Você está na página 1de 10

Miguel acorda assustado. Sente como se algo estivesse preso ao seu peito.

Levanta-se da
cama rapidamente e tenta a todo o custo recuperar a respiração.
É como se faltasse ar nos pulmões, então puxa com força, como quem está com um saco
enrolado no pescoço. Seu corpo está suado e ele parece até o ouvir o pulsar do coração,
um tique-taque de relógio que preferia não notar, mas que não consegue ignorá-lo.
O pulsar insistente do coração lhe deixa atordoado. Olha para as mãos e é como se elas
estivessem enrugadas. O ar que lhe faltava nos pulmões parecia que não lhe passava mais
pelo corpo e estava secando. Parecia que o barulho de dentro de seu corpo era perceptível
por seus ouvidos, e sua aflição era tanta que sentia-se como se ouvisse o som de seus
órgãos e todo o movimento que acontecia por baixo da sua pele. Queria fugir de si mesmo,
daquela cama, daqueles sons enlouquecedores. Desesperado, tenta se levantar, mas é
como se algo o prendesse ali, não consegue se pôr em pé, como se uma força invisível
empurrasse seu corpo pra trás, forçando-o a manter-se deitado, olhando para cima, ouvindo
seu coração e todos os demais acontecimentos internos.
Olhou o teto e observou que havia uma luz, e não compreendia de onde vinha, mas era
madrugada, sabia que era, e a luminária estava apagada. Tentou olhar pela janela e viu, por
uma fresta, que a luz era de fora. De onde vinha a luz? Adormeceu sem perceber,
finalmente.
Acordou sem que entendesse o ocorrido, mas já estava bem, não sentia mais o pulsar do
coração, ainda que tudo dentro dele continuasse funcionando.
Era manhã, ouvia os pássaros lá fora, os carros passando, tudo estava normal. Miguel
levantou-se, sentia-se como quem corre uma maratona. Sentado sob a cama tentou
compreender o que passou: será que havia sonhado? Sentiu-se aliviado.
Seguiu para sua rotina, fez seu café e tomou na cozinha. Tentava entender o que
acontecera. Mas não encontrava resposta. Passou o dia todo pensando no que seria aquilo
que viveu, tão assustador e solitário, mas as coisas eram completamente normais.
"Não há de ser nada, talvez foi só um sonho e eu pensando que é algo real", sorriu pra si
mesmo.
Seu dia seguiu comum, nada de diferente.
Em casa a noite Miguel seguiu sua rotina diária, ele se deitou como todos os dias em seu
quarto solitário. E o mesmo aconteceu. No momento em que se deitou, novamente ouviu
seu coração pulsar e não mais parou de ouvir, foi ficando mais forte, como a batida
incessante de um relógio que não desiste de tiquetaquear. Sentou-se. Ao menos tinha
fôlego, e embora sentisse cada artéria vibrar, era só seu coração que pulsava com força. O
coração que o mantinha vivo parecia querer que ele o notasse, de tão forte que batia.
Sentia pulsar nos ouvidos, na perna, para onde quer que olhasse, sentia-o pulsar com força,
era enlouquecedor. Queria fugir do próprio coração, queria arrancar todo o sangue de
dentro de si para que não o sentisse a correr por suas veias, pulsando fortemente como um
rio fluente e barulhento.
Olhou para os braços e notou suas veias grossas e cheias daquele líquido espesso. O
coração passou a pulsar mais forte e ele sentiu o líquido escorrendo pelo seu corpo
novamente, com força. Sua respiração começou a ficar ofegante e caiu sobre a cama, com
falta de ar, aquela força invisível de antes agora era mais forte e por mais que quisesse, não
conseguia levantar da cama. Estava preso, mas por algo que não via, que insistia em
fazê-lo sofrer ouvindo e sentindo seu próprio corpo.
Pensou em gritar, talvez um vizinho ouvisse, mas a voz não lhe saía pela boca, o opressor
lhe impedia de liberar qualquer som que não fosse de dentro de si mesmo, seu adversário o
obrigava a ouvir seu corpo interior, com cada nuance de som.
"Morrerei aqui, sozinho", pensou. "Morrerei sozinho".
Com mto esforço virou e notou que havia luz lá fora, embora ainda fosse noite, via um
pequeno feixe de luz e ouviu som de grilos, tentou entender de onde vinha aquela luzinha
insistente que conseguia ultrapassar a janela do seu quarto. E foi olhando, olhando, até que
adormeceu.
Acordou e já era dia. O som dos pássaros, da rua, do mundo acontecendo agora lhe trazia
paz.
"Será que foi sonho outra vez? Se for, não quero mais sonhar."
Cansado igual a outra noite, levanta e faz seu café.
Miguel sente-se exausto, ao olhar-se no espelho percebe que está com olheiras, o rosto
está cansado, mas precisa ir trabalhar.
No serviço, entre cafés e afazeres, faz uma pesquisa: 'ouvir o som do coração'. As
respostas trazidas pelo site não trouxeram nenhuma sugestão do que possa estar
acontecendo com ele, e desistiu da busca. Trabalha, mas já não está com o mesmo vigor
de sempre, duas noites sem dormir direito, Miguel sente medo.
Na terceira noite vivendo a mesma sensação, decide se comportar de forma diferente, mas
agora ele se questiona se há algo errado em sua casa.
Tudo parece igual e normal fora do quarto, na cozinha, sala, corredor ou mesmo no
trabalho.
Miguel decide mudar de quarto para poder dormir.
Coloca um colchão na sala, e vai dormir, o episódio então acontece novamente, o
sufocamento parece ainda maior, como se algo dentro dele quisesse sair pra fora e ele
estivesse impedindo. No momento em que deitou no colchão o sufocamento aconteceu de
novo, o coração pulsou com força, dessa vez até sentiu uma forte pressão na cabeça. Antes
que voltasse a viver novamente tudo aquilo, sentou-se. Retirou o colchão da cozinha, e
assustado, passou a dar voltas pela casa. Gritou:
-O que está acontecendo comigo?? Eu preciso dormir! Tem alguém aí? Vc que é invisível e
não me deixa dormir, por favor, me deixa em paz.
A casa estava num silêncio sepulcral, Miguel ajoelhou-se no chão, desesperado, em
prantos.
-eu preciso dormir!!! Me deixe em paz!
Depois de dias e dias sem dormir direito, Miguel está exausto e não consegue raciocinar
direito. Não mais foi para o bairro, dorme na sala, recostado no sofá, e seus momentos de
sono são cada vez menos suficientes, e no 7° dia de sonhos quebrados, lentamente se
deixa levar pelo cansaço.
Quando acordou, parecia ter dormido tudo o que era necessário. Nenhuma falta de ar,
nenhum pavor, sequer percebia o coração, que batia silenciosamente como sempre. Mas
não estava no mesmo lugar.
Não era a sua sala.
Estava num lugar diferente.
De longe podia-se ouvir o som de uma gota que caía incessantemente em algum lugar
daquele local.
Em vez do som ensurdecedor do seu coração que antes não o deixava dormir, ouvia agora
aquele pingo incessante e persistente. Levantou-se e foi ver de onde vinha. Como o lugar
era grande, demorou a encontrar, mas achou, num canto, a pingueira que fazia gotejar o
lugar cinza vazio e cobriu o buraco da goteira, o gotejamento terminou e com isso não
havia mais som.
Miguel descansou por um momento. Estava em paz e por não ouvir nenhum barulho do seu
próprio, nem sentir falta de ar, não se importou nem um pouco com o lugar onde estava.
Sentia-se bem naquele lugar sem som, não havia nenhum barulho dentro ou fora de si,
quando novamente começa a ouvir pingos insistentes por aquele lugar.
O som de pingos começa novamente e fica mais alto, mas agora é em outro lugar. Miguel
então sai procurando pela nova goteira.
Andando, encontra uma, e logo, outras, e o som vai ficando ensurdecedor naquele
ambiente. Olha em volta e o chão está completamente molhado, as goteiras não param, o
barulho fica intenso, alto, assustador.
Miguel fecha os olhos e dá um longo grito!
-ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
O grito é tão alto que seu coração acelera, mas ele insiste no grito, pois é o único som que
ele quer ouvir agora, o único que suporta.
O som do seu grito é fino e insistente, por hora retoma o fôlego e volta a gritar
imediatamente, de olhos fechados, e sente na força do grito uma energia boa, não quer
parar de gritar, pois encontrou sua paz ali naquele barulho. E fica assim, gritando, sem
parar, sentado de olhos fechados, sem imaginar nada, sem conseguir ouvir nada além
daquele som estridente.
Ao gritar, não ouve mais as pingueiras, nem seu coração, nem sente nada à sua volta…
queria gritar para sempre!
Só terminou seu grito quando seu corpo não tinha mais força e agora estava cansado e
ofegante. Tudo desapareceu. Um momento de total silêncio. Tudo em paz.
Ao abrir os olhos está novamente em sua casa, na sala de sua casa, no sofá onde havia
sentado para tomar um chá, depois de tentar dormir na cozinha.
Sentia-se bem. Deitou e dormiu. Dormiu bem. Acordou bem.
"Eu gritei tanto! E foi libertador! Vou gritar mais. Preciso gritar mais!"
O dia estava lindo como há muito tempo não ficava. Miguel parecia ter vencido o gigante
invisível que o atormentava.
Tomou seu café feliz e saiu, como de costume, para viver sua vida.
Pensou que deveria gritar mais vezes, mas como faria isso? Era um executivo respeitado.
Estava à frente de uma empresa de marketing e havia chegado naquela posição com muito
trabalho. Não podia perder a compostura. Mas gritar lhe fizera bem demais e queria fazer
de novo, queria até falar com alguém a respeito, coisa que não acontecia com frequência. A
posição que ocupava, embora era de grande status, lhe trazia algumas limitações, falar
sobre seus sentimentos não fazia parte daquela imagem que queria transmitir às pessoas,
precisava estar bem, de outra forma, como as pessoas o respeitariam? Esses pensamentos
não eram comuns a ele, que inclusive evitava relacionamentos íntimos; davam trabalho
demais, expunham demais as pessoas, era o que pensava, e não queria perder o lugar que
havia conquistado com tanto trabalho.
Miguel era alguém agradável, mas não deixava que as pessoas se aproximassem demais,
mantinha um distanciamento saudável, embora fosse um chefe agradável e comunicativo.
Por onde passava era uma pessoa admirada, e gostava disso.
As mulheres de seu trabalho sonhavam com ele, e ele sabia disso, mas embora fizesse
muito bem ao seu ego, jamais se envolveria com alguma delas, jamais.
Suas horas fora do trabalho também não envolviam pessoas íntimas, e quando queria uma
atividade sexual, buscava por algo informal, impessoal, era mais fácil do que se envolver
com pessoas com as quais tivesse que lidar depois.
Frequentava academia, caminhava no parque, saía para casas noturnas e gostava da vida
que levava. Era dono de si e dos seus próprios sentimentos, considerava-se inteligente por
isso. Dizia para si mesmo que tinha inteligência emocional, pois estava sempre dominando
seu próprio eu. Não era presunçoso e arrogante, seu objetivo não era ser melhor que
ninguém, apenas não queria ter que lidar com estresses desnecessários, era como
pensava: estresses desnecessários.
Embora fosse de raros relacionamentos, Miguel confiava em uma pessoa: o porteiro do
condomínio, o seu Nestor, com ele tinha algo que se aproximava mais de um
relacionamento íntimo.
Era com seu Nestor que Miguel conversava além do trabalho, por no máximo meia hora,
quando esse lhe fazia compras, ia ao mercado, contratava e pagava a diarista. Seu Nestor
era uma figura interessante. Um homem de quase 60 anos, que trabalhava no condomínio
há 30. Miguel, já o conhecia há 10 anos, desde que mudou-se para aquele prédio. Era uma
figura simpática e comunicativa, com requintes de pai de todos, e Miguel era seu filho
achegado no condomínio.
Seu Nestor era o único com quem Miguel poderia falar sobre o ocorrido nos dias anteriores,
mas não faria isso, porque faria? O que aquele velho poderia fazer além de dizer a ele para
procurar ajuda profissional? E ele não estava disposto a falar com um médico, teria de faltar
no trabalho, causaria estranheza já que era um homem respeitado por sua produtividade e
pontualidade. Não, não faria isso, mas no fundo, sabia que precisava.
Na volta para casa Miguel resolve passar na farmácia e procurar por algum relaxante, não
diria sobre o mal que havia vivido, mas perguntaria sobre algum suplemento que
melhorasse o sono, embora gritar tenha lhe feito bem, não poderia praticar isso com
frequência.
Ele sabia do impacto que causava nas pessoas e isso agora seria um problema, porque as
pessoas saberiam de sua aflição, e não queria isso, não queria que alguém sequer
pensasse que ele estava tendo problemas.
_boa tarde, o que vc me indicaria para o sono?
-boa tarde - uma moça respondeu - qual seria seu problema com o sono?
-nao, não tenho problemas com o sono, mas queria algo que ajudasse a dormir.
-O senhor quer um remédio para o sono mas não tem um problema para dormir?
Miguel sorriu, a moça porém não achou graça.
-Espere que vou chamar a farmacêutica.
-ok. Obrigado.
Miguel ficou ali pelos corredores da farmácia, esperando.
- Senhor?
-ah, sim, claro. Então, gostaria de saber se vcs tem um remédio para facilitar o sono.
-entendi, qual seu problema com o sono, pode me dizer? Assim posso te indicar algo
melhor.
Miguel empalideceu, não queria falar com aquela estranha sobre seus problemas pessoais,
e divagou naquele instante, sentiu seu coração pulsar forte e conseguiu ouvir novamente
aquele som ensurdecedor vindo de dentro de si.
O fôlego começou a faltar e sentia-se sem ar nos pulmões, parecia estar dentro de si
mesmo e seu pulmão estava contraído, não conseguia abrir os pulmões, não conseguia
parar de ouvir seu coração, sentia seu sangue circulando pelas veias como na velocidade
da luz. Puxava o ar para si mas ele não vinha, de repente as vistas começaram a escurecer
e ele percebia uma movimentação a sua volta mas não conseguia reagir, o som, o som, o
som de dentro de si era ensurdecedor, tentava olhar para suas mãos mas não as via, não
via mais nada, não via, não via… só ouvia o som, o som do líquido nas veias, o
tiquetaquear do coração, o pulmão puxando o ar sem conseguir… apagou!
Silêncio total dentro de si.
Antes de abrir os olhos começou a ouvir novamente as pessoas, alvoroço:
-deixem-no respirar, abram espaço, deixem-no!
Era a farmacêutica à sua frente.
-moço? - disse ela, segurando sua cabeça.
Miguel estava deitado no chão, sob o colo da mulher. Curiosos aos montes, remédios
espalhados pelo chão, uma verdadeira bagunça, e ele ali, bem no centro da confusão.
Nem forças tinha para ficar constrangido, ela acariciava seu cabelo…
-vai ficar tudo bem! Vc vai ficar bem.
-obrigado!
Foi tudo o que conseguiu dizer. E ficou ali mais uns minutos.
Quando conseguiu sentar e teve a visão panorâmica de sua vergonha, Miguel ficou
finalmente constrangido.
Pediu desculpas à moça, e tentou levantar, mas sua cabeça ainda estava pesada.
-não se esforce, dê tempo ao seu corpo.
-obrigado. - só conseguia dizer isso. Carregado de vergonha e preocupação.
Todo bem vestido e elegante, Miguel agora parecia um bicho estranho, exposto frente a
todos, logo ele, tão discreto. Mas a preocupação era maior que a vergonha. Continuou
sentado, com o braço estendido sob uma das pernas.
Aos poucos os curiosos foram se afastando, funcionários arrumavam as prateleiras que ele
derrubou ao cair no chão, e ele se preparou para levantar.
-quer ajuda? - perguntou a farmacêutica.
-já estou bem, mas muito obrigado.
- Acho que você precisa procurar um médico.
- Estou melhor, mas obrigado.
- senhor… ? Qual seu nome?
- Miguel e você é…?
- Letícia.
- Prazer, Letícia. E muito obrigada. - Miguel apertou a mão da farmacêutica.
- o senhor precisa verificar o que está acontecendo contigo.
- é, agora acho que devo.
- o que tem sentido?
- não sei explicar direito
- busque um profissional. Sei que veio procurar medicação, mas não é bom fazermos isso
sem saber o que está acontecendo.
- entendi. Vou procurar um médico. Vou procurar, mas gostaria de uma indicação, vc
conhece algum que possa indicar?
- hummm… tenho sim, mas teria que ver com calma, olha, leve aqui meu numero de celular,
mande msg me lembrando que te indico um bom médico. - dizendo assim, Letícia estendeu
a mão com o papel em que escrevera seu número. Miguel, porém, estava relutante em
aceitar.
Puxou rapidamente o papel da mão da mulher:
-Obrigado. Farei contato.
Miguel saiu tão preocupado com sua situação que nem pensou no papelão que tinha
passado.
Voltou para o carro e foi para casa, estava anoitecendo mas ele não pretendia ir para a
academia.
Só pensava no que poderia estar acontecendo com ele.
Havia contraído alguma doença? Era tão jovem e tão cuidadoso, como pudera adoecer?
Será que era algo no cérebro? Havia alguma mancha em seu cérebro? Lembrou de um
colega de trabalho de alguns anos, que passou a sentir dores de cabeça e falta de sono, e
quando foram fazer os exames constataram um tumor, o rapaz se foi antes de poder tratar.
Sentiu novamente o coração acelerar. E antes que o som interior começasse a importunar,
gritou. Gritou alto como antes fizera. Gritou até ouvir sua voz. Gritou alto, pois havia dado
certo da última vez. Mas a campainha tocou e ele se assustou. O coração pulsando forte e
a campainha tocando. Batidas na porta também chamavam sua atenção.
Ficou ali, em silêncio, sentado no chão, e ouviu alguém gritar lá fora:
Senhor Miguel… senhor Miguel!
Era seu Nestor, Miguel correu para abrir a porta.
- Senhor Miguel!
Miguel abraçou o velho e chorou.
-oh, senhor Miguel…
Miguel nem notara que os vizinhos estavam à sua porta junto ao porteiro, ele estava tão
cansado que não se importava com quem o estivesse olhando. Sentia medo.
Medo de morrer, medo de estar doente, medo de não conseguir mais levar sua vida como
antes, medo de não mais se reconhecer.
Medo, medo, medo!
-oh, senhor Miguel…
Disse novamente o velho, e fazia sinal para que os vizinhos saíssem. Como era muito
respeitado pelos moradores, logo não ficou ninguém ali, só os dois no abraço.
-venha, vamos entrar.
Seu Nestor colocou o jovem no sofá e fechou a porta da sala.
-vou fazer um cházinho pra o senhor
-nao, por favor, seu Nestor, já estou bem. Pode ir.
-nao, meu garoto, não estás bem, posso ver. Deixe-me cuidar do senhor
-o senhor tem seu trabalho, não podes ficar aqui comigo.
-oras, mas se depois de 30 anos aqui eu não puder cuidar de um morador então de nada
valeu todo esse trabalho!
Miguel sorriu, mas estava triste.
-O que está acontecendo, meu jovem?
-eu não sei explicar...
-pois então, tente!
-eu… eu… eu tenho medo!
-medo? Medo de que? De me contar? Não sinta medo! Não precisa. Sou velho mas sou
forte.
Miguel sorriu.
-eu tenho ouvido sons…
-sons de que?
-sons… sons de dentro de mim!
-nao estou entendendo, senhor Miguel… acho que o senhor precisa de ajuda médica.
-oh sim, sim, verdade. O senhor pode pegar para mim aquele papelzinho que está na
bancada, por favor?
Seu Nestor vai a bancada e encontra o tal papel, um post it cor de rosa, com letra bonita:
-hummmm... uma garota!
Miguel ri, mas desconversa:
-ela me deu esse número para me indicar um bom médico
-ta bom, meu filho, estou fazendo o chá, se precisar, me chame.
Miguel pegou o número, salvou em seu telefone e enviou uma msg:
"Olá, sou o Miguel, de hj mais cedo, será que poderia me indicar um bom médico? Obrigado
desde já!"
Deixou o fone no sofá e o telefone tocou.
-alo? Sim, Letícia, claro. Claro. Pode vir, o endereço é…
Letícia já havia falado com seu amigo, o Dr Paulo, que concordou em ir até a casa de
Miguel para falar-lhe pessoalmente.
-seu Nestor, vou receber um médico aqui em casa, está bem?
-sim, menino, sim, já avisei na portaria que passarei a noite em sua casa, e avisei tbm
minha esposa, que lhe mandou bons votos de melhora.
Miguel não estava com vergonha agora, estava cansado de tudo aquilo e também
agradecia por não precisar dormir sozinho, não queria ouvir os sons da sua cabeça, nem de
seu corpo.
Ficou ali deitado no sofá pensando no que poderia ser, e cada vez que pensava sentia seu
coração pulsar forte, ouvia o som, sentia o sangue correr… não podia mais ouvir… não
queria mais ouvir…
A campainha tocou, era Letícia e Paulo.
-boa noite, sejam bem-vindos, o Sr Miguel está ali na sala.
-boa noite, Miguel, tudo bem? Me chamo Paulo, sou psiquiatra.
-psiquiatra? Não estou louco. Eu não estou louco - disse Miguel, irritado.
-calma, Letícia narrou o acontecimento na farmácia, não estás louco. Deixe-me vê-lo.
O médico aproximou-se de Miguel e fez o procedimento de rotina
-eu ouço meu coração pulsar.
-entendo… o que mais?
Miguel respirou fundo e continuou:
-eu sinto o sangue das minhas veias correr dentro de mim, eu sinto o meu pulmão puxar o
ar sem conseguir, eu devo mesmo estar louco!
-Estas cansaço, Miguel, o que vc está narrando são crises de ansiedade.
-ansiedade? - A palavra soou como uma pedra na cabeça de Miguel - Mas não estou
ansioso. Imagina! Faço exercícios físicos, tenho uma alimentação balanceada…
-amanhã não vai trabalhar, fique em casa!
-nao posso. Sou diretor executivo da empresa.
-pois bem, mas está de atestado médico de uma semana, não irá ao trabalho durante esse
período.
-ok, ok… - Disse Miguel, respirando fundo, mas dentro de si sabia que não faria nada do
que o médico ordenou.
- Vou te receitar uns comprimidos que vai tomar ainda hj, mas é temporário se seguir
corretamente, e também estou deixando o encaminhando para um psicólogo. Vai fazer
terapia.
-terapia? - riu Miguel, ironizando - te.ra.pi.a! - riu novamente, não acreditando no que o
médico falara.
Terapia! Logo ele, com sua vida toda no lugar, com o status que sempre quis. Logo ele que
estava com seu ego elevado por conta de sua postura admirável. Logo ele! .
Respirou fundo e fechou os olhos, parecida ver um filme em sua frente: de que adiantou
toda aquela postura de força? Uma lágrima escorreu dos seus olhos, silenciosa, e ninguém
disse mais nada enquanto estava ali, em silêncio.
-então vou precisar de terapia…
-e de medicamentos! - disse o médico, colocando a mão em seu ombro - mas ficará tudo
bem! Sabia que é mais comum do que você imagina?
- o que? - perguntou curioso.
- crises de ansiedade - falou o médico, ainda com a mão em seu ombro. - e ainda pode
levar a situações mais sérias. Quanto antes tratarmos, melhores serão os resultados. Mas,
agora preciso ir.
-obrigado, doutor. Muito mesmo!
-que isso! O importante é te ver melhor.
Doutor Paulo se despediu de todos e saiu
Seu Nestor entrou no quarto com uma bandeira, trouxe-lhe o chá quentinho, e Letícia
entregou os comprimidos daquela noite:
-tome, Miguel.
Ele não hesitou, tomou o remédio da mão da moça.
Ficaram ali conversando e seu Nestor lhe disse que era preferível ir para o quarto pois o
remédio logo faria efeito.
Ele obedeceu. Aquele homem que dava as ordens, agora estava recebendo orientações de
um idoso, o porteiro que era a sua única pessoa de confiança.
Letícia o acompanhou e se despediu:
-amanha passo pra ver como você está. E não se preocupe com seu trabalho, se vc não
fizer contato, eles farão.
-nao quero pensar nisso hj, já estou sonolento e quero dormir..
-faz muito bem! Preciso ir para casa.
-puxa, acabei de te conhecer e vc já virou minha cuidadora.
-pois é, a vida tem dessas coisas - Letícia riu.
-será que você poderia ir amanhã? Eu não poderei sair de casa ainda, mas me senti mto
confortável com sua ajuda e queria retribuir, ou agradecer, mas em outras condições.
-ah, por favor, vc está me cantando?
-nao, por favor, não pense isso! - disse Miguel, tentando justificar suas palavras - não faria
isso jamais, não era do meu feitio.
-relaxa, já te conheço há um tempo! O homem intocável! É assim que chamamos vc quando
passa por lá.
- oh não! - Miguel sorriu constrangido, sabia bem do que ela estava falando. - desculpe por
ser tão indiferente. Vou tentar me retratar depois que ficar bom. Depois que ficar bom, eu
prometo que...
E começou a adormecer ali, na frente da moça. Ela o cobriu e saiu do quarto.
-ele dormiu.
-ainda bem, nunca o vi tão frágil.
-nem eu!
-a senhorita já o conhecia?
-e quem não? Ele é o cara mais bem afeiçoado do bairro! Educado, cortês e distante.
-é, é ele mesmo! Mas não é um cara ruim. É um bom garoto, só não quer se envolver.
-o que é péssimo, não?
-sim, sim… péssimo. Mas não o culpo. O mundo anda muito estranho.
-sim, anda. Bom, seu Nestor, eu tenho que ir.
-Então vá em paz. Posso chamar a senhorita caso eu precise entender algo sobre o
Miguel?
-sim, não hesite em me chamar. O telefone da farmácia está na geladeira e Miguel já tem
meu número.
Letícia saiu e logo seu Nestor também se deitou no sofá.
De manhã, lá está seu Nestor na cozinha moderníssima de Miguel, preparando um café
caprichado para o seu mais novo filho postiço.
O cheiro estava delicioso.
Do quarto, Miguel sentiu aquele cheiro de casa, um cheiro que não sentia a anos, algo
dentro dele sorri. Dormira muito bem a noite, um sono tranquilo, e agora parecia estar
totalmente revigorado. Sentou-se na ponta da cama e observou o ambiente cinza em que
vivia, embora todos os dias dormisse ali, há mto não observava seus aposentos.
Havia uma beleza fria no lugar, não parecia residir vida ali. Nem mesmo toda a
modernidade presente naquela arquitetura lhe trouxera um pedaço de felicidade, mas
aquele simples cheiro de comida vindo do corredor lhe causava uma estranha sensação de
nostalgia e prazer.
Levantou-se devagar e seguiu o cheiro do café da manhã.
-bom dia, Miguel! Que bom que você está melhor! Sente-se para um café.
-puxa, seu Nestor, nem sei o que dizer!
-ah, então não diga. Venha, coma!
Miguel sentou-se ali na mesa usada apenas para aqueles momentos raros em que
eventualmente convidava clientes e sócios para falar de negócios, a mesma mesa onde era
de costume comer suas refeições solitárias, que agora estava recheada de gostosuras.
Sentiu vontade de abraçar seu amigo, mas resistiu, não combinava com sua postura.
-sentou-se silenciosamente, com o coração pulsando de alegria. Estendeu a mão e Segurou
com força a mão de seu Nestor.
Os dois fizeram silêncio por alguns segundos.
-bom, vamos comer! Vc tem uma série de coisas a fazer ainda hj, mas nenhuma delas
envolvem trabalho.
Miguel acenou com a boca, enquanto mordia um delicioso pão com ovo e bacon, feito por
seu Nestor. Sentia uma fome descomunal, como se houvesse passado dias sem nada
comer.
-Devagar, meu jovem! Devagar.
Miguel sorriu e continuou mastigando.
Comeu tão rapidamente o pão, e depois tudo o que pode comer.
Seu Nestor ficou feliz ao ver que o garoto estava revigorado.
-Vou dar uma saída. Volto já. Fique bem.
-ok. Eu vou ficar.
Assim que Seu Nestor fechou a porta, Miguel sentiu o silêncio da sua tão sofisticada casa.
Era linda, mas faltava vida.
Percebera que de nada adiantou tanto cuidado com o externo, já que seu problema não era
visto por ninguém além dele mesmo, e se quisesse verdadeiramente sentir-se bem, agora
precisava mudar, precisava de relacionamentos, de pessoas, de bons amigos, quem sabe
tbm de um pouco de bagunça, e talvez até de uma nova postura.
Sorriu pra si mesmo, não que estivesse orgulhoso por quem era, mas estava feliz por ter
conseguido enxergar uma luz no fim do túnel e viver de forma diferente.
Quem sabe agora conhecesse algo fora daquela postura que o havia levado aos lugares
que sempre quis.
Quem sabe agora pudesse conhecer o oposto: a flexibilidade, ou mesmo a fragilidade de
entregar seu coração a alguém, algo de que sempre teve medo.
Agora tinha coragem de investir na insegurança, na dúvida; agora poderia sentir medo, pois
mesmo fugindo de todas as frustrações, não conseguiu impedir um grande desaponto que
lhe jogou no chão.
Queria conhecer algo novo. Queria conhecer e experimentar o amor das pessoas, talvez
houvesse beleza nisso. Queria fazer amigos.

Você também pode gostar