Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Só G e ra ld M e s s a d ié , c o m su a e ru d iç ã o e a m p la v is ã o , c o m s u a
s e n s ib ilid a d e e seu s a b e r e n c ic lo p é d ic o , p o d e ria e m p re e n d e
r u m a in v e s tig a ç ã o c o m o e s ta , in ig u a lá v e l, q u e p e rs c ru ta as g
ra n d e s c iv iliz a ç õ e s em su a re je iç ã o s e c re ta e c o m u m d e s u a s o
rig e n s e da a lte r id a d e . Da G ré c ia e d e R o m a à E u ro p a d o s to ta lita
r is m o s , p a s s a n d o p e la Id a d e M é d ia , v ã o -s e d e s v e n d a n d o os
trê s m a is im p o r ta n te s a n ti- s e m itis m o s q u e o b s e d a m a c o n s c
iê n c ia c o n te m p o râ n e a e q u e são a q u i d e c ifra d o s e m s u a s s in g
u la r id a d e s .
C o n tra to d a s as le itu ra s in c o m p le ta s ou p a rc ia is , lo n g e d a s
e x p lic a ç õ e s re d u to ra s e ta m b é m lo n g e d o s s im p le s re c e n s e a
men
ISBN 978-85-286-1010-9
m e s m o , seu m e lh o r a n tíd o to .
Q ual a im p o rtâ n c ia de um a h is tó ria g e ra l do
a n ti-s e m itis m o ?
H istó ria ?
d u ra n te m a is de d o is m ilé n io s
com sua e ru d iç ã o
ro m a n o , c ris tã o e m oderno .
ju d a ísm o te ria sido, pela p rim e ira vez na H istória, a rrancar a d ivin d a d e
do im aginário hum ano: o poder suprem o do U niverso não m ais podia ser co n
ce b id o , nem
d ív id a fu n d a m e n ta l com o ju d a ís m o , o c o n c e ito do
a n ti-s e m itis m o .
>
caso de Israel).
E n fim , neste livro de fá c il acesso e c h e io de im p o rta n te s referências, o
le ito r co m u m é apresenta do a um a história do a n ti-s e m itis m o que te m a
natureza de um a
com m ais de 2 0 m il e xe m p la re s v e n d id o s.
GERALD MESSADIÉ
HISTÓRIA GERAL
DO ANTI-SEMITISMO
2a edição
Tradução
Rejane Janowitzer
B
BERTRAND BRASIL
Copyright © 1999, Editions Jean-Claude Lat ès
Editoração: DFL
2010
Impresso no Brasil
Prínted in Brazil
C D D -909.04924
03-1041
CDU-94 (569.4)
Introdução................................................................................................ 7
I. O ANTI-SEMITISMO PRÉ-CRISTÃO
perversos da Septuaginta......................................................... 52
da história................................................................................ 73
I . O ANTIJUDAÍSMO E O
ANTI-SEMITISMO CRISTÃOS
1. O caso Saulo................................................................................107
I I. O ANTI-SEMITISMO NACIONALISTA
4. À guisa de memorial....................................................................400
INTRODUÇÃO
mesmo seus perseguidores, sabe por quê. Nem os cristãos, que ao final
una e indivisível. Uma “raça pura” seria uma raça de cretinos, e os partidários do
conceito em questão talvez até tivessem razão em sustentar que eram de “raça
pura”.. Ninguém conseguiu apresentar o começo de uma
existe há cerca de dois mil anos, foi a causa de milhões de mortes, e ainda se
quer fazer crer que seus representantes mais virulentos, os nazistas, foram
justamente os que não fizeram nenhum mal aos judeus! A vacuidade da tese
justifica por si só um dar de ombros.
Pensar que o passageiro a nosso lado no metrô pode ser um novo Hitler
dedicado a afastar. Ora, toda pessoa que se debruça sobre as sevícias que
às raias da loucura assassina, mas o hor or bestial de Pol Pot, Ieng Sary,
Passemos por cima da contradição histórica que atribui aos judeus a culpa de
suas próprias expulsões, quando o que eles conseguiram foi justamente viver
longe de sua terra natal. O ponto principal é o seguinte: quem diz
“nacionalidade” diz “nação”, e a terceira parte destas páginas
decorrer das duas guerras mundiais. Para outros, pareceria justificado por
uma constatação do horror, o que não faz senão encobrir o enigma, seja
obra dirigida por Poliakov, condiz com uma visão desesperadamente trágica da
história. Tantos horrores turvam o espírito e deixam-no imerso em nauseante
incredulidade.
das atrocidades infligidas aos judeus durante mais de dois milénios. Além
Sabe-se bastante bem que “teorias são o que pensam os outros”, mas
judeus nos campos porque eram católicos, que a Igreja Católica sabia disso e
reagiu tanto quanto pôde ao nazismo. Pio XII, em plena noite negra da Segunda
Guerra Mundial, denunciou de fato o nazismo, publicamente.4 O cristianismo
certamente perseguiu o judaísmo e os judeus de maneira infame, e isso está
exposto nestas páginas, sem complacência.
Ora, compreender é necessário e até mesmo vital: é o que nos permite ter
esperança. Procurei e não encontrei uma chave nas obras sobre a questão, ainda
que elas sejam abundantes e competentes. A razão me
judeu.
14
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO
sentido moderno no mundo greco-romano, pelo menos não até o choque com o
judaísmo. A magistral contribuição do judaísmo a um mundo abarrotado de
estátuas, amuletos e fábulas foi ter, pela primeira vez na
o poder supremo do universo não podia nem ser concebido, nem descrito, nem
nomeado. Ora, por causa de proposições longinquamente aparentadas, dois
grandes filósofos gregos, Anaxágoras e Protágoras, foram acusados de
impiedade e banidos de Atenas no século V A Cidade, grega
dos judeus das cidades mediter âneas em que Paulo Apóstolo ia pregar a
nova fé (e o caráter cismático das correntes cristãs que também recusaram a
filiação divina). Os judeus não voltaram atrás, e os cristãos, tão logo investidos
de poder temporal, no início do século IV os tacharam por sua
força cada vez maior por toda a Europa, ao longo do século XIX e depois
INTRODUÇÃO
15
no século XX, até a Shoah. Não teve mais fundamentos religiosos, nada
Nas três épocas, o sopro que atiçou a crueldade foi de fato o sentimento
identitário. Imperialista, religioso, mais tarde nacionalista, não foi, contudo,
sempre o mesmo, mas em suas três formas chocou-se sempre
Assim, ninguém mais pratica a religião dos gregos, dos incas, ou dos
babilónios. A honra e a coragem dos judeus foi ter resistido a uma tempestade
ciclônica que durou 23 séculos. Por isso as perseguições.
ção”? E como não achar que uma simples exortação, ainda mais tão tardia, pode
ser suficiente para essa “purificação”? Somente a história pode apaziguar os
espíritos, parece-me.
uma vez que os judeus não são os únicos semitas, mas com o tempo o
Ora, se a mim parece dever ser aplicada às perseguições dos judeus pelos
cultural geral ao conjunto dos judeus a partir de uma certa época, parece-
nos primeiros séculos de nossa era, que seriam mais bem definidas como
Thesis and Historical Truth. — Owl Book, Henry Holt and Company, New
York, 1998.
necessidade de examiná-lo.
nem a história esclarecem. Pode-se cogitar que tenha sido para lá encontrar outra
religião: de Ur até Haran, primeira etapa dos mais célebres emigrantes da
história, reinava o mesmo casal divino: Sin, o deus-lua,
Terá teria sido vítima está excluída: Javé ainda não aparecera para seu
filho Abraão e, portanto, não seria pelo fato de ter ele adorado um deus
22
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO
estrangeiro que Abraão se exilara. Além disso, ele e seu clã não parecem
a outros deuses, e não àquele que se iria tornar o Deus judeu, como foi
um país pode ser ar ancado aos humanos. Nada se sabe sobre a reação
dos cananeus quando Abraão construiu um altar para esse deus que não
modo, sua reação não foi hostil, uma vez que Abraão construiu mais um
DAS ORIGENS AO ÊXODO
23
altar, entre Bethel e Ai. E, assim como tinha parado no carvalho de Moré,
lo uns quatro séculos mais tarde.6 Mesmo que sob uma forma desvirtuada e por
caminhos próprios, os filósofos gregos iriam igualmente chegar lá uns seis ou
sete séculos depois. O monoteísmo não seria exclusivo dos
é que o Deus judeu foi o primeiro da história a não ter nome nem rosto,
Nós não conhecemos Abraão a não ser pelo primeiro dos cinco livros
do Pentateuco. Sua aventura foi transcrita quatro séculos mais tarde pela
própria mão de Moisés, portanto no século XIII antes de nossa era, e a
tradição, por sinal contestada pelos exegetas modernos, diz que o texto
do Pentateuco nos teria sido transmitido com exatidão desde então. Mas
obrigatoriamente os deuses dos pais. Nem como ele acabou por se tomar
sedentarizaram-se, o mais das vezes à beira dos rios, já que a água é essencial à
vida dos homens, de seus animais e das plantas que cultivam. Então a Ter a
começa a parecer imensa, e o instinto de descoberta está vivo dentro do coração
dos humanos. Continuará assim durante 25 séculos até Cristóvão Colombo (ele
mesmo judeu) e mesmo mais tarde, pois esse
instinto enviará o homem até a Lua sem nenhum objetivo imediato a não
mas saibam que o mundo habitável se estende diante de vocês como uma
mais tarde os judeus, partilharão com Abraão. Ela contradiz certas interpretações
contemporâneas, que consideram o judaísmo inseparável do nacionalismo.8
Além da dispersão (ou diâspora) dos séculos que precederam o cristianismo,
outra prova disso é que, 20 séculos mais tarde, depois de terem perdido
Jerusalém e sua autonomia territorial, os judeus
possível que tenham ido também mais além.9 No ano 300 chegaram ainda mais
longe: no reino de Axum, na atual Etiópia, e no reino judeu de Himiar, na ponta
sul da península arábica, perto de Aden. Estavam presentes de Ting (Tânger),
sobre a ponta do atual estreito de Gibraltar, até Cartago, assim como do outro
lado do Mediterrâneo. Teriam, pois,
Mais tarde, bem mais tarde, tão logo a humanidade se tivesse tornado ciente de
que tinha apenas a Ter a, nada mais do que a Terra como campo de exploração, o
espírito de investigação dos judeus se iria dedicar
Karl Marx, iria descrever as relações entre o capital e o trabalho em termos até
então desconhecidos pela filosofia, mudando a história de um século inteiro, à
maneira do profeta Samuel. Henri Bergson, outro judeu
mais Jerusalém a não ser de maneira mística, pois Jerusalém não está
mais dentro de Jerusalém, o que eles sabem com dor e resignação. Essa
invasões indo-arianas, como mais tarde as dos celtas, dos citas, dos partos
repugnasse: no século III antes de nossa era, por exemplo, seus estabelecimentos
em Hircânia, ao sul do mar Cáspio, na Cirenaica, na Lídia ou ao longo das rotas
comerciais do atual Hedjaz10 contavam com
migração quase metafísica. O que foi ele fazer no Egito? A fome que
para deixar pastarem seus rebanhos nas terras férteis do Delta quando o
Negev estava muito árido, ou por terem sido expulsas por outros pas-
como muitos outros pastores. Sua mulher, Sara, que fez passar por sua
afirmando que Abraão teria sido favorecido pela sorte pois, ao ser expulso pelo
monarca tão logo informado do subterfúgio, já se havia tomado possuidor de
vastos rebanhos, de ouro e de prata.12 Mas nada estabelece
detestados pelos egípcios, que alegaram mais tarde terem eles destruído
seguiram, fosse porque falavam a mesma língua dos hicsos, fosse porque
faraós Set I e seu filho Ramsés II manifestaram em relação aos judeus, tal
egípcia, a não ser pelo fato de terem sido aliados declarados dos ocupantes,
que provavelmente saquearam o panteão egípcio e introduziram o deus
Set, por exemplo. Mas é preciso esclarecer que, na época, a religião não
mais tarde: era mais do que tudo a expressão de uma cultura e de um povo.
A segunda razão, determinante, é que a religião hebraica ainda não tinha sido
fundada. Os Dez Mandamentos só seriam entregues a Moisés no século XI I.
Ora, durante os quatro séculos de presença dos hebreus no
mais tarde, quando aquela religião já havia sido instituída e fixada por ritos,
inferior ao qual foram reduzidos não foi, pois, anti-semitismo no sentido comum
e moderno da palavra. Eles sofreram no Egito por razões
DAS ORIGENS AO ÊXODO
29
história das religiões. Ele é o Inominável, como ficou evidente desde sua
e Eloha não são nomes, como uma certa cultura contemporânea e antiga
também tende a fazer crer: são apenas atributos secundários de Sua inatingível
natureza. Javé é uma derivação fonética da declaração divina a Moisés: Ehyeh,
“Eu sou”, que dará a forma da terceira pessoa do presente,
século X antes de nossa era) até a conquista da Palestina pelos persas, e até
sua helenização sob a égide dos ptolomeus a partir de 305 antes de nossa
najudéia aquemênida, e a Lei judaica foi confirmada como lei real para
os judeus da Babilónia. Por volta do final do terceiro século antes de nossa era, o
rei selêucida Antíoco III reconfirmou o direito dos judeus de
judeus não tinham guardado uma lembrança tão odiosa do Egito a ponto
de não querer voltar para lá. E aquele também não era um país que os
ilha de Elefantina em 1901 e 1904 indicam que ali existiu “uma comunidade
judaica que provavelmente deixou a Palestina e instalou-se no Egito no século
VII a.C., no tempo de Psamético I, até por volta do século IV a.C.”:18
comunidade de mercenários que, pode-se supor, teriam deixado a Palestina pelo
fato de ela estar na ocasião sob domínio assírio19
Fato notável: a Torá foi elevada ao nível de lei cívica grega, nomospolitikos,
ostracismo permanente.
antes de nossa era, sob o reinado do rei Dario II, que então ocupava o
judeus teriam até mesmo praticado certo sincretismo dos cultos, identificando
Yaho ao grande deus dos cultos aramaicos de Syena, Bethel, a despeito das
admoestações veementes de Jeremias cerca de 170 anos
antes.23
1. Génesis, XI, 32, fonte P. O Pentateuco samaritano diz, por sua vez, que
Terá morreu com 145 anos, o que é menos exagerado, ainda que não mais
plausível em termos modernos. É preciso lembrar que o simbolismo bíblico
não atribuía aos números o mesmo valor que a aritmética laica.
tas poderem já existir nessa época, uma vez que o Antigo Testamento os
indica como descendentes de Benjamim, filho de Jacó, e, portanto, bisneto
de Abraão. A evidência arqueológica parece contudo conclusiva: esses
aliados do rei de Mari figuram nas tábuas
de Mari na época do rei Iahdun-Lim, ou seja, no século XIX a.C.. Cf. André
Parrot,
6. Akenaton, cujo nome original era Amenófís IV, reinou de 1353 a 1335
a.C.
Supondo que, sob Set I (que começou seu reinado em 1293) e sob Ramsés II,
os judeus
ocorrido no século XVII a.C., ou seja, ao mesmo tempo que a dos invasores
hicsos. Os
país, “o país de Gochen”, em 1650 a.C. Como Jacó era neto de Abraão, seria
preciso
recuar três gerações, ou seja, um século, a época em que teria vivido seu
ancestral. O que
significa dizer que Abraão teria vivido no século XVIII a.C. e que o
monoteísmo judaico
8. Em sua obra sobre o judaísmo, Die religiose Situation der Zeit, das
Judentum (Piper
estrutura universal de ‘um Deus, um rei, um país’, como nas outras religiões
semíticas
Martírio de Isaías, III, 2). Johnson (História dos judeus, op. cit.) menciona a
descoberta em Nipur, cidade de Média, de 650 tábuas gravadas em escrita
cuneiforme redigidas em 450
e 403 a.C., contendo uma longa lista de nomes, dos quais 8% judeus.
Ezequiel residiu
10. Nas declarações que o Génesis atribui a Deus, existem três que parecem
contraditórias: terminado o Dilúvio, Ele dá a entender a Noé que ele e seus
descendentes deverão ser fecundos e multiplicar-se sobre a Terra (IX, 7),
depois declara a Abraão que Ele lhe concederá os territórios que vão “do
Nilo ao Eufrates” (XV, 18-21); enfim, declara
sob Ramsés II, portanto no século XIII a.C. (Cf. Moisés, do autor, 2 vol., J.
Cl. Lat ès,
menos em suas linhas gerais. Mas uma prova da aversão que os egípcios lhes
desenvolveram é o fato de terem, durante o Império Médio, dado o nome de
um faraó hieso, Apopis, à grande serpente infernal que ameaçava de caos o
mundo. Em compensação os egípcios
adotaram no Império Novo um deus de origem hiesa, Set, que o faraó Set I
chegou até a
adotar como nome.
34
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO
15. Gên. XLVI, 6-7; XLVII, 5-6,10-12 e 27. O historiador egípcio Manethon,
do
século III a.C., confundiu, por sinal sem razão, os hebreus com os hicsos.
19. Foi, pois, muito provavelmente antes de o rei Josias haver retomado o
controle
Errance, 1991).
22. Papyrus Petrie III 21g e Papyrus de Gourob 2, citados por J. M.
Modrjewski, id.
23. Jer. XLIV. Fica-se sabendo que uma deusa, Anat, era parte de um grupo
ao qual
25. O templo de Elefantina parece ter perdurado, uma vez que a colónia
judia local
não foi embora quando o faraó Amirteu II retomou dos persas, em 404 a.C.,
o controle
recebidas.
judeus.
Bode”,3 numa alusão ao epíteto “o homem dos dois chifres” ou dois jatos
Moisés).
não poderia fazer menos do que estes últimos: o direito foi-lhes, pois,
a sua proteção indireta que a Tora foi traduzida nesta cidade (em 270-250
Adiáspora foi, pois, favorecida por Alexandre: havia judeus não apenas no Egito,
na Palestina e em suas vizinhanças, Fenícia, Síria, Síria Meridional, mas também
na Ásia Menor, Panfilia, Cilicia, Bitínia, Ponto,
assim como na Grécia, Tes ália, Beócia, Macedônia, Eólia, Ática, Argos,
regiões, uma vez que o grego era ao mesmo tempo a língua ecuménica
em um momento que pode ser situado entre o século III a.C. e o século
século III a.C., a aparente harmonia geral na qual os judeus viviam com
cristão.
Antíoco IV (175-164 a.C.). Ele depôs o grande sacerdote Onias III e vendeu seu
cargo ao irmão deste, Jasão (outra helenização de Josué), e, em seguida, colocou
Jerusalém sob a tutela de soldados sírios. Jasão aboliu o
sob a influência do helenismo. A prova disso era que uma parte dos
Mosaica, mas sofria ainda assim seus rigores, colocara-se do lado dos
Dois anos mais tarde, Antíoco substituiu Jasão por Menelau, ainda
universal, e o Deus de Israel seria o mesmo dos gregos. Foi demais para
anos mais tarde, o novo rei selêucida Antíoco V atribuiu a culpa da insurreição
ao grande sacerdote Menelau e mandou executá-lo. Iniciou entendimentos com a
família dos asmonianos, que reinava em Jerusalém e na maior parte da Judéia.
Mas os asmonianos tinham consciência de seu
com Roma em 161 antes de nossa era, reconhecendo que ajudéia era um
acordo com esse ponto, mas não desejavam agravar seus conflitos com
Iduméa ao sul. Quando o último rei dos judeus, Alexandre Janeu, morreu em 76
a.C., legou a seus herdeiros um Estado quase equivalente ao que fora constituído
por David no século X
colocavam-se em pé de igualdade, uma vez que tinha sido a revolta religiosa que
salvara o povo judeu da humilhante sujeição aos gregos.
para que todo o local fosse inundado e ninguém pudesse mais saber onde
sinal, mor eu de uma crise de delirium tremens. Foi esse mesmo Alexandre
rolos da Torá.
Pior: antes de entregar a alma, Alexandre Janeu deixou que começasse uma
guerra civil que durou seis anos e fez 50 mil mortos, como relatou Flavius
Joseph.1
A faísca acesa por Antíoco IVj seguida das loucuras dos últimos reis
nação dos judeus, dado que de todas as nações apenas ela evitava negociar
“Os ancestrais dos judeus tinham sido expulsos do Egito por serem pessoas
ímpias e detestadas pelos deuses”, escrevia Deodoro da Sicília, no século I antes
da era cristã. Ainda mais “generoso”, o historiador acrescentava que os
descendentes dos judeus do Egito “tinham elevado seu ódio à humanidade ao
nível de uma tradição”.12
anti-semita dos mais deslavados, mas ele não foi o primeiro. Um século
antes, Apolônio Molon, um autor cuja obra se perdeu, mas que conhecemos
pelas menções feitas por Joseph em seu tratado Contra Ápio, descreve os judeus
como “ateus e misantropos”.13
mundo tão injusto não poderia perdurar e que Deus iria voltar, em meio
Jubileus, Testamentos dos Doze Patriarcas, Oráculos Sibilinos e outros, são eles
DE ALEXANDRE AO MAL-ENTEND1DO
43
todos textos impregnados de tons apocalípticos e repletos de imprecações
como são esses judeus! Sempre a conspirar contra o mundo dos gentios!
Ora, esses leitores ignoravam que aqueles textos tinham sido produzidos
que fez com que os gregos rejeitassem o judaísmo, com o qual até então
tinham convivido bem (o próprio Aristóteies parece ter rido boa disposi
ção em relação a eles16). Não foi nem mesmo o monoteísmo que os feriu:
haver indicado em outros lugares17 que ela era subjacente na filosofia grega
desde os pré-socráticos, ou seja, antes do século V a.C.; mas a noção de um deus
exclusivamente judeu conspirando com seu povo para o extermínio dos outros,
noção presente tanto no Antigo Testamento quanto nos Escritos
Intertestamentais, só pode ter chocado os gregos e os romanos,
Aristóbulo, brigaram pelo trono. Uma nova guerra civil explodiu, dessa
sacrilégio dos sacrilégios, no Santo dos Santos, cujo acesso até então tinha
impostas pelos romanos foram pesadas: Israel teria que pagar mil talentos, soma
enorme, teria que devolver aos sírios os territórios que lhes tomara, a etnarquia
ou a realeza seria conferida a um leigo e do grande
romana.
condenavam-no à destituição.
curso, achavam que o advento do reino celeste não tardaria e, por isso,
não poderia durar e o Senhor lhe daria fim em breve em meio ao fragor
Apocalipse de João.
mais sangrenta guerra civil do mundo mediterrâneo antigo. Eles ignoravam que
uma religião fundada em nome do mais ilustre dos seus, Jesus, viraria aquela
guerra contra eles, e por muitos séculos. Mas a guerra tinha
dos judeus, que considerava ser possível viver em bons termos com os
Êxodo. Dele é preciso reter apenas o fato de ter existido e tido suficiente
ção de Tácito. Também ele ofereceu sua versão do Exodo, cujo valor não
foi maior do que o das versões de Lisímaco e de Ápio: com a peste grassando no
Egito, o faraó Bocchoris teria recebido do oráculo de Amon a recomendação de
expulsar os judeus para outro país, “pois a nação dos
judeus era odiosa aos deuses”. Devidamente instalados em seu novo país,
Deodoro de Sicília.23
que já sofria de reputação ruim e que não precisava ser aumentada. Pois
48
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO
ele não fora responsável por aquele incêndio. Tácito pertencia à classe
dinastia, que reinou de 720 a 715 antes da era cristã? Se fosse esse o caso,
que tomaram os judeus a partir do século II a.C. não confiáveis aos olhos
dos grégos, mais tarde aos dos romanos, que, por sua vez, passaram a
Joseph) para construir uma ponte entre as duas culturas, que foram condenados
ao fracasso sem remissão. O primeiro, Fílon, em uma tentativa fútil bem como
anacrónica de revisionismo cultural, explicou que
traidor.
DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDI DO
49
Bibliografia e notas críticas
2 .Mac. I,3.
5.Antiquités
por exemplo, chegou até nós. Fato notável: os costumes gregos foram
perpetuados em
algumas grandes cidades até o século II e III da era cristã, bem depois da
queda de
com total certeza. Paul Johnson, em História dos Judeus (Imago Editora,
Rio de Janeiro,
1987), tende, com razão, a atribuí-la a Menelau, pois os reis selêucidas não
tinham ainda
10. Flavius Joseph, Antiquités judaiques, op. cit., XIII, 376. Se forem
descontados os mortos da guerra empreendida por seus dois filhos Hircam e
Aristóbulo, chega-se a umas
100 mil vítimas provocadas pelas duas últimas gerações de asmonianos. Tal
cifra é absurda, assim como muitas outras citadas por Joseph.
13. Flavius Joseph, Contre Apion, trad. H. St. John Thackeray (Loeb
Classical
Library).
ções.
16. Ao menos a se julgar pelo relato que fez a Clearco de Soli, a respeito de
seu
encontro com um judeu na Asia Menor: “Esse homem (...) não só falava
grego, mas tinha
que eu e veio conversar comigo e com outros letrados a fim de sondar nossos
conhecimentos. Mas tendo conhecido muitas pessoas cultas, foi ele que
acabou nos ensinando alguma coisa de original.” (Joseph, Contre Apion, 1
180-181, op. cit.)
Convém lembrar aqui que o nome Essenioi foi introduzido por Joseph
emAntiquités
judaiques, para designar o que parecia ser a corrente dos minim, seitas
heterodoxas do mesmo tipo que a dos banayim, às vezes identificadas aos
hemerobatistas ou Tovélé chaharit, os magharitas, que viviam dentro de
grutas e parecem ter sido aparentados dos terapeutas
etc. Todas essas seitas apresentam traços similares ao que sabemos dos
“essênios”. É
20. The War Scroll, em Florentino Garcia Martinez, The Dead Sea Scrol s
Translated,
24. Cf.. David Dawson, Al egorical Readers and Cultural Revision in Ancient
Alexandria,
da era cristã até o ano 116 da era cristã, em uma expansão fulminante,
tempo dos reis asmonianos. Suas tradições eram bem mais antigas do
leis, a deles tinha sido ditada pelo Senhor em pessoa, e nada devia às que
judeus incluídos, mas não devem ter excedido algumas dezenas. Foram
cidades e uma capital, Jerusalém, que era, porém, uma Cidade Santa e
indivíduo de Seu povo. Em toda parte em que esse povo estivesse, Ele
estava. O judeu não tinha necessidade de se enraizar: trata-se da própria
chave da diáspora, descrita mais acima. Para o romano, o judeu era civi-
chefes.
apenas a Lei e os ritos que a propiciavam. O ser humano era um desvalido diante
de um deus imprevisível. O profeta, detentor de um lugar tão importante na
religião e na cultura hebraicas, era um intercessor de cará-
ter apenas acessório ou, mais precisamente, ele o era em apenas um sentido: a
título de transmissor da vontade divina. Sua função principal era ser o porta-voz
de Yahweh/Eloha e lembrar aos humanos o respeito de
rei judeu, não detinha nenhum poder sacerdotal; eis o porquê da cólera
Mas com os judeus tudo se pas ava diferentemente: os chefes militares gregos ou
romanos só encontravam como interlocutores chefes religiosos cuja religião era
intrinsecamente hostil aos conquistadores. Com eles só se podia estabelecer uma
trégua, jamais a paz. Yahweh não autorizava nenhuma derrota, nenhuma sujeição
de Seu povo, a não ser a título de punição. Para o romano, o judeu era
impossível de ser conquistado;
judeus nunca efetuaram análises como estas nem perceberam suas suti-
lezas. Na Roma da época, não existia nenhuma das disciplinas que permitem
estabelecer um estudo estrutural e comparativo das religiões e das culturas.
Mesmo que alguns dirigentes romanos, familiarizados com
séculos mais tarde, não conhecia a versão grega do livro de Ester, nem o
solidificar a prática linguística dos judeus, que não falavam mais hebreu
humanidade quase inteira porque ela copulava com “os deuses”?8 Então
deus ficara ressentido? E por que aquelas pessoas davam tanta importância a
uma obscura história de família, a de Isaac, cheia de traições, viola
ções e vinganças? Que Deus era aquele que ameaçava aniquilar seu povo,
Ele também não era o criador daquelas vítimas? O que ordenava a Seu
que povo era aquele cujo próprio Deus dizia que era “obstinado” e que a
David, nem a esperança ardente que os inspirava. Eles não compreenderam que a
astúcia era a funda13* de David dos judeus.
A arrogância romana, por sua vez, não se conformava com os costumes judeus,
notadamente com a prática do sabá, a obrigação da circuncisão e a proibição do
porco. Teceram-se quantidades impressionantes de comentários desagradáveis a
respeito desses três costumes.
afirma que o “ter or supersticioso”15 dos judeus foi a causa de sua fraqueza
diante dos romanos na ocasião da tomada de Jerusalém por Pompeu em 63 a.C.
Sem nenhuma restrição a amálgamas, aproximações e “greco-centrismo”,
Plutarco acreditava ver no sabá uma forma derivada dos ritos
dia de repouso, que era meditar sobre as relações do homem com seu
praticavam-na há pelo menos 2.400 anos antes de nossa era, ou seja, bem
distinguir-se dos outros humanos, o que é verdade para eles, mas com
além dos judeus; Pitágoras, no passado, tivera que se submeter a ela antes
de ser autorizado a estudar nos templos egípcios. Como tudo que diz respeito aos
órgãos sexuais, o tema da circuncisão suscitou a verve de satíricos tais como
Marcial, que pressupôs que ela excitaria a apetência sexual e desenvolveria a
verga em proporções monstruosas.17 E, depois dele,
61
por isso, proibiram o consumo de carne de porco mais uma vez por
subúrbios de Roma eram empestados por pocilgas, pois tão logo possuíam um
porco e uma porca os camponeses se precipitavam na direção da grande cidade
para lá instalar uma criação e estabelecer um comércio
Talvez pudessem ter-se adaptado, por bem ou por mal, mas as tradi
ções que os judeus defendiam com unhas e dentes não serviam para aparar
arestas. A imensa maioria dos romanos e de suas forças de ocupação não levava
em conta o que sabia ou tinha ouvido falar sobre o Antigo
Testamento, mas um ponto a ir itava mais do que qualquer outro: a recusa dos
judeus a render homenagem aos deuses dos ocupantes. Para os judeus, as razões
eram simples e claras: seu Deus não podia ser representado sob forma humana, e
Yahweh ou Eloha não era nem Zeus, nem Baal, nem Hélio, nem ninguém mais.
Particularmente blasfematória
senhores?
o deus persa Mitra. Um volume inteiro não seria suficiente para recensear os
sincretismos religiosos antigos. E se tinham sido benéficos para todo o mundo,
por que não para os judeus?
etc., não importando, no fundo, o nome que lhes era dado, uma vez que
séculos antes de nossa era quanto tinha sido para os gregos do século II
gregos, só retiveram do mito judeu aquilo que lhes parecera mais pitoresco ou
bizar o. Assim, ativeram-se exageradamente à história do Veado de Ouro,
deduzindo que os judeus eram hipócritas que praticavam a idolatria “como todo
mundo”.
Resta a questão da “xenofobia” judaica, confirmada por várias passagens da
Septuaginta, sobretudo a proibição do casamento com estrangeiros,
particularmente ofensiva para os não judeus. Estes julgavam que os judeus
tinham desconfiança a seu respeito, o que não era uma constata
63
família.”20
Esses foram, pois, os fatores religiosos que, a partir do século III a.C.,
doentes, que não teria sido realizada sob a direção de Moisés, mas de um
se pode excluir a hipótese, mas não se conhece nem um fato que a prove.
península arábica, fazem pensar que os judeus não eram aves os ao proselitismo.
O que se chamou de “proselitismo” está bem mais próximo da persuasão que os
judeus possam ter praticado e da influência tácita no
caos da república que suas colónias possam ter exercido, na época em que
ção: a república era uma verdadeira feira. “Não nos deixemos enganar
çado e feroz das clas es dominantes: seu projeto de reforma agrária não
até por superstição, e não por seus valores elevados. Eis que chegaram os
os tinham. Mas é provável que, no caso dos judeus, sua importância possa ter
produzido invejosos.
O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O R O M A N O
65
conta de que teriam sido de novo expulsos de Roma no ano 19, pelo
imperador Tibério. Três textos antigos sobre esse assunto foram objeto
antiga, parece ser também, mas apenas à primeira vista, o mais preciso
sobre a proscrição:
Império garantia a liberdade dos cultos. E quem eram aqueles quatro mil
respeito dos homens mais velhos e das mulheres? Seria o caso de entender que
os descendentes de escravos libertos eram os únicos atraídos pelos cultos
orientais? Deles, quantos seriam os adeptos do culto isíaco e
quantos do judaísmo? Seriam eles convertidos propriamente ditos, ou
imaginar sem esforço que, naquela capital já roída por intrigas e rivalidades
frequentemente sangrentas, Tibério tenha decidido livrar-se de todos os orientais,
magos caldeus, adivinhos egípcios de mistérios pitagoristas,
os judeus haviam acor ido a Roma em grande número e que eles convertiam
numerosos cidadãos a seus costumes, ele [Tibério] baniu a maior parte deles.”27
Díon Cássio em seu relato só fala dos judeus, mas, em sua época, a
67
“judeus” devia haver também cristãos, cujo proselitismo era mais ativo.
efeitos.
instituiu ritos até então desconhecidos e contrários aos dos outros mortais. Para
eles é profano tudo o que para nós é sagrado e, inversamente, para eles é
permitido tudo que para nós é abominável (. .) Esses ritos, seja
qual for a maneira pela qual tenham sido introduzidos, têm como justificativa
sua antiguidade, mas as outras instituições, sinistras, vergonhosas, impuseram-se
pela própria razão de sua imoralidade. Os piores criminosos, renegando as
práticas religiosas de seus pais, levam [ao Templo] tributos e oferendas em
dinheiro, o que aumenta a prosperidade dos judeus, e também porque, entre eles,
existe uma lealdade obstinada, uma piedade sempre pronta, mas em relação a
todos os outros o que existe é um ódio igual ao que se tem de um inimigo.”30
A es as duas razões acrescentava-se outra, que era o staíus fiscal particular dos
judeus, e que iria desencadear uma tragédia terrivelmente premonitória.
68
Cf., desse autor, Les dieuxsouverains des Indo-Européens (Gal imard, 1977).
O modelo clássico da tríade é o que Dumézil destacou em outro lugar: “O
Irã fez dos três filhos de Zoroastro o primeiro sacerdote, o primeiro
guerreiro e o primeiro criador de animais-agricultor” (Troisfamil es, em
Mythe et Épopée J, Quarto Gal imard, 1985).
entre as funções de rei e de grande sacerdote parece ter sido apenas de curta
duração, sob
O leitor pode ficar tentado a fazer um paralelo, como por exemplo o que
pode ser
69
iriam se servir de uma tradução grega aproximativa para seus próprios fins
teológicos.
Isaías: “Uma virgem conceberá e dará à luz uma criança e eles a chamarão
de Emanuel.”
seu sentido, com a única diferença que Isaías utilizara a palavra hebraica
almah, que significa uma “mulher jovem”, não necessariamente virgem.
Conhece-se o resultado dessa tradução incorreta...
mais profunda atenção, deparei com certos textos bárbaros, antigos demais
para poderem
ser comparados aos discursos dos gregos, e divinos demais para serem
comparados a seus
erros, e fui conduzido a confiar no que lia, devido à linguagem sem
pretensões literárias,
tempos, quando os filhos dos deuses copulavam com as filhas dos mortais e
filhos eram
9. Ex. XXXIII, 5.
13*. Segundo o relato bíblico, David matou o gigante Golias com o golpe de
uma
14. De Civitae Dei, VI, 11 (The Loeb Classical Library, Harvard University
Press,
seria dedicado a não fazer nada, no que demonstrou sua total ignorância: a
prescrição
maior bom senso agrícola que não pareceu passar pela cabeça desse autor.
Em um tratado igualmente intitulado De Superstitione, Plutarco relatou que
o sabá consistia em cobrir-se de lama, entorpecer-se na imundície, assediar
os deuses com suplicações indevidas e
15. Histoire romaine, XXXVII, 16,3 (The Loeb Classical Library, Harvard
University
16. Circumcision, Enciclopédia Britânica. Por esse texto fica-se sabendo que
o câncer
17. O leitor terá que me perdoar por não insistir em mencionar textos que
beiram
20. Ben Sira, dito “O Siracida”, cujo nome completo era Joshua ben Eleazar
ben
71
Hel enism andJudaism (Xpress Reprints, SCM Press Ltd., Londres, 1996).
21. Vivre et philosopher sous íes Césars (Privat, 1980). Uma tese, segundo a
qual teria
teriam, pois, sido expulsos de Roma sob o pretexto de que seu culto fazia
muito sucesso,
nós pela menção que a ela fizeram dois historiadores bizantinos do século
IV de nossa era,
26. Suetônio, Les Douze Césars, Tibère, XXXVI, 2 vol., trad. J. C. Rolfe (The
Loeb
Londres).
29. Díon Cássio (Histoire romaine, op. cit., LX, 6, 6) opõe-se a Suetônio a
respeito desse ponto, alegando que Cláudio desistira dessa expulsão por
temor de que provocasse
libertados por Ptolomeu I Filadelfo (285-246 a.C.). Não se fez nenhuma menção
às mulheres, nem à questão de que os 30.000 conscritos à
74
por um etnarca que era chefe e ministro das finanças, e tiveram seus
(Alexandria contava com cinco bair os, cada um designado por uma das
Alexander eram uma família de banqueiros, o que, para a época, deve ser
75
Roma eram hostis aos judeus, pelo menos aos ricos. Nero, vítima da
aos judeus, pelo menos àqueles, e não se pode descartar a hipótese de ter
vimos.
mas fiéis à sua fé, assim como para os fariseus de Jerusalém e o alto sacerdócio
saduceu, a religião não deveria mais ser assimilada ao nacionalismo: inseridos na
história, estimavam que a religião deveria ser justamente ar ancada da história,
pelo fato de ela ser imanente. Para eles, o judaísmo
tinha tudo a perder nas convulsões das batalhas, das guer as de sucessão
Deus interior de Moisés não era mais o Deus dos exércitos. A religião
judaica era transcendente, universal e eterna. Não pensavam estar traindo Deus
quando serviam às potências do momento, no caso os romanos.
Alguns dentre eles, como era exatamente o caso de Fílon, não estavam se
ocor erá.
Avaliaremos nos capítulos posteriores o peso dessa dissensão, até o século XX.
O triplo isolamento, geográfico, civil e cultural, dessa massa de
judeus foi determinante para a aversão crescente dos helenos e dos egípcios em
relação a eles: helenos e egípcios não a distinguiam, ou fingiam não distinguir,
da minoria de judeus letrados passados para o lado de
Roma, como Fílon, Joseph ou os reis judeus; estes últimos eram judeus
de exceção, quase não mais judeus. Quanto aos primeiros, não só não
76
tinham acesso aos direitos da cidade como estavam efetivamente excluídos dela;
eram essencialmente estrangeiros. “Os egípcios foram os primeiros a nos
caluniar”, escreveu Flavius Joseph, paradoxalmente reivindicando seu
pertencimento a uma coletividade da qual denunciou com veemência os
elementos mais ativos. Verdade seja dita, não se sabe o que
Joseph entendia por “egípcios”. Eram as pessoas do Egito em seu conjunto? Isso
teria incluído os helenos e os nativos egípcios, pois estes últimos não haviam
desaparecido: o Egito continuava como sempre povoado de
valor, o que deveria conduzi-los mais tarde a uma série de rebeliões contra os
ptolomeus. Acontece que a maioria dos judeus da Palestina e do Egito era, por
sua vez, favorável aos selêucidas; chegara até mesmo a
na Palestina, correndo em reforço aos sírios que se batiam nas fileiras dos
entregues ao Templo. Seu status civil, ainda por cima, autorizava-os a não
pelo poder.
77
contra a mãe de Calígula, em decor ência da qual havia sido morta: tamanha
falta com toda a certeza iria atrair sobre ele as sevícias do novo imperador.
Quando Flaccus, ainda por cima, ficou sabendo que Calígula tinha mandado
executar seu próprio neto e em seguida o conselheiro de
Foi então que decidiu aliar-se aos alexandrinos: tinham apreciado sua
direta, Brindisi-Tiro. Esse trajeto era, com efeito, longo e perigoso; seria
melhor ir direto até Alexandria e, lá, esperar ventos propícios para chegar
a Tiro.
Flaccus sentiu-se ofendido e ultrajado por não ter sido visitado pelo
aos judeus. Flaccus começou por proibir o sabá, o que era pura provoca
de calúnias contra Agripa, bem como contra Fílon e sua família, para
idolatria.
Os judeus reagiram fechando suas sinagogas. Flaccus publicou um
Aguns se puseram a gritar que Agripa tinha vindo de fato tomar posse da
pela multidão em cortejo até o Ginásio, percor endo as ruas com bufonarias e
imprecações.
79
velhos, mulheres, crianças de colo, sem distinção de idade nem de condição. Foi
o primeiro pogrom da história. O número de vítimas não foi citado por nenhum
autor.5 Esse desencadeamento insensato de loucura
assassina combina mal com uma certa imagem do refinamento helenísti-
Dois anos mais tarde, no início do ano 40, alarmados com a campanha que anti-
semitas como Apion faziam junto a Calígula para reduzir os judeus praticamente
à escravidão ou expulsá-los da cidade, e esperando
missão chefiada por Fílon. Calígula decidira mandar erigir uma estátua
preciso dizer que Isidoros agravou seu caso ao tentar desacreditar o próprio
imperador: chamou-o de filho de judeu8..
Mesmo que Cláudio tenha restaurado de fato o status dos judeus, até
81
“de base” era simples: para os romanos, a cultura romana era a mais rica
assim como ao ódio ir acional e ao assas inato contra os judeus, sem que
romano: também a filosofia não tinha ainda uma prer ogativa legal. “Os
83
1. Flavius Joseph (La Guerre deJuifs, I , 487 e Contre Apion, II, 35) quis dar
a impressão de que os judeus teriam vindo para Alexandria por sua livre
vontade e em pé de igualdade com outros judeus. Mas André Bemand
destaca, emAIexandrie la Grande (Arthaud, 1966), “duas importantes fontes
da história helenfstica, Aristeu e Hecateu, nada dizem
Flavius Joseph relata nas Antiquités judaiques (XIV, 188) que César mandou
erguer
Mas parece que esse direito lhes teria sido retirado, como indica sem
ambiguidade o
falso, tanto que o mesmo teor pode ser encontrado, em sua essência, em
Flavius Joseph
muro”, alegando que só as passagens relativas aos judeus eram falsas, mas
essa meia medida também não resiste a um exame.
preso pouco tempo depois por ordem de Calígula, por um centurião enviado
às pressas
de Roma; seus bens foram confiscados, e ele foi exilado na ilha grega de
Andros, onde foi
condenado à morte alguns meses mais tarde, sempre por ordem de Calígula.
Sua execu
judia a Calígula.
Significa dizer que Cláudio não tinha simpatia por Isidoros. Este último era,
ainda por
cima, de uma insolência rara por saber que dispunha de apoios no Senado.
Mas, diante da
sem o que teria corrido o risco, ele próprio, de ser acusado de negligência.
Cercado por seu Conselho organizou, pois, uma audiência do tribunal nos
jardins
não era escravo nem filho de corista, “mas ginasiarca da célebre cidade de
Alexandria.
(Les Juifs d’Égypte de Ramsès II à Hadrien, op. cit.), mas “filho de judia” era
ainda pior em
Roma: queria dizer “bastardo”. Adivinha-se que nem Isidoro, nem Lampon
chegaram a
O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA
85
9. Atos, XVIII,2.
para pior.
aos romanos, tiveram que lutar contra adversários tão inflamados, que
OS MASSACRES DE 66, 70, 115 E 132
87
vo dessa embaixada não seria para adotar medidas contra eles, tendo em
aprendidos em 38.
Joseph tenha exagerado mais uma vez, mas a contagem exata não era
naquela época tão fácil quanto em nossos dias, uma vez que a cidade não
mortos; e, afinal, essa contagem importa tão pouco quanto a dos campos
cometido excessos ter íveis durante suas guer as, foram sempre em um
contexto militar. Mas naquele momento não era o caso, a reação tinha
Fílon, o homem que fora a Roma pleitear a causa dos judeus. Poderiam
ter sido apenas algumas dezenas de vítimas. Ê o que toma o caso desse
89
com efeito, ao não conceder aos judeus o direito de se defender por acreditar em
um Deus diferente, também não podia assumir plenamente os deuses romanos,
pois toda divindade merece respeito. A Ordem, o pilar
que estava sendo conduzida não por judeus “comuns”, mas por aqueles
é útil reexaminar aqui as cor entes do judaísmo e a fissura que elas provocaram
no povo judeu, pois essa fissura é que iria comandar seu destino nos séculos
seguintes. É preciso examinar aqueles judeus que outros judeus tomavam por
inimigos.
zelotes com os fariseus está provado por um fato sem ambigi idade: os
partidários de Judas, o Golanita, aderiram à teologia farisaica, que seu chefe
reformou para produzir uma teologia pessoal, dita a “Quarta Filosofia”.
eram meros resistentes ter oristas, eram também movidos por um messianismo
apocalíptico que cabia em poucas palavras: este mundo está podre, dentro em
breve o Senhor enviará um messias para destruí-lo e
Acusação infundada: como não tinham poder, não queriam sujar as mãos
deixado tomar pelo oportunismo, daí as invectivas que este último lhes
91
ça de que seja ele o homem que irá libertar Israel”, explicaram ao desconhecido
que encontraram na estrada de Emaús e que se revelaria mais tarde ser o próprio
Jesus.3 Essa esperança era, pois, ao mesmo tempo religiosa e nacionalista. O
apocalipse era indissociável do messias e da libertação de Israel, e os que
aguardavam um messias estavam se preparando para destruir o mundo. Não se
pode, aliás, compreender a história de
Jesus sem esta referência específica: “Todo homem que se pretende rei
homem morra pelo povo, para não perecer a nação inteira”, declarou
que ele: a prova era que, em 73, três anos após a primeira queda apocalíptica de
Jerusalém, quando sicários judeus evadidos da Palestina chegaram ao Egito e
tentaram lá fomentar distúrbios, foram os próprios judeus da
foram atrás dos outros até o Alto Egito e os entregaram aos romanos, que
Mas a mesma alta burguesia não hesitou quando o prefeito Lupus mandou fechar
o templo judeu de Onias: era um antro de insurgentes.
Para Roma, existia uma única “nação judia”, mas para as clas es dirigentes
judias no conjunto do mundo romano essa nação era partilhada pelos que se
preocupavam antes de mais nada em sobreviver, ou seja, de
nacionalista judia.6
que não estavam mais no tempo de Moisés nem de David, muito menos
93
outro, bandos de zelotes, “pois esse era o nome que tinha sido dado
pasto aos cães e aos animais selvagens”. Jerusalém ficou entregue à tirania
sanguinária de João bar Gischala à testa de seis mil homens, com quem Simon
bar Gioras, dispondo de 10 mil homens, passou a disputar
94
o poder. Muito breve foi a vez de Eleazar bar Simon chegar para disputar
Com falta de víveres, aqueles três bandos pilhavam qualquer um. “Os
sagrados.”
dos judeus com lanças e a estripá-los para saber se haviam comido recentemente.
Atiravam os recém-nascidos no chão, degolavam qualquer ser humano que não
fos e um dos seus. “Os doentes não tinham força para
cima dos que estavam sendo enter ados e muitos iam para o túmulo antes
Era exatamente o que Jesus havia anunciado em sua profecia: “Em verdade lhes
digo que todas es as coisas hão de vir sobre esta geração.” Ele havia avaliado a
violência dos zelotes e suas consequências apocalípticas.
95
Por fim, Tito atacou pelo oeste, apossando-se da terceira parte (inacabada)8 das
muralhas, em seguida da segunda, da torre Antonia (que dominava o átrio do
Templo), depois do Templo propriamente dito e
finalmente da cidade alta. Durante es e tempo, os zelotes, sentindo próxima sua
derrota, redobraram a crueldade. Simon condenou à morte o sacerdote Matias e
seus três filhos, e porque este pedira para ser executado antes dos filhos, Simon
mandou degolar os filhos diante dele antes que fosse executado. No final, os
romanos tomaram a cidade onde,
não paravam: “Civis sem força e sem armas, representando uma grande
mais a mais, nem todo mundo mor era durante o cerco, e o número de
dos Judeus em honra aos romanos, sem se preocupar com o fato de que,
muitos séculos mais tarde, seria julgado por outros leitores.
Jerusalém, a autorização para car egar os rolos da Torá que tinham conseguido
ser salvos do saque e partiu para abrir uma escola na costa, em Jamnia.
Dois anos mais tarde, em 72, a resistência judaica iria escrever com
97
Época assustadora, em que tudo parece vacilar: com efeito, o apocalipse abateu-
se também sobre os romanos. Nero suicidou-se em 69, e em seguida a ficção
imperial, baseada no culto da força e da intriga, desabou
uma guer a civil que provocou uma imensa carnificina. Vitelius foi degolado
logo em seguida, ao sair de um festim, em pleno centro de Roma, depois de um
reinado de oito meses e 20 dias. . Cinquenta mil cadáveres
ções nacionalistas dos judeus: foi desse modo que nomearam um etnar-
98
Marcius TUrbo. Contaram-se milhares de mortos por toda parte, sobretudo nas
terras dos insurgentes, como seria esperado. A pilhagem das colónias e dos bens
dos judeus foi imensa. Em Alexandria, a maior parte
dos bens judeus foi confiscada, a grande sinagoga foi destruída e, pela
Por volta do ano 120, sob o reinado de Adriano, parece ter estourado
A insur eição de Simão bar Kochba em 132 foi a última grande manifestação da
rebelião judia sob o Império. Bar Kochba, “O Filho da Estrela”, apresentava-se
como o Messias, tendo sido reconhecido como
OS MASSACRES DE 66. 70, 115 E 132
99
tal pelo maior rabino de seu tempo, Akiva ben Joseph. As perdas de vidas
zando-se.
Por mais odiosos que possam ter sido certos episódios deste capítulo, convém
destacar que os romanos nunca cogitaram da destruição dos judeus, como foi o
caso no decor er dos séculos posteriores. Também
de ísis, Atis, Cibele e Mitra eram florescentes. Renan escreveu que até
mesmo o cristianismo por pouco foi suplantado pelo culto de Mitra. Mas
Duas grandes lições podem ser retiradas dos capítulos que acabamos
101
6. A esse respeito, Joseph fez por duas vezes alusão à repugnância que os
judeus
a...O que dizer dos judeus de Citópolis? Eles ousaram fazer uma guerra
contra nós em
nome dos gregos, mas se recusaram a nos ajudar, a nós, seus irmão de raça,
a expulsar os
18, 1) e os haviam expulsado. Fizeram mal, aliás, pois foram por sua vez
massacrados
pelos helenos.
1.
O caso desse historiador é excepcional. Joseph, autor de dois iivros de
referência,
que adotou o nome com o qual passou à posteridade. Joseph pretendia, pois,
ser pró-
romano e pró-judeu, e é por esta razão que muitos historiadores vêem com
reserva seu
mesmo tempo tentando evitar as flechas que eles lhe lançavam. A morte era
para ele a
102
derrota terminal e ele pagou para ver: esteve do outro lado da barreira, o
dos judeus perseguidos, quando em Jotapata, em 67, viu-se cercado durante
47 dias por aquela mesma armada romana da qual ainda não fazia parte.
Quis fugir, mas foi impedido. Os sitiantes
recorreram ao suicídio recíproco por sorteio, como iriam fazer em Massada
em 72; aquele que tivesse o número mais baixo tombava sob os golpes do
que tinha o número seguinte. Seu destino, ajudado por sua inteligência,
poupou-o: aconteceu de ser um dos dois últimos, com um número de
executor; persuadiu então o que ele deveria matar a permanecer vivo e os
dois homens sobreviveram ao pacto infernal que havia matado “40 pessoas
importantes”.
primeira mão e de boa qualidade. Sua aversão pelos zelotes, obcecados pela
idéia de uma
quando fala dos judeus, está falando sobretudo de sua classe de letrados, e
sua função de
os chineses lançavam a seus inimigos: “Que vocês tenham que viver em uma
época interessante.”
103
Londres).
11. Flavius Joseph, La Guerre desJuifs, VII, 8,368.
12. Esse enfrentamento foi relatado por A. Tchérikover e A. Fuks, nos Actes
des
O ANTIJUDAÍSMO E O
ANTI-SEMITISMO CRISTÃOS
1.
O caso Saulo
O ANTIJUDAÍSMO DE PAULO E DA IGREJA PRIMITIVA NÃO ERA
ANTI-SEMITISMO
por uma maioria, aquele, muito ao contrário, era a rejeição de uma maioria por
uma minoria: não era anti-semitismo mas, sim, antijudaísmo.
como foi exposto mais acima, mas que uma boa parte do povo, os amha-
de sua prisão; mas aqueles que o iriam coroar rei e os saduceus alarmados
do agitador.
109
e à veneração dos judeus por Jesus, como nestas passagens dos Atos de
Felipe, no qual este apóstolo declara: “Meus irmãos, filhos de meu pai,
vocês são a riqueza de minha raça segundo Cristo...” e onde, mais adiante, a
judia Nicanora, mulher do procônsul da Síria, tendo acabado de ouvir o
ensinamento de Felipe, clama: “Eu sou judia, filha de judeus.
começou sua car eira como perseguidor dos discípulos de Jesus: ele foi
Esse homem merece algum exame. Foi, com efeito, um dos personagens mais
importantes da história das religiões, um igual de Moisés e um dos génios mais
discutidos e menos conhecidos da história. Um dos mais
contraditórios também, pois sua obra foi tão grandiosa quanto seu personagem
foi suspeito.
11
duas vezes teria chegado a esclarecer, na verdade a pessoas que não eram
fomentar agitação e atirado à prisão após ter sido flagelado como um servo; a
segunda, quando foi de novo preso pelos romanos emjerusalém no átrio dos
Gentios e, ameaçado de flagelação, lembrou ao centurião que
um cidadão romano não podia ser flagelado; o tribuno Cláudio Lysias,
alertado pelo centurião, veio inter ogar Paulo: “Diga-me, você é romano?”, e
Paulo respondeu: “Sim.” A terceira vez quando assegurou a Lysias que era
nascido romano. Ainda se poderia contar uma quarta vez, quando
Lysias não foi o primeiro soldado que chegou: ele era tribuno das
melhor.
Lysias observou que ele havia adquirido seu direito de cidadania contra o
pagamento de uma grande soma.13 Paulo reivindicou sua cidadania pela terceira
vez e respondeu: “Mas eu nasci com ela.” Ele gozava, pois,
de cidadania romana a título hereditário, Tàl cidadania não era uma palavra vã; a
lei Porcia, proclamada no tempo de Augusto, transformava seus detentores em
protegidos do imperador; em caso de conflito jurídico, era
Pergunta-se por que Jesus não foi beneficiado com proteção semelhante.
quer que esteja familiarizado com a história romana sabe que uma escolta como
aquela — porque era uma escolta — era reservada apenas a personagens
especiais.
Policial, rico ou mesmo muito rico, uma vez que podia corromper
113
foi preso pela polícia romana no átrio dos Gentios em Jerusalém, e que
alardeou a cidadania romana, para onde o conduziram sob escolta real? A
essênios, pessoas que achavam que um messias iria libertar o povo e que
com a qual Paulo até então vinha sendo beneficiado iria terminar. Não
foi o que se viu: Festus mais uma vez acedeu à demanda de Paulo de ser
julgado por Nero em pessoa, o que prova a cidadania romana de Saulo,
pois era descendente dos reis asmonianos), de passagem por Cesaréia, fòi
Cesaréia e convocou Paulo. Este interpelou o rei: “Você está aderindo aos
inspirados [quer dizer, aos profetas]? Sei que está adèrindo!” Em vista de
114
passagem.
E esse favor nunca foi desmentido: Paulo era protegido pelos mais
uma vez nessa cidade, denunciado pelos judeus de Corinto, e teve que
de Lucas que se soube que Paulo por três vezes invocou a cidadania
tipo. Paulo pode muito bem. ter sido um deles, mesmo que não tenham
çar, por isentar Paulo da suspeita de mentira, depois porque o duplo sta-
tus judeu-romano de Paulo é essencial para a legitimidade do fundador
dinheiro dele, um suborno que o faria liberar seu prisioneiro.18 Está cia-
O CASO SAULO
115
ro que não seria do modesto fabricante de tendas, que Paulo se dizia ser,
parece ter sido especialmente leve. Ora, no final de 59, Nero, farto dos
acabara de abolir seus direitos romanos e, sendo ele cidadão judeu, o teria
entregue ao Sinédrio, ou teria ele mesmo decidido a saída para seu caso.
Paulo, Félix, merece atenção: ele era um antijudeu obcecado. Até Tácito,
fica fortemente abalada pela pretensão de ter sido formado por Gamaliel.
Esse foi o mais célebre dos doutores da Lei de seu tempo; não manteve
116
nem uma escola primária, nem uma escola secundária e, como lembra
Maccoby,21 “ele aceitava apenas alunos que tivessem uma formação sólida e
estivessem eles próprios aptos a transmiti-la”.2
Dizer ter sido formado pelo rabino Gamaliel sem ser doutor da Lei,
Gamaliel nunca teria aceito um policial entre seus alunos, sem falar do
Pedro como também todos os apóstolos, a respeito dos quais recomendou aos
juizes máxima circunspecção. “Os senhores não sabem —
117
que são perfeitos”,25 o que tomava supérflua para estes últimos qualquer
sem a Lei26 quando, na verdade, o que Jesus disse foi: “Eu não vim para
Não há como não concluir que essa formação junto a Gamaliel foi
dedicou a provar sua judeidade não pode ser explicada a não ser pela
Paulo, portanto, não era judeu e sim romano. Por razões, aliás, erróneas, são
Jerônimo, o tradutor da Vulgata, também duvidou das origens tarsenses de
Paulo, o que significa tê-lo chamado de mentiroso com palavras mal
disfarçadas.27 Mas o personagem é infinitamente mais complexo do que o
construído pela tradição cristã.
não o foi inteiramente. Seu nome indica liames judeus que só poderiam
vir pelo lado materno, o que explica por que também reivindicou a judeidade
diante de estrangeiros; pois, de acordo com a tradição judia, se é judeu pelo lado
da mãe. Filho de família abastada, por certo, já que nascera romano, como o pai,
e que a cidadania romana só era concedida às
118
Pouco importa, dir-se-ia, que Paulo tenha sido judeu ou não se ele
razões: para começar porque, se ele tivesse sido judeu, talvez o antijudaísmo
cristão não tivesse nascido e, por conseguinte, não se teria transformado em anti-
semitismo; pois o anti-semitismo foi uma consequência de seu discurso. Com
efeito, fossem quais fossem suas queixas a respeito do clero de Jerusalém, Jesus
e seus discípulos nunca chegariam a ponto de denunciar ao estrangeiro a Lei e o
povo judeu. Afinal e antes de mais nada, era para judeus que Jesus pregava, não
para romanos! É um ponto
destinava-se aos judeus, tendo sido modificado e virado contra eles por
equivaliam a uma acusação do povo judeu inteiro. Jesus não teria condenado a
totalidade do povo judeu ao qual se dirigia, pois não faria nenhum sentido.
do judaísmo, e foi o que Paulo fez. E por es a razão sua obra por pouco
Em seguida, a cristandade não teria elegido Roma, como o fez a partir do século
I. Paulo, o romano, muito cedo deu mostras, aliás, de sua intenção de ir a Roma.
Quando finalmente lá chegou, ironia do destino,
foi como prisioneiro, tendo sido sua última etapa. Mas aquela cidade
representava então o centro do mundo: de lá o ensinamento de Jesus iria
119
O grande feito de Paulo foi ter rompido com a Torá (que, segundo
ele, não bastava para salvar o ser humano, enquanto a fé, sim, era capaz)
recorrendo a dois conceitos: a Redenção e o dualismo do mundo, dividido entre
o Reino da Luz e o Reino das Trevas. Em sua versão do Acontecimento que
salvara o mundo, o Deus do universo encamara-se
do gnosticismo). Deus não era mais estrangeiro nem indizível, ele estava
no meio dos humanos, como Júpiter em Filêmon e Báucis. Não era mais
o Deus ciumento dos judeus, mas um Deus aces ível a todos. A partir de
uma religião nova, pois ela era por definição acolhedora. Mas Paulo
como havia conquistado as da Galiléia e da Judéia. Mas não era necessário que
fos e praticado na Palestina, já se tinha visto o resultado da aventura. Paulo
partiu, pois, à conquista do mundo romano, da Capadócia à própria Roma. Com
apenas uma condição: dissociar formalmente seu
ensinamento do judaísmo, que decididamente não agradava aos povos da
uma transformação na religião romana. Ela havia perdido sua carga política; a
iniciativa religiosa individual, que tinha sido reprimida nos tempos da república,
passara a ser tolerada. O vazio então criado provocara o
que não era o caso nem do mitraísmo nem do culto isíaco. O judaísmo
Em suma, Roma poderia ser comparada a uma esponja que absorvesse todas as
religiões, encontrando-se madura para o cristianismo, parecido com o mitraísmo
em diversos aspectos, incluindo o batismo e a pia batismal à entrada dos
santuários mitríacos ou mithraea. Em suas etapas
121
declarado que “Israel fez grandes esforços para alcançar uma lei de reti-
dão mas nunca conseguiu”? E por quê? Porque seus esforços não se
baseavam na fé, mas nos “atos”?32 Foi uma das primeiras condenações
Resta saber se Jesus quis fundar es a Igreja, e por que ela acabou se
tornado anti-semita depois de ter sido antijudia, ou seja, por que o cristianismo
foi, afinal, par icida.
122
3. Convém notar que, por acaso, a maior parte dos primeiros Evangelhos, os
atuais
Policarpo entre 120 e 135.0 Evangelho de Marcos, cuja versão atual é truncada,
era desconhecido de Inácio em 110 e de Policarpo entre 120 e 135.0 Evangelho
de Lucas teria conhecido uma primeira versão, dita “proto-Lucas”, inspirada em
Marcos, e uma segunda versão teria sido redigida por volta de 93-94. A versão
atual foi redigida em Antioquia e era também desconhecida de Clemente de
Roma em 95 e de Inácio em 110; foi citada
pela primeira vez por Policarpo entre 120 e 135. O Evangelho de João teria
conhecido
uma primeira versão anterior à queda de Jerusalém e uma segunda versão foi
redigida por
Depreende-se de tudo isso que a versão atual dos quatro Evangelhos canónicos
foi
Durante muito tempo a Igreja quis fazer crer que só havia os quatro canónicos e
que eles
teriam chegado até nós sem modificações, desde que a inspiração divina os havia
ditado
123
publicação dos quatro volumes de UHomme que devint Dieu. Dois volumes de
insultos
ções desde suas primeiras versões e que os evangelistas aos quais eles são
atribuídos são
romanas.
Uma biblioteca de porte mal seria suficiente para conter as publicações eruditas
dedicadas aos apócrifos cristãos até nossos dias. O tema desses textos ultrapassa
largamente o objetivo destas páginas, embora ofereça esclarecimentos
reveladores a respeito das origens do anti-semitismo cristão. Em respeito ao
leitor que não deseja aprofundar-se em uma especialização, mas quer informar-
se a respeito dos textos e de seu valor, indico que minhas primeiras pesquisas se
basearam em The Apocryphal New Testament, de Montague Rhodes James
(Clarendon Press, Oxford University Press, Oxford, 1924),
phes chrétiens, sob a direção de François Bovon e Pierre Geoltrain (Gal imard,
1997).
6. Atos, VI , 58.
7. Id.y VI I, 1.
8. Id.y VI I, 3.
Brouwer, 1986).
uma tradição segundo a qual Saulo e Sêneca teriam travado relações epistolares;
desde o
de sorte tanto quanto influente: foi beneficiado com o favor de Cláudio e mais
tarde o de
Nero, a quem serviu de arauto, como relatou Tácito ÇAnnales XV, 73 —XVI,
17).
recriminações.
os procuradores não podiam decidir sobre o recurso de Saulo por ter sido
formulado em
22.0 que é confirmado por J. Jeremias, em Jérusalem au temps deJésus, op. cit.
25. 1. Cor. II, 1-5. Gunther Bornkamm, em Paul, apôtre de Jésus-Christ (Labor
et Fides, 1970), observa que isso é uma idéia gnóstica.
26. Rom. I I, 21 sq. Hans Dieter Betz, em seu estudo fundamental, Der Apostei
Paul
une die sokratische Tradition (Tubingen, 1970), sustenta e demonstra que Saulo
foi conscientemente influenciado pelo cinismo grego. O contexto presente não se
presta a uma discussão das idéias filosóficas de Paulo. É suficiente dizer que elas
não são nem judaicas,
27. Jerônimo rejeitava a cidadania tarsense de Saulo: para ele, este último era
nativo
O CASO SAULO
125
os pais para Tarso, tendo depois sido mandado para Jerusalém (De Viris Il
ustribus). A
28.
dito a verdade? A razão mais plausível é que ele não podia. E, se não podia, é
porque essa
A passagem dos Atos, XIII, 1 — assim formulada nas versões correntes: “Ora,
na
educado com Herodes o Tetrarca e Saulo, são lidas assim em grego: “. Manahn
teHrodon
tou Tetrarkon suntrophos kai Saulos11. Em todas as versões oficiais dos Atos,
suntrophos é traduzido por “comensal”. O que me parece ser um erro
surpreendente: o Dictionnairegrec-
de a tradição inserir uma vírgula entre suntrophos e kai Saulos, o que resulta na
seguinte tradução: “.. Manaém, que havia sido educado com Herodes o Tetrarca,
e Saulo.” Mas o texto grego não continha esta vírgula. Os escribas da época
deviam, contudo, compor
suas frases de tal maneira que não existisse nenhum equívoco. Portanto, o texto
deveria
ser lido assim: “...Manaém, que havia sido educado com Herodes o Tetrarca e
Saulo.” O
que muda tudo: Manaém teria sido educado com Herodes, o Tetrarca (levando
em conta as idades prováveis de Manaém e de Paulo, teria sido Herodes Agripa
I) e Saulo, o que produz um efeito bastante embaraçoso: Saulo, fundador do
cristianismo, teria sido educado com Herodes, o Tetrarca, facilmente confundido
com Herodes Antipas, o rei que mandou decapitar João Batista. Mas é o que o
texto grego parece indicar.
Parece apenas um caso de vírgula — que me valeu ser tratado de impostor por
um
jornal tido como sério, mas aparentemente mais sisudo do que sério. Acrescente-
se a ele,
Agripa II, aquele que foi visitar Paulo em 60, quando este esteve preso em
Cesaréia, em
Herodes”, ainda um jovem — ainda não havia herdado o reino de seu pai. Esse
Herodion
poderia da mesma forma ser, segundo Robert Ambelain, o filho mais velho de
Aristóbulo
III (La Vie secrète de Saint-Paul, Robert Laf ont, 1971), hipótese cujas falhas já
expus em
Paulo pode ter sido membro da vasta família dos herodianos, talvez o filho de
Antipater.
que pertencia ele mesmo por aliança à família dos herodianos; com efeito, ele
desposou a
29. Por volta do ano 160, muitos cristãos de origem judia e judeus convertidos
ao
texto sagrado, o Evangelho de Mateus. Para eles, Paulo não pas ava de um
herege, e suas
31. Ele exercia, todavia, uma fascinação sobre os romanos, por razões
demoníacas: os
século XX está tão estreitamente ligada à da Igreja primitiva, que continua sendo
indispensável, mesmo 20 séculos depois, compreender como uma Igreja
derivada dos ensinamentos de um judeu conseguiu tomar-se
anti-semita.
iriam, em nome do judeu Jesus, cobrir “os judeus” de anátemas. E levariam sua
determinação até o ponto de falsificar os relatos dos que foram testemunhas da
Paixão: por exemplo, o que descreveu a multidão em
128
judaísmo, religião viva, não era no começo de nossa era um bloco homogéneo
nem fixo; ele comportava cor entes suficientemente fortes para provocar cismas,
como o samaritano, o saduceísta, o boetusiano e o
sabemos a seu respeito se resume ao que está escrito nos Evangelhos apócrifos e
canónicos, alguns apócrifos (seu número é restrito, cinco ou seis) sob certos
aspectos tão reveladores (o que não é sinónimo de “confiáveis”) quanto os
canónicos, dos quais frequentemente diferem. Ora, a forma atual dos Evangelhos
canónicos só foi fixada no primeiro terço do
século I , sendo bem difícil separar o que fazia parte das intenções propa-
a atenção de exegetas.
Além do mais, em meio às seitas dissidentes — as minim, como as
sobre eles não poderia ser mais sucinta. Excluídos da sinagoga, onde nos
129
e um corpo de crenças? É pos ível. Mas quais teriam sido suas relações
seria o Filho de Deus. Foi somente quando ele se revelou aos dois que os
ções e sinais que Deus realizou diante de vocês por intermédio dele, como
bem sabem.”3 Não é de um Mes ias nem do Filho de Deus que se está
falando nesse caso, mas de um homem designado por Deus. E quando
Maria Madalena, Maria, mãe de Jesus, e Salomé vão até a tumba de Jesus
que foi crucificado. Foi retirado [de entre os mortos]. Ele não está
aqui. .”4 Ele falava apenas de Jesus, o homem, e não do Filho de Deus.
130
Pai”, não era outro senão o próprio Jesus. A multidão estava na verdade
eram desconhecidos da maior parte dos autores cristãos do século II, sendo
duvidoso que tenham alcançado uma forma próxima da que conhecemos antes
do século VI.
131
Apostólico de Jerusalém.12
Nada nos Evangelhos confirma, portanto, a vontade de Jesus de fundar uma nova
religião e uma Igreja, e menos ainda de confiar sua direção a Pedro, uma “pedra”
decididamente bastante quebradiça pela própria
e de Jesus ter anunciado aos apóstolos que sua hora estava para chegar. E,
judeu Jesus e a comunidade judia. Seu papel foi capital pelas repercussões que
provocou, e pelo fato de ter sido a partir de Paulo que o cristianismo passou a se
opor ao judaísmo. Para essa finalidade, recebera ele carta branca do Conselho
Apostólico? Na verdade, não. Mal dispunha de
sua tolerância, e mais, o decor er dos acontecimentos iria provar que ela
era limitada, depois que lhe tinha sido retirada. Talvez seja preciso descrever
aqui a realidade histórica: que membro do Conselho poderia esquecer que fora o
policial Saulo, não ainda Paulo, de cidadania romana,
de que ela lhe tivesse inoculado a percepção do ensinamento que ele estava
pretendendo difundir.
Mas Paulo nem se importou: em suas Epístolas, proclamou com veemência sua
independência do Conselho.17 O requisitório mais severo contra Paulo foi
elaborado por Bultmann, mais uma vez: “De fato, suas
Epístolas mal permitem divisar a tradição palestinense no que diz respeito à
história e ao ensinamento de Jesus (. .) Quando ele se refere a Cristo como
exemplo, não está pensando no Jesus histórico, mas no preexistente. 18 Ele não
cita as palavras do Senhor a não ser em I Coríntios VIE,
A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS
133
10 sq., e IX, 14 e, nos dois casos, são regulamentos para a vida da Igreja
para Antioquia. Os Atos não dizem uma única palavra sobre o que se
seguiu: mas foi em Antioquia que ocor eu um dos conflitos mais violentos entre
Paulo e o Conselho de Jerusalém. Paulo chamou Pedro de “falso irmão” e
indiretamente de “indivíduo falso” e, mais do que tudo, rejeitou a Torá, à qual
Pedro continuava apegado. Paulo declarou, com
tomou por nossa causa uma coisa maldita”. Era a ruptura total com o
judaísmo, e ainda por cima com uma blasfémia. A maldição da Lei! Mas
tinham suas razões para sentir rancor em relação aos defensores da Lei.
134
aquilo era que a bênção de Abraão fos e estendida aos gentios por intermédio de
Jesus Cristo.” A noção de povo eleito, a Aliança, a interdição do casamento com
os gentios que assombra a Torá, tudo que prolongava a
Corinto, Filipo, Éfeso, Asso, Mileto, Cos, Rodes, sobre as quais eles não
tinham nenhum poder. A toda essa gente ele disse que a Torá havia sido
revogada. .
Eles iriam então tentar uma última defesa de sua herança espiritual.
“sob injunção do Espírito” (Santo).23 Assim que chegou lá, Paulo dirigiu-
os apóstolos fingiram não ter escutado o que ele disse e apenas observaram que
os milhares de adeptos judeus eram firmes defensores da Lei.
seguir nosso modo de viver.” A acusação não poderia ser mais clara. Em
135
este voto de penitência. “Então todo mundo verá que não há nada de verdade nas
histórias que estão sendo contadas a seu respeito e que você é um judeu
praticante e que respeita a Lei.”
nenhum poder, que seu ensinamento era considerado sem valor e que a
final desse período, Paulo foi visto dentro do Templo por judeus da Ásia,
Socor o! Olhem aí o tipo que anda espalhando sua doutrina pelo mundo,
atacando nosso povo, nossa Lei e este santuário. E como se não bastasse ainda
deixa os gentios entrarem no Templo, profanando este lugar santo!” Os “gentios”
no caso era Trófimo de Éfeso, pagão convertido que
legião romana.
homens para justificar Paulo, senão na hora, pelo menos mais tarde,
Paulo foi levado a Roma para ser julgado, de acordo com sua solicitação, pelo
imperador em pessoa, Nero. Ele estava presente em Roma durante o grande
incêndio de 60, e depois seu rastro se perdeu. A tradi
ção conta que foi decapitado, entre julho de 67 e junho de 69, provavelmente na
mesma data em que Pedro, que o teria encontrado em 64, foi condenado à morte,
mas não decapitado. A decapitação provaria mais
“Por causa de sua origem pagã — escreve Hyam Maccoby — , Saulo via
Adonis.
137
sistema.
Seria fácil ou tentador condenar Paulo, mas seria esquecer que ele
gica: foi então que estabeleceu a teologia da graça e dos mistérios da fé, a
opunha, por sua vez, a Páscoa cristã à Páscoa judaica, de longe “inferior”,
Antes de sua ruptura com a Igreja, Tertuliano, que no entanto definiu os cristãos
como uma “seita judaica”, fez aos judeus incriminações tão mordentes quanto
injustas, acusando-os de se terem afastado da lei
seu clima, vagueiam por toda a ter a, sem ter como rei nem um homem,
nem um Deus, e não lhes sendo permitido aclamar e pisar o solo pátrio,
139
Messias tenha sido judeu e, o que não é a mesma coisa, que um Messias
imutável, coisa que jamais foi. E claro que a história comparada das religiões
não existia na época, mas, mesmo assim, é espantoso que não se encontre na
literatura patrícia nem uma palavra de reconhecimento, no
havia de repente virado as costas ao judaísmo para criar uma nova religião
ou, mais exatamente, uma religião nova e que, portanto, o judaísmo ficara
démodé. E Marcion não era o único: a mesma idéia pode ser encontrada em
quase todos os autores cristãos dos primeiros séculos, os quais retomaram o tema
paulino da abolição da Lei e do advento da única verdadeira religião, a nova, o
cristianismo.
140
com efeito, ter atenuado sua hostilidade em relação aos judeus. Mas para
judeus não lhes fossem hostis — e eles o eram. A segunda, que fossem
humanistas. Mas não existiu nem poderia ter existido apóstolo humanista:
somente o convívio com os filósofos teria aplacado o rigor, suavizado as
convicções e diminuído o ardor dos prosélitos. De mais a mais, Paulo
era romano, e vimos mais acima que não havia humanismo romano. O
outro.A cidadania romana que Paulo reivindicou não foi, pois, acidental:
ela lhe foi essencial e orgânica. Seu terreno de conquista foi, de fato, o do
141
assim como o de Adonis, o deus que renasceu de seu próprio sangue para
que Paulo estava lhes oferecendo respondia a seus anseios tanto quanto a
suas tradições.
143
1. Essa frase ter ível, apenas mencionada por Mateus (XXVI , 26), é
particularmente suspeita por ser uma inversão exata da fórmula recomendada
pela Mishnah para os inimigos de Deus: nenhum judeu pediria que o sangue de
quem quer que fosse caísse sobre si e sobre seus filhos. Ian Wilson, em Jesus —
The Eviâence (Weidenfeld & Nicolson, Londres, 1984), estima que o Evangelho
de Mateus tenha sido escrito em Roma por
alguém que demonstrava preconceitos favoráveis aos romanos. A frase não tem
mais credibilidade do que a que João atribuiu à multidão: “Nosso único rei é
César!” (XIX, 25).
César como rei, uma vez que Pilatos por pouco não desencadeara revoltas
justamente por
3. I , 22. E preciso notar que Pedro se serve de uma expressão discutível, “Jesus
de
cita uma reflexão de Jesus que anula qualquer interesse por essa genealogia:
“Como
podem dizer que o Messias descende de David? Pois o próprio David diz no
Livro dos
Salmos: “O Senhor disse a meu Senhor: ‘Assenta-te à minha direita, até que eu
ponha os
teus inimigos por escabelo dos teus pés’.” David o chama, pois, de “Senhor”.
Como
(Doubleday and Company, New York) dedica a eles 20 volumes de mais de mil
páginas
cada um (dos quais dois volumes, num total de 2.500 páginas, só para o
Evangelho de
João).
11. Évangile selon Thomas, logion 12, trad. Philippe de Suarez (Metanoia,
1975) e
Écrits apocryphes chrétiens, op. cit.
Joseph, Tiago foi morto ao mesmo tempo que muitos de seus companheiros,
durante um
16. Theology of the New Testament, vol. 1 (SCM Press, Londres, 1952). Eu
retomei e
23. Atos, XX, 22. Um pouco mais adiante (XXX, 4) curiosamente, o mesmo
Espírito
evidente que eles estavam cientes do conflito entre Paulo e o Conselho e não
anteviam
24. XIII, 6.
145
30 .1 Cor., XI , 1.
32. Bultmann analisou no capítulo The Church, Judaism and the Old Testament,
33. Gal, I I, 2.
35. Dialogue, XI, 123-124, itt Robert A. Kraft, The Aposfolie Fafhers — A
Npiv
36. B. Lohse, Die Passa-Homilie des Bischofs Meliton von Sardes (E. Brill,
Leyde, 1958).
respondeu-lhe que não era preciso ir procurar os cristãos, mas apenas punir os
obstinados que recusavam os sacrifícios aos deuses. Cf. Mareei Simon, La
Ciuilisation de Vantiquité
et le christianisme, op. cit. Era, pois, uma medida paliativa de Trajano, mas uma
distinção já
Grégoire, Les Bel es Let res, 1961): “Em vez de recalcitrar contra seu aguilhão
— um
“Quanto a mim, minha vida já está estendida sobre o altar. .” foi reaproximada
do verso
de Eurípedes “Este Deus, por mais Deus que seja, estende-se em oferenda aos
Deuses...”
As Bacantes, 285, todas duas comportando a forma pas iva rara do verbo grego
orcBvSa) e
A grande confusão
nenhum poder civil, nenhuma lei; permaneciam, pois, sem efeitos. Para
os cristãos, não gostar dos judeus era um direito seu, mas, para os romanos, isso
não tinha mais importância do que a antipatia eventual dos trá-
cios pelos bitínios: pois o que eram os cristãos para os romanos senão
A primeira Igreja era ela mesma perseguida pelos romanos, não tinha
meios nem poder temporal algum e, por falta de autoridade central, estava
dividida por cismas e heresias insistentes, notadamente o arianismo e o
gnosticismo,’ dos quais só se iria ver livre em decorrência de uma
sucessão de concílios. As primeiras comunidades cristãs — Cesaréia,
locais. Não tinham nem dogmas, nem teologia propriamente ditos, mas
um mosaico de interpretações dos Evangelhos e praticamente tantas cris-
século IV, não foi mais gentil a respeito deles: “Os animais mais selvagens
são menos temíveis para os homens do que os cristãos entre si.” Mesmo
A perseguição dos cristãos na época romana tem sido muito exagerada: uma
propaganda desencadeada no século XIX quis fàzer crer que, em Roma, passava-
se o tempo nos jogos do circo, onde todas as tardes cristãos eram oferecidos
como comida aos leões e a iluminação era feita com
149
“Persistir até hoje em viver segundo a Lei é confessar não ter recebido a
judeus. E os oradores cristãos ainda iriam mais longe do que seu senhor,
judeus, mesmo sob o fogo das invectivas pagãs. Os mais virulentos anti-
semitas do século XX, como se vê, nada inventaram.
Seria possível encher uma enciclopédia com os discursos das autoridades morais
e religiosas cristãs: acusações, injúrias e deblaterações diversas escritas e
publicadas contra os judeus, que eram lidas para os
imprecações dos profetas judeus contra seu povo (e elas não faltavam)
para provar que o povo judeu quebrara sua aliança com Deus e que o
povo dos gentios é que o havia substituído como Povo eleito. A Igreja
Isaac e Jacó não fossem judeus e sim pertencentes, como cristãos, a uma
151
Pai”, e a acusação mais corrente que se fazia aos judeus era de “deicidas”.
decidiu que os judeus que circuncidavam seus escravos teriam que, por
ter outros escravos que não fossem judeus. A medida nada tinha a ver
com qualquer compaixão a respeito dos escravos, menos ainda com uma
que desposasse uma judia teria todos os seus bens confiscados pelo
condenado à morte.
para o povo.
ele protegeu os judeus. Na verdade, foi sob seu reinado que foram promulgadas
leis contra os judeus com referências insultuosas como nenhum imperador
jamais utilizara—seita bestial ,feralis secta, imersa em
Reich encontrou termos mais degradantes para expressar seu ódio aos
judeus. A ignomínia que os autores cristãos atribuíam aos judeus foi com
certeza igualada ou até ultrapassada pela forma com que expressavam seu
153
ção de santuários judeus até que as dívidas dos judeus responsáveis fossem
pagas;8 entre outras vexações, proibiu também aos judeus o direito de
testemunhar diante de tribunais cristãos.
Império.
este último nada inventou em sua perseguição aos judeus, a não ser o
semitas da Lei canónica de 306 até 1434 são reencontradas quase que
durante cerca de sete séculos, até a Revolução Francesa, ou seja, até o fim
queístas, os hereges e os pagãos. Mas, mesmo que para os judeus eles fossem
hereges, os samaritanos eram judeus. Os maniqueístas ou discípulos de Mani,
um persa que viveu no século I I, pregavam um sincretismo das
A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS
155
um perigo muito mais considerável do que os judeus, uma vez que propagavam
suas heresias em detrimento da doutrina dominante, enquanto o proselitismo
judeu, pelas razões que já vimos, fora anulado. Mas os
era quase preciso que se fos e para a Lua, a Ásia ou a África não romani-
zadas. A América ainda não havia sido descoberta. Eles estavam condenados à
sujeição quase universal. E, ainda por cima, eram vítimas da maior espoliação
cultural da história do mundo: o cristianismo lhes havia tomado seus Livros, o
Antigo Testamento, clamando com furor que todos os termos desses Livros os
condenavam. Esses Livros não mais lhes pertenciam. A Bíblia, a própria Torá
dos judeus, escrita por judeus, não era mais dos judeus, pertencia dali em diante
ao cristianismo. Os judeus não
podiam mais sequer citar seus Livros santos, pois as citações eram tachadas de
impostura.
além. O judeu passou a ser visto como uma figura atrasada, praticamente
selvagem, que insistia em suas crenças malsãs e suas péssimas maneiras, em vez
de confessar seu er o para ser admitido na Santa Ceia do cristianismo. Pois
aquele que persevera em seu er o é um imoral; no melhor dos casos é um idiota;
nos outros, um ser ruim.
157
Noção que, como se sabe, não teve sucesso, “pois o papa exerce o poder
Não era apenas o judaísmo que estava em jogo, mas a totalidade das
das Heresias, mostra o imenso número dos que foram de fato esmagados).
Os judeus não eram cismáticos: eles pareciam cismáticos. Foi o suficiente para
que fossem jogados em meio ao tropel dos perseguidos.
que continua sendo até hoje muito mais um território sagrado do que
A história não pode ser escrita somente de um ponto de vista moderno: como
nota Jean B. Neveux, “os historiadores evitam erradamente uma visão teológica
dos acontecimentos, e o ‘fim último’, a meta, fica sendo seu próprio tempo”.15
'Certamente, a tolerância poderia ter sido pleiteada. Mas não podemos esquecer
que ela, tal como a entendemos (e praticamos tão pouco) no século XX, é uma
noção em essência moderna, admitida virtualmente graças a um universalismo
midiático.16 A tolerância era dificilmente defensável em uma época de
convulsões incessantes, como a que se
falso e pouco importa ao diabo, seu rei, o erro que triunfa, pois todos
povo de Deus nunca conheceu uma licença assim, pois seus filósofos e
159
1.0
arianismo, ou heresia de Arius, sustentava que, se os Evangelhos não continham
nenhuma menção à Trindade, ela não existia e que Jesus era humano de origem
humana. Essa heresia iria provocar repercussões espirituais, teológicas e
políticas de primeira grandeza, e até enfrentamentos militares. O gnosticismo é
uma corrente intelectual e
religiosa que atravessou os séculos, cujos três principais pilares são os seguintes:
o conhecimento divino, ou gnose, não pode ser adquirido pelo logos, mas por
uma iluminação do ser; a graça divina é ou não dada; por último, o mundo
material é mau (cf. Histoire généra-
nós foram salvos pelo clérigo Macarius Magnes. Muitas das críticas que Porfírio
fez ao
edificar sua Igreja sobre Pedro, por ele chamado de Satã e de poltrão. Mas não se
pode
uma “debilidade” reivindicar uma identidade cultural fechada, mesmo que ela
fosse hele-
nística.
4 Ad.
5.
linguagem. Foi fácil para seus inimigos, entre os quais o próprio Teófilo, bispo
de
161
tampouco entre os cristãos. Durante muito tempo se afirmou que a seita judaico-
cristã
teria desaparecido no século IV; é mais provável, contudo, que ela tenha
influenciado a
imperador assistia, alegando que não era motivo para tamanho escândalo o
incêndio de
eles haviam insultado ou o Cristo que eles haviam crucificado? Teodósio tentou
resistir
8. Codex Theodosianus, XVI, 8,10,11 e 15, citado por James Parkes, em The
Conjlict of
York, 1974).
9. Op. cit.
Ernest Renan, n? 181, primeiro trimestre de 1993). Esse autor demonstrou que
muitas
15. Id.
16. Em seu Traitésurla tolérance (trad. franc. Gal imard, Es ais, 1998) Michael
Walzer
do conjunto sem se preocupar com a uniformização dos cultos, das culturas e dos
costumes. Parece-me que essa visão comporta nuanças: para começar, a
tolerância em questão era inspirada em considerações políticas; com efeito, uma
perseguição muito efetiva corria o risco de fomentar revoltas, como de fato
fomentou. No caso dos judeus do Império Romano, vimos nos capítulos
precedentes, a tolerância parece-me ter sido reduzida a sua
mais simples expressão, justamente por razões relacionadas a cultos e culturas.
todo o século IV, os “bárbaros” tinham exercido pressão cada vez mais
dos judeus era mais ou menos o mesmo que fora definido pelas leis
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA
165
imperiais; não era igual ao dos cidadãos do Império, mas era aceitável e
Islã. Curiosamente, a idéia levou tempo para amadurecer, pois o pretexto fora
um acontecimento ocor ido 24 anos antes: a tomada de Jerusalém (e da Síria) em
1071 dos califas fatímidas do Egito, pelos turcos seljúcidas. A realidade é que
Jerusalém havia passado de mãos muçulmanas, os
contra os judeus.
ção deve ser entendida para além do aspecto religioso: os judeus eram
ultrajar Cristo num contexto daqueles, a não ser pelo fato de continuar
167
podiam car egar consigo e não podiam vender a não ser a baixo preço,
de seu chefe Godofredo de Bouil on, o herói das canções de gesta francesas: “Se
querem saber o que foi feito com o inimigo em Jerusalém, saibam que no Pórtico
e no Templo de Salomão nossa gente tinha o sangue vil dos sar acenos até a
altura do joelho de seus cavalos.” Os judeus da
em terra sar acena? Conviria, pois, na boa terra da França atacar o judeu
tinha, com efeito, custado mais dinheiro do que tinha trazido, sendo por
isso necessário reorganizar as finanças.
a celebração do sabá e ordenou que entregassem todo seu ouro, todo seu
dinheiro e suas pedras preciosas, bem como seu mobiliário, que só lhes
melhor: deu três meses aos judeus para deixarem seu território e
168
de toda espécie, bem como de seus créditos. Para que essa gatunagem
pura e simples fosse aceita pelas populações cristãs, gatunagem que afinal
escrúpulos, o mesmo rei iria reabrir suas fronteiras aos judeus em 1196,
que eles seriam colocados sob a “proteção” do rei, contanto que a usura
dizendo-se que a religião não teve grande coisa a ver com o anti-
judeus o que era proibido aos cristãos. Assim se criou, pelas mãos dos
A França não era inteiramente anti-semita, mas apenas sujeita a surtos como se
eventualmente fos e acometida por uma febre quartã ou ter
169
o dogma da Igreja eterna e revelada, sobre o qual Roma fundava suas pretensões
à hegemonia universal, via-se minado. Os visigodos tinham, pois, bem menos
razões do que os cristãos para perseguir os judeus.
da Bulgária (daí o nome de bugros que foi dado àquela corja que recusava
foi assassinado.
171
abrisse mão de todos os seus poderes e seus bens em favor do clero, e não
cristão em relação aos judeus foi descrita inúmeras vezes. A maioria das
peste negra que devastou o mundo na mesma época. É, a meu ver, o erro
século XX: a Igreja sobreviveu sem suster o gládio temporal, que ela
vida das pessoas, Roma desejou que o mundo inteiro fosse católico. Seu
assim como sob seus sucessores, ela teria tido todos os meios. Os clérigos
173
víveres dos judeus: o rumor que cor ia era o de que os judeus faziam seus
mia. O judeu convertido Nicolas Donin, por sua própria vontade, foi
européia sob a ordem de Roma: o Talmude não era uma fonte de crenças
hereges?
Foi São Luís quem impôs es a prática na França (retomada sete séculos
mais tarde pelo governo de Vichy em 1940) e que confiou seu monopólio aos
bailios: somente eles tinham autorização para dispensar do uso algum
“beneficiário”, “por exemplo os comerciantes importantes que
perder o Midi? O filho de Montfort, Amaury, pediu ajuda ao rei, e o futuro Luís
VI I organizou o cerco de Toulouse. No dia 1? de agosto de 1219, a resistência
foi tamanha, que o príncipe Luís levantou o cerco. O
Languedoc estava livre! Mas não por muito tempo: em 1226, os exércitos
175
dessa tolerância, por sinal bastante relativa, deveu-se em parte aos visigo-
essencial à coesão do povo. Mas tudo iria mudar rapidamente para esses
reis, assim como para os judeus: a partir do quarto Concílio de Toledo,
momento, tudo mudava. A vindita romana iria alcançar os judeus até nas
Colunas de Hércules.
Mas a situação evoluiria mais uma vez de maneira imprevista. No
uma vez foi o clero cristão a dar o primeiro impulso. Um exemplo entre
para defender os judeus contra o povo incitado pelo clero. Seu filho,
177
sobre seu clero. Em uma ocasião, em 1278, o pregoeiro da cidade deu aos
Como no Egito, antes do Êxodo. A feiúra, claro, não era cristã. A coroa
mas o furor popular atiçado por Rodolfo de Clairvaux foi tal, que o próprio
arcebispo precisou fugir para evitar ser massacrado. Só na cidade de Mainz mil
judeus pereceram sob o gládio do populacho e pelas próprias
179
sua casa, Servi camerae nostrae. Mas o reverso da medalha foi extraordinário: a
“proteção” dos judeus desdobrou-se pela primeira vez em sujeição integral. Os
judeus tornaram-se propriedade dos príncipes, da mesma
atesta o caso dos judeus de Spira, que por 10 vezes foram usados como
oficial do menino que teria sido vítima dos judeus. Numa época em que
a mortalidade infantil era muito elevada, não havia criança que morresse
se livrar das próprias dívidas era livrar-se dos credores. É a teoria que cronistas
da Idade Média, como o natural de Estrasburgo Twinger,já sustentavam: a
hipótese é plausível, mas resiste mal à análise histórica e revela-se até
tendenciosa.
Com efeito, a ordem de 1230, provinda do rei muito cristão São Luís,
181
lado por causa das taxas particularmente pesadas impostas aos judeus e,
Por certo, o fato de os judeus possuírem riquezas, uma vez que eram
É difícil avaliar hoje em dia, na cultura económica, com a livre concor ência
bancária e o Estado exercendo controle sobre os juros bancários (que, por sinal,
bem que mereceriam algumas observações “cristãs”
“O usurário não vende ao devedor nada que lhe pertença, a não ser o
tempo que pertence a Deus, escrevia no século XIII Thomas de
Chobham. Portanto, ele não pode lucrar com a venda de um bem que
pelo fato de não ter a mesma religião que ele e, portanto, parecer não ter
182
razão do mais forte, que excluía qualquer compaixão. Mesmo sendo cristão,
cobria-se de opróbrio; assim, quando o empréstimo a juros foi autorizado para os
cristãos, o grande emprestador de Carlos VI , favorito do papa Nicolau y Jaques
Coeur, um dos primeiros grandes banqueiros da
mente sentida na época e que a lei canónica admitia haver situações nas
uns parasitas.
parte dos juros ar ecadados pelos judeus por meio de impostos elevadíssimos,
empréstimos forçados, cobranças igualmente exorbitantes por atividades
normalmente não taxadas (restauração de um teto); e que os
183
Um dos períodos mais sinistros da Idade Média foi, com toda certeza, quando
uma epidemia de peste negra devastou a Europa entre o final de 1348 e o verão
de 1354. Os que fugiam das cidades atingidas, ao chegar nas que ainda não
tinham sido, espalhavam boatos extravagantes segundo os quais os judeus teriam
envenenado os poços. Trezentas e cin-qiienta comunidades judias da Europa
foram vítimas de perseguições
Essa longa crise de loucura que foi a Alta Idade Média, plena de
imprecações, anátemas, turbas ululantes assas inas, gritos de agonia ou
Nietzsche, “não é a dúvida que enlouquece, é a certeza”. Pois, com efeito, todos
os poderes estavam seguros da justeza de suas ambições hegemónicas. E, entre
eles, o que se encontrava mais imbuído de certeza era o poder pontifical,
representante autoproclamado do poder de Deus: a
Tòdo-Poderoso.
sem ter a, não eram uma nação, muito mal um povo. Eles eram os mais
era cristão.
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA
185
4*. Cf. Malcolm Hay, The Roots of Christian Antisemitism (Freedom Library
Press,
1981).
antes. Cf. Henry Chadwick, The Pelican History of the Church (3 vol.,
Penguin Books,
foram então forçados a se submeter. São Luís impôs uma multa exorbitante
de 10 libras
14. Não eram mais do que 200 mil (Spaiti, Enciclopédia Britânica).
187
17. Ele mandou mutilar e executar de forma atroz seu sobrinho, rei da
Itália, que
(Tubingen, 1968).
Norwich iria ser apenas o primeiro de uma longa série de santos inventados.
Cf.
Augustus Jessop e M. R. James, The Life and Miracles of St. Wil iam of
Norwich by Thomas
Domenichino del Vai, que teria sido morto por judeus de Saragossa por
volta de 1250
21. Id. Foi, de fato, o próprio São Bernardo, pregador oficial da primeira
cruzada,
segunda metade do século XV, que eles não exerciam outro ofício. Cf. S.
Katz, The Jews
26. De fato, suspeitou-se de que ele teria envenenado Agnes Sorel, a amante
do rei,
idade de ouro que iria durar 33 anos. A paz reinava sem restrições, a
prosperidade parecia der amar-se de enormes comucópias de abundância, a
agricultura era de tal maneira fecunda, que, de país importador de cereais,
malária.
do reinado de Teodorico.
da Itália, por outro lado, não eram nem estes, nem aqueles.
191
Milanesado e da Toscana.
teriam sido bem acolhidos pelo poder real: Henrique I Beauclerc, que
reinou de 1100 a 1134, promulgou em favor deles uma carta que lhes
judeus encontrados em casa (os demais, mais uma vez, tinham se refugiado no
castelo). A cada festa da Páscoa, massacravam-se judeus. E cada cruzada era
inaugurada com massacres de judeus. A cristandade das ilhas
despeito das numerosas restrições que pesavam sobre eles, por sinal as
Inglater a. Ricardo teria sido o responsável? O certo é que nada fez para
impedir. No próprio dia de sua coroação, os judeus de Londres que vieram lhe
render homenagem foram repelidos com brutalidade e muitos foram assas
inados. Os textos dos cronistas da época são impressionantes
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA
193
Richard Devizes:
“No próprio dia da coroação, na cidade de Londres, na hora solene
pai, o diabo. E tomou tanto tempo celebrar tão grande sacrifício, que mal
saciaram. Na mesma ocasião, pelo reino afora, mas com fervor desigual,
Winchester poupou a coija que ela nutria: a população dessa cidade foi
sentido os duvidosos fatos ou, melhor ainda, quer nos refiramos ao mais
çaram a cair e ser abatidos bem perto dele. Nem o incêndio que ocorreu
impedir quem quer que seja de fazer uma justa e piedosa interpretação de
encorajada.
percebido com clareza a razão dos massacres: muito deles, senão todos,
195
quanto se dizia que era para os judeus: o papa Inocêncio III não parava de
ção, anulada: “Por duas vezes, em 1254 e 1255”, escreve Anne Grymberg,
real. . que, por sinal, seria revista, pois a coroa estava sempre precisando
Quantos deixaram o reino? Dezesseis mil? Quarenta mil? Esse êxodo esquecido,
mais um, foi pior do que se pode imaginar: alguns tiveram seus bens roubados
no navio, outros se afogaram. Foram para o outro
“uma meia dúzia de judeus penetrou o país, mas para tentar — inutilmente —
negociar as condições de um retorno eventual de seus cor eligionários”, escreve
Anne Grymberg. O “quadrilátero apertado” do clero católico não lhes oferecia
espaço onde se insinuar: por volta do ano 1300,
havia uma paróquia constituída para cada 100 casas e, no início do século Xiy
contavam-se na Inglater a 5.500 monges, 3.900 cónegos regulares, 5.300 irmãos
e 3.300 religiosas, ou seja, um total de 18.000 regulares e
pretende prevalecer-se das leis de Veneza. Ele recusa os três mil ducados,
quer sua libra de carne. “Como sou um cão, tome cuidado com meus
dentes afiados.”
197
para a Polónia. A maior parte dos países que eram conhecidos e que ainda são
conhecidos no século XX na Europa Oriental ainda não havia nascido na época:
a potência dominante era a Grande Lituânia, cujos contornos incluíam
aproximadamente a Polónia oriental, a Rússia branca e a Ucrânia atuais — a
“Russucrânia” — e que, no mar Báltico, ficava bem
norte até a Silésia, e a leste até a Valáquia e a Moldávia, e do qual mais tarde
seria recortada aproximadamente a Eslováquia, o norte da Iugoslávia, a Roménia
e a Bulgária. Depois da morte do último representante da
das alianças, dos apoios morais, financeiros e políticos. Dentro dos territórios
submetidos à mesma fé, como nos principados dos Cavaleiros Teutônicos, o
arcebispo de Riga tentava disputar o poder com os
198
que duraram exatamente meio século, de 1298 a 1348, acar etaram êxodos
maciços de judeus em direção à Polónia.
Lublin, Kiev, Vilna, Cracóvia, Lvov. Em Kiev, por exemplo, havia judeus
199
aos judeus por seu pai, reembolsando-lhes uma parte dos fundos que
lhes haviam sido recusados; mas em 1495, pressionado pelo clero, expulsou os
judeus do país e confiscou todos os seus bens. Seis anos mais tarde, em 1501, o
novo rei da Polónia, Alexandre I, chamou de volta os judeus e devolveu-lhes
uma parte dos bens confiscados por seu pai:
das vezes de acordo com suas finanças; a animosidade do clero, por sua
entre os dois.
Quanto à Rússia, pelo menos o que se chamava então por esse nome,
ela estava proibida aos judeus, tidos como gente perigosa. O embaixador
junto às muralhas de Smolensk, mas nunca além. O czar Ivan, o Ter ível,
Aqui farei uma pausa. A história jamais é fria: ela queima tão logo a
Épocas bárbaras das quais por muito tempo se duvidou que pudesse surgir uma
civilização digna desse nome. Guer as incessantes, epidemias de
201
homens de uma perna só. Bem mais tarde, aliás, Voltaire não excluiu a
grande Locke assegurou ter visto uma mestiça de gato e rato. . Qualquer
humano que não falas e a língua de seu observador, não praticasse sua
papel da lei, e o direito dependia apenas do desejo dos príncipes. Nos campos,
soldados bêbados lançavam-se sobre as famílias, exigindo a virgem e o vinho, o
dinheiro e o corpo. A Europa, aliás, as istiu a algo semelhante e
ainda as iste no momento em que escrevo estas linhas, por exemplo, na ex-
deve-se a sua tolerância religiosa. Roma poderia muito bem, com seu
poder, fazer prevalecer sua religião; mas não o fez, com sabedoria. Se a
Igreja estivesse tão segura de sua inspiração divina, com certeza teria
suas perseguições políticas, mas, se não fos e Napoleão, teria prosseguido com
elas até o século XX. A Igreja tinha a ilusão do poder absoluto, o
É provável também que es a ilusão tenha impedido a Igreja de refletir sobre sua
ar ogância, esquecendo-se de que era constituída de seres humanos e de que
todos os humanos são iguais. Pois é a “ilusão romana”
que explica os excessos e o fanatismo da Igreja em relação aos judeus
203
qualquer ameaça: nenhuma outra a não ser, para as almas mais esclarecidas, a de
um remorso possível em relação ao povo de Jesus, o judeu. Os ódios e a aversão
furiosa desencadeados pelas cruzadas, encorajados pelo
instituição religiosa cristã. Ela teria podido frear a maldade; mas, quando
1. Teodorico não foi apenas reconhecido como o maior de todos dos reis dos
godos,
visigodos e ostrogodos, mas provavelmente como um dos mais importantes
reis da Idade
que lhe barrou a passagem em Isonzo, mas que, depois de uma cruel derrota
em Ravena
205
6. Paul Johnson, em História dos Judeus, op. cit., baseando-se nas pesquisas
de Cecil
uma filha do rei. Até 1125, o filho de Estevão Henrique, Estevão, portanto
neto do rei e
sobrinho de Mahaut, foi por esse considerado seu herdeiro natural. Mas,
quando o rei
morreu, Mahaut fez valer seus direitos à coroa com o apoio de seu meio
irmão, que obrigou os barões a reconhecê-la rainha e a admitir o direito à
coroa do filho de Mahaut, Henrique I d’Anjou. Quando Henrique d’Anjou
morreu, Mahaut foi a seu enterro.
alegando que sua renúncia à coroa havia sido arrancada à força e que, como
filha de irmã
de caridade, a rainha era uma soberana ilegítima, fez-se coroar rei pelos
londrinos com a
13. Raul Hilberg, The Destruction ofEuropean Jews (Holmes & Meier, New
York,
1985); Jacob Marcus, TheJew in the Medieval World: A Source Book, 315-
1791 (Atheneum,
15. Discípulo de WyclifFe (que ele traduziu para o tcheco), Jan Huss,
reformador da
1415. Foi nessa fogueira que Lutero acendeu a chama de sua revolta contra
Roma.
16. Primeira cristã da dinastia dos príncipes de Kiev, Olga, viúva de Igor, foi
batiza-
da em 957 em Constantinopla, por ocasião de uma visita oficial a
Constantino Porfiro-
18. Id.
19. S. M. Dubnov, History of theJews in Russia and Polandt 1.1 (The Jewish
Publication
20. Id.
1995).
Oxford, 1998).
6.
A trégua islâmica
judeus.
judeus da tribo dos banou quorayza por motivos incertos.1 Começo alarmante
das relações entre o novíssimo Islã e os judeus.
ele era e continuava sendo, tanto quanto o cristianismo, uma religião saída do
Antigo Testamento. A inspiração do Profeta foi pessoal; os ritos que lhe foram
necessários para foijar em alguns anos a identidade muçulmana foram adaptados
de outras religiões da região. Ignora-se quais foram os encontros do órfao
Maomé quando acompanhou seu tio Abu Tàlib,
de uma catedral; a Síria estava, com efeito, sob jurisdição bizantina. Lá,
Maomé e Abu Talib pararam em uma ermida e conversaram com um
tado como dia de repouso, mais tarde adiantado para a sexta-feira a fim de
ção aos judeus nem aos cristãos. Pode-se perguntar sobre as razões dessa
sua dívida em relação ao judaísmo ter sido bem maior. Elas se resumem
a três. Primeiro, Maomé e seus seguidores visavam confederar as tribos
judias que eles conheciam na Arábia não podiam representar um obstáculo sério,
o que não havia sido o caso de Paulo e de seus sucessores: estes tiveram, ao
contrário, que se lançar ao assalto de um império inteiro, no
209
meiros muçulmanos não tinham sequer idéia do mundo que iriam conquistar: a
maior parte deles nunca havia saído da Arábia. Sua bagagem material limitava-
se o mais das vezes a um sabre e alguns sacos de ouro e
de tâmaras que cabiam sobre um cavalo, e sua bagagem intelectual
um olhar novo.
que regia e regulamentava. Foi somente sete séculos mais tarde, quando
uma segregação mais severa em relação aos judeus. Eles levaram perto de
Por último, eles não dispunham, ademais, do apresto retórico e teológico dos
cristãos. Nenhum Tertuliano, nenhum Agostinho, nada de bispos, nenhum
alicerce de textos de onde tirar as interpretações sediciosas que haviam feito o
sucesso dos propagandistas cristãos; isso só viria mais tarde. Os árabes que
difundiram o Islã constituíam uma população
mo; sua visão do mundo era simples, e o código que Maomé lhes impôs
e morto por judeus. Mas, para os muçulmanos, Jesus não era o filho de
Deus, conceito inadmissível; e, por sinal, ele não tinha sido morto na
Corão, II , 54
Como eles, comiam carneiro, alfaces e tâmaras. Como eles, eram cuidadosos
com sua limpeza física e eram circuncidados. Fisicamente se pareciam. E suas
línguas eram mais próximas que a dos bizantinos e dos bárbaros que eles iriam
subjugar. Existiam mais árabes judaizados e judeus arabizados do que o quadro
atual das intolerâncias permite supor: cerca
ao islamismo, pior para eles: “Aquele que é conduzido por Alá está no
bom caminho, e aquele que dele se afasta não achará nenhum mestre
211
pelas sevícias recomendadas aos infiéis) e: “Mais vale uma justiça imparcial sem
religião do que uma tirania fundada em princípios religiosos.”9
tiveram grande dificuldade em aderir, mas do qual, ainda assim, estiveram entre
os principais beneficiários.
lhes haviam retirado. Exilarcas, rabinato, tribunais judeus, estava tudo lá,
apenas com a tênue diferença de que os judeus tinham que pagar impostos
excepcionais, assim como os cristãos e os pagãos: eles eram dhimmis,
mais raros do que na Europa cristã: eis por que o de Granada em 1066
merece que nos detenhamos nele. Como qualquer outra, a fé muçulmana, por ela
mesma, não era decerto uma garantia de tolerância, e os berberes, neófitos da
África do norte, não tinham sequer uma migalha da tradição de enterite e de
tolerância dos árabes. Essas misteriosas tribos louras de olhos azuis da África do
norte, que os próprios árabes qualificavam de barabra, “bárbaros”, formavam
grupos distintos, belicosos, provocadores, de independência e orgulho notórios,
que não conheciam praticamente nada do mundo exterior, nem mesmo suas
cidades.1 Movido pela ambição militar, aparentemente sem o menor senso de
solidariedade
vezes na escravidão.
Esse sombrio parêntese comporta uma lição: cada vez que o Islã escapou dos
árabes propriamente ditos, quer dizer, dos povos originários da Arábia, ele
derivou para o fanatismo, como observou Emest Renan. Isso
213
Saadia ben Yosef Gaon. Nascido em 882 em Pitom, atual Abu Sueir no
Alto Egito, viajou quando jovem, tendo ido a Alep e depois a Bagdá antes
não o Talmude de Jerusalém. Foi aí que Saadia se ilustrou (ele foi um dos
uma renovação que dura até o século XX). Foi também nessa época que
1138, precisou fugir junto com seus próximos em 1148 devido às perseguições
dos almoades. A família estabeleceu-se em Fez, sendo lá que Maimônides
recebeu a formação de médico. Mais tarde a família partiu
Fadil, vizir de Saladino, lá ficando até mor er, em 1204; durante todo esse
árabe, o que demonstra a integração efetiva das duas culturas, e foi traduzido
para o hebreu e o latim. Astronomia, medicina, escritos halácicos, ou seja, de
jurisprudência rabínica, e filosofia, Maimônides produziu de
tudo, tendo deixado uma obra considerável. Mas continua célebre hoje
214
em dia sobretudo por seu Guia dos Perplexos (Dalalat al HairinÍS) e sua
judaica.
o Islã ofereceu aos judeus; mas muitos outros judeus que alcançaram as
fazer bastante concessões para não ter que retornar ao jugo cristão. O
no Cairo, até Sa’ad al Dawla (morto em 1291) que, na Pérsia, foi o vizir
A TRÉGUA ISLÂMICA
215
estava garantida. Tal não era o caso da Europa; assim, no século XIV,
tempo escapar da abjeção de ser judeu que lhes era imposta dentro dos
que teriam sido perdidos sem eles, mas pouco se fala de seu papel de pro-
momento: uma grande parte dos autores árabes reputados, como Kindi,
gregos.19
217
ou seja, desde o triunfo do sionismo. Ou, mais ainda, desde que a coexistência
judeus/muçulmanos deslocou-se do domínio religioso para o político. O ponto
será examinado ao tratarmos do sionismo, no final desta obra.
atual Líbia. Entre 644 e 655, mal completados 33 anos da morte do profeta, os
muçulmanos tinham conquistado todo o planalto iraniano. No exterior, eles
descobriram o mundo, e no interior de si mesmos, sua irresistível dinâmica. Eles
tomaram consciência, com embriaguez e talvez também um certo receio, do
poder dessa fé nova que era o Islã. E que
lhes pertencia. Eles passaram a refletir sobre sua identidade. Ainda não
então era deles; nunca mais ninguém lhes resistiria. Mas, como todas as
sido negativa, mas tão-somente que o Islã, tendo deixado a Arábia, adqui
218
momento não era mais árabe, no sentido estrito desse termo. E nunca
mais o seria, nem no século XI com os tulúnidas do Egito, que eram otomanos
assim como os seljúcidas, nem com os ikhshiditas e mais tarde os mamelucos,
também otomanos, nem com os fatímidas de Ifrika, originários da Cirenaica. O
mundo islâmico, que se tomara grande demais, perdera sua unidade; via-se
incessantemente dividido por guer as de conquistas. Príncipes vindos de direções
opostas, da extremidade do Magreb e do outro lado do golfo Pérsico pegaram em
armas com o concurso de
Bourjouwân, que também servia de tutor para o califa também impúbere (11
anos) Al Hakim bi Amr Al ah,2 em 1009 — califa de mãe cristã, di-ga-se de
passagem —, os judeus eram duas vezes estrangeiros: a solidariedade
muçulmana já se tinha esvaído diante das ambições, e seus cor eligionários
muçulmanos eram o alvo de tentativas de as as inatos ininter uptos.
219
Islã e as ameaças cada vez mais fortes que o Ocidente fazia pesar sobre ele
Ibn Fourât, tramou com um rival fatímida nada menos do que a ocupação
poetas judeus.
“Com relação às cidades dos francos, há três dias no ano que são bem
221
com mais rigor; no Mar ocos, os idrísidas relegaram os judeus aos guetos
denominados mel ahs, onde eles ficaram confinados até períodos bem recentes;
e no Egito, após a deposição do último dos aiúbidas, Turanshah,
as mesmas medidas aos cristãos, cuja cor era azul. Ademais, era proibido
Essa gente toda chegava em levas, montando pequenos cavalos rápidos e, com
poucas manobras, conquistava territórios em que se instalava antes de partir de
novo para outro lugar. A maioria das populações
Os judeus não queriam se converter? Pior para eles. Seriam obrigados a prestar
serviços e pagar impostos mais pesados. Eles sabiam forjar armas para os
homens, cinzelar jóias para as mulheres, tecer e tingir a
223
todo modo são hereges e, portanto, inimigos. Por que nossos homens
não podem desposar suas filhas? Quem são es as pessoas? Por que deixaram
seus países? Por que não falam nossa língua? São estrangeiros, portanto, mais
uma vez, inimigos.
O fanatismo religioso cristão não foi tão religioso quanto pareceu: foi
varia entre 600 e 900. A hipótese geralmente admitida para explicar esse
massacre é que a
de Moisés. Segundo o autor árabe do fim do século XIII Abou el-Faraj el-
Isfahani (Kitâb
sido os amalecitas, o que parece confirmar a frabe de Nom. XXTV, 20, que
os define como
início do século IV, um rei de origem local surgiu em 375. Ele incluiu em
seus territórios
essa porta de acesso ao mar Vermelho. Em 575, o último rei judeu de Sabá,
Youssef Dhou
súbita de Maomé, como certos textos querem fazer crer: ela já estava em
curso (Michael
Islam, 6,1985).
225
sura XXI, 105 e o salmo XXXVII, 29; no Novo Testamento, entre a sura VII,
48 e Luc.
Moisés, e Miriam, mãe de Jesus. Maomé também teve acesso a certos textos
literários da
Júpiter Ammon, tinha os dois chifres. O Corão faz também referências aos
Evangelhos
Parece, além disso, que Maomé teve contato com “essenianos”, pois eles
também
parte da Mesopotâmia.
do século XIV; de origem árabe, ele viveu praticamente toda sua vida no
meio dos berberes, pelos quais professou grande admiração. A partir de
1945, há uma tendência a chamar os berberes de imazighen. Cf. Michael
Bret e Elizabeth Fentress, The Beibers (Blackwell, Oxford, 1997).
12. Não se sabe praticamente nada sobre Benjamin de Tudèle, a não ser que
era
judeu e negociante de pedras preciosas, e que seu Livre des Voyages, escrito
entre 1159 e
islâmico do judaísmo.
22 7
17. Sobre este assunto, que ultrapassa o propósito destas páginas, consulte-
se a obra
aprofundada de Nicole S. Serfaty, Les courtisans juifs des sultans marocains
XIlIe-XVII1?
18. Não foi o único auto-de-fé do Talmude: Luís IX, Felipe III e Felipe IV
ordenaram pelo menos um, cada um deles. O papa Clemente IV deu ordem
ao rei Jaime de Aragão de confiscar todas as cópias da obra, alegando que
“em seu enorme conjunto...
muito santa mãe”. Cf. Jeffrey Richards, Sex, Dissidence and Damnation
(Routledge,
século IX, para traduzir Aristóteles, faziam parte dois judeus, Hounain ben
Ishâq, o
20. Uma parte desse declínio demográfico deve ser atribuída às epidemias
de peste
período, teria passado de 100 milhões para 187 milhões. De 1965 a 1975, a
taxa de fecundidade, aliás, baixou entre 10 e 20% na maior parte dos países
do Terceiro Mundo, diminuindo 34% na China, e mesmo 47% em Cuba (
Population, Enciclopédia Britânica,
mais pitorescos de uma época por si só pitoresca. Foi ele quem, em 1010,
mandou destruir a igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, desencadeando
assim o furor do Ocidente cristão; mas ele também mandou construir a
grande Biblioteca do Cairo, instalada dentro do palácio dos fatímidas. Ao
mesmo tempo em que perseguia os cristãos, continuava a lhes confiar, a eles
e aos judeus, cargos de alta responsabilidade. Governador competente de
califado, deixou-se, contudo, consumir pela megalomania e no último ano de
seu reinado, em 1020, reivindicou a divindade! Mas seu nome continuou
reverenciado no
hoje, em árabe, os europeus são designados pelo termo Frang. Citado por
M. Cohen,
1994).
25. Gérard Chaliand e Jean-Pierre Rageau, Atlas des Empires (Payot, 1993).
7.
O exemplo asiático
perseguições. Não surpreende ouvir que ela os teria lançado no rumo das
Américas em companhia dos fenícios, segundo teses cada vez mais insistentes
que afirmam terem eles abordado o outro lado do Atlântico no primeiro milénio
de nossa era. Século após século, correm as lendas mais loucas a respeito dos
judeus, como os das famosas tribos perdidas que
De todo modo, eles foram os primeiros a chegar e a se instalar muito mais longe
do que todos os outros. Como, por exemplo, os judeus da Etiópia — os falachas
—, que não conheceram o Talmude. Transplantados para Israel em 1984, em
meio a um clamor midiático, consideram-se descendentes da tribo de Dan, tribo
de fato “perdida” ou meio perdida desde o Exílio na Babilónia. Eles pretendem
ter habitado a Etiópia desde os tempos de Salomão, talvez desde a saída do
Egito. A história nos
ausentes de Israel desde o século I antes de nossa era, data em que as leis
da Ásia. Vimos mais acima que eles foram para lá, onde se estabeleceram
pois havia muito dinheiro a ser ganho com a importação desse tecido, do
231
mar Vermelho, ora pelo golfo Pérsico, de acordo com Ibn Hourd”.9 As
original, era tolerante; ele não é, aliás, uma religião e decerto não uma
sul de Bombaim. Só sete famílias sobreviveram; foi o suficiente para fundar uma
colónia que existe até hoje, nos distritos de Kolaba, de Bombaim e de Shana, que
contavam com 13 mil almas nos anos 40 e 15 mil nos
233
tória dos judeus. Os judeus eram tratados com respeito que pode ser
cobre gravada em escrita tâmil antiga, com a lista dos privilégios concedidos a
Istippu Irappan, Joseph Raban: isenção de todos os impostos e concessão de
rendimentos de um bair o inteiro do porto de Cranganore, na costa de
Malabar.12 No começo do século XVI, novas levas de imigrantes,
provavelmente sefardis da Espanha e asquenazes da Europa ocidental, chegaram
da Europa à costa ocidental da índia, especialmente em Cochin, e ampliaram o
número de estabelecimentos comerciais já existentes. Entre 1820 e 1830, cerca
de dois mil sefardis chegaram de Bagdá, sempre na costa leste.13 A última leva
remonta à década de 1930, fugindo
essenciais.
“Para os mongóis não há escravo nem homem livre, nem crente, nem
pagão, nem cristão, nem judeu: eles consideram que todos os homens
pertencem à mesma espécie”, escreveu o judeu convertido cristão mono-
235
os capítulos seguintes.
236
das Américas 25.000 anos antes de nossa era (Roger Lewin, Young
Americans, New
6. Citado por Cécile Beurdeley, Sur les Routes de la Soie (Office du Livre,
Fribourg,
1985).
O EXEMPLO ASIÁTICO
237
RAZÕES
sínodos, bem como a denúncia do dinheiro feita por São Paulo, para
239
vez que os judeus traziam dinheiro para o reino, o rei Manuel I decidiu
bostes que adotassem sanções variadas: da prisão até o confisco dos bens
Contudo, foi durante o reinado de seu sucessor, Carlos VI, que os judeus
foram expulsos do reino, ameaçados de pena de morte.4 Eles dispuseram
artes do ocultismo pelos feiticeiros judeus. Ele reinaria por três anos e
muito cristão, impôs aos judeus o porte de uma efígie com chifres acima
contra aquela corja, sempre em meio a uma confusão mental e ideológica diante
da qual os processos de Moscou e o anti-semitismo nazista foram modelos de
clareza. Assim, no século XI , Walter Map, arquidiá-
em silêncio em sua sinagoga; desce, então, por uma corda que pende em
241
Inquisição não se privou de fazê-lo, para que ele confessasse o que se quises e. O
inventário dessas confissões fantásticas encheria volumes. “Em Jungensburg, na
Livônia, em 1692, um homem de 80 anos, de nome
juizes que o inter ogaram que era um lobisomem.”8 O que hoje em dia
receptáculo de bobagens ele pode ser por vezes), com suas ineptas fábulas de
íncubos e súcubos, de complôs satânicos e feitiçaria e suas suspeitas de heresia
— ainda existia no século XVI .9 Ele perdura, aliás, no século XX,10 sob uma
forma pasteurizada, na psicanálise. Nesse breviário
Será uma imagem apreciada, a que representa a fé cristã recebida “no rosto”.
Mesmo quando os judeus jejuam, estão imersos no mal: “Tudo que eles fazem é
pecado mortal.”1
O Mal eus Maleftcarum conheceu imenso sucesso entre 1486, ano de
cuja maior parte foi condenada à morte, afogada ou pelo suplício da roda.
e o clero os perseguiram. Tudo se pas ava como se a Igreja não mais tivesse a
respeito deles nem doutrina, nem política. Paulo I I, que reinou de 1534 a 1549,
chegou a encorajar o assentamento em Roma das comunidades expulsas de
Nápoles por Carlos V; e seu sucessor, Júlio II , renovou es as garantias. Mas,
durante es e mesmo tempo, a Inquisição prosseguia
o bair o dos judeus com muro não só em Roma, mas em todas as cidades
dos Estados pontificais. Estava imitando, desse modo, o gueto veneziano,
de suas lojas. Essa história havia começado com Santo Agostinho: “Ao
ção à negação de Pedro nem ao fato de que foi Paulo quem aboliu a Lei,
em uma igreja de Hamburgo em 1542. Como pôde saber que era aquele
Uma tradição que perdura até hoje, fiel a Jacob Burckhardt e a sua
dos limites rígidos da escolástica, até o domínio profano. O olhar dos clérigos,
mas também dos artistas, voltou-se na direção dos mestres gregos e latinos. “Eu
vou despertar os mortos!” bradava Ciríaco de Ancona, infatigável explorador do
mundo antigo. O cristianismo começou a sofrer o olhar crítico de elites cada vez
mais cultas e, portanto, aptas ao racionalismo e ao ceticismo, mas também à
experimentação científica. Em suma,
245
nem à Nova Roma. Foram confinados cada vez mais em seus guetos. Em
que os outros.
A Reforma, por sua vez, teve consequências políticas quase imediatas: pôs um
ponto final na hegemonia do Vaticano sobre a Europa e arrancou-lhe em algumas
dezenas de anos toda a Europa do norte. Dali
em diante, as decisões dos concílios sobre os judeus não seriam mais aplicadas
automaticamente em toda parte no Ocidente. A perseguição tornava-se, de uma
certa maneira, descentralizada.
ção dos judeus, mas não o fez diretamente. A partir do século XV, o
autoritarismo, a arbitrariedade e a ar ogância do papado, assim como o luxo
ostentatório e a cor upção do alto clero, começaram a suscitar reprovação
cada vez maior do campesinato e do povo das cidades. As execuções nas
revolta propagou-se como fogo no mato, que foi aceso na Alemanha por
tinham de sobra.
não seres humanos. Com relação a eles, não fizeram outra coisa senão
cristão.”
despeito, escreveu o que pode ser considerado hoje em dia uma espécie
sobrasse delas deveria ser enter ado na poeira, de tal modo que ninguém
pudesse ver uma pedra nem um fragmento (. .) Suas casas deveriam ser
247
rostos...”
Intenções que não caíram sobre ouvidos surdos. Seus discípulos
judeus do país; e, como Calvino, por outro lado, se mostrasse bem mais
O ponto mais importante da questão, porém, era que Roma não dispunha mais
do consenso popular (nem do privilégio da perseguição dos judeus) nem do
consenso dos príncipes. O protestantismo expandiu-se
se. A reação não poderia ter sido mais feroz, como demonstrou o massacre da
noite de São Bartolomeu: iniciado em Paris na noite de 23 para 24
durou de 1618 a 1648, a muito famosa Guerra dos 30 Anos. A seu término, a
Alemanha viu-se exangue por cerca de um século, e a Europa, ceifada de sua
juventude, de Castela à Suécia e da Alsácia à Lombardia. A história é cheia de
perigos: o estudo da época pode, quatro séculos mais
dos judeus, contudo, não lhes poupou da vindita nem de uns, nem de
outros. Para os protestantes, eles haviam recusado a mão que Lutero lhes
colher os benefícios.
A mim parece que não se refletiu suficientemente sobre o poder destruidor das
convicções religiosas e sobre a maldição representada pela imagem de um Deus
dos exércitos, decerto a mais blasfematória de
todas.Nem todas as gueras são, é claro, motivadas pela religião, mas aquela
seguramente começou com a questão da secularização das terras da Igreja e a
nomeação de bispos protestantes. Se alguém falava religião,
249
“De uns ar ancavam a pele, e suas carnes eram atiradas aos cães, de
vivos; crianças eram degoladas no colo das mães; outras eram despedaçadas
como peixes; cortavam os ventres das mulheres grávidas, retiravam os fetos e
batiam em seus rostos; abriam os ventres das outras mulheres
para colocar lá dentro gatos vivos; ainda estavam vivas e os gatos cavavam
dentro de seus ventres, e eles cortavam as mãos das vítimas para que não
nos seios das mães, e eles as espetavam em outras para assá-las no fogo e
mudar de religião.”15
dos judeus se deteriorou mais uma vez, ao menos nos novos territórios
russos e austríacos.
e jamais fariam parte do povo francês. Contudo, era evidente que, a não
ser que fosse considerada uma “solução final”, os judeus estavam lá e era
Essa corrente teve um duplo efeito: por um lado, dava aos judeus um
status legal e, por outro, criava novas tensões entre eles e os Estados. O
Por outro lado, a mesma cor ente tendia à instauração de um verdadeiro status
civil para os judeus; portanto, uma certa legalidade. Eles próprios, aliás, haviam
tomado a iniciativa: desde 1603 vinham tentando unificar as comunidades judias
do império e criar uma autoridade que
protestantes, a exemplo do que fora feito sob Carlos V,20 tentativa que foi,
por sinal, torpedeada. O Império queria de fato manter os judeus sob sua
251
Teresa tentou por diversas vezes reduzir a população judia da Galícia austríaca
expulsando os vagabundos”, escrevem Sylvie Anne Goldgerg e Alex
Derczansky.2
253
não tinham o direto de sair de seu gueto. Não tinham o direito de entrar
estava no auge: não se contavam, no final do século XVI mais do que 600
espionagem, complôs e traições e cuja vida social era regida por um sentido
quase paranóico do secreto.
quando um deles lhes apertar a mão! O mais das vezes mantido em uma
situação precária, apenas autorizado a se instalar, eternamente à mercê de
financeiras uma eficácia de que os não judeus não dispõem. O preconceito tenaz
contra seu savoir-faire perdurou até o século XX.
eles não eram numerosos, mas, se fossem deixados com a rédea solta,
dominariam tudo. Velha obses ão, que parece refletir um sentimento de
inferioridade.
dos Comuns foi chamada a votar a “Bula Judia”, que concederia facilida
A EUROPA DOS GUETOS
255
interior do país foi tomado por uma crise de xenofobia. Ingleses que
Catarina II integrou os judeus nas guildas. Mas as sedes das guildas ficavam nas
cidades e, em 1782, mercadores, ou seja, judeus ricos, e burgueses, ou seja,
judeus menos ricos, foram obrigados a residir nas cidades.
Isso resultou na expulsão dos judeus dos vilarejos e dos campos. Na rea
256
Antes de tudo era preciso não deixá-lo contaminar-se pelo judeu. Também nesse
caso o judeu foi cercado de muralhas e fechado dentro dos guetos, na cidade.
Paisagem sinistra. Vastas estepes tenebrosas var idas pelas tempestades do ódio
e, em tempos calmos, habitadas pelas brumas mefíticas de um anti-semitismo
larvar, de um mal-estar indefinível. Seria um câncer?
diabos. Uma vez mais, xenofobia e racismo seriam atiçados pelo fanatismo. O
mundo seria cristão e europeu ou não seria nada. O Ocidente acreditava estar
difundindo a luz, mas era o sangue que estava espalhando. Ele apregoava um
Deus da pobreza, mas era o ouro que cobiçava.
257
apelido de “Iombardos”.
às pias batismais, Carlos VI, então sob a regência do duque d’ Anjou, emitiu
um decreto
Londres, 1943).
12. Brian P. Levack, La Grande Chasse aux sorcières (Champ Vallon, 1991).
Um
foi desse modo que o papa Bonifácio VIII, que pertencia à família dos
Caetani, eternamente em atrito com os Colonna, declarou estes últimos
hereges porque contestavam seu poder secular; e que Clemente V, que em
1309 se apropriara indevidamente da cidade de Ferrara em detrimento da
família d’Este, decretou hereges todos os venezianos por terem passado a
dirigir-lhe imprecações. Mas, evidentemente, não se podia enviar à
fogueira uma família inteira e menos ainda uma cidade inteira, e com muita
frequência a
14. Uma fusão entre o Judeu Errante e o Judeu Suss iria ocorrer no século
XVIII. O
16. Apesar de hetman (titular do grau militar mais elevado) dos cossacos,
Bogdan
çou a se refugiar junto dos cossacos, ao lado dos quais combatera contra os
otomanos em
que contava deixar para seu filho, entrou em choque com os exércitos
poloneses e litua-
A EUROPA DOS GUETOS
259
Britânica.
17. A Fronde de maio de 1648 opôs, pela primeira vez na história da França
e da
20. Josel von Rosheim (por volta de 1478-1554) era o diretor e porta-voz das
comunidades judias do Império Germânico, reconhecido como tal pelo
imperador, de quem obteve a proteção de numerosas comunidades contra as
perseguições. Combateu com
çava os judeus de Hesse. Cf. Nachum T. Gidal, Les Juifs eti Allemagne de
Vépoque romaine à
21. Era-lhes proibido vender tabaco para fumar (mas não para aspirar),
couro, lã,
25. Uma rica burguesia conseguiu formar-se da qual um dos mais célebres
representantes foi Siisskind Stern (1610-1687), banqueiro, ancestral dos
Rothschild da França; os Stern têm hoje em dia numerosos descendentes na
aristocracia britânica (por exemplo,
Meyer Amschel Rotschild and his Time (Harper Collins, Londres, 1997).
28. No que diz respeito aos católicos, ele havia declarado que não toleraria
jamais
30. Giuseppe Trebbi, em Storia di Venezia dalle origine alia caduta delia
Sereníssima, 8
land em que não eram cidadãos de nenhum país, a não ser que se convertessem.
Estrangeiros eternos, minoritários por excelência, tolerados com a condição de
se fazerem úteis. Sua principal fraqueza era de ordem histórica: não possuíam
nenhuma unidade, pois a diáspora fragmentara-os há muito tempo em uma
miríade de comunidades que não chegavam às
vezes a uma centena de almas e que, ainda por cima, estavam divididas
limitação dos nascimentos. Isso foi feito por meio da proibição do casamento
sem autorização real e, fato nunca visto, mesmo fora dos territórios do domínio
real. A situação dos judeus era insuportável, pois viam-se submetidos a
constantes cobranças de impostos a respeito de tudo ou
Os judeus da Lorena e dos Três Bispados não eram mais bem aquinhoados.
Supostamente sua liberdade de comércio era reconhecida, mas eles não tinham,
por exemplo, o direito de comprar uma casa na qual não
fossem morar, nem uma fazenda que não fosse para ser explorada por
os judeus a obtiveram.
263
único templo no país. A França pretendia ser um reino católico e foi com
tornar-se nosso bispo, de tanto que eles são hábeis em tomar conta de
passado das mãos do papado e do clero para as dos políticos. O maior dos
censuras pontificais, não tinha mais tanta importância: o que contava era
baixas. Não era o caso, pois a religião proibia aos cristãos da França o
que o ofício de emprestador tinha sido imposto aos judeus por ela mesma. Poder-
se-ia imaginar que os judeus obtinham sucesso com a usura, mas suas
comunidades estavam fortemente endividadas com o Tesouro,
265
segundo conta uma anedota,5 continuou sendo um rei católico que abertamente
não tolerava nem os protestantes, nem os judeus e outros hereges. Esse ser
alheiro amador era na verdade um totalitário apático.
não é bem isso, pois o teísmo, mesmo tendo dissolvido os poderes dos
Grégoire, o destino dos judeus poderia ser melhorado à medida que eles
essa esperança, pleiteou, pois, sua emancipação civil. Para tanto, eles
da era das Luzes, como se ouviram tantos no século XVI I, e- que talvez
267
judeu”: “Esse vasto reservatório, eu quase falei cloaca, onde são acumulados os
restos do espírito humano...” O Talmude era “a causa da infertilidade do povo
judeu” e a razão pela qual “eles não tinham senão idéias emprestadas; e que
idéias. .”.6 O abade não lera, pois, Spinoza e — não
lhe guardemos rancor — não poderia prever nem Karl Marx, nem Max
“Abracemo-nos Fol evil e”6* que faria rir se o assunto não fosse tão sério.
Tanto mais que não foi o único, em um ambiente que, no entanto, não
era filossemita. Ele modificou os espíritos. O que não era fácil.
ele registrou que os brancos lhe “parecem superiores aos negros, assim
mais invencível ódio por todos os povos que os toleram e que os enriquecem.” Já
se conhecia Voltaire como anticristão. Em suas memórias, o príncipe de Ligne,
que passou oito dias em Ferney em companhia de
tamanhas diatribes contra Jesus Cristo é que Ele nasceu em uma nação
que ele detesta.” O mesmo que dizer que Voltaire era anticristão apenas
Não vamos nos deter sobre “os vícios dos judeus” e a “bondade” que
eles não têm; pela primeira vez na história a tónica da questão era a
responsabilidade da sociedade com relação aos judeus. A declaração de
Robespierre iria ressoar longamente. O primeiro escrutínio da
269
imposto pelos franceses, decretou que o bair o judeu não seria mais chamado
pelo “nome bárbaro e destituído de sentido de gueto”, mas pelo nome de Via
Libera, “Rua Livre”. Símbolo importantíssimo. Duas semanas mais tarde, em
decor ência do decreto datado de “Fructidor, ano V da República Francesa e ano
I da Liberdade Italiana”, as muralhas do gueto
foram postas abaixo, de tal maneira que não restou mais nada daquela
Política
Tur qui a
Constantinopla, 28 Germinal
Jerusalém aos judeus que Bonaparte conquistou a Síria.” Estava claro que
Petersburgo.
República Francesa.
todos vocês, exilados! Por uma guer a sem exemplo nos anais da história, guer a
empreendida com o objetivo de autodefesa, por uma nação cujos ter itórios
hereditários foram considerados pelo inimigo
271
desde longa data sob o jugo da escravidão; ela está vingando também
a ignomínia que pesa sobre vocês há cerca de dois mil anos (. .)
A grande nação que não faz tráfico de homens nem de territórios, diferentemente
daqueles que venderam seus ancestrais a todos os povos (Joel, IV, 6), faz neste
momento um apelo a vocês: por certo não um apelo para que façam a conquista
de seu património, mas simplesmente para que tomem posse do que
conquistaram e que,
Os libertários de 1789 foram mais longe, com efeito, ao recusar qualquer status
oficial para a religião, pois o Estado não deveria mais ser confundido com a
sociedade civil. Para esta, ou para partes dela, estava liberada a prática de uma
religião, caso desejassem, mas teria que fazê-lo de maneira inteiramente
independente. O que pode ser compreendido sem
vez que fora ele que havia engendrado todas as demais. Como escreveu
Bernard Lewis, o crime dos judeus não foi ter matado Jesus, mas tê-lo
273
judias eram fundadas na adesão à Lei. Não apenas não poderiam mais
A ponto de, no final do século XVI I, Emmanuel Kant ter podido declarar: “Não
se pode causar maior prejuízo a uma nação do que lhe retirar o caráter nacional e
as idios incrasias de seu espírito e de sua língua.” Formulação infeliz como
nenhuma outra, pois ela iria erigir o célebre valetudinário de Kõnigsberg em
protetor do nacionalismo.
aos judeus.
época que ele engendraria uma das piores doenças políticas de todos os
tempos, o nacionalismo, que foi quase fatal para o judaísmo, sem falar do
fato de ter feito a Europa sangrar durante três guer as sucessivas (1870,
1914-18 e 1939-45). De Hobbes a Déroulède, e de Déroulède a Hitler, o
275
só aboliu em 1998).
O terceiro perigo iria engordar os dois outros por efeito de convergência, não
tendo sido o mais negligenciável: o nascimento da antropologia. Nascera do
cientificismo enciclopédico, ilustrado no exterior por gigantes, tais como Alex
von Humboldt, Cari von Linné e Johann
Gottfried Herder, sem contar, mais uma vez, Kant, o sábio que interrompeu seu
passeio cotidiano sob as tílias de Kõnigsberg quando lhe trouxeram a notícia da
Revolução Francesa. A antropologia, ou ciência da raça humana, foi em seus
primórdios um apanhado dos mais extravagantes de
demonstrar que Lombroso não era um gênio. Foi sobre essas bases fantásticas
que os nazistas se aplicaram à tarefa de verificar a origem ariana por meio da
medida do crânio. Loucura do país de Nietzsche: julgava-se
das orelhas!
idéia de que apenas a raça branca era capaz de cultura, embora sua
potencialidade estivesse esgotada porque sua composição “racial” não mais era
pura.Eis aí uma fulminante coleção de contraverdades científicas. Não há
“raça branca”, nem “negra”, nem “vermelha”, nem “amarela”, mas apenas
características pigmentares relacionadas à melanogênese da derme e a estruturas
culturais. Só se pode falar de raça, salvo dizer qualquer bobagem, quando não
existe interfecundidade entre uma raça específica e outra; ora, um banto pode
muito bem se acasalar com uma mulher aina
pelo nome de “raça branca” sofreu tantas invasões ao longo dos milénios,
277
em guarda:
“Que os judeus sejam uma raça inteiramente particular não pode ser
russos são místicos (como Stalin e Yeltsin), os negros têm o ritmo no sangue
(como Mandela e Richard Wright) etc. Os judeus são evidentemen
278
as coisas são o que são porque elas não poderiam ser de outra forma. As
nenhum lugar; eles não seriam, pois, colonizados abertamente, mas pelo
interior.
279
60 mil libras, os Moch, 5.500.” Ph. Bourdrel, Histoire desJuifs de France, op.
cit.
a ele? E possível que tenha sido destruído por Bonaparte na volta de sua
campanha, uma
10. Scinitcs and Antisemites (Weidenfeld & Nicolson, Ltd., Londres, 1986).
16. Wider die Juden: Ein Wort der Wamung na alie unsere christliche
Mitburger. Cf. Léon
17. Até hoje não existem provas de que tenha alguma vez existido uma etnia
ária distinta, e menos ainda de que os ários sejam originários desta ou
daquela parte do mundo.
A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS
281
tribos que falavam a mesma língua, dita indo-ariana. Elas teriam, segundo
os conhecimento atuais, se concentrado nos altos platôs do Irã (dos quais
não foram, contudo, os primeiros ocupantes), no Afeganistão e na
Mesopotâmia e, de lá, se teriam espalhado, em
céltica, do ramo dos helvécios, que só foi conhecida bem mais tarde pelos
romanos,
( em Lucien Boia, Entre l’ange et la bête de VAntiquité à nos jours, op. cit.).
10.
América, América!
O Velho Mundo tomara-se sufocante. Foi então que os judeus atentaram para a
descoberta de seu cor eligionário Colombo em 1492: exatamente no mesmo ano
em que o rei e a rainha da Espanha, eles próprios
tinham ouvido falar, nos portos da Europa e da África Ocidental, daquelas ter as
desmesuradas, de florestas gigantescas, montanhas tocando o céu e planícies
sem-fim habitadas por populações de pele acobreada;
eram os marranos, aqueles convertidos que a Inquisição estava sempre
283
de Torquemada.
bens dos “culpados”, não tendo, pois, nenhuma razão para deixar a
atuais.
Noronha, escapou durante alguns decénios (até 1591) às “visitas episcopais” dos
emissários da Inquisição. O primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de
Souza, para lá enviado em 1549, era provavelmente um
feita aos judeus foi revogada por haver caído em dessuetude. A coroa,
prejudicado e, com certeza, não pela última vez. Eles possuíam a maior
terras onde o sucesso lhes estava valendo o ódio.1 Eles não partiram
América do Sul.2
muçulmanos tinham oferecido asilo aos judeus expulsos das ter as cristãs,
conscientes de estar agindo em seu próprio interesse, os governadores de outras
colónias européias apressaram-se em acolher os judeus nos territórios que era
preciso explorar, ar endar, cultivar, minerar, desenvolver comercialmente. Eram
essencialmente as colónias inglesas, pois a França dos Bourbons expulsara os
judeus de suas colónias em 1683.
em 1671, o governador assegurou ao rei que não havia súditos mais úteis
285
se teriam convertido para não se ar iscar na aventura; dos 100 mil restantes, 50
mil teriam ido procurar refúgio com os otomanos e os muçulmanos da África do
Norte, e o resto se dispersou pelos países da Europa, da Ásia e da África. Apenas
cinco mil teriam partido para as Américas.4 Esses
Norte mais do que três mil judeus (para uma população total presumida
total de 12.703 pessoas, das quais 2.899 brancas”, escreve Samy Katz.6 E
287
obra que aquele imenso país tinha e que, na época da construção das
De mais a mais, a maioria dos imigrantes judeus era jovem (“70% dos
América, deu uma guinada cuja importância parece mal avaliada ainda
nacionalista.
Não se pode deixar de mencionar, nem que seja paralelamente, o
289
cultural internacional.
O desenvolvimento do anti-semitismo americano pode, portanto,
essas idéias deveriam seduzir as massas, tanto mais que essas tinham a
Tennessee. Foi condenado a 100 dólares de multa, soma elevada na época, por
haver ensinado a teoria da evolução das espécies, pois o evolucio-nismo era
proibido pelas leis do Estado do Tennessee por ser contrário ao
judeus. Era preciso acabar com aqueles “guetos” insalubres que ofendiam a
sensibilidade da burguesia protestante, católica e branca.
fixando quotas, idéia louvável a não ser pelo fato de se basear em critérios
aos judeus e, como se verá na terceira parte deste livro, iriam, segundo os
dificilmente pudesse ser comparado aos agres ivos nacionalismos europeus. Não
era um anti-semitismo declarado, mas sim um anti-semitismo não falado, do tipo
segregacionista. Era originário de duas grandes correntes: uma, do sudoeste, era
constituída de populistas ligados aos movimentos agrários que guardavam ainda
fresca na memória sua derrota na
AMÉRICA. AMÉRICA!
291
guer a civil, responsável pela emancipação dos negros e pela ruína dos
hostis à comunidade judia, dentro da qual existia uma forte corrente sindicalista,
socialista e comunista, até mesmo anarquista. Mesmo que não pudessem ler o
iídiche, os americanos protestantes não poderiam ignorar
a imprensa nessa língua que contava, desde o final do século XIX, com
fraye Arbeter Shtime, anarquista. Mas também não lhes faltavam pessoas
americano em geral.
nos Estados Unidos. Era a época dos furadores de greve e dos enfrenta-
Sábios de Sião. O crash da bolsa de 1929 e o New Deal posto em ação por
comércio, são a prova. Em suma, o judeu não era nem de direita, nem de
para os americanos bem como para o resto do mundo, admitir que, retomando
uma fórmula conhecida, os judeus se recrutavam “entre os civis”.
entrada dos Estados Unidos na guer a por uma parte das vastas comunidades
americanas de origem alemã, pela propaganda do Bund nazista, muito ativo, e,
além de Ford, por pessoas como Charles Lindberg, simpatizante reconhecido dos
nazistas,16 como o célebre padre católico Coughlin, virulento propagandista
nazista, como William Ward Ayer,
293
sus nas universidades, nos hospitais, nas administrações públicas e privadas foi a
expressão mais evidente. O medo surdo dos cristãos americanos de uma
“judeização” dos Estados Unidos é impossível de ser quantificado. Exigiria por
si só um estudo específico que ultrapassa de longe o âmbito destas páginas.
Pode-se entretanto verificar sua realidade no fato
puderam ir para lá. Seu número permaneceu ínfimo: eram apenas 107
canadense.”
295
4. Max I. Dim ontjews, God and History (Mentor Books, New York, 1994).
5. Nicholas de Lange, Atlas of the Jewish World, op. cit. Lange não esclarece
se esses
7. Joseph J. Blau e Saio W. Baron, The Jews in the United States: 1790-1840,
3o vol.
9. Nachum T. Gidal, Les Juifs en Allemagne, op. c/r.; Joseph J. Blau e Saio
W. Baron,
The Jews in the United States: 1790-1840, op. cit.\ Paul Johnson, História dos
Judeus, op. cit.
que chegaram no começo do século: 70% dos que chegaram entre 1900 e
1914 tinham 14
a 40 anos de idade.
11. Ruth Gay, The Jews of Germany— A Historical Portrait, op. cit.
297
13. Robert W. Ross, So it Was True: the American Protestant Press and the
Persecution of
1921 por um crime que acabou se tornando claro que fora cometido pelo
bando Morelli,
ver tanto com a “psicologia das massas” quanto com a etnologia. Familiar
dos Estados
Unidos desde 1960, pude muitas vezes constatar em conversas que os não
judeus atribuem aos judeus “traços psicológicos” hereditários. Essa alusão
não é, entretanto, sempre pejorativa, é frequentemente também admirativa,
e alguns de meus interlocutores
lamentam não serem judeus o que, segundo crêem, lhes teria permitido se
dar melhor
nos negócios...
17. Os Estados Unidos tinham, entre 1933 e 1941, admitido 150.000 judeus
da
Alemanha (Rachel Ertel, États-Unis, op. cit.)\ recusaram-se a passar desse
número, a despeito da certeza de que os que estavam sendo rejeitados
estariam ipsofacto condenados à morte.
20. Id.
11.
299
que professam o culto hebraico e que, até o presente, não têm sobrenome e
nome fixos, serão obrigados a adotá-los dentro de um prazo de três meses a
partir da data da publicação do presente decreto, e a fazer a
“Usem com orgulho o estigma amarelo!” {Tragt ihn mit Stolz, dengelben
Fleck!)
para cada dois casamentos entre judeus. Esse projeto chocou-se contudo
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
político. Pela primeira vez a situação dos judeus europeus não dependia
301
perar os direitos que lhes tinham sido retirados. Mas a luta se anunciava
difícil.
As populações dos Estados alemães, habituadas a manter os judeus
foram mortos. Entretanto, fato novo, não era o populacho que exercia
Perdita: “Jerusalém está perdida.” As revoltas Hep! Hep!, como iam ser
uma grande onda de emigração para a América, que não parou mais e que
H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O
da Polónia e da Bessarábia.5
religioso para o político não havia mudado muita coisa. Errado: a renova
ção do anti-semitismo religioso havia sido apenas uma breve recaída; ele
que por pouco não se tomou económica. Um dos quatro decretos imperiais
de 1808, chamado pelos judeus de “decreto infame”, limitou severamente os
juros de usura e tomou possível anular empréstimos judeus aos cristãos.7
Reativados após os desastres de duas invasões, esses empréstimos estavam
ameaçando, com efeito, levar à ruína os cristãos. Os judeus protestaram, e,
meio século depois de Luís XVI, Luís XVIII ordenou uma
a m á q u i n a i n f e r n a l e as p r o m e s s a s t r a í d a s
303
çaram respeitabilidade e poder tais, que os elevaram aos mais altos escalões
dos Estados europeus. Mayer Amschel Rothschild foi conselheiro do
príncipe-eleitor Guilherme I de Hesse; o barão Cari von Rothschild
nas artes e nas letras. Com exceção do episódio islâmico, foi a primeira
vez desde a queda de Jerusalém que o judaísmo pôde expor à luz do dia
como era o usual. Cidadão francês, pediu para jurar sobre Deus, como os
judeu jurar sobre Deus não tinha nenhum valor, como se 'Yàhweh não
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
sete anos por uma criada cristã, e o Santo Ofício e, segundo se dizia, o
Tanto mais que uma certa desjudaização estava em curso: não fora visto,
“Nós não temos mais força para usar barba, jejuar, odiar e, por causa
305
não eram nem uma nação, nem um povo, e propôs que se celebrasse o
Mortara entrou para as ordens, não saiu mais e morreu em 1940, prelado
mais nas mãos do papado, esse fazia questão de manifestar o pouco poder
temporal que lhe restara, sempre pronto para resistir a imperadores, não
deixando escapar uma ou outra oportunidade de deitar as garras nos
judeus.
Contudo, ninguém pareceu prestar atenção ao fato: o cunho internacional
dos três episódios foi um prelúdio de outro maior, o caso Dreyfus, que iria
explodir alguns anos mais tarde. O anti-semitismo pretendeu
30 6
H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O
uma parte ativa, no combate pelo bem mais sagrado da humanidade, uma
vez que nos sentimos alemães e saxões com não menos entusiasmo do
que nossos irmãos cristãos. Tomamos parte na luta pacífica por meios
307
dos Estados alemães unidos, ele a recusou com altivez. Talvez tenha sido
ou oficiais do exército.
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
tomou ameaçador.
3 09
nado foi, na Inglaterra, Charles Dickens com seu romance Oliver Twist,
os subúrbios das grandes cidades eram povoados por uma fauna subuma-
Os judeus, cujos ideais de justiça eram ainda mais vivos pelo fato de
terem eles própnos sofrido tanto com a injustiça, não se poderiam abster
de participar desse debate. Até então, os pobres tinham sido uma questão
Sempre na Inglaterra, que de toda maneira não foi o único país onde
situação dos pobres por meio das célebres Poor Laws, as “Leis para os
eram separados de suas famílias e de seu meio e, após sua morte, seus
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
Laws) desonrou nosso país mais do que qualquer outra que tenha sido
um crime.”13
donos, se não puder obter dos pais a subsistência de que tem direito a
lhes pedir, e se a sociedade não tem necessidade de seu trabalho, não tem
Era o erro que eles iriam repetir durante a Primeira Guerra Mundial.
311
ódio que é nutrido contra ele, o judeu alemão esforça-se sem parar para
pois, preciso que as classes ricas reabilitassem os judeus? E por que fazê-
lo? Essa gente era toda estrangeira. O socialismo assumiu dessa forma
sendo esquecida; ela não poderia englobar os judeus, uma vez que eles
não faziam verdadeiramente parte da sociedade.
judeus jogavam um jogo duplo, pois contavam em suas fileiras com pluto-
Em Paris, não se havia visto James de Rothschild doar com uma das mãos
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
Marx e Engels o disseram; portanto, era verdade. Foi assim que o anti-
A direita e a esquerda eram, pois, ambas, hostis aos judeus por razões
iria exacerbar-se nas décadas seguintes e adquirir cunho cada vez mais
313
1. Citado por Ph. Bourdrel, Histoire des juifs de France, op. cit.
2.1d.
tinham regido “o povo de Israel na Palestina no tempo em que ele tinha suas
leis, seus
lacionismo”.
Napoleão estava, dessa maneira, impedindo a integração iniciada pela
Revolução.
as atividades dos judeus com as leis francesas. Era ele, por exemplo, que
liberava uma das
enviá-los ao exército.
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
12. O banqueiro Jacob Herz Beer, pai de Giacomo Meyerbeer, abria sua
vasta residência em Berlim às congregações do sabá, chegando a reunir
umas 400 pessoas e atraindo judeus que há 20 anos tinham estado isolados
do judaísmo. Essas reuniões duraram de 1814 a 1823, até o dia em que a
polícia, por conta de um decreto real inopinado, lhes pôs
fim.
13. Em Tíie Tdea ofPoverty, citado por Albert O. Hirschmann. Deuxsiècles de
rhétorique
17. Apesar de ter nascido em uma família que contava com eruditos e
rabinos, Karl
Marx foi batizado com a idade de seis anos, atendendo à vontade do pai.
Suas relações de
315
também era racista, por vezes do tipo dissimulado. Amenidades que lhe
valeram ter sido
era ele próprio de origem judia, assim como o primeiro ministro Evgueni
Primakov.
1998).
III.
O ANTI-SEMITISMO NACIONALISTA
1.
A explosão francesa
da Belle Époque
o que lhes diziam seus pais. A manifestação foi retomada na tarde do dia
320
H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O
Não foi o texto de Zola no L! Aurore3 que fez germinar em toda aquela gente
o anti-semitismo, tal qual uma gripe. Ele estava sendo incubado de longa
data. Desde a derrota de 1870 e a Comuna.
321
considerá-los a causa dessa nova crise. O governo temeu uma guerra civil
que grande parte da opinião pública francesa ansiava por foijar uma
identidade nacional, considerada ameaçada, e da qual os judeus estavam
evidentemente excluídos, por princípio. Mas o que ameaçava essa
identidade? Em primeiro lugar, a Alemanha, cujo expansionismo e
militarismo agressivo haviam sido encorajados pela vitória de 1870. O kaiser
estava
não construía mais fortalezas, mas sim vias férreas, para tomar os
transportes de tropas mais rápidos.
A Belle Époque foi, por sinal, uma das mais fúteis imposturas da história
recente: uma conversa fiada macabra na antecâmara do horror.
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
Após ter proclamado que “a França está decadente”, eterno refrão dos
fanáticos dispostos a comprometer o dia de amanhã, Edouard Drumont,
quais os judeus estariam incluídos, mas não apenas eles. Era um estado
“pureza” racial.
com água. Essa França imaginária, em que Joana d’Arc era praticamente
contemporânea de São Luís e de Pio IX, jamais existiu a não ser nos
quadros de Greuze revistos pelo imaginário sulpiciano; foi uma dessas fic-
“deicida”.
323
social e liga nossos destinos aos da Igreja de Jesus Cristo? Esse pacto tem
sido a lei de nossa história: a França sofreu todas as vezes em que traiu
Luís abençoou seu povo quando ele foi fiel aos engajamentos de seu
324
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
arrepende, que sofre e que tem esperança (...) em tomo de suas tradi
direita. Não foi apenas Paris que se agitou e fez, como diria Feydeau, uma
325
transformaram-se em lugar-comum.
O PERIG O JU D E U .
Émile Zola
Kifeltmc. .
326
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
semitas nem por isso reconheceram seu erro, mesmo os mais cultos deles.
que ele conservará até a libertação de Paris e que apenas poucos chefes
disputarão com ele, por pouco tempo. E ele fará uso destas palavras
indecentes, reflexos do totalitarismo que o acabará impregnando: “Não
quero mais entrar no velho debate, inocente ou culpado. Minha primeira e
última
“Esse traidor Dreyfus, por ele mesmo, não significa absolutamente nada
quando comparado à idéia que tornou seu triunfo possível e mesmo fácil:
favor do indivíduo...”11
Dreyfus por ele mesmo não tem para Maurras nenhuma importância:
seu erro foi ter feito valer seus direitos de indivíduo contra os da sociedade.
Atentemos para o detalhe, que é de uma importância capital: a conde
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q U E
327
últimos 100 anos, vem gozado entre nós de uma popularidade verdadeira e
forte (...) Quando a Lei e o Estado favorecem a espoliação financeira dos
autóctones e seu desapossamento administrativo, quando os recém-vindos,
agrupados, disciplinados, com sua lei e seus ritos particulares,
cólera e de rebelião.”12
religião de 89” que uma justa cólera é suficiente para varrer. O que ele
não são ladrões, pois o argumento seria tosco demais para ser admitido;
tarde. Para os nazistas, com efeito, a cultura nada mais era do que a
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
329
A idéia de nação, que une as massas, requer por ela mesma o tirano,
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
ção de seus imóveis à rede de esgotos, chegando até a ver no fato uma
com ardor os banheiros à moda turca (instalavam-se cada vez mais privadas
com assento, inventadas na Escola Monge em 1883), justamente porque
eram incómodos e “bíblicos”, acusando as privadas com assento de
favorecer a disseminação da sífilis e a masturbação...16
nova.17 De fato, o que ela ignorava é que sua degenerescência, que era
bem real, era causada justamente por esse “voltar para dentro de si mesma”
e pela sufocação que se impunha ao respirar os miasmas de seu terror.
Ignorava que era esse próprio terror que ia conduzir aos massacres das
duas guerras, como se ratos enlouquecidos com injeções de adrenalina
estivessem sendo forçados a se matar uns aos outros dentro de uma gaiola
de laboratório. Pioneiros, elétrons livres, vibriões e ludiões, os
judeus eram, naquele contexto sinistro, tidos cada vez mais como os
inimigos congénitos. Não tardariam a pagar, como Bardamu, o herói do
A EXPLOSÃO FRANCESA DA BELLE ÉPOQUE
331
Noite.
Maurras foi um dos representantes perfeitos dessa psicose. Seu ideal
ser diferente da nação francesa, devia ser mantida fora das fronteiras.
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
pan-europeu.
A esquerda denunciou da mesma maneira o famoso “modernismo”.
mais tarde, era antidreyfusista. Mas, com notável clarividência tática, Jean
O Caso era para ele uma causa que era preciso dissociar do “problema
nesse sentido que ele a apresentou. O Caso desviou para si todo o mal-
militar-burguês-plutocrata.
O que não impede que Jaurès tenha sido, a sua moda, um anti-
que, convenhamos, era o cúmulo: ser “judeu” mesmo quando não se era!
333
época: como Jaurès pôde, pois, ter feito o mesmo discurso que Maurras
também não enxergava com suficiente clareza que não era a Igreja a
causadora daquela explosão de anti-semitismo, era o nacionalismo. Mesmo
que estivesse consciente, não poderia ainda assim denunciar: como vimos
mais
havia nenhuma razão para se fazer uma exceção para eles e autorizá-los a
Tal foi a sombria herança legada pela Revolução de 1789 a seus herdeiros
republicanos: Deus fora substituído pelo Estado-Nação. A histeria da direita
de 1898 era a mesma das cruzadas de 1096, apenas com uma pequena
diferença: a identidade nacional estava substituindo o Deus que,
vítimas.
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q J J E
335
2 .Id.
ou seja, 14 anos antes, pelo escritor Bernard Lazare em seu manifesto Une
erreur judiciai-
re, que publicara peças do dossiê que o exército queria mater secretas. A
evidência da
parecia ter sido redigido pela mão de Alfred Dreyfus. Ele foi preso e o
serviço de informação do exército “justificou” sua prisão fabricando falsos
intentos para comprometê-lo como réu. O principal culpado era o coronel
Henry (que havia apelado para o falsário e
H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O
Esterhazy, além do telegrama a ele dirigido; sem falar do fato de que a tal
listagem teria sido
anotada pela própria mão do... imperador Guilherme II. Os alemães não
seriam tão idiotas
e pouco apreciado pelos colegas, “pagar o pato”. O caso Dreyfus não foi um
caso que acidentalmente teve a ver com um judeu; foi, sim, um caso
desencadeado pelo desejo deliberado de envolver um judeu.
judeu, a fim de poder pisar nele de manhã e à noite.” Para aliviar as letras
francesas, mencionaremos que o diretor do Instituto Pasteur, Emile
Duclaux, professores do Colégio de França, Charles Péguy, Anatole France,
André Gide, Jules Renard e Octave Mirbeau
337
(Plon, 1997).
6. A primeira sondagem realizada junto à opinião pública americana em
setembro de
seguintes resultados:
Polónia: 2,5%;
mas com certeza não a mãe, a temível Blanche de Castilha, que passava a
maior parte dos
demasia, uma vez que o monarca vivia à mercê dos dominicanos, anti-
semitas encarniçados, como se viu nos capítulos precedentes. Ele foi
canonizado, com impressionante celeridade, um quarto de século depois de
sua morte.
Ousaríamos acrescentar uma nota marginal a essa obra notável? Aos olhos
de um
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
terá futuro enquanto rejeitar o povo do qual nasceu.” Era para entender
com isso que
1984).
18. Citado por John Patrick Diggins, Max Weber— Politics and the Spirit
ofTragedy
fato de que não considerava “os belgas, os tchecos e os latinos dos dois
mundos” estrangeiros...
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q U E
339
(ed. La Fabrique, 1998). Essa obra, bem como a de Marc Crapez, Naissance
de la gauche
de la France en 1898, op. cit. Grande parte das celebridades das letras e das
artes, sem distin
la pressefrançaise, t. III, P.U.F. 1972). Foi a partir de 1911 que ela teria
acrescentado a men
ção em questão em epígrafe, uma vez que o caso Dreyfus estava encerrado
(Léon
1’école de VAction française (J. C. Lattès, 1998). Para Jaurès, “os judeus têm
desempenhado
maio de 1908), citado por Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri,
Naissance de
27. Talvez se deva também levar em conta o real desgosto que a Terceira
República
A ilusão alemã
e a crise do Ocidente
A EMANCIPAÇÃO DOS JUDEUS EM 1871 — PAPEL EMINENTE DOS
JUDEUS NA
tempo na Prússia sob Frederico II, por exemplo, mas foram rapidamente
atenuadas por homens como o conde Hoym, ministro da Silésia, célebre por
sua tolerância, que concedeu os plenos direitos cívicos a 24 famí-
A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E
341
lias judias e direitos parciais a 160 outras (não havia muitas mais).
foi tão bem tolerada, como ficou demonstrado pelas revoltas “Hep!
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
Metz foram licenciados para celebrar o\òm Kipur. “Nós, judeus alemães,
somos alemães e nenhuma outra coisa”, proclamava o jornal religioso
Reichstag do Império.
A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E
343
nobreza do rei, tendo sido o primeiro judeu a ser agraciado. Mas existiram
outros.
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
todos. Talvez protestassem um pouco alto, o que fazia com que fossem
ironicamente qualificados de cidadãos judeus de confissão alemã; de
345
mais peles levitas e pelos filactérios, mas por sua influência no Estado —
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
Francesa...”12
347
“anti-semita”. Não era mais por causa de seu não cristianismo que os
judeus eram rejeitados, mas por serem portadores de uma doença racial
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
população para que qualquer um pudesse ver que eles não passavam o
349
“É uma epidemia horrível, como o cólera, que não pode ser explicada
nem curada.” Mas talvez fosse ainda um pouco cedo, apenas oito ou nove
anos depois da admissão oficial dos judeus na sociedade alemã, para julgar
o enraizamento do anti-semitismo.
dos financistas judeus e por dar nova força, dessa vez entre a população
comum, aos clichés sobre o civismo dos judeus. Quando eles tinham
H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O
financeira, e que foi o banco Bleichrõder & Cia., também judeu, que
garantiu os prejuízos.18
importância superior à que corresponde aos 15% dos votos obtidos pelo
351
do aço inoxidável nas fábricas Krupp, da qual foi um dos diretores até
aquela que acredita que o mundo é uma selva em que triunfa apenas a
Uma época se decifra por sua cultura ou, mais precisamente, no caso,
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
eram hostis a uma democracia que dava voz com muita facilidade a
elementos parasitas. Já Céline constituiu um caso à parte, e sua importância
foi desmesuradamente inflada no pós-guerra.23
Talvez nos surpreendamos por encontrar em meio a esses “faróis” o
353
que acabou sendo preso depois da guerra 39-45 por suas declarações pró-
à expansão colonial. A Europa cristã tinha sob seu jugo cerca da metade
H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O
esse sentimento era reforçado pela evolução rápida das técnicas, que
abalaram os modos de vida tradicionais (o automóvel, o telefone, o rádio),
assim como pelo pressentimento de guerras iminentes. A crispação que
355
Berlim (de início em umas poucas salas alugadas) e deu cursos com a
colaboração de historiadores como Eugen Tãubler e Ismar Elbogen, de
linguistas como Franz Rosenthal, de sociólogos como Franz Oppenheimer.
Era o modelo dos cursos universitários alemães.
publicados na mesma época, que eram não menos mais ferozes e que
exprobravam bem
mais o mundo.
7. Ruth Gzy,Jeivs of Germany, a Historical Portrait, op. cit.
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
9 .Id.
17. Citando Klemens Felden, autor cujo rastro infelizmente não consegui
localizar,
problema judeu, das quais 19 apelando para sua eliminação física (Cap. 4,
The Evolution of
357
esperar de uma tese tão provocadora quanto a sua: ele já havia mencionado
que “uma
nação alemã inteira equivale a negar uma lei fundamental da sociologia, que
é a inércia
— The Goldhagen Thesis and Historical Truth (Henry Holt and Company,
New York,
1998).
foi iniciado, em 1933. Durante os cinco anos que se seguiram, esse sistema
funcionou
mal.
18. Gordon A. Craig, The Germans (Penguin Books, Londres, 1982/1991).
HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO
Browning, Émil Behring and Paul Ehrlich: Their Contributions to Science, vol.
175,1955.
Generation of Science (Basic Books, Inc., New York, 1974), a causa de sua
partida foi “o
1920, a despeito dos ataques anti-semitas de que foi objeto por parte de
alguns físicos alemães invejosos de sua notoriedade (The Bom-Einstein
Letters, 1916-1955, cartas 21 e 81, Macmillan, Londres, 1971).
destino literário foi mais invejável). Este livro não é uma obra de crítica
literária; então
limito-me a dizer que Céline, pelo estilo, parece ser o filho natural de Zola,
portador sem
graça sinistra não chega a ser superior à de Pierre Desproges, para que
mereça ser erigido
Não vamos citar aqui o deplorável Robert Brasillach, cujo “belo Gerhardt
Heller”,
359
27. Librairie Mareei Rivière, 1907. Sorel exerceu profunda influência sobre
Mussolini.
3.
361
Eu mesmo, em outros lugares,2 deplorei que Pio XI não tivesse deixado Roma
durante a guerra para reaver sua liberdade de expressão.
Goethe e que o jtihrer execrava a Igreja.4 Mas faltou muito para que os
indignas. João Paulo I , entre outros, não se deve ter esquecido de que
diante do duce. A muito famosa Marcha sobre Roma foi uma comédia: foi
com pleno conhecimento de causa que o rei e o exército entregaram o
encíclica Urbi arcani Dei do mesmo ano de 1922, o papa Pio XI exortou os
primeiro alcançou a vitória que, contudo, nada teve a ver com a questão
“dentro do Estado, a Igreja não é soberana, ela não é sequer livre. .”. No
ano seguinte, tratou o cristianismo de “seita judia”. Até o final, ele não
Em 1934, ainda, relata Gérard Sylvain, ele disse que Roma poderia
Europa, onde as pessoas não sabiam ainda nem ler, nem escrever quando
desta verdade: Roma não foi fundada sobre o conceito da raça, mas sobre
363
uma das potências do Eixo e dos ter itórios subjugados em que foram
presentes no território francês, e que Pier e Lavai assinou uma lei mandando que
16.600 fossem entregues aos nazistas.10
resistiu bem melhor do que o francês às incitações ao ódio; a lição merece que se
medite sobre ela. A Itália não produziu nem Papon, nem Eichmann, nem nenhum
de seus sequazes.
pôde passar, e foi o judeu, por causa dessa invenção diabólica, que a ati
364
rou cinco séculos para trás. Apenas a vitória do judeu pelo bolchevismo
tivesse alcançado uma vitória absoluta, a Europa não seria mais do que
É claro que as reações dos católicos ao perigo nazista, que eles pressentiam sem
evidentemente imaginar sua iminência e assustadora amplitude, não brilharam
pela inteligência. Rosenberg mostrou-se bem esperto ao lembrar que, em 1923,
Pio XI evocara para a Alemanha então ar asada, a necessidade de “resgatar a
triste apostasia que a havia separado da Igreja romana 400 anos antes”. Porque,
em 1923, a Igreja ainda não se
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R
365
do Zentrum, registrara que “a der ota de 1918 tinha sido desejada pela
justiça imanente, que havia golpeado o povo alemão por ele não se ter
Essa defecção não foi suficiente para acalmar a vendeta dos nazistas.
escreve Lama. “Muito deles são presos, seus oradores são impedidos de
status dos judeus, todos unidos por Hitler dentro da mesma execração.
Um acordo havia de fato sido assinado entre Hitler e Pio XI (que delegara para a
circunstância o cardeal Pacel i, futuro Pio XI ), em julho de 1933. O papa tinha
pressa em limicar os desgastes, e os católicos podiam
Dr. Erich Klausener, diretor da Ação Católica, Adalbert Probst, diretor das
enfraquecer a Igreja católica até sua liquidação. Mais uma vez os católicos
sobre essa época não confirmam nem uma nem outra alegação”, são mal
Sorge.xs Goldhagen ignora que em 1939 os católicos estavam sendo presos nos
Sudetos como “inimigos do Estado”?16 A Igreja passara à categoria dos
perseguidos.
mais de meio século, é que elas trazem à baila uma eventual culpa coleti-
va alemã. De acordo com as teses que sustentam, um país inteiro teria
367
autores —judeus, ainda por cima17 — por que não teriam eles se insurgido
contra o Estado dirigido por Guilherme, o qual, especificamente, protegera os
judeus. Nesse caso, escrevem Norman G. Finkelstein e
Ruth Bettina Birn, “o sangue judeu deveria ter corrido nas ruas” desde
muito tempo. Esse tipo de acusação pas a por cima do fato de que Hitler,
chanceler, foi eleito com apenas cerca de 33% dos votos e que nenhuma
que seja desconsiderada, pois, nesse caso, seria necessário julgar também
Por que apenas eles? Por que os judeus? E, assim, voltamos à questão
de paz, quando ninguém imagina, não pode imaginar o que foi a vida
por vezes mulheres velhas, foram enviadas para campos de trabalho por
Exigir de uma população que vivia nessas condições que se insurgisse contra a
exterminação de judeus aproxima-se do delírio e é no mínimo ignorância
histórica das mais gros eiras ou então animosidade pressuposta. Apesar disso, es
a extraordinária distorção da realidade histórica adquiriu proporções planetárias.
369
e era também grave para os judeus. Quem fazia parte desse movimento?
Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin: judeus, aos quais estivera
associado alguns anus antes o deputado social-democrata judeu Paul Singer
(morto em 1911). Ora, o grupo Spartakus destacara-se ao longo
como se ela fos e realmente seu país. Muitos deles praticamente abdicaram de
sua judeidade. Não foi por acaso que o redator da Constituição da República de
Weimar, que em seguida se tomou ministro do Interior, foi
que, de fato, explodiu um quarto de século mais tarde. A nação, já humilhada por
todas as provações que se seguiram à derrota de 1918, à ocupa
ção de uma parte de seu território e à abdicação de seu imperador,
sentiu-se ameaçada dessa vez por seu interior. Ela se deparava com
país mais devastado de que se teve notícia desde a Guerra dos 30 Anos —
conhecemos.
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R
371
Mas quem de imediato com mais exatidão captou a situação dos judeus
todo homem tem traços desagradáveis, até mesmo perigosos: é uma barbaridade
querer que os judeus constituam uma exceção.”23
vista parecia iminente; ela só foi evitada por um acordo apressado, concluído em
segredo na noite de 9 para 10 de novembro de 1918, entre o socialista Ebert e o
general Groener. As tropas governistas atacaram
noite no Hotel Eden e assas inados pouco depois. Eles não poderiam ter
a República de Weimar, assim chamada por ter sido nessa cidade que sua
Constituição foi promulgada, foi antecipadamente desacreditada pela
patética, grotesca e sinistra descrita, por exemplo, pelo artista satírico alemão
George Grosz em Ein KleinesJa und eingrosses Nein (“Um pequeno Sim e um
grande Não”), com suas ruas percorridas por inválidos de
desdém mesmo fora da Alemanha; de fato, ela mereceu. Era uma facha
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R
373
retomo dos exércitos vencidos sobre as pontes do mesmo Reno que vira
A provação alemã não se havia encer ado com o armistício: de volta a casa,
Ele gostaria de obedecer ao dever. Mas onde estava o dever? Na defesa de uma
sociedade imperial que não era senão o corpo sem cabeça de uma monarquia que
ar astara o país ao desastre, ou na defesa de uma
impôs. Com 230 deputados, tomara-se uma força crescente não apenas
seguintes:
ação política posterior possa apagar seus atos imorais, a história está cheia
375
o caminho.”31
anos mais tarde pela fórmula de Mao Tsé-tung: “Que diferença faz se o
levar tudo, ou seja, a Europa inteira, e foi só então que os Estados Unidos
ter implantado o New Deal “socialista” para tirar seu país da crise de
regime forte”.
377
ponte nos países ocidentais, com a interveniência dos partidos comunistas locais,
conferiram ao comunismo uma iminência assustadora, que contribuiu
grandemente para o advento do Terceiro Reich, pelo alarme
E no ano seguinte, a Baptist World Al iance, a mais poderosa força religiosa dos
Estados Unidos, realizou seu congresso anual em Berlim, gesto car egado de um
evidente simbolismo.34
Desde os anos 20, fiel ao judeu apóstata e anti-semita Karl Marx, repetiu
Mas foi na Alemanha que o mito da identidade alcançou seu paroxismo mais
assassino. O sistema implantado por Hitler visava a “reparar” a profunda ferida
infligida à Alemanha pela der ota de 1918, sentida por
ele e pela coorte de revanchistas patológicos que o cercava como uma
mais is o vai acontecer!” Ora, o “Nunca mais isso vai acontecer!” designava não
o massacre de 14-18, mas a der ota do Império contra-assinada pela República
de Weimar, aquela república que, em seu simplismo, os
uma obsessão tomou corpo dentro dos espíritos da minoria que tomara o
379
(foi a razão pela qual as leis de Nuremberg, votadas em 1935, fizeram dos
381
nazistas pouco tempo para agir. Era preciso acabar rapidamente com os
judeus.
ção em segredo. Uma indicação disso é a idéia fixa de traição que tomou
para entregar judeus, não sem antes confiscar-lhes todos os bens, evidentemente.
Foi um plano preparado pelo banqueiro do Reich, Hjalmar Schacht. A primeira
“remessa” deveria compreender 150.000 judeus. O
plano não prosseguiu por causa da oposição posterior de Hitler, dominado por
sua obsessão de genocídio.45
que não haja sequer um deles assinado por Hitler. É correto pensar que
relatadas pelas imprensas estrangeiras nos anos em que elas ainda podiam
falar sobre is o, mas sem nenhuma referência à “solução final”, que era
declaração Balfour de 1919, que havia pela primeira vez desde o Império
Romano dado uma pátria aos judeus — e na Palestina, ainda por cima —
1941 instruções para não dar mais destaque aos sofrimentos dos judeus do
que aos de qualquer outro povo sob dominação nazista. Era preciso não
por exemplo os que eram disseminados por sir Oswald Mosley, chefe da
Lord Tavistock.
383
oficialmente acusado de ter sido designado por Hitler para ser ogauleiter
do Reino Unido em caso de ocupação do país. Na realidade, parece que
muitas concessões para evitar a guer a; os judeus não poderiam ter grande peso
em um tal contexto, e a prudência do governo em relação às informações sobre
as perseguições de judeus se explica com facilidade ou
segunda categoria.
investir contra os judeus, mesmo que vítimas dos nazistas, e com palavras cuja
intensidade de violência era quase igual à aversão demonstrada:
ele enviou a Cousteau uma carta de Viena na qual descreve com júbilo
fascismo”.5
excessivo, mas, mesmo assim, não deixa de existir uma grande parte de
lhe fazer oposição. O horror nazista, que iria fazer dolorosas cicatrizes
com fer o em brasa mesmo nas consciências dos cristãos, era suficientemente
previsível em 1938, última parada antes do inferno, para que se
* Dança guerreira executada pelos índios em volta da vítima que vai ser
escalpelada.
(N.T.)
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R
385
preciso resistir.
ter sofrido de cegueira. A começar por Hitler, que proibiu a física relati-
realizar. Ele próprio me contou em 1958. “Era alquimia”, disse ele, “eu
entregues ao sono, uma vez que houve pelo menos dois grandes movimentos que
lhe deram impulso e que, por pouco, não fizeram com que tivesse havido duas
Resistências. Mas pessoas de todas as clas es sociais e
387
1789. Qual era a diferença entre es es dois nacionalismos? Ou, para resumir,
entre Jean Moulin e Pier e Drieu La Rochel e? A ética, para come
Desde então, a atitude de Pio XII tem sido objeto de ataques frequentemente
muito violentos, reforçados pela real germanofilia desse papa, notadamente
quando era núncio em Berlim.
enviado os cristãos à morte e nem por isso teria certeza de poder salvar
judeus.
Lamentei que ele não tivesse deixado Roma no começo da guerra; ainda o
lamento.
Não teria sido o primeiro papa a deixar a Cidade Eterna e talvez sua ação
pudesse ter sido
mais clara e mais eficaz no campo aliado. É claro que foi germanófilo, o que
não é um crime. É claro que cometeu outras bobagens, por omissão (v. nota
21). Mas a história pede mais prudência do que certos autores têm
mostrado.
5. James Carrol , The Silence (The New Yorker, 7 de abril de 1997). James
Carrol é
católico, antigo capelão da Universidade de Boston.
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R
389
(Cahier du Cercle Ernest Renan, n? 204). É preciso lembrar que até então o
Vaticano
1985).
8. Id.
7.500 dos 58.000judeus (La question juiue en Europe, 1933-1945, op. cit.).
10. Susan Zucotti, The Holocaust, the French and theJews (Basic Books,
HarperCollins,
12. Citado por A. Lama, Mussolini, Pie XI et la question religieuse, op. cit.
13. Id. Podemos nos perguntar, segundo a mesma ótica, se não ocorreu ao
redator do
Bayerische Kurier a idéia de que os ingleses, por outro lado, possam ter sido
recompensados por sua apostasia.
15. A. Lama, Mussolini, Pie XI, Hitler et la question religieuse, op. cit.
17. Norman G. Finkelstein e Ruth Bet ina Bim, A Nation on Trial, The
Goldhagen
Thesis and Historical Tnt li (Henry Holt and Company, New York, 1998).
18. Nazism, 1919-1954,4 vol., sob a direção dejeremy Noakes (University
ofExeter
19. Id.
carta apostólica do papa João Paulo I em 1994, Tertio millenio admi ente,
que começava
contratestemunhos e escândalo.”
É mais provável que ela estivesse cumprindo uma promessa bem mais
antiga,
Igreja, apesar de ter sido ela mesma que inspirou, como foi exaustivamente
visto nos
391
O mais estranho dessa alegação de paganismo é que ela parece absolver por
omissão
judeus, como é o caso da França. Mesmo que tenha contado entre seus
aliados e inspira-
dores com uma pessoa como Charles Maurras, “pagão” presumido, mas
sobretudo teís-
filhos e filhas da Igreja” que não elevaram a voz na Alemanha e nos países
ocupados contra as perseguições dos judeus. Deploráveis desculpas, no meu
entender: elas ignoram, com efeito, as condições nas quais os católicos em
particular viviam naqueles territórios
Igreja”.
darem desse modo razão a Hitler, que não queria que os padres se metessem
na política,
“Os bispos austríacos, com sua declaração, colocaram o fardo da luta sobre
os ombros dos
seu exercício devesse por isso ser acusado de abuso de poder”. O mesmo
Feltin mandou
Pio XII, com efeito, não deu continuidade à atitude enérgica de seu
predecessor a
Como a situação se agravou, Pio XII preferiu não ver renovada a ameaça de
Hitler (James
Pool, Hitler and His Secrets Partners, Pocket Books, New York, 1997). Mas
não foi suficiente para que a imagem desse papa deixasse de ficar manchada
pela complacência em rela
dólares na economia do Terceiro Reich. Teria sido também a razão pela qual
ele deu
1947. A operação foi relatada por um antigo coronel, cujo nome não foi
declarado, da U.
against the Jews (St. Martin*s Griffín, New York, 1994). Ela foi montada
pelos irmãos
393
28. Rowohlt Verlag, Hamburgo, 1955. É, aliás, a tese exposta com impecável
clareza
depressão dos anos 30 que uma não pessoa como Hitler conseguiu se impor
na
Alemanha.
29. Mein Kampf, op. cit.
31. Winston Churchill, Great Contemporaries, 1935. Cinco anos mais tarde,
em 20 de
agosto de 1940, André Gide escreveu em seu Journal: “Não consigo deixar
de sentir por
uma vez que Gide se uniu à França Livre, mas de desatino mesmo assim.
34. Robert W. Ross, So It Was True, op. cit. O gesto revestiu-se de uma
gravidade proporcional à importância da Baptist World Alliance que, nos
anos 50, reunia 20 milhões de membros no mundo (. Baptists, Enciclopédia
Britânica). A decisão desencadeou fortes críticas, mas a BWA manteve sua
decisão. O correspondente do diário americano The
quadro idílico da Alemanha, onde não havia jazz, nem literatura “sexual”,
nem “filmes
395
socialista entre 1933 e 1935, e a maneira pela qual esse aparelho fez reinar o
terror sobre
todo um povo são um tema que ultrapassa de longe o âmbito destas páginas.
Pode-se,
Press, 1990), e Hitler’s Enforcers, The Gestapo and the SS Security Service in
the Nazi Revolution
mesmo do Império, se uniu aos nazistas de boa vontade, tanto mais que eles
lhe deixaram
diz respeito a Heidegger, nâo pretendo estabelecer aqui um debate que não é
o objeto
destas páginas; mas dois fatos me parecem indiscutíveis, seu niilismo e sua
denúncia anfl-
SD e Hitler's Enforcers, The Gestapo and the SS Security Service in the Nazi
Révolution, op. cit.
44. Trinta cópias numeradas das atas da conferência foram distribuídas aos
chefes
dinamarqueses que salvaram os judeus em seu país, uma vez que ela
demonstra que a
empresa não era destituída nem de riscos nem de adversários (cf. Antoine
Jacob,
48. Richard Breitman, Official Secrets: What the Nazis Planned, What the
British and
Americans Knçw (Allen Lane, Londres, 1998). O autor relata que foi
somente por inter
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R
397
Patriotism Perverted, Captain Ramsay, the Right Club and British Anti-
semitism, Constable,
Londres, 1998).
51. James Pool, Hitler and his Secret Partners, op. cit.
52. Germanofobia que não impediu, contudo, que seus possuidores
colaborassem
Les maurrassiens devant la tentation fasciste (La Table Ronde, 1973), em que
se constata que
54. Id.
55. Id. Ficamos imaginando, horrorizados, qual seria o regime ideal para o
eminente historiador, eleito para a Academia Francesa em 1953 e autor
entre outras obras de
56. “Em vez de se ver em Reynaud e em Daladier dois homens que levaram
o país à
não teriam podido melhorar a sorte dos judeus na Alemanha antes de seu
engajamento
achar que seriam os comunistas que então tomariam o poder (James Pool,
Hitler and His
Secret Partners, Pocket Books, New York, 1997). Pretexto sem fundamento,
pois o exército alemão em 1938 era profundamente nacionalista, como me
foi confirmado em 1956
livrar” (get rid oj) dos judeus, se o fizesse discretamente. Acrescentou que os
próprios
Pocket Books, op. cit.). Observações de extrema gravidade, uma vez que
faziam dos
399
equipe com Kennedy, sua opinião pesou na decisão inglesa de não intervir
na
irmãos Dulles ajudaram, com efeito, a transferir os bens nazistas para fora
da Alemanha.
deveria ser considerado traição. Cf. John Loftus e Mark Aarons, The Secret
Waragainst the
Com frequência tem causado espanto o fato de os físicos alemães não terem,
paralelamente, seguido o mesmo caminho intelectual de Bohr. Mas a
questão permanece mal conhecida. Em resumo, segundo um dos mais
brilhantes deles, Wemer Heisenberg, os
físicos teriam compreendido muito bem o alcance da experiência de Hahn.
Encarregados
À guisa de memorial
401
judeus por motivos que não são mais religiosos, mesmo que eventualmente ainda
invoquem a religião, mas aparentemente culturais, na acep
ção germânica da palavra Kultur, que considera a cultura não um bem
cultura.
Levinas.
Nem o gládio nem a prédica, nem a ameaça, nem a promessa de recompensa das
fontes batismais conseguiram vencer sua determinação.
403
sur ados, por vezes forçados ao suicídio coletivo, a cabeça enfiada à força
ções dementes, como envenenar a água dos poços e fazer pão com o sangue de
crianças cristãs, sempre às voltas com os vencedores, acusados de cupidez por
gente mais cúpida do que eles, ofuscados pelo brilho das
armas ou do ouro de seus senhores, eles curvaram as costas, mas não baixaram a
cabeça.
que mora nas nuvens, tal como lhes foi representado até bem recentemente. Uma
dúvida como es a não ameaça os judeus.
Algumas pessoas podem argumentar que, nos dois primeiros períodos, os judeus
também exerceram o nacionalismo identitário. Seria deturpar o sentido das
palavras: o nacionalismo baseia-se em uma idéia
Essas questões definitivamente não são claras para todos. Com efeito, elas
abordam um conceito que parece “natural”, o do nacionalismo identitário, que se
aplica da mesma maneira à cultura, como vimos.
lenda judaica de Praga. Elas não tiveram nada com aquilo, alegaram. Em
demais para que alguém o utilizas e. Seis milhões de mortos? Puro delírio.
Apenas algumas centenas ou milhares de pessoas, ciganos, pederastas e
“degenerados” diversos, rebotalhos da sociedade acometidos de disenteria ou de
pneumonia, sifilíticos em fase terminal. Um “detalhe da história”, vomitou
obstinada e publicamente aquele que representou provisoriamente um bom
quinto do eleitorado francês, ignorando massas de documentos sobre o assunto,
como muitas outras coisas, aliás, e decerto
À GUISA DE MEMORIAL
405
preocupado em preparar a ascensão de um regime antidemocrático que
Alemanha, pois não há razão para que esse país seja poupado, essas hordas, por
não encontrarem mais judeus, atacam os imigrantes, incendiando moradias de
turcos ou de outros estrangeiros.
“irmãos” e seu maior prazer é dar tiros até que seus tímpanos estourem,
tamente o que pareceu, e de maneira tão evidente, que temos que nos
407
Durante vários meses do ano de 1998, a França foi mantida em transe por um
processo que se assemelhou estranhamente a uma sessão de espiritismo: refiro-
me ao processo Papon. O passado de meio século anterior foi invocado, como a
pitonisa de Endor invocara os manes do profeta Samuel para o assombrado Saul.
A França inteira recuou, ater ada como a
em que o quarto inteiro começa a virar junto com a mesa. O processo foi
Ainda durante o ano de 1998, assistimos a um conflito, por certo abafado, mas
não menos revelador, entre o presidente da República e o primeiro-ministro a
respeito das insur eições de 1917. Defensores de uma
cega de pátria.
que o do dito), uma suposta cor ente pretende, ou teria pretendido, que
a Shoah foi uma questão judia que não interessa mais aos não judeus, e
que o processo Papon foi um desses “grandes casos” que se deixam aos
para que cada um possa formar a opirflão que bem entender. A lógica
feroz da história quis que fos e diferente: ainda no mesmo ano de 1998,
impunidade!
409
poço tranquilo, mas dos vapores das câmaras de gás e das bolhas do sabão
fabricado meio século antes com a gordura dos guetos: os judeus faziam
parte do género humano. Matar judeu foi na realidade um suicídio adiado. Jesus
não disse outra coisa, mas ficou evidente também que os que, no passado,
acreditaram poder invocá-lo impunemente — ministros,
fogueiras que acenderam. Seus cúmplices iriam arder mais tarde dentro
ter ível iminência à advertência do judeu Jesus: “Não façam aos outros o
que não desejam que seja feito a vocês mesmos.” Durante a guerra de
judeus, sem dúvida não nas câmaras de gás, mas, mesmo assim, milhares
de carniceiros e de Judas.
Pior ainda: o passo seguinte foi ter que suportar ver essa Igreja, da
rios, seus parentes próximos, para os quais nada muda, e que teriam de
ódios, com efeito, perduram. Neste velho Ocidente marcado com tantas
da crueldade e da dor, sua presença pode ser verificada até o final deste
411
ções abra mão da solidariedade e das redes que lhes permitam defender-
se? O poder dos judeus, alega-se, aliás, não é proporcional a seu número.
intelectuais para sobreviver. Existe, com efeito, uma cultura judia que é a
religião determinada?
1862 que, pela primeira vez, Moses Hess, um socialista alemão, conheceu algum
sucesso entre os judeus ao defender em seu livro Rome et
livres? Pela ótica da época, quem entre os judeus teria podido adivinhar
413
Talvez seja este o objetivo último destas páginas: lembrar que o anti-
de gás virtuais.
Mas podemos mostrar a todas as pessoas, mesmo às que não se interessam pela
História, mesmo àquelas para quem a Shoah foi um acidente da história que não
compromete seu futuro, a todas essas pessoas podemos mostrar o seguinte: as
perseguições anti-semitas sempre foram
414
dirigida a eles tem sido igualmente condenada pela opinião pública mundial. E
apenas as pessoas sem consciência, no sentido quase neurológico dessa palavra,
suportam sem uma profunda dor as imagens da Shoah.
415
norte-africano”. (N.T.)
Stern, A Force Upon the Plain — The American Militia Movement and the
Politics of Hate
do verâo de 1998. Ela não merece ser relatada a não ser pelo fato de refletir
a incompreensão da Shoah em certos meios no século XX e de perpetuar
uma forma de insensibilidade em relação a ela. Um carmelo vizinho
mandou instalar sobre o local de Auschwitz cerca de 230 cruzes — 80
medindo quatro metros de altura e perto de 150 menores, além de uma
outra de sete metros de altura, dita a “cruz do papa”, plantada em 1988 e
assim chamada porque fora colocada, em 1979, na ocasião da visita de João
Paulo II a seu país, em Birkenau, um dos campos de Auschwitz. Sensível aos
protestos dos judeus, ofendidos
com aquela floresta de cruzes, o episcopado polonês julgou que ela “se
afigurava, com
27 de agosto de 1998.)
416
cruz plantada em uma saibreira onde tinham sido fuzilados 152 patriotas
poloneses no
começo da guerra. Ora, esses patriotas não foram fuzilados por sua fé, mas
por razões
sem dúvida inoportuno. E era, por sinal, como pensava também o governo
polonês.
as outras, após ter sofrido um massacre terrível, não soubesse hoje em dia
encontrar palavras que denotassem compreensão e compromisso”. Ou seja,
em bom português: “A lição não lhes foi suficiente?” Com uma casuística
singularmente inconveniente, monsenhor Glemp era também da opinião
que Auschwitz fora criado na Polónia, mas na Polónia ocupada. (AFP, “O
primado da Polónia envenena o debate sobre as cruzes de
417
asiática assim como nos fiéis de uma igreja coreana, matando um deles.
Parece-me indecente consignar uma série de crimes hediondos como esses à
rubrica das notícias sem importância: eles são extremamente reveladores do
racismo ambiente. E tão numerosos,
que encheriam todos os anos um grosso volume.
10. Em 1993, era um bilhão e 870 milhões sobre cinco bilhões e 800 milhões
de terráqueos. Os católicos nominais representam um pouco menos da
quarta parte do total, com um bilhão e 300 milhões de almas. Cf. Britannica
Book of the Year, 1994.
13. Muita tinta se gastou com esse “tropeço” no sentido literal da palavra,
para que
hitlerismo era a garantia de sua liberdade. Esse artigo foi, com efeito, uma
réplica ao
mais tarde sua leitura continua rica de ensinamentos não só sobre o desvio
intelectual de