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Nigredo, albedo e a aporia do rubedo

CCS, Curso do Méthodo com Anna Israel


31 de janeiro de 2019

Nigredo, ou,
O pré-gato

Os alquimistas chamavam a primeira fase da alquimia de nigredo, que, em latim,


significa escuro. Nesta fase, todos os ingredientes eram misturados até atingirem
uma matéria preta. Esta era a fase de morte espiritual.
Nesta fase, o sujeito empenha-se em produzir livros, esculturas ou desenhos. A
produção de um livro, de uma escultura ou de um desenho, aqui, é um segundo
plano em relação à transformação do sujeito que a produz. Porém, a produção
de algo não é completamente desimportante: ela é fundamental para que esta
transformação possa acontecer; é como se o homem, praticamente em estado de
coma, precisasse de um objeto para resgatar certas forças contidas neste objeto,
não para colocar dentro de si, que é uma prisão maior que o objeto, mas para
devolver-lhes alguma vida e assim, pegar emprestado para si uma vida da qual
certamente ele está em busca – mas ainda não sabe disso totalmente. Assim,
dilacerado e estando entre muitas forças díspares, enquanto ele ainda não
consegue transformar a si mesmo, consegue pelo menos vir a ser um
transformador de energia. A cada vez que se aprofunda nesta produção,
percebe-se cada vez mais como alguém sem vida, e este estado lhe passa a ser
tão incômodo e putrefato que começa a ter necessidade de estar em estado de
produção; esta, então, passa a funcionar como uma espécie de termômetro da
sua própria falta de consciência e de espaço interno.
Albedo, ou
O gato

Após muito produzir, adquire-se inevitavelmente um domínio da técnica


utilizada, que é o que nos permitiu concluir que quem adentra a fase do gato,
chegou ao nível de mestre1 proposto por Ezra Pound.
Porém, a técnica que se diz aqui, por mais exímia que seja, não é em si mesma. A
partir dela, pode ser que o seguinte seja enfim revelado: aquilo que o homem
tem necessidade não é de fato da sua produção, mas sim daquilo que o mantém
vivo e com o qual ele entra em contato quando está produzindo algo através da
técnica.
Ele não quer mais colecionar pequenas centelhas de vida durante algumas horas
de sua semana e colocá-las na estante, mas reunir seus próprios cacos
espalhados em seu corpo e colocá-lo para enfim viver. E vê que para este viver, é
preciso um aprendizado que o ensina, a duras penas, que, ele é muito menor que
sua vida e que dela, ele nada possui – ela é a obra em questão: sendo tão grande,
ele nem a alcança. Talvez só a partir deste tipo de consciência, ele possa estar
em posse desta ausência e vir a ser possuído pelo que ele chamava de sua vida –
mas que agora vê como um gigante a andar sempre em sua frente.
Albedo, em latim, significa brancura, e é a fase posterior ao nigredo na alquimia.
Esta brancura é uma característica de uma neutralidade: ou seja, a fase do gato
caracteriza-se por uma grande impessoalidade. No gato, começa-se enfim a
tomar uma posição com relação aos problemas pessoais sabidos e analisados à
exaustão no pré-gato, passando a enfim burlar a identificação do sujeito com as
leis que o regem e enfim convertê-las, ingresso obrigatório para adentrar o
mundo da ficção que todo artista pretende atingir. Para esta ficção, o objeto do
artista é um artifício e isto em nada quer dizer que ele não seja espiritual. O fato

1
Inventores: Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo
conhecido de um processo.
Mestres: homens que combinaram um certo número de tais processos e que o usaram tão bem ou
melhor que os inventores.
Diluidores: Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes
de realizar tão bem o trabalho. Ezra Pound, ABC da literatura, pág. 45
da técnica ser algo a trabalhar na matéria, não exime seu trabalho espiritual.
Sobre o artifício, diz Lacan:
[...] visto que ele (o artifício) é um fazer que nos escapa, isto é, que transborda em
muito o gozo que podemos ter dele. Esse gozo bem fininho mesmo é o que
chamamos de espírito. 2
O artifício é formado por ars e ficium: técnica e fazer. Só há fato pelo artifício3, diz
Lacan. Talvez esse seja o maior salto do gato para o pós-gato: No gato, há o
domínio do fazer enquanto no pós-gato, o sacrifício desse domínio: o não feito
pelas mãos, a acheiropoiesis, (ἀχειροποίησις: a = não; χειρο = mão; ποίησις = fazer).

2
Lacan, O seminário 23: o sinthoma, pág. 62
3
Lacan, O seminário 23: o sinthoma, pág. 63
A aporia do rubedo, ou
Pós Gato

Ninfa é o médium onde as divindades e os aventureiros se encontram.


Roberto Calasso, Os deuses e a literatura, Companhia das Letras, pág. 29

Para os alquimistas, a última fase de um processo alquímico que é a produção de


ouro é, na verdade, a ressurreição do alquimista: ele deixa de ser uma pedra
morta e se torna a pedra filosofal da qual está em busca. Sua alma renasce, assim
como a matéria dos metais morre e se regenera. A palavra rubedo, em latim,
significa avermelhado.
Aporia (Ἀπορία), na mitologia grega, era a divindade da impotência, da
dificuldade, do desamparo e da falta de recursos. Ela era odiada pelos homens.
Hoje, a palavra aporia é usada para se remeter a um caminho sem saída, como
quando duas ruas se encontram e logo à frente há um muro: é uma contradição,
ou seja, a comunhão de coisas distintas.
O rubedo, o último estágio da alquimia, o pós-gato para nós, a região habitada
por Res, é uma aporia – é saltar na realidade de uma vez sem ter como fugir dela
– mesmo que as manobras da fase do Gato não tenham sido diretamente nas leis
que o regem nem no sintoma, as leis desta fase não são mais as mesmas, não são
regidas pela sophrosyné. Neste estágio, não há mais saída a não ser ouvir a
própria voz se falar; simultaneamente, tem-se a perda do controle da voz – a
perda do poder de si, como a divindade Ἀπορία nos mostra. Ouvir a própria voz,
aqui, não difere de ouvir a voz que vem fora de si – a voz da natureza – o canto
da ninfa que habita esta natureza, morada agora compartilhada com o alquimista
– aquele que saiu da prisão de seu corpo – o alpinista que escalou o morro mais
alto para poder habitar as nuvens – e entrar numa prisão de fato: descer o morro
diariamente – vivendo em mundos opostos – suportando estar no meio de duas
esferas que não se encontram; estando em aporia, sendo, enfim, a pedra filosofal,
o mediador que unifica.
Sem o sintoma o sujeito não se sustenta, segundo Lacan. Por isso, o gato
não é uma medida para se afastar do sintoma, mas para se aproximar dele de
forma brutal e cada vez menos pessoal – e adentrar o sinthoma, como fez James
Joyce, para Lacan – ou Res; para não mais se relacionar sensualmente com a vida
– nem espioná-la pela fechadura – mas abrir a porta da dor – e estar nela sem
senti-la; a ouvir constantemente os cantos mortais da sereia – e não morrer de
amor.
Bibliografia

Agamben, O fogo e o relato, Editora Boitempo


Ezra Pound, ABC da literatura, Editora Cultrix
Jung, Estudos alquímicos 13, Editora Vozes
Lacan, O Seminário 23: o sinthoma, Editora Zahar
Roberto Calasso, Os deuses e a literatura, Companhia das Letras

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