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CCS

1. Nota para Vando

Tento aqui chamar Vando com as forças que já não sinto mais tiradas da
minha própria solidão sem fim, tento aqui conversar com Vando, tento
que ele me diga algo bom e que conforte meu peito. Tento tomar uma
cerveja com Vando, uma que nunca tomei, uma que não vende no bar,
pois Vando não está no bar, Vando não está no céu, eu não sei onde
está Vando, mas com esforços, tento fazer descer Vando, na verdade, é
o contrário, peço para que Vando me faça descer de verdade. Para que
ele me faça ser de verdade. Para que ele faça a solidão ser menos de
verdade e enfim possamos dormir.

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(Tentei fazer um bordado para Vando, uma flor, mas era tão tarde, e
meus olhos ardiam tanto, que quando me dei conta que a flor do
bordado estava tão torta e tão frágil e era tão pequena, vi que ela não
era do tamanho de tudo que eu queria dizer para Vando, então eu só
me senti ridícula de tentar bordar e parei.)

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Vando

Vando está exausto,


Vando diz que a cada dia perde uma batalha diferente –
a cada dia levanta um céu de cimento diferente –
e a cada dia também é derrubado por ele
Vando diz que seu trabalho de empreiteiro de obras consome sua alma
– alma que ele já havia negociado por alguns cigarros, mas que hoje a
duras penas, tenta reaver, tê-la de volta – ao empilhar tijolos e construir
paredes.
O cimento de seu trabalho consumia seus dedos, sua carne, e quanto
mais ela come e quanto mais em carne viva, mais acostumada com a
dor do sol sua carne fica –
quanto mais ela se expõe ao sol, mais os seus poros não conseguem
respirar
Quando Vando termina o expediente, vai para casa. Porém, no morro
em que mora, também há uma construção de obras – pessoas
construindo suas casas provisórias ilegalmente de madrugada para que
não sejam impedidas pela fiscalização da cidade.
Vando acostumou-se ao barulho da obra – seus sonhos se misturam ao
barulho da obra e ele já não sabe mais distinguir o que é barulho do
sonho ou da obra – nem a obra do dia e nem a obra da noite.
O barulho que Vando ainda não se acostumou é aquele barulho que
está sempre ali, não na obra de dia, nem na obra da noite, mas
intermitentemente no dia e na noite juntos, quando se juntam, porém
nunca se sabe exatamente quando nem onde – é um barulho que só se
escuta quando já não há mais nada para escutar, quando já não há
mais o que fazer, quando as pessoas não estão trabalhando e nem
mesmo dormindo, quando todos os órgãos estagnaram, este barulho,
este marulho, está sempre lá, como uma marcha de anjos incessantes,
um hino silencioso, um estralo aos ouvidos dos que não foram ouvidos e
deixaram de querer gritar para o mundo, mas querem gritar para que
eles mesmos acordem de seu sono diário profundo. Este barulho só
ressoa durante o silêncio do dia, nunca escondido na madrugada – tão
exposto à luz escaldante do dia derramado sobre o asfalto sujo que
nunca termina – e que nunca parecemos ouvir.
Vando um dia estava febril, sua temperatura subiu e então ele subiu o
morro para ouvir um barulho que de repente o chamou – ao chegar lá,
sua juventude se levantou do chão, ergueu o dedo, encostou em seu
ombro e derrubou Vando ladeira abaixo.

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