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Capítulo 3

A Psicologia na
organização do trabalho
preocupação com a questão do trabalho do ponto de vista psi­
A cológico rem onta, como já foi visto, aos tem pos da colônia.
Algum as obras abordam o trabalho sob o foco da M oral, conce­
bendo-o como atividade preventiva de perversões (com o o ócio, a
preguiça e o vício), estando aí incluída a preocupação com os in­
dígenas; tam bém aparecem elem entos que visam ao exercício de
controle sobre o processo produtivo.
No século XIX, assiste-se a uma ampliação dessa preocupa­
ção, referente sobretudo ao incremento do processo de urbaniza­
ção, que traz no seu bojo a emergência de novas camadas sociais,
com a ampliação e a diversificação das atividades produtivas. Essa
configuração social gerou conflitos c situações que exigiam do po­
der vigente ações controladoras, com a finalidade de reprim ir m ovi­
mentos contestatórios. Como já foi visto, a M edicina Social veio,
nesse contexto, exercer importante papel, propondo modelos higiê­
nicos de vida social, enquadrando em categorias patológicas os com ­
portam entos considerados “desviantes” .
As primeiras experiências sistemáticas de aplicação da Psicolo­
gia às questões do trabalho datam, porém, da década de 20 do século
XX; foram aí lançadas as bases para o desenvolvimento desse campo
de atuação, cuja aceleração deu-se principalmente a partir dos anos 30.
Nesse momento, a Psicologia estabeleceu-se definitivamente
no pensam ento brasileiro, am pliando-se em várias direções e
explicitando suas possibilidades de aplicação às necessidades impos­
tas pela vida social. Tal situação confirma o estabelecimento da ciên­
cia psicológica no país como conjunto de conhecimentos e práticas
capazes de dar respostas e subsidiar ações que interviessem nos pro­
blemas sociais, demonstrando pela sua aplicação sistemática uma etapa
já avançada da referida ciência.

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A Psicologia no Brasil

Compreender o estabelecimento e o desenvolvimento da Psi­


cologia a sua aplicação às questões do trabalho implica não somente
a compreensão das vicissitudes dessa ciência, mas também das con­
dições históricas em que isso se tornou possível.
A Psicologia veio inserir-se num panoram a em que a preo­
cupação com a maximização da produção tornava-se um imperativo,
contribuindo com a produção de conhecimentos e técnicas necessá­
ria ao empreendim ento da “racionalização do trabalho” e da “admi­
nistração científica” do processo produtivo.
Assiste-se nesse momento a um acelerado processo de expan­
são da indústria brasileira, ao mesmo tempo em que uma parcela da
burguesia industrial busca a implementação de processos administra­
tivos modernos, fundamentados nos progressos da ciência. Jorge Street,
Roberto Simonsen e Paulo Nogueira Filho foram alguns dos mais
destacados representantes do empresariado brasileiro que defende­
ram e adotaram tais idéias. É necessário compreender mais ampla­
mente esse movimento e suas motivações mais profundas, para que
se possa avaliar mais concretamente o papel da Psicologia.
A década de 10 caracterizou-se por uma progressiva organiza­
ção da classe trabalhadora, sobretudo do operariado urbano-industrial.
Ocorre nesse momento um fortalecimento dos sindicatos e associações
de trabalhadores; a difusão dos ideários anarquistas, anarco-sindicalis-
tas e socialistas; o surgimento de várias publicações operárias; a eclosão
de um sem número de manifestações, incluindo várias greves e, além
disso, a elaboração de propostas sistemáticas de intervenção sobre os
problemas que afligiam o país, dentre os quais a gestão da produção.
Sentindo-se am eaçados, buscam os em presários form as de
contenção desse processo. Embora se m antivesse o esquema vigen­
te de repressão à organização proletária, explicitava-se a necessi­
dade de elaboração de novas práticas de controle. Nesse sentido, a
racionalização do processo produtivo e a adoção de princípios “ci­
entíficos” na adm inistração apontavam para a possibilidade de
enfrentam ento do problem a; essas ações tinham na sutileza e na
abordagem indireta seus m elhores trunfos. Assim, na

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Leitura histórica sobre sua constituição

“p a s s a g e m p a r a a d é c a d a d e 20, a s s is te [s e ] a u m a m u d a n ç a n o s
re g im e s d is c ip lin a r e s : a n u n c ia -s e u m p r o je to r a c io n a l d e p r o d u ç ã o
d o n o v o tra b a lh a d o r, d is s o lv id o e n q u a n to a to e s u je ito e re d e fin id o
e n q u a n to o b je to d e in v e s tim e n to d o p o d er. A n o v a fá b r i c a (...) d e ­
v e ria e n tã o c o n s titu ir o p a lc o fo r m a d o r d a n o v a fig u r a p ro d u tiv a ,
a tr a v é s d e f o r m a s c a d a v e z m a is in s id io s a s e s o fis tic a d a s d e d o m i­
n a çã o . M a s, a o m e s m o te m p o , d e v e r ia f i g u r a r c o m o o lu g a r d a
a tu a ç ã o d e u m o u tro tip o d e p a tr ã o , m o d e r n o e a g iliza d o , e m o p o ­
s iç ã o à a n tig a fig u r a d o p r o p r ie tá r io d e s p ó tic o , a r b itr á r io e ru d e
do p a ssa d o ” (Rago, 1987, pp. 18 e 19).26

Segundo Rago, tais mudanças antecedem a penetração das


idéias tayloristas e fordistas no país. Contudo, serão essas idéias a
principal base sobre a qual as mudanças propostas encontrarão suas
diretrizes e sua justificativa. Sobre o taylorismo e já apontando suas
articulações com a Psicologia, afirma Lourenço Filho27:

“A r a c io n a liz a ç ã o d o tra b a lh o , in ic ia d a c o m Taylor, p a s s a a a p r e ­


s e n ta r a ssim n o v o s a s p e c to s ( .. .) A p h is io lo g ia e a p s y c h o lo g ia f o ­
ra m c h a m a d a s a c o o p e r a r n a o r g a n iz a ç ã o d a s fá b r ic a s , p a r a m a i­
o r e ffic ie n c ia e c o n o m ic a e m e lh o r ia d a s c o n d iç õ e s d o tra b a lh o
o p e r á r io (...) P o r e lla se a c c e n tú a , c a d a v e z m a is, a c o n v ic ç ã o d e
que, p a r a p r o d u z ir m u ito e b a ra to , n ã o b a s ta o a p u ro te c lm ic o d o
m a c h in a r io , o a p r o v e ita m e n to d o s r e síd u o s e a d iv is ã o d a s ta re fa s.
É p r e c is o a a d a p ta ç ã o p s y c h o lo g ic a d o tr a b a lh o a o h o m e m , e a
a d a p ta ç ã o d o m o to r h u m a n o a o tr a b a lh o ” (1929, p. 13).

Vê-se, pois, que a ciência é concebida como neutra e o co­


nhecimento por ela produzido inquestionável na sua autoridade;
assim, a utilização da ciência na administração industrial justifica-
se e é legitimada. Ciência, técnica e progresso tomam-se o tripé sobre

26 RAGO, L. M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil: 1890-1930. Rio


de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
27 LOURENÇO FILHO. M. B. Prefácio, in: WALTHER, L. Techno-Psychologia do Traba­
lho Industrial. São Paulo, Melhoramentos, 1929.

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A Psicologia no Brasil

o qual se sustentam as novas idéias sobre a gestão da força de trabalho.


Em nome do progresso e da proteção ao “bom trabalhador” justificar-
se-ia a administração baseada na inquestionabilidade da ciência, na
neutralidade da técnica e na valorização da competência individual.
Dissolviam-se assim os conflitos de interesse entre capital e trabalho,
com base no argumento da autonomia da ciência.
Segundo Antonacci28, a
“in d iv id u a liza ç ã o d a c o m p e tê n c ia ” tin h a c o m o o b je tiv o n ã o a p e n a s
a p ro d u tivid a d e , m a s ela e m ta m b é m su til p r o m o to r a d a d iss o c ia ç ã o
d o s la ç o s d e s o lid a rie d a d e d e c la sse d o s tra b a lh a d o re s, c o m v ista s
ao c o n tro le m a is e fe tiv o so b re a fo r ç a d e tra b a lh o . P a ra a lé m d isso,
fa z ia -s e n ec essá rio q u e esse co n tro le tra n sc e n d e sse o s lim ite s d a p r ó ­
p r ia fá b r ic a , a m p lia n d o -se p a r a a v id a d o o p e r á rio c o m o u m todo,
n o se n tid o d e se o b te r in d iv íd u o s in te g ra lm e n te a d a p ta d o s à s n e c e s ­
sid a d e s e e x ig ê n c ia s d a d isc ip lin a im p o sta p e lo sis te m a fa b r i l e p o r
su a 'a c o m o d a çã o p a c ífic a ' a ele. P a ra R ago, 'a le itu ra a p a re c e c o m o
a m e a ç a d e p e r ig o , a ssim c o m o to d a c irc u la ç ã o d e in fo rm a ç ã o , d is ­
cu s sõ e s p o lític a s o u p ro p a g a n d a , p o r q u e p o d e m s ig n ific a r u m a to ­
m a d a d e co n s c iê n c ia p o r p a r te d o tra b a lh a d o r (...) A re p ressã o a o
álcool, a o fu m o , a o s jo g o s , à s d iv e rsõ e s e a o s ‘p a p o s ’revela, p o r su a
vez, a te n ta tiv a d e n e g a r o s e n tid o c o n flitu a l d a a ç ã o o p e rá ria ,
d e s q u a lific a d a c o m o m a n ife sta ç ã o in stin tiv a , se lva g e m , d e s c o n tr o ­
la d a e d e s v i a n t e . (1987, pp. 24 e 25)

Nessa perspectiva, parte do empresariado brasileiro perce­


beu a necessidade de institucionalização desse projeto de m oderni­
zação e cientifização dos processos administrativos. Esse projeto
estava intimamente ligado à Psicologia, fornecedora de conheci­
mento e técnicas para a concretização de tais fins.
Tiveram grande im pacto sobre esse processo as conferên­
cias proferidas por Léon W alther sobre Psicotécnica, instrum ental

28 ANTONACCI, M. A. M. Institucionalizar ciência e tecnologia - em torno da fundação


do IDORT (São Paulo, 1918-1931). São Paulo, Rev. Brasileira de História, v. 7, n° 14, pp.
59/78, mar-ago, 1987.

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Leitura histórica sobre sua constituição

fundam ental para a materialização das finalidades enunciadas pela


administração científica. Sob tal influência, um grupo de interessa­
dos tom ou a iniciativa de criar um instituto que fornecesse o sus-
tentáculo para as inovações, assim definido por Lourenço Filho
(1929, p. 24), um de seus membros:

“C o g ita , a c tu a lm e n te , a A s s o c ia ç ã o C o m m e r c ia l d e S ã o P a u lo (...)
d e p r o m o v e r a fu n d a ç ã o d e um ‘In stitu to d e O rg a n iza ç ã o S c ie n tific a
d o T r a b a lh o ’, c o m d iffe r e n te s s e s s õ e s d e s e lle c ç ã o e e d u c a ç ã o
p r o fis s io n a e s , d e o r g a n is a ç ã o p s y c h o lo g ic a d o tra b a lh o , e d e e s tu ­
d o s d e le g is la ç ã o e e s ta tís tic a q u e a e s s e s a s s u m p to s se p re n d a m . ”

Tal iniciativa não se concretizou, pois, segundo Antonacci


(1987), a crise de 29 interrompeu, embora m omentaneamente, esse
projeto. Entretanto, sob a liderança de Aldo M ario de Azevedo, ou­
tro grupo começou a se form ar no final de 1930, com a finalidade de
criar o “Instituto Paulista de Eficiência”, que foi o elemento-chave
para a fundação do Instituto de Organização Racional do Trabalho
- IDORT, posteriormente. A partir do IDORT, outros desdobramen­
tos ocorreram, tendo cada qual o desenvolvimento de enfoques es­
pecíficos, como foi o caso das instituições: Associação Brasileira
para Prevenção de Acidentes, Conselho de Higiene e Segurança do
Trabalho, Instituto de Administração, Fundação Getúlio Vargas,
DASP, SENAI e Escola Livre de Sociologia e Política. Todas essas
instâncias tiveram, em maior ou menor grau, relações com a Psico­
logia e com as práticas dela decorrentes.
Nesse panorama, a Psicologia assumiu, ao lado de outras áre­
as do saber, a função de sustentáculo científico dos novos métodos
administrativos. Foi ela de importância fundamental para justificar
e legitim ar as novas medidas no plano teórico e subsidiar as novas
práticas com o conjunto de técnicas por ela fornecidos.^Nesse senti-^
do, percebe-se que, por um lado, são criadas condições favoráveis
para o desenvolvimento da Psicologia e, por outro lado, esta ciência, f
ampliando seu campo de ação, veio fortalecer e referendar determ i­
nadas práticas sociais^

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A Psicologia no Brasil

A Psicologia agiu essencialmente sobre o “fator hum ano” da


administração industrial, sobretudo na seleção de pessoal e orienta­
ção e instrução profissionais. Com isso, a ciência psicológica tor­
nou-se não apenas fundamentação teórica, mas também produtora
de técnicas auxiliares à aplicação da administração científica e da
racionalização do trabalho.
Vários elementos confluíram para a definitiva sistematização
da aplicação da Psicologia à gestão da força de trabalho. Nesse âm ­
bito foi especialmente importante o “movimento dos testes”, inicia­
do na década de 20, tendo como marco o curso sobre Psicotécnica,
ministrado por Piéron, na Escola Normal de São Paulo.
A experiência pioneira com a utilização de testes ocorreu em
1924, no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, sob a coordenação
do engenheiro suíço Roberto M ange, em que pela prim eira vez no
Brasil foram utilizados testes com a finalidade de seleção. A isso
acrescenta-se a contribuição de Lourenço Filho, a influência exercida
por Leon W alther e as pesquisas realizadas no Laboratório de Psi­
cologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro para subsi­
diar a seleção de aviadores por meio da psicotécnica.
O provável primeiro livro sobre testes no Brasil, intitulado
“Tests: Introdução ao estudo dos m eios scientificos de julgar a
intelligencia e a applicação dos alum nos” , de M edeiros e A lbu­
querque, embora enfoque a situação educacional, cita sua aplicação
à indústria e ao comércio. Sobre isso, afirma o autor29:

“N a in stru c ç ã o , o c a n d id a to a p p r o v a d o o u re p ro v a d o in ju s ta m e n ­
te v ê o se u fu tu r o s a c rific a d o . N o c o m m e r c io o u n a in d u stria , o
e m p r e g a d o , s i é r e je ita d o se m ra zã o , s o jfr e ta m b é m o m e s m o
s a c r ifíc io ; m a s s e é a d m itid o p o r u m a o p in iã o e rra d a , v a i e s tr a g a r
m a te ria l, d e s a c r e d ita r a c a sa q u e o e s c o lh e u , fa z e r c o m q u e p e r c a
c lie n te s ta lv e z p re c io so s , a té q u e s u a in c a p a c id a d e s e ja r e c o n h e c i­
d a e se re so lv a m a d e sp e d il-o . ” (1925, p. 24)

29 MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Tests. 4* ed., Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1925.

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Leitura histórica sobre sua constituição

Nesta e em outras obras da época são freqüentes as referênci­


as às inovações norte-am ericanas nas diversas áreas, em que vão
sendo demonstradas as utilidades dos testes, destacando-se os “Army
M ental Tests” e a Orientação Profissional.
Os “Arm y M ental T ests” foram os testes de inteligência
construídos por Yoakum e Yerkes, em tempo recorde, para a seleção
de recrutas para a I a Guerra M undial, em 1917; sua criação deu
grande impulso ao desenvolvimento dos testes e, sobretudo, à sua
aplicação para fins de seleção de pessoal. Isaias A lves30 considera
que esse episódio foi fundamental para a criação dos testes coleti­
vos de inteligência, abrindo caminho para o progresso de várias
ações, dentre as quais a orientação para a “boa escolha” das profis­
sões e a “higiênica aplicação da atividade industrial” . Fica assim
im plícito que os esforços de guerra tiveram tam bém influência
sobre o desenvolvimento da Psicologia, sobretudo no que diz res­
peito aos processos seletivos, o que se articula com a aplicação da
Psicologia à organização do trabalho.\
Outra questão abordada e também relacionada ao trabalho é
a Orientação Profissional, na qual busca-se dem onstrar a lucra­
tividade da aplicação da Psicologia, principalmente em relação à
idéia de se encontrar “the right man in the right place”, pensamento
tipicamente norte-americano que é, a propósito, o modelo almejado,
como afirma Isaias Alves:

“O v a lo r e c o n o m ic o d o s te s te s su rg e e n tã o s o b n o v a luz. P rim e iro


se vê a e s c o lh a a p p ro p r ia d a d e p r o fis s ã o p a r a c a d a in d iv íd u o , lu ­
c r a n d o a s o c ie d a d e d a p le n a e x p a n s ã o d a a c tiv id a d e p e s s o a l, E
e s te a s p e c to é im p o r ta n tís s im o , p o r q u e o s c á lc u lo s a m e r ic a n o s
a p p r o x im a m d e 5 0 0 m ilh õ e s d e c o n to s d e reis a v a n ta g e m q u e te ria
a riq u e za d o p a is , s e to d o s o s h o m e n s o c c u p a s s e m o s lo g a re s p a r a
q u e te e m c a p a c id a d e .

30 ALVES, I. Os testes e a reorganização escolar. Bahia, A Nova Graphia, 1930. Ver também:
ALVES, I. Teste individual de intelligencia, 2“ ed., Bahia, Officinas Graphicas da Luva, 1928.

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A Psicologia no Brasil

E m s e g u n d o lo g a r, to r n a n d o - s e d e f a c t o p r im e ir o n o d e c o r r e r
d o s a n n o s , v e m a o r ie n ta ç ã o v o c a c io n a l d o s r a p a z e s . E s ta é a
f o r t e c a r a c te r ís t ic a d a a c tiv id a d e p s y c h o te c li n ic a d o s E s ta d o s
U n id o s, c u ja s U n iv e r s id a d e s s ã o la b o r a to r io s d e f o r m a r a lm a s
p r a t i c a s e e ffic ie n te s . ” (1930, p. 6)

Surgem , então, os testes vocacionais, cuja principal finalida­


de seria a de orientar profissionalmente os jovens, para que suas esco­
lhas fossem compatíveis com suas aptidões, principalmente com vistas
à maior eficiência do processo produtivo, tal como afirma Isaias Alves:

“J á é m u ito g e n e r a liz a d o o e x a m e p s y c lio te c h n ic o n a s fa b r ic a s ,


b a n co s, c a sa s d e c o m m e rc io , e m p re za s e tra n sp o rtes, e n fim e m to ­
d a s a s o rg a n iza ç õ e s e c o n ô m ic a s, o n d e é fo r ç o s o n ã o p e r d e r os o r d e ­
n a d o s c o m in d iv íd u o s cpie n ã o te n h a m c a p a c id a d e p a r a e x e r c e r
e ffic ie n te m e n te a s fu n c ç õ e s . ” (1930, p. 229)

É importante lem brar que as obras de M edeiros e Albur-


querque e Isaias Alves relacionam-se diretamente com as primeiras
aplicações da Psicologia à organização do trabalho, pois são elas
co-responsáveis pela introdução dos testes no país e são estes os
principais recursos técnicos da Psicologia de que necessita a adm i­
nistração científica.[Por outro lado, tanto a aplicação da Psicologia
ao trabalho como a utilização dos testes nas escolas refletem um
movimento mais amplo da sociedade brasileira em busca da racio­
nalização dos processos que ocorrem em várias de suas instâncias.
A racionalização assume o dever de prom over uma m aior produti­
vidade, tem um claro sentido econômico e, fundamentalmente, re­
presenta a modernização almejada por setores da sociedade, cuja
aspiração é, em última instância, inserir o Brasil no seio do capita­
lismo, expandindo-se no campo da industrialização massiva. No in­
terior desse processo, os testes tiveram papel privilegiado, não ape­
nas por sua potencialidade de selecionar indivíduos, mas também
por sua função intrínseca de diferenciar individualidades, cujos
determinantes são antes sociais que individuais; Isso é demonstrado,
por exemplo, na Orientação Profissional que, de certa m aneira,

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Leitura histórica sobre sua constituição

direcionaria indivíduos para diferentes profissões pelas suas capaci­


dades, sem considerar que estas últimas têm íntima relação com a
história de vida do sujeito e acabaria, por seu turno, endossando
determinações estabelecidas pela origem de classe e não por carac­
terísticas inerentes ao indivíduo.
É interessante notar, a respeito da questão da racionalização,
que são análogas as propostas de reorganização escolar e de admi­
nistração científica da indústria e do comércio, ambas buscando
métodos e processos, ao mesmo tempo de seleção e de avaliação,
por m eio de técnicas que se pretendiam objetivas e isentas de
valoração subjetiva, prendendo-se à mensuração e à quantificação.
Os testes trazem exatamente a argumentação de sua “inequívoca
objetividade”, o que vem referendar a noção de “neutralidade” que
caracterizaria a técnica derivada do conhecimento científico. Assim,
propondo-se a m edir objetivam ente conhecim ento, inteligência,
aptidão e caráter, em verdade os testes acabaram por ter a função de
segregar elementos indesejáveis aos interesses dos detentores do
poder econômico. Sobre isso, Antonacci afirma:

“P ro p o n d o d is p o r ca d a o p e rá rio n a tarefa o n d e se m o stra sse m a is


p ro d u tivo e o n d e fo s s e m re d u zid a s a s in sa tisfa çõ es, o a b sen teísm o , a
n egligência, a rotatividade, o ‘fr e io ’ e a s in ú m era s h o stilid a d e s a o s
n o vo s ritm os, natureza e c o n d iç õ e s d e trabalho, o s p rin c íp io s e in stru ­
m e n to s d a F isio lo g ia e da P sic o lo g ia In d u stria l se c u n d a ra m os o b je ti­
vos do taylorism o. E m ais, p ro d u zin d o tão so m e n te tra b a lh a d o res p a ra
o n o vo tip o d e trabalho, d isc rim in a ra m e se g re g a ra m o s ‘in a p ro -
veitá veis', ou seja, a q u e le s q u e n ã o se e n q u a d ra m social, p o lític a e
m o ra lm en te à s n o va s n o rm a s e p a d rõ e s d e p ro d u ç ã o . ” (1987, p. 69)

Outra característica importante das obras sobre testes é uma


certa ingenuidade de que vem revestida a tentativa de demonstração
da aplicabilidade destes às questões relativas ao trabalho. A leitura
de tais obras sugere que seus autores, imbuídos puramente do “espí­
rito científico”, procuravam mostrar como a ciência e suas técnicas
comportavam inúmeras e relevantes aplicações, sem que houvesse

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A Psicologia no Brasil

um exercício mais profundo de reflexão a propósito dos interesses e


das conseqüências de sua utilização. Pode-se supor que o pioneirismo
dessas obras, ao abordarem assunto tão novo, seja responsável por
esse limite reflexivo. Por outro lado, o fato de se tratar de questões
de natureza técnico-científica, numa perspectiva em que a ciência
era considerada neutra, isentava por si só a necessidade de reflexões
de caráter ético-social, um a vez que tudo deveria fundam entar-se na
autoridade da ciência.
Pode-se, pois, afirmar terem tido os testes ou, mais ampla­
m ente, a Psicotécnica, papel fundam ental no grande projeto de
modernização do processo produtivo brasileiro, como instrumental
técnico que serviiícom propriedade às finalidades estabelecidas para
o conjunto de medidas do qual faziam parte, articulado aos interesses
daqueles que dele fizeram uso.
Do ponto de vista prático, como já referido anteriormente, a
experiência pioneira de aplicação sistemática da Psicologia ao tra­
balho ocorreu em 1924, no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo,
sob a direção de Roberto Mange. Consistiu ela na seleção de alunos
para o Curso de M ecânica Prática da escola citada, por meio da
aplicação das “provas de Giese” e da introdução da aprendizagem
racional, com base nos pressupostos da Psicotécnica. Nas palavras
de M ange31, a instrução racional consiste em:

c o n s e g u ir o m á x im o r e n d im e n to d o m e n o r te m p o p o s s ív e l e
c o m o m ín im o d is p ê n d io d e e n e rg ia e d e d in h e iro . M a s, s e r á isso
r e a lizá v e l p e r fe ita m e n te c o m m a te r ia l h u m a n o d e q u a lq u e r n a tu ­
reza, b a sta n d o q u e o s in d iv íd u o s te n h a m u m a b a se d e c o n h e c im e n ­
to s fu n d a m e n ta is in d is p e n sá v e is e q u e n ã o h a ja sin to m a s a b e r ra n te s
c o n tr a -in d ic a d o s ? (...) D e v e m o s, a n te s, e x ig ir c o m p u ls o r ia m e n te ,
se n ã o u m a c e n tu a d o g r a u d e a p tid ã o , a o m e n o s u m m ín im o in d is ­
p e n s á v e l a lia d o a m a r c a d o p o d e r d e e d u c a b ilid a d e .

31 MANGE, R. Tese apresentada ao I a Congresso de Engenharia e Legislação Ferroviárias


em Campinas. São Paulo, CFFSP, 1935. Sobre esse laboratório, ver: PENNA, A. G. Sobre a
produção cientifica do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas, no Engenho de
Dentro, in: História da Psicologia, n° 1, Rio de Janeiro, FGV, 1985.

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Leitura histórica sobre sua constituição

E s te n d e a ssim a in stru ç ã o ra c io n a l su a s e x ig ê n c ia s a o p e r ío d o p r é -
vo c a cio n a l. A í é q u e p o d e r á a v a lia r d a s te n d ê n c ia e ju lg a r d a s a p ti­
dões, se ja p o r sim p le s o b se rv a ç ã o , se ja p o r s e le ç ã o p ro fissio n a l p e la
p sic o té c n ic a , o q u e é se m p re m a is rá p id o . S e se le c io n a m o s m a té r ia s
p r im a s n a in d ú stria , s e m e n te s e p la n ta s n a a g ric u ltu ra , e sp é c im e s
a n im a is na p ecu á ria , sem p re p a r a o b te r p ro g re sso ev o lu tivo eficiente,
n ã o é d e e s tr a n h a r q u e o m a te r ia l h u m a n o - q u e ta m b é m n ã o se
p r e s ta d e ig u a l m o d o p a r a d e te rm in a d o f i m - te n h a d e s e r s e le c io n a ­
do. A liá s, o h o m e m n ã o e sc a p a à s le is g e n é tic a s e b io ló g ica s, e co m o
ta l é q u e a p s ic o lo g ia a p lic a d a lh e se g u e os p a s s o s . O p r o c e s s o d e
se le ç ã o p r o fis s io n a l é b a sta n te co m p le xo . Se, d e u m lado, a p tid õ e s
p r o fis s io n a is co n stitu e m in d íc io s d e a lto v a lo r p a r a o ê x ito n a p r o fis ­
são, n ã o m e n o s im p o rta n te se rá le v a r-se n a d e v id a c o n s id e ra ç ã o u m
e x a m e p s ic o -fisio ló g ic o , o p o d e r d e a d a p ta ç ã o a o m eio , a s c o n d i­
ç õ e s so cia is, a s te n d ê n c ia s ca ra c te ro ló g ic a s, e n fim - o c o n ju n to d a
p e r s o n a lid a d e ’’ (Mange, 1935).

Essa longa citação bem dem onstra como a Psicologia e as


técnicas dela derivadas são incorporadas pelos interesses industri­
ais. Explicita-se aí o modo como a ciência psicológica deve servir
à causa da eficiência industrial, selecionando os sujeitos adequa­
dos aos resultados esperados, considerando-os como “m aterial hu­
m ano”, à sem elhança dos dem ais “m ateriais” usados pela indús­
tria, agricultura e pecuária. M ais que isso, esse trecho m ostra uma
abordagem mais com plexa da Psicologia, em que não somente a
aptidão, mas a personalidade como um todo deve ser considerada
para que sejam atingidas plenam ente as finalidades im postas pelo
processo produtivo.
A essa experiência muitas outras se seguiram, na m esm a di­
reção e com participação, direta ou indireta, de Roberto Mange;
destas devem-se destacar as relativas às empresas ferroviárias que
foram, sem dúvida, um dos principais alicerces da Psicologia apli­
cada ao trabalho no Brasil.
Em 1930, foi criado o “Curso de Ferroviários de Sorocaba” e
o “Serviço de Ensino e Seleção Profissional” da Estrada de Ferro

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A Psicologia no Brasil

Sorocabana, sendo esta uma das principais bases sobre a qual am-
pliou-se esse tipo de serviço para o conjunto das estradas de ferro
de São Paulo, consubstanciado no Centro Ferroviário de Ensino e
Seleção Profissional - CFESP, em 1934, para cuja criação teve fun­
damental colaboração o 1DORT. Deve-se acrescentar que essa insti­
tuição teve grande importância, não somente para as empresas fer­
roviárias, mas foi ela um centro irradiador da Psicologia Industrial
em todas as direções.
A essas experiências devem ser somadas as pesquisas e proces­
sos de seleção de aviadores para a Aviação Militar, realizadas pelo
Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de
Dentro em conjunto com os Ministérios da Guerra e da Justiça, com a
participação de médicos militares e a coordenação de Waclaw Radecki.

Foram estas as principais experiências que deram início à apli­


cação da Psicologia às questões relativas ao trabalho que, a partir de
1930, teve um progresso acelerado, expandindo-se para um grande
número de empresas, incrementando seu potencial técnico e inserindo-
se definitivamente como um campo aplicado da ciência psicológica no
Brasil. Após a experiência do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo,
seguida pelo Centro Ferroviário e pelo IDORT, merecem destaque os
trabalhos realizados nas décadas de 30 e 40 nas seguintes organiza­
ções: SENAI, SENAC, CMTC, Estrada de Ferro Central do Brasil,
ISOP-FGV, Instituto de Administração da Faculdade de Ciências Eco­
nômicas e Administrativas da USP, dentre as mais importantes.
Percebe-se aqui que a Psicologia não se desenvolveu no in­
terior de outra área de saber, mas penetra ela já na condição de ciência
autônoma para colaborar num projeto amplo, para o qual conver­
gem diversas áreas de conhecimento. Nesse processo, a Psicologia
ganhou impulso para seu desenvolvimento e, principalmente, para
definir com clareza seu campo de ação profissional.

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