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SíNii-M NOVA FASE;

V. 22 N . 6 8 (1995?:53-85

ÉTICA E RAZÀO MODERNA

Henrique C. de Lima Vaz


Fac. Filosofia CES — S J (BH)

Suniiíiio: Èticn c RaTÜo Mtiknia O a r t i g o I c m p o r o b j e t o a n a l i s a i a silua(3o da Ética na


cultura contemporânea. A Introdução d e s c r e v e a razão d a a t u a l i d a d e dos lemas éticos,
s i t u a n d o - a n a evolu^ãü d a s o c i e d a d e o c i d e n t a l nm últimos cinqüenta a n o s . A p r i m e i -
ra parte a c o m p a n l i a a evoluirão d a c h a m a d a ra/ão m o d e r n a d e s d e o século X V I I ,
c o n f r o n t a n d o - a c o m a razão clássica. A s e g u n d a p a r t e m o s t r a a formação d a s
r a c i o n a l i d a d e s ílicas m o d e r n a s n a s u a correspondência c o m as r a c i o n a l i d a d e s c i e n -
lifico-filosóficas. F i n a l m e n l e , a C o n c l u s ã o e n u m e r a a l g u n s d o s p r o b l e m a s d a Ética
contemporânea e s u g e r e a p o s s i b i l i d a d e d a s u a solução alravés de u m r e t o m o aos
princípios da tática clássica.
Palíivrns-cImH-. Razão, racionalidade. Ética, Metafísica, autonomia.

Ab:,lrnil\ Elliicí iiiiil Modirii Rmsoii. T h i s a r t i c l e sets o u l I o a n a l y s i s l l i e p l a c e of Elliics


i n íontemporary c u l l u r c . T h e introduction d e s c r i b e s present r e a s o n i n g o n cthical
t l l e m e s , s i t u a t i n g il a g a i n s t t h e b a c k g r o u n d nf the e v o l u t i o n o f w e s t e r n s o c i e t y i n t h e
l a s l fifly y c a r K . T h e fírst p a r i t r a c e s the e v o l u t i o n o f s o - c a l l e d m o d e r n r c a s o n from t h e
s e v e n l c e n t h c e n l u r y , s e d i n g it a g a i n s t c l a s s i c a l r e a s o n . T h e s e c o n d p a r i s h o w s t h e
dcvelopment of m o d e r n e l h i c a l w a y s o f r e a s o n i n g i n r e l a t i o n s h i p Io s c i e n t i f i c -
philosophical reasoning. Finally. lhe conclusion lisis some of lhe problems of
c i i n i c m p o r a r y e l h i c s a n d s u g g c s i s l h e i r p o s s i b l e s o l u t i o n I h r o u g h a r e t u r n to t h e
p r i n c i p i e s of c l a s s i c a l e l h i c s .
Kiy iiurds: Reason, Reasoning. Elhics. Mctaphysics, Autonomy,

/. Introdução

n t r e 1914 e 1945, d u r a n t e l o n g o s e dramáticos t r i n t a anos, as


2/ sociedades ocidentais v i v e r a m o q u e foi talvez o ctiiiiax de u m a
crise p r o f u n d a q u e as a c o m p a n h a v a p e l o m e n o s desde o sécu-

Síntese Nova Fase, Beto Horizonte, v. 22. n. 68. 1995 53


I o X V I I I , e q u e acabou p o n d o e m risco a s u a própria sobrevivência.
N ã o s e m a l g u m f u n d i i m e n l o aqueles anos s o m b r i o s f o r a m c o m p a r a -
d o s c o m a G u e r r a d o s I r i n l a A n o s na p r i m e i r a m e t a d e d o st'culo X V l l .
N a v e r d a d e , a q u i também estamos d i a n t e d e u m a g u e r r a n u n c a d e
l o d o i n t e r r o m p i d a e cujo início e t e r m o f o r a m assinalados pelos d o i s
d e v a s t a d o r e s episódios de I'íU-191He ]'-)V)-W5. Por o u t r o l a d o , essa
crise d o s anos e n t r e as d u a s g u e r r a s a p r e s e n t o u - s e m u l t i f o r m e e u n i -
v e r s a l : I o d o s os aspectos d a v i d a e d a c u l t u r a f o r a m p o r ela a t i n g i d o s .
Sociedade, política, c o s t u m e s , crenças, s.iber, m e n t a l i d a d e s v i r a m - s e
p e n e i r a d o s e d e s a r t i c u l a d o s p o r idéias e e v e n t o s q u e p a r e c i a m pôr
d e f i n i t i v a m e n t e e m questão as p o s s i b i l i d a d e s d e sobrevivência d e u m a
tradição três vezes m i l e n a r , t o m p r e e n d e - s e , a s s i m , q u e os p r i m e i r o s
anos d o s e g u n d o pós-guerra t e n h a m s i d o u m t e m p o de analises, d e
diagnósticos, de prognósticos, de i n i c i a t i v a s e projetos, nascidos d a
evidência de q u e a civilização não acabara, e era possível s i t u a r o
f u t u r o n u m h o r i z o n t e r e m o t o d e l o n g a duração. 1'! v e r d a d e q u e o re-
f l u x o d a g r a n d e crise deixara na sua passagem n o v o s riscos, novos
desafios, n o v a s e m a i s terríveis ameaças, cujo s i g n o a n t e c i p a d o r m a i o r
era o " t e r r o r n u c l e a r " . I X ' q u a l q u e r m a n e i r a , porém, a g r a n d e p r o v a
t i n h a s i d o v e n c i d a e u m n o v o c i c l o civiliztitório se a b r i a : d i a n t e d o
m u n d o o c i d e n t a l os c a m i n h o s d a história n o v a m e n t e se i l u m i n a v a m .

A p a r t i r d e 1950 as nações d o c h a m a d o hoje P r i m e i r o M u n d o , i n c l u -


i n d o o Japão, c o n h e c e m u m período d e extraordinário c r e s c i m e n t o
econômico, d e p r o g r e s s o científico e tecnológico, d e instauração, e n -
f i m , d e u m waif of lifc q u e p r e n i m c i a o c h a m a d o lioje p(')s-moderno.
F m s i m e t r i a cronológica c o m os t r i n t a anos d e crise d e u m a g u e r r a à
o u t r a , essa n o v a bclie ciHvjuc i r i a d u r a r i g u a l m e n t e t r i n t a anos, v i n d o
a t e r m i n a r e m t o r n o d e 1980. ü e c o n o m i s t a Jean Fourastié, r e f e r i n d o -
se ã I''rança, d e n o m i n o u de " t r i n t a ancis g l o r i t i s o s " esse [X'ríodo e x t r a -
ordinário e, r e a l m e n t e , não liá nolícia e m toda a história de u m tão
espetacular e m e s m o v e r t i g i n o s o c r e s c i m e n t o econômico e m tão p o u -
co t e m p o , de u m a tal acumulação d e c o n h e i i m e n t o s , de u m tão ace-
l e r a d o processo d e inovações tecnológicas, de mudança lão p r o f u n d a
no ('//ms das sociedades e n v o l v i d a s nesse processo o u p o r ele de a l g u -
ma maneira atingidas.

A d i v a d a d e 80 e esse a i m e ç o d o s anos 9 0 q u e estamos v i v e n d o as-


s i s t e m ao a p a r e c i m e n t o d e u m n o v o p e r f i l d e rrisc b e m d i f e r e n t e d a -
q u e l a q u e a b a l o u as p r i m e i r a s degradas d o século, A base m a t e r i a l d a s
sociedades d i t a s avançadas parece s o l i d a m e n l e assentada, O recurso
ã c h a m a d a " g u e r r a n o b r e " , mãe de v i r t u d e s s e g u n i l o os A n t i g o s e
a i n d a celebrada p o r 1 legel, para d e c i d i r sobre os papéis hegemônicos
na história, p e r d e u toda pertinência e a p a r e n t e m e n t e desapareceu d o
h o r i z o n t e d a política i n t e r n a c i o n a l . Todos os p r o b l e m a s d e s o b r e v i -
vência e convivência, i n c l u i n d o - s e os q u e se s i t u a m no t e r r e n o das
relações a i n d a c o n f l i t i v a s e n t r e o P r i m e i r o e o Terceiro M u n d o , são

I 54 I Sínte-w Nova Faae. Belo HoruonU. v. 22. n. 68. 1995


p e r f o i l a m e n l e equíicionávois, t e m suas constantes e variáveis c o n h e c i -
das e as soluções estão d e n t r o das p o s s i b i l i d a d e s da h u m a n i d a d e a t u a l .
N ã o é, p o i s , no t e r r e n o d a produção d o s bens m a t e r i a i s e d a satisfação
das necessidades v i t a i s q u e a crise p r o f u n d a se d e l i n e i a . F. no t e r r e n o
das razCk'S de v i v e r e d o s fim capazes d e d a r s e n t i d o à a v e n t u r a h u m a -
na s o b r e a terra. E m s u m a , a crise d a civihzação n u m f u t u r o q u e já se
a n u n c i a no nosso presente, não será u m a crise d o ter m a s u m a crise
d o ser. Será u m c o n f l i t o dramático não apenas nas consciências i n d i -
v i d u a i s m a s i g u a l m e n l e na consciência social e n t r e seulido e iião-scnli-
do '. V, na perspectiva desse t i p o d e crise q u e p o d e m o s s i t u a r a e x t r a o r -
dinária a t u a l i d a d e q u e os temas éticos alcançaram na l i n g u a g e m c nas
preocupações das sociedades o c i d e n t a i s nos últimos anos.

P o d e m o s , p o r o u t r o l a d o , o b s e r v a r q u e os estágios d a história c u l t u r a l
dessas sociedades no nosso século f o r a m d o m i n a d o s p o r idéias e l i n -
g u a g e n s q u e se t o r n a r a m características d e toda u m a época. A s s i m , no
começo d o século e na crise e n t r e as d u a s g u e r r a s p r e v a l e c e r a m o
tema e a l i n g u a g e m d a "degenerescència" (Liittirliiii^), o u d a "deca-
dência" (UíjfcrviiK^), essa v u l g a r i z a d a pela c o n h e c i d a o b r a d e O .
S p e n g l e r ' , i n s p i r a d o s n u m p a r a d i g m a historiográfico a p l i c a d o ao
declínio d o Império R o m a n o ' . N o s anos q u e se s e g u i r a m à S e g u n d a
G u e r r a , a reconstrução d a E u r o p a , a reorganização d o m a p a m u n d i a l
na esteira d a "descolonização" e o extraordinário r i t m o d e c r e s c i m e n -
to econômico dos " t r i n t a anos g l o r i o s o s " d e r a m o r i g e m ã idéia e à
l i n g u a g e m d o desenvolvimento. F o i nos começos d a década d e 50 q u e
o e c o n o m i s t a C o l i n C l a r k v u l g a r i z o u essa idéia e esse t e r m o , e o
" d e s e n v o l v i m e n l i s m o " tornou-se a i d e o l o g i a d a época, t r a n s g r e d i n d o
as fronteiras d o econômico e estendendo-se a t o d o s os domínios d a
a t i v i d a d e h u m a n a . C o m o f i m d o s " t r i n t a anos g l o r i o s o s " u m a nova
c o n j u n t u r a desenhava-se no h o r i z o n t e histórico d a s nações o c i d e n t a i s
e e m 1972 a Conferência d a U N E S C O e m H e l s i n q u e p r o c l a m a v a o
" d e s e n v o l v i m e n t o c u l t u r a l " c o m o o fator m a i s i m p o r t a n t e n o avanço
da sociedade. A itiéia e o t e r m o d o " c u l t u r a " se sobrepõem a "desen-
v o l v i m e n t o " c o m o e m b l e m a simbólico de u m a nova época. F i n a l m e n -
te, pelos meados d a década d e 8t) anuncia-se a i d a d e d a "ética". N a
l i n g u a g e m r e l i g i o s a , na filosofia, na política, nas ciências h u m a n a s em
geral os temas éticos passam a ser p r i v i l e g i a d o s o a exigência ética,
intuída, sentida e d i s c u t i d a , impõe u m a n o v a s e n s i b i l i d a d e e, a p a r e n -
temente, u m n o v o padrão de c o n d u t a a indivíduos e g r u p o s nas nos-
sas sociedades.

D e s e n v o l v i m e n t o , C u l t u r a , Ética: três t e r m o s , três conceitos, três m a -


trizes d e p e n s a m e n t o e l i n g u a g e m q u e v ê m c a r a c t e r i z a n d o os estágios
v i v i d o s p e l o m u n d o o c i d e n t a l n o último m e i o século. M a s é c u r i o s o
o b s e r v a r q u e a sucessão desses três conceitos obedece e x a t a m e n t e à
lógica i n t e r n a q u e c o n d u z i u nesse período a trajetória histórica d o
O c i d e n t e e, na sua esteira, a d e t o d o o m u n d o contemporâneo.

Sintene Nona Fane. Belo HoriionU: v. 22, n. 68. 1995 55


o i m e d i a t o pós-guerra teve c o m o tarefa precípua a reconstrução d a
base m a t e r i a l d a s nações d i r e t a m e n t e e n v o l v i d a s no c o n f l i t o . Rssa tarefa
estava p r a t i c a m e n t e t e r m i n a d a ptir v o l t a d e ]9,S(), t j u a n d o teve i n i c i o
o extraordinário s u r t o de expansão econômica q u e fez d o conceito e
d o t e r m o d e desenvolvimento o e m b l e m a de u m a éj.wca. K o e n t a n t o , o
r i t m o acelerado d a produção d t i s bens. sua acumulação e os p r o b l e -
m a s d a sua distribuição, b e m c o m o a e n o r m e multiplicação e entrela-
çamento d o s fios d a " e c o n o m i a - m u n d o " , para falar c o m o F. BraudeP,
d e r a m o r i g e m a u m a perigosa a s s i m e t r i a e n t r e a esfera m a t e r i a l e a
esfera simbólica d a v i d a . Nesse m o m e n t o , a lógica q u e rege o equilí-
b r i o d o t o d o s c K Í a l d e s l o c o u p a r a a esfera simbólica, o u seja para a
cultura, o c a m p o p r i n c i p a l d o s g r a n d e s p r o b l e m a s q u e desafiam a
sociedade. Desta sorte as s o c i e d a d e s o c i d e n t a i s c o n h e c e r a m , ao l o n g o
da década de 70, u m e n o r m e crescimento de interesse e m t o r n o dos
lemas c u l t u r a i s , c o m o a o r i g i n a l i d a d e d a s c u l t u r a s , o p l u r a l i s m o c u l -
t u r a l , a inculturação e o u t r o s . O r a , C u l t u r a e Ftica m u t u a m e n t e se
i m p l i c a m , sendo os d o i s conceitos l o g i c a m e n t e coextensivos. C o m
efeito, o conceito d e cultura a b r e o h o r i z o n t e d a s necessidades v i t a i s
d o h o m e m ao m u n d o das f o r m a s simbólicas e d o ácntido. E m face
desse m u n d o manifesta-se a necessidade m a i s p r o f u n d a m e n t e e m a i s
a u t e n t i c a m e n t e h u m a n a , q u a l sej^i a d e c o n f r o n t a r - s e c o m a r e a l i d a d e
não apenas c o m o objeto a ser u t i l i / . a d o e c o n s u m i d o , o u c o m o dado a
ser c o n h e c i d o , i n t e r p r e t a d o e t r a n s f o r m a d o , m a s a i n d a c o m o fonte d e
íitíniifl.s q u e d e v e m o r i e n t a r o seu a g i r s e g u n d o o f i n a l i s m o d o b e m e
d o m e l h o r . N o m o m e n t o e m q u e as sociedades o c i d e n t a i s a t i n g i r a m
u m a l t o nível d e satisfação d a s necessidades m a t e r i a i s e u m d o m í n i o
até então d e s c o n h e c i d o pela h u m a n i d a d e , d a r a c i o n a l i d a d e científico-
técnica a serviço d e s s a s.)lisfação, o p r o b l e m a d o sentido passa a ser o
desafio m a i o r d e s s a s sociedades e a reflexão sobre a cultura e, conse-
qüentemente, sobre a ética, impõe-se c o m o a sua m a i s i m p o r t a n t e ta-
refa i n t e l e c t u a l . A s d u a s últimas décadas d o nosso século assistem ao
espraiar-se d e s s a espécie de o n d a ético-cultural q u e , após o esto d a
onda d o d e s e n v o l v i m e n t o , cobre as anbgas nações cristãs d o Ocidente.

Será talvez i n s t r u t i v o para nós l e m b r a r q u e , nas o r i g e n s d a nossa


civilização, o n a s c i m e n t o d a l-'lica teve l u g a r na seqüência de u m a
evolução d o espírito g r e g o análoga à q u e se verifica e m in>sso tenrpo.
Ela a c o m p a n h o u a transformação d a s o c i e d a d e arcaica nas cidades
i n d u s t r i o s a s e democráticas d a Jónia e d a A l i c a , t e n d o Atenas ã sua
frente. N o fio dessa evolução apresenta-se, e n i p r i m e i r o lugar, o p r o -
b l e m a d o t r a b a l h o e d a riqueza, d e p o i s o p r o b l e m a d a c u l t u r a e, f i n a l -
m e n t e , o p r o b l e m a d o " b e m a g i r " e d o " b e m v i v e r " o u d a Ftica. ü s
p r i m e i r o s filósofos e legisladores, os Sofistas eS<>cralc»s assinalam esses
três m o m e n t o s q u e a n t e c i p a m , d e m a n e i r a e x e m p l a r , o u t r o s ciclos q u e
se repelirão na história d a civilização cKidentaP. Kss.i evocação d a s
o r i g e n s d a Ética contêm u m a lição i m p o r t a n t e para nós", p o i s m o s t r a -

56 Slntexe Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22, n. 68, 1995


nos q u e a legitimação social d a Razão d e m o n s t r a t i v a e o Uigar p r i v i -
legiado q u e passa a o c u p a r na esfera simbólica da sociedade, ao mes-
m o t e m p o e m q u e p r o v o c a m a p e r d a d a força d e coesão d o ctbos
t r a d i c i o n a l , d e s p e r t a m a necessidade i m p e r a t i v a d e e x p l i c i t a r , o r g a n i -
zar e j u s t i f i c a r c r i t i c a m e n t e a r a c i o n a l i d a d e implícita desseil/fDí;, tarefa
q u e cabe e x a t a m e n t e à Ética. Ela se c o n s t i t u i c o m o ciência d o s c o s t u -
mes t r a s m i l i d o s na sociedade, d o s estilos p e r m a n e n t e s d o a g i r dos
indivíduos (liãbilos), b e m c o m o d a comprovação crítica dos n o v o s
v a l o r e s q u e a evolução d a s o c i e d a d e faz s u r g i r .

Há, p o r c o n s e g u i n t e , u m a dialética i m a n e n t e ao d e s d o b r a m e n t o d a s
r a c i o n a l i d a d e s d o m i n a n t e s na evolução d a s sociedades q u e a c o l h e m a
Razão c o m o eixo o r d e n a d o r d o seu u n i v e r s o simbólico. A o d e s e n v o l -
v i m e n t o d a s r a c i o n a l i d a d e s científico-técnicas, q u e i m p õ e m u m a l e i t u -
ra insirumnüa] e operadonal d a r e a l i d a d e , segue-se a emergência d a s
r a c i o n a l i d a d e s hermenêuticas q u e t r a z e m para o p r i m e i r o p l a n o o
p r o b l e m a d o sentido e a necessidade d e u m a l e i t u r a e x p l i c i t a m e n t e
antropológica d o h o m e m e d o seu m u n d o , para f i n a l m e n t e d a r l u g a r
às r a c i o n a l i d a d e s éticas, v o l t a d a s p a r a a questão decisiva d o dever-ser
e para u m t i p o d e leitura iioniialiva e leleoldgica d o u n i v e r s o h u m a n o
d o s e n t i d o . C o n q u a n t o se v e r i f i q u e u m suceder-se no t e m p o d e for-
m a s d o m i n a n t e s d e razão e d e l i n g u a g e m , c o m o v i m o s na tríade de-
senvolvimenlo-cultura-ética nas sociedades o c i d e n t a i s d o último pós-
g u e r r a , trata-se a q u i , na v e r d a d e , d e u m m o v i m e n t o ciialélico o u p r o -
p r i a m e n t e c o n c e p t u a i , q u e e n c o n t r a no t e m p o suas f i g u r a s históricas",
mas obedece ã lei dialética d a suprassunção d o s seus m o m e n t o s . C o m
efeito, a r a c i o n a l i d a d e cieiilifico-lécnica, no próprio m o v i m e n t o d a s u a
expansão é sobrelevada ao nível d a r a c i o n a l i d a d e d o senlida e essa,
p o r sua vez, é s u p r a s s u m i d a pela r a c i o n a l i d a d e ética, p o i s a Razão q u e
cria o sistema dos objetos é a m e s m a q u e se i n t e r r o g a sobre as razões,
os c a m i n h o s e os fins dessa i m e n s a a v e n t u r a d e instauração de u m
m u n d o à m e d i d a d o h o m e m q u e d e n o m i n a m o s civilização.

A a t u a l v o g a d a s l i n g u a g e n s éticas e m t o d o s os níveis d a comunicação


social, d e s d e a comunicação de massa até às l i n g u a g e n s especificas d a
ciência, d a política, das práticas p r o f i s s i o n a i s e d a religião, t r a d u z ,
poi.s, o resnllíido de u m m o v i m e n t o dialético q u e i m p e l i u o "espírito"
ÍGeist) d a s sociedades o c i d e n t a i s no pós-guerra e q u e reitera a seu
m o d o a e s t r u t u r a d a m a t r i z e s p i r i t u a l presente nas o r i g e n s d a nossa
civilização d a q u a l nasceu j u s t a m e n t e a Ética.

1'ara e n t e n d e r m o s , p o r t a n t o , a situação d a litica na c u l t u r a c o n t e m p o -


rânea é necessário ter presente esse m o v i m e n t o n o p l a n o das idéias
q u e v e m a c o m p a n h a n d o a e n o r m e expansão d a base m a t e r i a l da so-
ciedade, o extraordinário a d e n s a m e n t o d a s relações simbólicas q u e
tecem o u n i v e r s o h u m a n o d o senHdo c o m o u n i v e r s o d a c u l t u r a , e
f i n a l m e n t e a interrogação, s u r g i n d o c o m irreprimível necessidade d o

Síntese Niwti Fn.sc, Bela Horizonte, v. 22, n. 68, 1995 57


seio d e todas as f o r m a s d a a t i v i d a d e c u l t u r a l , sobre os valores e fins
q u e d e v e m r e g u l a r e o r i e n t a r essa q u e c, s e m dúvida, a mais p r < H Í i g i -
osa transformação d a sociedade h u m a n a até hoje conhecida.

O p e n s a m e n t o ético contemporâneo a p r e s e n t a - n o s , p o i s , u m a
p l u r a l i d a d e d e perfis e tendências q u e c o r r e s p o n d e m aos t i p o s d e
r a c i o n a l i d a d e a t u a l m e n t e vigentes na nossa sociedade. Se nos l e m -
b r a r m o s d e q u e a Ética é o b r a d a Razão d e m o n s t r a t i v a , t e n d o p o r
objelo as práticas i n d i v i d u a i s e sociais e v i s a n d o ã sua legitimação
r a c i o n a l e m t e r m o s d e princípios, v a l o r e s e f i n s , v e r e m o s q u e a
p l u r a l i d a d e a t u a l d e m o d e l o s éHcos c o r r e s p o n d e ã p l u r a l i d a d e d o s
t i p o s d e r a c i o n a l i d a d e q u e se a p r e s e n t a m c o m o os m a i s a p t o s para
pensar o cí/ms c o m p l e x o d o nosso t e m p o .

A s s i m sendo, nossa exposição terá d u a s partes; na p r i m e i r a p r o c u r a -


r e m o s descrever e c a r a c t e r i z a r b r e v e m e n t e as f o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e
q u e i m p r i m e m na nossa c u l t u r a a marca inconfundível d e u m a " c i v i -
lização da Razào" e m p l e n o clímax das suas realizações históricas e
dos seus p r o b l e m a s ; na s e g u n d a t e n t a r e m o s i d e n t i f i c a r as formas d e
r a c i o n a l i d a d e ética c o r r e s p o n d e n t e s aos múltiplos usos d a raziío des-
c r i t o s na p r i m e i r a parte. A Conclusão p r e t e n d e r e t o r n a r ao p o n t o d e
p a r t i d a para buscar e n t e n d e r a significação p r o f u n d a dessa a t u a l i d a d e
da r,tica no nosso f i m d e século. A convicção q u e n o s g u i a é a de q u e ,
na nossa c u l t u r a , o desHno da Ética está i r r e v o c a v e l m e n t e l i g a d o ao
d e s t i n o d a Razão. A s p e r p l e x i d a d e s de i m i a civilização q u e fez d a
Razão seu e m b l e m a m a i o r e c a m i n h o u o u s . i d a m e n l e sob o s i g n o desse
e m b l e m a , t e m sua expressão m a i s a g u d a e m a i s dramática n o descon-
certo e na suspeita q u e i n v a d e m o u n i v e r s o d o s valores e dos fins e
se e x p r i m e m de f o r m a r a d i c a l no n i i l i s m o ético. É essa, s e m dúvida,
a face m a i s a g r e s s i v a m e n t e visível d a crise e s p i r i t u a l d e u m a c i v i l i z a -
ção d a afluência, e q u e p o d e ser d e f i n i d a c o m razão c o m o u m desafio
pós-moderno à lilica".

//. Itinerário da Razão Moderna

Entre os traços q u e c a r a c t e r i z a m a c u l t u r a o c i d e n t a l m o d e r n a destaca-


se, s e m dúvida, a coexistência e m seu seio d e múltiplas f o r m a s d e
r a c i o n a l i d a d e . olH'decendo a lógicas próprias e i n s p i r a n d o estilos d i s -
tintos, o r a opostos o r a c o m p l e m e n t a r e s d e saber e interpretação d a
realidade. Desde as r a c i o n a l i d a d e s f o r m a i s d a lógica e d o cálculo até
ãs r a c i o n a l i d a d e s o p e r a h v a s d a técnica, essas f i g u r a s d a Razão c o m -
põem a i m a g e m mais fiel d a nossa civilização e d e f i n e m m e s m o a sua
inconfundível o r i g i n a l i d a d e histórica''.

C o n v é m , p o i s , e x a m i n a r i n i c i a l m e n t e a questão d o a u l o - d i f e r e r c i a r - s e
da razão m o d e r n a , a s u a significação liistórico-cultural e os p r o b l e m a s

58 Síntese Niirii FÍISL-. Belo Uurizunle, i: 22, n. 68, I99S


que suscita, r.ni s e g u i d a t e n t a r e m u s u m a descrição s u c i n t a das f o r m a s
p r i n c i p a i s de r a c i o n a l i d a d e e f e t i v a m e n t e p r a t i c a d a s na nossa c u l t u r a ,
para então c o n s i d e r a r m o s a sua transcrição e m t e r m o s d e r a c i o n a l i d a d e
ética e a p o s s i b i l i d a d e d a fundamentação da Htica no t e r r e n o dessas
racionalidades.

A questão, q u e se a p r e s e n t a a u m t e m p o f u n d a m e n t a l e d i f i c i l d o
a u l o - d i f e r e n c i a r - s e d a Razão e m geral, p o d e ser t r a t a d a sob d o i s p o n -
tos d e v i s t a : o p o n t o d e vista Icórico e o p o n t o d e vista histórico. O
p r i m e i r o investiga na própria natureza d a Razão o princípio d a sua
auto-diferenciação e d a multiplicação das r a c i o n a l i d a d e s na realização
histórica d a Razão. O s e g u n d o considera a gênese e o c r e s c i m e n t o
n m l t i f o r m e d a Razão n a q u e l a civilização q u e se t o r n o u emblemática-
m e n t e a "civilização d a R a z ã o " : a civilização o c i d e n t a l .

D e s d e o p o n t o de v i s l a teórico a questão foi posta d e s d e o início no


c a m p o d a conceplualização filosófica, p o r se tratar de u m p r o b l e m a
e m i n e n t e m e n t e filosófico e cjue, na sua própria formulação, esta i m p l i -
c a d o n a e m e r g ê n c i a d e u m a f o r m a d e r a z ã o q u e se t o r n a r i a
paradigmática: a riiiHo filosófica^°. C o m efeito, o a p a r e c i m e n t o da razão
filosófica, e v e n t o i n a u g u r a l d a liistória d a Razão n o O c i d e n t e " , é as-
s i n a l a d o pela a p o r i a i n i c i a l e m q u e se e n v o l v e a própria razão nos
seus p r i m e i r o s passos, a o buscar no t e r r e n o d o m i t o o p r o b l e m a d o
começo {arque) e ao t e m a t i z a r a s s i m a t]uestão sobre o seu próprio
começo'^. Problema metafísico e gnoseológico t a n t o q u a n t o histórico,
no q u a l se entrelaçam, f o r m a n d o o nó inicial d o l o n g o fio d o d e s t i n o
da Razão no t e m p o lógico d a sua auto-diferenciação e no t e m p o histó-
rico d a s suas f o r m a s sucessivas, as três g r a n d e s questões: a i d e n t i d a d e
dialética d a Razão e d o Ser, a i d e n t i d a d e reflexiva d a Razão c o n s i g o
m e s m a e a u n i d a d e d a Razão n a p l u r a l i d a d e d a s suas f o r m a s e d o s
seus usos, É v e r d a d e q u e as c h a m a d a s "ciências c o g n i t i v a s " propõem
a t u a l m e n t e u m a solução r a d i c a l não-filo.sõfica para esse p r o b l e m a ,
r e d u z i n d o a o r i g e m d a Razão aos supostos m e c a n i s m o s elementares
d o seu f u n c i o n a m e n t o alravés d o p a r a l e l i s m o e d a simulação e n t r e os
m o d e l o s d e "inteligência a r t i f i c i a l " e a e s t r u t u r a neuro-fisiológica e a
a t i v i d a d e d o cérebro h u m a n o . T e n l a l i v a vã, s e g u n d o e n t e n d e m o s , p o i s
u m a distância imensurável separa a r e f l e x i v i d a d e d a razão, p a t e n t e na
sua aulo-problemalização e na p o s s i b i l i d a d e d o " c o n h e c i m e n t o d o
c o n h e c i m e n t o " e a aulo-regulação d a "inteligência a r t i h c i a l " q u e p r o -
cede essencialmente p o r cálculo e programa'^. E, e m s u m a , o passo
d e c i s i v o d a reflexão e d a consciência q u e assinala o a p a r e c i m e n t o d a
Razão e q u e a leva, no m o m e n t o e m q u e a t i n g e h i s t o r i c a m o n i e a p l e n a
consciência-de-si, a d e f r o n t a r - s e c o m o p a r a d o x o d e pensar a sua pró-
p r i a o r i g e m e d e d e s d o b r a r - s e na interrogação sobre si m e s m a " . Sem
nos d e m o r a r m o s mais nessa questão, q u e r e m o s apenas d e i x a r estabe-
lecido q u e a p l u r a l i d a d e d a s f o r m a s d a Razão na nossa c u l t u r a , lão
i m p o r t a n t e para c o m p r e e n d e r m o s a situação a t u a l d a Ética, l e m seu

Síntese Noei! Ri.s,-. Ihrwmli; 22. n 6H. um 59


f u n d a n i p n l o teórico nas d u a s p r o p r i e d a d e s c o n s t i t u t i v a s d a própria
Razão, q u e a s s e g u r a m a sua unidade na uiulliflicidade d a s suas realiza-
ções históricas. Hssas p r o p r i e d a d e s já estão p l e n a m e n t e e x p l i c i t a d a s
nas p r i m e i r a s construções sislema'ticas d a r a c i o n a l i d a d e filosófica c o m
Platão e Aristóteles, Elas p e r m i t e m d e f i n i r a Razão pela sua alJcrtura
traiisceiideulai a o Ser, o u seja, pela sua identidade dialética c o m o Ser, e
pela sua talai reflexividade e m si m e s m a , i d e n t i d a d e e r e f l e x i v i d a d e
que, na nossa razão finita, t e m l u g a r no domínio d o intencional, vale
dizer, c o m o unidade na diferença d a razão c o m o ser e d a razào consigo
mcsma''^, A i d e n t i d a d e c o m o ser e a r e f l e x i v i d a d e p e r m i t e m , p o r sua
vez, a t r i b u i r ã Razão u m a unidade iiniiló<iica, s e g u n d o a q u a l as suas
f o r m a s se d i f e r e n c i a m e m v i r t u d e d a referência a u m a f o r m a
paradigmática na q u a l se m a n i f e s t a , na sua realização c o n s i d e r a d a a
m a i s perfeita, a essência o u a idéia d a Razão. I*or l o n g o s séculos a
razJio filosófica no seu exercício metafísico foi r e c o n h e c i d a c o m o s e n -
d o o foco p r i m e i r o d e significação o u " a n a l o g a d o p r i n c i p a l " nessa
e s t r u t u r a analógica. A p r i n c i p a l i d a d e da razão metafísica foi m a n t i d a
e m e s m o realçada q u a n d o u m a f o r m a t r a n s r a c i o n a i de saber, a Fé,
passou a ser r e c o n h e c i d a c o m o o fecho de abóbada d o c o n h e c i m e n t o
h u m a n o ' ^ K o s t e m p o s m o d e r n o s assistimos a u m r o m p i m e n t o d a
e s t r u t u r a analógica d a Razão. Vários m o d e l o s de r a c i o n a l i d a d e (fisico-
matemática, dialética, lógico-linguistica, fenomenológica, hermenêutica)
r e i v i n d i c a m a sucessão d a a n t i g a razão metafísica, m a s não conse-
g u e m u n i f i c a r o c a m p o d a Razão a[.K>s a dissolução d a "inteligência
e s p i r i t u a l (iioiis o u niens) t j u e c o r o a v a o exercício d a a t i v i d a d e r a c i o n a l
c o m a lheoria d o Ser e c o m a ascensão i n t e l e c t u a l ao A b s o l u t o ' ' .

Essa última observação n o s i n t r o d u z no p o n t o de v i s t a histórico d e


consideração d o p r o b l e m a d a auto-diferenciação d a Razão. Essa a u t o -
diferenciação conhece d u a s g r a n d e s épocas na história d a c u l t u r a
o c i d e n t a l . A p r i m e i r a t e m l u g a r n o âmbito d a razão clássica sob a
égiiie d a Filosofia. A s e g u n d a a c o m p a n h a o d e s e n v o l v i m e n t o d a ra-
zão m o d e r n a , sob a égide d a Ciência. E x a m i n e m o s suas caralerísticas.

O p r i m e i r o g r a n d e episódio dessa história q u e está, d e resto, i n t i m a -


m e n t e l i g a d o ã constituição i n i c i a l d a Ética, ocorre na s e g u n d a m e t a d e
d o século V A . C. e na p r i m e i r a m e t a d e d o século I V . Ele é c o n s l i t u i d o
pelo c o n f l i t o e n t r e a razão sofistica e a razão socrático-platónica, no
curs() d a c h a m a d a Ilustração ateniense. Desse c o n f l i t o e m e r g e a d i f e -
renciação d a Razão, rigorosamente elal>orada p o r Platão, e m razão
provável (dóxa) e razào v e r d a d e i r a (alelhcs)'". Platão foi o p r i m e i r o a
o r d e n a r as f o r m a s d a Razão, r e f e r i n d o - a s a u m a razão s u p e r i o r , a
Filosofia o u Dialética, t e n d o o seu apex na Teoria d o s Princípios. A
comparação d a l i n h a na República'"^, e a divisão d o saber no Poliliccr'",
atestam q u e o p r o b l e m a d a s f o r m a s d a Razão já está c l a r a m e n t e pre-
sente na p r i m e i r a g r a n d e t e n t a t i v a d e u m a reflexão sistemática d o
saber sobre si m e s m o . Aristóteles, c o m o é s a b i d o , r e l a t i v i z a o rigoroso

60 Síníese Nova Fase, Belo Hurizimle, v. 22. ufíH.1995


m n n o c e n t r i s m o d n concepção platônica d o c o n h e c i m e i i l o . A divisão
•nislotclicíi d o saber d o m i n o u p o r m u i t o s séculos a cpi^liiciuc o c i d e n t a l
e as discussões recentes m o s t r a m q u e a sua pertinência e f e c u n d i d a d e
c o n t i n u a m a desafiar o tempo^'. A o d i v i d i r o saber e m Imrctico. pratico
e poiclico". Aristóteles f u n d a a especificidade e a u t o n o m i a d o s.iber
prático, q u e t e m p o r objeto a prdxis o u ação h u m a n a e assegura a s s i m
o d o m í n i o próprio d a r a c i o n a l i d a d e ética, N o e n t a n t o , seja na sua
versão platônica, seja na sua versão arislotélica, a concepção a n t i g a d a
divisão d o saber o u d e diferenciação d a Razão, recebida s e m m o d i f i -
cação notável na I d a d e Média, a d m i t e a Filosofia o u o saber icórico
c o m o seu princípio o r g a n i z a d o r e f i n a l : os o u t r o s saberes se s i t u a m na
o r d e m q u e p r o c e d e d a Filosofia e a ela se o r d e n a m " . E m p a r t i c u l a r , na
tradição a n t i g o - m e d i e v a l , a l i m e n t a d a pela preeminência platônica d a
idéia d o b e m e pela celebração aristotéllca d a thcoria ao fim d a Elicn
de Nicôtiiaco, a Ética permanece e s t r u t u r a l m e n t e o r d e n a d a ao c o n h e c i -
m e n t o metafísico d o l i e m e é, c o m o t a l , u m saber f o r m a l m e n t e filosó-
fico. O r a , o saber filosófico q u e p r e s i d e ã diferenciação d a Razão se-
g u n d o a concepção a n t i g a , nasce d a experiência p r o f u n d a da o r d e m
d i v i n a q u e se eleva sobre a a p a r e n t e d e s o r d e m d o m u n d o . l'.. p o i s , u m
saber e m i n e n t e m e n t e o r d e n a d o r e, c o m o t a l , u m a síil>edoria-', capaz d e
oferecer u m f u n d a m e n t o r a c i o n a l à ordenação d a c o n d u t a h u m a n a , o u
seja, à Ética.

O processo cie auto-diferenciação da Rii/ão nos tempos m o d e r n o s p a r t e


de o u t r o s pressupostos e obedece, p o r t a n t o , a u m d e s e n v o l v i m e n t o
lógico d i f e r e n t e . A s d u a s características d a razão m o d e r n a q u e confe-
r e m ao processo d a sua auto-diferenciação u m a feição própria e u m
d i n a m i s m o o r i g i n a l q u e a d i s t i n g u e d a razão a n t i g a são a n a t u r e z a d o
seu iiiélodo e a n a t u r e z a d o seu sujcilo. O método é e n t e n d i d o a q u i não
no s e n t i d o platõnico-aristotélico c o m o r o t e i r o q u e c o n d u z à essência
das coisas, mas no s e n t i d o cartesiano-galileiano d a análise s e g u n d o
regras q u e p e r m i t e a construção d o m o d e i o matemático m a i s a d e q u a -
d o para a explicação d o s fenômenos da natureza pela descoberta das
leis d o seu funcionamento^". A razão m o d e r n a se d e f i n e d e s d e o início
c o m o u m c o n h e c i m e n t o q u e p r o c e d e p o r liipóteses e deduções e p o r
verificação e x p e r i m e n t a l . Desta sorte, ela dá o r i g e m a u m t i p o d e ciên-
cia q u e já fora p r e s s e n t i d o p o r certos r a m o s d a ciência a n t i g a c o m o a
A s t r o n o m i a , m a s só foi p l e n a m e n t e d e f i n i d o e e m p r e g a d o c o m êxito
espetacular pela razão m o d e r n a : a ciência de t i p o eiiipirico-fornml. Tra-
ta-se d e u m a ciência na q u a l o c o n h e c i m e n t o é e x e r c i d o m e t o d i c a m e n -
te c o m o u m a operação capaz d e c o n s t r u i r o seu próprio objeto e d e
i n s t i t u i r assim u m a h o m o l o g i a entre o sujeito e o seu m u n d o d e obje-
tos, esses a s s u m i n d o a e s t r u t u r a típica d o objeto técmco. Nessa f o r m a
d e r a c i o n a l i d a d e caracterísHca d a ciência m o d e r n a t e n d e a desapare-
cer a distinção e n t r e conhecer e fazer o u e n t r e a lheoria e a poiesii, para
usar a t e r m i n o l o g i a arislotélica^". F o r sua vez, o sujeito nessa nova

Sínlene Nora Fa.te. Beln HnnzonW. v. 22. n. 68. 1995 61


forma d e r a c i o n a l i d a d e q u e caracteriza a ciência m o d e r n a , apresenta-
se c o m u m p e r f i l c o g n o s c i t i v o p r o f u n d a m e n t e d i v e r s o d a q u e l e q u e
caracterizava o iiõus o u o iiitellcctiis d a razão clássica. O s p a r a d i g m a s
c o n s a g r a d o s des,sa nova idéia d o S Í Í / C I Í O são o Cu cof^itaiilc d e Descartes
e o Eu Iransceudeiüal d e K a n t , d o t a d o s d e u m a a t i v i d a d e d e c o n h e c i -
m e n t o essencialmente c o n s t r u t o r a . T a l será o traço m a i s m a r c a n t e d a
s u b j e t i v i d a d e m o d e r n a q u e se extendera' da ciência e d a filosofia à
ética, à política, às práticas sociais e m e s m o à religião e encontrará sua
expressão histórico-cultural na i d e o l o g i a d o individualismo-''. A corre-
lação e n t r e o sujeito a s s i m c o n c e b i d o e o m u n d o dos objetos define,
f u n d a m e n t a l m e n t e , o espaço d a razão m o d e r n a e d a s suas formas,
m e s m o d a s q u e se s i t u a m c r i H c a m e n t e c o m relação ao i d e a l cartesiano
e às filosofias d o sujeito. Tais f o r m a s , c o m efeito, o p e r a m f u n d a m e n -
t a l m e n t e d e n t r o dessa correlação e n t r e a razão construtora d o sujeito e
a i n t e l i g i b i l i d a d e construída d o objeto, O espaço d e v a l i d e z d o conhe-
c i m e n t o é c i r c u n s c r i t o p o r essa correlação, A f i g u r a arquetípica d a
r a c i o n a l i d a d e m o d e r n a foi desenhada p o r K a n t na Critica da Razão
pura, ao estabelecer u m d u a l i s m o intransponível e n t r e a Razão e o
E n t e n d i m e n t o , aquela c o m o sede de u m pensar metafísico relegado ao
domínio d a aparência t r a n s c e n d e n t a l , esse d e f i n i d o c o m o u m conhecer
q u e p r o c e d e pela construção d a i n t e l i g i b i l i d a d e d o s fenômenos s e g u n -
d o f o r m a s a priori (da s e n s i b i l i d a d e e d o próprio Entendimento)-'*. E
v e r d a d e c]ue, d e Descartes a T.eibniz, a razão m o d e r n a t e n t o u edificar
u m a metafísica s e g u n d o o n o v o p a r a d i g m a d e r a c i o n a l i d a d e ^ . Projeto
típico d o p r i m e i r o r a c i o n a l i s m o m o d e r n o , essa metafísica f o i
d e s c o n s t r u i d a p o r K a n t . N ã o o b s t a n t e a t e n t a t i v a d o próprio K a n t
para r e c o n s t r u i r u m a metafísica no t e r r e n o d a razão prática c o m o
"Metafísica d o s c o s t u m e s " e mc*smo para d e f i n i r os " P r i m e i r o s p r i n -
cípios metafísicos d a ciência d a n a t u r e z a " , e o litânico esforço d o Ide-
a l i s m o alemão, s o b r e t u d o de 1 legel, para r e l ( u n a r a ambição especu-
lativa d a a n t i g a Metafísica n u m a perspectiva historiocêntrica, a razão
m o d e r n a entra d e c i d i d a m e n t e , nos tempos pós-hegelianos, na sua época
pós-metafísica. Nela a desconstrução d a Metafísica prossegue a p a r t i r
de vários ângulos"^', e essa parece m e s m o ser a m a i s constante tarefa
dos epígonos d e H e g e l . A conseqüência m a i s i m p o r t a n t e na perspec-
tiva e m q u e a q u i nos colocamos, dessa "superação" d a Metafísica-", é
a dissolução final d a u n i d a d e analógica d a Razão, cujo a n a l o g a d o
p r i n c i p a l era j u s t a m e n t e a contemplação metafísica^-. Essa dissolução
p o d e ser c o n s i d e r a d a — d o p o n t o de visla filosófico — u m a das cau-
sas d a dispersão contemporânea d a s t o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e ,

C o m efeito, a mulhplicação d a s r a c i o n a l i d a d e s na nossa c u l t u r a p o d e


ser c o n s i d e r a d a seja o rcsullado d a auto-diferenciação d a razão m o d e r -
na p r o v o c a d a p e l o d i n a m i s m o e pela f e c u n d i d a d e incontestáveis d o
seu método, q u e p e r m i t e estender a t o d o s os c a m p o s d a r e a l i d a d e o
p r o c e d i m e n t o hipotético-dedulivo, a modelização e a verificação ex-

62 1 Sinlese Nooa Fa^. Belo Horizonte, v. 22. n. 68. 1995


p e r i m e n t a l ; seja c o m o pmhlcnut q u e é posto pela p e r d a d a u n i d a d e
analógica d a Razão. O r a , ê j u s i a m e n i e c o m o p r o b l e m a t ] u e a p l u r a l i d a d e
das f o r m a s de r a c i o n a l i d a d e i n c i d e p o d e r o s a m e n t e s o b r e a Ética e
d e s e n h a - l l i e a face i g u a l m e n t e prohicnidlica na c u l t u r a contemporânea.

O i n t e n t o k a n t i a n o de e x i l a r a Metafísica para fora d a s f r o n t e i r a s d o


c o n h e c i m e n t o teórico d a r e a l i d a d e , p a r t i u d o p r e s s u p o s t o d e q u e a
ciência empírico-formal, t e n d o seu p a r a d i g m a na mecânica n e w t o n i a n a ,
era a única f o r m a v a l i d a d e c o n h e c i m e n t o científico d o s fenômenos,
sendo esses, p o r sua ve/., a c o r t i n a indevassãvel q u e c o b r e o noüiuciwii
o u a r e a l i d a d e inteligível e m s i . A s múltiplas f o r m a s de r a c i o n a l i d a d e
q u e p o v o a m o u n i v e r s o pós-kantiano d a ciência o c i d e n t a l , r e p o u s a m
sobre o m e s m o p r e s s u p o s t o . A ciência físico-matemática c o n t i n u a sen-
d o o p a r a d i g m a , e m b o r a i m e n s a m e n t e mais c o m p l e x o e a b r a n g e n t e
d o q u e a física d e N e w t o n . A distinção fcnôtueuo — iioihuenon d e i x o u
d e ter interesse, e c o m ela s i l e n c i o u o último eco d a Metafísica clássica,
t e n d o s i d o o p r o b l e m a d a caisa-em-si a b a n d o n a d o pelos pós-hegelianos.

A s ciências h u m a n a s , na t r i l h a d a física n e w t o n i a n a , começaram a


d e f i n i r o seu p e r f i l epistemológico nos fins d o século X V l l l e o c o m -
p l e t a r a m d e a l g u m a m a n e i r a d u r a n t e o século X I X . A distinção e n t r e
ciências empírico-formais e ciências hermenêuticas impôs-se d e f i n i t i -
v a m e n t e , m a s a poderosa atração d o m o d e l o empírico-formal c o n t i -
n u o u a fazer-se sentir e m t o d o o c a m p o d a I:pistemologÍa. C o m o q u e r
q u e seja, a árvore d a ciência contemporânea não t e m m a i s a elegância
d a q u e l a desenhada p o r Descartes, t e n d o a M o r a l p o r sua copa e a
Metafísica p o r sua raiz'-". Ela se apresenta c o m o u m i m e n s o esgalhar-
se d e r a m o s , q u e u m único o l h a r não consegue a b r a n g e r . Se a M o r a l ,
para Descartes, d e v e r i a ser a copa d a árvore d a ciência, a Ética, e m
nossos d i a s , está dispersa e n t r e os m u i t o s r a m o s d e u m a razão q u e se
a u t o - d i f e r e n c i a cada vez m a i s . Para a Ética contemporânea o p r o b l e -
m a da u n i d a d e d a razão apresenta-se, p o i s , c o m o u m p r o b l e m a d e c i -
sivo, sendo m u i t o s os p a r a d i g m a s de r a c i o n a l i d a d e q u e se a p r e s e n t a m
c o m o a p t o s a f u n d a m e n t a r u m a Htica u n i v e r s a l m e n t e válida.

C o n v é m , a essa a l t u r a , t e r m o s presente a distinção q u e v i g o r a e n t r e


RüTÃo e racioiialiíliuíc. A Kazão é iiiiivcrsnl, a r a c i o n a l i d a d e , particular.
N a sua g e n e r a l i d a d e a Razão se refere seja aos sujeitos q u e são capa-
zes de usá-la e q u e são, p o r definição, sujeitos rí?rio'ií!iS, seja à r e a l i d a -
d e na m e d i d a e m q u e p o d e ser p o r ela c o m p r e e n d i d a e e x p l i c a d a , e
é a r e a l i d a d e racional. O c o n h e c i m e n t o d a Razão se caracteriza, p o r sua
vez, c o m o s e n d o u m c o n h e c i m e n t o q u e opera a p a r t i r d e princípios e
o b e d e c e n d o a regras de demonstração^'. Racionalidade é um t e r m o
v u l g a r i z a d o r e c e n t e m e n t e na filosofia e nas ciências sociais, p r o v a v e l -
mente a p a r h r d o s " t i p o s d e r a c i o n a l i d a d e " d e M a x Weber^\ Ele d e -
nota estilos d i s t i n t o s no u s o d a Razão, d i f e r e n c i a d o s s e g u n d o as pe-
c u l i a r i d a d e s d o objeto e d o nie'todo a d e q u a d o à sua explicação r a c i o n a l .

Sinle.ve Nova Faxé-, Belo Horizonte, v. 22. n. 68. 1995 63


Ü t e r m o racionnlidade acaba d e s i g n a n d o , desta sorte, as d i v e r s a s figuras
da Razão q u e , na nossa c u l t u r a , o c u p a m o espaço d o c o n h e c i m e n t o
r a c i o n a l . Fala-se, a s s i m , d e r a c i o n a l i d a d e físico-matemática, de
r a c i o n a l i d a d e tecnológica, d e r a c i o n a l i d a d e econômica, de r a c i o n a l i d a d e
política, e a s s i m p o r d i a n t e . K o s s o u n i v e r s o c u l t u r a l aparece e n v o l v i -
d o p o r u m a densa rede d e e s t r u t u r a s r a c i o n a i s , e m t o r n o d a s q u a i s se
t r a v a m algumas das mais adrradas discu.s.sões lilos(>fiCíis do ntisso tempo"'.

A relação e n t r e a Razão e as r a c i o n a l i d a d e s é, p o i s , u m a relação e n t r e


o uiiivcrsiii e o particular, m a s ela não d e v e ser concebida estaticamen-
te, c o m o u m a relação e n t r e conceitos unívocos, a m o d o d o gênero e
suas espécies. Trata-se de u m a relação dinâmica e m q u e a Razão,
c o n c e i t o analógico p o r excelência'", apresenta, na sua efetivação histó-
rica, u m a e s t r u t u r a e m m o v i m e n t o , a n a l o g i c a m e n t e p a r t i c i p a d a p o r
f o r m a s d i v e r s a s e sucessivas de r a c i o n a l i d a d e * . A o c o n s i d e r a r m o s a
auto-diferenciação d a Razão n o seu aspecto teórico, v i m o s q u e a ana-
l o g i a d a Razão ordena-se s e g u n d o o n i v e l de participação d a s f o r m a s
d e r a c i o n a l i d a d e ã relação t r a n s c e n d e n t a l e n t r e a Razào e o Ser. Essa
relação i m p l i c a necessariamente a pressuposição de u m a Razão abso-
l u t a o u d e u m a i d e n t i d a d e absoluta da Razão e m si m e s m a , q u e é
i g u a l m e n t e a a b s o l u t a r e f l e x i v i d a d e d o Ser e m si m e s m o . C o m o i d e n -
H d a d e a b s o l u t a c o m o Ser, a Razào é Í J O Í Í S O U iiitelleclus^. N a nossa
razão finita a i d e n t i d a d e c o m o Ser é u m a identidade na diferença: a
i d e n t i d a d e intencional ( c o g n o s c i t i v a ) c o m o Ser, a d m i t e a diferença real
c o m q u o o Ser subsiste e m si m e s m o , i n d e p e n t i e n t e m e n t e d o nosso
c o n h e c i m e n t o " ' . Nossa razão está. p o i s , e s t r u t u r a l m e n t e a r t i c u l a d a à
i d e n t i d a d e i n t e n c i o n a l c o m a u n i v e r s a l i d a d e d o Ser o u , e m o u t r a s
p a l a v r a s , é e s t r u t u r a l m e n t e o r d e n a d a ao seu a t o s u p r e m o c o m o iiile-
ligêiicia. Fs,sa relação e n t r e razão e inteligência e m nós p e r m i t e - n o s
c o m p r e e n d e r a e s t r u t u r a analógica d o conceiU) d e Kazão, c o m o p a r t i -
cipação d a s f o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e , p a r t i c u l a r i z a d a s s e g u n d o o seu
objeto, na f o r m a u n i v e r s a l d a Razão, ü u n i v e r s o d a Razão e d a s
r a c i o n a l i d a d e s é, a s s i m , i n t e n c i o n a l m e n t e , p a r a nós, o u n i v e r s o d o Ser
e d o inteligível'", e entre a e s t r u t u r a analógica d e a m b o s v i g o r a a
h o m o l o g i a q u e t o r n a possível ã Razão desdobrar-se h i s t o r i c a m e n t e
n u m processo s e m t e r m o d e auto-diferenciação d a s suas f o r m a s d e
racionalidade.

N o u n i v e r s o de u m a razão finita c o m o a nossa a i n f i n i t u d e i n t e n c i o n a l


q u e d e c o r r e d a sua h o m o l o g i a c o m o Ser, t o r n a possível a construção
d e u m a e s t r u t u r a analógica e m t o r n o de d o i s pólos d e i n t e l i g i b i l i d a d e :
o p o l o metafísico q u e n o s p e r m i t e pensar a i n f i n i t u d e real d o Ser, e o
p o l o lógico, q u e nos p e r m i t e o p e r a r c o m a i n f i n i t u d e intencional da
razão. l ' o r o u t r o l a d o , é e v i d e n t e q u e n u m a Razão i n f i n i t a há i d e n t i -
d a d e a b s o l u t a e n t r e o lógico e o real. P e r c o r r e n d o a história d a razão
na c u l t u r a o c i d e n t a l é possível ver q u e a razão clássica o r g a n i z o u a
sua e s t r u t u r a analógica e m t o r n o d o p o l o metafísico, d a n d o p r i m a z i a à

6A I Sinti:ie Niwa Fase, Beh Huriziinh; i>. 22, n. 68, 1995


íitividade intelectiva q u e , comii Noíis ou iiitcli^iciicin cípirituai t e m seu
a t o m a i s e l e v a d o na contemplação {Ihcoriu} d o A b s o l u t o r e a l ' ' , à q u a l
se o r d e n a d e m o d o e m i n e n t e , c o m o e n s i n o u A r i s t ó t e l e s ' " , a
r a c i o n a l i d a d e ética, Essa e s t r u t u r a analógica começa a se desfazer n o
século X I V , q u a n d o se m a n i f e s t a m os pródromos d e u m a n o v a idéia
d e razão, na q u a ! prevalece o p o l o lógico, a n u n c i a d o p e l o a d v e n t o d o
c o n c e i t o unívoco d o S e r " , N a razão m o d e r n a o p o l o iój^ico assumirá,
p o r t a n t o , a p r i m a z i a n o u n i v e r s o d a razão, e essa p r i m a z i a é r a t i f i c a d a
c m Descartes pelo predimiíiiio d o nicíoào e e m K a n t pela emergência
d o sujeito fraiisceucieiifal q u e . c o m o o p e r a d o r d o método e c o n s t r u t o r
d o o b j e t o acabará a v o c a n d o para si o l u g a r e a d i g n i d a d e d o A b s o l u t o
real, Se na razão clássica as formas de r a c i o n a l i d a d e o r d e n a m - s e ã
inteligência metafísica, no domínio da razão m o d e r n a as f o r m a s de
r a c i o n a l i d a d e m u l l i p l i c a m - s e e se o r d e n a m a p a r t i r d o s p r o c e d i m e n -
tos metódicos f u n d a m e n t a i s d a experimentação e d a construção lógica
d o objelo. Desta sorte, a razão m o d e r n a será essencialmente operacional
e c a l c u l a d o r a , c o m o já a n u n c i a r a Francis Bacon. E m nossos d i a s ela
e n c o n t r o u u m símbolo à sua i m a g e m e semelhança, na lógica p r o g r a -
m a d a e m a t e r i a l i z a d a e m operação: o coiuputiidor'''; e u m efeito espe-
cifico d o seu uso: o efeito de poder"'. C o n h e c i m e n t o c o m o cdieiilo e
c o n h e c i m e n t o c o m o poder, tais as marcas d i s t i n t i v a s das r a c i o n a l i d a d e s
m o d e r n a s , q u e t o r n a m r e a l i d a d e e m t o d o o âmbito d a nossa c u l t u r a
o s o n h o cartesiano d e u m m u n d o m a l e m a t i z a d o " .

A comparação entre as d u a s concepções d a razão q u e p r e v a l e c e m na


história da c u l t u r a o c i d e n t a l p e r m i t e - n o s a i n d a c o m p r e e n d e r a d i f e -
rença e n t r e os d o i s m o d e l o s d e relação q u e se a p r e s e n t a m na nossa
tradição e n t r e as d u a s dimensões d o racional e d o irracional, ao m e s m o
t e m p o c o n j u g a d a s e opostas na u n i d a d e d o sujeito h u m a n o . O racio-
nal é, e m nós, o d o m í n i o l u m i n o s o d a evidência e da demonstração.
Ü i r r a c i o n a l é o domínio o b s c u r o das pulsões e d a a f e t i v i d a d e . Desde
l'lalão, e antes a i n d a , o p r o b l e m a d a sua convivência e h a r m o n i a t o r -
nou-se u m p m b l e m a f u n d a m e n t a l antropológico e ético*". A razão,
s e g u n d o a concepção clássica, exerce s o b r e as potências i r r a c i o n a i s d a
a l m a (palhe o u passioncs), a t r a v t ^ d a v i r t u d e d a s a b e d o r i a prática
(phróiiesfi), u m a f o r m a d e domínio q u e Aristóteles, n u m a passagem
c o n h e c i d a , c o m p a r o u ao domínio político, e n q u a n t o d i s H n t o d o despó-
tico'''. Já a razão na concepção m o d e r n a p r o c u r a s u b m e t e r no h o m e m
o i r r a c i o n a l ao racional através d e u m a f o r m a d e domínio tccmco, q u e
Descartes já entrevira'*', e q u e se exerce atravtSi d e diversas estratégias
d e c o n t r o l e das pulsões insconscientes e d a v i d a afetiva, i n s p i r a d a s no
i'norme desenvolvimento das dências d o psiqLiismo e das neuro-ciências'".

A s r a c i o n a l i d a d e s m o d e r n a s c o n s t i t u e m - s e , p o i s , e se d e s e n v o l v e m no
c a m p o de u m a razão o r i e n t a d a , e m princípio, para o pólo lógico. T r a t a -
se, p o r c o n s e g u i n t e , d e r a c i o n a l i d a d e s f o r m a l m e n t e operacionais, cujo
p r o c e d i m e n t o essencial consiste e m s u b m e t e r os resultados d a experiên-

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22. n. 68, 1995 65


d a a operações lógicas a d e q u a d a s , de preferência lógico-malemalicas,
a f i m d e formalizá-los na l i n g u a g e m d a ciência, ü s imensos p r o g r e s -
sos d a Lógica e d a Matemática nos séculos X I X e X X c o r r e s p o n d e m a
u m a exigência intrínseca d a razão m o d e r n a para a l a r g a r e aperfeiçoar
o c a m p o d a s suas operações. D a q u i d e c o r r e i g u a l m e n t e o fato d e le-
r e m a E p i s t e m o l o g i a e a Filosofia d a s Ciências c o n h e c i d o u m e x t r a o r -
dinário d e s e n v o l v i m e n t o , v i n d o a o c u p a r o l u g a r da a n t i g a I-i!osofia
da N a t u r e z a .

Por c o n s e g u i n t e , u m a t i p o l o g i a d a s g r a n d e s f o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e
que ccmipõem o u n i v e r s o d a razão m o d e r n a d e v e l e v a r e m conta a
p r i m a z i a d o pólo lógico, d o q u a l p r o c e d e a u n i d a d e desse u n i v e r s o , e
d e v e ter prtísente o critério q u e o r g a n i z a essas racionalidades p o r o r d e m
d e u n i v e r s a l i d a d e e d e alcance gnosiológico na sua aproximação m a i o r
o u m e n o r ã r a c i o n a l i d a d e - m a t r i z , o u seja, à r a c i o n a l i d a d e lógico-niaW-
mdtica. Eis, p o i s , os traços d i s t i n t i v o s d a s r a c i o n a l i d a d e s o r g a n i z a d a s
s e g u n d o esse critério: a) o c o n h e c i m e n t o c o m o luilo-prodiiçiio o u c o m o
produção s e m l i m i t e s de n o v o s c o n h e c i m e n t o s ; b) o c o n h e c i m e n t o
c o m o produtor d e objetos o u c o m o p o d e r técnico t e o r i c a m e n t e i l i m i t a -
d o . S e g u i n d o esse critério e essa o r d e m , p o d e m o s traçar assim u m
p r i m e i r o esboço d e t i p o l o g i a d a s r a c i o n a l i d a d e s q u e f o r m a m o c a m p o
d a razào m o d e r n a :

1. A r a c i o n a l i d a d e - m a t r i z é a r a c i o n a l i d a d e lógico-matemática. Ela p o d e
ser c o n s i d e r a d a n o seu aspecto p u r a m e n t e fornuil''-, expandindo-se,
enlào, nesses d o i s i m e n s o s domínios da pesquisa contemporânea q u e
são a Lógica e a Matemática, contíguos e m e s m o a b o l i n d o suas f r o n -
teiras para c o n s t i t u i r u m a única f o r m a u n i v e r s a l d a razão científica;
o u então p o d e m o s consider.i-la n o seu u s o iustruniciitat, c o m o método
e c o m o l i n g u a g e m q u e a t e n d e m às exigências d e r i g o r e exatidão d o
c o n h e c i m e n t o e d a sua expressão. A r a c i o n a l i d a d e lógico-matemática
é, p o i s , o pólo e m t o r n o d o q u a l se u n i f i c a m as r a c i o n a l i d a d e s q u e
f o r m a m o glohus iiitellcctualis da razão m o d e r n a . A conseqüência m a i s
i m p o r t a n t e dessa e s t r u t u r a d o u n i v e r s o da razão m o d e r n a d o p o n t o
de vista de u m a possível fundamentação d a Ética é o l u g a r r e s i d u a l
que aqui ocupa o pensamento metafísico, considerado no máximo c o m o
u m talvez interessante sítio arqueológico. Por o u t r o l a d o , a avaliação
d o teor d e r a c i o n a l i d a d e d a s d i v e r s a s f o r m a s d e c o n h e c i m e n t o se faz
a q u i s e g u n d o a sua aproximação m a i o r o u m e n o r ao p o l o lógico-
matemálico, q u e d e t e r m i n a i g u a l m e n t e a m e d i d a d o seu r i g o r de-
m o n s t r a t i v o e assegura, e m última instância, seus títulos de l e g i t i m i -
d a d e r a c i o n a l . È nessa perspectiva q u e p o d e m o s s i t u a r as grandes
formas d a r a c i o n a l i d a d e einpirico-fortnal, d a r a c i o n a l i d a d e hermenêutica"^
e, na órbita d e ambas, d a r a c i o n a l i d a d e filosófica hoje.

2. A r a c i o n a l i d a d e einpirico-fonnat é própria d a s ciências d a natureza.


A utilização metódica e sistemática d o f o r m a l i s m o matemático t o r n a
essas ciências as m a i s r e p r e s e n t a t i v a s d a razão m o d e r n a , q u e consagra

66 Síntvsv N,wa Fase. Bela Horiaiinle. i'. 22. n. 68. 1995


a Física c o m i i seu p a r a d i g m a f u n d a m e n l a l . ]'<)r o u t r i i s l a d o , essas ciên-
cia oferecem os n i o d e i o s epislemológiciis p r i v i l e g i a d o s para a elabora-
ção d e u m a teoria i> m e s m o de u m a filosofia d a ciência n o s e n t i d o
m o d e r n o . A r a c i o n a l i d a d e empírico-formal opera c o m u m conceito de
natureza p r o f u n d a m e n t e d i f e r e n t e d o c o n c e i t o a n t i g o d e pln/sis, essen-
c i a l m e n t e fin.ilisla. O <]ue d e f i n e a iialiirrzn é j u s t a m e n t e a o b j e t i v i d a d e
e m p í r i c o - f o r m a l a i|ue se s u b m e t e m os s e u s f e n ô m e n o s , c u j a
i n t e l i g i b i l i d a d e é c o n s l i t u i d a pela medida ( f o r m a l i s m o matemático) e
pela definição openuioiia! (índice empírico). N a v e r d a d e , a r a c i o n a l i d a d e
empírico-formal rein.i soberana o n d e quer q u e i n t e r v e n b a m no seu as-
pecto mensurável (matemático) as variáveis f u n d a m e n t a i s d o espaço e
d o t e m p o . Fia se materializa n o objeto teniiro e é justamente a articulação
e o r i t m o e x t r e m a m e n t e rápido d e c r e s i i m e n t o e transformação d o m u n -
d o desses objetos q u e passa a c o n s t i t u i r o referente d o m i n a n t e d a
categoria antropológica d e objetividade, s o b a f o r m a d o c h a m a d o sislc-
ma técnico'^. A r a c i o n a l i d a d e e m p i r i c o - f o r m a l passa a ser a s s i m , d o
p o n t o de vista c u l t u r a l , o critério d o q u e é c o n s i d e r a d o " o l i j e l i v o " p e l o
h o m e m m o d e r n o . A o m e s m o t e m p o o caráter o p e r a t i v o desse t i p o d e
r a c i o n a l i d a d e , n o q u a l tbeoria e poiesis se entrelaçam n u m a síntese
o r i g i n a l , a l i m e n t a a sua inesgotável f e c u n d i d a d e , m u l t i j i l i c a n d o e es-
tendendo sempre m.iis longe os ramos d o Siilx-T empírico-ftinnaf

3. A r a c i o n a l i d a d e hermenêutica d e v e a sua o r i g i n a l i d a d e ao fatíi de


que nela a passagem d o fato ã interpretação opera-se p o r m e i o de u m a
espécie de interpretação e m s e g u n d a potência, u m a v e z q u e os pró-
p r i o s fatos q u e c o n s t i t u e m seu objeto são, eles mesmos, iiilerpretações.
D a q u i t e r s i d o p r o p o s t a para esse t i p o d e r a c i o n a l i d a d e a designação
d e hermenêutica p o r excelência''^. O campi» o n d e reina a r a c i o n a l i d a d e
hermenêutica é o c a m p o d a cultura e n q u a n t o d i s t i n t o d a iiiilurczii. Ora,
a c u l t u r a não é m a i s d o q u e o u n i v e r s o h u m a n o d a s significações
o b j e t i v a d a s nas tradições, n o ethos, nas obras, nas instituições e nas
ações d o h o m e m histtirico.

A história da constituição d a s r a c i o n a l i d a d e s hermenêuticas na m o -


d e r n i d a d e é u m a liislória complexa"*", n o curso d a q u a l os d i v e r s o s
domínios d a c u l t u r a (história, sociedade, l i n g u a g e m , educação, r e l i -
gião...) b e m c o m o as dimensões d o s u j e i t o c u l t u r a l f o r a m d a n d o o r i -
g e m a o u t r a s tantas ciências q u e v i e r a m a f o r m a r a constelação a t u a l
das ciências hermenêuticas. O p e r f i l epistemológico dessas ciências só
l e n t a m e n t e foi e m e r g i n d o n o c u r s o d a sua constituição e s e m a n i t i d e z
c o m q u e as ciências empírico-formais d e f i n i r a m seu método sobre o
f u n d a m e n t o c a r t e s i a n o - g a l i l e i a n o , A i n d a hoje d i v e r s o s traços p e r m a -
necem i n d e f i n i d o s nesse p e r f i l , o q u e t o r n a a e p i s t e m o l o g i a das ciên-
cias hermenêuticas u m c a m p o fértil d e problemas^'. A s r a c i o n a l i d a d e s
hermenêuticas m o d e r n a s se d e s e n v o l v e m s o f r e n d o d e u m lado a a t r a -
ção d a r a c i o n a l i d a d e empírico-formal e, d e o u t r o , t r a z e n d o a herança
das representações t r a d i c i o n a i s d o h o m e m , Elas d e v e m m a n t e r a i n d a

Síntene Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22, n.fiS.1995 67


u m intercâmbio m u i t o m a i s i n t e n s o c o m a reflexão filosófica d o q u e
as ciências empírico-formais. A s i n g u l a r i d a d e d o objeto das ciências
hermenêuticas obriga-as a se c o n s t i t u i r t a n t o cpistcniok'i;iciiiiicnle quan-
to iiictoílolo<.;icíinu'ntf d e n t r o d o c h a m a d o "círculo hermenêutico", q u e
d e n u n c i a a implicação d o s u j e i t o no seu objeto na m e d i d a e m q u e o
o b j e l o não c senão o próprio s u j e i t o objeHvado no u n i v e r s o d a s i n t e r -
pretações. D a q u i os inevitáveis p r o b l e m a s filosóficos i m p l i c a d o s na
tematização científica d a s f o r m a s d e expressão d o h o m e m e d o seu
m u n d o c o m as q u a i s p r e t e n d e m ocupar-se as ciências hermenêuticas'^.

4. A racionalidade/i/()sd/(f(i na m o d e r n i d a d e obedece às l i n h a s d e força


q u e l e v a m a razão m o d e r n a a se o r g a n i z a r e m função d o pólo lóf^ico
e a afastar-se d o pólo nwtnfkico. A p a r t i r de K a n t ela se propõe d e f i -
n i t i v a m e n t e c o m o u m a r a c i o n a l i d a d e pós-metafísica. A própria refle-
xão explícita sobre o A b s o l u t o apresenta-se a q u i t e n d o e m vista a sua
loi^icisaçSo, c o m o no caso d a /.dç/ca d e H e g e l , q u e se propõe c o m o
h e r d e i r a da a n t i g a Metafísica'^". A r a c i o n a l i d a d e filo.sõfica m o d e r n a é
u m a r a c i o n a l i d a d e q u e t e m c o m o m a t r i z heurística e sistemática o
p r o b l e m a d a logicisação d o Ser, e m contraste c o m a r a c i o n a l i d a d e
filosófica clássica, cujas interrogações e construções sistemáticas t e m
no seu f u n d a m e n t o o p r o b l e m a d a inscrição d o lõf^ico no Ser, tarefa
própria d a O n t o l o g i a . líssas d u a s f o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e r e s p o n d e m ,
de resto, ao "espírito d o t e m p o " q u e nelas e n c o n t r a sua expressão
c o n c e p t u a i e, nesse s e n t i d o , r e c o n h e c e m e m Platão e H e g e l suas figu-
ras emblemáficas^.

Desta sorte, as g r a n d e s correntes d a r a c i o n a l i d a d e filosófica m o d e r n a


c o r r e m no s u l c o traçado pelas r a c i o n a l i d a d e s científicas e, ao r e m o n -
t a r e m ã sua nascente, d e s c o b r e m - n a n o maciço cartesiano f o r m a d o
pelas vertentes d o sujcilo, d o método e d o sistema. Nasce i g u a l m e n l e
a q u i a p e r g u n i a q u e p e r c o r r e t o d a a história d a filosofia m o d e r n a ,
f o r m a l i z a d a p o r K a n t no seu e x a m e crítico d a Metafísica, e v i n d o a
radicalizar-se no p o s i t i v i s m o lógico d o século XX: é a filosofia u m a
ciência? Pergunta impensável no c o n t e x t o d a r a c i o n a l i d a d e a n t i g a , no
q u a l a filosofia é a ciência-paradigma. C o m efeito, o r i e n t a d a p e l o pólo
lógico , a filosofia d e v e necessariamente ocupar-se e m p r i m e i r o l u g a r
consigo m e s m a : c o m seu método, c o m sua e s t r u t u r a episte m o lógica,
c o m as formas c l i m i t e s d o seu d i s c u r s o . inevitável q u e ela se cons-
titua c o m o u m a espécie d e s u p e r - e s t r u t u r a da r a c i o n a l i d a d e científica,
e eis p o r q u e as formas d a r a c i o n a l i d a d e filosófica m o d e r n a d e v e m
buscar seus m o d e l o s o r a na r a c i o n a l i d a d e empírico-formal, o r a na
r a c i o n a l i d a d e h e r m e n e u h c a . C o m efeito, esses m o d e l o s são construí-
dos a p a r t i r d e m a t r i z e s c o n c e p t u a i s q u e s u p o s t a m e n t e p e r m i t e m a
definição d e u m t e r r e n o c o m u m c o m as r a c i o n a l i d a d e s científicas: a
N a t u r e z a , o Sujcilo, a História. Por o u t r o l a d o , esses conceilos m a t r i c i a i s
d e v e m avocar a si o caráter f u n d a c i o n a l atribuído ao Ser na metafísica
anHga. N o e n t a n t o , a evolução recente d a s r a c i o n a l i d a d e s filosóficas

Sííiít.'si' Nova Fane. Belo Horizimh: v. 22. n. 68. 199.5


m o s t r a q u e elas acabam c o n v e r g i n d o para u m hi/fokcinwiioii único,
q u e é e x a t a m e n t e o lógico na sua expressão p u r a : a Inigiiíigcni. O cha-
m a d o liiigiiistic iurn na filosofia contemporânea é, na v e r d a d e , o gesto
teórico f i n a l inscrito já v i r t u a l m e n t e nos p r i m e i r o s passos da filosofia
m o d e r n a e d a sua opção teórica i n i c i a l e m favor d a p r i m a z i a d o lógico
sobre o scf'''.

A o u n i r theona e poiesis o u ao d o t a r o seu exercício de u m caráter


operacional intrínseco, a razão m o d e r n a confere ãs r a c i o n a l i d a d e s q u e
dela p r o c e d e m u m a extraordinária eficácia c o m o i n s t r u m e n t o seja p a r a
a transformação d a N a t u r e z a , seja para a transformação d a Sociedade.
Essas r a c i o n a l i d a d e s se f o r m a l i z a m e m ciências q u e são, p o r definição,
Iccno-ciiucias, cuja presença na c u l t u r a é u m a presença e m i n e n t e m e n t e
íff/r'í7. Dela resulta o i m e n s o processo de racionalização d o m u n d o
natural d o l i o m e m e sua p a s s a g e m à condição de m u n d o técnico, b e m
c o m o d e racionalização d a v i d a h u m a n a , objelo das tecnologias sociais
de c o n t r o l e e organização. A situação d a r a c i o n a l i d a d e filosófica e m
face d a tecnicização d a razão e d o domínio c u l t u r a l e social d a lecno-
ciência, torna-se ambígua. O r a ela se propõe c o m o u m a meta-teoria d a
ciência, r e d u z i n d o - s e à Filosofia das Ciências, o r a p r e t e n d e ser u m a
r a c i o n a l i d a d e a l t e r n a t i v a de t i p o fenomenológico, existencial, h e r m e -
nêutico o u crífico. Nessa situação ambígua e m face d a tecno-ciência a
r a c i o n a l i d a d e filosófica m o d e r n a , t e n d o r e n u n c i a d o a p r o s s e g u i r o
itinerário metafísico p e r c o r r i d o pela filosofia a n t i g a , o q u e , de resto,
exigiria a aceitação d a p r i m a z i a d a transcendência d o ser-em-si sobre a
imanênda d o ser-pensado no sujeito finito, vê s u r g i r os sucedâneos d a
antiga Metafísica sob a f o r m a das "visões d o m u n d o " , Essa categoria
c u l t u r a l , criada p o r W . W l t h e y , recebe, de fato, u m a significação típica na
modernidade'"-, ao se d e f i n i r c o m o interpretação global da realidade. Ela
se apresenta então c o m o expressão d a raz.ão histórica, seja na f o r m a
da racionalização de interesses e metas sociais, c o m o na ideologia, seja
e n q u a n t o expressão d a anti-razão q u e se eleva c r i t i c a m e n t e c o n t r a o
domínio d a tecno-ciência. Ideologia e irracionalisnío são d o i s fenômenos
s o m e n t e possíveis no espaço histórico d e u m a razão pós-metafísica''\
e q u e irão m a r c a r p r o f u n d a m e n t e o d e s f i n o d a Ética m o d e r n a .

III. Ética e Razão Moderna

A tradição d a r a c i o n a l i d a d e éhca na c u l t u r a o c i d e n t a l a c o m p a n h a as
v i c i s s i t u d e s seja das r a c i o n a l i d a d e s filosóficas n o m u n d o a n t i g o , seja
das r a c i o n a l i d a d e s teológicas na i d a d e cristã, seja d a s r a c i o n a h d a d e s
filosófico-científicas no m u n c i o m o d e r n o . C o m efeito, a Édca não ó
senão a explicitaçáo d a s razões implícitas no ethos de u m a d e t e r m i n a -
da c u l t u r a para organizá-las s i s t e m a t i c a m e n t e e c r i t i c a m e n t e na f o r m a

Sínte-w Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22. ii. 68, 1995 69


ái'. L i m . i "ciência d o elhoü". líssa ciência se entende, p o r sua vez, e m
d o i s sentidos, o b j e t i v o e s u b j e t i v o : o u ciência d o ctluK c o m o objelo o u
ciência d o ti/ios c o m o p r e d i c a d o d o sujeito q u e , p o r eía g u i a d o , age
r a c i o n a l m e n t e d e a c o r d o c o m o eíhos. A Ftica, e m s u m a , não é m a i s d o
c]ue a transcrição n u m d i s c u r s o r a c i o n a l m e n t e o r d e n a d o d a s razões
n o r m a t i v a s , axiológicas e teleolõgicas presentes no " m u n d o d a v i d a "
e cuja força espontânea d e persuasão se enfraquece n i u n m o m e n t o d e
crise histórica. íissa inserção d a Ética na v i d a concreta d o elhos. d a n d o
o r i g e m à distinção clássica e n t r e Ethica docens e Ethicn uteiis (Ética
d o c e n t e e íítica v i v i d a ) faz s u r g i r , d e s d e os p r i m e i r o s passos d a his-
tória d a lilica u m a questão f u n d a m e n t a l e decisiva, s i m b o l i z a d a na
oposição e n t r e o e n s i n a m e n t o sofistico e o e n s i n a m e n t o socra'tico.
P o d e m o s formulá-la a s s i m : é a l:tica r e l a t i v i z a d a p e l o etbos o u é o etbos
u n i v e r s a l i z a d o pela Ética? E m o u t r a s p a l a v r a s : s e n d o o ethos u m a
r e a l i d a d e histórico-cultural, a Ética se l i m i t a r i a ora a justificar e m ra-
zão, ora a s u b m e t e r ã crítica r a c i o n a l as p a r t i c u l a r i d a d e s d o elhos,
c o m o p r e t e n d i a m os Sofistas, o u então mostrará no i'í/íiis a presença d e
fins e valores u n i v e r s a i s , homólogos à u i r i v e r s a l i d a d e d a razão e q u e
a t e n d a m ãs exigências de u m a g i r v e r d a d e i r a m e n t e r a c i o n a l , c o m o
a f i r m a v a Sócrates? Essa s e g u n d a a l t e r n a t i v a foi aquela q u e t o r n o u
possível, d e falo, u m a ciência d o ethos, e eis p o r q u e SíScrates é c o n s i -
d e r a d o o f u n d a d o r d a ciência m o r a ! " ' . O r a , o i n t e n t o d e elevar a Elica
sobre a p a r t i c u l a r i d a d e d o elhos e n c o n t r o u na ciência platônica d a s
Idéias seu p r i m e i r o i n s t r u m e n t o intelectual adequado. A p a r t i r de então,
no itinerário d a razão a n t i g a . Ética e Metafísica c a m i n h a r a m j u n t a s e
a u n i v e r s a l i d a d e d a s categorias éticas teve o seu f u n d a m e n t o r a c i o n a l
assegurado na h o m o l o g i a c o m a s noções metafísicas p r i m e i r a s : o ser,
o v e r d a d e i r o , o b o m {eus. veruiu, ln>uuni)"'^.

O a d v e n t o d a razão m o d e r n a s i g n i f i c o u u m a p r o f u n d a revolução n o s
f u n d a m e n l o s d a Ética, p r o v o c a d a p e l o d e s l o c a m e n t o d o c e n t r o
u n i f i c a d o r d a s r a c i o n a l i d a d e s d o pólo metafísico para o p o l o lógico. N a
v e r d a d e essa revolução, q u e irá d a r à Ética o c i d e n t a l u m a nova face
e encaminhá-la e m n o v a s direções, conheceu seu p r i m e i r o episódio no
n o m i n a l i s m o t a r d o - m e d i e v a l e na crítica nele presente à a n a l o g i a d o
ser, p i l a r d e sustentação d a Metafísica clássica. N o l i m i a r d a razão
m o d e r n a o a n t i g o p r o b l e m a d a oposição e n t r e a p a r t i c u l a r i d a d e d o
ethos e a u n i v e r s a l i d a d e d a htica é r e v i v i d o p o r Descartes q u e aconse-
lha u m a p r u d e n t e submissão ao ethos t r a d i c i o n a l ' " , e n q u a n t o não se
c o n s t i t u a u m a Ética r i g o r o s a m e n t e r a c i o n a l e, p o r t a n t o , u n i v e r s a l . N o
e n t a n t o , o p r o g r a m a carlesiano d a conshtuição dessa n o v a Éhca, q u e
deveria inscrever-se no triângulo epistemológico f o r m a d o p e l o método,
o sistema e o sujeito, m o s t r o u - s e irrealizável ao l o n g o d a história d a
razão m o d e r n a , O d o m í n i o d o a g i r h u m a n o o u d a yrdxis revelou-se
irredutível à r a c i o n a l i d a d e matemática d a i>hi/sis. A constituição d a
Éhca no espaço d a razão m o d e r n a teve de r e n u n c i a r aos p r o c e d i m e n -

70 Sinh-sf Norii Fiise, Beto HíirizunW. n. 22, n. 6H. I!)!)í>


Uís niftódicoH c à e s t r u t u r a sistemática d a s ciências d a n a t u r e z a , e
buscar n u próprin sujeito, t e m a b z a d o sob d i v e r s o s aspectos, o princí-
p i o ao m e s m o t e m p o lógico e ontológico d o a g i r ético'''. N o e n t a n t o ,
c o l o c a d o sob o s i g n o d a razào cartesiana, o sujeito é p e n s a d o a q u i
desde o p o n t o d e v i s t a d a poicsis, d o fazer o u p r o d u z i r o seu objeto.
A Ftica m o d e r n a é, a s s i m , u m a Ética c o n s t i t u t i v a m e n t e autoiiôiuica ao
fazer d o sujeito, e m última instância, o l e g i s l a d o r m o r a l , e m contraste
c o m a Ftica clássica, essencialmente oiitoiiôinica, p o i s nela o ser o b j e t i -
vo, m e d i a tizado pela " r e t a razão" (orthòs lagos), é a fonte da m o r a l i d a d e .
O r a , a a u t o n o m i a m o r a l p r i n c i p i a i d o sujeito, q u a l q u e r q u e seja a f o r m a
c o m q u e é p r o p o s t a , encontra-se, p o r o u t r o l a d o , e m face d o p r o b l e m a
f u n d a m e n t a l da constituição d a c o m u n i d a d e ética, o u da passagem d o
eu ao nós no exercício d a v i d a ética, u m a vez q u e . no seu e x i s t i r c o n -
creto, o a g i r ótico i n d i v i d u a l t e m l u g a r necessariamente na r e a l i d a d e
o b j e t i v a d o ethos, o u seja, na v i d a ética de u m a c o m u n i d a d e histórica.
Fsse p r o b l e m a não aparece n a Éhca clássica p o i s nela o elhos histórico
é o objeto p r i m e i r o d a Ética e a tradição ética é u m a fonte essencial
para a constituição desse objeto'". M a s há d o i s o u t r o s p r o b l e m a s q u e
se l e v a n t a m no c a m i n h o d a concepção autonòmica d a r a c i o n a l i d a d e
ética, e q u e se t o r n a m tópicos clássicos de discussão na Ética m o d e r n a :
o p r o b l e m a da virtude e o p r o b l e m a d a Ideologia. O declínio e quase
desaparecimento d a noção de v i r t u d e , e n t e n d i d a c o m o perfeição (areté)
d o sujeito ético, é conseqüência d a crise d a idéia d a c o m u n i d a d e édca,
u m a vez q u e a v i r t u d e é c o n c e b i d a na Ética a n h g a c o m o u m a realiza-
ção e x e m p l a r no indivíduo d o s ideais éticos d a c o m u n i d a d e ' ' " . Por
o u t r o l a d o , a posição s u b o r d i n a d a e secundária d a c o m u n i d a d e ética
na p e r s p e c h v a da a u t o n o m i a d o sujeito ético e a natureza poielica d o
c o n h e c i m e n t o m o r a l , p r o v o c a m u m a cisão na e s t r u t u r a leleológica d o
a g i r ético entre o f i m d o sujeito (fiuis opcrantis) e o teor o b j e h v o d a
r e a l i d a d e e n q u a n t o t e r m o d a intenção subjetiva d o sujeito (finis operis),
d a n d o o r i g e m a u m p e r m a n e n t e c o n f l i t o e n t r e as c h a m a d a s " m o r a l d e
intenção" e " m o r a l d o o b j e t o " . A o reaparecer no p e n s a m e n t o ético
contemporâneo, p o r e x e m p l o n o c h a m a d o "conseqüencialismo", a
teleologia é pensada s e g u n d o u m esquema d o r a c i o n a l i d a d e técnica e
assume as carateristicas d a f i n a h d a d e r a c i o n a l de u m p r o j e t o técnico.

A s r a c i o n a l i d a d e s chcas na m o d e r n i d a d e conhecem, pois, no seu p o n -


to de p a r h d a u m a revolução episte m o lógica tão p r o f u n d a q u a n t o aquela
da q u a l p r o c e d e r a m as r a c i o n a l i d a d e s científicas, v i n d o a m b a s a ca-
racterizar os episódios i n i c i a i s na formação da razão m o d e r n a no sé-
c u l o X V l l e m o s t r a n d o e n t r e si u m a h o m o l o g i a de e s t r u t u r a cjue as
t o r n a reconhecíveis c i m i o aspectos de u m m e s m o g r a n d e processo d e
transformação d a razão o c i d e n t a l . A s s i m c o m o Cialileu foi o p r i m e i r o
artífice reconhecido d a n o v a razão científica, assim T. H o b b e s o foi d a
n o v a razào ética'". Fiel aos princípios d o m a t e r i a l i s m o mecanicista,
H o b b e s rejeita a teleologia d o B e m , sobre a q u a l se f u n d a v a a Ética

Sinti-s,' Nona Fase. Balo Horizonte. Í\ 22. n. 68. 1995 71


a n i i g a , ao m e s m o t e m p o e m q u e o seu n o m i n a l i s m o tornava
inassimilável p e l o seu p e n s a m e n t o o conceito d e " n a t u r e z a " ' . Desta
sorte, a Ética hobbesiana é e s t r i t a m e n t e egoísta e u t i l i t a r i s l a , não sen-
d o m a i s d o q u e a transcrição, no " p a c t o de s o c i e d a d e " , d o estado
o r i g i n a l d o h o m e m c o m o indivíduo a n i m a l g u i a d o p e l o s i n s t i n t o s d a
auto-conservação e d o d o m í n i o e h m i t a d o apenas, n o exercício d o seu
egoísmo h m d a m e n t a l , p e l o t e m o r d a m o r t e . A concepção hobbesiana
da Blica reveste-se de u m a significação emblemática na gênese das
r a c i o n a l i d a d e s éhcas m o d e r n a s , na m e d i d a e m q u e m o s t r a c o m m c o n -
fundível n i t i d e z o caráter iioicllca o u f a b r i c a d o r d o c o n h e c i m e n t o no
domúiio d o s valores éHcos: H o b b e s , c o m eíeito, reconhece c o m o única
o r i g i n a l i d a d e d o h o m e m O ser o artífice da própria h u m a n i d a d e " - . Por
o u t r o l a d o , reafirma-se e m H o b b e s a p r i m a z i a d o p ó l o lógico na es-
t r u t u r a d a razão, ao p r o p o r ele a explicação d o a g i r ético pelo método
hipotéHco-dedutívo, s e g u n d o o m o d e l o d a g e o m e t r i a e u c l i d i a n a . A s -
s i m , d o m e s m o m o d o c o m o a ciência m o d e r n a é g a l i l e i a n a na sua raiz,
da q u a l nascem seus n u m e r o s o s r a m o s , assim as r a c i o n a l i d a d e s éticas
m o d e r n a s p r e n d e m - s e à raiz hobbesiana, d a q u a l p r o c e d e m suas d u a s
ramificações m a i o r e s : o r a c i o n a l i s m o e o e m p i r i s m o .

A m e i o c a m i n h o d o itinerário d a razão m o d e r n a a H g u r a de K a n t
eleva-se c o m u m a significação v e r d a d e i r a m e n t e fatídica, no s e n t i d o
l a t i n o d o t e r m o , na m e d i d a e m q u e nela se p o d e m ler os s i n a i s
p r e n u n c i a d o r e s d o d e s t i n o d a razão na história q u e virá d e p o i s . Se
essa significação d a o b r a k a n t i a n a é u n i v e r s a l m e n t e reconhecida no
q u e d i z respeito à razJo p u r a o u leiSrica, não o é m e n o s no q u e c o n -
cerne à razão práHca o u ética e ãs f o r m a s d e r a c i o n a l i d a d e c o m q u e
ela se apresentará n o s t e m p o s pós-kantianos. C o m efeito, e m K a n t
assistimos à t e n t a t i v a r i g o r o s a m e n t e c o n d u z i d a para i n t e g r a r no mes-
m o d i s c u r s o a r e a l i d a d e antropológica d o ethos v i v i d o e a "metafísica
dos c o s t u m e s " , essa f u n d a d a na u n i v e r s a l i d a d e a priori d a razão prá-
tica"'. A q u i estão entrelaçadas no seu desenho i n i c i a l as d u a s l i n h a s
que haverão de ser seguidas p e l a s r a c i o n a l i d a d e s éticas d e p o i s de
K a n t : a Hnha d a logicisaçiio d a Ética, q u e conhecerá d i v e r s a s variantes
na h l o s o f i a contemporânea, e a l i n h a d o e x p e r i m e n t a l i s m o ético q u o
dará i g u a l m e n t e o r i g e m a d i v e r s o s m o d e l o s d e c o n d u t a a l t e r n a h v a ao
elhos t r a d i c i o n a l na nossa sociedade.

O q u e Kant enuncia c o m o problema, a coexistência tia M o r a l como domí-


nio da Razão p u r a práHca, e d a PUca no seu uso prugindtico como elhos
v i v i d o , é r e t o m a d o p o r Hegel c o m o sisteiim na dialética d o Espírito o b -
jehvo. A í é inverHda a o r d e m de i n t e l i g i b i l i d a d e prop<ista p o r Kant, sen-
d o o m o m e n t o d a " m o r a l i d a d e " (Moralitdt), como m o m e n t o abstrato,
s u p r a s s u m i d o na " v i d a éhca concreta" {Sitiliehkeit), essa pens<ida como
termo do m o v i m e n t o dialóHco d o Rspírito objetivo, o u d o Espírito no seu
operar no m u n d o . T a l o sentido d a mais grandiosa tentativa de recupe-
ração da anHga racionalidade éHca na perspectiva d a razão poie'tica d a
m o d e r n i d a d e : m o s t r a r essa razão o p e r a n d o no elbo^ concreto a p a r h r d o

72 Síntese Notia Fam'. Belo Horizonte, v. 22, n. 68. 1995


seu princípio q u e é a subjetividade absoluta ( o u a Idéia absoluta) desdo-
brando-se historicamente c o m o l'spírito o b j e t i v o ' . A diaiehzação da re-
lação entre o sujeito moral {domínio d a i n t e r i o r i d a d e d a razão prática) e
sujeito clico (domínio d a e x i e r i o r i d a d e d o ctluis histórico), e a racionaliza-
ção d o cl/nts s e g u n d o a necessidade d o m o v i m e n t o dialético q u e desem-
boca no /f/iis d a sociedade política fazem d a Ética hegeliana, pensada
desde o h o r i z o n t e m a i s vasto d o Espírito objetivo o u d o D i r e i t o ' " , o lugar
das decisões teóricas f u n d a m e n t a i s o n d e começa a efedvar-se o desHno,
p r e n u n c i a d o p o r K a n t , das racionalidades éticas pós-kantianas.

A s u b j e t i v i i i a d e m o d e r n a a d q u i r e e m I legel u m a dimensão histórica


q u e se desenrola n o s domínios d a sociedade c i v i l e d o l i s t a d o , m a s
essa s u b j e t i v i d a d e é, e m H e g e l , i n t e i r a m e j i t e s u b m e t i d a à regência d o
lógico, através d a h o m o l o g i a e n t r e o " c o n c e i t o " (Bcgriff), no s e n t i d o
hegeliano, e a liberdade"''. Desta sorte as r a c i o n a l i d a d e s éticas c o n t e m -
porâneas, c o n s t i t u i n d o - s e , d e u m a m a n e i r a o u d e o u t r a , s o b o s i g n o
d o h e g e l i a n i s m o , apresentam-se, na v e r d a d e , c o m a e s t r u t u r a d e u m
q u i a s m o lógico, t e n d o c o m o p o n t o d e intersecçào d a s suas l i n h a s c r u -
zadas a a u t o n o m i a d o sujeito, e c o m o o r i g e m dessas linlias a razão e a
experiência: a experiência deve ser racionalizada segundo as exigências d a
a u t o n o m i a ética d o sujcilo, e a razão recetx' da experiência o conteúdo
histórico para o exercício dessa a u t o n o i u i a . A s grandes formas d a racio-
n a l i d a d e ética contemporânea s i t u a m - s e d e n t r o d o espaço lógico-
epistemológico desse q u i a s m o e nele d e f i n e m suas carateristicas. Elas
tem e m c o m u m o a b a n d o n o d a metafísica d o Espírito a b s o l u t o q u e
assegurava, c o m o t e r m o da dialética d o tispírito o b j e t i v o , a u n i v e r s a -
l i d a d e d a razão édca hegeliana. A a u t o n o m i a d o sujeito nas éticas pós-
hegelianas terá justamente, c o m o seu problema maior, a universalização
da n o r m a ética a partir d a f i n i l u d e . d a contingência, d a situação e d o h v r e
arbítrio d o sujeito^. O r a , a u n i v e r s a l i d a d e só p o d e ser d e f i n i d a e m ter-
mos de raziio e a razão é universal exatamente na sua h o m o l o g i a c o m o
ser, vale dizer, na sua i n t e n c i o n a l i d a d e Iransempírica"".

Se essa i n t e n c i o n a l i d a d e não a p o n t a m a i s para o pólo luelafísico, ela


d e v e necess.1 ria m e n t e r e t o r n a r sobre si m e s m a e orientar-se para o
pólo lógico e n q u a n t o i m a n e n t e ao próprio sujeito, seja c o m o princípio
da o r d e m racional d o seu d i s c u r s o , seja c o m o f u n d a m e n t o d a sua
a p r i o r i d a d e Iranscendental sobre o dado da experiência. A a u t o n o m i a d o
sujeito manifesta-se, pois, enquanto exigência de univers<ilidado, c o m o
transcendonlalidado e c o m o discurs<'>. E é c o m o tal q u e ela se apresenta
no c a m p o d a Htica, mostrando-se aí c o m o lugar d e intersecção da ex-
periência q u e d e v e ser r a c i o n a l i z a d a e m t e r m o s de n o r m a , o da razão
q u e d e v e receber d a experiência o conteúdo d o seu exercício n o r m a t i v o .

Desta sorte as r a c i o n a l i d a d e s édcas contemporâneas p a r e c e m oferecer


a p r o v a ex contrario d e q u e não há Ética sem Metafísica'", assim c o m o
não ha n e m Metafísica n e m Éhca s e m a intuição d o Ser c o m o i n t e l i -
g i b i l i d a d e r a d i c a l na sua i d e n t i d a d e consigo m e s m o o u , e m t e r m o s

Síntese Nora Fai^e, Bch< Hunnmlc. v. 22. n. 68. 1995 \ 73


lógicos, c o m o verificação do princípio d e nào-contradição. Essa i d e n -
t i d a d e é, para usar u m a velha expressão filostífica, subsistência refle-
x i v a d o Ser e m si m e s m o o u sua t r a n s l u c i d c z inteligível*. O r a , o s u -
jeito o u o E u pensante e Hvre é, e m nós e para nós, o p a r a d i g m a
p r i v i l e g i a d o d o Ser m a n i f e s t a d o na auto-posição d o Lu sou. M a s não
é n e m o s e u princípio n e m a sua n o r m a última d e i n t e l i g i b i l i d a d e .
1'orém desde q u a n d o o sujeito erige o p ó l o lógico d a Razão, na f o r m a
d o d i s c u r s o h u m a n o , e m n o r m a ontológica última, a lítica, s e n d o ciên-
cia d o elhos e d a praxis ética n o indivíduo e na c o m u n i d a d e , vê-se face
a face c o m o desafio teórico d e f u n d a r n o lagos h u m a n o a u n i v e r s a l i -
d a d e o b j e t i v a d o dever-ser e d e s u b m e t e r a essa u n i v e r s a l i d a d e a p a r -
ricularidade histórica d o ethos.

A presença, implícita o u e x p l i c i t a , desse desafio assinala o traço co-


m u m d a s r a c i o n a l i d a d e s éticas conlemporâneas. Hlas r e p o u s a m sobre
u m a " e s t r u t u r a d e pensa me n l o " " ' q u e t e m c o m o seus eixos d e susten-
tação d e u m l a d o a a u t o n o m i a d o sujcilo, d e o u t r o a u n i v e r s a l i d a d e d a
razãa. A r t i c u l a r a a u t o n o m i a d o sujeito c o m o principio e a u n i v e r s a l i -
d a d e d a razão c o m o forma, n u m agir ético i]ue não seja n e m estritamen-
te solipsista e m termos d e a u t o n o m i a (o q u e seria contraditório) n e m
p u r a m e n t e f o r m a l e m termos d e u n i v e r s . i l i d a d e (o q u e permaneceria
i r r e m e d i a v e l m e n t e at^strato), tal a tarefa le('>rica q u e se apresenta inicial-
m e n t e ao p r o g r a m a des.sas racionalidades K o espaço inteligível circuns-
c r i t o p o r tal " e s t r u t u r a d e perLsamento" situam-se as diversas formas d e
pensamento ético q u e dão a o nosso m u n d o d e c u l t u r a u m relevo p e -
c u l i a r , na m e d i d a e m q u e nele o p o d e r o s o i m p a c t o d e u m d e s e n v o l -
v i m e n t o econômico e cientifico-tecnológico s e m prcnredentes fez e m e r -
g i r d r a m a t i c a m e n t e o p r o b l e m a d o sentido e d e s c o b r i u i g u a l m e n t e a
sua r a i z m e r g u l h a d a n o t e r r e n o élico, vale d i z e r , n o t e r r e n o n o q u a l a
questão decisiva d i z respeito aos fins e v a l o r e s capazes d e elevar a
v i d a h u m a n a d o s i m p l e s carregar o f a r d o existencial d e apenas ser. à
p e r s p e c t i v a exaltante d o dever-ser, o u d a sua auto-realização n o bem"^.

A articulação e n i r e a a u t o n o m i a p r i n c i p i a i d o sujeito e a u n i v e r s a l i d a -
d e d a razão se faz, p o i s , para as r a c i o n a l i d a d e s êlicas contemporâneas,
d e a c o r d o c o m d i v e r s o s modelos lógicos q u e se supõem capazes d e
f u n d a m e n t a r e e x p l i c a r a pa.ssagem d o agir élico i n d i v i d u a l ao consenso
na c o m u n i d a d e ética, sem que aquele renuncie à sua a u t o n o m i a de p r i n -
cípio e essa ã sua u n i v e r s a l i d a d e . Admite-se, assim, q u e a c o m u n i d a d e
éhca — o u o ethos empírico — pode acolher u m a razão q u e é universal
p<irque capaz d e obter o consenso d e Iodos, mas c]ue só é tal, o u seja,
razão ética o u n o r m a t i v a , p o r se mostrar c o m o q u e u m a emanação da
a u t o n o m i a d o sujeito ético q u e nela se reconhive, Itusca-se, pois, u m a
estrutura lógica a d e q u a d a q u e assegure à r a c i o n a l i d a d e ética sua f u n -
ção d e fiuídamentar e e x p l i c a r a u m t e m p o o a g i r ético d o indivíduo
e a e s t r u t u r a ética d a c o m u n i d a d e . A s r a c i o n a l i d a d e s éticas c o n t e m p o -
râneas permanc\:cm a s s i m fiéis, à sua m a n e i r a , ao princípio c o n s t i t u -

74 Sinlese Nova Fase. Belo Horãonle. o. 22. n. 68. 1995


t i v o d a razão m o d e r n a q u o ó a p r i m a z i a i l o pólo lógico a p a r l i r d o q u a l
se d e f i n e m os c a m p o s d o sou oxercício legílimo, p e r m a n e c e n d o o pólo
metafísico n u m d o m í n i o t r a n s r a c i o n a i o u s i m p l e s m e n t e metafórico.

B n t r e a a u t o n o m i a d o sujeito o o uiiiivrstil d a razão ética ( n o r m a s e


v a l o r e s ) q u e d e v e ser r e a l i z a d o na c o m u n i d a d e ética, d e v e m e d i a r ,
pois, u m m o d e l o lógico capaz d e assegurar a passagem d e u m a o u t r o .
L e v a n d o e m conta a d i v e r s i d a d e desses m o d e l o s , é possível o r d e n a r
e m d o i s g r a n d e s g r u p o s as teorias élicas contemporâneas. K o p r i m e i -
ro os m o d e l o s lógicos dão p r i m a z i a a u m a lógica do sujeito, na m e d i d a
e m q u e é a p a r t i r d o agir d o sujeito pensado na sua a u t o n o m i a q u e se
d e s e n r o l a m os m o m e n t o s lógicos d o u n i v e r s o c o n c e p t u a i d a Htica; no
s e g u n d o a p r i m a / i a é c o n c e d i d a a u m a lógica da experiência, 11.1 m e d i d a
e m q u e u m a certa f o r m a d a experiência, exercida a p a r t i r d a a u t o n o -
m i a d o sujeito ético, se presta a d e s e m p e n h a r a função d e primum
logieuni no d i s c u r s o d a Htica.

A s lógicas d o sujeilo r e g e m as formas de r a c i o n a l i d a d e ética para as


q u a i s o terreno próprio d a razào ética é o r a a linguagem, tanto d o
p o n t o d o vista analítico q u a n t o d o p o n t o de vista hormenéulico, ora o
couscuso f u n d a d o seja n o d i s c u r s o c o m u n i c a t i v o , seja no d i s c u r s o d i t o
"procedural""^', o u a i n d a a ponderação g l o b a l d a s conseqüências d o
a g i r no c h a m a d o "conseqüencialismo". K a perspectiva desse t i p o d e
r a c i o n a l i d a d e o sujeito ético age, na verdade, g u i a d o p o r u m a lógica
cujo m o d e l o é a demonstração rigorosa o u a inferência provável. E
p e r m i t i d o o b s e r v a r q u e a razão ética e n q u a n t o razão prática, d e n a t u -
reza p r u d e n c i a l , q u e d i r i g e a ação mais pela phróuesis no s e n t i d o
aristotélico d o q u e pela lógica abstrata d o d i s c u r s o , permanix^e a q u i
o b s c u r e c i d a . A s éticas q u e se e x p r i m e m alravés d e u m a lógica q u e se
p r e t e n d e d e m o n s t r a t i v a , c o m o o b r a d a razão teórica, acabam p o r fazer
d o sujeito élico ccuicreto apenas o s u p o r t e de u m consenso o u de u m
c a l c u l o d a s conseqüências d e u m a g i r e r i g i d o e m princípio p u r a m e n t e
lógico. Elas f a l h a m a s s i m o a l v o d a ciência d o elhos na sua acepção
o r i g i n a l , a saber, a explicitação o organização c o n c e p t u a i das razões
i m a n e n t o s ao ethos o q u e m a n i f e s t a m a essência ética d o h o m e m . C o m o
Aristóteles b e m v i u , essa essência ética não se descobre no s i m p l e s
exercício d a razão d i s c u r s i v a o u c a l c u l a d o r a . Ela designa a presença
no ser natural d o h o m e m — razão, l i b e r d a d e , s e n s i b i l i d a d e — d o i m -
p e r a t i v o d e u m dever-ser q u e !ho impõe a tarefa indeclinável d e r e a l i -
zar a sua v i d a no hem. E m s u m a , p o d e m o s d i z e r q u e as r a c i o n a l i d a d e s
éhcas obedientes a u m a lógica d o siijeiío d e c o r r e n t e d a eliminação d o
pólo metafísico no espaço d a razão, a b s o r v e m o sujeilo ético no desa-
fio d e se i n t e g r a r r a c i o n a l m e n t e na c o m u n i d a d e o u na história —
avatares d o anligi» A b s o l u t o metafísico — d e i x a n d o p o r resolver o
p r o b l e m a f u n d a m e n t a l d a Ética, q u a l seja o d o " t o r n a r - s e b o m " d o
sujeito alravés d o exercício p e r m a n e n t e d a sua "razão prática" c o m o
phrotu^sis o u "razão r e t a " (orthòs togos!'^^.

Sínte.w Nono Fti.in. IMo Horizonte, i: 22. n. 68. 1995 75


A s lógicas d a cxperiâiicin c a r a c l e r i z a m , p o r sua vez. as f o r m a s d e racio-
n a l i d a d e ética para as q u a i s o t e r r e n o próprio para o exercício da
razão ética é traçado p o r aqueles p e r c u r s o s d a experiência ao l o n g o
d o s q u a i s o sujeito descobre motivações para o seu a g i r q u e julga
capazes d e serem justificadas e t i c a m e n t e , o u seja, e m t e r m o s de nor-
m a s e valores. Tais são, p o r e x e m p l o , os c a m i n h o s d a experiência d o
p r a z e r e d a satisfação, d o u t i l o u d o c o n v e n i e n t e o u a i n d a , c o m u m
teor d e experiência m e n o s acessível m a s m a i s c o n v i n c e n t e , os resulta-
d o s p r e s u m i d o s d e u m a experiência científica. Deve-se observar, p o r
o u t r o l a d o , q u e essas experiências são recebidas na esfera d a raciona-
l i d a d e éhca d e s d e q u e o sujeilo aceite transpô-las para a lógica dos
seus fins e d o s seus valores. C o m efeito, a q u i c o m o nas lógicas d o
sujeito, c o n h n u a a prevalecer o princípio d a a u t o n o m i a . 1-xperiências
c o m o as d o prazer, d a satisfação, d a u t i l i d a d e , dos e n s i n a m e n t o s d a
ciência são a s s u m i d a s c o m o fontes d e n o r m a s no c a m p o d a raciona-
l i d a d e éhca na m e d i d a e m q u e o sujeito se m o s t r a capaz d e integrá-
las n o sistema d e valores f u n d a d o sobre a sua decisão autônoma.
C o n v é m a i n d a o b s e r v a r q u e as lógicas d a experiência, tais c<mio a q u i
são e n t e n d i d a s , não são as experiências originaríamente éticas o u
c o n s i d e r a d a s c o m o tais, c o m o as experiências d a f i d e l i d a d e , d a v e r a -
c i d a d e e o u t r a s q u e se referem a u m a n o r m a t i v i d a d e i m a n e n l e d o
flhos, m a s são experiências e t i c a m e n t e neutras sobre as q u a i s o sujeito
i m p r i m e a f o r m a d a r a c i o n a l i d a d e éhca a p a r t i r d a sua a u t o n o m i a . A s
lógicas da experiência assim e n t e n d i d a s estão presentes, c o m o é fácil
observá-lo, no u s o dessas ideologias pseudo-éhcas q u e hoje d o m i n a m
o c o m p o r t a m e n t o d o h o m e m d a civilização o c i d e n t a l : o h e d o n i s m o , o
u t i l i l a r i s m o , o b i o l o g i s m o , o p s i c o l o g i s m o , o s o c i o l o g i s m o , cada u m a
delas fazendo v a l e r u m a f o r m a , c o n s i d e r a d a p r i v i l e g i a d a , d a expe-
riência c o m o fonte d e n o r m a s para o agir: sahsfação, u t i l i d a d e , a u l o -
conservação, bem-estar psicológico, integração social.

C o m o não é d i f i c i l verificar, no q u i a s m o lógico f o r m a d o pela a u t o n o m i a


d o sujeito, a razão e a experiência, e q u e c o n s h t u i a m a t r i z f u n d a m e n l a l
d n pensamento ético m o d e r n o , fica p a r a d o x a l m e n t e relegado a u m lugar
secundário e quase evanescente o fenômeno v e r d a d e i r a m e n t e originário
da nossa v i d a éhca q u e é a caiiáciéiida ivoral. A p a r e n t e m e n t e a consciência
m o r a l , apresentando-se c o m o u m a instância julgadora das noss,is inten-
ções e atos, instalada no mais íntimo d o nosso ser mas transcendente ãs
razões d a nossa razão i n d i v i d u a l e ao nosso l i v r e alvedrio, mostra-se
d i f i c i l m e n t e assimilável pelo princípio d a a u t o n o m i a d o sujeilo éhco"',
lila acaba sendo objeto de intensas discussões*'', e é s u b m e t i d a a procedi-
mentos reducionislas i n s p i r a d o s r^as neuro-ciências. na psicanálise, na
sociologia d o conhecimento, na crítica d a s tradições culturais, na psico-
logia religiosa. O r a , é a experiência socrática d a consciência m o r a l q u e
L-stá no p o n t o d e p a r h d a de toda a história d a Ética", É razoável supor
que as densas nuvens de suspeita q u e o c u l t a m , na cultura contemporâ-
nea, o fenômeno da consciência m o r a l no ádilo d a personalidade d o

76 I SinlKse Nocu FÍI.W, lido Horizonte, v. 22, n. 68. 1995


h o m e m d o nosso t e m p o , deixam-no a respirar sem defesa o ar d e n i i l i s m o
éhco q u e se d i f u n d e e m todos os domínios d a civilização o c i d e n l a l .

V. Conclusão

R e t o r n e m o s ao nosso p o n t o de p a r h d a p a r a , no m e l h o r eshlo dialéh-


co. tentar repensá-lo d e s d e o nosso p o n t o d e chegada.

P a r t i m o s d e u m a b r e v e descrição d a situação e s p i r i t u a l d o O c i d e n t e
após os anos trágicos q u e começaram c o m o f i m d a E u r o p a d o s notá-
veis e m 1914 e se p r o l o n g a r a m até a g u e r r a d e 1939-194.'). O ciclo q u e
se s e g u i u a essa crise parece ter r e p e h d n , ao m e n o s n o s seus g r a n d e s
estágios, a seqüência q u e e n c o n t r a m o s e m o u t r a s épocas d a história
d o O c i d e n t e e, de m o d o e x e m p l a r , nos p r i m e i r o s séculos d a Grécia
clássica, e i]ue agora se apresenta c o m a cadência acelerada própria d o
nosso t e m p o de u m a história e m r i t m o quase frenéhco. U s a n d o os
l e r m o s c o m q u e foi u n i v e r s a l m e n t e d e s i g n a d a , essa seqüência p o d e
ser caracterizada pela p r i m a z i a respectiva, no imaginário e nas idéias
d a sociedade, d o s conceitos e das l i n g u a g e n s d o dcsenvohunioito, da
cultura e d a clica. Pensamos d e s c o b r i r a q u i u m a lógica liistórica q u e
a r t i c u l a esses três m o m e n t o s e q u e t r a d u z , na sucessão t e m p o r a l d a s
f i g u r a s c o m i]ue a s o c i e d a d e se representa a si m e s m a , as categorias
antropológicas d e necessidade, d e seutido e d e valor, o u a i n d a d e traba-
lho, d e saber e d e ação. Desta sorte, deseuvolvunenlo, cultura e élica são
t e r m o s e conceitos emblemáticos q u e p e r m i t e m pensar a direção d o
f l u i r p r o f u n d o d a civilização o c i d e n l a l n o s últimos cinqüenta anos.

A reflexão q u e c o n d u z i n t o s ao l o n g o dessa nossa exposição g u i o u - s e


pela idéia d e q u e a lógica liistórica q u e se e x p r i m e na tríade dcseiivol-
viiiiento — cultura — ética, e q u e se v e r i h c a sob c o n j u n t u r a s e f o r m a s
d i v e r s a s nos ciclos q u e a s s i n a l a m a evolução c u l t u r a ! d o O c i d e n t e ,
explica-se a p a r t i r d a necessidade i m p o s t a ã nossa civilização, d e s d e
q u e l e g i t i m o u s o c i a l m e n t e o uso d a Razão na Grécia clássica, e a t o r -
n o u u m d o s eixos d o seu u n i v e r s o simbólico, d e c o m p r o v a r e j u s H h c a r
e m razão a h v i d a d e s , organização social, crenças, costumes, valores.
Nossa exposição p r o c u r o u m o s t r a r q u e a Razão apresenta-se h i s t o r i -
c a m e n t e e m processo i m a n e n t e d e autodiferenciação, explicável t e o r i -
c a m e n t e pela sua própria n a t u r e z a . C o m efeito, ela se a u t o d i f e r e n c i a
e m r a c i o n a l i d a d e s s e g u n d o o teor o b j e t i v o d a s realidades p o r ela i n -
t e r p r e t a d a s . Aristóteles foi o p r i m e i r o q u e d i s h n g u i u s i s t e m a h c a m e n -
te as r a c i o n a l i d a d e s teórica, pratica e poielica. q u e c o r r e s p o n d e m às
categorias antropológicas d e sentido, valor e necessidade, o u a i n d a , para
usar a t e r m i n o l o g i a c o r r e n t e , cultura, ética e dcscni>olviinento. Segundo
Aristóteles é a r a c i o n a l i d a d e teórica, l u g a r próprio d a verdade, q u e
oferece afinal o f u n d a m e n t o racional último para a éhca e para a técnica.

Slnlcie Ntwa Fase. Belo HoritanU. v. 22. n. 68. 1995 \ 771


N o s s a s reflexões o c u p a r a m - s e c o m os f u n d a m e n t o s d n ético. A o b u s -
car esses f u n d a m e n t o s v i m o s q u e n a história d a nossa civilização
a p a r e c e m sucessivamente c o m o d o m i n a n t e s d u a s idéias d e Kazão, a
ra7.ão clássica e a razão rm^criia. lX'Ias p r o c e d e m d u a s famílias d e
r a c i o n a l i d a d e s . A razão clássica conhece u m a r a c i o n a l i d a d e p r i m a c i a l
q u e é a r a c i o n a l i d a d e metafísica. N e l a abre-se o c a m i n h o para o A b s o -
l u t o transcendente, c o r o a n d o a ascensão d a razão pela o r d e m dos
seres. A p r i m a z i a na razão m o d e r n a cabe à r a c i o n a l i d a d e lógica. N e l a
a transcendência é at>sorvida p e l o sujeito q u e se p õ e c o m o A b s o l u t o
lógico o u sujeito t r a n s c e n d e n t a l . O r a , a natureza f u n d a n t e d a razão
teórica i m p l i c o u , d e s d e a a u r o r a socrática d a litica c o m o ciência d o
elhos. u m a relação d e f u n d a m c n i o a o q u e é f u n d a d o , e n t r e a
r a c i o n a l i d a d e teórica e a r a c i o n a l i d a d e ética, A p e r g i m l a p r i n c i p a l
suscitada p o r essas reflexões e q u e nos a c o m p a n h e m ao l o n g o da nossa
exposição, d i z respeito ã p o s s i b i l i d a d e d a fundamentação d a
r a c i o n a l i d a d e éhca pelas r a c i o n a l i d a d e s teóricas, científicas e filosófi-
cas, m o d e r n a s , Essa p e r g u n t a a d t [ u i r e u m a a t u a l i d a d e flagrante no
m o m e n t o e m q u e u m a necessidade lógico-hislórica faz c i m i p r i r ã nossa
civilização no pós-guerra o ciclo ileseiiivivimenlo-ciiltiira-ehca.

O r a , as respostas q u e as racionalidadc>s éticas contemporâneas ofere-


c e m ã quL>stão a s s i m f o r m u l a d a lançam-nos a p a r e n t e m e n t e e m g r a n d e
p e r p l e x i d a d e . Por u m l a d o o predomínio d o lógico e d o o p e r a c i o n a l
na razão m o d e r n a — o u a articulação d o teórico e d o técnico sem a
mediação d o prático — e, p o r o u t r o , a imanentização d o sentido e d o
f u n d a m e n t o d o valor na razão finita e na l i b e r d a d e s i t u a d a — v a l e
d i z e r , a ocultação d o p ó l o metafísico d a Kazão — a r r a s t a m as
r a c i o n a l i d a d e s éticas p o r c a m i n h o s q u e não p o d e m levar senão ao
deserto d o não-sentido e d o n i i l i s m o d o s valores.

Es gil>t keine Ethik ohne Metaphvsik: essa afirmação de Kobert S p a e m a n n "


sendo, na v e r d a d e , o nosso p o n t o d e chegada nessa exposição, des-
v e n d a a significação p r o t u m i a i l o nosso p o n i o d e p a r l i d a , Ela e x p r i m e
l a p i d a r m e n t e u m implícito até a q u i não e n u n c i a d o mas q u e e x p r i -
me afinal nossa convicção p r o f u n d a : a d e q u e o itinerário de u m a
Ética viável nas terras da razão m o d e r n a d e v e recuar aquém d a s suas
f r o n t e i r a s e r e e n c o n t r a r a t r i l h a plalõnico-aristotélica, para t e n t a r
prolongá-la na floresta d e r a c i o n a l i d a d e s q u e c o b r e a c u l t u r a desse
f i m d e milênio, N ã o estará at]ui u m a a l l e r r u i l i v a possível para o des-
c o n c e r l o élico d o nosso lempo"*?

Notas

1. Ver H , C, H F I . I V I A V A Z , "Sentido e nâivsentido na cr'í'H- d.i modernidade"


Síntese, M (1V94): 5-14, Uma análise penetrante das ambigüidades da "onda

I 7 8 1 Sinleiíe Nova Fase. Belo HorUonU; u. 22. n. 68. 1935


ótica" atuai encontra-si; cm G Í I I C H [.ipovcl.ski, Lc crcpuscidc dii dewir: Í éthiqiic
indolore des iiouivaiix tciiips dcmocratiqua, l'arís, Callimard (Lcs Essais), 1992,
2. O , SHNCI],:;, Der Uutergang dc:i Abcndlmtdn. 2. vols,, 1918-1922,
3. Ver S, MA/y.Ai(i\'u, Li fin dn monde niiliqni- miiiturs d'iin thènic Isifinriogi-nphiquc
(tr, fr.), I'ari.s, Callimard, 1973,
4. F. Braudol, Civdisalion inatcricl!e,ccoiioniií- et aipitalisníc, I I I , í.c leiupsdu monde,
Faris, Colin, 1979, pp. 11-15.
5. Essa K o q ü ô n c i a foi simbolizada na alegoria das três vidas o dos prazeres
respectivos: vida de ticgdcios, vida política u vida teorética, transmitida por 1'lalào
{Rcp. IX. 5 8 0 c 8 - 583 a 11) e AristeMüles {Úka Nic, I , 3. 1095 b 14 - 1096 a 10).
6. Ver H . C. I . I M A V A Z , Escritos de niosofia I I , Ética e Cultura. 2a. ed., São l'aulo,
Loyola. 1993. pp. .36-78.
7. Ver C W. F. H i o - i . Griindliincii der Philosopine des Rerlils, par. 32 e Zusatz
(ed. Muklonh.-iuer- Michel, 7, pp. 8.5-87). Hegel observa que n ordem dos
conceitos não é necessariamente a ordem das figuras h i s t ó r i c a s , püis procede
d o abstrato ao concreto. Mas, no nosso caso, verifica-se uma correspondência,
pois a razão científico-técnica deve ser considerada abstrata em face d a razão
hermenèulica e d a razão elica. sendo e s s a última, entro as razões humanas, a
mais concreta.
8. Ver F. ci; WACHTrw. "l'ost-modern challenge to Elhics". ap. V.tbical Perspectives
(Leuwen Universlty) 1, n. 2 (1994); 77-88.
9. Veras reflexões d e j . LAiwii.Rr, "Figures d e Ia raison" i n Figures de In rntjonalité
{Etudes d'Anthropohgie pbdosopbique, IV), Faris / Louvain-la-Neuve, V r i n -
1'eteers, 1991, pp. 105-128. Fnlendemos aqui Ra/.ào no senlido amplo de uma
f a c u l d a d e capaz de operar demonstralivamente o conhecimento do seu obje-

to, e que os Cregos denominavam logos apodeiktikós (discurso demonstrativo).


10. Sobre e s s e paradigma da razão filosófica ver o luminoso ensaio de E.

VOK;LL.I\, "Reason: the classical experience" i n Published Essays (1966-19S5),


The Collected Works, 12, Balon Rouge - London, Universily of Louisiana Fress.
1990, pp. 265-292,
11. Dentre a v a s t a literatura , i respeito, ver o belo capítulo de Max Pohionz,
l.'Uomo greco, ftr. if, de B, 1'rofo) Florença, 1^ Nuova Itália, 1976, pp. 363-461.
12. Ver, sobre essa questão, o documentado estudo d e R. BuAt.Li:, "Le récit d u
commencement: une aporie d e Ia raisim grecque", i n . J, F, Maltéi (dir,), Ia
naissance de Ia raison en Grèce, Faris, l'UI-, 1990. pp. 23-32,
13. Sobre c K s a questão, hoje m u i t o discuhda, ver E. M O K I M , La Méibodc. 3, 1: /j?
conuais^^ance de in connaissnnce, Faris, Seuil, 19H6; e também a colaboração
interdisciplinar coordenada por M . S I M O N , Ia peau de l'ãme: Iniciligenee artificiclle
el neuroscienccs - Approches interdisciplinaires, Faris, Cerf. 1994; A A . VV., The
Science aiul Thcology of informaiion, Cenebra, Lab<ir et Fides, 1992.
14. Paradoxo jã explicitamente formulado por Platão com o problema da "ciên-
cia da ciência". Ver H . C. L I M A V,\/, Antropologia Filosófica 1, 3a. ed., São Paulo,
Loyola. 1993. p. 231, n. 52.
15. Essa temática foi desenvolvida à luz da categoria de Espírito (Razão e
Liberdade) em Antropologia Filosófica, 1. pp. 208-213; 218-237.
16. A oposição entre Razão e Fé tem lugar no contexto da perda da primazia
d a razão filosófica nos tempos modernos e foi u m dos temas dentre os que

Síntese Nova Fiise. Belo Hurizimle. i>. 22. n. 68. \ 79 |


. i l i m f n l . i r a i r a rriL-ditaçào d o jovom Ucgo! o o oncaminharam ao Sistema. Vur
A. Léonard, hi foi cbcz Hegel, l'aris, DosckV, J970. 1'ara uma discussão atual
di> problema Fé - Razão filosófica, ver A. L I Í O . V A B I Í , Voi el philosophic: jiour iiii
ilifcernniienl ciiréliai. Namur, Culture ol Vérité, 1991, pp. I l-5tS.
17, Sobre c-s-sa questão, deci.siv.i para a compreen.são da situação contemporâ-
nea da Ética, ver Aiitmiiologia Filosófica 1, pp. 243-2H9.
18, Para u m estudo minuciosii dessa questão ver Y. Lí\ri<AM( i , Li llicorie
plaioiiicieiiiic de Ia doxti. Montreal / Paris, Bellarmin - Vrin, 1981.
19, Rep., V I . 5(W d 5 - 511 e 6.
20, Pot. 258 e 3 - e 7. I'ara a diferenciação d o saber racional e m Platão ver Cl.
Reale, Hislória da Filosufia Antiga I I (tr. H . C . L . V A / - M. P I K I N F ) , São Paulo,
Loyola, 1994, pp, 152-170.
21, Ver o imporlanie estudo de Franco V o l p i . "La nais,sance de Ia raliimalité
pratique dans ia différentiation arislolélicienne d u savoir; sa traditiim el son
nctualilé" in, Li iiaissníice de Ia Raison cn Grècc, pp, 280-290,
22, Ver H . C, L I M A V A / , Escrilos de Filosofia I I : Elica c Cultura, São 1'aulu.
Loyola, 1993, p p , 94-102,
23, A divi.são medieval mais coniiecida do saber c a do H Ü C A » I H : S. V I I O R (st'c,
Xil) no . s e u Didascalicoii ou Arte de ler. Ver a tradução recente com inlrodução
e notas, do M , Lemoine, Hugues de Saint-Víctor, L'Art de tire: Didnscalicoii,
Paris, Cerf, 1991.
24, Ver S, T O . M A S ot: Acíi I M U . hi XII libras Mctaphysicoiiiiii, Prociuiuiii (ed, Cnthala
/ Spiazzi), T u r i m , M a r i e l t i , 19,50. pp, 1-2, E, Voegelin designa essa caraterística
da razão a r t i j j a c o m o sendo " (...) a tensão do liomem em direção ai) funda-
m e n t o divmo da existência", in "Reason: t h e classical experience", Collected
Works 12, p. 273,
25, // Saggialore (1623) e as Regidae ad direclionciii iiigeini (1629) de Descartes,
podem ser considerados os textos fundadores da razão moderna. Sobre Galileu
ver, sob esse ponto de vista. R. L K N O H I E , in. Hisloirc de Ia Science (dir. M .
Daumns), Ene. d e !a Pléíade, Paris, Callimard, 1957, pp, 459-477. l i sobre as
Rc;,-idae de Descartes ver J.- L. M A R I O N , Siir rOíiloloi^ie grise de Desciulcs, Paris,
Vrin, 1975.
26, Ver as p e n e t r a n t L ' s análisc-s d e J, L A D R I È H V sobre a c i ê n c i a e a tecnologia em
íes eiijeiix de Ia ratioimlitc: lc dèfi dc Ia sciciicc et de Ia tecliiiologie aux cidtiires,
1'aris, A u b i e r / L nescit, 1977, pp, 17-71. e n»)s,sa recensão em Sinlese 13 (1978);
151-155.
27, Trala-se de u m lema central da hislória e da antropologia social modernas,
o b j e t o dos notáveis estudos do anfropiílogo l.onis Dumont: o ri-speilo, ver

Antropologia Filosófica I , p. 106 n, 87; ver igualmente A, líenaut, L'i}re de


tiudividtittlisme: coiitribulion à une hisloire de Ia suhjeclivili'. ParLs, tlallimard. 1989.
28, Sobre a distinção entre pensar e conhecer em Kant, ver l i . W n i , Problèincs
kaniiens. Pris, V r i n , 1963, pp, 13-55,
29, A metafísica moderna pre-kanhana é edificada como uma cstrulura siste-
mática, de a c o r d o com a nova i d é i a de nwtodo. Ver H , C, Lima Vaz, "Metafí-
sica: história e problema", nota bibliográhca .sobre o obra de ).- F. CüCKr(\i:.
Suarei et le prnblènte de Ia Métapln/sique, ap. Síntese 66 (1994); 383-395.
30, Ver ÍL C or \.\M\ V\/ "Metafísica: história e problema", p . 404 e notas 47,
48, 49.

fiõ SírUese Nooa Fase, Belo Horizonte, v. 22, n. 68, 1995


31, Ver VV, S( HwiNi>i.[-.K, Dic libcrwmdiing dci MfUiphpik: zii cuinu íínde der
neuzeilUchcii Phihsopbie. Stuttgart, Klett-Ciitl.i, I9H7,
32, Um índitu significativo, que anuncia a dissolução da analogia da Razão,
revela-se na transposição kantiana (vor Crilica da Razão pura. I, 2, 2; A , 298-302:
B, 355-359) da antiga distinção entre inlellcclus e rflfio (p, ex., S, Tomás de
Aquino, S. Tlieol., 1, q, 79, a. 8), na separação, em ordem ao conhecimento da
realidade, entre Entendimento e Razão, A distinção enlre iittellcrliis e ratio é,
na concepção lomásica, conülituliva da inteligência e^pirtliial (ver Antropologia
Viloiófica I , pp, 256-259), Uma comparação entre as duas concepções, desde o
ponto de vista da concepção da Ua/ão como faculdade dos princípios, é feita
por 1- L , \ O K i i K i , "l-igures de Ia raiwtn", pp, 11)9-113,
,\iíirs, ír.s Príncipes dc Ia Philosopltic. Lellre- Prèface (lfv47), in. Oeuures
3 3 , R, DL.SI:

Plnlosophiqucs {éd, Alquió), Paris, Garnier, 1973, I I I , pp, 779-780,


M. Ver J. Lí\!>iíifi!i., "Tlgures de Ia Raison", in. Pigiircs de Ia raíionalilc, pp, 105-111,
35, Ver H . S< iiN,\on H A O I , Ralionnlitiit: philosophisclie Beilriígc, Frankfurt M „
Suhrkamp, I9ti4; "Bemerkungen ülx-r Ralionalitãt und Sprache", ap, Vernaiijt
and CcichicUlc , Frankfurt, Suhrkamp, 1987. pp. 74-95; T h , Geraets (org.)
Kiilionalily today, Oltawa, Presses de FUniversüé, 1979.
36, Essas discussões revivem com novo vigor a velha pendência entre "racio-
nalismo" e "irracionalismo". Ver H. Sc H N Á D I MtA( n, "Uber Irrafionalitl u n d
Irralionalismus", in. Vcrnunft und Gcschichte, pp, 64-73, c o art});o do I I , - I , .
O I I . K ; , que examina quatro exemplos d e intervenção nessa p<)lêmica: J .

H A I I L K M , A . S , D . K A V m - . K . H . B L U M Í - . N I H K C , R. 5 P , V F . M A N N / R. |j3iv; ver "Die Vernunfl

auf d e n Prüfstand: A n m e r k u n g e n z u r jiingslen Rationalilalsdiskussion",


Thcologie und Pbilosophie 58 (1983): 363-394,
37, A universalidade da Ra/.ào é a universalidade da sua abertura transcen-
dental ao Ser: a Razão ó o Espírito como ordem e proporção (togos). Ver Anlro-
pologin Filomífica I . p, 203: pp. 2 0 9 - 2 1 2 .
38, Kes.se senlido a recente Fjicifclopedic Pbilosopliique Uniivrselte I I , Us Nolions
pbilosopliiqucs: nicliíiiiunirc. Paris, PUF, 1990, incide numa certa confusão
terminolõgica, dando ao verbete "Raíson" o sentido estrito da iiatio medieval (E,
Weber, p. 21.58), e ao verbete "Ratiunalité" o de Razão cm geral (S. Auroux, pp.
1262-1263).
39, Ver S. T O M , \ S O I AyuiNO, S. 'Fbe<A., I , q. 1 4 , a.a. 2, 3, 4; a. 2 <id I m ; ver
Antropologia Filosófica 1, pp. 2 1 1 - 2 1 3 ; 2 3 2 , n. 6 1 .
40, A q u i R e s i d e o fundamento d.i importante distinção entre iiilellcetiis e ratio
na gnosüologia antiga; ver Antropologia Filosófica I , pp. 258-260. üs textos de
Stü. Tomás a respeito no De Vcrilate foram recentemente traduzidos e comen-
tados por J , T O N N K A U O . P,, Saint Thonias d'Aqiiin, Qucstions disputêes sur Ia
Vêrilê, qq, XV - XVI - X V l l {ver q. XV), Paris. V r i n . 1 9 9 1 .
41, Ver S. T Ü M Ã S ur A I J U I V K J , D C Vcrilate. q, II, a, 2. Essa identidade é expR-ssa no
axioma Ens el inlclligibile cimivrtuntur. Reside aqui a verdade profunda da equi-
valência he);eliana, que seria lautológica se não se tratasse de uma identidade
dialética, pois a liigica de Hegel define a efetividade (Wirkiicbkeit) do real pela
sua racionalidade; "o que é racional é o efetivamente real, e o efetivamernte real
é o racional" {Philosopine dcs Reclits, Vorrcdc iWerke. ed, Moldenhauer-Michel, 7,
p, 2 4 ) ; Enzifklopadicderpliilosophisclicn WisserisscUallcn IIS^O), par. 6, Ar\m.. íWerke.
8, pp, 47-48), Com efeito, o que não é racional o u inteligível é o nàtvser.

Síníese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22. n. 68.199S \ 81 [


42. Sobre a "intoligciicia espiritunl" ver Atílroyohgiii Filosófica I , pp. 243-2f)n;
sobre a e.ilegoria du "transcendénciü" ver Aiiimpologia l'ihm>fica, II, Sào l'aulo,
Loyola, 1992, pp. 93-137.
43. Fticíi Nic. X. caps. 6-9. 1176 a 30 - 1179 a 33.
44. Sobre es,sa queslào ver o livro de J. - H. C O I - R T I M Í , Siia'rez el le sifstèiiie de Ia
Mclaplii/siquc, Paris, PUF, 1991, e H . C, U m a Vaz, "Metafísica; hislória e pro-
blema"', Si)i!e^e 66 (1994); 383-395,
45. Ver as reflexões de E. M Ü H I N , La Mclliodc 3; La coiiiiaissaiice dc Ia coiiuaissaiice
1, pp. 36-51; M . SiMON. ia pcau dc 1'ãiiie, pp. 18.5-266.
46. Ver a obra de D . JANICAUD, LS piiissancc da ralionnci, Paris, Callimard, 1985.
47. Síibre es.sa presença da Matemática na cultura, ver Philip J, Davis / R,
Hersii, O Sonho dc Descartes (tr. br. .Vt. C. Moura), líio, Francisco Alves, 1988.
48. Ver, a propósito, o belo livro de |ean Frère, Lcs Crccs cl le dcsir de 1'êlrc :
des préplatoiiiciens à Aristolc, Paris, Ik^lles Lettres, 1981.
49. Aristóteles, Polílica, I , 2, 1254 b 5 - 7; S, Tomás de Aquino, S. Tlicol, Ia llae,
q. 17, a. 7 c; ver ainda S A N I Ü A C O S Í I N I I O , DC Civilnie Dei, I X , e. 4 (CCL, X I . V I I I ,
251-253).
50. O i's(.-rii(' h-s Passioiis íle FAiiic {Demores pbilosophiques, 6á. Alquié, I I I , pp.
948 - 1103), fundamentado sobre o dualismo da alma e do corpo. a u t o r i 7 . a - n o s
a agir sobre as nossas paixões por uma espécie de léciãca (1-. Alquié, (íilr. p. 944).
51. Ver o interessante capitulo "Le psychisme entre psycVinnalisu et neunvscien-
c i ^ " , in. ÍJ7 peaa de 1'âiiie, pp. 10,5-183, Ver ij;ualmente, sobre essa quc-stão, G ,
FiOídVAi, " I .ogos pathique et vie morale". in. Figures de Ia lalioimlite, pp. 162-179,
52. Sobre as "ciências formais" ver J, I . A O I Í I M Í I , Uarlicidatiou du seus I: diseours
scieulifique el parolc de Ia foi. Paris, Cerf, 1984, pp. 26-30,
53. Essa divisão é proposta por J. l > a d r i c T e , Liirlieulatiou du seus. pp. 30- 50;
"Sciences", Eiicyclopacdia Uuiversalis, 14, pp. 752-757.
54. Ver Aiitrojiologia Filosófica, I I , pp. 9-48.
55. Ermeiieuciu - interpretar. A designação mais u s a d a J a de "ciências huma-
nas" o u na terminologia de W. I)ii iiiiY. "ciências do Espírito" (Gostcswissetts-
chaflcn).
56. História reconstituída magislralmente por G , G I J S I X J H I ' na sua obra mo-
numeiitil /íS scieuces Immames cl lii pnisee txcideiitnie, 12 vols,, Faris, Payof, 1966 segs,
57. Ver a penetrante análise de ). LAomf.HF, LArliculalioii du seus, I , pp. 40-48
58. Ver uma sucinta visão des.ses problemas em Aulrojwlogia Filosófica 1, pp,
14-17,
59. Assim Hegel apresenta a Ciência da [jigica na Introdução a essa obra (Wcike,
ed. Moldenhauer-Michel, 5, p. 61), U m comenlário importante a essas páginas
ê o de André Do/, Hegel et les prohlèiiies íradilioiinels de 1'Onltihigie. Paris, Vrin,
1987, pp. 13-34.
60. Foi o que procuramos mostrar no ensaio "Fílosi)fia e Cultura n a tradição
ocidental", SiiiU-se 63 (1993): 5.3,3-578,
61. Na sua obra Foi et disccrnenient phdosoplüque, cil., A. LiVNAFto arlicula Filo-
sofia e Teologia segundo três caminhos, o cosmológico, o antropológico e o
metafísico, inspirando-se nos três silogismos hegelianus no final da Enciclopédia

82 Síntese Nono Fose, Belo Horiziinl,'.. v. 22, n. 68. 1995


(ver Cl artigo "Filosofia o Cultura..." p p . SW-.Síi.^) q u e tem respectivamente
como meio-termo a Natureza, o Espírito e o l.ogos. Léonard propõe-se recu-
perar na dimensão transcendente do Ser, o Fogos que, em liegel, desdobra-
s e na pura imanência do lógico. Trata-se d e uma tenlaliva original, que s e
prolonga no campo d a i2tica com o l i v r o l£S fondoneiús de Ia Morale: asai
d'c'düqiie i>hilosoi>ldqiie gáitírale, Paris, Cerf, 1991.
62. A calegiiria de "visão do m u n d o " corrL'spnnde a d e "imagem do m u n d o "
{Wclllidd); ver a conferência d e M . H L I O I X ; C ; Í K , " D i e / e i l dc-s Wellbildes", i n .
Hol:iiK'ge, Frankfurt M., V. Kloslermann, 3 e d . I V ^ ? , p p . 69-104, que p<)rúm
pressupõe u m conceito d e Metafísica a nosso ver discutível.
63. Sobre o "irracionalismo" v e r as penetrantes reflexões do ensaio jã citado
d e H . S < : H \ Á I J I : I H A C H "Uber Irrationalitat und Irralionalismus". O irracionalismo
romântico, tal como se manifesta nos fins do século X V l l l , no momento em
que Kant decrela o fim d a Metafísica, é uma atitude espiritual típica do clima
intelectual criado pela raz.ão moderna.
64. Ver Escritos dc Filosofia II : Ética e Cidtiira. p p . 43-61.
65. Ver, a e s s e propósito, H . C. LIM.^ V A Z . "Plalào revisilado: Elica o Metafísica
nas ongens platônicas", Sinlese 61 (1993): lHl-197.
66. Trata-se da célebre morale par profisioii que Descartes propõe n a l l l a . parte
d o Discurso do Mctodo {Oeuvrcs philosophiques, óó. Alquié 1, pp, 591-598),
67. A Eliiica more geométrico deiuonstrala. de B . i>i l•:sl'l^oz^, é uma tentativa
radical de superação do dualismo sujeito - Natureza pela afirmação da sua
identidade no Absoluto imamenfe a ambos: Deus sive Naliira.
68. Ver Escritos dc lilosofui II, Ética e Cultura, p p . 16-21. Essa questão é tratada
magistralmente no capítulo "Grundbegriffe Sitliiclikeit", de O. HÓI-FR, Etliik
und Polilik: Crumiinodelle und Probleine der praUisclien Philosophie, Frankfurt M„
Suhrkamp. 1979, pp. 281-310.
69. Sobre o ocaso d a virtude na Ètíca moderna ver A, MACIVJIVIÍI', Aftcr Virtuc,
Indiana, Universily of Nutre Dame Press, 1981, e /iisl/fn de quem? Qual racio-
nalidade?. (Ir. brasileira M . Pimenta), São Paulo. I.iiyola, 1991, p p . 193-200; ver
tamlx'm. H . C. I.r\iA V A / , Escritos dc Filosofia I I . Úica cCutIiira. pp. 111-118; ibid.
Anexo III "Elica u polílica" pp. 257-262.
70. Ver P. B A I J M A N N , "Hobbes u n d die praklische 1'hilosiiphie der Neu/.eit", i n .
Einfülirung in die praklische Philosophie, SlultgarI, Frommann-Holzb(H>g, 1977,
pp. 23-4o!
71. Ver P. A i i i i / O N , "Hthics, Hislory of..." in, l.ncyclopaedia of Philosophy (P,
Edwards) I I I , p, 90,
72. Ver H. C. I.IMA V A / , Antropologia Filosófica I , p. 86; R. Polin, Politique el
Philosophie chez Thomas Hobbes, 2. éd., Paris, V r i n , 1977, p p . 1-20.
73. Ver Grundlegung der Metaphi/sik der Siticn, Vorrede (ed. Weischedel, Insel
Verlag, IV, pp, 11-17),
74. Ver H . C. LIMA VAZ. Exrilos de Filosofia I I , Éiica c Cidlura, pp. 70-73; 111-118.
75. N o sentido hegeliano, o u seja, c o m o "reino da liberdade realizada", que
tem suas figuras históricas nas vicissitudes d o ethos e sua iifciii n o s momentos
dialéticos d l ) Espírito objetivo. Ver Grundtinien der Philosophie des Reclits, p a r .
1 a 4 {Werke. e d , Moldenhauer-Michel. 7, p p , 29-49,),
76. Ver "Filosofia e Cultura na tradição ocidenlal", p p . 560-561.

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22. n. 68. 1995 83


77. Ver R F I N F R W I . W M I R , Uniivrsalisieniiig in der f.tliik: Analyse, Kriíik und
Rekon$lruklioii cíltisclicr Ralioiialilãlsaiis\iruclie. I-nnkfurf .M., Suhrkamp, I9S0 (vi-r
pp. 441-448 a vasta b i b i logra fia sobre <jsse lema nn literatura ética contem pi>rânea).
78. A menos qoe postulemos uma correspondência estrila enlre o Ser em si e
o ser objeto da experiência, o que nem o mais fiel empirista ousa fazer, pois
ao discorrer sobre a experiência ele necessariamente traascende seu objete», ao
menos no plano lógico.
79. Ver R. SrAi:MASi\, GUick und Wohhmllai: Vcrsuch übcr Ethik. Sluilgarl. Klett-
Cotla, 1989, p. 11. Uma tradução brasileira dessa obra imporlanie eslã sendo
preparada para a coleção "Miosofia", ed, l.oyola, São l'auio.
80. Ver S, TOMÁS OI. AyuiNu: redirc nd essfiiíiiini SIMIII nílul csl idiud qunm rcni
subsislvre in scipsa, I , q. 14, a. 2 ad I m , Ver, a proiVisilo. o profundo ensaio de
B, Welte, " Z u m Seinsbegriff des Thomas von A q u i n " , i n , Anf der Spur des
Lwigrn, Friburgo B., Herder, I9tS5, pp, 17ll-19(),
81. Sobre a noção de "estrutura de pensamento" ver A. i)r MI.KAIÍ, /. Tnjvu
de Ia phihsopliie nie'diévale. Leiden, Brill. 1991, pp. 9-15.
82. Ver o interessante artigo de Bi N I F'i YVMII K O , "Fsboço de uma Ftica aplicável
ao desenvolvimento sustentável: Aristóteles, Foucault e a phrónesis progres-
siva", Sinlese 66 (1994): 337-352,
83. Sobre a significação e as aptinas da chamada Ftica "procedural" (termo
inexistente em português), ou "Elica do procedimento consultivo" derivada
da ética da responsabilidade" de M , W F H F K e formulada sobretudo por John
Rawls, ver o lúcido artigo de J, L . B K L < . U F > , " L ' E t h i q u e dans un monde
dc^'nchanté", Rci'uc Tlioiiiisle 94 (1994): 195-210. Sobre a situação aluai da
Ética, sua relação com a Elica clá.s.sica e os problemas da Efica fundamenlal na
modernidade, mas numa perspectiva diferente da que aqui adolami>s, ver
C M A K L . L S L.ARMom Moderidiccl Morale, Paris, P U F , 1993.

84. Sobre a natureza da razão ética segundo Aristóteles, ver I I , C, L I M A V A Z ,


Escrilos de Filosofia I I , D i o i c Cultura, pp, 118-126, Uma discussão magistral das
formas de racionalidade ética hoje dominantes em R, Spaemann, Cliick und
Wolduvilcn, pp. 157-238.
85. Ver o excelente capitulo sobre a consciência moral A. LÍONAIÍD, Lc fondemenl
de Ia morale: essai d'étliiqiie philosophique génêrale, pp. 123-248. F também o l i v r o
recente e oportuno de P. VAI.A[JIIIÍ, Úogc de Ia conscicnce. Paris, Seuil, 1994.
86. Ver J. B i i i i i i ) O k \ íorg.) Das Oewissen in der Diskussion, Harmstadt,
Wissenschaftliche íSuchgeseUschafl, 1976; Hans Wemer, "Das Cewissen im
Spiegel der philosophischen Literatur (1945-1976)" Phihsophiiches jiihrbucli 90
(1983); 168-184,
87. Ver H , C, LIMA V A / , Escrilos de Filosofia II , F.tica e Cultura, pp. 58-59,

88. Ver R. SCAI.MAW, Clück und Wohlwollcn. p. 11.

89. Além das obras de Léonard e Spaemann já citadas, ver o belo artigo de
Vrnomo PÜSSVNII, "Ética e Ontologia", Giornale di Metafísica (nuova serie) XV
(1993): 441-452.

Endereço do autor:
Av, Dr, Cristiano Guim.irSes. 3127
31720-300 — Belo Horizonte — M G

64 I Sinlese Nova Fase. Belo Horizonte, c . 22. n. 68. 1995

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