opus 33 (1781), de Josep h H a yd n , cada u m co m cer ca de vin t e m i-
n u t o s, são a m e lh o r m a n e ir a de se fazer essa p er gu n t a. Se m p r e
a gr a d á veis, sem p r e d ecor osos, p or vezes ext ravagan t es e m seu
sen so de h u m o r , são u m a e sp é cie de su m a , a sín t ese m á xim a d o
que p od er ia ser at in gid o c o m os m eios do est ilo clássico . E t u d o

99
t ão divertido, in t eligen t e e b e m ar t icu lad o q u e , e m algu m m o -
m e n t o , p od e p ar ecer d em asiad am en t e b o m .
H a yd n co n se gu iu m u it o ced o e m su a ca r r e ir a e n t e n d e r as
forças en vo lvid as n a t r a n siçã o e n t r e a m ú sica da ge r a çã o q u e
lh e a n t e ce d ia e aq u ela d a q u al faria p ar t e. E e r a m t em p o s d e
m u d a n ç a s d r a m á t ica s, d e u m a c u lt u r a e m p le n a e fe r ve scê n -
cia r e vo lu cio n á r ia . Co m p o n d o se m p r e at en t o ao seu p ú b lico ,
H a yd n m o s t r o u co m o a c o m u n ic a ç ã o d ir e t a p o d e r ia m a n t e r
u m alt o n íve l, p or a ssim d iz e r , "a r ist o cr á t ico ".
Co m o t od o r ep er t ór io an t er ior à segu n d a m et ad e do sécu lo
XIX, m u it os in t érp ret es at u alizam a d icção de H a yd n n os qu art e-
t os a p ar t ir da pesqu isa co m in st r u m en t o s an t igos, o que n ão i m -
pede ver sões segu ras co m in st r u m en t os m ais m od er n os. O Q u a -
t u o r Mo sa íq u e s ou o Q u a r t e t o Ko d á ly r e n d e m boas a u d içõ e s,
bast an t e con t rast an t es en t re s i. Q u a lq u e r que seja o in t ér p r et e,
u m a boa ve r sã o d est e ciclo d eve m ed ir -se p or aqu ela sofist ica-
ção exp r essiva, e m h u m o r es e am b ien t es d iver sos, à qu al d eve
som ar-se ou t r a sofist icação, da p en a de H a yd n , que é est r u t u r al.
O segu n d o qu art et o da sér ie é, n esse sen t id o , lapid ar: c o m
u m fin al falso, p od em os im agin ar H a yd n fazen do piada co m seu
p ú b lico , forçan d o-o a ap lau d ir n o m o m en t o "er r ad o". Ge st o d e
u m causeur n ot ável, com o t alvez u m Er i k Sat ie avan t la let t re (d i-
feren t e do fr an cês, n o en t an t o, p ois o h u m o r de H a yd n é o da r i-
sada co n ju n t a, n ão do sarcasm o ressen t id o), a sér ie do Opus 33 é
p len a de saíd as at íp icas e ab solu t am en t e gen iais co m o essa. N a
ín t egr a, os Seis quartetos, Opus 33 p o d em ser vir , para u m ou vid o
at en t o, co m o a m ais p u r a co n cr et ização da sen sib ilid ad e t o n a l,
aqu ela qu e H a yd n in eq u ivocam en t e aju da a am ad u recer.

Concertos para piano n-23 e 27, d e W . A . M o z a r t

Es c o lh e r en t r e os co n ce r t o s p ara p ian o (1773-91) d e W . A. M o -


zar t é u m a t arefa r elat ivam en t e in ó cu a. O gost o p essoal n ão é

100
capaz d e ar r an h ar n e m a b eleza — p ara m u it o s, o m ais alto gr au
d e b e le z a p o ssíve l — e m u it o m e n o s a im p o r t â n cia h ist ó r ica
d o ciclo co m p let o . O in q u e st io n á ve l, n o en t an t o , é q u e, sen d o
n ad a m en o s qu e 27 jóias d o gé n e r o , Mo z a r t clar am en t e r eser va
ao p e r ío d o d e su a m a t u r id a d e as ob ras d e m a io r im p a ct o . As -
s i m , est ão e n t r e os d e z ú lt im o s co n ce r t o s as gem as d essa vis -
t osa cor oa, qu e co m p õ e o cen t r o d e su a p r o d u çã o in st r u m e n t a l.
En t r e elas, qu al ou r ives en t re p r eciosid ad es, elejo o Concerto
a
n 23 ( K. 4 8 8 , d e 1786) e o ú lt im o , o Concerto n-27 ( K. 59 5, d e
1791), co m o os m a is b r ilh a n t e s. Ele jo - o s , r e it e r o , p o r p u r o vo -
lu n t a r ism o , m as t a m b é m p o r ach á-los su ficien t em en t e ilu st r a -
t ivos das q u alid ad es d o cat álo go .
O K. 488, por exem plo, d em on st ra a capacidade gen u ín a de Mo -
zart de evocar ao lon go da p eça diferen tes im agen s, n os levan do da
alegria solar ao u n iverso lú d ico n os m ovim en t os ext rem os — n ão
sem passar pela atm osférica e quase sin gela con t em plação bu cólica
do segun do m ovim en t o. Tu d o sem jam ais d eixar perd er cert a sen -
sação de absoluta u n id ad e. O K. 595, por sua vez, expressa u m a es-
p écie de m elan colia, aquele t ipo de expressivid ad e t rágica que n os
p erm it e an t ever, m esm o en t re sorrisos, u m t ipo in defin ível de t ris-
t eza ou resign ação; o ú lt im o con cert o para pian o de Mozar t , t alvez
n ão à t oa u m a de suas ú lt im as obras, é u m a p eça out on al feita por
u m art ist a ain da relat ivam en t e jovem e plen o de en ergia, m as que
já t rad u z e m si m u it o da in qu iet ação t ípica das reflexões sobre a fi-
n it u d e. Ao m en os é isso que o con cert o n os p erm it e pen sar.
Me sm o an t es d e se t orn ar u m com p osit or para in t ér p r et es es-
p ecialist as (resu lt ad o dos esforços d a "p r át ica h ist o r icam en t e i n -
for m ad a"), Mo z a r t sem p r e foi m ais afeito a p ian ist as d e algu m a
d elicad eza. E m gr avação , t alvez o m ais p u n gen t e d os regist ros
siga sen d o aqu ele d eixad o p o r Cla r a H a s k il. D e t e n t o r a d e u m a
fran qu eza an gelical, ela r ea liz o u o q u e p ara t od os n ó s é u m a es-
p é cie d e benchm ark, a ver sã o in su p er ável p ara d u as o u t rês gera-
çõ es d e p ian ist as. C o m orqu est ras e m aest r os m u it o d iferen t es

101
(o Concerto n-23 co m a Sin fón ica de Vi e n a e Pau l Sach er , o Con-
certo n a 27 c o m a Fila r m ó n ica d e Be r l i m e Fe r e n c Fr icsa y) , ela
m o st r a co m o p od e agir a lgu é m q u e , se m d e ixa r d e ser o co n -
t role e cen t r o em ocion al de toda p er for m an ce, jam ais d eixa seu
p r ot agon ism o con fu n d ir-se co m est r elism o o u vaid ad e.
U m a ver são p ou co com en t ad a do Concerto n s2j é aqu ela de
Fr ie d r ich Gu id a e Niko lau s H a r n o n co u r t , e aq u i a m en ção ao re-
gen t e é fu n d am en t al, p ois H a r n o n co u r t leva a escr it a orqu est ral
m o zar t ian a a ou t r o n ível de d et alh am en t o. En t r e aqu elas c o m
in st r u m e n t o s an t igos, a ver sã o d e M a lc o lm Bils o n ( co m Jo h n
Elio t Gar d in er e a En glish Baroque Soloist s) segue a m ais origin al
e, a d espeit o do rigor filológico, p ossu i absolu t a espon t an eid ad e.
C o m a En g l i s h Ch a m b e r O r c h e s t r a , e m in st r u m e n t o s m o -
d er n o s, o n or t e-am er ican o M u r r a y Perah ia foi r esp on sável p or
u m a in t egr al r esp eit ável, n a q u a l, co m o regen t e e solist a, apre-
sen t ou m agist ralm en t e as lu zes e som bras do m est re de Salzb u rg.

Paixão segundo são Mateus, d e J. S. Ba c h

As Paixões d e J. S. Ba c h são t alvez a m a is alt a e xp r e ssã o d est e


q u e , p ara m u it o s , é o m a io r co m p o sit o r d e t od a a h ist ó r ia d a
m ú s ic a . D a s q u a t r o le it u r a s d as Es c r i t u r a s p la n e ja d a s p e lo
co m p o sit o r , so b r e vive r a m d u a s, a Paixão segundo são Mateus
e a Paixão segundo são João.
Ap r esen t ad a pela p r im e ir a vez n a cid ad e de Le ip z ig, e m 1727,
a Paixão segundo são Mateus foi esq u ecid a co m a m or t e do co m -
p osit or, e m 1750. Re t o r n o u à lu z apen as e m 1829, p ela m ã o de
Fe li x Me n d e lsso h n - Ba r t h o ld y, e, d esd e e n t ã o , im p ô s- se d efi-
n it iva m e n t e co m o u m ver d ad eir o m o n u m e n t o da cu lt u r a o ci-
d e n t a l. Si m , e m b o r a p en sad a co m o ob ra d e cu lt o , p or u m ar-
t ist a religioso que en carava com o de e xt r e m a resp on sab ilid ad e
a t arefa d e e xp r e ssa r a in t en sid a d e d a h ist ó r ia d o so fr im en t o
de Cr i s t o , a verd ad e é qu e a obra r esist e co m n at u ralid ad e n as

102
salas de con cer t o. C o m suas duas orqu est ras e d ois cor os, solis-
tas in st r u m en t ais e vocais, as m ais de duas d ezen as de seções que
co m p õ e m est a Paixão, ou vid as in d ep en d en t em en t e ou com o u m
t od o, são a m ar ca da p ot ên cia do en gen h o h u m a n o .
En t r e as ve r sõ e s da Paixão segundo são Mateus, u m a d eve ser
assist id a e m víd e o , even t u alm en t e ad q u ir id a, para b e m de qu al-
q u er íilm o t eca, qu e é aqu ela da Filar m ó n ica de Be r lim sob a r e-
gên cia de Sir Sim o n Rat t le, co m a en cen ação de Pet er Sellars. U m
p rojet o a r r isca d o , cu r io so m e sm o , de t r at ar co m o óp er a o qu e
óp er a n ão é, m as cu jo resu lt ad o foi u m dos esp et ácu los m ais co-
m oven t es da h ist ória da m ú sica recen t e. O u t r a ver são que m e t ira
o p r u m o é a qu art a gravação de Nikolau s H a r n o n co u r t , que con t a
co m u m elen co de solist as est elares, com o Ch r ist o p h Pr égar d ien ,
Mat t h ias Go e r n e , Ch r ist in e Sch àfer, en t r e ou t ros. A su m a do t a-
len t o h u m a n o à m e r cê da m ú sica de seu m aior gé n io .

Gl e n n Go u ld

Mu it o s esp ecialist as o d et est am , ou t ros t an t os o ve n e r a m . Ma s


todos con cor d am que ele é u m dos gran des art ist as da h ist ória. O
pian ist a can aden se Gle n n Go u ld é u m a figura especial em m u it os
sen t idos e, para en t en d ê-lo, in d o além do b elíssim o d ocu m en t ário
d irigid o por Fran çois Gir a r d (Trinta e dois curtas sobre Glenn Gould,
de 1993), su giro a au d ição de suas in t erp ret ações para as Variações
Goldberg, de Joh an n Seb ast ian Ba ch . A p r im e ir a foi realizad a e m
1955 e t em p ou co m en os de qu aren t a m in u t os; a segu n d a, de 1981,
p ossu i algo e m t orn o de d ez m in u t os a m ais. As duas ver sõ es são
m agn ét icas, e in st r u m en t alm en t e in exp licáveis.

Sonata Kreutzer, d e Be e t h o ve n

A Sonata Kreutzer (1803) é lit eralm en t e u m a das obras m ais célebres


de todo o rep ert ório clássico. Talvez t en h a alcan çado t al repu t ação

103
dian t e da n ovela ext rem am en t e popular de LievTo lst ó i, in t it u lad a
A sonata a Kreutzer. N o en t an t o, m esm o an t es da can on ização li-
t erária, seu n om e já in t egrava o gran de rep ert ório de con cert os.
Por q u e essa p e ça ch a m o u a a t e n çã o de To lst ó i n ão se sabe
ao ce r t o . Ta lve z seja a gr a n d ilo q u ê n cia : é lon ga e agit ad a, ex-
p r essan d o m e sm o ce r t a o b se ssã o — an áloga aos t er m o s d e u m
p e r so n a ge m d a t r a m a — , e n q u a n t o p ia n o e vio lin o n u n c a i n -
t e r r o m p e m se u d iálogo qu ase fr e n é t ico . H is t o r ic a m e n t e , é r e-
levan t e n o t ar q u e, p o r m u it o t e m p o , o q u e co n h e ce m o s co m o
"s o n a t a p a r a v i o l i n o " foi m u i t o a p r o p r ia d a m e n t e c h a m a d a
d e "so n a t a p ar a p ia n o e vio lin o ". A o r d e m d as r e fe r ê n cia s p a-
r ece in d ica r q u e o vio lin o ser ia e ve n t u a lm e n t e d isp e n sá ve l —
m as n ão n a Kreutzer. N e la , m ais qu e e m q u alq u er obra a n t e r io r
de Be e t h o ve n p ara p ia n o e vio lin o , o t alen t o e a t é cn ica d e a m -
bos os in st r u m e n t ist a s são e sse n cia is.
Ta is t e m p e st a d e s in s t r u m e n t a is s e r ve m ao m e lh o r d o r o -
m a n t ism o b eet h o ven ian o . M a is q u e m u it a s d e su as sin fon ias e
q u ar t et os de co r d a s, é c o m a Kreutzer qu e p o d e m o s e n t e n d e r
de m o d o d ir et o aq u ele su r p r e e n d e n t e ar r eb at am en t o q u e ch o -
co u m u it o s co n t e m p o r â n e o s do co m p o sit o r e qu e segu e e n ca n -
t an d o t od os q u e se d isp õ e m a e n t r a r n est e u n ive r so p a r t icu la r
q u e é a selva e sp ir it u a l d o sr. Lu d w i g va n .
Ge r a lm e n t e r egist r ad a c o m a lgu m a o u t r a e n t r e as n o ve so-
n at as p ar a vio lin o e p ia n o d o co m p o sit o r , e n t r e as gr a va çõ e s
d isp o n íve is su gir o d u as: It z h a k P e r lm a n e Vl a d i m i r As h k e n a z y
( ju n t o c o m a se n su a líssim a Sonata prim avera) o u aq u ela c o m
a e xce le n t e Isab elle Fa u st e se u p a r ce ir o Ale xa n d e r M e ln ik o v
(p ar t e de u m a in t egr a l in e sq u e cíve l) .

Viagem de inverno, d e F r a n z Sc h u b e r t

Viagem de inverno (1828) é u m ciclo d e ca n çõ e s o r igin a lm e n t e


escr it o para vo z e p ian o, e e m alem ão. O exer cício é im p or t an t e:

104
se o ou vin t e n ão é fluente n a lín gu a ge r m â n ica , p od er á ou vir i n -
gen u am en t e (com o ou vim os qu alqu er can ção e m ou t ro id iom a)
levad o p ela so n o r id a d e m á gica da vo z e d o p ia n o , s e m r e co -
n h e ce r o qu e d iz e m as p alavras. Se for u m p ou co m ais cu r io so ,
p o d e r á aco m p an h ar c o m o t ext o t r a d u z id o , co m o e u m e sm o
aco m p an h ei e m m in h a ad o lescên cia os lan çam en t o s d e d iscos
de ban d as co m o P in k Flo yd o u Pear l Jam .
M u i t o a p r o p ó sit o , a for m a é a m e s m a d os gr an d es álb u n s
d e r o c k . Sc h u b e r t d e cid e p o r u m a e st r a t é gia "fo n o g r á fic a "
avan t la le t t r e , e m p e ça s in d e p e n d e n t e s de t r ê s o u c in c o m i -
n u t o s, q u e, en cad ead as t al com o e st ã o , r esu lt am n u m segu n d o
se n t id o , e ve n t u a lm e n t e m a is d en so e sofist icad o.
E q u a l o se n t id o d e st a Viagem de inverno, c o m t e xt o d o
p o e t a , se u c o n t e m p o r â n e o , W i l h e l m M u l l e r ? T a l co m o o ál-
b u m W ish You W ere Here, d o P in k Fl o yd , h á d u as n a r r a t iva s
e n vo lvid a s. O ciclo sch u b e r t ia n o fala, a p a r e n t e m e n t e , d e p ai-
sagen s en evoad as, a b u sca p elo acon ch ego de lar eir as e o calor
das a m iz a d e s; m a s, m u it o p r o n t a m e n t e , a m ú sica e as h a r m o -
n ia s en cad ead as r e fo r ça m o u t r o t e m a , m a is c o m p le xo e ver -
d a d e ir o , o n d e o in ve r n o n ã o é e xt e r io r , m as ín t im o . Viagem
de inverno t r a t a , p o r t a n t o , da d e so la çã o e m o cio n a l, a t íp ica i n -
q u ie t a çã o r o m â n t ica e a in a d e q u a çã o so cia l d os t r á gic o s, se-
ja m eles p oet as, am an t es o u in ju st iça d o s.
C o m r efer ên cias a n oivas e co m p an h eir as, o ciclo t alvez t e-
n h a sid o origin alm en t e p en sad o para vozes m ascu lin as (em bora
a even t u al h om ossexu alid ad e do com p osit or já t en h a p er m it id o
t eses con t r ár ias). N a p r át ica, h á m u it as gr avaçõ es r e co m e n d á -
ve is, co m can t ores e can t oras, regist ros graves e agu dos. Se o ou -
vin t e qu iser u m a exp eriên cia rad ical, deve com eçar co m Th o m a s
Q u ast h off e sua com oven t e gravação co m Dan iel Bar en b oim , d is-
p on ível e m DVD e Blu -Ray (excert os n o You Tu b e). A exp r essivi-
dade de u m a m ú sica e t ext o t ão p u n gen t es, sob o com an d o de
u m art ist a t ão ext raord in ário qu an t o t r ágico, com o é o b arít on o

105
alem ão (vit im ad o pelo t rat am en t o co m t alid om id a), é das expe-
riên cias m ais im p ression an t es da m ú sica do n osso t em p o.
Se a p r e fe r ê n cia for c o n s t r u ir su a r e c e p ç ã o da ob r a n u m
cr escen d o de e m o ç ã o , d eve-se co m e ça r co m as ve r sõ e s de Pe-
t er Sch r eier (est ilist icam en t e m ais corret o co m An d r ás Sch iff, ou
color ist icam en t e m ais im p r ession an t e co m Sviat oslav Rich t e r ) ,
e delas passar pelas gravações de D ie t r ich Fisch e r -Die sk a u (com
Ge r a ld Mo o r e ou Alfr ed Br e n d e l ao p ian o, o u , m in h a p referid a,
co m Mu r r a y Perah ia). En t r e as m u lh e r e s, pod e-se o u vir reit era-
d am en t e Br igit t e Fassbaen d er ( co m Ar ib e r t Re im a n n n o p ian o).

Concerto para violino n-1, d e N i c c o l ò P a ga n in i

O Concerto n-1 de Nicco lò Pagan in i foi com p ost o n a It ália, prova-


velm en t e en t re 1817 e 1818, época e m que o com p osit or estava n o
auge da car r eir a com o art ist a it in er an t e (ele sair ia p ela p r im e ir a
vez de seu p aís n at al apen as e m 1828). D o pon t o de vist a est ilís-
t ico , a obra é in eq u ivocam en t e in sp ir ad a n o am b ien t e da ó p er a,
co m in st r u m en t ação e in sp iração m elód ica ret irad a do u n iver so
do bel-canto de Ro ssin i, Be llin i e D o n iz e t t i. O vir t u o sism o olím -
p ico , o b via m e n t e , é r esu lt ad o d a r o t in a , p or a ssim d iz e r , "c ir -
ce n se " do com p osit or. Se o leit or qu er en t en d er o u n iver so dos
m od er n os gaitar heroes, a figura do vir t u ose que alu cin a fas co m
passagen s in st r u m en t alm en t e im p ossíveis e m su a d ificu ld ad e e
r ap id ez, bast a saber que t oda su a h ist ória co m e ça n essa obra. O
Prim eiro concerto d em on st ra a t écn ica d iabólica que fez a fam a do
seu cr iad or e gerou as len d as e m t or n o de seu pact o d e m o n ía co ,
e segu e — c o m ou se m referên cias m efist ofélicas — im p r essio-
n an d o os p ú b licos de t odas as ép o cas.
M i n h a gr avação p r efer id a — le ve , co lo r id a , b o m b á st ica —
é a d o vio lin ist a Salvat or e Ac c a r d o , c o m a Lo n d o n P h ilh a r m o -
n ic O r c h e s t r a sob r e gê n cia de Ch a r le s D u t o it .

106
Valsas, d e C h o p i n

As Valsas (1824-49) de Ch o p i n t alvez co m p o n h a m o ciclo m ais


ad equ ad o p ara o p r im e ir o con t at o c o m a m ú sica in st r u m e n t a l.
N ã o são p ou cos os am igos qu e r elat am t er sid o co m as Valsas, e
seu s m ais d ifer en t es in t é r p r e t e s, qu e c o m e ç o u se u am o r p elo
clá ssico . As p r im e ir a s p a r e ce m m ú sica d e d esen h o a n im a d o ;
ou t r as são p u n gen t es a n ão p od er m a is.
Tr a t a -se d e u m r e p e r t ó r io le ve , co m p o st o o r igin a lm e n t e
p ara p er fo r m an ce de d ilet an t es e m o ca siõ e s d esp r et en sio sas.
D e ve se r o u vi d o , a s s i m , p o r a d u lt o s, a d o le sce n t e s e c r i a n -
ça s. D i n u Lip a t t i e Ar t h u r Ru b in s t e in fizeram b e líssim a s in t e -
gr ais, a ssim c o m o , m ais r e ce n t e m e n t e , é b e líssim a a in t egr al
de Alic e Sar a O t t . H á ain d a as ve r sõ e s ju st am en t e elogiad as d e
Sa m s o n Fr a n ç o is e N i k i t a Magaloff. U m a o u t r a , u m p o u co
m a is h e t e r o d o xa , qu e d e a lgu m m o d o se d ist a n cia d a m e la n -
colia qu ase d oen t ia co m qu e co st u m a ser lid o o com p osit or po-
lo n ê s, é a d o p ia n ist a r u sso Ale xa n d e r Br a ilo wsk y.

Segunda sonata e a "M a r c h a fú n eb r e", de Fr é d é r ic Ch o p i n

M i n h a p r im e ir a m e m ó r ia m u s ic a l foi c o m essa o b r a. A "M a r -


ch a fú n e b r e ", p r o p r ia m e n t e , ap arece n o t e r ce ir o m o vim e n t o
d e u m a p e ça m a io r , e m q u at r o p ar t es, a Segunda sonata (1840)
p ar a p ian o d e Fr é d é r ic Ch o p i n . T u d o o qu e d e m e lh o r a m ú -
sica clássica p od e oferecer est á lá: e m o çã o d ir et a e im p a ct a n t e ,
r eflexõ es sob re finitude e r e d e n ç ã o , u m cer t o p á t h o s h e r ó ico .
N a Segunda sonata co m o u m t o d o , e n a "M a r c h a " esp ecial-
m e n t e , C h o p i n est á a velar su a Polón ia n a t a l, t om ad a an os an -
t es p o r u m a vi r u l e n t a gu e r r a c i vi l . Su a m igr a ç ã o o for çar a a
d e ixa r am igo s, fam iliar es e ou t r as im p o r t a n t e s r efer ên cias i n -
t elect u ais e e m o cio n a is qu e jam ais o ab an d o n ar iam . E m seu s
im p act an t es set e m in u t o s, a "M a r c h a fú n e b r e " con t a co m u m a

107
se çã o c e n t r a l, d e e xp r e ssã o id ílica, t alvez in gé n u a , qu e m u it o
se assem elh a a u m a ca n çã o de n in a r . O co n t r ast e é e m o cio n a l
e n a r r a t iva m e n t e se lva ge m , u m co r t e cin e m a t o gr á fico e n t r e o
cor t ejo fú n eb r e e o son o in fa n t il.
N a e st r u t u r a ger al d essa so n at a, a "M a r c h a " segu e à e r u p -
ção vio le n t a d o sch e r z o — u m a e sp é cie d e d a n ça m acab r a q u e
o cu p a o segu n d o m o vim e n t o . Es t e d eve ser , a m e u ve r , o m o -
vim e n t o segu in t e ao q u al o o u vin t e d eve se fam iliar izar . M u i t o
r a p id a m en t e , a n a r r a t iva q u e leva d o segu n d o ao t er ceir o m o vi-
m e n t o — d o sch e r z o at é a "M a r c h a fú n e b r e " — p a r e ce r á n a t u -
r a l. E en t ã o ser á fácil u su fr u ir t od a a Segunda sonata, c o m seu s
q u at r o m o vim e n t o s de agon ia e p a ixã o .
En t r e as gran d es gr avações d isp o n íve is, a m ais flu en t e é a de
M a r t h a Ar g e r i c h . M a s , a p ó s d e gu st á -la , su gir o q u e o o u vin t e
t o m e c o n h e c im e n t o d a ve r sã o ar r eb at ad a, t é t r ica , e xp r e ssio -
n ist a q u ase, d o r u sso Vl a d i m i r H o r o w i t z ; p or fim, t alvez va lh a
a p en a co n fer ir u m "b u q u ê " m ais eq u ilib r ad o, c o m o m aio r dos
m e st r e s d est e r e p e r t ó r io : Ar t h u r Ru b in s t e in .

O idílio de Siegfried, d e Ri c h a r d W a g n e r

O idílio de Siegfried (1870) é u m a su ave e a m o r o sa co n t e m p la -


çã o , e Ric h a r d W a g n e r jam ais soar á t ão d e lica d o , t ão in t im ist a
e t ão p ou co t eat r al co m o o q u e se ou ve a li.
D ife r e n t e d o qu e su ger e, a ob r a n ão é u m e xce r t o d a ó p er a
Siegfried, t e r ce ir o d r a m a m u sica l d e O anel dos nibelungos. W a g-
n e r c o m p ô s se u Idílio co m o u m p r e se n t e d e a n ive r sá r io p ar a
su a segu n d a esp osa, Có s i m a Li s z t ( e x- m u lh e r d o am igo H a n s
vo n Bu lo w ) , q u e h a via acabad o d e d ar à lu z o p r im e ir o filho d o
ca sa l, Sie gfr ie d , n a scid o e m 1869. O s W a g n e r r e sid ia m en t ã o
n a Su íça , às m ar gen s d o lago de Lu c e r n a , e p o r isso seu t ít u lo
o r igin a l, Idílio em Tribschen, com o canto de passarinho de Fidi e
um nascer do sol alaranjado.

108
Su a p r im e ir a e xe cu çã o se d e u n a m a n h ã d e N a t a l de 1870,
q u an d o W a g n e r r e u n i u am igo s d a o r q u e st r a d o To n h a lle d e
Zu r i q u e , e o p r ó p r io r egen t e da o r q u e st r a ( H a n s Ric h t e r ) t o-
cou a p art e d o t r om p et e. Ao que p arece, Có sim a foi d esp ert ad a
n a q u ela m a n h ã p ela m e lo d ia de a b e r t u r a , u m a m ú sica cu jo s
so n s e h ist ór ia p a r e ce m evocar aqu eles raros m o m e n t o s on d e
a r ealid ad e p ar ece so n h o , e a vid a p arece ser sim p le s e au sp i-
cio sa. Se p u d e r esco lh er , p r efir a a ve r sã o o r igin a l c o m or q u es-
t r a d e câm ar a àq u elas c o m o r q u est r a sin fón ica.

Quinteto para clarinete, d e Jo h a n n e s Br a h m s

U m d os ú lt im o s t r a b a lh o s d o c o m p o s it o r a le m ã o Jo h a n n e s
Br a h m s , o Quinteto para clarinete (1891) é u m a su r p r e e n d e n t e
saíd a da ap osen t ad oria an u n ciad a u m an o an t es, e foi in sp ir ad o
p elo con t at o d o co m p o sit o r c o m o cla r in e t ist a Ri c h a r d Mú h l-
feld , a q u e m Br a h m s d e d ico u ain d a u m t r io e d u as son at as.
Br a h m s co st u m a ser u m co m p o sit o r co m alt o p od er de co n -
t e n ç ã o , e isso t r ad u z-se n o se u ca t á lo go , qu e ap r esen t a u m a
qu alid ad e m é d ia alt íssim a. N o Quinteto para clarinete a d ep u r a-
ção t é cn ica e p o ét ica gan h a u m a n o va d im e n s ã o , on d e a co m -
p lexid ad e d a for m a jam ais o b lit er a a co m u n ica çã o im e d ia t a .
Mu it o s a r gu m e n t a m qu e essa p e ça é o t r ab alh o d e câm ar a
m a is p r ofu n d o d e Br a h m s , e, e m b o r a p ossa p ar ecer u m a s im -
p lificação exager ad a d e s c r e vê - lo c o m o o u t o n a l, h á s e m d ú -
vid a u m t o m de m e la n co lia o u t r ist e z a a p e r m e a r t od a a p e ça .
Ta lve z o m a is su r p r e e n d e n t e do Quinteto seja a im e n sa p alet a
d e e m o ç ã o e d e t e xt u r a s, u m a lib er d ad e de gest o qu e é clar a-
m e n t e fru t o d o m e lh o r da m a t u r id a d e .
Em b o r a t rat e-se do t ip o de m ú sica qu e e m q u alq u er ve r sã o
co m o ve r á o ou vin t e — u m a p eça im p o ssíve l de soar m al — , as
gr avaçõ es qu e m e vê m de im ed iat o à m en t e são d u as: Ve r m e e r
Q u ar t et co m Ka r l Le ist e r , cu jo in st r u m en t o parece vir de ou t ro

109
p lan et a; e a segu n d a, lu m in o s a , c o m D a vi d Sh ifr in e o Em e r -
so n St r in g Q u a r t e t .

Quarta sinfonia, d e Gu s t a v M a h l e r

Mah ler t em n ove sin fon ias, a m aior part e delas co m m ais de u m a
h ora de d u ração. Dia n t e d isso, a Quarta sinfonia (1900) é u m a pe-
q u en a d elicad eza d o com p osit or , n ão apen as pelas d im e n sõ e s
r ed u zid as, m as pela exp r essivid ad e, qu e, n u m a orqu est ra quase
m o zar t ian a, con t a co m u m a sen sib ilid ad e h ar m ó n ica (m ais ou
m en os) or t od oxa, a d esp eit o do color id o e da "n a r r a t iva " sofis-
t icad os, cu lm in an d o n a sin gela can ção do ú lt im o m o vim en t o .
E n o ú lt im o m o vim e n t o , exat am en t e, que d escob r im os que
o e u p o é t ico d a Quarta sinfonia é in fa n t il, e in e q u ivo ca m e n t e
isso t o r n a , e m r e t r o sp e ct iva , a in d a m a is co m o ve n t e s os m o vi-
m e n t o s in icia is. O t ext o fala do fascín io à ch egad a n o Par aíso ,
e d a felicid ad e das le m b r a n ça s d aq u ilo qu e foi d e ixa d o . Si m ,
aos olh os d e u m a cr ia n ça , t u d o fica ain d a m e lh o r .
U m a r ar a gr avação de Be r n a r d H a it in k e su a O r q u e st r a Sin -
fón ica Re a l d o Co n c e r t g e b o u w d e Am s t e r d a m segu e c o m o
m i n h a in t e r p r e t a ç ã o id e a l. O u t r a s , c o m Cl á u d i o Ab b a d o e
Ricca r d o M u t i , são se m p r e elegan t es (t alvez est a seja, p elas si-
m et r ias e clar eza de id eias, u m a e sp é cie de "sin fo n ia it alian a").
Ma s a sop ran o M a r ia Ew i n g , qu e p a r t icip a d a gr avação de H a i -
t in k , é ain d a a m ais co n vin ce n t e ao t r a d u z ir u m a p eq u en a q u i-
m e r a , a d a in gen u id ad e m a h le r ia n a .

Sagração da prim avera, d e Igo r St r a vín s k i

O s fatos que ce r ca m a co n ce p çã o d essa obra com o balé sem p r e


for am co n h e cid o s: e n co m e n d a d a a Igo r St r a vín sk i p or Ser gei
Diá gu ile v, p ara a co m p a n h ia dos Balés Ru sso s, ap ós o su cesso
e xt r a o r d in á r io d e O pássaro de fogo (1910) e Petrushka (1911), a

110
est r eia da Sagração acab ou p or cau sar u m t u m u lt o cé le b r e . E o
e scâ n d a lo ap en as fez cr e sce r a fam a de t od os os en vo lvid o s —
n ã o ap en as d a co m p a n h ia , d o e m p r e sá r io e do co m p o sit o r , já
cit a d o s, m as t a m b é m d o co r eó gr a fo Vaslav N ijin s k y.
D ivid id o e m d u as p ar t es — " A ad o r ação da t e r r a " e " O sa-
cr ifício " — , o b alé o r igin a l p ar ecia p r e ve r t ais e xcit a çõ e s. E m
u m a n ar r at iva n a q u al t u d o exalava en er gia e sen su alid ad e, su a
t em á t ica er a ao m e sm o t em p o sim p le s e b r u t a l. Par a a co n sa-
gração da ch egad a da p r im a ve r a , co m su a fert ilid ad e e b o n a n ça ,
u m a t r ib o d e t em p o s p r é -cr ist ã o s elegia u m a vir ge m p ara u m
r it o sa cr ificia l, n o q u al ela d ever ia d a n ça r at é a m o r t e .
A coreografia de N ijin s k y p ar eceu a t r ad u ção ju st a para u m a
p r o vo ca çã o . To d o vir t u o sism o in d ivid u a l foi e lim in a d o , c o m a
m aior ia das co m p o siçõ e s e m gru p o e se m p rever sequ er u m jeté,
u m a p ir u et a ou u m arab esqu e. E m ger al, o m o vim e n t o p ar ecia
r ed u zir -se a salt os p esad os, cam in h ad as est ilizad as e u m a p osi-
ção b ásica que ia con t r a t od o o cód igo da elegân cia n o p alco: os
p és virad os p ara d en t r o , co m gran d e exagero, joelh os d obrad os,
b r a ço s cu r vo s e cab eça e m p o siçõ e s an gu losas e d escon exas.
M a s n ã o e r a u m a p r o vo c a ç ã o . A Sagração da prim avera
(1913) c o n t é m e ilu st r a m u it o d aq u ilo qu e co m p o r ia d esd e e n -
t ão a se n sib ilid a d e m o d e r n ist a p o r e xce lê n cia : a h o st ilid a d e
às form as t r a d icio n a is, o fascín io p elo p r im it ivo e a t á vico , u m
co n vit e às forças n ão r acio n ais e in co n scie n t e s e, cla r o , ce r t a
r evo lt a co n t r a as co n ve n çõ e s so ciais. Tr at ava-se an t es de t u d o
d e u m e sp e t á cu lo p r e m o n it ó r io , aq u ele ap r esen t ad o p ela p r i-
m e ir a ve z n o d ia 29 de m a io d e 1913, n o Th e a t r e d es Ch a m p s
El ys é e s , e m P a r is . Falava d e u m t e m p o qu e é o n o sso , a m ú -
sica p ara u m e sp e t á cu lo qu e segu e, a cad a n ova m o n t a ge m , fa-
zen d o-se d e esp elh o p ar a n o ssa p r ó p r ia ve r t ige m — ve r t ige m
qu e é , p ara m u it o s , n o ssa m a is ap r op r iad a co n d içã o .
Além da versão do balé origin al, recon st ru íd a cuidadosam en t e
pela com p an h ia do Teat ro Ma r iin sk y de São Pet ersb u rgo, n u m a

ni
p erform an ce de t irar o fôlego e regid a pelo m aest ro Valer y Ge r -
giev, a gran d e referên cia en t re as propost as coreográficas post e-
riores deve ser aquela regist rada em víd eo pela alem ã Pin a Bau sch
e sua W u p p er t al Tan zt h eat er: b ru t al e ú n ica, a m e u ver é a m elh or
exp r essão de toda m on st ru osid ad e t errível do rot eiro or igin al.

Sinfonia clássica, d e Se r ge i P r o k o fie v

Se m p r e m e su r p r e e n d e u q u e a m e s m ís s im a cu lt u r a r u ssa cos-
m o p o lit a d a vir a d a e n t r e os sé cu lo s XIX e XX n o s d esse u m a
o b r a selva gem co m o a Sagração da prim avera e os c u m e s d a
e d u ca çã o cu lt iva d a p ela a ca d e m ia , co m o é a Sinfonia clássica
(1916), Opus 25, de Se r ge i Pr o ko fiev. Tr ê s an o s a p ó s o e scâ n -
d alo in t e r n a cio n a l d e St r a vín sk i, ser á Se r ge i Pr o ko fiev a n os
d ar aqu ela qu e é se m d ú vid a a m ais ext r ao r d in ár ia en t r e as r es-
p ost as ao e scâ n d a lo d a Sagração.
Pen sad a o b je t iva m e n t e co m o u m e xe r cício ir ó n ico so b r e
o est ilo m u s ic a l d o sé cu lo x v i l l — c o m esp ecial a t en çã o à p i-
car d ia e à in t eligên cia de Josep h H a yd n — , a Sinfonia clássica é,
t alvez in co n scie n t e m e n t e , o n egat ivo da Sagração. Se e m u m a
t e m o s o at avism o d o ap elo às forças p r im e va s d e t r ib o s p agãs
(fan t asia de seu s au t or es), e m ou t r a t em os a ir o n ia su t il o u , m e -
lh o r , a elegân cia z o m b et eir a do co m p o sit o r q u e , co m o u m D u -
ch a m p u lt r a cu lt o , co lo ca b igod es n a M o n a Li s a .
Lo n ge d o u n ive r so d ad aíst a, n o e n t a n t o , d o p on t o d e vist a
da h ist ór ia da cu lt u r a a Sinfonia clássica de Pr o ko fiev p od e ser
e n t e n d id a c o m o u m e xe m p la r d a q u ele p r o ce sso d e m a t u r a -
ção da a u t o co n sciê n cia q u e , n a scid o n as ge r a çõ e s d e ar t ist as
d o in ício do sé cu lo XIX, cu lm in a r á t or n an d o-se u m a co n d içã o
sin e qu a n o n d o p r ó p r io co sm o p o lit ism o m o d e r n o .
Co st u m am o s at r ib u ir m aior im p ort ân cia a exp r essõ es graves,
pesadas e d en sas, que ser iam assim e xp r e ssõ e s de ver d ad eir a r i-
qu eza em ocion al ou esp ir it u al. O que m u it as vezes esq u ecem os

112
é que exist e u m rigor absolut o n o h u m o r , e ele, apen as ele, pode
n os d ar o d ist an ciam en t o n e ce ssá r io p ara u m a boa co m p r e e n -
são de todas as n ossas m isér ias e fort u n as. Ao fim e ao cabo, t al-
vez seja a ir o n ia in t eligen t e qu e m e lh o r en car n e a m ais alt a ex-
p r essão de n osso t em p o. E se for a ssim , t em os que r econ h ecer
o p io n e ir ism o e a p er sp icácia de Sergei Prokofiev e seu Opus 25.
H á m u it a s boas ve r sõ e s d a Sinfonia clássica. En t r e m in h a s
p r e fe r id a s, a d e Ka r a ja n c o m a Fila r m ó n ic a d e Be r l i m o u a
d e Va le r y Ge r g i e v c o m a O r q u e s t r a Sin fó n ica d o Te a t r o M a -
r iin s k y; m a is h e t e r o d o xa , a ve r sã o d e Ku r t M a s u r e a Fila r m ó -
n ica d e D r e s d e n .

M a r i a Ca l l a s

C o m n a r iz , b oca e olh os d esp r o p o r cio n ais, a can t or a grega M a -


r ia Ca lla s e n ca r n o u m ais q u e n in gu é m o t r iu n fo da p er so n ali-
d ad e e do ca r ism a sobre a ap ar ên cia. D e p o is d e ch egar aos 108
q u ilo s, e m 1953, in ic io u u m a d iet a p o lé m ica , p e r d e u m ais d e
t r in t a q u ilos e t orn ou -se u m a d iva. Fo i en t ão que a can t or a cu ja
vo z d e r e cu r so s e xp r e ssivo s e n o r m e s , e q u e já h a via im p r e s -
sion ad o a t od os n os p alcos da ó p e r a in t e r n a cio n a l, t o r n o u -se
u m ícon e p op . E m 1959, co n h eceu o ar m ad or grego Ar ist ó t eles
O n a s s is e, p o r e le , ab an d o n o u Gi o va n n i Ba t t ist a M e n e g h i n i ,
c o m q u e m h a via sid o casad a p o r d ez an os. E r a o q u e falt ava
p ara q u e, d o alt o d e se u 1,75 m e t r o , p assasse a vive r n a t é n u e
lin h a qu e sep ara o u n ive r so d o sh o w b u sin ess e d a alt a cu lt u r a .
O u quase viver . Ded ican d o-se a u m a in t en sa vid a social, qu e
in clu ía fest as, p asseios d e iat es, viagen s, e afast an do-se d os es-
t u d o s, ao lad o de u m m a r id o qu e n ão gost ava de óp er a (e apa-
r en t em en t e p referia qu e ela parasse de can t ar ), Ca lla s quase su -
m iu dos t eat ros e dos p alcos. Re a liz o u su a ú lt im a ap r esen t ação
e m 1974, n o Jap ão — q u an d o, m u it o s la m e n t a m r eco n h ecer , já
n ão t in h a o m esm o frescor. "O s d eu ses levaram a su a vo z", t er ia

113
co m e n t a d o n ã o u m cr ít ico , m a s o am igo Yve s Sa in t La u r e n t .
Ca lla s p assou os ú lt im o s an os de vid a t r an cad a e m seu apart a-
m en t o p a r isie n se , e m o r r e u aos 53 an os, e m 1977.
A apost a é qu e su a relação n efast a co m O n a s s is , u m su jeit o
r ic o m as in c u lt o e r u d e , a t e r ia feit o a ce n d e r p ar a logo ap a-
gar co m o u m fósfor o. N o e n t a n t o , q u an d o i n i c i o u su a t r a gé -
d ia p essoal ela já h avia regist rad o o calor in can d escen t e de su a
vo z , aqu ele qu e co n t am in a at é h oje ou vid os qu e n ão se can sam
d e r e co n h e ce r n ela a e n ca r n a çã o m e sm a da id eia da d iva , n o
sen t id o et im o ló gico d o t er m o : algu ém cu ja p r e se n ça r ever b er a
algo d ivin o , algo m ais fácil de im agin ar que d escr ever . A força
co m e r cia l da p o t ên cia d r am át ica de Ca lla s segu e in d iscu t íve l,
co m o t e s t e m u n h a m as d ezen as d e co le t â n e a s a in d a d isp o n í-
ve is. Su as in t e r p r e t a çõ e s d e cer t o r e p e r t ó r io it alian o , m e sm o
qu e con t r over sas est ilíst ica ou filologicamente, são d o cu m e n -
t os et er n os da m ais p u n gen t e e xp r e ssã o da vo z h u m a n a .
E m d e z e m b r o d e 2017, o cr ít ico d o New York Tim es A n -
t h o n y T o m m a s i n i co m e n t a qu e a m a io r gr avação de ó p e r a d a
h ist ó r ia é d a Tosca d e P u c c i n i , r e a liz a d a e m 1953 p o r Ca l l a s ,
c o m Giu se p p e d i St efan o e T i t o Go b b i , sob a r e gê n cia d e Vi c -
t or d e Sabat a e as for ças d o Tea t r o alia Scala d e Milã o . Ta lve z
seja u m a boa ap ost a p ara q u alq u er d isco t eca.

Prim eira e Quinta s in fo n ia s , d e D m í t r i Sh o s t a k o vi c h

U m a am eaça de m or t e: assim p od em os ler o ed it orial do Pravda


após a p erform an ce da óp era Lady Macbeth do distrito deMtsensk
(1932), de Sh o st a k o vich , que t eve o p r ó p r io Ióssif St álin n a p la-
t eia. A respost a do com p osit or — u m gesto de realp olit ik levado
ao am b ien t e cr iat ivo — foi a su a Quinta sinfonia (1937), ap resen -
t ada ap ós o m ea cu lp a p u b licad o p elo com p osit or e m u m jo r n al
soviét ico da ép o ca, segu n d o o qu al a Quinta sinfonia seria "a res-
p ost a de u m jo vem art ist a soviét ico a u m a crít ica ju st a".

114
O fato é qu e D m ít r i Sh o st a k o vich er a at é en t ão o m ais i m -
p r essio n an t e en t r e os n ovos cr ia d o r es d aq u ela "n o va civiliz a -
çã o ", a qu e se ap r esen t ava lu z id ia aos olh os do O c id e n t e a p ó s
a Re vo lu çã o d e O u t u b r o . E é e m p ar t e p ara e n t e n d e r o fascí-
n io d a p r op ost a lib er t ár ia so vié t ica , o u m ais p r e cisa m e n t e d a
Rú ssia p r é-st alin ist a, qu e t od os d evem o s o u vir t a m b é m a Pri-
m eira sinfonia (1925) d o jo ve m Sh o s t a k o vic h (ele t in h a d e z e -
n o ve an os q u an d o c o n c l u i u a o b r a). T u d o d e m e lh o r d o m o -
d e r n ism o est á ali: h u m o r , ed u cação sofist icad a — a se t r a d u z ir
t an t o n os r e cu r so s a va n ça d o s d e in s t r u m e n t a ç ã o q u an t o n a
for m a — , o p r e n ú n cio d o fim das h ier ar q u ias en t r e alt a e b aixa
cu lt u r a . A Prim eira sinfonia é u m a e sp é cie de su m a d a en er gia
e vid e n t e m e n t e d isr u p t iva d e m u it o s e le m e n t o s "c a n ó n i c o s "
qu e h a via m cr iad o a sen sib ilid ad e r e vo lu cio n á r ia , o u n ive r so
e sp ir it u a l d e t od a u m a é p o ca . O qu e n ão é m o d e r n o , n e m r o -
m â n t ic o , n e m so cio lo gica m en t e e xp licá ve l, é a p r e co ce e ex-
t r aor d in ár ia in t eligên cia d o co m p o sit o r .
Gr a n d e s gr a va çõ e s são aq u elas d os m a e st r o s M a r i s s Jan -
son s e Va le r y Ge r gie v.

As quatro últim as canções, d e Ri c h a r d St r a u s s

Fo i c o m Elisa b e t h Sch wa r z k o p f, n u m a ve r sã o qu e o u vi aos d e-


z en o ve an o s, qu e co n h e ci As quatro últim as canções (1948) d e
Ric h a r d St r a u ss. N ã o sou b e n a h o r a , m as h oje r e c o n h e ç o q u e
a e m o ç ã o im e d ia t a er a d evid a e m p ar t e p ela d ir e çã o qu ase m á-
gica, e p ara m i m at é h oje in co m p a r á ve l, de Ge o r ge Sz e ll sob re
a O r q u e st r a Sin fón ica da Rá d io de Be r li m . Se p ou cas lin h as de
ca n t o são t ão co m o ve n t e s e e st im u la n t e s co m o as d a an geli-
cal Sch war zko p f, p ou cas orqu est ras são t ão flexíveis, n e n h u m a
co n t a c o m so n o r id a d e t ão p a r a d o xa lm e n t e d e n sa e t r a n sp a -
r e n t e co m o a d e Sz e ll. U m son h o d e m ú sica .

115
Salve Regina, d e Ar v o Pã r t

Ar vo Párt t alvez seja o m a is celeb r ad o e p op u lar en t r e os co m -


p o sit o r e s d o n o sso t e m p o . Q u e Pãr t seja u m a r t ist a p r o fu n -
d a m e n t e m íst ico e su a m ú sica t e n t e ser , n a fo r m a e n o c o n -
t e ú d o , a e xp r e ssã o de su a fé, t alvez d iga t an t o d e n ó s q u an t o
d e le . En t r e su as o b r a s, Salve Regina (2001) m a n t é m u m a ex-
t r aor d in ár ia cap acid ad e d e sín t e se e seu s d oze m in u t o s d e d u -
ração p r eser vam o m e lh o r da est ét ica m ad u r a d o com p osit or . A
o r ação la t in a , se m co n t a r c o m q u alq u er alt er ação e m seu s ver -
so s, m o st r a-se, c o m a m ú sica d e Pãr t , at u alizad a e m t od a su a
p e r t in ê n c ia , a e xp r e ssa r o d esejo d e co n so lo e m u m m u n d o
in sólit o e d esolad o.

Sugestões de leitura

Para q u em qu er aos p ou cos co n st r u ir u m a d iscot eca, o con t at o


c o m os p er son agen s d a h ist ór ia d a m ú sica e su as r esp ect ivas
con t r ib u ições é u m a form a m u it o est im u lan t e de fazê-lo. U m ex-
celen t e gu ia para a biografia dos com p osit ores — e, a p ar t ir de-
las, para algu m as referên cias m ais gerais sobre suas p r od u ções —
pode ser en con t rad o n o livro A vida dos grandes com positores (São
Pau lo: Novo Sé cu lo , 2010), de H a r o ld Sch oen b er g. Para os fluen-
t es n a lín gu a in glesa, The Rough Guide to Clássica! Music ( Lo n -
d res: Rou gh Gu id e , 2010) é u m a excelen t e alt ern at iva, m ais at ua-
lizad a e cer t am en t e m ais abran gen t e. In d isp en sável, para q u e m
n ão deseja perd er-se n as even t u ais d ú vid as que a exp lor ação do
r ep er t ór io p od er á t r azer , é o Dicionário Grove de m úsica: Edição
concisa ( Rio de Jan eiro: Zah ar , 1994), q u e, co m seu s quase 10 m i l
ver b et es, é o m e lh o r livr o de co n su lt a e m p o r t u gu ê s, m e sm o
para p rofission ais do r am o .

116
Bis, "t r i s " e outros pen duricalh os

M o z a r t , e m u m a d e m in h a s car t as p r efer id as, d e 12 d e ab r il d e


1783, co m e n t a u m de seu s gr an d es su cessos e m Vi e n a :

O im p e r a d o r t a m b é m est ava. To q u e i o p r im e ir o co n ce r t o
[de An t o n Te yb e r ] , o m e s m o q u e a p r e se n t e i e m m e u p r ó -
p r io e ve n t o [d ias a n t e s j. Re p e t i o r o n d ó ; e n t ã o , q u a n d o
se n t e i n o va m e n t e ao p ia n o , e m ve z d e t ocar m a is u m a ve z
o r o n d ó , t ir e i a p a r t it u r a d a fr en t e e im p r o vis e i. Vo c ê d e-
ve r ia t e r vist o co m o essa p e q u e n a su r p r e sa d e lic io u o p ú -
b lic o ; eles n ã o ap en as a p la u d ir a m ve e m e n t e m e n t e , m a s
gr it a va m "Br a vo !", "Br a ví s s i m o !". O im p e r a d o r a p la u d iu
at é o final e, q u a n d o d e ixe i o p i a n o , ele a b a n d o n o u se u
ca m a r o t e — p o r ó b vi o , h a via ficado n o c o n c e r t o ap en as
p ar a m e v e r *

M e s m o n ão d isp o n d o das p at en t es im p e r ia is , ao final de cad a


co n ce r t o a p la u d im o s e p e d im o s m a is . U m p o u co p o r p r o t o -
co lo , even t u a lm en t e p or e n t u sia sm o , o co n ce r t ist a — m e sm o
n ã o se n d o M o z a r t — e n t r a e sa i, a lgu m a s ve z e s , sob ap lau -
sos e m o vim e n t o s de ar co s e p é s d a o r q u e st r a . E q u an d o ele
se m o st r a liso n je a d o e, às ve z e s e xa u st o , su ger e c o m gest os
exager ad os n ã o m e r e ce r t an t os ap lau so s, afin al o m é r it o é d o

* Wolfgang Am adeus Mozart, A Life in Letters. Lon dres: Pen guin , 2007, Cart a
133. (Tradução m in h a.)

117
co m p o sit o r ... En t r a e sa i, agrad ece a gen er osid ad e d a p lat eia.
En t r a e sai. Ap la u so s. O .k ., u m a p e ça a m a is. O co n ce r t ist a se
p r ep ar a, t od os da p lat eia co r r e m de vo lt a aos seu s lu gares. D u -
ran t e o m u r m u r in h o de p ed id os de silên cio , ele an u n cia a p eça.
E q u an d o co m e ça a t ocar , algu n s se p e r gu n t a m : "Q u e p e ça é
essa?", " O q u e ele d isse ?".
Esse p r ot ocolo cu r io síssim o é p art e do sh o w, é o ch am ad o
"b i s ". Se u u s o m o d e r n o , at é o n d e p o d e m o s d o c u m e n t a r , é
in au gu r ad o , m u it o an t es d as p r im e ir a s salas d e co n ce r t o , n o s
t eat ros d e óp er a it alian os, on d e, n o sécu lo x v m , se t o r n o u u m
r it u a l fr eq u en t e. Ap r o p r i a e st r u t u r a d a ó p e r a , de algu m m o d o ,
e st im u la va se u e xp e d ie n t e : or gan izad a d esd e su as or igen s e n -
t r e árias e r e cit a t ivo s, o u seja, t r e ch o s q u ase in d e p e n d e n t e s
e n t r e s i , acab o u p o r p e r m i t i r o p e d id o d o p ú b lic o e n t u sia s-
m ad o p ela r e p e t içã o d os m o m e n t o s m ais a gr a d á veis.
Sa b e m o s q u e n a r écit a in a u gu r a l d e Le Nozze di Fígaro, d e
M o z a r t , e m i s d e m a io d e 1786, "m u i t a s p e ç a s fo r a m r e p e t i-
d as, fazen d o c o m q u e o t e m p o d a p e r fo r m a n ce p r a t ica m e n t e
d o b r a sse ". O ca so d e ssa "a va c a l h a ç ã o " c o m p l e t a , q u e m a r -
c o u o su cesso d as Nozze p o r co n t a d o b is ( im a gin e u m a ses-
são d e c in e m a c o m r ep lay de cad a m o m e n t o p r e fe r id o !) , fez
c o m q u e o im p e r a d o r Jo se p h I I d a Áu s t r ia (1741-90) d e c r e -
t asse n o d ia 9 d e m aio d e 1786 u m a le i q u e p r o ib ia in t e r va lo s
p ar a o b is d u r a n t e as ó p e r a s. A p r o p o st a d e Jo sep h I I , é cla r o ,
d u r o u t an t o q u an t o as le is d e lim it e d e ve lo cid a d e d as m a r gi-
n ais p a u list a n a s, m a s, a p a r t ir d e la , vár ias ou t r as for am ed it a-
das p elas au t or id ad es co m p e t e n t e s a fim d e im p o r lim it e s às
in t e r r u p çõ e s p o p u list as e d r a m a t ica m e n t e in d e fe n sá ve is d o
b is. U m a s o lu ç ã o , m a is elegan t e e m b o r a n ã o d e t od o r e p r o -
d u z íve l, foi e n co n t r a d a p elo ir m ã o d o im p e r a d o r , Le o p o ld I I
(1747-92), a lgu n s an os m a is t ar d e. E m 7 d e fever eir o d e 1792,
Le o p o ld go st o u t a n t o d a r é cit a p r iva d a d e II Matrim onio Se-
greto, de D o m ê n ic o Cim a r o s a (1749-1801), q u e co n vid o u t od os

118
os ar t ist as p ar a jan t ar a p ó s a r é cit a , e e n t ã o , d ep o is d o ja n t a r ,
e xigiu o b is ... d a ó p e r a in t e ir a !

N ã o sei se foi o caso da ó p er a m o z a r t ia n a , o u d aq u ela d e Ci m a -


r o sa , m as e m algu n s even t o s d o gé n e r o , p o r vo lt a d e m ead os
d o sé cu lo XI X, u m a p art e d o p ú b lico n ão ia ao t eat ro p ara o u vir
o e s p e t á c u lo ; p assava a r é cit a n o s co r r e d o r e s o u n as an t essa-
las d os cam ar ot es p r iva t ivo s, en t r e co n ve r sa s, b eb id as e jogos
de ca r t a s, agu ard an d o ali algu m as d as árias p r efer id as. Para sa-
b er o m o m e n t o ce r t o , o u su a l er a d e ixa r n o cam ar o t e u m e n -
car r egad o, ger alm en t e u m gu r i con t r at ad o p ara a o ca siã o , p ara
ch a m a r os n efelib at as ao cam ar ot e q u an d o co m e ça va u m d os
t r e ch o s p r efer id os. Ch e ga d o o m o m e n t o , os n efelib at as e r a m
co n vo cad o s; p o r vezes va ia va m , p or ve z e s ap lau d iam e, ou t r as
t an t as, p e d ia m b is. E cla r o , vi n h a o b is , a p ó s o q u al vo lt a va m
ao car t ead o.
O fato é q u e , e m t e m p o s p r é - gr a m o fo n e , o b is er a q u ase
u m a n ecessid ad e. Afin a l, q u an d o h á d e se o u vir n o va m e n t e t al
o u q u a l m e lo d ia ? Ta lve z p o r isso t e n h a sid o n o m o m e n t o d a
p o p u la r iz a çã o d os p r im e ir o s r e gist r o s fo n o gr áfico s qu e o h á-
b it o d eca i n a ó p e r a . N o s e sp e t á cu lo s d e ó p e r a , o m a e st r o Ar -
t u r o To s c a n in i, n as d éca d a s in icia is d o sé cu lo XX, est eve e n t r e
os p r im e ir o s cr u z a d o s d o a n t ib is. H o je , o ú n ico b is r esp eit ad o ,
e n ã o e m t od os os t eat r o s, é a r e p e t içã o d o cor o "Va p e n sie r o ",
d a ó p er a Nabucco.
C o m o b is d e árias t orn ad o r a r íssim o , os casos on d e eles são
r ea liz a d o s se t o r n a m cé le b r e s e m t od o o m u n d o , a in d a m a is
c o m su a d ivu lga çã o sen d o cat ap u lt ad a pelas m íd ia s so ciais. O
m a is fam oso caso dos ú lt im o s an o s, vir a liz a d o n o Yo u Tu b e , foi
u m a ovação d e oit o m in u t o s d o t r a d icio n a l Teat r o d e O p e r a d e
Vi e n a . O est elar t e n o r Jon as Ka u fm a n n fazia su a ve r sã o d e M á -
r io Ca va r a d o s s i n a Tosca (lê-se "T ó s c a ") d e P u c c i n i . Ca va r a -
d o ssi é u m p in t o r qu e est á p r eso in ju st a m e n t e p o r alt a t r aição .

119
Ap a ixo n a d o p e la p e r so n a ge m q u e d á n o m e à ó p e r a , e le , e n -
q u an t o agu ar d a a h o r a d e se u fu z ila m e n t o n o alt o d o Ca s t e l
San t 'An gelo , escreve u m a car t a, a ária " E lu ceva n le St elle". El a
é in t r o d u z id a p or u m solo so m b r io d e cla r in e t e ; as p r im e ir a s
n ot as da m e lo d ia , já co n h e cid a d o p ú b lico p o r alu sõ es an t er io -
r e s, são r ep et id as n as lin h a s " O d o lci b a ci, o lan gu id e c a r e z z e "
( "O , b eijo s d o ces e ca r ícia s lâ n gu id a s ") , e se r ã o t a m b é m r e i-
t erad as n o fech am en t o da ó p e r a , q u an d o , a p ó s a m o r t e d e Ca -
va r a d o ssi, seu gr an d e a m o r , To s c a , salt a d as m u r a lh a s p ar a a
m o r t e . M u s i c a l m e n t e , " E lu ce va n le St e l l e " c o n s t it u i o c e n -
t r o n er voso de t od o o esp et á cu lo e, se m d ú vid a , é u m a d e su as
m elod ias m a is est im ad as p elo p ú b lico .
N o r egist r o e m víd e o d a m o n t a ge m c o m Jon as Ka u fm a n n ,
vê - se qu e e le , a p ó s u m a ária b r ilh a n t e , r e lu t a e m d ar o b is. A
O p e r a d e Vi e n a h a via ab olid o essa p r át ica d esd e m u it o ce d o
n o sé cu lo XX. O p ú b lico exige p o r n ad a m e n o s qu e oit o m i -
n u t o s d e ap lau sos e m ce n a ab er t a. O p r o t o co lo p r e ciso u ser
r a p id a m e n t e r e a va lia d o , sob e n s u r d e c e d o r a o va ç ã o , c o m
m a e st r o e sp alla co n ve r sa n d o so b r e o qu e fazer. Ka u fm a n n ,
e n q u a n t o isso , e st á n o p a lco , co n ce n t r a d o . Po r fim, r o m p e -
-se o p r o t o co lo c e n t e n á r io , o b is é r e a liz a d o , e n o va m e n t e o
t e n o r e m o cio n a a p lat eia. N o víd e o d isp o n ib iliz a d o n as r ed es
so cia is, a in d a é p o ssíve l ve r q u e , e n t r e o va çã o e r e p e t içã o , a
so p r an o acaba in d o d e sca n sa r u n s m in u t o s n o c a m a r im ! Ao
fazê-lo, p er d e o t em p o d e su a en t r ad a n o p alco e d á u m t oqu e
h u m o r íst ico ao qu e er a su b lim e .

O r igin a lm e n t e , b is é u m a p alavr a la t in a , e sign ifica "d u a s ve -


z e s". E u sad a e m q u ase t o d o s os p a íse s d e lín gu a la t in a , i n -
c lu s ive n a Fr a n ça . Cu r i o s a m e n t e , n o s p a ís e s d e lín gu a i n -
glesa u sa-se "e n co r e ", u m a p alavr a fr an cesa. E m fever eir o d e
1712, o h áb it o d e p ed ir b is at r aiu a at en ção d a r e vist a Spectator,
qu e d iz ia : "O b s e r vo qu e se t o r n o u u m co st u m e , se m p r e qu e

120
q u alq u er cavalh eir o sat isfaz-se p a r t icu la r m e n t e c o m u m a can -
çã o , ele gr it ar encore, o u altro volto [s ic ], c o m o q u e , e n t ã o , o
ar t ist a vê - se co n vid ad o a can t ar a p e ça d e n ovo".
N o d icion ár io Grove lem os ain d a q u e, p or u m b o m p e r ío d o ,
"t an t o con cer t os qu an t o óp eras er am livr em en t e in t er r om p id os
para a rep et ição de árias e m ovim en t os". N o m eio do esp et ácu lo.
E at é h o je, qu an d o n a óp er a se faz o b is, se faz o b is d e ver d ad e,
o u seja, "a r ep et ição de árias e m o vim e n t o s". Ka u fm a n n rep et e
" E lu ceva n le St elle", n ão b r in d a a p lat eia co m " L a D o n n a è m o -
b ile " o u algu m ou t r o h it con sagrad o p ara t en or es. D e qu alqu er
m o d o , e m óp er as o b is t orn ou -se m e sm o raro. Ace r t a d a m e n t e ,
segu e o Grove, "h o je , u m encore geralm en t e sign ifica u m a p eça
e xt r a , t ocad a ao fim de u m r ecit al solo ou de câm ar a, o u p or so-
list a ap ós u m co n ce r t o , e m resp ost a a aplau sos".
As s i m é , d e fat o. D ife r e n t e d o q u e o c o r r e u ao lo n go d o
t em p o n os t eat ros de ó p e r a , n as salas d e co n cer t o o b is d e ixo u
d e sign ificar "t o q u e n o va m e n t e " — u m p ed id o qu e p od ia su r-
gir a q u alq u er m o m e n t o d a p er fo r m an ce — e p assou a ser u m
co n vit e p ara q u e o co n ce r t ist a o u a o r q u e st r a "t o q u e m m a is
algu m a co isa , e u m a co isa d ife r e n t e " ao final d a p e r fo r m a n ce ,
co m o n o e n ce r r a m e n t o d os sh o ws d e r o ck .
N ã o h á r e gr a s, m a s u m a le i n ã o e s c r it a su ge r e q u e o b is
d eve ser u m a obra cu r t a , o u d e p eq u en o p or t e. Sã o fam osos os
casos qu e co n t r a d iz e m a l e i , n o en t an t o: lem b r o qu an d o n osso
Ar t h u r Mo r e ir a Li m a b iso u n o Th e a t r o M u n ic ip a l d o Rio d e Ja-
n e ir o , ali p elos an os 1990, a Sonata em si m enor d e Fr a n z Li s z t ,
c o m seu s t r in t a m in u t o s d e d u r a çã o ; p r o vavelm en t e n ão b at ia
o r eco r d e ca r io ca , cu jo d et en t or er a Ru d o l f Se r k i n , qu e ap re-
se n t o u , ao final d e u m p r o gr am a, a in t egr al das Variações Gold-
berg d e Ba c h ( u m b is d e a p r o xim a d a m e n t e q u ar en t a m in u t o s ,
s e m r e p e t içõ e s) .
Te n h o n ot ícias de u m a Appassionata, a son at a p ara p ian o de
Be e t h o ve n , in t er p r et ad a do c o m e ç o ao fim, n u m b is d ad o p or

121
An d r á s Sch iff, e m Bo lo n h a , e m 2014. E , cla r o , é fam osa en t r e
os p ian ist as a h ist ór ia de An t o n Ru b in st e in (n ão Ar t h u r ) , qu e
t in h a cer t a p r ed ileção p ela Segunda sonata, Opus 35, de Fr é d é -
r ic Ch o p i n , u m a obra q u e, além d e t er m ais de vin t e e t an t os
m in u t o s d e d u r a çã o , e xige u m m e r gu lh o e m u n ive r so s em o -
cio n ais os m ais d en so s, e a cé le b r e "M a r c h a fú n e b r e " (a q u a l,
se m d ú vid a, en ch ia os ou vid os do p ú b lico co m a id eia da m o r t e ,
co m o o con vid ad o qu e dá u m t oqu e m acab ro n o fim da fest a).
Pon d o d e lad o t ais e xce n t r icid a d e s, o fato é qu e a m e d id a
or d in ár ia do b is se co lo ca en t r e u m e seis m in u t o s . En t r e p ia-
n ist a s, C h o p i n é o r e i d o b is , c o m u m ca t á lo go e xt r a o r d in á -
r io d e p e ç a s cu r t a s e d e m a t iz e s va r ia d o s, c o m o se u s Estu-
dos, Noturnos, Mazurcas o u m e s m o as Polonaises. E m se u s
r e sp e ct ivo s in s t r u m e n t o s , algo d as Partitas e son at as d e J. S.
Ba c h , os d ifíceis Caprichos d e P a ga n in i, m o vim e n t o s d as Sui-
tes para violoncelo desacom panhado, e, e ve n t u a lm e n t e , so n a -
t as d e Sca r la t t i p ara cr a vo , são se m p r e b e m -vin d o s co m o b is.
O b r a s co n t e m p o r â n e a s, com p ost as o u n ão p ara o a r t ist a , t a m -
b é m são c o m u n s .
O b is n ão co st u m a t r azer u m a obra m u it o d en sa. Ta lve z p or
isso , e p o r u m a cer t a p r e gu iça d os p r o gr am ad o r es, o r a n k in g
d e obras b isad as n os co n ce r t o s sin fó n ico s seja ve n cid o p elas
Danças húngaras de Br a h m s , o u as Danças eslavas, de D vo fá k ,
se gu id o p o r a b e r t u r a s d e ó p e r a (a O s e s p co st u m a va d ar e m
su as t u r n ê s a ab er t u r a d e Ruslan e Ludm ila, d e Gl i n k a , o p çã o
p ara o d ive r t id o Mourão, de Gu e r r a - P e ixe ) o u p o r algu m as val-
sas, p olcas e m a r ch a s da fam ília St r a u ss. Sã o obras o t im ist a s e
elegan t em en t e b r ilh a n t e s.
E clar o, e t od o p rofission al de con cer t os sabe d isso, qu an d o
u m b is d e m o n st r a , a lé m d e o t im ism o e b r ilh o , u m gr au alt o
d e vir t u o s is m o , o n a t u r a l é qu e o p ú b lico p e ça m a is, e a ssim
os p ed id os d e b is p o d e m se su ced er . Ch ega-se a ssim ao "t r i s ",
t er m o im p r ó p r io , se form os est r it os, p ois e m la t im "t r ê s ve z e s "

122
se r ia ter, m as m u it o m a is eficaz, p o r eu fo n ia. To d o p r ofissio-
n a l sabe p r ovocar o "t r i s ", e h á u m a p eq u en a en gen h ar ia, m ais
o u m e n o s a m a d u r e cid a e n t r e os co n ce r t ist a s, p ara su ger ir ao
p ú b lico a d isp o n ib ilid a d e d e su a p ar t e p ara o "t r i s " o u o "q u a -
t r is". Em b o r a ap aren t e u m gest o d e esp on t an eid ad e, o b is d os
co n cer t o s t e m u m a lon ga h ist ór ia de p r e m e d it a çã o , sen d o p or
vezes calcu lad o c o m a m a is p avlo vian a — o u m aq u iavélica? —
p e r sp icá cia . O m u sicó lo go it alian o Pie r o Ra t t a lin o n os co n t a ,
e m t o m d e cr ó n ica , u m a d e su as m e m ó r ia s a r esp eit o :

N o Palácio d e Ch a illo t , e m P a r is, o u vi Jo sé I t u r b i, qu e co n -


c lu iu se u r e cit a l c o m set e b is. O p r o gr am a er a d e ce r ca d e
q u a r e n t a m i n u t o s n a p r i m e i r a p ar t e e d e 25 n a se gu n d a .
A b r e vid a d e d a segu n d a p ar t e — a lé m da b r a vu r a d o p r ó -
p r io p ia n ist a — e n lo u q u e ce u o p ú b lico , qu e t eve ser vid o s
os p r im e ir o s t r ês b is c o m cer t a facilid ad e. O s ou t r os foram
oferecid os u m a u m , c o m in t e r m in á ve is en t r ad as e sa íd a s,
m ã o s sob re o co r a çã o , sin ais d e ca n sa ço gr ave, p assagen s
d e ab er t u r a e fech am en t o da co b e r t u r a d o p ia n o , lu zes apa-
gadas e reacesas, u m a m ím ica de co n ve n cim e n t o qu e d iz ia ,
m e lh o r q u e cad a p a la vr a : "Ap e n a s p o r q u e vo c ê s m e o b r i-
gam ! Faço p ois são vo c ê s!". A sala est ava ab ar r ot ad a, cr e io
qu e h o u vesse ali 3 m i l p essoas. O a st u t íssim o co n ce r t ist a
m an t eve-as en cr avad as sob re as cad eir as p or t od os os seu s
set e b is , q u e for am m in u c io s a m e n t e ca lcu la d o s, e n o d ia
segu in t e os jo r n a is r e p o r t a r a m a n ot ícia d o t r iu n fo n as p á-
gin as d e cr ó n ica , n ão n as p ágin as de e sp e t á cu lo s.*

Rat t alin o co m e n t a ain d a qu e Ma r ia n o St ab ile "t r i s a va " m u it as


ve z e s o b r eve "Q u a n d ' e r o p aggio", d o Falstaff d e Ve r d i. E qu e

* Piero Rattalino, "Bis: suonalo ancora". In : Grand Piano. Bolonha: Erm itage,
1996, pp. 76-7. (Tradução minha.)

123
e m Bu e n o s Ai r e s , ce r t a ve z , o p ú b lico p e d iu a Ca r u s o o "t r i s "
d a ária " U n a fu r t iva la cr im a ". El e a t en d eu o p e d id o . M a s , i n -
c o n t in e n t e , o p ú b lico c o n t in u o u a p e d ir b is , p a r t in d o p ar a o
quater, e Ca r u s o n ão a ch o u r azo ável. "Ao fim, a co n fu são foi
t a m a n h a qu e as co r t in a s se m a n t ive r a m fech ad as e a r écit a d e
Elixir de am or, de D o n i z e t t i , ficou n aq u ela n oit e in co n clu sa ."
Vo lt an d o à cart a de Mo z a r t , cit ad a n o in ício d est e ca p ít u lo ,
sabem os p or ela que o com p osit or p art icip ava com o con vid ad o
de u m a "a ca d e m ia " — o u t r o n o m e p ara os e sp e t á cu lo s p ú b li-
cos da ép oca — de seu am igo An t o n Teyb er . Mo z a r t , claro est á,
era u m a est r ela, e ou vi-lo t ocar er a m ais im p o r t an t e que o u vir
Teyb er . Ao final, com o b is, Mo z a r t im p r ovisava sozin h o. Ma s a
cart a t oca ain d a e m ou t ro p on t o, t alvez n ão t ão relevan t e à ép oca,
m as de su m a im p or t ân cia para n ó s: com o d ar, e q u e m d á, o b is
ap ós u m p rogram a on d e o solist a apresen t a-se co m orqu est ra?
O processo im p lica u m p equ en o d ilem a, d igam os, de d ecoro.
Afin a l, se o solist a b isa so z in h o , os m ú sico s ficam p ar ad os, o u -
vin d o o qu e o solist a t e m p ara m o st r a r , e essa sit u ação n ão é
se m p r e a m e n o s en fad o n h a p ar a os m ú s ic o s . N ã o p o d e m o s
esq u ecer qu e os p r ofessor es d a o r q u e st r a t a m b é m fizeram o
sh o w. N ã o à t oa, at é finais da d éca d a d e 1970, p ian ist as co m o
Ar t h u r Ru b i n s t e i n c o s t u m a va m o fe r e ce r o b is ap en as a p ó s
p ed ir p e r m issã o ao sp alla, sit u ação cu r io síssim a p ara o gost o
a t u a l, m as qu e gu ard a b e m o p r ot ocolo de p alco en t r e so list a
e o r q u e st r a , qu e n ão esp elh a u m a r elação de n ob r e e p le b e u s,
m as d e co n vid ad o e an fit r iões.
U m a so lu çã o n o t ável é a d a vio lin ist a Pa t r icia Ko p a t ch in s-
k a ja , qu e est eve co n o sco n a O s e s p in ú m e r a s ve z e s e p r e vi u
c o m o b i s , e m d ad a s e s s ã o , a Balada e dança para dois violi-
nos, de Gyõ r g y Lige t i. A p e ça é u m d u et o d e vio lin o s, qu e aca-
b o u p or ser ap resen t ad o b r ilh a n t e m e n t e p or ela e Em m a n u e le
Ba ld in i, o sp alla da n o ssa o r q u est r a. Se n d o o sp alla, segu n d o
o m e sm o p r o t o co lo , o r ep r esen t an t e d e t od os os m ú sico s d a

124
fo r m a çã o , o gest o de Ko p a t c h in sk a ja só p od e ser e n t e n d id o
co m o u m a elegan t e ge n t ile z a da h ó sp e d e p ara c o m os d on os
d a casa.
O u t r a e st r e la , o gr an d e p ia n ist a r u sso Svia t o sla v Ri c h t e r ,
t in h a p o r p r in cíp io q u e , t o ca n d o c o m o r q u e st r a , h a ve r ia d e
b isar t r e ch o s d a ob ra qu e t in h a m acabad o de execu t ar . E m se
t r at an d o d e p e ça s cu r t a s, e m u m m o vim e n t o , algu m as acaba-
r a m r ep et id as d e cab o a r ab o , co m o p ar ece t er sid o o caso d e
ao m e n o s u m Concerto para m ão esquerda, d e Ra ve l ( e m G é -
n o va ) , e a Burleska, de Ric h a r d St r a u ss ( e m Sófia).
A p e q u e n a t e n sã o q u e e xist e e n t r e so list a e o r q u e st r a n a
h o r a d e u m b is acab ar ia m a r c a n d o u m a d as m i n h a s m e m ó -
r ias m a is p r ecio sas e m r elação à O s e s p . E m 20 0 5, r eceb em o s
o gr an d e m aest r o e p ia n ist a h ú n ga r o Tá m a s Vásár y, qu e se r ia
regen t e e solist a d o Concerto para piano n- 27, d e Mo z a r t . Ao fi-
n a l d a p r im e ir a n o it e , o m aest r o acab ou p or t r o p e ça r e m u m a
p assagem n ã o e sp e cia lm e n t e d ifícil d o allegr o final. Q u a n d o
t e r m in o u , soar am os ap lau sos en t u siá st ico s (os er r os foram ab-
so lu t a m e n t e o ca sio n a is) , m a s, a p a r e n t e m e n t e co n st r a n gid o ,
Vásár y fez q u e st ã o de b isar o m o vim e n t o in t e ir o . No vo s ap lau -
sos se su ce d e r a m e seu r e t o r n o ao p alco foi in e vit á ve l. Ao r e-
t o r n a r , qu ase se m agrad ecer, Vásár y sen t ou -se n o va m e n t e ao
p ian o e soou as p r im e ir a s n ot as d a Sonata ao luar, de Beet h o -
ve n . Co n c lu í d o o p r im e ir o m o vim e n t o , ele se gu iu c o m o se-
gu n d o, e d est e ao ú lt im o , levan d o ao p ú b lico u m a p eq u en a jo ia,
e d ezesseis m in u t o s de b is — p elo q u e s e i, foi o m a is lon go da
h ist ór ia das t em p or ad as sin fó n icas da o r q u est r a.
C o m e n t e i e m a lgu m lu ga r q u e o b is é r e su lt a d o d e u m a
t r o ca d e ge n t ile z a s, n ão u m a o b r iga çã o . N o caso d essa n o it e
e m 20 0 5, o m a e st r o Vá sá r y, u m c a va lh e ir o à m o d a a n t iga ,
t r an sfigu r ou -o e m u m p ed id o d e d escu lp as.

125
Sugestões de leitura

Te m o s e m p o r t u gu ê s algu m as excelen t es p u b licaçõ es para u m


o u vin t e d e d ica d o , e m b o r a algu m as lacu n as se ja m im p r e ssio -
n an t es. El e p od e, even t u alm en t e, d eb r u çar -se e m biografias de
gran d es co m p o sit o r es, gé n e r o on d e en co n t r am o s esfor ços ed i-
t o r iais n o t á ve is. Ci t o algu m as, as m a is r e co m e n d á ve is: as r e -
cen t es biografias Beethoven: Angústia e triunfo (São Pau lo: Am a -
r ilys , 2016), de Jan Swaffor d ; Piotr Tchaikovsky: Biografia ( Rio
d e Jan eir o : G . Er m a k o ff, 2012), d e Ale xa n d e r P o z n a n sk y; e a
in t egr al das cart as de Ch o p i n , t r ad u zid as a p a r t ir das o r igin a is,
e m p o lo n ês e fr an cês: Correspondência de Frédéric Chopin ( Rio
Gr a n d e d o Su l : U FRGS, 20 0 7), o r ga n iz a d a p o r Zu l e i k a Ro sa
Gu e d e s. O u t r as duas p u b licações excelen t es, m ais an t igas, m as
n e m p or isso d at ad as, são d ed icad as a Mo z a r t : Mozart: Sociolo-
gia de um génio ( Rio d e Jan eiro: Za h a r , 1994), d e N o r b e r t Elia s ;
e Mozart (São Pau lo: O b je t iva , 1999), de Pet er Ga y.

126
*u u a v i a .

/ W. « w E M ™ em „gc, M Bm sil Cm

capa
Kiko Farkas/ Máquina Est údio

Ilustração de capa
Kiko Farkas
com posição
Jussara Fin o
preparação
Rodrigo Lacerda
checagem
Lu iza Miguez
revisão
H u en d el Vian a
Tom oe Moroizu m i

D ad o s In te rn acio n ais de Catalo gação n a Publicação ( CIP )

O l i ve i ra, Le an d ro (1978-)
Falan do de m úsica: O i t o liçõ e s so bre m úsica clássica: Le an d ro O l i ve i ra
São Paulo : To davia, I* e d ., 20 20
128 páginas

ISBN 978-65-5114-000-6

1. Mú s ica 2. Prin cípio s ge rais 3. Mú s ica clássica


4. Co m p o rt am e n t o 5. Liçõ e s intro dutó rias I. Título

CD D 780.1

ín dice para catálo go siste m ático :


i . Mú s ica: Prin cípio s ge rais 780.1

to davia
Ru a Luís An h aia, 44
05433.020 São Paulo SP
T.55 11.30940500
www.todavialivros.com .br
fonte
Regist er*
papel
Mu n ken prin t cream
8o g/ m 2
im pressão
Geográfica

FSC
www.fscorg

MISTO
Pap«l produzido
• partirda
fontaa reaponadvala

FSC*C019498
Se você se in t eressa por m ú sica
m as n ão lem b ra d ireit o o que é Opus,
gost aria de se aprofun dar n o assu n t o
m as p recisa de u m guia de obras b ásicas,
valoriza a an álise m u sical refin ada m as
t em p regu iça do n ar iz em pin ad o dos
exp er t s, est e livr o en t ão é para vo cê .
Ap ó s est as oit o breves lições, a m ú sica
clássica soará m u it o m ais acessível a
seus olh os — e, claro, aos ou vid os.

Lea n d r o O live ir a é an fitrião do


projet o Falan do de Mú sica, em que
com en t a o rep ert ório sem an al da
O rqu est ra Sin fón ica do Est ad o de
São Paulo ( O SESP) . Pian ist a, regen te e
com posit or, t em form ação académ ica
em m usicologia e t eoria da com u n icação,
co m dout orado em ed u cação, art e e
h ist ória da cu lt u r a pela Un iver sid ad e
Pr esb it er ian a Ma cken z ie.
Um guia sobre música clássica
em oito lições fundamentais
para leigos e iniciados.

"Todos que gost amos de música


clássica acabamos um dia por
pergunt ar como organizar nosso
conhecimento a respeito. Todos que
adorariam gost ar de música clássica
buscam inevit avelment e pesquisar
um modo de conhecê-la melhor, e
procuram, muit as vezes, uma espécie
de mínima moralia, uma pequena
ét ica do ouvinte dedicado."

Você também pode gostar