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BERTRAND BRASIL

R e lig io s o , e c o n ó m ic o ou b io ló g ic o ... A n tig o , m e d ie v a l ou m o


d e rn o ... V u lg a r, e n fu re c id o ou p s e u d o c ie n tífic o ... Há 2 . 5 0 0 a n
o s o a n ti- s e m itis m o c o n tin u a a tiv o , a d o ta n d o d iv e rs a s m á s c a
ra s ao lo n g o d o s s é c u lo s . D eze n a s de o b ra s tã o d e lir a n te s q u a n
to in fu n d a d a s fo ra m "’
e s c rita s p a ra p ro m o v ê -lo . D e ze n a s de o u tra s , fu n d a m e n ta d a s
, fo ra m e s c rita s p a ra d e n u n c iá -lo e e n fre n tá - lo . M as, no a lv o re c
e r do T e rc e iro M ilé n io , a q u e s tã o m a is p ro fu n d a e m a is d o lo ro s
a da H u m a n id a d e c o n tin u a v ív id a : p o r q u e o a n ti- s e m itis m o ?

Só G e ra ld M e s s a d ié , c o m su a e ru d iç ã o e a m p la v is ã o , c o m s u a
s e n s ib ilid a d e e seu s a b e r e n c ic lo p é d ic o , p o d e ria e m p re e n d e
r u m a in v e s tig a ç ã o c o m o e s ta , in ig u a lá v e l, q u e p e rs c ru ta as g
ra n d e s c iv iliz a ç õ e s em su a re je iç ã o s e c re ta e c o m u m d e s u a s o
rig e n s e da a lte r id a d e . Da G ré c ia e d e R o m a à E u ro p a d o s to ta lita
r is m o s , p a s s a n d o p e la Id a d e M é d ia , v ã o -s e d e s v e n d a n d o os
trê s m a is im p o r ta n te s a n ti- s e m itis m o s q u e o b s e d a m a c o n s c
iê n c ia c o n te m p o râ n e a e q u e são a q u i d e c ifra d o s e m s u a s s in g
u la r id a d e s .

C o n tra to d a s as le itu ra s in c o m p le ta s ou p a rc ia is , lo n g e d a s

e x p lic a ç õ e s re d u to ra s e ta m b é m lo n g e d o s s im p le s re c e n s e a
men​

ISBN 978-85-286-1010-9

to s , e is a p rim e ira h is tó ria s e n s a ta do a n ti- s e m itis m o , re p le ta de

im p o rta n te s re fe rê n c ia s , de fá c il le itu ra , e q u e c o n s titu i, p o r isso

m e s m o , seu m e lh o r a n tíd o to .
Q ual a im p o rtâ n c ia de um a h is tó ria g e ra l do

a n ti-s e m itis m o ?

Os ju d e u s são perseguidos há m ais de dois m il anos,

e ninguém , nem m esm o seus perseguidores, sabe por


quê. Uma "fa ta lid a d e histórica"? Os judeus, eternos estrangeiros, estariam
condenados ao eterno ostracism o?

A com preensão do a n ti-se m itism o interessa apenas aos ju d e u s ou aos seus


perseguidores? Ou a qua lq u e r ser hum ano civiliza d o e preocupado em co n
tin u a r a sê-lo?

O a n ti-s e m itis m o fo i sem pre igual ao longo da

H istó ria ?

R esponder a essas perguntas fu n d a m e n ta is e a

m u ita s outras é a que se propõe Gerald M essadié nesta

obra ta n to im p o rta n te qua n to fa scin a n te .

M essadié - n ã o -ju d e u pe rp le xo e nauseado d ia n te

do d e s e n ro la r das a tro c id a d e s in flig id a s aos ju d e u s

d u ra n te m a is de d o is m ilé n io s

com sua e ru d iç ã o

de h is to ria d o r das cre n ça s h u m a n a s, e x a m in o u m in u c io s a m e n


te in c o n tá v e is obras sobre o te m a . M u ita s d e la s te n ta ra m e x p lic a r
o a n ti-s e m itis m o por in te rm é d io de um a causa ú n ic a : p s ic a n á lis e ,
e co n o m ia , fa s c ism o , c a p ita lis m o ou s o c ia lis m o .

Ele te m a c o n v ic ç ã o de q u e a h is tó ria do a n ti-

s e m itis m o - v is c e ra lm e n te a tre la d a à h is tó ria de

nosso M u n d o O c id e n ta l - pode ser d iv id id a em trê s

perío d o s in trin s e c a m e n te d ife re n te s e n tre s i: g re co -

ro m a n o , c ris tã o e m oderno .

Para o m u n d o greco-rom ano, abarrotado de estátuas,


a m u le to s e fá b u la s, o m agistral e subversivo aporte do

ju d a ísm o te ria sido, pela p rim e ira vez na H istória, a rrancar a d ivin d a d e
do im aginário hum ano: o poder suprem o do U niverso não m ais podia ser co n
ce b id o , nem

d e scrito , nem nom eado.

E o c ris tia n is m o ? O c o n c e ito de "F ilh o de Deus",

essencial para ele, e q u iv a lia a um a b la s fé m ia para

os ju d e u s . M as os ju d e u s não v o lta ra m atrás, e os

c ris tã o s , tã o logo in ve stid o s de poder te m p o ra l, os

ta c h a ra m de im p ie d o so s, sem co n sid e ra çã o por sua

d ív id a fu n d a m e n ta l com o ju d a ís m o , o c o n c e ito do

Deus ú n ic o . E o a n tiju d a ís m o se tra n s fo rm a ria em

a n ti-s e m itis m o .

>

Já o a n ti-s e m itis m o m o d e rn o , e s p e c ific a m e n te

n a cio n a lista , te ria ge rm in a d o dentro do c o n ce ito de


E stado-N ação fo rm u la d o pela R evo lução Francesa. Os

E stados-N ação rejeitaram os ju d e u s sob a alegação de

não p a rticip a re m da c u ltu ra id e n titá ria n a cio n a l, de

serem cosm o p o lita s em excesso para serem cidadãos


leais. Para Messadié, trata-se de um a c o n tra d içã o

h istó rica , pois s ig n ific a c o n sid e ra r os ju d e u s cu lp a d o s

de suas próprias expulsões, q u ando o que eles c o n seguiram foi ju s ta m e n te


viver longe de sua te rra natal.

Im perialista, religioso ou nacionalista, o a n ti-se m itism o

em suas três form as chocou-se sem pre co n tra o m esm o

rochedo, o judaísm o. Os ju d e u s, com persistência,

honra e coragem , resistiram d u ra n te v in te e três séculos

às perseguições. E sua religião perdurou.

Em sua inteligente análise dos diferentes regim es

p o lític o s e suas ideologias, e de seus va ria d o s c o n te x tos históricos, o a u


to r observa que as perseguições e os m assacres da H is tó ria tê m s id o p e rp e
tra d o s por

regim es tirâ n ic o s , to d a vez que se p re te n d e esm agar o

in d iv íd u o em nom e do interesse da trib o .

Tudo se entrelaça: os d o g m a tism o s c o n tid o s nas

análises restritas que te n ta m e x p lica r os fe n ó m e n o s por

um a única causa. O horror c rim in o so do c o n c e ito de

nação e de nacio n a lism o id e n titá rio . As co n tra d içõ e s e

o e spírito de co n q u ista te rrito ria l in erentes a to d o

Estado-Nação (e M essadié se refere e s p e c ifica m e n te ao

caso de Israel).
E n fim , neste livro de fá c il acesso e c h e io de im p o rta n te s referências, o
le ito r co m u m é apresenta do a um a história do a n ti-s e m itis m o que te m a
natureza de um a

enquete, m ais do que de d e m onstração de um a tese. A

cada um dos leitores são o fe re cid a s as chaves de um a

síntese e um a antologia de te m a s para reflexão.

R ejane Janow itzer

GERALD MESSADIÉ d e d ica -se a p e sq u isa s sobre a orig e m

das cre n ça s c o n te m p o râ n e a s. D esenvolve há vários

anos um a obra im p o n e n te e o rig in a l, q u e vai dos

ensaios aos rom ances, co m o S ó cra te s e X a n tip a : U m

C rim e em A te n a s , passando pela série b íb lic a M oisés,

com m ais de 2 0 m il e xe m p la re s v e n d id o s.
GERALD MESSADIÉ

HISTÓRIA GERAL

DO ANTI-SEMITISMO

2a edição
Tradução

Rejane Janowitzer
B
BERTRAND BRASIL
Copyright © 1999, Editions Jean-Claude Lat ès

Título original: Histoire Générale de 1’Antisémitisme

Capa: Victor Burton

Editoração: DFL
2010

Impresso no Brasil

Prínted in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M547h Messadié, Gcrald, 1931-


2a ed.
História geral do anti-semitismo / Gcrald Messadié; tradução Rejane

Janowitzcr. -2 a ed.-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.


420 p.
Tradução de: Histoire générale de Panrisémitismc
Inclui bibliografia
ISBN 975-85-286-1010-9

1. Anti-semitismo - História. I. Título.

C D D -909.04924

03-1041

CDU-94 (569.4)

Todos os direitos reservados pela:

EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.

Rua Argentina, 171 — 2o andar — São Cristóvão

20921-380 — Rio de Janeiro— RJ

Tel.: (0xx21) 2585-2070 — Fax: (0xx21) 2585-2087

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................ 7

I. O ANTI-SEMITISMO PRÉ-CRISTÃO

1. Das origens ao Êxodo: a invenção do Deus único e imanente. . 21


2. De Alexandre ao mal-entendido: os primeiros ódios do mundo. 35

3. O enraizamento do anti-semitismo romano e os efeitos

perversos da Septuaginta......................................................... 52

4.0 massacre de agosto de 38 em Alexandria, primeiro pogrom

da história................................................................................ 73

5. Os massacres de 66, 70,115 e 132............................................... 86

I . O ANTIJUDAÍSMO E O

ANTI-SEMITISMO CRISTÃOS

1. O caso Saulo................................................................................107

2. A Igreja subtraída dos judeus.......................................................127

3. A grande confusão dos primeiros séculos....................................147

4. As trevas da Idade Média, do século IV ao século XIV:

I. França, Espanha, Alemanha................................................. 163

5. As trevas da Idade Média, do século IV ao século XIV:

I . Itália, Inglater a, Leste Europeu..........................................189


6. A trégua islâmica........................................................................207

7.0 exemplo asiático....................................................................229

8. A Europa dos guetos...................................... . . . . . . . . . . . . . 238

9. A liberdade e os três desafios.....................................................261


10. América, América!.....................................................................282

11. A máquina infernal e as promessas traídas do século XIX. . . . .298

I I. O ANTI-SEMITISMO NACIONALISTA

1. A explosão francesa da Belte Époque............................................ 319

2. A ilusão alemã e a crise do Ocidente........................................... 340

3.1933-1945: o erro e o horror.......................................................360

4. À guisa de memorial....................................................................400
INTRODUÇÃO

Há mais de dois mil anos os judeus são perseguidos e ninguém, nem

mesmo seus perseguidores, sabe por quê. Nem os cristãos, que ao final

de 17 séculos de exações renunciaram ao pretexto de “povo deicida” e


que, ao inocentar os judeus de um assassinato, terminam acusando a si

próprios, retrospectivamente, de centenas de milhares de assassinatos

gratuitos, pretendendo estar desculpados com uns poucos parágrafos.

Nem os nazistas e seus detestáveis herdeiros, cujos discursos racistas

invocavam e ainda invocam como motivo do ódio aojudcu apenas o conceito,


cientificamente inepto, de “pureza da raça”, pois não existe raça alemã — a
Alemanha sofreu, como todos os países do mundo, invasões

sucessivas ao longo dos séculos. A ciência, aliás, demonstrou que uma

raça “pura” teria lamentavelmente degenerado, em decorrência do

empobrecimento de seu pool genético. Existe somente uma raça humana,

una e indivisível. Uma “raça pura” seria uma raça de cretinos, e os partidários do
conceito em questão talvez até tivessem razão em sustentar que eram de “raça
pura”.. Ninguém conseguiu apresentar o começo de uma

explicação para o ódio fundamental, visceral, ao judeu.

Os textos anti-semitas do século XX, espantosamente numerosos

mas felizmente expostos ao opróbrio, apresentam-se à primeira leitura

como um desafio à verdade histórica e em seguida como um implacável

dossiê de peças de acusação do caráter patológico de seus autores. Todo

leitor possuidor de rudimentos de psicologia neles detecta imediata​


8
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

mente os traços determinantes do delírio lógico que é pretender negar a

evidência pelo raciocínio, fazendo uso da reinterpretação histórica. A

retórica, no caso, nada mais é do que um disfarce da paranóia.

Os fatos e documentos sobre a perseguição dos judeus são superabundantes.


Jamais será achado um único que permita negar a realidade mais de duas vezes
milenar do anti-semitismo. Por muito que se tenha

denunciado o negacionismo ou o revisionismo, sua extraordinária

leviandade não terá sido suficientemente ressaltada. O anti-semitismo

existe há cerca de dois mil anos, foi a causa de milhões de mortes, e ainda se
quer fazer crer que seus representantes mais virulentos, os nazistas, foram
justamente os que não fizeram nenhum mal aos judeus! A vacuidade da tese
justifica por si só um dar de ombros.

O fenómeno anti-semita sendo, pois, propriamente patológico,

poderia parecer interessar apenas a quem diz respeito — os judeus —,

depois aos historiadores e a todos aqueles para quem o combate incessante


contra o absurdo é uma exigência vital. Tal não é minha convicção: mesmo à sua
revelia, diz respeito também a todo ser humano civilizado e

preocupado em continuar a sê-lo. O que está em jogo é, com efeito, sua

própria natureza, a imagem que faz de si próprio, a confiança que atribui

a si mesmo e ao próximo, e a fé na possibilidade de viver uma existência

diferente da existência de uma bactéria ou de um animal selvagem.


Pensar que se pode guardar dentro de si um Hitler adormecido é uma

idéia que chega a levar ao desespero. Hitler, Himmler e muitos outros

foram, no começo, insignificantes burgueses apáticos que não se distinguiriam


de outros passageiros dentro de um vagão de metrô. Foram, passivamente, sendo
acometidos de um nacionalismo identitário furioso, agravado por uma ideologia
confusa, específica da época, o niilismo alemão. Pois em minha opinião não tem
sido suficientemente destacada a assustadora passividade dos nazistas: eles têm
sido freqi entemente

tomados por protagonistas loucos, quando na verdade foram apenas fantoches


acometidos por fantasias, além da própria negação do intelecto.

Pensar que o passageiro a nosso lado no metrô pode ser um novo Hitler

ou um novo Himmler é o bastante para tirar-nos o sono.

O anti-semitismo, greco-romano, cristão ou moderno, é um dos


INTRODUÇÃO
9
numerosos aspectos do absurdo que a filosofia, desde que nasceu, se tem

dedicado a afastar. Ora, toda pessoa que se debruça sobre as sevícias que

vêm sendo infligidas aos judeus há 2.300 anos e especialmente sobre os

campos de extermínio alemães, no século XX, não pode deixar de ficar

horrorizada às raias do desequilíbrio com sua absurda desumanidade. A

imagem lancinante que volta irrefreavelmente ao espírito é a de Primo

Levi, apesar de tudo um sobrevivente dos campos, mas que se suicidou

por não conseguir suportar as lembranças.

O pior é que o próprio desequilíbrio corre o risco de provocar consequências


patológicas. Não somente a aspiração a valores éticos imanentes corre o risco de
afundar em meio a ele, como foi destacado por alguns filósofos do fim do século
XX, mas também existe o risco de um monstro imprevisto emergir do naufrágio:
a íntima convicção da imanência do mal, esse mal ao qual o cristianismo quis
dar o nome de Satã e que pretendeu conjurar matando, justamente, judeus. De
fato, uma loucura assassina que durou cerca de 20 séculos e culminou com os
campos de

extermínio traz novamente à discussão todas as teologias e todas as filosofias.


Acreditar na imanência do mal é perpetuá-lo. E renunciar à liberdade humana, o
crime maior das religiões que acreditam em Satã. E é, no final das contas, dar
razão aos nazistas. E desde logo reitero que aqueles

que acreditam na existência de Satã são assassinos em potencial.

Para nos atermos à história contemporânea, a infâmia assassina do

gulag stalinista pode ser considerada, aos olhos de um mundo que se

considera livre e lúcido, a consequência atroz da loucura política, um


desses “acidentes” históricos em meio aos quais seria necessário classificar
também os campos de morte nazistas. Mas a analogia é enganadora tanto quanto
hipócrita: mesmo irremediavelmente feridos para o resto

de suas vidas humanas, os que escaparam do gulag puderam voltar a ter

esperança: o exemplo de Soljenitsyn é testemunho disso. Os cerca de

dois milhões de assassinatos absurdos cometidos a sangue-frio pelos

khmers vermelhos decorreram de um delírio lógico político exacerbado

às raias da loucura assassina, mas o hor or bestial de Pol Pot, Ieng Sary,

Khieu Samphan e outros Ta Mok vai ficando afastado, e os cambojanos

antes destinados a suas balas, seus facões e baionetas podem recomeçar a


10

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

viver e a chorar seus próprios mortos. Os massacres recíprocos de hutus

e tutsis conseguem, ao menos para testemunhas ignorantes, hipócritas e


distantes, disfarçar-se sob o brilho falso de rivalidades tribais, mas amanhã
talvez os ruandeses de ambas as etnias possam se cruzar sem ter em mente o
assassinato. Os campos da morte, diferentemente, matavam

seus ocupantes simplesmente porque tinham nascido judeus.

O anti-semitismo é muito resistente. Para alguns, o judeu seria

“perigoso” por causa de sua ausência de “nacionalidade profunda”.

Passemos por cima da contradição histórica que atribui aos judeus a culpa de
suas próprias expulsões, quando o que eles conseguiram foi justamente viver
longe de sua terra natal. O ponto principal é o seguinte: quem diz
“nacionalidade” diz “nação”, e a terceira parte destas páginas

demõnstra, assim o espero, o horror criminoso desse conceito quando é

utilizado como licença para matar o estrangeiro, tal como assistimos no

decorrer das duas guerras mundiais. Para outros, pareceria justificado por

sua antiguidade: deveria, pois, de acordo com a sabedoria das nações,

existir um fundamento. O próprio fato de ter nascido, mais uma vez,

seria o crime imputado ao judeu. A tradição, então, faria apenas reforçar

o enigma e o desafio que é o anti-semitismo.

É esse desafio que estas páginas se propõem destacar.

Existem inúmeros e excelentes estudos sobre o anti-semitismo.

Contudo, eles me parecem conduzir aos extremos: seja na direção de

uma constatação do horror, o que não faz senão encobrir o enigma, seja

na direção da explicação de uma tese forçosamente parcial, e portanto

excessiva, que tende a confundir as perspectivas mais do que a esclarecê-


las. As chaves continuam inalcançáveis. Uma vez mais o excesso é a antecâmara
da prisão intelectual.

Duas das obras recentes que conheceram sucesso público poderão

servir de exemplo. Tanto uma quanto a outra ilustram o perigo que

incorremos em não considerar o anti-semitismo sob o ângulo da história

no longo prazo: o de torná-lo incompreensível. O primeiro é o conjunto

de ensaios de primeira ordem publicado sob a direção de Léon Poliakov,

Histoire de VantisémitismeA O outro, Hitler1s Wil ing Executioners: Ordinary

Germans and the Holocaust, do americano Daniel Goldhagen.2 Um é a


INTRODUÇÃO
11
inventariação factual e rigorosa das manifestações de anti-semitismo, o

outro uma tentativa de interpretação.

A abundância de testemunhos sobre a difusão, a permanência e a

virulência do anti-semitismo em nossa época, encontrada na magistral

obra dirigida por Poliakov, condiz com uma visão desesperadamente trágica da
história. Tantos horrores turvam o espírito e deixam-no imerso em nauseante
incredulidade.

Além do mais, Poliakov tende implicitamente a designar o cristianismo como


único ou principal responsável pelo anti-semitismo, o que é falso: os judeus
foram perseguidos antes da conversão de Constantino, o

Grande, ao cristianismo, no século I I, e o foram, um século antes dos

campos da morte, por correntes estranhas ao cristianismo. Pois os perseguidores


posteriores ao delírio cristão nada deviam à fé. Estavam inspirados no fanatismo
identitário, gerador do fanatismo de nação, já mencionado.A obra de Goldhagen
apresenta, por outro lado, a particularidade de atribuir uma causa única ao anti-
semitismo, que seria o psiquismo alemão e apenas ele. Este último seria o único
responsável pelo anti-semitismo e pelos campos, e teria levado o conjunto da
nação alemã a

colaborar com um furor demente para a exterminação dos judeus. O exagero da


proposição suscitou, da parte de autores judeus não menos autorizados do que
Goldhagen,3 refutações que se envenenaram até o ponto de provocar polémicas
na internet.

Ora, o anti-semitismo precedeu de muitos séculos o nascimento da

Alemanha. A França do século XI e a Espanha do século XV foram infernos para


os judeus. A palavra gheíto é veneziana, e a palavra pogrom, russa.

Infelizmente, tenho de constatar que Goldhagen nada explicou.


A despeito de teses antinômicas, Poliakov e Goldhagen acabam, pois,

por representar o anti-semitismo como um fenómeno incompreensível.

Para o primeiro, ele seria moderno e único; para o segundo, a expressão

moderna de um sentimento especificamente alemão. Outros autores do

século XX, notadamente Jules Isaac (Jésus et Israel, 1948, e Genèse de

Vantisémitisme, 1956), Mareei Simon ( Histoire de Vantisémitisme, 1955),

Rosemary Ruether ( Faith and Fratricide: The Theological Roots of Antise-


12
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

mitism, Minneapolis, 1974), tendem, por sua vez, a explicar o anti-

semitismo por um ângulo essencialmente religioso.

É evidentemente tentador, quase ir esistível, explicar um fenómeno

por uma causa única. É também o melhor meio de descambar no dogmatismo.


Outros autores, que não conheceram a mesma notoriedade que Paliakov e
Goldhagen, quiseram explicar o anti-semitismo pela psicanálise, pela economia,
pelo fascismo, capitalismo ou socialismo, em suma, por fatores específicos,
todos essencialmente modernos. Quase todos

trouxeram ao debate peças úteis e mesmo preciosas; nenhum, em minha

opiiíião, resolveu o enigma de causas diferentes que produzem os mesmos


efeitos. Como explicar, por exemplo, que a direita religiosa e a esquerda atéia
tenham todas duas, no século XEX, comungado no anti-semitismo? Nenhum
desses autores, portanto, ofereceu remédio ao

sofrimento que um não judeu como eu pode sentir diante da descrição

das atrocidades infligidas aos judeus durante mais de dois milénios. Além

do sofrimento do próprio judeu.

Sabe-se bastante bem que “teorias são o que pensam os outros”, mas

permanece o fato de que é em função de suas taxas de eficácia que se

obtém a adesão do público. As que acabo de mencionar não satisfazem à

necessidade de compreender. Não posso, portanto, admitir a teoria

segundo a qual a inveja que o jovem colegial Adolf Hitíer sentia de um


condiscípulo judeu e rico chamado LudwigWittgenstein — sim, o grande
Wittgenstein, a coincidência é espantosa—possa explicar, mesmo que
parcialmente, o anti-semitismo de Hitler, da mesma maneira que não

posso admitir que o totalitarismo de direita ou de esquerda seja suficiente para


explicar Auschwitz: a Itália fascista jamais construiu câmaras de gás. A
economia foi por certo um fator crucial para o desenvolvimento

do nazismo: a crise de 1929 muito contribuiu para impulsioná-lo. Mas a

Inglater a, que sofreu suas consequências tão duramente quanto a

Alemanha, tampouco construiu câmaras de gás, apesar de ter contado,

também ela, com seu fardo de anti-semitas.

Não posso admitir igualmente que na época contemporânea o cristianismo e o


tão explorado “silêncio” de Pio XII “expliquem” a Shoah, nem mesmo
parcialmente (é também uma das teses de Goldhagen). Os
INTRODUÇÃO
13
fatos demonstram que os nazistas eram anticatólicos, que os católicos

foram perseguidos pelos nazistas, que muitos deles se juntaram aos

judeus nos campos porque eram católicos, que a Igreja Católica sabia disso e
reagiu tanto quanto pôde ao nazismo. Pio XII, em plena noite negra da Segunda
Guerra Mundial, denunciou de fato o nazismo, publicamente.4 O cristianismo
certamente perseguiu o judaísmo e os judeus de maneira infame, e isso está
exposto nestas páginas, sem complacência.

Mas ele não foi o motor da Shoah. E assim por diante.

Ora, compreender é necessário e até mesmo vital: é o que nos permite ter
esperança. Procurei e não encontrei uma chave nas obras sobre a questão, ainda
que elas sejam abundantes e competentes. A razão me

parece ser, justamente, o fato de as explicações propostas serem globais.

Ora, toda explicação global é fatalmente reducionista, ou seja, falsa a mais

ou menos longo prazo. De fato, não existe um só anti-semitismo, mas

diversos, e é esse o objeto destas páginas. Postular que o anti-semitismo

teria uma causa única resultaria em mecanizar o fenómeno, em atribuir-

lhe a inelutabilidade de uma lei misteriosa e, no final das contas, em

negar a unicidade da Shoah. Os mesmos efeitos não são sempre devidos

às mesmas causas. O anti-semitismo greco-romano é intrinsecamente

diferente do antijudaísmo cristão. O qual, por sua vez, é fundamentalmente


diferente do anti-semitismo nacionalista.

Quais foram suas causas? Gostaria de dispor de uma síntese que as


citasse e as analisasse. Para isso, seria necessário recolocar os judeus no

contexto histórico das épocas em que foram perseguidos. Seria necessário


procurar não esquecer os períodos e os territórios, da mesma forma reveladores,
nos quais essas perseguições enfraqueceram ou até cessaram, como no império
islâmico e na Ásia. Seria necessário, ainda, examinar sua demografia
surpreendentemente variável, seus modos de vida, suas relações com os
potentados e as grandes correntes políticas, religiosas e ideológicas; em suma, o
estado de espírito das diferentes épocas. Em outras palavras, tentar com um
mesmo olhar abraçar a floresta e as árvores, o cenário e a ação, o molde e o
objeto. Como não achei essa obra, resolvi então escrevê-la, com maior urgência
ainda pelo fato de não ser

judeu.
14
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Que vínculo, então, une os três anti-semitismos da história? Se o

resumirmos ao sentimento identitário, não ofereceremos senão um

esqueleto de chave. Não existiu, com efeito, consciência identitária no

sentido moderno no mundo greco-romano, pelo menos não até o choque com o
judaísmo. A magistral contribuição do judaísmo a um mundo abarrotado de
estátuas, amuletos e fábulas foi ter, pela primeira vez na

história, arrancado a divindade do imaginário humano: pela primeira vez

o poder supremo do universo não podia nem ser concebido, nem descrito, nem
nomeado. Ora, por causa de proposições longinquamente aparentadas, dois
grandes filósofos gregos, Anaxágoras e Protágoras, foram acusados de
impiedade e banidos de Atenas no século V A Cidade, grega

e depois romana, era tão estreitamente apegada à representação divina,

que uma mossa em uma estátua de deus era considerada impiedade (e o

que dizer de um escândalo como a mutilação de Hermes, que sacudiu

Atenas!). O judaísmo ofendia a Cidade por sua recusa da Imagem, isto é,

de todo o sistema religioso antigo. O status civil e fiscal especial dos

judeus dentro do Império Romano terminou por envenenar a hostilidade até


provocar derramamento de sangue.

Já o antijudaísmo cristão derivava da dissensão fundamental a respeito do papel


do Messias. Para os judeus, o conceito de “Filho de Deus”, essencial para o
cristianismo, equivalia a uma blasfémia, daí a indignação

dos judeus das cidades mediter âneas em que Paulo Apóstolo ia pregar a
nova fé (e o caráter cismático das correntes cristãs que também recusaram a
filiação divina). Os judeus não voltaram atrás, e os cristãos, tão logo investidos
de poder temporal, no início do século IV os tacharam por sua

vez de impiedosos, sem consideração por sua dívida fundamental com o

judaísmo, o conceito do Deus único. Romano ou ortodoxo, mas sobretudo


romano, o antijudaísmo iria então se transformar em anti-semitismo.

O anti-semitismo nacionalista propriamente dito, terceiro período

histórico do fenómeno, germinou dentro do conceito de Estado-nação

formulado pela Revolução Francesa. Foi reprimido por algum tempo,

sob a forma de emancipação dos judeus, para em seguida explodir com

força cada vez maior por toda a Europa, ao longo do século XIX e depois
INTRODUÇÃO
15
no século XX, até a Shoah. Não teve mais fundamentos religiosos, nada

mais além de pretextos que voaram em pedaços com o nazismo. Na realidade,


acometidos de nacionalismo patriótico, a partir de então considerado
indissociável da moral, os Estados-nação rejeitaram os judeus, que não
participavam do cristianismo majoritário, portanto da cultura identitária
nacional, e que eram, aos olhos da opinião pública, decididamente

cosmopolitas em excesso para serem cidadãos leais.

Nas três épocas, o sopro que atiçou a crueldade foi de fato o sentimento
identitário. Imperialista, religioso, mais tarde nacionalista, não foi, contudo,
sempre o mesmo, mas em suas três formas chocou-se sempre

contra o mesmo rochedo, o judaísmo. Outras religiões que durante

algum tempo resistiram ao assalto do gládio ou da cruz, soçobraram.

Assim, ninguém mais pratica a religião dos gregos, dos incas, ou dos

babilónios. A honra e a coragem dos judeus foi ter resistido a uma tempestade
ciclônica que durou 23 séculos. Por isso as perseguições.

Os fatos são superabundantes, já mencionei. De tal modo, que correm

o risco de dispersar o espírito. Muitos deles, conhecidos apenas por especialistas,


são todavia indispensáveis à compreensão do fenómeno em causa. Daí decorre
minha ambição de apresentar ao leitor comum uma história racional do anti-
semitismo: é a única maneira de oferecer a cada um as chaves de uma síntese.
Não temos necessidade de fatos novos, mas sim

dessas chaves. Espero tê-las claramente separado do filão dos fatos.

No declinar do último século, o chefe do cristianismo exortou os

cristãos, e provavelmente os outros, a uma “purificação da memória”.


Como não se unir à exortação? mas também como não estremecer diante de uma
palavra tão car egada de ressonâncias sinistras como “purifica​

ção”? E como não achar que uma simples exortação, ainda mais tão tardia, pode
ser suficiente para essa “purificação”? Somente a história pode apaziguar os
espíritos, parece-me.

Talvez seja oportuno prevenir o leitor de que as páginas que se

seguem constituem mais uma história no sentido de enquete, e não a

demonstração de uma tese. Elas são uma história do anti-semitismo e

não da Shoah. São também a história de uma atitude mental e não do

povo judeu, razão da necessária abundância de descrições periféricas.


16

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Como corretamente escreveu a historiadora Suzanne Citron, fazer história é


trabalhar em cima de mitos. Neste caso preciso, trata-se de desalojar os mitos
ligados ao judaísmo.
O uso da palavra “anti-semitismo” requereria algumas reservas. O

termo foi forjado em 1879 por uma publicação judia da Alemanha, a

Al gemeine Zeitung des Judenthums, para caracterizar as atividades antijudias

do panfletário Wilhelm Mar . É etimologicamente er ada, como se sabe,

uma vez que os judeus não são os únicos semitas, mas com o tempo o

uso a impôs, e é como antijudaísmo que ela acabou sendo entendida.

Ora, se a mim parece dever ser aplicada às perseguições dos judeus pelos

romanos, que manifestaram especificamente uma hostilidade política e

cultural geral ao conjunto dos judeus a partir de uma certa época, parece-

me, ao contrário, inadequada às perseguições aos judeus pelos cristãos

nos primeiros séculos de nossa era, que seriam mais bem definidas como

antijudaísmo. Acrescente-se que o antijudaísmo cristão se transformou

progressivamente em anti-semitismo, no sentido atual da palavra. Foi só

a partir do momento — o século XVI I — em que a perseguição aos

judeus pretendeu se basear também em motivos “raciais”, portanto inelutáveis,


que o termo “anti-semitismo” adotou sua coloração mais repugnante.

Paris, julho de 1999


INTRODUÇÃO
17
Bibliografia e notas críticas

1. Le Seuil, 3 vol., L ’Âge de la foi, L ’Âge de la Science, 1991, 1945-1993,


1994. Os autores são Philo Bergstein, Christian Delacampagne, Robert
Greenberg, Evelyne

Koenig, Klaus von Munchhausen, Laurent Murawiec, Rudolf Pfisterer,


Lucienne

Saada, Meír Waintráter, Rivka Yadlin, Paul Zawadski e o próprio Léon


Poliakov, que
dirigiu a obra.
2. Les Bourreaux zélés de Hitler: les Allemands ordinaires et VHolocauste, Le
Seuil, 1997.

(Os car ascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto,


Companhia das Letras, 1997).

3. Norman G. Finkelstein e Ruth Bet ina Birn, A Nation on Trial: The


Goldhagen

Thesis and Historical Truth. — Owl Book, Henry Holt and Company, New
York, 1998.

4. Esse ponto é analisado em detalhe no Capítulo 3 da Parte III desta obra.


O ANTI-SEMITISMO PRÉ-CRISTÃO
1.

Das origens ao Êxodo:

a invenção do Deus único


e imanente
O ENIGMA DE ABRAÃO — ANTIGÚIDADE DA DIÃSPORA — OS
JUDEUS, ETERNOS

EXPLORADORES DO MUNDO FÍSICO E INTELECTUAL — MOISÉS E O


ADVENTO

DO DEUS INTERIOR — DISPOSIÇÃO FAVORÁVEL DOS PERSAS EM


RELAÇÃO AOS

JUDEUS — O RETORNO DOS JUDEUS AO EGITO DEPOIS DO ÊXODO —


O INCI​

DENTE DO TEMPLO DE ELEFANTINA

O anti-semitismo é mais usualmente situado na era cristã, mas ocorreram


labaredas de anti-semitismo pré-cristão, com frequência violentas.

Muitas vezes negligenciado, este último não foi um epifenômeno, desaparecido


sob a poeira dos séculos e quase desprovido de significado. Foi, ao contrário, um
fenómeno fundador; deixou, com efeito, marcas

indeléveis que outras épocas retomaram para outros fins, da maneira

como se fazem novas construções com pedras antigas. Do que decorre a

necessidade de examiná-lo.

Por que Terá, pai de Abraão, deixou a Ur dos caldeus há cerca de 38

séculos, a fim de ir, na direção do nordeste, para Canaã? Nem a Bíblia,

nem a história esclarecem. Pode-se cogitar que tenha sido para lá encontrar outra
religião: de Ur até Haran, primeira etapa dos mais célebres emigrantes da
história, reinava o mesmo casal divino: Sin, o deus-lua,

cujo crescente se tornaria 20 séculos mais tarde o emblema do Islã, e sua


esposa Ningal, a Grande Dama. A hipótese de uma perseguição da qual

Terá teria sido vítima está excluída: Javé ainda não aparecera para seu

filho Abraão e, portanto, não seria pelo fato de ter ele adorado um deus
22
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

estrangeiro que Abraão se exilara. Além disso, ele e seu clã não parecem

ter-se importado com o culto de Sin que se celebrava em Haran: lá

ficaram bastante tempo, já que Terá teria morrido supostamente com a

idade de 250 anos.1

O patriarca Terá e seu clã pertenciam a populações ora nómades, ora

seminômades: haneanos, suteanos, benjaminitas2 e habirus ou apirus

(muito provavelmente os hebreus) que circulavam em bandos temíveis,

quer se dedicando à pilhagem, caso em que eram especificamente

nómades, quer como pastores e vendendo seus serviços aos reis da

região, caso em que eram seminômades.3

Segundo o Pentateuco, Abraão tinha a idade de 75 anos quando Javé

deu-lhe a ordem de deixar Haran.4 Abraão percorreu 700 quilómetros e

chegou até o carvalho de Moré, “em Siquém, Canaã”, onde moravam os

cananeus. Encontrou-se então em um local sagrado, junto das montanhas já


então santas de Guerizim e Ebal; o carvalho de Moré, a “árvore dos oráculos” ou
Elon Moreh já era uma árvore sagrada, embora dedicada

a outros deuses, e não àquele que se iria tornar o Deus judeu, como foi

diversas vezes citado no Génesis.5 Siquém era um centro político e religioso. O


Sumo Deus que lá se adorava era Baal Berit ou Senhor da Aliança, de nome
premonitório, que continuaria sempre presente na
região cinco séculos depois, no tempo de Josué. Também se adorava

Astartéia, deusa da fertilidade e do amor, que possuía dois emblemas, a

pomba e a lua, e era simbolizada por chifres de touro.

Mas o deus que se manifestou a Abraão em Siquém dirigiu-lhe uma

mensagem particular: disse-lhe que Canaã pertenceria um dia a seus

descendentes. Era, pois, um deus da guer a, porque só a preço de sangue

um país pode ser ar ancado aos humanos. Nada se sabe sobre a reação

dos cananeus quando Abraão construiu um altar para esse deus que não

conheciam. Não há nenhuma menção de perseguição da parte dos cananeus; é


provável que vissem naquele deus outra forma de sua própria divindade — Baal,
palavra que significa simplesmente “Senhor” —, que

podia adotar diversas formas. Provavelmente também ignoravam o teor

da mensagem divina, que não lhes era absolutamente favorável. De todo

modo, sua reação não foi hostil, uma vez que Abraão construiu mais um
DAS ORIGENS AO ÊXODO
23
altar, entre Bethel e Ai. E, assim como tinha parado no carvalho de Moré,

parou também no carvalho de Mamre, ao norte de Hebron, cidade que

mais tarde seria sua última morada.

O acontecimento representado pela manifestação desse Deus

desconhecido está imerso em meio às camadas que recobrem as matrizes

culturais. Seu alcance não foi inteiramente medido, nem mesmo no

século XX: ele é incomensurável. A maior parte dos exegetas, historiadores e


teólogos reconhece seus aspectos secundários, mas não sua essência. O que mais
se ouve é “Sim, mas...”: Abraão teria, pois, “inventado” o monoteísmo; é
verdade, mas um faraó, Akenaton, iria reinventá-

lo uns quatro séculos mais tarde.6 Mesmo que sob uma forma desvirtuada e por
caminhos próprios, os filósofos gregos iriam igualmente chegar lá uns seis ou
sete séculos depois. O monoteísmo não seria exclusivo dos

judeus. O monoteísmo judeu seria incompleto sem a redenção introduzida por


Jesus. E assim por diante.

Ora, a especificidade do judaísmo, inaudita no sentido etimológico,

é que o Deus judeu foi o primeiro da história a não ter nome nem rosto,

tendo sido essencialmente interiorizado: é o Deus da fé. A interiorização

implica intelectualização: esse Deus precisa ser invocado para aparecer.

Nenhuma imagem lhe serve de suporte.

Nós não conhecemos Abraão a não ser pelo primeiro dos cinco livros

do Pentateuco. Sua aventura foi transcrita quatro séculos mais tarde pela
própria mão de Moisés, portanto no século XIII antes de nossa era, e a

tradição, por sinal contestada pelos exegetas modernos, diz que o texto

do Pentateuco nos teria sido transmitido com exatidão desde então. Mas

o relato de Moisés não nos informa como Abraão escapou à tradição

própria a todos os patriarcas de seu tempo, segundo a qual se honravam

obrigatoriamente os deuses dos pais. Nem como ele acabou por se tomar

o instrumento do acontecimento mais estrondoso e mais decisivo da

história das religiões: o surgimento do Deus interior.

Depois Abraão partiu para o Egito. Que extraordinária errância a

desse homem, parecendo sempre empurrado na direção do horizonte!

Para compreendê-la é preciso colocar-se no contexto psicológico da

época: perto de sete milénios já se passaram desde que a agricultura foi


24
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

descoberta e que animais passaram a ser criados para se lhes retirarem

carne, leite, pele; portanto, há cerca de sete milénios as populações

sedentarizaram-se, o mais das vezes à beira dos rios, já que a água é essencial à
vida dos homens, de seus animais e das plantas que cultivam. Então a Ter a
começa a parecer imensa, e o instinto de descoberta está vivo dentro do coração
dos humanos. Continuará assim durante 25 séculos até Cristóvão Colombo (ele
mesmo judeu) e mesmo mais tarde, pois esse

instinto enviará o homem até a Lua sem nenhum objetivo imediato a não

ser enriquecer seu saber.

Abraão foi mais do que um pioneiro; foi um desses homens a quem

hoje em dia chamaríamos místico, e não por acaso nele coincidiram a

sede do desconhecido e a escuta de um deus novo.

A impulsão centrífuga dos hebreus — ainda não judeus — fez com

que atribuíssem a Deus as palavras seguintes, na Profecia de Bcdaão: “Agora

vocês são pouco numerosos, e a ter a de Canaã é suficiente para acolhê-los,

mas saibam que o mundo habitável se estende diante de vocês como uma

morada eterna, e a maioria de vocês viverá em ilhas e no continente (...)”.7

Essa er ância obstinada parece ser um traço que todos os hebreus, e

mais tarde os judeus, partilharão com Abraão. Ela contradiz certas interpretações
contemporâneas, que consideram o judaísmo inseparável do nacionalismo.8
Além da dispersão (ou diâspora) dos séculos que precederam o cristianismo,
outra prova disso é que, 20 séculos mais tarde, depois de terem perdido
Jerusalém e sua autonomia territorial, os judeus

continuaram a se disseminar pelo mundo: na Idade Média eles alcan​

çaram até mesmo a Ásia.

Trinta séculos mais tarde, por sinal, a representação pejorativa desse

traço seria retomada no mito do judeu errante. A dispersão é constitutiva

dos judeus, tanto espiritual quanto fisicamente, e desempenhará papel

determinante em sua história. A diáspora judaica é fenómeno histórico

único na história das civilizações: no início da era cristã, existiam judeus

em Panticapéia, na Criméia, e no Bósforo, assim como em Meroé, no

Alto Nilo, no que corresponderia ao atual Sudão. Os judeus estavam presentes


em Elvira, no sul da Espanha, e em Colónia, assim como em Berenice, na
Cirenaica, atual Líbia; e do outro lado, na Baixa Macedônia,
DAS ORIGENS AO ÊXODO
25
em Épiro, em Acaia, em tudo que se chamava na época de “Ásia”, na

Galácia, na Capadócia, em Bitínia, no Ponto, ou seja, a atual Turquia. No

século IV antes de nossa era, havia uma colónia de judeus em Média, e é

possível que tenham ido também mais além.9 No ano 300 chegaram ainda mais
longe: no reino de Axum, na atual Etiópia, e no reino judeu de Himiar, na ponta
sul da península arábica, perto de Aden. Estavam presentes de Ting (Tânger),
sobre a ponta do atual estreito de Gibraltar, até Cartago, assim como do outro
lado do Mediterrâneo. Teriam, pois,

alcançado não só toda a parte de baixo da península italiana, Roma incluída,


como também Bréscia, Ravena, Aquiléia, não longe da atual Trieste.

Só os fenícios disputaram com eles em mobilidade.

Eles jamais parariam: no começo do século XIII, estavam no sul do

Ceilão, sobre a costa de Malabar, no sudoeste da península indiana, no

Iêmen, na Inglaterra, na Irlanda. . Em toda parte instalaram comércios,

fundaram empresas, tomaram-se armadores, mercadores de pérolas ou

de corais, fiandeiros, joalheiros, atacadistas, construtores, seguradores.

Desembarcados no século XX em El is Island com uns poucos pacotes de

roupas, os sapatos gastos e os olhos assombrados pelo medo da rejeição,

esses emigrantes dos guetos da Galitzia (atual Polónia), de Lodz ou de

Odessa também seriam vistos, poucos anos mais tarde, à testa de

impérios industriais, transformados em reis de Hollywood, ou seja, reis


dos próprios sonhos do Ocidente, inventores de uma nova forma de

publicidade, fabricantes de cosméticos ou ainda génios do violino, do

piano, regentes de orquestras. Eles são fundamentalmente os mesmos do

tempo de Abraão e, depois, de Moisés.

Mais tarde, bem mais tarde, tão logo a humanidade se tivesse tornado ciente de
que tinha apenas a Ter a, nada mais do que a Terra como campo de exploração, o
espírito de investigação dos judeus se iria dedicar

igualmente à representação deste mundo. O judeu convertido de Trier,

Karl Marx, iria descrever as relações entre o capital e o trabalho em termos até
então desconhecidos pela filosofia, mudando a história de um século inteiro, à
maneira do profeta Samuel. Henri Bergson, outro judeu

convertido, alteraria a apreensão do espírito humano, e o judeu Albert

Einstein reorganizaria a própria compreensão do cosmo. São todos filhos


26
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

da diáspora — daqueles judeus que partiram de Canaã —, que foram

plantar em ter a de gentios a cepa cujos ramos longínquos remontam

àqueles primeiros homens.

O Êxodo e a diáspora começaram, portanto, com Abraão.

Os judeus deram ao mundo uma falange de exploradores, a começar

pelo mais célebre deles — o marrano Colon —, mais conhecido pelo

nome de Cristóvão Colombo. Parecem impulsionados por uma necessidade


insaciável e específica de espaços novos, por um eterno movimento centrífugo,
com a diferença de que seu centro é procurado em vão: não

mais Jerusalém a não ser de maneira mística, pois Jerusalém não está

mais dentro de Jerusalém, o que eles sabem com dor e resignação. Essa

agitação fundamental, uma inquietude praticamente congénita, é indispensável à


compreensão da história dos judeus e de suas atribulações.

Com efeito, passada a era das grandes invasões indo-arianas e indo-

européias, nenhum povo se disseminou por tão vastos ter itórios. As

invasões indo-arianas, como mais tarde as dos celtas, dos citas, dos partos

e outras, foram militares, visavam à conquista de um ter itório e suas

riquezas, ao passo que os judeus, diferentemente, não realizaram nenhuma


operação militar fora da Palestina. Os partos, gregos cujo protótipo foi Ulisses e
que no século VIII antes de nossa era foram estabelecer
colónias da Grande Grécia, também eram, de início, pessoas sem ter a:

mas as cidades que fundaram em Alalia na Córsega, em Cumas, em

Metaponte, em Siracusa, em Focéia ou em Mileto configuraram verdadeiros


estados. Ora, por mais numerosos que tenham sido, os judeus jamais fundaram
uma única cidade judia, apesar de terem ido muito mais

longe do que os partos. Sua diáspora foi intrinsecamente pacífica. O que

a toma ainda mais enigmática.

A emigração incessante dos judeus desde a mais remota antiguidade

não implica que fossem incapazes de sedentarizar-se ou que isso os

repugnasse: no século III antes de nossa era, por exemplo, seus estabelecimentos
em Hircânia, ao sul do mar Cáspio, na Cirenaica, na Lídia ou ao longo das rotas
comerciais do atual Hedjaz10 contavam com

famílias instaladas há muitas gerações. Seria, pois, erróneo interpretar a

diáspora como a expressão de uma instabilidade fundamental, “de


DAS ORIGENS AO ÊXODO
27
índole”. Os judeus podem muito bem instalar-se em terras — essas terras,
entretanto, são meras escalas sobre o planeta que Deus lhes deu após ter-lhes
tomado Canaã.11 Os judeus transcendem estados e cidades: portadores do Deus
que Moisés lhes deu, aceitam todos os regimes e todos os climas.

A pitoresca história de Abraão fornece algumas indicações sobre essa

migração quase metafísica. O que foi ele fazer no Egito? A fome que

grassava em outros lugares o teria empurrado para lá, talvez também a

seca. Os documentos egípcios estão cheios dessas pessoas “empoeiradas”

— pois é o sentido proposto para “habiru” — que pediam autorização

para deixar pastarem seus rebanhos nas terras férteis do Delta quando o

Negev estava muito árido, ou por terem sido expulsas por outros pas-

tores-pilhantes mais numerosos. Abraão foi admitido no Delta assim

como muitos outros pastores. Sua mulher, Sara, que fez passar por sua

irmã, chamou atenção do faraó, que a tomou como concubina. Uma

interpretação maldosa do episódio apareceria muitos séculos mais tarde,

afirmando que Abraão teria sido favorecido pela sorte pois, ao ser expulso pelo
monarca tão logo informado do subterfúgio, já se havia tomado possuidor de
vastos rebanhos, de ouro e de prata.12 Mas nada estabelece

uma relação de causalidade entre um fato e outro, e Abraão pode muito

bem ter enriquecido por sua própria conta.

De todo modo, um esquema já estava sendo delineado: como todos


os nómades e seminômades do Oriente Próximo a partir do século XX

ouXIXa.C., os hebreus naturalmente estavam atrás de fortuna, mas também


queriam conservar uma identidade, que lhes seria conferida por sua fé —
diferentemente de seus vizinhos — e que o Deus interior de

Moisés iria confirmar.

A etapa seguinte foi a da conquista do Egito pelos hicsos, por volta da

metade do século XVI a.C. Semitas originários da Alta Mesopotâmia, os

hicsos ou “reis pastores” ocuparam o Egito durante 511 anos.13 Eram

detestados pelos egípcios, que alegaram mais tarde terem eles destruído

seu panteão, o que é exagerado14 ou até mesmo falso. Os hebreus os

seguiram, fosse porque falavam a mesma língua dos hicsos, fosse porque

se conheciam de longa data, e instalaram-se no vale do Nilo, onde foram


28
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

acolhidos com simpatia pelos invasores.15 Um hebreu Joseph, mestre na

arte oriental de interpretar os sonhos, chegaria a ser favorito e grão-vizir

de um faraó hicso de nome desconhecido, de quem decifrou dois sonhos

enigmáticos. Ao final de cinco séculos de ocupação, uma revolta

explodiu em Tebas; um egípcio de linhagem, chamado Misfragmuthosis,

encerrou os reis pastores em Avaris, capital do Delta, e alguns anos mais

tarde os hicsos seriam expulsos do Egito.

O êxodo dos hicsos merece alguma atenção, por apresentar semelhanças


impressionantes com o que se seguiu: ao deixarem o Egito, totalizando 240 mil
pessoas, eles foram fundar Jerusalém. Que seria tomada três séculos mais tarde
pelo rei David. .

Os hebreus, porém, não seguiram os hicsos. Erradamente, ao que

parece, pois ao permanecerem no Delta do Nilo passaram a ser considerados


aliados dos antigos invasores, portanto prisioneiros e enfim escravos da coroa,
submetidos a trabalho forçado. A hostilidade que os

faraós Set I e seu filho Ramsés II manifestaram em relação aos judeus, tal

como está atestada no Pentateuco, foi a primeira da história. Teria sido de

origem religiosa? Possivelmente não, por duas razões.

A primeira é que os hebreus não causaram danos diretos à religião

egípcia, a não ser pelo fato de terem sido aliados declarados dos ocupantes,
que provavelmente saquearam o panteão egípcio e introduziram o deus

Set, por exemplo. Mas é preciso esclarecer que, na época, a religião não

tinha adquirido a transcendência de que iria ser dotada muitos séculos

mais tarde: era mais do que tudo a expressão de uma cultura e de um povo.

A segunda razão, determinante, é que a religião hebraica ainda não tinha sido
fundada. Os Dez Mandamentos só seriam entregues a Moisés no século XI I.
Ora, durante os quatro séculos de presença dos hebreus no

Egito, o que permanecia da tradição religiosa de Abraão e de Jacó deveria

conter um certo número de elementos da própria religião egípcia. Bem

mais tarde, quando aquela religião já havia sido instituída e fixada por ritos,

ainda existiam judeus que, na Palestina, veneravam deuses estrangeiros,

como demonstram as reprimendas veementes do profeta Jeremias.16

A perseguição dos hebreus no Egito ou, mais exatamente, o status

inferior ao qual foram reduzidos não foi, pois, anti-semitismo no sentido comum
e moderno da palavra. Eles sofreram no Egito por razões
DAS ORIGENS AO ÊXODO

29

políticas. Segundo o Pentateuco, foram essas razões que comoveram o

Tòdo-Poderoso, que renovou, por intermediação de Moisés, a promessa


de Canaã que fizera no passado a Abraão. E Moisés, que se encontrava

naquele momento a milhares de quilómetros dos judeus e do Egito, não

longe de Ezion-Geber, no Sinai, submeteu-se à vontade do Todo-

Poderoso. E organizou a saída dos judeus do Egito.

Após sua morte, no momento em que Josué atravessava o Jordão

para fazer o cerco de Jericó, os fundamentos do judaísmo foram selados.

O Deus dos judeus foi o primeiro deus inteiramente metafísico da

história das religiões. Ele é o Inominável, como ficou evidente desde sua

primeira manifestação a Moisés na Sarça Ardente: “Eu sou O que é.”Javé

e Eloha não são nomes, como uma certa cultura contemporânea e antiga

também tende a fazer crer: são apenas atributos secundários de Sua inatingível
natureza. Javé é uma derivação fonética da declaração divina a Moisés: Ehyeh,
“Eu sou”, que dará a forma da terceira pessoa do presente,

“Yiehyeh”, “Ele é”. E mesmo o tetragrama YHWH não é pronunciável.

Eloha é um nome derivado do semítico El, que designa a divindade em

geral e que significa “poder”, oha significando talvez “único”.17 Ele é o

Grande Inominado, a voz interior que irá explicar a proliferação de profetas


entre os judeus.

Do Êxodo e da fundação do reino de Israel no tempo de David (no

século X antes de nossa era) até a conquista da Palestina pelos persas, e até

sua helenização sob a égide dos ptolomeus a partir de 305 antes de nossa

era, os judeus não sofreram preconceitos religiosos da parte de seus vizinhos.


Muito ao contrário, os que venceram os babilónios — Ciro e seu sucessor Dario
— foram-lhes manifestamente solícitos: não só concederam aos prisioneiros o
direito de voltar para casa, como ainda assumiram às próprias expensas a
reconstrução do Templo de Salomão. Dario encarregou Neemias e Esdras de
reconstituir uma comunidade judaica

najudéia aquemênida, e a Lei judaica foi confirmada como lei real para

os judeus da Babilónia. Por volta do final do terceiro século antes de nossa era, o
rei selêucida Antíoco III reconfirmou o direito dos judeus de

“viver de acordo com suas leis ancestrais”.


30
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Qual foi o estado de espírito dos deportados que voltaram ao país,

bem como daqueles que haviam permanecido? A humilhação da deportação


havia de fato deixado cicatrizes profundas no povo eleito. Afinal, que falta havia
cometido para suportar aquela provação? O Senhor o teria

então abandonado? Teria Ele retirado a promessa de Canaã? A fé de Israel

tornou-se mais intransigente.

É preciso lembrar, finalmente, um ponto pouco conhecido: os

judeus não tinham guardado uma lembrança tão odiosa do Egito a ponto

de não querer voltar para lá. E aquele também não era um país que os

odiasse só por serem judeus. Os documentos aramaicos descobertos na

ilha de Elefantina em 1901 e 1904 indicam que ali existiu “uma comunidade
judaica que provavelmente deixou a Palestina e instalou-se no Egito no século
VII a.C., no tempo de Psamético I, até por volta do século IV a.C.”:18
comunidade de mercenários que, pode-se supor, teriam deixado a Palestina pelo
fato de ela estar na ocasião sob domínio assírio19

(mas também é preciso enfatizar que as tribulações hebraicas da deportação para


a Babilónia sob Nabucodonosor resultaram de ações militares, não evidenciando
caráter religioso). Os judeus voltaram de fato para o

Egito em 586 antes de nossa era, após a tomada de Jerusalém e o assassinato de


Godolias, governador da Judéia nomeado por Nabucodonosor, por um
descendente de David, Ismael. Dessa vez contavam com ilustre

companhia, pois haviam levado com eles o profeta Jeremias.20

A presença dos judeus no Egito não parece, a propósito, ter conhecido


interrupção prolongada: em meados do século III antes de nossa era, soldados
judeus receberam do rei Ptolomeu II Filadelfo glebas de terra,

ou clerúquias, próximas de diversas cidades e povoados do Fayum:

Crocodilópolis, capital dessa província, Kerkeósisis, Samaria-Kerkesefis,

Apias, Trikomia, Hefaistias... E, novamente, legionários judeus insta-

laram-se na ilha de Elefantina.21

Um mundo sem nuvens, então: os judeus submeteram-se — não

sem reclamar — às leis helenísticas então em vigor no vale do Nilo.2

Fato notável: a Torá foi elevada ao nível de lei cívica grega, nomospolitikos,

e regeu os conflitos entre judeus. Mesmo helenizados, falando grego, os

judeus do Egito permaneciam, pois, fiéis a sua religião.


DAS ORIGENS AO ÊXODO
31
O anti-semitismo não é, portanto, uma “fatalidade histórica”. O

ponto é essencial, e eu o coloco em oposição aos que, mesmo judeus,

pretendem que os judeus, eternos estrangeiros, estejam condenados ao

ostracismo permanente.

Uma manifestação de agressividade especificamente religiosa — a

primeira relacionada aos judeus — foi de fato registrada no Egito em 414

antes de nossa era, sob o reinado do rei Dario II, que então ocupava o

país: os sacerdotes do deus-cameiro Khnub destruíram o santuário judeu

dejavé (denominado Yaho). O templo foi queimado, e as bacias de ouro

e prata roubadas pelos sacerdotes egípcios. Essa lufada de violência poderia


parecer incompreensível, sabendo-se que as comunidades judaica e egípcia
tinham vivido até então em boa harmonia e contavam com

numerosos casais mistos. Alguns indícios poderiam indicar que os

judeus teriam até mesmo praticado certo sincretismo dos cultos, identificando
Yaho ao grande deus dos cultos aramaicos de Syena, Bethel, a despeito das
admoestações veementes de Jeremias cerca de 170 anos

antes.23

Contudo, seria errado interpretar essa escaramuça como uma manifestação de


anti-semitismo no sentido moderno da palavra; deveu-se ao fato de que os judeus
sacrificavam carneiros, animais sagrados, e “os sacerdotes e os fiéis ao deus
Khnub (. .) dificilmente suportavam ver sacrificar, nos santuários dos judeus, de
alguma maneira sob seus olhos (. .) os animais mais santos e os mais nobres da
raça ovina (. .)’\ 24 Aparentemente não houve derramamento de sangue, e os
sacerdotes egípcios, ferozmente apegados a seus ritos, como, aliás, todos os
outros sacerdotes

de todos os tempos, haviam manifestado uns oito séculos antes a mesma

agressividade em relação a seus próprios colegas egípcios, os sacerdotes

do culto de Aton. Três anos mais tarde, o santuário judeu de Elefàntina

foi reconstruído, e os judeus assumiram o compromisso de não mais

praticar holocaustos de carneiros.25

O mundo antigo parecia, pois, tolerante. Os judeus eram humanos

como os outros e tinham o direito de praticar a religião que lhes agradava.

Quando foi que isso se deteriorou? E por quê?


32
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Bibliografia e notas críticas

1. Génesis, XI, 32, fonte P. O Pentateuco samaritano diz, por sua vez, que
Terá morreu com 145 anos, o que é menos exagerado, ainda que não mais
plausível em termos modernos. É preciso lembrar que o simbolismo bíblico
não atribuía aos números o mesmo valor que a aritmética laica.

2. Existe desacordo entre biblicistas e arqueólogos sobre a questão de os


benjamini-

tas poderem já existir nessa época, uma vez que o Antigo Testamento os
indica como descendentes de Benjamim, filho de Jacó, e, portanto, bisneto
de Abraão. A evidência arqueológica parece contudo conclusiva: esses
aliados do rei de Mari figuram nas tábuas

de Mari na época do rei Iahdun-Lim, ou seja, no século XIX a.C.. Cf. André
Parrot,

Abraham et son temps (Delachaux & Niestlé, Neuchâtel, 1962).

3. Nomads, Enciclopédia Britânica: Georges Roux, La Mésopotamie — Essai


d’histoire

politique, êconomique et culturel e (Le Seuil, 1985); André Parrot, Abraham


et son temps, op. cit.

4. Gen. XII, 1 — 4. A tradição judaica faz a ordem divina remontar a antes


da chegada a Haran. Logicamente, a questão não é clara: com efeito, se
Terá permaneceu muito tempo em Haran, Abraão não pode de maneira
alguma ter ficado lá.

5. Gen. XXXV, 4; Dt. XI, 30 ;Jos. XXIV, 26 Juízes, IX, 6.

6. Akenaton, cujo nome original era Amenófís IV, reinou de 1353 a 1335
a.C.
Supondo que, sob Set I (que começou seu reinado em 1293) e sob Ramsés II,
os judeus

estivessem no Egito há quatro séculos, segundo o Livro do Êxodo, então sua


chegada teria

ocorrido no século XVII a.C., ou seja, ao mesmo tempo que a dos invasores
hicsos. Os

hicsos, sob cuja dominação o clã de Jacó instalou-se no Egito, de fato


chegaram nesse

país, “o país de Gochen”, em 1650 a.C. Como Jacó era neto de Abraão, seria
preciso

recuar três gerações, ou seja, um século, a época em que teria vivido seu
ancestral. O que

significa dizer que Abraão teria vivido no século XVIII a.C. e que o
monoteísmo judaico

teria precedido de quatro séculos o de Akenaton.

7. Essa profecia, formulada de maneira diferente em Números, XXIII, 7-10,


é aqui

citada segundo a transcrição feita por Joseph cmAntiquités judaiques, IV,


115-16, op. cit. É

também encontrada em Oracles sibyllins, I I, 271.

8. Em sua obra sobre o judaísmo, Die religiose Situation der Zeit, das
Judentum (Piper

Verlag, Munich, 1991), o teólogo Hans Kiing escreveu: ". . O que


provisoriamente defini como o centro constante e a fundação imanente da
religião judaica está confirmado: é impossível compreender até mesmo as
origens da sociedade israelita sem os dois fatores Javé e Israel (povo e
território)...” [grifo do autor]. Pode parecer que Kiing estaria identificando
o judaísmo ao sionismo, interpretação radicalmente desmentida pela
história: existem judeus profundamente ligados a sua religião e que são,
contudo, não-sionistas ou até mesmo anti-sionistas.
DAS ORIGENS AO ÊXODO
33
E, mais adiante, Kiing acrescenta estas palavras singulares: “Podemos ver
aí não só a

estrutura universal de ‘um Deus, um rei, um país’, como nas outras religiões
semíticas

ocidentais, mas também a estrutura ‘um Deus, um povo, um país.’” A


existência da estrutura “um Deus, um rei, um país”, apresentada como
postulado, parece-me requerer algum esclarecimento que, contudo, o autor
não oferece. A noção de religiões semíticas

“ocidentais” (West Semitische) parece também demandar elucidação, e o que


sabemos, por

exemplo, sobre a religião dos fenícios não é suficiente para confirmar a


estrutura invocada por Kiing. Confesso igualmente que a fórmula “um
Deus, um povo, um país” evoca de maneira irada, e sem fundamentos
históricos reais, o refrão hitlerista ein Reich, ein

Land, ein Volk.

9 . 0 Livro dosJubileus, pseudo-epígrafe intertestamentária, informa que


Jafé, filho de Sem, instalou-se em Média ( Escritos intertestamentários, op.
cit., X, 35-36) no local para onde, segundo um outro escrito, tinham sido
deportados “nove tribos e meia” (id.9

Martírio de Isaías, III, 2). Johnson (História dos judeus, op. cit.) menciona a
descoberta em Nipur, cidade de Média, de 650 tábuas gravadas em escrita
cuneiforme redigidas em 450

e 403 a.C., contendo uma longa lista de nomes, dos quais 8% judeus.
Ezequiel residiu

nessa cidade sagrada junto ao Eufrates. E bem provável que lá tenha


existido uma colónia
de judeus que se poderiam ter instalado nessa cidade da antiga Suméria
depois do retorno do Exílio. Mas existe mais a leste, na Cachemira,
numerosos indícios (incluído o enigmático “Túmulo de Salomão”) da
presença de judeus em uma época indeterminada anterior à era cristã.

10. Nas declarações que o Génesis atribui a Deus, existem três que parecem
contraditórias: terminado o Dilúvio, Ele dá a entender a Noé que ele e seus
descendentes deverão ser fecundos e multiplicar-se sobre a Terra (IX, 7),
depois declara a Abraão que Ele lhe concederá os territórios que vão “do
Nilo ao Eufrates” (XV, 18-21); enfim, declara

aos patriarcas que lhes concederá Canaã (XVII, 8).

11. Para essas indicações a respeito de assentamentos de judeus, cf. Nicholas


de

Lange, Atlas of theJewish World (Phaidon Press, Ltd., Oxford, 1984).

12. Gen. XII, 9-XIII,2.

13. Hicsos, Enciclopédia Britânica. Essa indicação parece estar


razoavelmente de

acordo com as do Pentateuco, que diz que os hebreus estavam cativos no


Egito há quatro

séculos no momento em que Moisés apareceu. Do fato de haver ele


organizado o Exodo

sob Ramsés II, portanto no século XIII a.C. (Cf. Moisés, do autor, 2 vol., J.
Cl. Lat ès,

1998), depreende-se que os judeus já teriam chegado no século III ao “país


de Gochen”.

14. Os hicsos parecem ter respeitado a religião e os costumes políticos


egípcios, ao

menos em suas linhas gerais. Mas uma prova da aversão que os egípcios lhes
desenvolveram é o fato de terem, durante o Império Médio, dado o nome de
um faraó hieso, Apopis, à grande serpente infernal que ameaçava de caos o
mundo. Em compensação os egípcios

adotaram no Império Novo um deus de origem hiesa, Set, que o faraó Set I
chegou até a
adotar como nome.
34
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

15. Gên. XLVI, 6-7; XLVII, 5-6,10-12 e 27. O historiador egípcio Manethon,
do

século III a.C., confundiu, por sinal sem razão, os hebreus com os hicsos.

16./er. XLIV, 16-18.

17. “Eloim [plural de Eloha ou Eioah] é o nome de Deus mais


frequentemente utilizado na Bíblia” ( Dictionnaire encyclopédique du
judaisme, Robert Laffont/Bouquins, 1966).

Entretanto, ele pode igualmente designar uma divindade pagã ou uma


deusa.

18. André Dupont-Sommer, Les dieux et les hommes en Vtle d}Élephantine,


près

d*Assouan, au temps de Vempire des Perses (Institut de France, Académie


des inscripdons et

belles-lettres, 1978); Pierre Grelot, Documents araméens d’Égypte (Éditíons


du Cerf, 1972).

19. Foi, pois, muito provavelmente antes de o rei Josias haver retomado o
controle

da Judéia, no final do século VII a.C.

20. Jer. XLIII, 5-7.

21. Joseph Mélèze Modijewski, Les Juijs d’Égypte de Ramsès II à Hadrien


(Éditions

Errance, 1991).
22. Papyrus Petrie III 21g e Papyrus de Gourob 2, citados por J. M.
Modrjewski, id.

23. Jer. XLIV. Fica-se sabendo que uma deusa, Anat, era parte de um grupo
ao qual

pertenciam Yaho e Bethel, bem como o filho de Anat e de Bethel, Anat-


Bethel. A respeito da forma Yaho do nome divino, ponto de onomástica
evidentemente de grande importância, mas que não entra no âmbito destas
páginas, pode-se recorrer aos Documents araméens d’Égypte, op. cit.,
introdução, tradução para o francês e apresentação de Pierre Grelot,
professor do Instituto Católico de Paris.

24. A. Dupont-Sommer, op. cit.

25. O templo de Elefantina parece ter perdurado, uma vez que a colónia
judia local

não foi embora quando o faraó Amirteu II retomou dos persas, em 404 a.C.,
o controle

de uma parte do país, e em seguida quando seu sucessor Neferites (vigésima


nona dinastia mendesiana) retomou-o por completo em 398. Neferites
utilizou a guarnição judaica para fazer o policiamento ao longp da fronteira
núbia. Não se sabe o que aconteceu a essa

colónia judia, pois não se dispõe de documentos posteriores a 398 a.C.


2.
De Alexandre ao mal-entendido:

os primeiros ódios do mundo

A HELENIZAÇÃO DO MEDITERRÂNEO — HEROÍSMO DOS


MACABEUS E IDENTIFI​

CAÇÃO DA RELIGIÃO À NAÇÃO — LOUCURA E DESASTRE DA


REALEZA ASMONIA-

NA—OS CINQÚENTA MIL MORTOS DA GUERRA CIVIL


DESENCADEADA POR ALE​

XANDRE JANEU — PRIMEIROS RELATOS SOBRE A CRUELDADE DOS


JUDEUS

ENTRE SI E DEGRADAÇÃO DA IMAGEM DOS JUDEUS NO MUNDO


HELÉNICO —

DOR DA OCUPAÇÃO ROMANA — OS COMEÇOS DA REVOLTA:


“ESSÊNIOS”, SICÁ​

RIOS E ZELOTES — O APOCALIPTISMO JUDEU — NASCIMENTO DO


MITO DA

XENOFOBIA JUDIA — A RUPTURA DO POVO JUDEU — DEODORO DA


SICÍLIA,

APOLÔNIO MOLON, LISÍMACO, ÁPIO E ALGUNS OUTROS ANTI-


SEMITAS

Em 338 a.C., um cisma histórico de primeira grandeza sacudiu o

mundo. Na planície de Queronéia, um jovem príncipe louro montando

um cavalo negro colocou em xeque as bravas tropas de Tebas. Aos 18


anos, o macedônio Alexandre começava sua prodigiosa car eira. Depois

conquistaria o mundo ou, pelo menos, a maior parte do mundo conhecido. O


brilho do herói encantou não apenas os povos, mas também as consciências
individuais. Os judeus incluíram-se entre aqueles a quem

Alexandre dispensou benesses, mas, por um cruel paradoxo, parte de

seus infortúnios posteriores veio a proceder justamente das benesses

recebidas.

No decorrer de sua conquista do Mediterrâneo oriental, Alexandre

fez o cerco de Tiro em 332 a.C. e garantiu a submissão do grande sacerdote de


Jerusalém. Permanentemente necessitado de fundos, solicitou dinheiro aos
judeus e, da mesma forma, obteve. Na verdade, os judeus

tinham ficado bastante contentes de poder livrar-se da opressiva tutela


36
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

dos persas, que ocupavam o país. Segundo Flavius Joseph, o historiador

judeu romanizado que relatou os fatos em 94, Alexandre chegou a contratar


soldados judeus e samaritanos para sua guarda, dada a notoriedade de seu valor.

Uma vez libertada Jerusalém, os macedônios respeitaram o status dos

judeus tal como vinha funcionando sob os persas: concederam-lhes

organização própria, ã politeumata, e mantiveram as jurisdições particulares


fundadas na lei judaica. Os judeus tinham o direito de respeitar o repouso do
sabá, estavam dispensados de render homenagem aos deuses

estrangeiros, podiam abater a contribuição do Templo dos impostos

cobrados pelas autoridades não judias e eram isentos do serviço militar;

em contrapartida, não tinham a cidadania grega, “reservada a uma minoria, e a


massa dos judeus e dos não judeus não pertencia à. polis (Estado ou sociedade)
grega”.1 Contudo, Alexandre exigiu a completa submissão

dos judeus assim como a dos outros: quando os samaritanos capturaram

um governador macedônio, Andromakos ou Andrômaco, a 55 quilómetros ao


norte de Jerusalém, e o queimaram vivo, os assassinos foram presos e
terrivelmente supliciados.

Portanto, Alexandre comportou-se como o suserano e protetor dos

judeus.

Aparentemente, o Antigo Testamento não lhe manifestou reconhecimento: o


Livro dos Macabeus, extraído do Livro dos Anais dos grandes sacerdotes,
redigido cerca de um século e meio mais tarde, diz que “seu
coração encheu-se de orgulho”2 após suas conquistas e ataca com violência os
reis selêucidas que perpetuaram a dominação macedônia. O Livro de Daniel,
anterior em cerca de 30 anos, chama-o de ‘Alexandre, o

Bode”,3 numa alusão ao epíteto “o homem dos dois chifres” ou dois jatos

de luz que teriam coroado a cabeça de Alexandre (como, aliás, a de

Moisés).

Porém, a despeito da reprovação desses dois textos bíblicos, por volta

do século I começa a se formar a lenda, escreve Paul Faure,4 “de Alexandre

visitando Jerusalém após a tomada de Gaza, honrando o grande sacerdote

Jadua (Jadeu), prostemando-se diante dele e oferecendo um sacrifício ao

soberano do universo, o Deus único dos judeus”. De acordo com Flavius


DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDIDO
37
Joseph, essa teria sido a ocasião em que os judeus obtiveram o status fiscal

privilegiado. De fato, Alexandre teria perguntado aos chefes do povo eleito o


que lhes traria mais satisfação, e eles teriam respondido que desejavam a isenção
do pagamento de impostos a cada sete anos, para si próprios e para os judeus da
Babilónia e da Média.5 Não era uma novidade, uma

vez que se haviam beneficiado desse direito sob os persas, e Alexandre

não poderia fazer menos do que estes últimos: o direito foi-lhes, pois,

concedido. Presente envenenado! E o que se verificará três séculos e meio

mais tarde, nessa mesma Alexandria.

Fato é que Alexandre se tomou um herói popular entre os judeus,

tanto quanto se tomará para os muçulmanos. Não encorajou os judeus a

se instalar em Alexandria e em outras cidades imperiais? Não foi graças

a sua proteção indireta que a Tora foi traduzida nesta cidade (em 270-250

a.C.) e o conhecimento do verdadeiro Deus foi propagado? Não prosperaram em


Alexandria, que chegou a ter no primeiro século de nossa era mais judeus do que
Jerusalém, cerca de 300 mil?

Adiáspora foi, pois, favorecida por Alexandre: havia judeus não apenas no Egito,
na Palestina e em suas vizinhanças, Fenícia, Síria, Síria Meridional, mas também
na Ásia Menor, Panfilia, Cilicia, Bitínia, Ponto,

assim como na Grécia, Tes ália, Beócia, Macedônia, Eólia, Ática, Argos,

Corinto, Peloponeso, e nas ilhas de Eubéia, Chipre, Creta, e, mais a leste, na


Transeufratenia, na Babilónia e nas satrapias vizinhas, como mostra o texto de
Fílon de Alexandria, Legatio ad Gaium, redigido depois da ocorrência do
massacre de 38 em Alexandria, que veremos mais adiante.
Fílon não afirma, com ênfase e orgulho, que há tantos judeus no mundo

que um só continente não é suficiente para contê-los?

Os judeus começam, pois, a falar grego como todo mundo naquelas

regiões, uma vez que o grego era ao mesmo tempo a língua ecuménica

dos povos do Mediterrâneo e a língua corrente, lingua franca. A despeito

de sua fidelidade intacta à lei judaica, sofreram também a influência do

pensamento grego, notadamente do estoicismo e do platonismo. Um

dos judeus alexandrinos mais eruditos, Fílon, escreveu tratados filosóficos em


grego. Numerosas palavras gregas foram introduzidas na literatura rabínica,6 e
surgiram grandes sacerdotes com nomes gregos: Menelau
38
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

(172-162 a.C.), Aristóbulo (104-103 e 67-63), Alexandre — trata-se,


evidentemente, de Alexandre Janeu (107-76), e Antígono. Até mesmo o nome de
Jesus era a forma helenizada do hebreu Josué (Joshua).

Um dos capítulos mais obscuros da história judia é sua relação com

a cultura greco-romana. Os estudos que a ela se dedicaram indicam que,

em um momento que pode ser situado entre o século III a.C. e o século

I d.C., a coabitação das duas culturas ensejou uma interpenetração das

mais profundas. Os romanos chegaram, por exemplo, a adotar o hábito

(rápida e vigorosamente reprimido) de circuncidar seus escravos, e o grego


penetrou não só a terminologia das comunidades judias e a língua dos textos
rabínicos, como também a linguagem da sinagoga.7 São apenas

alguns exemplos, mas existem inúmeros outros que indicam o desenvolvimento,


no mínimo, de uma helenização das classes sacerdotais e patrícias judias.

Predições relativas ao passado são ar iscadas. Existem, contudo, elementos


suficientes para supor que, se essa helenização tivesse prosseguido, o judaísmo
se teria fundido dentro do ambiente greco-romano e progressivamente
desaparecido, como tantas outras religiões da Antiguidade, como foi o caso do
mitraísmo. Contudo, um elemento social deve ter pesado de forma especial: a
helenização era própria das classes

ricas, e essas eram minoritárias e vulneráveis.

Durante algum tempo tudo pareceu funcionar da melhor forma possível. A


despeito de estarem submetidos a governadores ptolemaicos, depois a reis
selêucidas descendentes dos generais de Alexandre, os

judeus, virtualmente, governavam Jerusalém e a Judéia de forma autónoma,


como uma teocracia de fato, uma vez que tinham até mesmo autorização para
aplicar suas leis aos não judeus. Aparências enganosas: os judeus das classes
trabalhadoras não esqueciam que no reinado de David,

e depois no de Salomão, chegaram a constituir um reino independente e

poderoso. Semelhante a uma linha de fogo, uma corrente de reação iria

modificar, a partir do começo do século I e possivelmente até o fim do

século III a.C., a aparente harmonia geral na qual os judeus viviam com

seus dominadores. Começou de forma sor ateira, como um fogo latente,

mas foi engrossando até as proporções de um incêndio colossal. O


DE ALEXANDRE AO MAL-ENTEN Dl DO
39
judaísmo por pouco não desapareceu dentro dele no ano de 70 d.C., por

ocasião da destruição de Jerusalém.

O episódio teve uma extrema importância. Foi dessa corrente, com

efeito, que derivaram as premissas do anti-semitismo no mundo pré-

cristão.

A primeira faísca deveu-se a um grave er o de um rei selêucida,

Antíoco IV (175-164 a.C.). Ele depôs o grande sacerdote Onias III e vendeu seu
cargo ao irmão deste, Jasão (outra helenização de Josué), e, em seguida, colocou
Jerusalém sob a tutela de soldados sírios. Jasão aboliu o

sistema tradicional judaico e reorganizou Jerusalém segundo o modelo

de uma cidade grega. Como cúmulo da impudência, mudou o nome da

cidade para Antioquia e mandou construir um ginásio junto do monte do

Templo. Ora, a faísca caiu sobre um terreno pronto para a conflagração,

pois numerosos judeus devotos e tradicionalistas concluíram que o

judaísmo oficial tinha sido alterado e desvirtuado, ou mesmo esfacelado,

sob a influência do helenismo. A prova disso era que uma parte dos

sacerdotes da nova tendência, dita reformista, desinteressava-se do servi​

ço sagrado e entregava-se até mesmo aos jogos da palestra7*, que se praticavam


sem roupa; e também que o tesouro do Templo estava servindo para financiar
competições esportivas e representações teatrais.8 Além

disso, o campesinato da Palestina — os amharetz — que, nascido o mais


das vezes de casamentos mistos, não conhecia praticamente nada da Lei

Mosaica, mas sofria ainda assim seus rigores, colocara-se do lado dos

reformadores. Os tradicionalistas autodefiniram-se como a consciência

de seu povo e indignaram-se.

Dois anos mais tarde, Antíoco substituiu Jasão por Menelau, ainda

mais pró-helênico do que seu predecessor. Menelau aboliu a Lei Mosaica,

antecipando São Paulo em cerca de dois séculos, e impôs os cultos dos

deuses gregos no interior do Templo.9 A divindade, clamava-se, seria

universal, e o Deus de Israel seria o mesmo dos gregos. Foi demais para

os tradicionalistas: ar aigados à letra e ao espírito do Pentateuco, interpretaram a


reforma universalista como o retorno ao culto de Baal.

O sinal da revolta dos tradicionalistas foi dado por um sacerdote,

Matias Hasmon, que assassinou um reformador em Modin, não longe


40
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

de Lida. Seus cinco filhos, guiados por Judas, “O Martelo” (makkabab em

hebraico, que se transforma em macabeu em português), organizaram

uma guerrilha contra as guarnições selêucidas e todos os judeus partidários dos


reformadores. Entre os anos de 166 a 164, perseguiram os gregos das
proximidades de Jerusalém e, em 164, purificaram o Templo dos vestígios
gregos que o maculavam, procedendo a uma nova consagração: era a festa de
chanuca, tradicionalmente comemorada até nossos dias. Dois

anos mais tarde, o novo rei selêucida Antíoco V atribuiu a culpa da insurreição
ao grande sacerdote Menelau e mandou executá-lo. Iniciou entendimentos com a
família dos asmonianos, que reinava em Jerusalém e na maior parte da Judéia.
Mas os asmonianos tinham consciência de seu

poder nascente, ao contrário daquele dos selêucidas, que enfraquecia;

um acordo que lhes assegurou o staíus de família reinante foi concluído

com Roma em 161 antes de nossa era, reconhecendo que ajudéia era um

Estado independente. E provável que os selêucidas não estivessem de

acordo com esse ponto, mas não desejavam agravar seus conflitos com

Roma e, em 142, reconheceram por sua vez o status da Judéia de nação

independente e, portanto, isenta do pagamento de impostos.

Simão Macabeu foi ao mesmo tempo etnarca, ou seja, rei, e grande

sacerdote; detinha o duplo cetro de Moisés e Abraão. A independência da

Judéia, seguiu-se, em poucas décadas, a das províncias do norte, Galiléia,


Galaad e Samaria ao norte — ou seja, o antigo Israel — e de Moab e

Iduméa ao sul. Quando o último rei dos judeus, Alexandre Janeu, morreu em 76
a.C., legou a seus herdeiros um Estado quase equivalente ao que fora constituído
por David no século X

O capítulo da realeza asmoniana, que durou por volta de um século

e meio, teve importância considerável e frequentemente subestimada

por historiadores tanto do judaísmo quanto do anti-semitismo. Efeti-

vamente, ele forjou nos judeus um sentimento de orgulho legítimo. Pela

primeira vez na história das civilizações, a religião e o conceito de nação

colocavam-se em pé de igualdade, uma vez que tinha sido a revolta religiosa que
salvara o povo judeu da humilhante sujeição aos gregos.

Desenvolveu nos judeus, nessa mesma ocasião, uma hostilidade feroz a

qualquer reformismo religioso, vinculado de uma vez por todas a estran​


DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDIDO
41
geiros ímpios. E talvez tenha também produzido religiosos reacionários:

eles se tomaram dificilmente governáveis, sempre prontos a suspeitar da

traição de seus próprios chefes, assim que acreditavam ter-lhes percebido

mínimos desvios em relação à tradição.

Os asmonianos também foram acometidos de embriaguez de poder,

aquilo que os gregos chamavam de hubris, o que, longe de consolidar as

estruturas nacionais tão duramente obtidas dos estrangeiros,

fragilizaram-nas: o fanatismo levou-os a tantos conflitos e a tamanhos

excessos, que terminou por destruí-los. João Hircam, terceiro filho do

último dos macabeus, Simão, lançou-se, pois, à conquista de Samaria,

reduzindo a capital a um campo de ruínas, que tratou de encher de canais

para que todo o local fosse inundado e ninguém pudesse mais saber onde

estivera a cidade.10 Da mesma maneira, devastou Citópolis, uma das

cidades da Decápolis grega, massacrando suas populações sob o único

pretexto de que falavam grego. Depois de conquistar a Iduméia, passou

pelo fio da espada todos os que não quiseram converter-se ao judaísmo.

Foi um tirano sanguinário que se acreditava investido do dom da profecia,


segundo Flavius Joseph.

O cúmulo da loucura foi alcançado por seu filho Alexandre Janeu:


déspota alcoólatra e sujeito a acessos de raiva patológica, mandou executar seis
mil judeus que o vaiaram durante a Festa dos Tabernáculos, Sukot, a festa por
excelência. Embora estivesse oficiando sob o título de grande

sacerdote, tinha na verdade se recusado a executar o rito das libações

aquáticas, Simhat bet ha-choévah, que acompanhava as preces para a chuva.

Alexandre Janeu foi de fato um alcoólatra às raias da hidrofobia que, por

sinal, mor eu de uma crise de delirium tremens. Foi esse mesmo Alexandre

Janeu que, em meio a uma crise de loucura, sacrificou um porco sobre os

rolos da Torá.

Pior: antes de entregar a alma, Alexandre Janeu deixou que começasse uma
guerra civil que durou seis anos e fez 50 mil mortos, como relatou Flavius
Joseph.1

A faísca acesa por Antíoco IVj seguida das loucuras dos últimos reis

da dinastia asmoniana deram início a um incêndio cuja fumaça escureceu

o céu até então sereno do Oriente. Os judeus passaram a desconfiar do


42
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

helenismo. Partindo de Jerusalém, a desconfiança ganhou as colónias da

diáspora. Esse processo provavelmente levou muitas décadas para se

completar, mas foi concluído.

A desconfiança de uns provocou a desconfiança dos demais, pois a

descrição das crueldades dos dirigentes judeus em relação às populações

conquistadas espalhou-se para além das fronteiras, assim como os relatos

dos massacres por eles perpetrados contra outros judeus. E os judeus

foram os primeiros a ser acusados de xenofobia: na ocasião em que, num

último esforço de reconquista das províncias perdidas, o rei selêucida

Antíoco VI Sidetes procedia ao cerco de Jerusalém em 134-35 a.C., seus

conselheiros recomendaram-lhe tomar de assalto a cidade e destruir “a

nação dos judeus, dado que de todas as nações apenas ela evitava negociar

com qualquer outro povo e considerava todos os homens seus inimigos”.

“Os ancestrais dos judeus tinham sido expulsos do Egito por serem pessoas
ímpias e detestadas pelos deuses”, escrevia Deodoro da Sicília, no século I antes
da era cristã. Ainda mais “generoso”, o historiador acrescentava que os
descendentes dos judeus do Egito “tinham elevado seu ódio à humanidade ao
nível de uma tradição”.12

Claro, Deodoro da Sicília é tido pelo moderno exegeta como um

anti-semita dos mais deslavados, mas ele não foi o primeiro. Um século
antes, Apolônio Molon, um autor cuja obra se perdeu, mas que conhecemos
pelas menções feitas por Joseph em seu tratado Contra Ápio, descreve os judeus
como “ateus e misantropos”.13

Assim, os judeus projetaram sobre o mundo helenístico uma imagem demoníaca,


às vezes odiosa — mas não de todo despropositada.

Depois de haver perdido o reino mítico de David, depois de haver suportado a


humilhação da deportação para a Babilónia, os judeus se sentiram traídos por
seus próprios reis, apesar de descendentes dos heróicos macabeus. Humilhados e
ofendidos, imbuíram-se da convicção de que um

mundo tão injusto não poderia perdurar e que Deus iria voltar, em meio

a um grande fragor, para restaurar a legitimidade de Seu povo. Abundam

testemunhos na maior parte da literatura intertestamentária redigida nos

quatro ou três séculos anteriores à era cristã. Os Livros I e II de Enoque,

Jubileus, Testamentos dos Doze Patriarcas, Oráculos Sibilinos e outros, são eles
DE ALEXANDRE AO MAL-ENTEND1DO
43
todos textos impregnados de tons apocalípticos e repletos de imprecações

a respeito dos pagãos. “Malditos sejam, Gog, você e todos os povos


sucessivamente, e você também Magog!”, clamam, por exemplo, os Oráculos
SibilinosM O efeito sobre os leitores mediterrâneos não judeus foi catastrófico.

Efetivamente, muitos desses escritos, como os Oráculos Sibilinos ou

muitas passagens de Enoque I foram redigidos em grego, e, assim, as populações


mediterrâneas puderam tomar conhecimento deles. E, quando o faziam, era com
espanto. Se a versão grega da Septuaginta já lhes havia

provocado aversão, estes últimos as deixavam horrorizadas. Vejam só

como são esses judeus! Sempre a conspirar contra o mundo dos gentios!

Ora, esses leitores ignoravam que aqueles textos tinham sido produzidos

por uma parcela mínima do povo judeu, vivendo quase exclusivamente

na Palestina,15 da qual falaremos algumas páginas mais adiante; e os leitores,


ignorando que eram uns exaltados, impelidos pela amargura à rejeição do mundo
exterior e à denúncia delirante do universo inteiro,

tomaram a parte pelo todo.

Assim se formou o mito da aversão dos judeus pelo resto do mundo,

que fez com que os gregos rejeitassem o judaísmo, com o qual até então

tinham convivido bem (o próprio Aristóteies parece ter rido boa disposi​

ção em relação a eles16). Não foi nem mesmo o monoteísmo que os feriu:

a noção de um deus único não era estranha ao pensamento grego. Ffenso

haver indicado em outros lugares17 que ela era subjacente na filosofia grega
desde os pré-socráticos, ou seja, antes do século V a.C.; mas a noção de um deus
exclusivamente judeu conspirando com seu povo para o extermínio dos outros,
noção presente tanto no Antigo Testamento quanto nos Escritos
Intertestamentais, só pode ter chocado os gregos e os romanos,

para os quais os deuses reinavam sobre a totalidade dos humanos.

O Império Romano começou, assim, a vigiar aquele Estado judeu

que se mostrava decididamente bastante turbulento, tanto no interior

quanto no exterior. Os países vizinhos, clientes de Roma, inquietavam-

se. A viúva de Alexandre Janeu, Salomé Alexandra, ao sucedê-lo no trono em


76, tentou restabelecer a ordem com certa sabedoria. Mas, após sua morte, os
dois herdeiros, Hircam, que era grande sacerdote, e
44
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Aristóbulo, brigaram pelo trono. Uma nova guerra civil explodiu, dessa

vez entre suas facções respectivas. Herodes Antipas, todo-poderoso

ministro de Salomé Alexandra, pediu socorro aos romanos. Pompeu, o

general romano que se encontrava na região e tinha feito uma campanha

vitoriosa na Ásia Menor e na Síria, acorreu à frente de suas tropas.

Pode-se imaginar a raiva e a dor dos judeus assistindo à entrada de

Pompeu e seu estado-maior em Jerusalém e em seguida no Templo, e,

sacrilégio dos sacrilégios, no Santo dos Santos, cujo acesso até então tinha

sido reservado apenas ao grande sacerdote. E, pior ainda, as sanções

impostas pelos romanos foram pesadas: Israel teria que pagar mil talentos, soma
enorme, teria que devolver aos sírios os territórios que lhes tomara, a etnarquia
ou a realeza seria conferida a um leigo e do grande

sacerdote seria retirado todo poder temporal. As próprias estruturas da

teocracia judaica tinham sido desmanteladas. Israel caíra sob a tutela

romana.

Mas algo de mais grave acontecera. Não só a unidade do povo fora

quebrada, como também os compromissos e os abusos do clero real e o

desespero tinham criado na nação judia uma corrente contestatória que

amaldiçoava o clero de Jerusalém, constituído pela aristocracia dos sacerdotes


saduceus, descendentes de Sadoc e bastante próximos da realeza.

Corrente que efetivamente desprendeu a religião de suas estruturas

seculares, resultando em três ramos: primeiro, os fariseus, parushim, ou

seja, os separatistas, que surgiram no período de Alexandre Janeu. Ao


dissociarem o reino celeste do reino terrestre, dissociavam igualmente a religião
(que dizia respeito ao primeiro) do nacionalismo (que dizia respeito ao segundo),
o que lhes valeu a hostilidade do rei. Do momento em que não mais o
consideravam o verdadeiro grande sacerdote dos judeus,

condenavam-no à destituição.

Em seguida vinham os sicários que, diante do hor or da injustiça em

curso, achavam que o advento do reino celeste não tardaria e, por isso,

iriam dedicar-se a apressá-lo pela violência e pela provocação. Desta última


corrente deveriam surgir, no início do século I, os zelotes, verdadeiras
associações de terroristas que atacavam tanto os romanos quanto os
DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDIDO
45
judeus “colaboradores”, em ocasiões de festas. Assim, não foi por pura

má vontade que Joseph chamou-os de “bandidos”.

E, por último, a corrente composta pelos “essênios”,18 assim chamados por


comodidade de linguagem, na verdade os hassinin ou virtuosos, rigoristas e
integristas que decidiram se retirar da vida comunitária judaica desde o tempo
em que Jonathan Macabeu era o grande sacerdote (152-142 a.C.19).
Contrariamente ao que diversas obras vêm pretendendo divulgar há cerca de
meio século, os “essênios” não estavam de forma alguma acantonados em
Qumran, sítio localizado à margem do mar

Morto e celebrizado pelos manuscritos que foram encontrados nas proximidades.


Havia comunidades de “essênios”, ascetas conhecidos pelo nome de
hemerobatistas ou terapeutas, em muitos outros sítios, notadamente às portas das
cidades em que se contavam grandes colónias judias,

como às margens do lago Mareotis, perto de Alexandria.

A distinção entre esses três ramos provavelmente não é tão nítida.

Assim, zelotes e essênios compartilhavam uma convicção profunda que

poderia ser chamada de apocaliptismo. Para eles, a humilhação judia

não poderia durar e o Senhor lhe daria fim em breve em meio ao fragor

universal, enviando seu Messias para restaurar a realeza perdida. Pois a

palavra Messias, Massih, cujo sentido original adulterou-se nas interpretações


cristãs, significa “que recebeu a unção de rei e de grande sacerdote”, unção
dupla que Jesus nunca recebeu. Mesmo que os fariseus tenham continuado a
participar da vida comunitária, nunca foram absolutamente hostis à violência. O
que Jesus (ele mesmo um fariseu) lhes iria criticar em suas célebres invectivas
não era tanto essa hostilidade à

violência, mas a reserva dialética em relação a ela.


É dessas três correntes, por vezes confundidas e por vezes distintas,

que emanou a maior parte da tão valorizada literatura intertestamentar.

Muitos autores contemporâneos consideraram ainda os “essênios”


contemplativos, muito diferentes dos sangiiinários zelotes. Er o espantoso: os
Manuscritos do Mar Morto, encontrados em Qumran, desde suas primeiras
linhas trazem o relato da preparação para um conflito que seria desencadeado
pelos “Filhos da Luz” contra os “Filhos das Trevas”.20 “Os

filhos da Luz e o bando das Trevas vão-se bater em nome do poder de


46
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Deus, em meio à balbúrdia de uma imensa multidão e aos gritos dos

homens e dos deuses,21 no dia da calamidade.” Já são as tonalidades do

Apocalipse de João.

Assim, uma parcela do povo judeu declarara guer a ao resto do

mundo: guerra de liberação nacionalista que se iria expandir rapidamente até


atingir as dimensões de uma rebelião cataclísmica e suicida, uma vez que, de
acordo com as esperanças de seus combatentes, deveria trazer Deus para a Ter a.
“Essênios” e zelotes queriam, pois, mover Deus pela força. A ponto de
precipitarem Jerusalém na ruína em 70, durante a

mais sangrenta guerra civil do mundo mediterrâneo antigo. Eles ignoravam que
uma religião fundada em nome do mais ilustre dos seus, Jesus, viraria aquela
guerra contra eles, e por muitos séculos. Mas a guerra tinha

quebrado a unidade de seu povo: de um lado, encontrava-se a maioria

dos judeus, que considerava ser possível viver em bons termos com os

estrangeiros e, de outro, uma minoria de ativistas, místicos exaltados ou

terroristas, que rejeitavam qualquer influência estrangeira.

A partir de então os judeus adquiriram a imagem de um povo difícil

e fanático, como assinalaram Deodoro da Sicília e Apolônio Molon, além

de Lisímaco e Ápio, cujas opiniões chegaram até nós pelo relato de

Flavius Joseph.2 Os dois últimos merecem atenção em razão da influência que


exerceram sobre sua época, na qualidade de anti-semitas notórios.Nada sabemos
a respeito do Lisímaco em questão: o nome é corrente nos meios gregos e
helenísticos, mas de seus escritos nada restou. Provavelmente foi contemporâneo
de Joseph; deve ter sido sofista e gramático. Um fato é certo: sua versão do
Êxodo é seguramente antijudia; sustenta, notadamente, que Moisés teria
ordenado aos judeus que não se mostrassem benevolentes com ninguém, o que
era exatamente o contrário da injunção de Moisés: “Não rejeitem o estrangeiro,
pois vocês mesmos

foram estrangeiros no Egito.” Lisímaco qualificou os judeus de “impuros

e ímpios” e afirmou que eram hostis a toda a humanidade. Sua ignorância

histórica era completa, pois datou a construção de Jerusalém em depois do

Êxodo. Dele é preciso reter apenas o fato de ter existido e tido suficiente

importância aos olhos de Flavius Joseph para merecer ser refutado.


DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDIDO
47
Ápio, por sua vez, é mais bem conhecido: foi um alexandrino de origem egípcia
que viveu no início do século I da era cristã e difundiu uma série de opiniões
hostis sobre os judeus, do tipo daquelas que serão ouvidas 19 séculos mais tardes
nas invencionices infames da polícia russa, conhecidas sob o nome de Protocolos
dos Sábios de Sião. Depois da partida do Egito sob a condução de Moisés, os
leprosos, cegos e enfermos sofreram de pústulas, afirma, o que os obrigou a
fazer o chamado repouso do sábado — e outras insanidades misturadas a
avaliações abjetas. O

mesmo Ápio, provavelmente para fazer oposição a Fílon (que executava

o mesmo trabalho a favor dos judeus), viajou em 38 de Alexandria até

Roma para se queixar dos judeus com Calígula.

Encontra-se esse mesmo género de mexerico — que outro termo

empregar? — nos escritos do panfletário greco-egípcio Cheremon, e as

mesmas avaliações superficiais no autor latino Pompeius Trogus (segundo o


qual, por exemplo, os judeus seriam originários de Damasco, e Moisés um dos
10 filhos do rei Israel. .). Tratou-se apenas de baixa literatura. Mais grave é o
fato de ter encontrado eco em um autor da reputa​

ção de Tácito. Também ele ofereceu sua versão do Exodo, cujo valor não

foi maior do que o das versões de Lisímaco e de Ápio: com a peste grassando no
Egito, o faraó Bocchoris teria recebido do oráculo de Amon a recomendação de
expulsar os judeus para outro país, “pois a nação dos

judeus era odiosa aos deuses”. Devidamente instalados em seu novo país,

seu chefe Moisés teria introduzido práticas religiosas contrárias às dos

outros mortais. Depois teriam erigido um santuário para lá instalar a

estátua de um asno, em homenagem ao animal que os havia guiado pelo


deserto; e outras sandices rivais às de Ápio, encontradas nos escritos de

Deodoro de Sicília.23

Tomou-se bastante claro, no século XX, que Tácito, notável estilista,

foi um memorialista e não um historiador no sentido modemo da palavra — a


História é, aliás, um conceito que remonta ao século XVI I. De mais a mais,
Tácito foi surpreendido em flagrante delito de má-fé a propósito do incêndio de
Roma, quando insidiosa e injustamente jogou a culpa sobre Nero, criando mais
um preconceito sobre um imperador

que já sofria de reputação ruim e que não precisava ser aumentada. Pois
48
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

ele não fora responsável por aquele incêndio. Tácito pertencia à classe

senatorial, cheia de desprezo por Nero, considerando-o um histrião; não

sentiu, pois, constrangimento em falsificar os fatos. Ele os falsificou,

aliás, quando bem entendeu: acreditara de verdade que o Êxodo tinha

ocorrido durante o reinado de Bocchoris, faraó saíta da vigésima quarta

dinastia, que reinou de 720 a 715 antes da era cristã? Se fosse esse o caso,

estaria provado que não se interessara absolutamente pela história dos

judeus, contra os quais deblaterava com tanta eloquência.

Dois fatos permanecem. Primeiro, as loucuras da realeza asmoniana,

que tomaram os judeus a partir do século II a.C. não confiáveis aos olhos

dos grégos, mais tarde aos dos romanos, que, por sua vez, passaram a

considerar os judeus pessoas inassimiláveis. Os pensadores do mundo

helenístico e depois do mundo romano engendraram nas classes dirigentes um


preconceito especificamente anti-semita que só fez se acentuar.

Em seguida, os esforços dos judeus helenizados (como Fílon e

Joseph) para construir uma ponte entre as duas culturas, que foram condenados
ao fracasso sem remissão. O primeiro, Fílon, em uma tentativa fútil bem como
anacrónica de revisionismo cultural, explicou que

Moisés reformara a filosofia e a moral dos gregos;24 o outro, Joseph, ao


tentar dissociar os judeus patrícios dos que chamava de “bandidos” e

de inimigos do povo judeu, atraindo para si sobretudo a reputação de

traidor.
DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDI DO
49
Bibliografia e notas críticas

1. Nicholas de Lange, Atlas of theJewish World (Phaidon Press Ltd., Oxford,


1984).

Esse ponto é muito importante, pois enfraquece as posteriores alegações de


São Paulo,

segundo as quais ele era ao mesmo tempo judeu e cidadão romano.

2 .Mac. I,3.

3. Dan. II, 40.

4. Citação dos trabalhos de Arnaldo Momigliano. Em Alexandre (Fayard,


1985).

5.Antiquités

judaíques, XI, 326-339 (Loeb Classical Library).

6. Joachim Jeremias, Jérusalem au temps deJésus (Cerf, 1965).

7. Margareth H. Williams, The Jews among the Greeks & Romans — A


Diasporan

Sourcebook (Duckworth, Londres, 1998).

7*. 42 Palestra: local para exercícios físicos, na Grécia e na Roma antigas.


(N.T.)

8. A lista de nomes de jovens judeus que faziam parte do grupo de efebos de


Sardes,

por exemplo, chegou até nós. Fato notável: os costumes gregos foram
perpetuados em
algumas grandes cidades até o século II e III da era cristã, bem depois da
queda de

Jerusalém e da afirmação do judaísmo tradicional, o que prova que a


helenização não teria

sido um fenómeno passageiro e superficial. Cf. Martin Henge\,Judaism and


Hellenism

(Xpress Reprints, Londres, 1974); Margareth H. Williams, The Jews among


the Greek &

Romans— A Diasporan Sourcebook, op. cit.

9. A responsabilidade do decreto de abolição da Lei Mosaica não foi


estabelecida

com total certeza. Paul Johnson, em História dos Judeus (Imago Editora,
Rio de Janeiro,

1987), tende, com razão, a atribuí-la a Menelau, pois os reis selêucidas não
tinham ainda

o costume de intervir diretamente nos cultos locais.

10. Flavius Joseph, Antiquités judaiques, op. cit., XIII, 376. Se forem
descontados os mortos da guerra empreendida por seus dois filhos Hircam e
Aristóbulo, chega-se a umas

100 mil vítimas provocadas pelas duas últimas gerações de asmonianos. Tal
cifra é absurda, assim como muitas outras citadas por Joseph.

11. Id. 1,91-98.

12. Diodorus Siculus, Bibliotheca Histórica, XXXEV-XXXV (Loeb Classical


Library,

12 vol., trad. C. H. Oldfather, C.L. Sherman, C. B. Wells, Russel M. Geer e


F. R. Walton,
Harvard University Press, Cambridge, Mass., e William Heinemann,
Londres).
50
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

13. Flavius Joseph, Contre Apion, trad. H. St. John Thackeray (Loeb
Classical

Library).

14. 512, em Écrits intertestamentaires (Gal imard/La Plêiade, 1987).

15. É indispensável observar que os escritos intertestamentais e pseudo-


epígrafes do

Antigo Testamento foram redigidos na Palestina. Nada indica, pois, que


refletissem fielmente os sentimentos dos judeus estabelecidos no
Mediterrâneo romanizado, em Bérea, Pérgamo, Antioquia ou Ecbátana.
Foram, efetivamente, escritos nacionalistas, capazes

apenas de provocar minguados ecos nos judeus estabelecidos no exterior há


muitas gera​

ções.

16. Ao menos a se julgar pelo relato que fez a Clearco de Soli, a respeito de
seu

encontro com um judeu na Asia Menor: “Esse homem (...) não só falava
grego, mas tinha

a alma de um grego. Durante minha estada na Ásia, ele havia visitado os


mesmos lugares

que eu e veio conversar comigo e com outros letrados a fim de sondar nossos
conhecimentos. Mas tendo conhecido muitas pessoas cultas, foi ele que
acabou nos ensinando alguma coisa de original.” (Joseph, Contre Apion, 1
180-181, op. cit.)

17. Cf. Les Monothéistes méconnus de la Grèce archaique, em Histoire


générale de Dieu, do autor (Robert LafFont, 1997). É preciso, entretanto,
esclarecer que a filosofia grega não

pareceu dominar a noção de monoteísmo e, a bem da verdade, jamais o


confessou abertamente, por temor de ser tachada de ímpia em relação aos
outros deuses. Essa noção, que não transpareceu na vida pública na época
helenística e sob a dominação romana, também não transparecera na época
clássica: o crime de impiedade expunha quem o cometesse à pena de morte.

18. Já assinalei, em Histoiregénéral de Dieu, o caráter fictício de um “modelo


padrão”

do grupo que se teria chamado especificamente de “essênios”. No tocante à


etimologia do

nome, pretende-se geralmente que tenha derivado do hebreu hassidtm, como


designavam

a si mesmos os adeptos da seita de Qumran. Hassidim teria sido transcrito


para o grego

como Essenioi, origem da palavra portuguesa “essênios”. Contudo, essa


versão não é satisfatória, pois implica uma improvável derivação fonética do
d e do m para n.

Convém lembrar aqui que o nome Essenioi foi introduzido por Joseph
emAntiquités

judaiques, para designar o que parecia ser a corrente dos minim, seitas
heterodoxas do mesmo tipo que a dos banayim, às vezes identificadas aos
hemerobatistas ou Tovélé chaharit, os magharitas, que viviam dentro de
grutas e parecem ter sido aparentados dos terapeutas

etc. Todas essas seitas apresentam traços similares ao que sabemos dos
“essênios”. É

improvável que Joseph, com sua aversão violenta à corrente heterodoxa e


revolucionária

judaica, tenha aprofundado a questão. Sem raízes gregas conhecidas, seu


neologismo é

provavelmente a transcrição de uma palavra hebraica ou aramaica, ou até


mesmo árabe.

Ora, a palavra árabe hassintn, “Os Virtuosos”, plural de hassin, parece-me


corresponder mais exatamente aos “essênios”, mesmo que, como objetam os
linguistas, seja difícil conceber que um autor grego tenha transcrito a
consoante inicial ha para um epsilon.
DE ALEXANDRE AO MAL-ENTENDIDO
51
19. Flavius Joseph, Antiquités judaiques, op. rií.,XIII, 171.

20. The War Scroll, em Florentino Garcia Martinez, The Dead Sea Scrol s
Translated,

trad. Wilfred G. E. Watson, E. J. Bril , Leyde, New York, Cologne, 1944.

21. A menção de “gritos de deuses” em um texto monoteísta é evidentemente


surpreendente; é provável que se refira ao combate de um Deus contra uma
nação politeísta.

22. F. Joseph, ContreApion, op. cit. As Egyptiaques de Apion e de Lisímaco


perderam-se.

23. Diodorus Siculus, Bibliotheca Histórica, XXXIV-XXXV, Loeb Classical


Library, 12

vol., Harvard University Press, Cambridge, Mass., e William Heinemann,


Londres.

24. Cf.. David Dawson, Al egorical Readers and Cultural Revision in Ancient
Alexandria,

University of Califórnia Press, Berkeley, Los Angeles, Oxford, 1992.


Dawson expõe claramente os esforços de Fílon para aproximar os judeus
tanto dos gregos quanto dos romanos: por exemplo, quando explicava em
sua Exposition de la Loi que as virtudes praticadas pelos judeus eram as
mesmas da civilização greco-romana. A situação de confluência de diversas
culturas fez de Alexandria um centro de sincretismo, a se julgar também
pelas revisões alegóricas de Valentim (nascido em Phrebonis, perto de
Alexandria, por volta do ano 100, e instalado em Roma entre 136 e 140), de
acordo com textos pré-

evangélicos, citações do Antigo Testamento, mitos agnósticos e diálogos


platónicos.
3.
O enraizamento do anti-semitismo

romano e os efeitos perversos


da Septuaginta
ARROGÂNCIA ROMANA E ORGULHO JUDEU: UM CONFLITO
POLÍTICO QUE SE

TORNOU CULTURAL — PRIMEIROS EFEITOS PERVERSOS DA


SEPTUAGINTA —

QUERELAS E BOBAGENS SOBRE O SABÁ, A CIRCUNCISÃO EA


PROIBIÇÃO DO POR​

CO — PRIMEIRA EXPULSÃO DOS JUDEUS DE ROMA EM 139 ANTES


DA ERA CRISTÃ

— INEXISTÊNCIA DE HUMANISMO EM ROMAE INCULTURA DOS


ROMANOS — O

ESTRANHO CASO DE JÚPITER SABAZIUS — OUTRAS BOBAGENS


SOBRE O ÊXODO

E MOISÉS — A AVERSÃO INCONTIDA DE TÁCITO

Como se pode explicar que em aproximadamente três séculos a disposição


favorável de Alexandre a respeito dos judeus e de sua história tenha cedido o
passo ao tom claramente injurioso de certos autores gregos e latinos e mesmo de
imperadores moderados como Cláudio? A transição foi alarmante, pois foi na
instauração do anti-semitismo helenístico e depois romano que vicejaram os
germes do anti-semitismo dos

séculos posteriores, mesmo que as razões se tenham modificado.

Muitos fatores parecem ter sido combinados. O primeiro foi inegavelmente a


arrogância romana. Esse sentimento de superioridade invencível assentava-se
sobre as armas: da batalha de Actium em 31 antes

da era cristã até o ano 116 da era cristã, em uma expansão fulminante,

extraordinária, Roma ganhou e ocupou duradouramente a totalidade do


Mediterrâneo e a maior parte do Ocidente conhecido: das fronteiras da

Escócia até a Mauritânia, passando pela França e pela Espanha, do Egito

ao reino do Bósforo, a Germânia, a Noricum (atual Áustria), a Capadócia


O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEMITISMO ROMANO
53
e a Judéia — o mundo já era romano ou ainda se tornaria. Todos esses

territórios permitiram a Roma importar escravos e mão-de-obra a preço

de nada. E fora da Pax Romana só havia as trevas exteriores, os povos que

sabiam utilizar o fogo exclusivamente para cozinhar suas carnes: a leste,

as Grandes e as Pequenas Hordas dos yueh-chih, os partos do futuro Irã,

os surens do futuro Paquistão; ao norte, os hunos nunca vistos, os finlandeses


comedores de rena crua, os germanos, bálticos, eslavos, roxolanos e assimilados,
que nem mesmo tinham banhos, nunca provaram os

vinhos da Apulia e nem compreenderiam as belezas de Virgílio ou a retórica de


Cícero. O imperialismo romano não era apenas político, era também cultural.

Aos olhos dos militares romanos, assim como dos senadores e do

poder imperial, os judeus não pareciam diferentes dos númidas, sárma-

tas, gálatas ou de outras populações exóticas. A religião judaica lhes era

desconhecida, e os altos funcionários de Roma não se constrangiam em

pura e simplesmente confiscar o dinheiro destinado ao culto. Assim,

Flacus, pró-cônsul da Ásia em 62-61 antes da era cristã, tomou dos

judeus de Apaméia, Laodicéia, Adramite e de Pérgamo somas destinadas

ao Templo de Jerusalém,1 seguindo com isso o exemplo de Mithriadate,

que tinha igualmente mandado confiscar na ilha de Cos o dinheiro destinado ao


Tèmplo.2 Quia nominor leo.

A arrogância romana colidiu de frente com o orgulho judeu. Os


judeus foram vencidos, é fato, mas gloriosos: por duas vezes possuíram

um reino independente, no tempo de David e de Salomão, depois no

tempo dos reis asmonianos. Suas tradições eram bem mais antigas do

que as dos romanos: seus profetas conversavam com o Senhor enquanto

Rômulo e Remo ainda se limitavam a mamar em uma loba. Quanto às

leis, a deles tinha sido ditada pelo Senhor em pessoa, e nada devia às que

as legiões portadoras de águias pretendiam aplicar ao universo, em nome

de uma república de aventureiros, mercenários e fanfarrões, depois em

nome de um Império em nada melhor. Para não falar daqueles deuses e

deusas romanos que, da mesma maneira que seus homólogos gregos,

apresentavam-se nus, comeando-se a seu bel-prazer.

O orgulho judeu, ao qual um chefe de Estado democrático, o gene​


54
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

ral de Gaulle, se referiu ainda no século XX, era acompanhado de um

irredentismo político, nacionalista e religioso que só podia irritar Roma e

os romanos. Como vimos no capítulo precedente, os judeus da Palestina,

principalmente, não paravam de se envolver em guerras intestinas, estimulando a


agitação na região. Sua imagem tornou-se francamente negativa desde os
últimos reis asmonianos, o louco alcoólatra Alexandre Janeu e seus dois filhos
sanguinários, Hircam e Aristóbulo. Os judeus

pareciam não compreender que os romanos reinavam autoritariamente e

estavam determinados a manter a suserania sobre eles.

A incompreensão intensificou-se em virtude de os judeus, a partir de

meados do século II antes da era cristã, se terem espalhado por todo o

Mediterrâneo oriental, da Macedônia meridional e do Épiro à Galácia,

Capadócia e por todo o império parto, incluindo a Arménia, a Hircânia,

a Babilónia e o Elam. Formaram colónias na Mesopotâmia, na Síria, no

Egito e sobre a costa da Cirenaica; por fim, alcançaram até a própria

Roma e, no sul, Terracina e Puteoli. Representavam uma minoria de

importância considerável, sempre pronta a desencadear escaramuças:

dois ou três milhões de obstinados. Os contatos entre judeus e romanos

eram constantes, e a incompreensão alimentava os atritos.


Os romanos e os helenos do Império, os letrados pelo menos, só descobriram
realmente o judaísmo a partir da tradução do Antigo Testamento para o grego,
realizada em Alexandria no século III antes de

nossa era e conhecida pelo nome de Septuaginta (na época, limitada ao

Pentateuco). É preciso lembrar que os livros eram naquele tempo uma

mercadoria rara, reservada aos mecenas e aos grandes letrados, razão do

importante papel desempenhado pelas bibliotecas como a de Alexandria

na difusão das idéias. Ignora-se o número exato de exemplares da

Septuaginta que circularam no mundo romano, os estabelecimentos

judeus incluídos, mas não devem ter excedido algumas dezenas. Foram

contudo suficientes para surpreender os círculos de formadores de opinião: eles


descobriram nos textos sagrados dos judeus noções totalmente distintas das suas
e até mesmo antinômicas.

E esse ponto é essencial para compreender a alienação que os judeus


O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEMITISMO ROMANO
55
devem ter sofrido no Império Romano, a partir do século I da era cristã.

Que eu saiba, ele nunca foi mencionado nos numerosos inventários

sobre o anti-semitismo. E exige, pois, ser aprofundado.

Todas as religiões conhecidas dos romanos, quer do mundo mediterrâneo, quer


do mundo além dele — Germânia, Dácia, Sarmácia, Ponto, Capadócia, Arménia
—, eram conjuntos de ritos destinados a manter a

coesão social— re-ligio, re-ligar—da cidade. As estátuas de deuses, aquelas que


tanto irritavam os judeus, não eram simples imagens destinadas a estimular a
imaginação dos fiéis, mas, sim, evocações e invocações de

divindades; à maneira dos deuses lares2* romanos, elas fundavam o culto

nos lugares em que seria realizado, o que constituía, aliás, um corolário

da sedentarização. Na religião romana, o rito era cívico tanto quanto religioso:


ele garantia a lei moral e jurídica da cidade. Ora, a noção de cidade estava e
continua até hoje ausente do judaísmo, cujas leis sempre foram

especificamente religiosas. É verdade que os judeus se sedentarizaram

voluntariamente ou, mais exatamente, implantaram-se; chegaram a ter

cidades e uma capital, Jerusalém, que era, porém, uma Cidade Santa e

um centro espiritual, como o são hoje em dia a Cidade do Vaticano, Meca

ou Benares, mais do que uma cidade no sentido greco-latino do termo,

que é igualmente político. Em “política", com efeito, existe a polis.

Mas a interioridade do Deus judeu tomava-o indissociável de cada

indivíduo de Seu povo. Em toda parte em que esse povo estivesse, Ele
estava. O judeu não tinha necessidade de se enraizar: trata-se da própria

chave da diáspora, descrita mais acima. Para o romano, o judeu era civi-

camente inacessível e politicamente ir edentista.

Os romanos conseguiam perceber, ao menos intuitivamente, outro

aspecto do judaísmo, quando o comparavam às religiões que conheciam.

Todas aquelas religiões eram indo-européias e estavam organizadas

segundo os mesmos esquemas. Tal qual um preceito, as cidades antigas e

os povos dos territórios regidos por elas eram simbolicamente governados

pela tríade indo-européia rei-sacerdote-guerreiro ou sacerdote-guerreiro-

cultivador.3 Ora, essa partilha de funções não existia no Pentateuco: os

hebreus conheciam apenas uma função suprema, a do sacerdote.4 E o

mesmo que dizer que a estrutura de seu povo era teocrática.


56
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Na hierarquia do poder, segundo o esquema rei-sacerdote-guerreiro,

as funções de rei e de sacerdote, frequentemente conjugadas, são as de

intercessores entre as potências cósmicas e os humanos. O poder real e o

religioso estão fundados no postulado segundo o qual o bem-estar do

povo depende do rei e do sacerdote, que os defendem diante dos deuses.

A vitória militar e as boas colheitas são repercussões da intercessão dos

chefes.

Na religião hebraica, por outro lado, não existia intercessor: havia

apenas a Lei e os ritos que a propiciavam. O ser humano era um desvalido diante
de um deus imprevisível. O profeta, detentor de um lugar tão importante na
religião e na cultura hebraicas, era um intercessor de cará-

ter apenas acessório ou, mais precisamente, ele o era em apenas um sentido: a
título de transmissor da vontade divina. Sua função principal era ser o porta-voz
de Yahweh/Eloha e lembrar aos humanos o respeito de

Sua Lei segundo os ritos de uma prescrição inflexível. Saulo, o primeiro

rei judeu, não detinha nenhum poder sacerdotal; eis o porquê da cólera

terrível de Samuel quando Saulo realizou um sacrifício sem esperá-lo,

arrogando-se e usurpando um papel sacerdotal.

Quando Alexandre ou Roma ocupavam o Egito, por exemplo, os

chefes políticos e militares de ambas as partes assinavam um tratado, e o


statu quo consecutivo estabelecia uma maneira de viver junto de maneira

pacífica e duradoura. Os chefes religiosos, por seu lado, curvavam-se aos

feitos militares e tentavam entrar em acordo com os novos cultos, como

se viu em Alexandria— daí os sincretismos descritos em outra parte deste livro.

Mas com os judeus tudo se pas ava diferentemente: os chefes militares gregos ou
romanos só encontravam como interlocutores chefes religiosos cuja religião era
intrinsecamente hostil aos conquistadores. Com eles só se podia estabelecer uma
trégua, jamais a paz. Yahweh não autorizava nenhuma derrota, nenhuma sujeição
de Seu povo, a não ser a título de punição. Para o romano, o judeu era
impossível de ser conquistado;

soldado de Deus, jamais aceitaria a derrota, pois ela significaria a derrota

de Deus, o que era impensável, ou, então, a aceitaria só na aparência. Não

adiantava exibir-lhe a relação de forças militares: ele não acreditava, pois


O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEMITISMO ROMANO
57
Deus tudo podia. Não afogara os exércitos do faraó para salvar Seu povo?

Os zelotes da Palestina sabiam muito bem que os exércitos romanos de

ocupação eram incomparavelmente mais poderosos do que todos os

homens que Israel poderia juntar. Não importava: sustentariam uma

guerrilha terrorista na esperança de provocar um incêndio no qual Deus

se veria obrigado a intervir. E se Deus não interviesse, recorrer-se-ia ao

ardil. Foi o que se viu durante o cerco de Massada, em 70, quando os

zelotes de Eleazar atraíram as tropas do romano Metilius para uma

emboscada, fingindo render-se, e as degolaram.

A teocracia, inerente ao povo judeu e indissociável da religião que

foijoi} sua identidade, foi, pois, a causa do que se poderia chamar de “a

exceção judaica” na era pré-cristã.

Os senadores, cônsules e militares encarregados de tratar com os

judeus nunca efetuaram análises como estas nem perceberam suas suti-

lezas. Na Roma da época, não existia nenhuma das disciplinas que permitem
estabelecer um estudo estrutural e comparativo das religiões e das culturas.
Mesmo que alguns dirigentes romanos, familiarizados com

Heródoto e Estrabão, comparassem instintivamente as culturas dos diferentes


povos sob sua dominação, a visão romana dos mundos estrangeiros era
essencialmente prática, militar e administrativa. O que conseguiam perceber das
noções aqui esboçadas resumia-se ao fato de os judeus serem verdadeiramente
muito diferentes dos egípcios, dos eitos ou
dos sármatas.

Essas noções intuitivas ou empíricas tornaram-se precisas em poucos

anos, com grande desvantagem para os judeus, depois da tradução da

Septuaginta. Durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo (288-274 a.C.),

e a pedido dele próprio, 72 tradutores foram enviados de Jerusalém a

Alexandria pelo grande-sacerdote Eleazar para levar a efeito a versão grega


oficial do Antigo Testamento: a que foi chamada de Septuaginta. Não se sabe
com certeza o que teria motivado o monarca. Letrado de gostos

ecléticos, talvez quisesse conhecer os livros sagrados dos judeus, então

numerosos em Alexandria. Contudo, antes de sua morte só pôde tomar

conhecimento do Pentateuco; os Profetas parecem ter sido traduzidos

somente no século I ; e Fílon de Alexandria, no ano 40, ou seja, dois


58
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

séculos mais tarde, não conhecia a versão grega do livro de Ester, nem o

Eclesiastes, nem os Cânticos, nem o Livro de Daniel.5 Os tradutores não

estavam com pressa.

Talvez o monarca pensasse também que a tradução grega permitiria

solidificar a prática linguística dos judeus, que não falavam mais hebreu

e muito mal o aramaico, língua na qual se ensinava a Lei em Jerusalém,

onde o conhecimento da língua grega não estava à altura dos letrados

helenísticos da capital do Mediterrâneo.

Mas a Septuaginta tinha muito pouco a ver com a tradição de refinamento


helenístico de Alexandria. Não só a língua da tradução era dura e empolada,6
mas a violência e a rudeza do texto não tinham como não

escandalizar uma cidade dedicada ao refinamento, à retórica e às


resplandecências e titilações dos cínicos assim como dos estóicos e, obviamente,
às proezas ideológicas dos platónicos. Os eruditos alexandrinos concluíram que
se tratava de uma literatura “bárbara”.7

O próprio texto suscitou indignação e revolta nos letrados helenizados, que


ignoravam tudo ou quase tudo dos Livros sagrados judeus. O

que poderiam pensar daquele Deus do Génesis que decidira afogar a

humanidade quase inteira porque ela copulava com “os deuses”?8 Então

os deuses tinham dado a honra de suas sementes aos homens, e um outro

deus ficara ressentido? E por que aquelas pessoas davam tanta importância a
uma obscura história de família, a de Isaac, cheia de traições, viola​

ções e vinganças? Que Deus era aquele que ameaçava aniquilar seu povo,

acusando-o de ser “obstinado”?9 Que também ameaçava infectar com

uma doença micótica o povo de quem os judeus iam tirar o território?10

Ele também não era o criador daquelas vítimas? O que ordenava a Seu

povo destruir os altares das pessoas dos países em que se ia instalar?1 E

que povo era aquele cujo próprio Deus dizia que era “obstinado” e que a

todo momento Ele podia aniquilar?12 E o chefe deles, Moisés, que


cumprimentava os seus por terem matado três mil pessoas de seu próprio povo?
13 E o que dizer do ardil de Abraão que fez a mulher passar por sua

irmã e a cedeu ao faraó? Ou então de Jacó, que desrespeitou astutamente o


direito de primogenitura de Esaú?
O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEMITISMO ROMANO
59
Aquela gente, chegaram à conclusão, decididamente não era honesta. O mundo
helenístico já havia descoberto com consternação as profecias apocalípticas dos
Escritos intertestamentários e as catástrofes com que ameaçavam todos os povos
não judeus. Os alexandrinos escandalizaram-se com a Septuaginta. Foi a razão
das inumeráveis acusações de xenofobia e de “impiedade” dirigidas aos judeus,
que desconcertaram

o leitor do século XX. Assim como os cidadãos das outras cidades do

Império, os alexandrinos não conheciam os sofrimentos dos judeus nem

a humilhação de terem sido por quatro vezes desapossados do reino de

David, nem a esperança ardente que os inspirava. Eles não compreenderam que a
astúcia era a funda13* de David dos judeus.

Embora escrito em tom menos agressivo e alarmante do que as

pseudo-epígrafes citadas no capítulo precedente, o conjunto do Antigo

Testamento continha ainda assim bom número de mandamentos e interdições


antagónicas às culturas helenística e egípcia, suficiente para reforçar o
sentimento de que os judeus não passavam de estrangeiros agressivos.

A arrogância romana, por sua vez, não se conformava com os costumes judeus,
notadamente com a prática do sabá, a obrigação da circuncisão e a proibição do
porco. Teceram-se quantidades impressionantes de comentários desagradáveis a
respeito desses três costumes.

A prática do sabá alimentou a ironia ou a reprovação de alguns autores romanos


menores e maiores, que a utilizaram como motivo de zombaria, pretendendo ver
nela um encorajamento à preguiça. Em um texto que se perdeu e que só
conhecemos pela menção feita por Santo

Agostinho,14 De Superstitione, Sêneca conta que esse costume fazia com

que os judeus perdessem um sétimo de suas vidas não fazendo nada. O


que diria ele da prática moderna do week-end? Díon Cassio, por sua vez,

afirma que o “ter or supersticioso”15 dos judeus foi a causa de sua fraqueza
diante dos romanos na ocasião da tomada de Jerusalém por Pompeu em 63 a.C.
Sem nenhuma restrição a amálgamas, aproximações e “greco-centrismo”,
Plutarco acreditava ver no sabá uma forma derivada dos ritos

dionisíacos, uma vez que os judeus celebravam o começo do sabá com a

troca de bênçãos em tomo de um copo de vinho! Nenhum desses autores latinos


deu-se ao trabalho de informar-se a respeito do objetivo desse
60

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

dia de repouso, que era meditar sobre as relações do homem com seu

Criador e enriquecer-se espiritualmente pela meditação.


A circuncisão foi objeto de surpresa e indignação ainda maior para os

romanos que, ignorando o objetivo e a antiguidade daquela prática,

deixaram-se levar pelo mal-entendido que os próprios judeus alimentaram a


respeito. Estes a consideravam, na verdade, um rito especificamente judeu,
realizado por ordem do Senhor, para diferenciar o povo eleito dos demais. Não
era nada disso, pois desde a mais alta antiguidade a circuncisão era praticamente
universal: apenas os indo-germânicos, os mongóis e os povos do grupo fino-
ugriano a ignoravam.16 Os egípcios

praticavam-na há pelo menos 2.400 anos antes de nossa era, ou seja, bem

antes da chegada de Abraão ao Egito; o geógrafo Estrabão e o filósofo

Celso sabiam disso e escreveram-no. Era evidente que os romanos, não a

praticando, não poderiam saber que a circuncisão também tinha um

objetivo higiénico: prevenir a infecção da glande pela fermentação bacte-

riana do esmegma secretado pelo prepúcio.

Mas a circuncisão já tinha desagradado aos reis selêucidas, e Antíoco

IV Epifanio e mais tarde João Hircam a haviam proibido. Os romanos

retomaram o preconceito grego, e Tácito, ao evocar aquela prática

“indigna e abominável”, pretendeu que os judeus a tinham adotado para

distinguir-se dos outros humanos, o que é verdade para eles, mas com

certeza não o é para os demais povos que adotaram a circuncisão. Pois

havia no mundo romano, e mesmo em Roma, muitos outros circuncisos

além dos judeus; Pitágoras, no passado, tivera que se submeter a ela antes

de ser autorizado a estudar nos templos egípcios. Como tudo que diz respeito aos
órgãos sexuais, o tema da circuncisão suscitou a verve de satíricos tais como
Marcial, que pressupôs que ela excitaria a apetência sexual e desenvolveria a
verga em proporções monstruosas.17 E, depois dele,

outros satíricos aventuraram-se em licenciosidades de caserna, às expensas dos


judeus.

Por fim, com relação à proibição do porco, Tácito, por exemplo,

sempre disposto aos mexericos e às interpretações maldosas, disse que os

judeus não o consumiam porque no passado haviam sofrido da “peste”

propagada por esse animal—provavelmente a chaveira17* —, mas que de


O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O RO M A N O

61

todo modo eram os responsáveis pela propagação dessa praga no Egito.18

Disparates indignos: os judeus, como mais tarde os muçulmanos,


haviam observado que a chaveira do porco transmitia-se ao homem e,

por isso, proibiram o consumo de carne de porco mais uma vez por

razões de higiene. Mas os romanos deleitavam-se com charcutarias, e os

subúrbios de Roma eram empestados por pocilgas, pois tão logo possuíam um
porco e uma porca os camponeses se precipitavam na direção da grande cidade
para lá instalar uma criação e estabelecer um comércio

de salsichas e outros preparados de porco. Em suma, a recusa obstinada

do consumo de porco assim se resumia, na boca dos romanos: por que os

judeus não gostam de salsichas? Quem eles pensam que são?

Talvez pudessem ter-se adaptado, por bem ou por mal, mas as tradi​

ções que os judeus defendiam com unhas e dentes não serviam para aparar
arestas. A imensa maioria dos romanos e de suas forças de ocupação não levava
em conta o que sabia ou tinha ouvido falar sobre o Antigo

Testamento, mas um ponto a ir itava mais do que qualquer outro: a recusa dos
judeus a render homenagem aos deuses dos ocupantes. Para os judeus, as razões
eram simples e claras: seu Deus não podia ser representado sob forma humana, e
Yahweh ou Eloha não era nem Zeus, nem Baal, nem Hélio, nem ninguém mais.
Particularmente blasfematória

para eles era a deificação dos reis e imperadores, quer se tratasse de

Alexandre ou, mais tarde, de Augusto. Portanto, os ritos dos estrangeiros

não lhes serviam.

Imperiais e imperialistas, os romanos consideravam bom para o resto do mundo


o que era bom para eles. Dispondo apenas de vagas noções sobre a religião dos
judeus, eram incapazes de compreender as razões

pelas quais eles se recusavam a fundi-la dentro da religião romana, como

tinham feito os povos submetidos, que tinham mais ou menos assimilado os


deuses romanos e sincretizado suas religiões com a dos romanos.

Os romanos, por exemplo, haviam assimilado bem o culto isíaco e o

mitraísmo; por que os judeus não poderiam aceitar os deuses de seus

senhores?

Dentro do contexto da época aquela resistência surpreendeu, depois

irritou. Todo o mundo mediterrâneo e mesmo o oriental e extremo-


62

H ISTÓ R IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

oriental estava habituado aos sincretismos. Asiáticos e gregos, asiáticos e

egípcios, gregos e romanos, gregos e eitos, romanos e egípcios, romanos


e fenícios, romanos e gauleses, todos eles trocaram deuses entre si. Não

só Zeus transformou-se em Júpiter e Afrodite em Vênus, mas também o

deus hindu Shiva tornou-se o Dioniso grego, Júpiter fez-se o Amon

egípcio, Adsmerius dos pictos identificou-se com o Mercúrio romano, o

egípcio Horus com o Apoio grego para se transformar em Horapolo, o

gaulês Smertrios tornou-se o Hércules romano, e os romanos adoraram

o deus persa Mitra. Um volume inteiro não seria suficiente para recensear os
sincretismos religiosos antigos. E se tinham sido benéficos para todo o mundo,
por que não para os judeus?

Tais sincretismos são facilmente explicáveis. Para os povos antigos,

existia um deus da guer a, uma deusa da fertilidade, um deus das águas

etc., não importando, no fundo, o nome que lhes era dado, uma vez que

eram sempre a mesma divindade. No mundo mediter âneo, e talvez no

mundo inteiro, apenas os judeus recusavam obstinadamente aqueles

cruzamentos. Eles introduziram pela primeira vez na história das religiões a


noção de um Deus único e indescritível. Ora, essa noção era inassimilável pelos
povos indo-europeus. Para que pudessem crer, era preciso diferenciar e, para
isto, precisavam ver.

Tudo isso foi tão incompreensível para os romanos dos primeiros

séculos antes de nossa era quanto tinha sido para os gregos do século II

antes de nossa era. Os romanos, não mais teólogos ou exegetas do que os

gregos, só retiveram do mito judeu aquilo que lhes parecera mais pitoresco ou
bizar o. Assim, ativeram-se exageradamente à história do Veado de Ouro,
deduzindo que os judeus eram hipócritas que praticavam a idolatria “como todo
mundo”.
Resta a questão da “xenofobia” judaica, confirmada por várias passagens da
Septuaginta, sobretudo a proibição do casamento com estrangeiros,
particularmente ofensiva para os não judeus. Estes julgavam que os judeus
tinham desconfiança a seu respeito, o que não era uma constata​

ção errónea. Os judeus tinham passado pela experiência sangrenta do

reformismo helénico dos asmonianos; não queriam recomeçar com os

romanos. A acusação já havia sido formulada em termos candentes pelo


O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O R O M A N O

63

grego Hecateu de Abdera no final do século IV antes de nossa era, para

descrever os costumes judeus como “inospitaleiros e desumanos”.19


A tradição iria perdurar, uma vez que o autor judeu Ben Sira, do início do século
II antes de nossa era ou do final do século III, portanto familiarizado com o
helenismo, escreveu em seu Eclesiástico: ‘Acolhe um

estrangeiro em tua casa e ele alterará tua maneira de viver e te alienará a

família.”20

‘A tendência a separar os que observavam fielmente a Lei tomara-se

um traço típico da devoção judaica”, escreveu a respeito Martin Hengel.

Esses foram, pois, os fatores religiosos que, a partir do século III a.C.,

mantiveram um clima desfavorável para os judeus. E a eles ainda se pode

acrescentar: em sua vontade de rebaixar os judeus, muitos autores gregos

e romanos referiram-se, por exemplo, à versão do Êxodo do sacerdote

egípcio helenizado Mâneton. No século I I a.C, Mâneton, em sua história do


Egito, pretendeu que o Êxodo não teria sido a heróica aventura relatada pelo
Pentateuco, mas a expulsão de uma colónia de leprosos e

doentes, que não teria sido realizada sob a direção de Moisés, mas de um

sacerdote renegado denominado Osarseph. Parece não ter ocorrido a

Mâneton que aqueies leprosos e doentes tinham sido capazes de suportar


dificuldades indescritíveis em sua travessia do deserto, conseguindo vencer os
amalecitas, entre outros feitos. Mas como já observei, a história em seu sentido
moderno não era o forte dos cronistas e memorialistas daqueles tempos.

Irredentismo político judeu na Palestina (província romana desde o

ano 6), difusão da Septuaginta, ar ogância romana, isolacionismo religioso e


social dos judeus, costumes incompreensíveis ou condenáveis aos olhos dos
romanos, o dossiê já se demonstra pesado. E acrescente-se a

influência efetiva dos judeus, que certos autores chamaram de “o proselitismo


judeu”.
Os missionários judeus tentaram de fato converter os romanos? Não

se pode excluir a hipótese, mas não se conhece nem um fato que a prove.

Estabelecimentos judeus em Meroé, no atual Sudão, em Axum, na atual

Etiópia, e ao norte de Aden, entre os himaritas, na ponta ocidental da


64

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

península arábica, fazem pensar que os judeus não eram aves os ao proselitismo.
O que se chamou de “proselitismo” está bem mais próximo da persuasão que os
judeus possam ter praticado e da influência tácita no
caos da república que suas colónias possam ter exercido, na época em que

chegaram lá e na época em que foram expulsos de Roma pela primeira

vez, em 139 a.C.

Pois as representações contemporâneas da Roma antiga são tão idealizadas e


falsas quanto as da Grécia antiga, vista como o local de uma idade de ouro em
que filósofos ficavam discorrendo interminavelmente com políticos à sombra
das oliveiras. O humanismo romano é uma fic​

ção: a república era uma verdadeira feira. “Não nos deixemos enganar

pelo que as palavras de ontem querem dizer hoje, preveniu o historiador

Lucien Jerphagnon. As estruturas políticas da Roma republicana só

tinham de democrática a aparência (. .) Já fazia um bom tempo desde que

a tentativa corajosa dos Gracos fracas ara diante do egoísmo desembara​

çado e feroz das clas es dominantes: seu projeto de reforma agrária não

se sustentou. O descontentamento latente da plebe expressava-se de

modo explosivo em qualquer ocasião (. .) As questões lavadas em sangue

multiplicavam-se, e os costumes políticos adotavam o caráter dos acerta-

mentos de conta entre mqfiosi, ”21

A ausência de uma verdadeira autoridade central, política ou moral,

terminou levando à ditadura de César. A religião mal servia para sustentar um


mundo de velhacos, e assim mesmo pelo respeito obrigatório aos ritos que
cimentavam superficialmente a coesão social, por hipocrisia ou

até por superstição, e não por seus valores elevados. Eis que chegaram os

judeus. Primeiro possuíam o encantamento do exotismo; em seguida


eram trabalhadores, solidários e aparentemente prósperos. Qual era

então sua religião? Monoteísta. Idéia surpreendente, mas que também

não poderia deixar de seduzir, naquela sociedade caótica em que a violência e a


impiedade criminosa imperavam. É provável que tenham feito adeptos, e os
neófitos foram fazendo outros, até nas altas esferas. A própria esposa de Nero,
Popéia, se teria convertido ao judaísmo. Os judeus, aliás, não eram os únicos a
contar com convertidos; os egípcios também

os tinham. Mas é provável que, no caso dos judeus, sua importância possa ter
produzido invejosos.
O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O R O M A N O

65

O pretexto da expulsão é conhecido: um mal-entendido linguístico

— a introdução em Roma do culto de Júpiter Sabazius,2 confundido


com um “Júpiter do Sabá” —, mas o real motivo é desconhecido,23 e seu

alcance não é exato. Mesmo o pretexto é duvidoso: já existiam cultos de

Júpiter-Capitolino, Guardião, Plutão, Salvador, Estator etc.; um a mais

só serviria para reforçar os outros e não poderia indispor as autoridades.

Parece mais provável que os judeus tenham constituído em Roma uma

minoria ativa que provavelmente desagradou a alguns dos mafiosos


mencionados mais acima por Jerphagnon. Quantos eram? Quantos foram
expulsos? Quantos convertidos eles teriam feito? Ignora-se.

Banidos durante a república, os judeus, entretanto, retornaram em

uma data indeterminada durante o Império. Cícero descreveu-os em 59

antes de nossa era como um povo numeroso, constituído de assembléias

informais, cuja recomendação era não atrair a animosidade.24 Asserções

encontradas em textos redigidos por historiadores contemporâneos dão

conta de que teriam sido de novo expulsos de Roma no ano 19, pelo

imperador Tibério. Três textos antigos sobre esse assunto foram objeto

de exegeses aprofundadas. Tácito (v. 55-120), que é nossa fonte mais

antiga, parece ser também, mas apenas à primeira vista, o mais preciso

sobre a proscrição:

“...Deliberou-se também para saber se seria necessário banir os cultos egípcios e


judaicos e os Pais [os senadores] aprovaram um senatus-consulto ordenando que
quatro mil homens de origem servil [descendentes de escravos] e libertos,
contaminados por essas superstições [a religião egípcia, talvez o culto de Isis, e o
judaísmo] e dentro da idade

requerida, fossem mandados para a Sardenha para reprimir o banditismo; se mor


essem devido ao clima malsão, não seria uma grande perda; quanto aos demais,
deveriam deixar a Itália se, antes de uma data fixada,

não tivessem renunciado a seus ritos ineptos.”25

Na realidade, esse texto é bem difícil de ser interpretado, pois o

Império garantia a liberdade dos cultos. E quem eram aqueles quatro mil

descendentes de escravos libertos? Por que foram os únicos visados pelo

senatus-consulto? Só os homens “de idade requerida”, ou seja, aptos para

o serviço militar, seriam, pois, afiliados aos cultos egípcio e judaico? E a


66

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

respeito dos homens mais velhos e das mulheres? Seria o caso de entender que
os descendentes de escravos libertos eram os únicos atraídos pelos cultos
orientais? Deles, quantos seriam os adeptos do culto isíaco e
quantos do judaísmo? Seriam eles convertidos propriamente ditos, ou

simplesmente simpatizantes? Quem eram os “demais” que deveriam

deixar a Itália? A célebre concisão de Tácito, no caso bastante ilusória,

informa-nos apenas de que quatro mil descendentes de libertos convertidos ao


judaísmo foram deportados para a Sardenha. Quanto ao clima dessa ilha,
destaquemos adicionalmente que, com toda certeza, era

menos mefítico do que o de Roma, à época cercada de pântanos pestilentos,


verdadeiros reservatórios de malária.

Em resumo, não se tratou nesse caso de deportação de judeus, mas

de um surto de impaciência do Senado com relação aos cultos orientais.

Contemporâneo de Tácito, Suetônio (v. 69-125) confirmou que

Tibério proibira os cultos estrangeiros, especialmente o egípcio e o judaico.26 A


medida não visava, pois, aos judeus, mas aos cultos estrangeiros em seu
conjunto. Ele esclareceu quem eram os “demais”: os que eram

desse mesmo povo ou de crenças assemelhadas (simãia sectantes). Pode-se

imaginar sem esforço que, naquela capital já roída por intrigas e rivalidades
frequentemente sangrentas, Tibério tenha decidido livrar-se de todos os orientais,
magos caldeus, adivinhos egípcios de mistérios pitagoristas,

videntes da Síria ou da Babilónia, judeus praticantes de ritos e sacrifícios

estranhos. A agitação inerente aos romanos já era suficientemente grande sem


que se precisasse recorrer a ingredientes exóticos.

Finalmente, em meio a um trecho sobre a ir itação que causaram em

Tibério certas profecias relativas a seu rival Germanicus e a respeito das

esquisitices disparatadas de um cônsul que vivia tocando trompete, Díon

Cassio (v. 155-235) introduziu, um século mais tarde, um inciso de três


linhas que não tinha nenhuma relação com o texto: “Considerando que

os judeus haviam acor ido a Roma em grande número e que eles convertiam
numerosos cidadãos a seus costumes, ele [Tibério] baniu a maior parte deles.”27

Díon Cássio em seu relato só fala dos judeus, mas, em sua época, a

influência dos cultos orientais aumentara, e entre os presumidos


O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O R O M A N O

67

“judeus” devia haver também cristãos, cujo proselitismo era mais ativo.

Acrescentemos, aliás, que a seguir designaremos os cristãos como


“judeus”, assim como fez Suetônio quando disse que os judeus, “instigados por
um certo Chrestos”,28 mais tarde fomentaram distúrbios. O que provocou uma
terceira expulsão.29 Esta última medida não pode mais ser

relacionada ao “proselitismo” judeu; eram com toda certeza cristãos.

Indica, de todo modo, que os éditos de expulsão não eram seguidos de

efeitos.

Mas o mal estava feito. Proselitismo ou não, o anti-semitismo no

sentido etimológico do termo, quer dizer, a aversão por todos os orientais


instalou-se em Roma a partir do século I e centralizou-se sobre os judeus. Como
testemunha este texto de Tácito, de espantosa hostilidade:

“Moisés, para assegurar-se da autoridade sobre sua nação no futuro,

instituiu ritos até então desconhecidos e contrários aos dos outros mortais. Para
eles é profano tudo o que para nós é sagrado e, inversamente, para eles é
permitido tudo que para nós é abominável (. .) Esses ritos, seja

qual for a maneira pela qual tenham sido introduzidos, têm como justificativa
sua antiguidade, mas as outras instituições, sinistras, vergonhosas, impuseram-se
pela própria razão de sua imoralidade. Os piores criminosos, renegando as
práticas religiosas de seus pais, levam [ao Templo] tributos e oferendas em
dinheiro, o que aumenta a prosperidade dos judeus, e também porque, entre eles,
existe uma lealdade obstinada, uma piedade sempre pronta, mas em relação a
todos os outros o que existe é um ódio igual ao que se tem de um inimigo.”30

O judeu foi a partir de então banido da cidade. De fato, Tácito não

foi o responsável; foi apenas o porta-voz particularmente veemente de

um estado de espírito que iria se expandir até a retomada do Império

Romano pelo cristianismo. O monoteísmo garantidor da identidade

judaica chocara-se contra a imensa muralha do politeísmo romano. Mas


o judeu não podia abstrair-se daquele mundo hostil. A totalidade do

mundo era romana; onde iria refugiar-se?

A es as duas razões acrescentava-se outra, que era o staíus fiscal particular dos
judeus, e que iria desencadear uma tragédia terrivelmente premonitória.
68

H ISTÓ R IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1. Cícero, Pro Flacco, 28 (The Loeb Classical Library, Harvard University


Press,
Cambridge, Mass., e William Heinemann, Londres).

2. Flavius Joseph, AntiquitésJudaiques, op. «7., XIV, 7,2 § 112.

2*. Lares: na mitologia romana, divindades tutelares das encruzilhadas e


dos campos;

também, e mais habitualmente, deuses do lar. (N.T.)

3. As funções dessa tríade parecem-me variar de acordo com as culturas e


as épocas,

de acordo com esquemas frequentemente diferentes dos que Georges


Dumézil definiu.

Cf., desse autor, Les dieuxsouverains des Indo-Européens (Gal imard, 1977).
O modelo clássico da tríade é o que Dumézil destacou em outro lugar: “O
Irã fez dos três filhos de Zoroastro o primeiro sacerdote, o primeiro
guerreiro e o primeiro criador de animais-agricultor” (Troisfamil es, em
Mythe et Épopée J, Quarto Gal imard, 1985).

4. Realmente, quando as tribos lhe pediram um rei pela primeira vez, o


profeta

Samuel indignou-se: por que precisavam de um rei? E sob a dinastia


asmoniana, sete

séculos mais tarde, a função de grande sacerdote seria inseparável da


realeza. A distinção

entre as funções de rei e de grande sacerdote parece ter sido apenas de curta
duração, sob

David e depois sob Salomão.

O leitor pode ficar tentado a fazer um paralelo, como por exemplo o que
pode ser

traçado entre os judeus e os gauleses. Os gauleses, na verdade celtas mistos


segundo a
definição de Michelet, constituídos por celtas puros, bretões e gauleses,
escoceses e irlandeses, assim como os hebreus, repartiam-se em tribos
errantes, as “chefias”. Assim como eles, chegaram bem mais tarde (por
volta do ano 500 antes da era cristã) em “suas” terras

— territórios que se estendiam entre os dos romanos e dos germanos. Como


os hebreus,

nunca aceitaram a Pax Romana. E, assim como os sacerdotes dos hebreus,


os druidas

exerceram altas funções entre os gauleses, funções que ultrapassavam


largamente a política (eram encarregados de resolver as rivalidades
eventuais entre as “chefias”). Porém, por ocasião das batalhas e dos pactos
políticos, a autoridade dos chefes gauleses prevalecia sobre a dos druidas,
como se viu no encontro de Colónia, durante o inverno de 69-70.

A partilha das funções era claramente definida entre os gauleses, da mesma


maneira que

entre os indo-europeus, enquanto inexistia entre os hebreus. Cf. Maurice


Bouvier-Ajam,

LesEmpereurs Gaulois (Tallandier, 1984).

5. A Septuaginta difere em organização e conteúdo das antigas versões do


Antigo

Testamento em hebreu, que não compreendiam, por exemplo, o Livro de


Daniel e os

apócrifos (cf. Rev. Alexander James Grieve, Septuagint, Enciclopédia


Britânica).

6. De tradução em tradução, a Septuaginta foi sofrendo mutações comuns a


tantos

textos sagrados judaico-cristãos. Parece, com efeito, que não só alguns


desses tradutores
conheciam mal o hebreu como interpretavam em vez de traduzir o texto
original, além
O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O R O M A N O

69

de às vezes sequer compreendê-lo, o que tornou certas passagens


ininteligíveis (AJ.

Grieve, Septuagint, op. cit.). Gramática, sintaxe e vocabulário hebraicos


comportam peculiaridades (duplo valor de certas consoantes, ausência de
géneros, deficiência de adjetivos) que tornam, de fato, difícil a passagem do
hebreu para o grego (cf. Larry Walker,

Biblical Languages, em The Origin of the Bible, sob a direção de Philip


Wesley Comfort, Tyndale House Publishers, Wheaton, Illinois, 1992).

Houve um efeito perverso suplementar, mas posterior, da Septuaginta: os


cristãos

iriam se servir de uma tradução grega aproximativa para seus próprios fins
teológicos.

Um dos exemplos célebres dessa apropriação é a tradução errónea da


famosa profecia de

Isaías: “Uma virgem conceberá e dará à luz uma criança e eles a chamarão
de Emanuel.”

(VII, 14) O texto grego empregava a palavra parthenos como “virgem”, e


era efetivamente

seu sentido, com a única diferença que Isaías utilizara a palavra hebraica
almah, que significa uma “mulher jovem”, não necessariamente virgem.
Conhece-se o resultado dessa tradução incorreta...

7. O apologista cristão Taciano, sírio helenizado, reproduziu no século II o


caráter

ingrato do texto grego da Septuaginta, apontando-o, paradoxalmente, como


a razão pela

qual aquele texto chamava sua atenção: “Enquanto estava procurando a


verdade com a

mais profunda atenção, deparei com certos textos bárbaros, antigos demais
para poderem

ser comparados aos discursos dos gregos, e divinos demais para serem
comparados a seus
erros, e fui conduzido a confiar no que lia, devido à linguagem sem
pretensões literárias,

ao caráter sincero dos autores, à presciência dos acontecimentos futuros, à


excelente qualidade dos preceitos e a que, nesses textos, o governo do
universo estava centrado em um único Ser.” (Adresse aux Grecs, XXIX)

8. Um dos pontos mais desconcertantes do Génesis é onde está dito:


“Naqueles

tempos, quando os filhos dos deuses copulavam com as filhas dos mortais e
filhos eram

concebidos, os Gigantes [Nefilim] habitavam a Terra. Eram os heróis


daqueles tempos

antigos, homens de renome.” (VI, 4) Assim, podia-se concluir que os deuses


haviam precedido Deus.

9. Ex. XXXIII, 5.

10. Leu. XIV, 33-34.

11. Ex. XXXIV, 13.

12. Ex. XXXIII, 3.

13. Ex., XXXII, 27-29.

13*. Segundo o relato bíblico, David matou o gigante Golias com o golpe de
uma

pedra lançada com sua funda. (N.T.)

14. De Civitae Dei, VI, 11 (The Loeb Classical Library, Harvard University
Press,

Cambridge, Mass., e William Heinemman, Londres). Tácito e Apion, assim


como outros
70

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

autores a exemplo de Juvenal e Plutarco, retomaram esse argumento, sendo


que Tácito o

enriqueceu com considerações suplementares sobre o ano sabático,


parecendo achar que

seria dedicado a não fazer nada, no que demonstrou sua total ignorância: a
prescrição

principal do ano sabático era deixar — a cada sete anos — a terra em


repouso, prática do

maior bom senso agrícola que não pareceu passar pela cabeça desse autor.
Em um tratado igualmente intitulado De Superstitione, Plutarco relatou que
o sabá consistia em cobrir-se de lama, entorpecer-se na imundície, assediar
os deuses com suplicações indevidas e

entregar-se a prostrações inconvenientes ( Moralia, vol. 1, 5, 16 vol., The


Loeb Classical

Library, Harvard University Press, Cambridge, Mass., e William


Heinemman, Londres).

Esses sarcasmos procediam da ignorância dos autores, bem como de sua


evidente

animosidade: o repouso periódico não era um convite à ociosidade, mas um


tempo consagrado ao enriquecimento espiritual pela meditação. E, aliás,
bem antes dos judeus, os babilónios, por exemplo, consideravam o sétimo, o
décimo quarto, o vigésimo primeiro

e o vigésimo oitavo dias do mês, os sapattu, como investidos de uma


significação sagrada,
interditando ao rei certas atividades.
Infelizmente, o estudo dos autores clássicos antigos nem sempre é tão
edificante

quanto se poderia em geral esperar.

15. Histoire romaine, XXXVII, 16,3 (The Loeb Classical Library, Harvard
University

Press, Cambridge, Mass., e William Heinemman, Londres, 9 vol., trad.


inglesa de Eamest

Cary). A palavra de Díon Cássio que Cary traduziu por “terror


supersticioso” é ptoésis,

noecrio, que também pode ser traduzida por “transe”.

16. Circumcision, Enciclopédia Britânica. Por esse texto fica-se sabendo que
o câncer

de pênis é praticamente inexistente entre os judeus, comparativamente a


outras popula​

ções que não praticam a circuncisão.

17. O leitor terá que me perdoar por não insistir em mencionar textos que
beiram

inevitavelmente a obscenidade. Essa omissão explica-se não por um


puritanismo de conveniência, mas por se tratar de documentos, no contexto
anti-semita, particularmente ofensivos. Os que desejarem uma análise
detalhada dos textos romanos sobre a circuncisão podem reportar-se ao
trabalho Judeophobia: Attitudes toward theJews in theAncient World, de
Peter Schãfer (Harvard University Press, Cambridge, Londres, 1997).

17*. Ou cisticercose: doença provocada por larvas que infestam o intestino


humano
quando ingeridas a partir do consumo de carne de porco ou de boi, crua ou
mal cozida.

Em francês, ladrerie, que também quer dizer “avareza sórdida”. (N.T.)

18. Histoires, V, 1-4, em CEuvres complètes, tradução de Pierre Grimal (La


Pléiade/Gallimard, 1990).

19. Citado por J. N. Sevenster em The Roots of Pagan Anti-Semitism in


theAncient

World (E. J. Brill, Leude, 1975).

20. Ben Sira, dito “O Siracida”, cujo nome completo era Joshua ben Eleazar
ben

Sira, é conhecido da tradição judaica e cristã antiga por um livro de


sabedoria intitulado
O ENRAIZAMENTO DO ANTI-SEM ITISM O R O M A N O

71

UEcclésiastique. Essa obra gozou de um status quase canónico dentro das


comunidades judaicas até o dia em que, no século XIII, o index ou yad
canónico a excluiu explicitamente ( Dictionnaire encyclopédique du judaísme,
op. cit.). A partir da descoberta do texto de
UEcclésiastique em hebreu (até então só se conhecia a versão grega
realizada por seu neto

em Alexandria, na segunda metade do século I a.C.), no final do século XEX


na Genizah

do Cairo, Ben Sira foi objeto de uma renovação de exegeses destinadas a


avaliar a influência helenística na literatura judaica no tempo dos
selêucidas. Cf. Martin Hengel,

Hel enism andJudaism (Xpress Reprints, SCM Press Ltd., Londres, 1996).

21. Vivre et philosopher sous íes Césars (Privat, 1980). Uma tese, segundo a
qual teria

havido no século I antes de nossa era uma “revolução cultural” em Roma,


comportando,

ao que parece, as premissas de um humanismo, suscitou nestes últimos anos


uma certa

curiosidade (Thomas N. Habinek, The Politics of Latin Literature, Princeton


University

Press, 1997, e sob a direção de Thomas Habinek e d*Alessandro Schiesaro,


The Roman

Cultural Revolution, Cambridge University Press, 1998). A mim parece


preferível atermo-

nos à refutação publicada pelo Pr. T. P. Wiseman, da Universidade de


Exeter (Revolution?

What Revolution? The Times Literary Supplement, 29 de maio de 1998).

22. Essa menção sugere três hipóteses.

Existiu de fato um deus frígio Sabazius presidindo a agricultura e os


nascimentos,
que os romanos chamavam tanto de Júpiter Sabazius como de Bacchus-
Dionysos, por

causa da característica orgiástica de seu culto. Nos dois casos, não se vê


como os romanos

possam ter expulsado os judeus por terem introduzido outro culto de


Júpiter.

Alguns judeus helenizados do século II a.C. praticaram sincretismos entre


as divindades estrangeiras e seu Deus. De fato, Sabazius foi identificado em
certos casos com Sabaoth, vocábulo hebraico que significa “exércitos”, e que
é um dos nomes da divindade judaica. Isso não explica melhor a expulsão
dos judeus, que evidentemente toieravam o culto de outras religiões entre os
não judeus.

Terceira hipótese, o nome do deus Sabazius seria um mal-entendido


transmitido

por “ouvir dizer” e causado por má interpretação do vocábulo “sabá”,


chabat. Os judeus

teriam, pois, sido expulsos de Roma sob o pretexto de que seu culto fazia
muito sucesso,

mas na realidade porque sua presença contrariava certos interesses. É a


hipótese que me

parece mais plausível.

23. Essa expulsão, ordenada pelo pretor Cornelius Scipio Hispanus, só


chegou até

nós pela menção que a ela fizeram dois historiadores bizantinos do século
IV de nossa era,

Julius Paris e Januarius Nepotianus, de acordo com um texto perdido de


Valerius

Maximus. (Cf. Édouard Will e Claude Orrieux, Prosélytisme juij? Histoire


d}une erreur, Les

Belles Let res, 1992). Esses dois autores possibilitaram a avaliação da


dificuldade de interpretação dos textos latinos, particularmente do citado
acima, assim como dos perigos das extrapolações apressadas como as que
têm sido feitas.

24. Pro Flacco, op. cit., XXVI, 68.

25. Annales, II, 85, em CEuvres complètes, op. cit.


72

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

26. Suetônio, Les Douze Césars, Tibère, XXXVI, 2 vol., trad. J. C. Rolfe (The
Loeb

Classical Library, Harvard University Press, Cambridge, Mass., e William


Heinemann,

Londres).

27. Histoire Romaine, op. cit., LVII, 5.

28. Op. cit., Claude, XXV, 4,24.

29. Díon Cássio (Histoire romaine, op. cit., LX, 6, 6) opõe-se a Suetônio a
respeito desse ponto, alegando que Cláudio desistira dessa expulsão por
temor de que provocasse

novos problemas; Cláudio ter-se-ia limitado a proibir aos “judeus”


qualquer reunião.

Como não se conhece o édito de Cláudio, fica evidentemente difícil


esclarecer. Pode-se

supor que o imperador, cuja moderação, notadamente em relação aos


judeus, deveria

manifestar-se mais tarde, tenha ameaçado os “judeus” de expulsão, caso


não renunciassem a suas atividades públicas.

30. Histoires, op. cit., IV e V.


4.

O massacre de agosto de 38 em Alexandria,

primeiro pogrom da história

OS PRIVILÉGIOS FISCAIS DOS JUDEUS DE ALEXANDRIA—A


CISÃO ENTRE A ELITE
E A MASSA DOS JUDEUS — NOVOS EFEITOS PERVERSOS DA
SEPTUAGINTA E DA

FALSA IMAGEM DOS JUDEUS QUE ELA REFORÇOU ENTRE OS


HELÉNICOS — O

ADVENTO DE CALÍGULA, O PAPEL DESASTROSO DO PREFEITO


FLACCUS E O CASO

DA REALEZA DE AGRIPA — O CASO DAS ESTÁTUAS DE CALÍGULA


DENTRO DAS

SINAGOGAS — INSTAURAÇÃO DO ANTI-SEMITISMO EM


ALEXANDRIA — O

POGROM DO BAIRRO DELTA—OS JUDEUS TORNAM-SE


CIDADÃOS DE SEGUNDA

CLASSE — SUA EXPULSÃO DE ROMA POR CLÁUDIO

Por ocasião de sua visita a Jerusalém, Alexandre tinha, como vimos,

concedido aos judeus um status fiscal particular, na Palestina assim como

em outras comunidades judias do mundo helenístico, e os havia convidado a se


instalar em outras cidades de seu Império. A colónia judia de Alexandria havia,
pois, crescido em proporções consideráveis: entre

200.000 e 400.000 pessoas.

As condições nas quais os judeus tinham vindo para Alexandria não

parecem, contudo, ter sido favoráveis, nem mesmo pacíficas.1 A primeira


inscrição testemunhando claramente a presença de judeus em Alexandria
remonta ao primeiro dos reis ptolomeus do Egito, Ptolomeu

I Soter (304-285 a.C.).2 Tratava-se de 100.000 prisioneiros, trazidos da

Judéia após a tomada de Jerusalém, dos quais 30.000 estariam em condi​

ções de pegar em armas. Os outros 70.000, velhos e crianças, teriam sido


dados como escravos aos soldados macedônios. Os soldados teriam sido

libertados por Ptolomeu I Filadelfo (285-246 a.C.). Não se fez nenhuma menção
às mulheres, nem à questão de que os 30.000 conscritos à
74

HISTÓRIA GERAL DO A N TI-SEM ITISM O

força eram obrigados a não respeitar o sabá. Também nada se disse a

respeito do enquadramento religioso daqueles 100.000 judeus nem dos


casamentos mistos contraídos à força, nem das crianças “bastardas” nascidas
dessas uniões. Mas, evidentemente, isso não entrava nas considera​

ções dos cronistas antigos. No máximo, pode-se supor que os antigos

estabelecimentos judeus do Egito tenham deixado em Alexandria algumas


estruturas que permitiram àqueles emigrados não se sentir inteiramente
deslocados: afinal de contas, poucos judeus falavam grego — a maioria falava
aramaico — e, fossem quais fossem os atrativos de

Alexandria, não conseguiam compensar o fato de terem sido ar ancados

de suas casas e afastados das famílias.

É preciso observar aqui que esse deslocamento obrigatório de população —


100.000 pessoas era muita gente para a época— não pode deixar de despertar
associações penosas com a época moderna: na verdade,

tratou-se de uma deportação pura e simples.

Não foi senão progressivamente que os judeus de Alexandria adquiriram status


comparável àquele com que tinham sido beneficiados durante o domínio persa:
recuperaram suas finanças autónomas e sua jurisdi​

ção própria, o Conselho dos Anciãos, sinédrio de 71 membros dirigido

por um etnarca que era chefe e ministro das finanças, e tiveram seus

locais de culto legítimos. Mas não tinham direitos de cidadania: não

podiam fazer reivindicações como alexandrinos. Importados à força,

eram simplesmente tolerados; instalaram-se à leste da cidade, entre a

Necrópole e o mar, ao pé da colina de Rhakotis, no bair o Delta

(Alexandria contava com cinco bair os, cada um designado por uma das

primeiras letras do alfabeto). A cidade, disse Fílon, tinha duas clas es de

cidadãos.3 E acrescentou: “E duas clas es de judeus.”


Paradoxalmente, com efeito, certos judeus gozavam de um status

extraordinário, como era o caso da família de Fílon, o célebre filósofo

judeu: um de seus irmãos, Caiusjulius Alexander, era alabarque, ou seja,

ar ecadador-geral de taxas e direitos de aduana, e, ainda por cima, como

seu nome indica, gozava excepcionalmente de cidadania romana. Os

Alexander eram uma família de banqueiros, o que, para a época, deve ser

entendido como emprestadores, indicando que nem todas os círculos de


O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA

75

Roma eram hostis aos judeus, pelo menos aos ricos. Nero, vítima da

maldosa propaganda divulgada por Tácito, explorada posteriormente por


autores ignorantes da má-fé visceral desse autor, parece ter sido favorável

aos judeus, pelo menos àqueles, e não se pode descartar a hipótese de ter

sido influenciado pela mulher, Popéia, convertida ao judaísmo, como já

vimos.

Para os judeus letrados (e portanto ricos) do Império, helenizados,

mas fiéis à sua fé, assim como para os fariseus de Jerusalém e o alto sacerdócio
saduceu, a religião não deveria mais ser assimilada ao nacionalismo: inseridos na
história, estimavam que a religião deveria ser justamente ar ancada da história,
pelo fato de ela ser imanente. Para eles, o judaísmo

tinha tudo a perder nas convulsões das batalhas, das guer as de sucessão

e das intrigas armadas com ou contra os vencedores do momento. O

Deus interior de Moisés não era mais o Deus dos exércitos. A religião

judaica era transcendente, universal e eterna. Não pensavam estar traindo Deus
quando serviam às potências do momento, no caso os romanos.

Alguns dentre eles, como era exatamente o caso de Fílon, não estavam se

esforçando para realizar uma vasta síntese do judaísmo e da filosofia grega?


Fílon não havia descrito em sua Vida de Moisés o profeta fundador como o
paradigma das virtudes helénicas? Com uma bela candura, Fílon

fingia ignorar o desprezo com que os intelectuais do mundo romano tratavam o


judaísmo, por todas aquelas razões que já vimos. Ele aspirava a uma fusão entre
o judaísmo e o helenismo, da mesma maneira que

Maimônides sonhará muitos séculos mais tarde — fusão que jamais

ocor erá.

Havia, pois, uma dissensão entre a elite e a massa dos judeus.

Avaliaremos nos capítulos posteriores o peso dessa dissensão, até o século XX.
O triplo isolamento, geográfico, civil e cultural, dessa massa de

judeus foi determinante para a aversão crescente dos helenos e dos egípcios em
relação a eles: helenos e egípcios não a distinguiam, ou fingiam não distinguir,
da minoria de judeus letrados passados para o lado de

Roma, como Fílon, Joseph ou os reis judeus; estes últimos eram judeus

de exceção, quase não mais judeus. Quanto aos primeiros, não só não
76

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

tinham acesso aos direitos da cidade como estavam efetivamente excluídos dela;
eram essencialmente estrangeiros. “Os egípcios foram os primeiros a nos
caluniar”, escreveu Flavius Joseph, paradoxalmente reivindicando seu
pertencimento a uma coletividade da qual denunciou com veemência os
elementos mais ativos. Verdade seja dita, não se sabe o que

Joseph entendia por “egípcios”. Eram as pessoas do Egito em seu conjunto? Isso
teria incluído os helenos e os nativos egípcios, pois estes últimos não haviam
desaparecido: o Egito continuava como sempre povoado de

egípcios. E a hostilidade de que falava Joseph existiu, com efeito, sendo

particularmente realçada por dois fatores.

O primeiro era a lembrança da atitude dos judeus durante a guer a

civil que estourara no final do século I I a.C. entre os ptolomeus e os

selêucidas, pelo controle da Palestina. As tropas egípcias batiam-se sob o

comando dos ptolomeus e tinham dado provas de valentia. De tanta

valentia, que os egípcios haviam tomado consciência de seu próprio

valor, o que deveria conduzi-los mais tarde a uma série de rebeliões contra os
ptolomeus. Acontece que a maioria dos judeus da Palestina e do Egito era, por
sua vez, favorável aos selêucidas; chegara até mesmo a

constituir em Jerusalém um partido fortemente pró-selêucida. Fora vista

na Palestina, correndo em reforço aos sírios que se batiam nas fileiras dos

selêucidas, e sitiando uma guarnição egípcia.4 Para os egípcios, os judeus

não eram, pois, aliados.

O segundo fator da animosidade egípcia em relação aos judeus era o

status fiscal privilegiado de que desfrutavam: como no tempo dos persas,

eles tinham, de fato, o direito de subtrair de seus impostos as somas

entregues ao Templo. Seu status civil, ainda por cima, autorizava-os a não

trabalharem no dia do sabá; e, como os judeus dominavam um certo


número de profissões, seus clientes eram obrigados, naqueles dias, a ficar

ociosos. Além de os judeus não serem amigos, ainda eram privilegiados

pelo poder.

A situação, já explosiva, piorou ainda mais quando, em 32, Tibério

nomeou um de seus amigos judeus prefeito do Egito, título equivalente

ao de vice-rei. Este, Aulus Avilius Flaccus, era um burocrata competente

e astuto que, segundo seu próprio acusador, Fílon, colocou ordem na


O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA

77

administração egípcia civil e militar e foi excelente governador. Quando

Tibério mor eu e foi sucedido por Calígula, Flaccus caiu em profunda


depressão: havia perdido seu mais poderoso protetor e, de repente,

encontrava-se vulnerável. Com efeito, havia participado da conspiração

contra a mãe de Calígula, em decor ência da qual havia sido morta: tamanha
falta com toda a certeza iria atrair sobre ele as sevícias do novo imperador.
Quando Flaccus, ainda por cima, ficou sabendo que Calígula tinha mandado
executar seu próprio neto e em seguida o conselheiro de

Tibério, Macro, sua angústia alcançou o ponto culminante: sua própria

desgraça não iria tardar.

Foi então que decidiu aliar-se aos alexandrinos: tinham apreciado sua

administração, apreciariam ainda mais se cedesse ao anti-semitismo deles

e passas e a perseguir os judeus. Os judeus iriam, pois, fazer o papel de

bodes expiatórios. Muito cedo a ocasião se apresentou. Calígula acabara

de conceder a seu amigo Agripa, neto de Herodes, o Grande, o reinado

de um terço das províncias da Palestina, sobre as quais Herodes havia reinado,


ou seja, a Galiléia, a Batanéia e a Traconitidia. Além disso, Calígula
desaconselhara Agripa a alcançar seu novo reino pela via marítima mais

direta, Brindisi-Tiro. Esse trajeto era, com efeito, longo e perigoso; seria

melhor ir direto até Alexandria e, lá, esperar ventos propícios para chegar

a Tiro.

Tendo alcançado Alexandria, Agripa foi discretamente até sua residência, em


casa do alabarque Lisímaco Alexandre, a quem manifestava justificada gratidão
por lhe haver no passado emprestado grandes somas.

Flaccus sentiu-se ofendido e ultrajado por não ter sido visitado pelo

favorito do imperador, deixando-se influenciar pela agitação hostil dos


alexandrinos, indignados por sua vez com o fato de que fora dado um rei

aos judeus. Flaccus começou por proibir o sabá, o que era pura provoca​

ção. Recorrendo aos serviços de três panfletários anti-semitas, Denis, o

escrivão Lampon e o ginasiarca Isidoros, tratou de lançar uma campanha

de calúnias contra Agripa, bem como contra Fílon e sua família, para

desacreditar os judeus mais influentes da cidade, antes de começar a perseguir os


demais. Em seguida, a fim de obter os favores do imperador, propôs erguer
estátuas de Calígula dentro das sinagogas, outra provoca​
78

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

ção flagrante, uma vez que os judeus eram absolutamente contrários à

idolatria.
Os judeus reagiram fechando suas sinagogas. Flaccus publicou um

édito que, pela primeira vez, os declarava estrangeiros em Alexandria,

privando-os do direito de residência. Insuflados pelos panfletários, os

alexandrinos lançaram-se por seu turno a uma campanha de injúrias

contra Agripa. O conluio adquiriu rapidamente uma amplitude inaudita.

Aguns se puseram a gritar que Agripa tinha vindo de fato tomar posse da

cidade de Alexandria e se indignaram com o prefeito que permanecia

passivo; outros foram buscar um idiota falador de nome Carabás que,

coberto com um manto de púrpura, foi coroado com um diadema e recebeu um


galho no lugar do cetro; em seguida foi instalado em cima de uma velha car
uagem tirada do Museu, que não era utilizada desde os

tempos de Cleópatra. Cercado de guarda-costas fantasiados, foi levado

pela multidão em cortejo até o Ginásio, percor endo as ruas com bufonarias e
imprecações.

Flaccus nada fez para suspender a palhaçada; muito ao contrário,

mandou prender 38 membros do Conselho de Anciãos, colocá-los nus,

depois chicoteá-los e confiscar seus bens. Em seguida, pretextando que

os judeus estariam conspirando para desencadear uma guerra civil e

escondendo armas em casa, mandou o exército revistar suas casas.

Nenhuma arma foi encontrada.

A turba — porque não tinham sido as pessoas ricas que organizaram

aquelas desordens, esclareceu Fílon, mas uma plebe como a que se


encontra em todos os portos do mundo — mudou a direção da vindita

contra os judeus: fechou-os dentro do bair o Delta, submetendo-os desse modo à


fome, e em seguida atirou-se sobre seus comércios e pilhou-os. Os judeus que
saíam do bair o Delta para comprar víveres eram massacrados pela multidão em
delírio, alguns ar astados pela cidade por uma corda amar ada a um pé, outros
sur ados, torturados, crucificados, esfolados vivos, e seus cadáveres eram
desmembrados e pisoteados, ou então eram queimados vivos em fogueiras de
madeira verde para que se asfixiassem ao mesmo tempo em que eram queimados
(esboço sinistro de massacres posteriores). Famílias inteiras foram assim
exterminadas,
O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA

79

velhos, mulheres, crianças de colo, sem distinção de idade nem de condição. Foi
o primeiro pogrom da história. O número de vítimas não foi citado por nenhum
autor.5 Esse desencadeamento insensato de loucura
assassina combina mal com uma certa imagem do refinamento helenísti-

co, principalmente alexandrino, que deleita as imaginações contemporâneas:


muitas obras sobre o anti-semitismo antigo não lhe dedicam mais do que duas ou
três linhas.

Dois anos mais tarde, no início do ano 40, alarmados com a campanha que anti-
semitas como Apion faziam junto a Calígula para reduzir os judeus praticamente
à escravidão ou expulsá-los da cidade, e esperando

restaurar sua condição anterior, os judeus enviaram ao imperador uma

missão chefiada por Fílon. Calígula decidira mandar erigir uma estátua

sua no átrio do Templo de Jerusalém. Agripa I, que viera a Roma agradecer ao


imperador pelo reino que lhe havia concedido, teve a coragem de pleitear a causa
dos judeus, dos quais era rei, mas não obteve senão um

sursis para a instalação da estátua.

Calígula deixou a delegação esperando durante vários meses antes de

recebê-la nos jardins de Mecenas, sobre o monte Esquilino. Os judeus

assistiram a uma explosão de anti-semitismo do imperador. Para come​

çar, invectivou-os e acusou-os de serem inimigos dos deuses por se recusarem a


reconhecer ele próprio como deus. Fora is o, parece que se mostrou
principalmente interessado nas razões pelas quais os judeus recusavam-se a
comer porco, decididamente uma obsessão romana.

Presente ao encontro, Apion só fez aumentar a animosidade do imperador e,


quando Fílon quis responder, Calígula proibiu-o e ordenou que se retirasse de
sua presença.6

O assassinato de Calígula, em 21 de janeiro de 41, poderia ter dado

fim à ameaça de maus-tratos contra os judeus, que provavelmente foram

ter íveis em Alexandria tanto quanto na Palestina e em outros grandes


centros do Império. Mas, por pouco não deu início a um efeito inverso:

quando os alexandrinos ficaram sabendo do assassinato de Calígula, no

final de março ou começo de abril, espalhou-se o rumor de que teriam

sido os judeus de Roma que o teriam matado, e os helenos prepararam-

se para recomeçar seus massacres. Dessa vez o prefeito restabeleceu a


80

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

ordem. Pouco depois chegou um édito de Cláudio, felizmente um

sucessor mais comedido do que o obcecado Calígula.


No édito aos alexandrinos, Cláudio restabelecia a liberdade de culto

dos judeus, já concedida por Augusto, e anulava informalmente o proje-

to de instalação de estátuas imperiais nos locais de culto judaicos: as estátuas


seriam erigidas sim, mas na cidade, e não dariam ensejo a um culto especial.
Mencionou por duas vezes “a loucura de Caio” [Calígula], que

chamou de responsável pelos massacres, e colocou de sobreaviso os


alexandrinos (entendamos: helenos, macedônios, trácios, cipriotas, jônios e
egípcios) e os judeus contra qualquer desencadeamento de novo incidente.
Contudo, recomendou aos judeus não mais reivindicar novos privilégios (a
cidadania alexandrina especial,7 no caso), e não mais enviar a Roma embaixadas
que não fossem de alexandrinos. Enfim, inverteu as

disposições de Alexandre, o Grande: solicitou igualmente aos judeus não

mais mandar buscar cor eligionários do exterior. Subentendido: “Vocês

já são bastante numerosos.”

Para ser generoso, Cláudio condenou à morte Isidoros e Lampon,

dois dos agitadores anti-semitas que, instigados por Flaccus ou talvez

incitadores dele, haviam contribuído para desencadear o massacre de 38.

A instrução do caso desses dois foi feita com estardalhaço, em 30 de abril

e 1? de maio de 41 — o que prova a importância que o imperador atribuía

ao caso — e a execução da sentença ocor eu logo em seguida.

Evidentemente, Cláudio agiu com rapidez a fim de restaurar a calma. É

preciso dizer que Isidoros agravou seu caso ao tentar desacreditar o próprio
imperador: chamou-o de filho de judeu8..

Ao que parece, as intenções de Cláudio não foram interpretadas

favoravelmente pelos judeus. Os Atos dos Apóstolos, com efeito, contam


que Cláudio emitiu um édito que ordenava aos judeus deixar Roma.9

Mesmo que Cláudio tenha restaurado de fato o status dos judeus, até

com certa generosidade, um ponto tornava-se claro dali em diante: existia no


Império, até mesmo no palácio imperial, um verdadeiro anti-semitismo, e ele era
uma prer ogativa legal. Em todos os grandes centros

do Império ocor iam tensões mais ou menos agudas entre os judeus e os

não judeus. Admitia-se que se podia detestar os judeus a ponto de


O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA

81

massacrá-los, pela única razão de serem judeus. Os muros de Roma e de

outras cidades imperiais cobriram-se de pichações mostrando uma cabe​


ça de asno, o deus que os judeus adoravam de acordo com as calúnias

(algumas versões mostravam um asno crucificado, pois os romanos não

faziam diferença entre judeus e cristãos).10

O cristianismo nada tinha a ver com aquilo: nos anos quarenta do

século I, ele era inexistente e um punhado de adeptos de Jesus teria sido

incapaz de influenciar o Império. Não, o esquema desse anti-semitismo

“de base” era simples: para os romanos, a cultura romana era a mais rica

do mundo e os que se recusavam a ela se sujeitar só podiam ser inimigos

do Império e bárbaros. Roma havia herdado o totalitarismo intelectual

dos gregos, especialmente de Platão: a cidade deveria ser homogénea —

adjetivo que corresponde ao que chamamos hoje em dia de “politicamente cor


eto”. Um ser humano não era considerado como tal, mas antes como um fiel da
civitas romana. Não o sendo, os judeus eram, pois,

classificados entre os inimigos, os ímpios ou os bárbaros — ou os três.

Habitantes de segunda clas e do Império, estavam expostos a constante

suspeição. E a partir de então o recurso à calúnia passou a ser tolerado,

assim como ao ódio ir acional e ao assas inato contra os judeus, sem que

se percebesse que essa criminosa indignidade infectava seus próprios

autores. As marcas que serão deixadas — mais exacerbadas — levarão, no

Império Romano do Oriente, à cascata de cismas e heresias nascidas da

rigidez moral e da ar ogância. Com a diferença de que se tratava de um

anti-semitismo cultural e político, e não religioso.


Mais tarde, todo o prestígio de que foi devotamente coberto o

Império Romano foi insuficiente para esconder o fato fundamental de

que a tolerância era desconhecida em Roma, pois não existia humanismo

romano: também a filosofia não tinha ainda uma prer ogativa legal. “Os

filósofos passavam normalmente por cidadãos pouco confiáveis, por vezes

até subversivos, o que nunca foi uma recomendação em Roma”, escreveu

Jerpagnon, acrescentando: “Díon de Prusa, no tempo em que ainda era

retor, via-os como ‘inimigos mortais de qualquer vida social’ e desejava

decididamente bani-los da humanidade”. Assim como os judeus. A exaltação da


polis, inflada pela segurança de estar-se defendendo a única religião possível no
mundo, só poderia levar à exaltação da política.
82

HISTÓRIA GERAL DO A N TI-SEM ITISM O

Nós confundimos, na era moderna, autores respeitados (e freqíien-

temente pouco respeitáveis) com filósofos, termo vago. Mas “nem


Tácito, nem Suetônio, nem Díon Cássio tinham apreço pelas pessoas de

barba e manto”, lembra ainda Jerphagnon. Se alguns romanos, como o

imperador Cláudio, manifestaram alguma humanidade em relação aos

judeus, não o fizeram por respeito ao indivíduo, mas por generosidade

pessoal (e também para obter a paz nas províncias afastadas do Império).

Também não havia democracia em Roma — não houve durante o

Império nem no tempo dos reis e da república. Como, aliás, escreveu

Aristóteles: “Além de 100 mil homens, não há democracia.” Roma não

era somente hegemónica, mas também hegemonista. A civilização que o

Ocidente fez de modelo é uma ficção, e es e ponto é essencial para um

estudo geral do anti-semitismo: a própria essência da romanidade é tirânica, e a


analogia entre a cultura romana e a Kultur germânica é gritante; uma e outra são
ter enos ideais para a formação de inclinações criminosas tais como o anti-
semitismo.

A desgraça é que essa disposição de espírito iria contaminar justamente aqueles


que se declaravam inimigos do “paganismo” e que pretendiam renovar a história
pela virtude da caridade, em nome dos valores do judeu Jesus.
O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA

83

Bibliografia e notas críticas

1. Flavius Joseph (La Guerre deJuifs, I , 487 e Contre Apion, II, 35) quis dar
a impressão de que os judeus teriam vindo para Alexandria por sua livre
vontade e em pé de igualdade com outros judeus. Mas André Bemand
destaca, emAIexandrie la Grande (Arthaud, 1966), “duas importantes fontes
da história helenfstica, Aristeu e Hecateu, nada dizem

sobre a imigração de judeus no tempo de Alexandre”. Muito pelo contrário,


parece que

os judeus foram importados da Judéia matiu militari. Ou então que os que


responderam

ao convite de Alexandre foram muito pouco numerosos.

2. A. Bemand, Alexatidrie la Grande, op. cit.

3. In Flaccum, VI, 43, em The Works of Philo, Complete and Unabridged,


New Updated

Version, 1 vol., trad. angl. C. D. Yonge (Hendrickson Publishers, U. S.,


1997). Existe uma

abundante literatura sobre a questão se os judeus eram ou não cidadãos de


Alexandria, o

que teria implicado a igualdade de direitos com os gregos.

Flavius Joseph relata nas Antiquités judaiques (XIV, 188) que César mandou
erguer

uma placa de bronze declarando que os judeus gozavam de cidadania. Deve


ter sido uma

cidadania contraditória, pois exigia, como em qualquer lugar do Império,


que os judeus

rendessem homenagem aos deuses sob pena de crime de impiedade e


condenação à morte; mas se os judeus — o que é inconcebível — tivessem
rendido homenagem aos deuses do Império, seriam acusados de apostasia.
Alguns autores, como L. H. Feldman, levantaram a hipótese de que os
judeus de Alexandria talvez não fossem tão ortodoxos quanto se havia
pensado ou então que tivessem sido dispensados do culto, o que lhes teria
permitido gozar do direito de cidadania concedido por César.

Mas parece que esse direito lhes teria sido retirado, como indica sem
ambiguidade o

Papiro de Londres 1912, descoberto em 1921 no qual, em um édito do ano


de 41, o imperador Cláudio dirige-se “aos alexandrinos e aos judeus” e fala
destes últimos como habitantes de “uma cidade que não é a deles”. Frase
contraditória, pois Cláudio sabia muito bem e reconhecia explicitamente
nesse édito que os judeus moravam em Alexandria há

aproximadamente três séculos; portanto, o fato de morar em uma cidade do


Império não

significava gozar de sua cidadania jurídica. Igualmente determinante era a


proibição que

Cláudio fazia aos judeus de Alexandria de participar das competições


atléticas presididas

pelos ginasiarcas e pelos cosmetas (magistrados encarregados de fiscalizar


os ginásios): o

direito de participar desses jogos era, de fato, reservado aos cidadãos.


Conclui-se, com

toda a certeza, que no ano 41 os judeus eram habitantes e não cidadãos do


Império.

A importância desse ponto é proporcional à atenção que lhe vem sendo


concedida

há cerca de um século. Já há 20 séculos Flavius Joseph, obstinado como


sempre em

demonstrar que os judeus estavam bem integrados ao Império a despeito da


evidência do

contrário, mencionara a questão pelo menos 18 vezes em Antiquitês


judaiques, de tanto que
ela o perturbava e tamanha a consciência que tinha, na sua época, de que a
cidadania dos

judeus era contestada. Avaliaremos mais adiante (v. pp. 111-121) a


importância desse

ponto, a propósito da cidadania romana de São Paulo. No século XX, o


Papiro de

Londres contrariou tanto certos autores, que eles chegaram a declará-lo


falso; ele não é
84

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

falso, tanto que o mesmo teor pode ser encontrado, em sua essência, em
Flavius Joseph

(Antiquitésjudaiques, op. cit., XDÍ, 280-286,288-292). Outros, ainda, ficaram


“em cima do

muro”, alegando que só as passagens relativas aos judeus eram falsas, mas
essa meia medida também não resiste a um exame.

4. Martin Hengel Judaism and Hellenism, op. cit.

5. Os elementos desse relato foram recolhidos no de Fílon, In Flaccum.


Flaccus foi

preso pouco tempo depois por ordem de Calígula, por um centurião enviado
às pressas

de Roma; seus bens foram confiscados, e ele foi exilado na ilha grega de
Andros, onde foi

condenado à morte alguns meses mais tarde, sempre por ordem de Calígula.
Sua execu​

ção foi atroz, à altura da loucura sanguinária de Calígula e dos massacres


pelos quais o

próprio Flaccus foi responsável.

6. O relato do encontro da delegação conduzido por Fílon com Calígula


encontra-

se cm Antiquitésjudaiques de Flavius Joseph (op. cit., XVIII, 8,1) e no texto


conhecido pelo nome de Legatio ad Gaium (cujo título exato é De Virtutibus
Prima Pars, Quod est de

Legatione ad Gaium, em The Works o/Philo, op. cit.)

7. V. nota 3 acima. A solicitação de cidadania era um dos objetivos da


embaixada

judia a Calígula.

8. Na primavera de 41, durante o reinado de Cláudio, Isidoros, ginasiarca


de
Alexandria e anti-semita virulento, dirigiu-se a Roma acompanhado de uma
delegação

para apresentar contra o rei Agripa acusações muito graves diante do


tribunal imperial:

aquele judeu “de três vinténs” estava participando de um vasto complô


para minar o

Império e semear a desordem no mundo. As acusações eram desprovidas de


fundamento: Agripa era o mesmo rei que, para acabar com a sedição cristã,
por enquanto apenas a de uma seita judaica, mandara prender o apóstolo
Pedro e decapitar Tiago, filho de

Zebedeu, irmão de João. Quanto ao complô, existira apenas na imaginação


alucinada de

Isidoros. De mais a mais, Agripa era amigo de Cláudio, e Isidoros, seu


acusador, havia

participado do complô que causara a morte de dois amigos de Cláudio,


Theon e Macro.

Significa dizer que Cláudio não tinha simpatia por Isidoros. Este último era,
ainda por

cima, de uma insolência rara por saber que dispunha de apoios no Senado.
Mas, diante da

importância das acusações, Cláudio foi obrigado a respeitar o procedimento


judiciário,

sem o que teria corrido o risco, ele próprio, de ser acusado de negligência.

Cercado por seu Conselho organizou, pois, uma audiência do tribunal nos
jardins

imperiais. O tom subiu, e Cláudio terminou dizendo a Isidoros: “Falando


desse jeito, você
é o mais insolente dos homens.” E Cláudio lembrou a Isidoros o sangue que
ele tinha nas

mãos, acrescentando o do prefeito Flaccus, instigado por ele a maltratar os


judeus. “Na

verdade você não passa de um filho de corista, Isidoros”, disse-lhe. Isidoros


replicou que

não era escravo nem filho de corista, “mas ginasiarca da célebre cidade de
Alexandria.

Quanto a você, é o rebento desprezível da judia Salomé. E é por isso...”


Filho de dançarina (corista) queria dizer, na linguagem da época, “filho da
puta”, notou Modijezewsky

(Les Juifs d’Égypte de Ramsès II à Hadrien, op. cit.), mas “filho de judia” era
ainda pior em

Roma: queria dizer “bastardo”. Adivinha-se que nem Isidoro, nem Lampon
chegaram a
O MASSACRE DE AGOSTO DE 38 EM ALEXANDRIA

85

ter cabelos brancos: foram os dois condenados à morte e executados (cf. V.


Tcherikover,

A.. Fuks e M. Stern, Corpus Papyrorum Judaicarum, 3 vol., Cambridge


University Press,

1957-1964). Contudo, correu o boato de que o imperador era cúmplice dos


judeus, por

ser suspeito de ter ascendência judia.

O interesse dos papiros que relatam esse episódio de anti-semitismo


alexandrino foi

primeiramente demonstrar a violência do acontecimento, em seguida


testemunhar a

espantosa liberdade com que um ginasiarca, personagem provavelmente


importante da

cidade romana, podia dirigir-se ao próprio imperador.

9. Atos, XVIII,2.

10. A origem dessa “asneira” maldosa parece remontar a um autor obscuro,

Posidonius ou Apolônio Molon, segundo a qual os judeus teriam no Templo


uma cabe​

ça de asno feita de ouro. Apion retomou-a, e os anti-semitas da época


difundiram-na.
5.

Os massacres de 66,70,115 e 132

A GUERRA DAS DUAS NAÇÕES — A CONTRADIÇÃO DE TIBÉRIO


ALEXANDRE,

FUNCIONÁRIO JUDEU “ANTI-SEMITA” — CINQUENTA MIL


JUDEUS MASSACRA​

DOS EM ALEXANDRIA EM 66 — A CHAVE DO DESASTRE JUDEU NA


ERA PRÉ-

CRISTÀ: A DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM—O HORROR


APOCALÍPTICO DO CERCO:

OS ZELOTES JUDEUS MATAM JUDEUS — AS POÇAS DE SANGUE


NOS PÁTIOS

SAGRADOS — 117: NASCIMENTO DO PRIMEIRO GUETO — OS


QUINHENTOS E

OITENTA MIL MORTOS DO ANO 132 — A CIDADE SANTA TORNA-


SE A ROMANA

AELIA CAPITOLINA: OS JUDEUS SÃO PROIBIDOS DE LÁ


PERMANECER

Um padrão tinha sido criado: em pouco mais de meio século, três

conflitos sangrentos deveriam colocar judeus contra romanos: em 66, no

tempo de Nero, em 115, no tempo de Trajano, e em 132, no tempo de

Adriano. Contudo, não era mais um enfrentamento primário e local

entre duas comunidades culturais, os helenos de Alexandria e os judeus

vindos de um mundo muito antigo: os espíritos haviam mudado, só que

para pior.

O conflito de 66 explodiu mais uma vez em Alexandria, em um contexto


especial: a Judéia sublevara-se contra os romanos e essa sublevação geral
transformara-se em confusão. Chegou-se a ver um familiar de

Agripa, Noarus — um judeu —, mandar massacrar insurgentes judeus1

na calada da noite. A amplitude dos distúrbios alarmou tanto os judeus


do Mediterrâneo oriental quanto os romanos: algumas semanas antes,

com efeito, os habitantes de Cesaréia degolaram 20 mil judeus “em uma

hora”, segundo Flavius Joseph, não preocupado com o exagero. Quanto

aos romanos, tiveram que lutar contra adversários tão inflamados, que
OS MASSACRES DE 66, 70, 115 E 132

87

foram obrigados em alguns casos a capitular, como na ocasião em que

evacuaram a cidadela de Macheronte e sofreram pesadas perdas.


Os alexandrinos, gregos e macedônios, mas provavelmente também

os egípcios, eternos esquecidos dos cronistas gregos e romanos da época,

reuniram-se no anfiteatro para discutir a respeito de uma embaixada que

estavam pretendendo enviar a Nero. Os judeus inquietaram-se: o objeti-

vo dessa embaixada não seria para adotar medidas contra eles, tendo em

vista a sublevação da Judéia? Precipitaram-se, pois, à força dentro do

anfiteatro, e os alexandrinos puseram-se a ber ar, tratando os agitadores

de inimigos e de espiões. Atiraram-se sobre os judeus para apunhalá-los,

mas os judeus fugiram. Os três que conseguiram alcançar, entretanto,

foram na mesma hora queimados vivos, de acordo com os costumes

aprendidos em 38.

Os judeus, dessa vez, resistiram. Voltaram ao anfiteatro munidos de

tochas e ameaçaram queimar a construção e seus ocupantes. Provavelmente o


teriam feito, se o prefeito não tivesse reagido. O prefeito era Tíbério Alexandre,
filho do alabarque Alexandre e sobrinho de Fílon, e era

evidentemente judeu. Fez-se acompanhar de pessoas importantes e convidou os


judeus a desistir de sua empreitada, para não provocar a interven​

ção do exército romano. Os revoltosos o insultaram com grosseria.

Era preciso punir severamente: o prefeito lançou sobre seus correligionários as


duas legiões romanas acantonadas na cidade, reforçadas por dois mil soldados
que lá se encontravam por acaso. Em atitude bastante

significativa, esse judeu, dividido entre a ordem e a solidariedade religiosa,


escolheu a ordem: ordenou às tropas, relatou Flavius Joseph (que se encontrava
na mesma situação, de judeu a serviço dos romanos), não só
que matassem os judeus, “mas que pilhassem seus bens e reduzissem

suas casas a cinzas. Os soldados lançaram-se sobre o que se chamava de

[bair o] Delta, onde se concentravam as casas dos judeus, e executaram

as ordens, não sem derramamento de sangue de seu próprio lado”. Os

romanos então se entregaram a um massacre ainda pior do que o dos gregos e


dos egípcios em agosto de 38: “Eles não tiveram piedade da infância nem
respeito pelos velhos, e foram matando tudo a sua passagem, a ponto de fazer
com que o bair o todo fosse lavado por rios de sangue:
88

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

50 mil cadáveres amontoaram-se, e os sobreviventes não teriam sido

poupados se não tivessem implorado”, ainda relatou Joseph.


Cinquenta mil mortos, ou seja, entre a quarta e a quinta parte da

população judia de Alexandria. Alguns autores suspeitam que Flavius

Joseph tenha exagerado mais uma vez, mas a contagem exata não era

naquela época tão fácil quanto em nossos dias, uma vez que a cidade não

tinha registros civis. Houve, de qualquer modo, dezenas de milhares de

mortos; e, afinal, essa contagem importa tão pouco quanto a dos campos

de extermínio. São a extensão e a monstruosidade do ato que nos enregelam. Um


pogrom como aquele era desconhecido da própria história de Roma: o massacre
de agosto de 38 tinha sido em princípio uma ação das

populações gregas, sustentada por um prefeito enlouquecido de angústia

e em seguida desaprovada, e mesmo que as tropas romanas tivessem

cometido excessos ter íveis durante suas guer as, foram sempre em um

contexto militar. Mas naquele momento não era o caso, a reação tinha

sido desproporcional à provocação. Tibério Alexandre poderia ter contido a


tropa não somente por ser judeu, mas também por ser responsável pela
população de Alexandria, sem contar o fato de que era sobrinho de

Fílon, o homem que fora a Roma pleitear a causa dos judeus. Poderiam

ter sido apenas algumas dezenas de vítimas. Ê o que toma o caso desse

judeu particularmente exemplar, se bem que muito pouco esclarecido.

Ele é a ilustração mais evidente da fissura entre a elite e a massa do povo

judeu, aqui mencionada.

Tibério Alexandre, em seu descontrolado furor, fez tábua rasa de sua

judeidade? Adotou o ponto de vista de Roma e ordenou o massacre de


“estrangeiros” sediciosos, tomando-se assim o primeiro judeu a ordenar

um massacre de judeus? E de que amplitude! E com que ódio! À primeira vista,


parece ter conseguido, sozinho, selar com sangue o fracasso filosófico de seu tio
Fílon, que tentou casar o judaísmo com a cultura grega: revelava-se, pois,
impossível a tolerância entre a romanidade e o judaísmo. Assim, Tibério
Alexandre teria adotado a opinião dos romanos, segundo a qual o crime dos
judeus seria inqualificável: acreditar em um

Deus não representável e único, considerando odiosas todas as outras

religiões e as nações que as praticassem. Se foi assim, esse funcionário


OS MASSACRES DE 66. 70, 115 E 132

89

não teria compreendido que sua traição o condenava à irracionalidade:

com efeito, ao não conceder aos judeus o direito de se defender por acreditar em
um Deus diferente, também não podia assumir plenamente os deuses romanos,
pois toda divindade merece respeito. A Ordem, o pilar

da Pax Romana, o dominara. E ficaríamos inclinados a comparar Tibério

Alexandre aos mais sinistros personagens da história do século XX.

A verdade é totalmente diferente: como personagem político de primeira


grandeza no mundo judeu e romano, o prefeito do Egito fora informado da
rebelião judaica que acabara de estourar na Palestina. Sabia

que estava sendo conduzida não por judeus “comuns”, mas por aqueles

que seu contemporâneo Flavius Joseph chamava de “bandidos”, bandos

de zelotes decididos a acabar com a humilhação da ocupação romana e

com as ameaças constantes de ver, por exemplo, estátuas de imperadores

ou de deuses nus erigidas dentro do Templo ou das sinagogas. O comportamento


desses “bandidos” era comparável ao dos macabeus, cuja revolta mesmo assim
conseguira abalar o jugo dos reis selêucidas e dar à

Judéia e a Israel muitas décadas de independência e dignidade, ao menos

aparente, durante o reinado dos asmonianos. Mas, para os judeus roma-

nizados eles eram provocadores, ter oristas.

Para compreender a evolução do anti-semitismo a partir do século I,

é útil reexaminar aqui as cor entes do judaísmo e a fissura que elas provocaram
no povo judeu, pois essa fissura é que iria comandar seu destino nos séculos
seguintes. É preciso examinar aqueles judeus que outros judeus tomavam por
inimigos.

Quem eram os zelotes? Eram um ramo saído do tronco da dissidência que se


formou no século I antes de nossa era com os fariseus. Estes defendiam a Lei
mosaica contra os soberanos selêucidas, depois contra os

soberanos asmonianos quase paganizados. Os “essênios”, surgidos quase


ao mesmo tempo, foram o primeiro ramo saído desse tronco, e os zelotes,

que por sua vez surgiram no século I, representaram a última de suas

ramificações. Tomou-se consciência de sua existência por volta do ano 6

ou 7 na Galiléia, por ocasião da primeira revolta de Judas, o Golanita, contra os


romanos. Constituíam-se basicamente de bandos armados e continuariam assim
até a destruição de Jerusalém no ano 70, após o que só
90

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

de maneira episódica se ouviria falar a seu respeito. O parentesco dos

zelotes com os fariseus está provado por um fato sem ambigi idade: os
partidários de Judas, o Golanita, aderiram à teologia farisaica, que seu chefe
reformou para produzir uma teologia pessoal, dita a “Quarta Filosofia”.

Não se pode reduzir os zelotes apenas à dimensão política: eles não

eram meros resistentes ter oristas, eram também movidos por um messianismo
apocalíptico que cabia em poucas palavras: este mundo está podre, dentro em
breve o Senhor enviará um messias para destruí-lo e

restaurar o esplendor de Israel do qual será o rei. Fariseus, “essênios” e

zelotes eram os herdeiros diretos da filosofia de Moisés, para quem Deus

não era uma entidade indiferente, mas intervinha diretamente no mundo. A


Revelação na Sarça Ardente e a aparição sobre a montanha, ocasião em que
confiou as Tábuas da Lei ao homem que fez Seu povo sair do

Egito são as provas da intervenção divina. Era o que os diferenciava


fundamentalmente dos saduceus, que não acreditavam na intervenção de Deus
nem na Providência, nem tampouco na alma, nos anjos e na ressurreição dos
mortos. A atitude dos zelotes, os mais radicais dos resistentes, poderia ser assim
resumida: “Depende de nós fazer com que ele volte a

proteger nosso destino e provocar a intervenção do Todo-Poderoso.”

Os fariseus foram muitas vezes acusados de indiferença em relação à

espiritualidade bem como à condução das questões de seu povo.

Acusação infundada: como não tinham poder, não queriam sujar as mãos

participando do governo saduceu. Mas, na época de Jesus, devem ter-se

deixado tomar pelo oportunismo, daí as invectivas que este último lhes

dirigiu ao acusá-los de serem “como sepulcros caiados” cujo interior está

imundo e quando bradou: “Desconfiem do fermento dos fariseus e dos

saduceus”,2 ou seja, de seus ensinamentos. Essas invectivas revelam tanto a


atitude de Jesus quanto dos acusados por ele. Refletem a opinião dos zelotes,
para quem os fariseus eram omissos e os deixavam ser perseguidos. E também
encontravam eco na dos “essênios”, que recusavam qualquer contacto com o
clero de Jerusalém.

O messianismo dos zelotes era o mesmo dos “essênios”, e a clas e


OS MASSACRES DE 66, 70, 115 E 132

91

sacerdotal de Jerusalém — a dos saduceus, portanto — tinha por ambos

uma aversão praticamente igual à que os “essênios” e zelotes nutriam a


seu respeito. Aquela esperança messiânica parecia nefasta ao clero: o

advento de um messias, ou seja, especificamente de um homem que teria

recebido a dupla unção de rei e grande sacerdote, só poderia provocar

derramamento de sangue, pois es e rei e grande sacerdote seria evidentemente


hostil a Roma e desencadearia uma guer a de libertação. Era exatamente o que
esperavam os discípulos de Jesus: “Nós temos a esperan​

ça de que seja ele o homem que irá libertar Israel”, explicaram ao desconhecido
que encontraram na estrada de Emaús e que se revelaria mais tarde ser o próprio
Jesus.3 Essa esperança era, pois, ao mesmo tempo religiosa e nacionalista. O
apocalipse era indissociável do messias e da libertação de Israel, e os que
aguardavam um messias estavam se preparando para destruir o mundo. Não se
pode, aliás, compreender a história de

Jesus sem esta referência específica: “Todo homem que se pretende rei

desafia César”, gritavam os judeus que pediam a crucificação de Jesus.

Foi es a a razão pela qual em 30 ou 33, logo que correu a notícia de

que Jesus, de quem se conheciam os vínculos com os “essênios”, fora

anunciado como Messias, o clero de Jerusalém encolerizou-se e conde-

nou-o à morte, e depois, para reforçar, mandou crucificar entre dois

“bandidos”, que na verdade eram zelotes. “Convém a vocês que um só

homem morra pelo povo, para não perecer a nação inteira”, declarou

Caifás aos judeus.4 Impossível ser mais claro.

Para Tibério Alexandre, assim como para Flavius Joseph e para os

saduceus e outros grandes burgueses judeus, os “bandidos” zelotes eram

bandos de ar uaceiros inimigos dos judeus. O Conselho dos Anciãos e a


alta burguesia judia de Alexandria tinham exatamente a mesma opinião

que ele: a prova era que, em 73, três anos após a primeira queda apocalíptica de
Jerusalém, quando sicários judeus evadidos da Palestina chegaram ao Egito e
tentaram lá fomentar distúrbios, foram os próprios judeus da

alta burguesia que, às instâncias do Conselho, prenderam 600 deles,

foram atrás dos outros até o Alto Egito e os entregaram aos romanos, que

os torturaram e condenaram à morte. E verdade que alguns desses sicários


haviam assassinado judeus que tentaram fazê-los voltarem à razão.5
92

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Mas a mesma alta burguesia não hesitou quando o prefeito Lupus mandou fechar
o templo judeu de Onias: era um antro de insurgentes.

Para Roma, existia uma única “nação judia”, mas para as clas es dirigentes
judias no conjunto do mundo romano essa nação era partilhada pelos que se
preocupavam antes de mais nada em sobreviver, ou seja, de

um lado a clas e dos eruditos, filósofos e intelectuais e, de outro, a plebe

ignorante e primitiva, agitada por agentes de sedição — zelotes e “essênios” —


que se prestavam a ações subversivas e suicidas, perigosas para a totalidade do
povo. Em Jerusalém, assim como em Alexandria e provavelmente em outras
colónias judias do Império, reinava o consenso de que o judaísmo não exigia que
se pegas e em armas contra os romanos,

consenso que era próprio de uma classe abastada, helenizada como o

eram os judeus da Palestina à chegada dos selêucidas. Esses judeus, de

alguma maneira “laicizados”, rejeitavam qualquer ambição política e

nacionalista judia.6

Não faz, pois, nenhum sentido acusar de anti-semitismo os judeus

que se esforçavam para reprimir ar oubos revolucionários e nacionalistas:


Tibério Alexandre e os outros burgueses eruditos que execravam os

“bandidos” permaneciam fundamentalmente judeus. Eles foram apenas

judeus que entraram na história exercendo o que, a partir do séculoXIX,

chamou-se de Realpolitik. Sentiam aversão e desprezo pelos zelotes e

essênios “anistóricos”, que não se davam nem queriam se dar conta de

que não estavam mais no tempo de Moisés nem de David, muito menos

no dos macabeus: a religião não podia mais ser assimilada à política. Os

acontecimentos que se seguiram iriam dar-lhes, por sinal, razão, a longo

e a curto prazo. No longo prazo, o judaísmo não sobreviveria às perseguições


dos séculos posteriores a não ser pela renúncia ao nacionalismo.
No curto prazo, os zelotes iriam justificar a aversão que os judeus helenizados
desenvolveram em relação eles, perpetrando o mais pavoroso crime da história
dos judeus: a destruição de Jerusalém.

À primeira vista, esse desastre não entraria no âmbito do anti-

semitismo. Na verdade, contribuiu enormemente para ele, pois sua loucura


projetou sobre o mundo uma imagem sem precedentes de loucura assassina e
destrutiva especificamente judia. Pode ter sido provocado por
OS MASSACRES DE 66. 70. 115 E 132

93

apenas uns poucos bandos tomados de um fanatismo apocalíptico e suicida, mas


poucas pessoas estavam naquela época aptas a distinguir entre os zelotes e o
resto dos judeus; fez-se, então, o amálgama.
O único relato que se conhece é o de Flavius Joseph;7 ele é longo e

muito pormenorizado, podendo ser assim resumido: expulsos pelos

romanos, os zelotes refugiaram-se em Jerusalém, à época cidade aberta a

todos os judeus e sem guarnições. Eles ocultaram o objetivo dos combates de


que tinham participado, exaltando o próprio heroísmo e chegando a convencer os
mais jovens a se unir a eles. Em 68, Vespasiano cercou a

cidade com 70 mil soldados de infantaria e 10 mil cavaleiros. Um após o

outro, bandos de zelotes, “pois esse era o nome que tinha sido dado

àqueles patifes”, chegaram à cidade; esta resistiu ao assalto dos romanos,

mas os víveres começaram a faltar. Os “bandidos”, diz Joseph, começaram a


recorrer à pilhagem e ao assassinato “não à noite, mas em pleno dia e
começando pelas mais eminentes personalidades”. Agarravam-nas,

atiravam-nas na prisão e depois as degolavam. Reinava o terror. O clero

revoltou-se: os zelotes decidiram então escolher por sorteio quais sacerdotes


seriam executados. Entraram no Templo com os pés sujos de sangue. Os zelotes
não levaram em conta a santidade daquele lugar que os essênios, aliás,
execravam e a respeito do qual Jesus dissera que poderia

destruí-lo e reconstruí-lo em três dias: “O templo tornou-se para eles

uma base de operações, um refúgio e um depósito de armas contra nós

(os judeus não zelotes)”, esclarece Joseph.

O grande sacerdote Ananias exortou o povo a rebelar-se contra os

zelotes, que exerciam, contudo, o papel de defensores da cidade. Seus

propósitos eram de fato provocadores: ‘A paixão de vocês é pela escravidão,


pelos déspotas, como se nós tivéssemos recebido de nossos ancestrais uma
tradição de servilismo.” Mas os zelotes eram “difíceis de ser abatidos, haja vista
seu número, sua juventude e sua intrepidez”. Ananias
foi degolado, a cidade ficou coberta de “cadáveres atirados para servir de

pasto aos cães e aos animais selvagens”. Jerusalém ficou entregue à tirania
sanguinária de João bar Gischala à testa de seis mil homens, com quem Simon
bar Gioras, dispondo de 10 mil homens, passou a disputar
94

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

o poder. Muito breve foi a vez de Eleazar bar Simon chegar para disputar

sua parte do poder, com 2.400 homens.


Jerusalém encontrava-se à mercê daquelas três facções. Os zelotes de

Simon e de Eleazar, emboscados no Templo transformado em praça-for-

te, atacavam os zelotes de João; os zelotes matavam-se entre si por todos

os lados. O povo acabou exigindo a chegada dos romanos, diz Joseph.

Com falta de víveres, aqueles três bandos pilhavam qualquer um. “Os

cadáveres de estrangeiros misturados aos dos judeus, os dos laicos aos

dos sacerdotes, estavam quase petrificados em um só bloco e o sangue

desses mortos de todas as procedências juntava-se em poças nos pátios

sagrados.”

A descrição feita por Joseph do cerco de Jerusalém é surpreendente

em seu horror premonitório: “Os sediciosos batiam-se andando sobre os

cadáveres empilhados uns sobre os outros e, como respiravam o desespero dos


mortos estendidos sob seus pés, seu furor tomava-se ainda mais selvagem. .”
Loucos de fome, os zelotes chegavam a transpassar os ânus

dos judeus com lanças e a estripá-los para saber se haviam comido recentemente.
Atiravam os recém-nascidos no chão, degolavam qualquer ser humano que não
fos e um dos seus. “Os doentes não tinham força para

enterrar os membros da própria família, e por causa da grande quantidade

de mortos as pessoas que ainda tinham alguma saúde jogavam-nos por

cima dos que estavam sendo enter ados e muitos iam para o túmulo antes

que a morte os tivesse vindo buscar.” Suspeitando que pessoas escondiam

ouro nas entranhas, numa só noite os zelotes estriparam duas mil...

“Alguns chegavam a um tal desespero, que vasculhavam esgotos e estercos


velhos de vaca, e comiam os detritos que conseguiam recolher. .”

Era exatamente o que Jesus havia anunciado em sua profecia: “Em verdade lhes
digo que todas es as coisas hão de vir sobre esta geração.” Ele havia avaliado a
violência dos zelotes e suas consequências apocalípticas.

Um dos ápices absolutos do horror na história do mundo, verdadeiramente fértil


em hor ores, foi alcançado: os zelotes judeus massacraram os judeus de
Jerusalém com uma ferocidade que ultrapassa o entendimento. O relato de
Joseph é de uma Shoah antes da Shoah, porém mais absurda por ter sido
perpetrada por judeus contra outros judeus.
OS MASSACRES DE 66. 70. 115 E 132

95

Por fim, Tito atacou pelo oeste, apossando-se da terceira parte (inacabada)8 das
muralhas, em seguida da segunda, da torre Antonia (que dominava o átrio do
Templo), depois do Templo propriamente dito e
finalmente da cidade alta. Durante es e tempo, os zelotes, sentindo próxima sua
derrota, redobraram a crueldade. Simon condenou à morte o sacerdote Matias e
seus três filhos, e porque este pedira para ser executado antes dos filhos, Simon
mandou degolar os filhos diante dele antes que fosse executado. No final, os
romanos tomaram a cidade onde,

entrincheirados no Templo, os zelotes ainda resistiam. Os assassinatos

não paravam: “Civis sem força e sem armas, representando uma grande

parte da população, eram degolados no local em que se encontravam:

uma multidão de cadáveres se amontoava junto do altar; ao longo dos

degraus do Santuário escor ia o sangue e rolavam os corpos das vítimas.”

O Templo e o santuário foram sucessivamente incendiados contra a vontade de


Tito, que tentou salvar aquele magnífico edifício, com suas portas de ouro e
prata. Segundo Joseph, 115.880 cadáveres foram evacuados pela única porta de
Jerusalém guardada por Tito; tinham sido mortos

entre 1? de maio e 20 de julho do ano 70.

Joseph acrescenta também que, no final do cerco, os romanos contaram 97 mil


prisioneiros, e o número de pessoas que haviam morrido durante o cerco
alcançara 1.100 mil; cifra evidentemente excessiva ou

mal transcrita por copistas posteriores, não inocentes em seu exagero: a

metade da população inteira da Judéia teria sido morta. Em tempos normais, a


população de Jerusalém não excedia de muito os 20 mil habitantes da época de
Jesus,9 talvez umas 30 mil pessoas cerca de 30 anos mais tarde. Mesmo levando
em conta os bandos de zelotes que lá se instalaram

na ocasião do cerco, dificilmente se chegaria a 40 ou 50 mil almas. De

mais a mais, nem todo mundo mor era durante o cerco, e o número de

mortos dificilmente poderia ter excedido 20 ou 25 mil, o que já seria


enorme. É sobre esse ponto, aliás, que a credibilidade de Joseph tropeça.

Esse patrício judeu, romanizado a ponto de ter servido no exército romano,


execrava os zelotes, a quem chamava de “patifes”. Por isso os teria feito
endossar a totalidade dos mortos do cerco de Jerusalém? Teria ampliado uma
guerrilha de rivalidades entre facções até as dimensões de uma
96

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

guer a civil? Não é impossível. É evidente que Joseph escreveu A Guerra

dos Judeus em honra aos romanos, sem se preocupar com o fato de que,
muitos séculos mais tarde, seria julgado por outros leitores.

Contudo, o horror do incêndio de Jerusalém não se mede pelo número de


mortos, mas pelo horror e suas consequências: não só Jerusalém foi desfigurada,
como também o judaísmo sofreu perdas incalculáveis. Um

fariseu, o rabino "Yòhanan ben Zakkai, obteve de Títo, em pleno cerco de

Jerusalém, a autorização para car egar os rolos da Torá que tinham conseguido
ser salvos do saque e partiu para abrir uma escola na costa, em Jamnia.

Os judeus de outras colónias não protestaram, ponderam certos

autores, contra a destruição da Cidade Santa. Como poderiam protestar?

Para eles, duas vultosas consequências decorreram daqueles acontecimentos. A


primeira era que não poderiam mais enviar contribuições ao Templo, uma vez
que ele não mais existia; esse dinheiro seria dali em

diante destinado ao Tesouro romano.10 A segunda era que o rito de peregrinação


anual da Páscoa estaria anulado ipso facto. A judeidade perdera suas instituições
sacerdotais, sua capital, seu centro de gravidade. O povo

perdera sua unidade. A unidade do judaísmo fora quebrada.

Dois anos mais tarde, em 72, a resistência judaica iria escrever com

sangue, em Massada, um dos capítulos mais marcantes da história dos

judeus. Os zelotes refugiados com suas mulheres e seus filhos — 960 ao

todo, naquela fortaleza edificada por Herodes, o Grande, — sofreram

um cerco dos romanos. Sabendo-se perdidos, degolaram-se uns aos

outros. Quando a armada romana penetrou a cidadela, foi tomada de

estupefação diante do suicídio coletivo, do qual escaparam duas mulheres, as


duas únicas testemunhas.

No mesmo dia e na mesma hora, diz Joseph, em que Jerusalém ainda se


encontrava em meio aos combates (os zelotes de Eleazer tinham massacrado a
guarnição do romano Metilius, atraindo-a para uma emboscada), os habitantes de
Cesaréia atiraram-se sobre os judeus para massacrá-los. O que provocou uma
nova revolta dos judeus, que se organizaram em bandos e devastaram as cidades
da Decápolis, Filadélfia, Hesbon, Pela, Citópolis e numerosas outras cidades e
povoados dos tírios
OS MASSACRES DE 66, 70, 115 E 132

97

e dos sírios (eles ar asaram Antedon e Gaza), provocando uma reação da

mesma forma sangrenta dos sírios: “E foi assim que os habitantes de


Damasco, sem nem sequer poder forjar um pretexto plausível, cobriram

a cidade de desonra pelo massacre de 18 mil judeus, degolados com suas

mulheres e suas famílias.”1

Época assustadora, em que tudo parece vacilar: com efeito, o apocalipse abateu-
se também sobre os romanos. Nero suicidou-se em 69, e em seguida a ficção
imperial, baseada no culto da força e da intriga, desabou

em meio a um fragor de guer a civil: o imperador Galba foi assassinado

em pleno Fórum, e Othon, que o sucedeu no trono, fez a guerra contra

o pretendente Vitelius, escolhido pelas legiões da Germânia. Iniciou-se

uma guer a civil que provocou uma imensa carnificina. Vitelius foi degolado
logo em seguida, ao sair de um festim, em pleno centro de Roma, depois de um
reinado de oito meses e 20 dias. . Cinquenta mil cadáveres

escoltaram-no aos Infernos.

Nesse contexto, só o gládio imperava. Os romanos não tiveram

nenhum escrúpulo em “pacificar” a Palestina da maneira conhecida,

queimando cidades inteiras a sua passagem — Chabulon, Cesaréia, Jopé

— e matando judeus aos milhares. Esses não pareceram se dar conta de

que a paisagem política e espiritual mudara. Grande parte dos judeus do

Mediterrâneo oriental deixou-se tomar pelo espírito apocalíptico e auto-

destrutivo dos zelotes, enquanto os judeus ricos se retraíram, tentando

conter um incêndio no qual cor iam o risco de perder tudo.

No ano de 115, décimo oitavo ano do reinado do imperador Trajano,

relata Eusébio de Cesaréia,12 uma lufada de revolta agitou, com efeito, os


judeus do Mediter âneo oriental e do Oriente Médio, de Cirenaica, de

Chipre e, com menos intensidade, da Palestina e da Mesopotâmia, assim

como do Egito. É possível que os partos, que os romanos não conseguiam


subjugar, tenham desempenhado algum papel nessa agitação, servindo-se dos
judeus como tochas humanas para provocar incêndios

revolucionários aqui e ali, e é certo que os partos alimentavam as aspira​

ções nacionalistas dos judeus: foi desse modo que nomearam um etnar-
98

HISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

ca do Oriente independente, com poderes mais extensos do que seu

homólogo romano, provavelmente para prejudicá-lo.


Cansados de ser massacrados ao sabor dos humores de seus inimigos

e ar iscando tudo dessa vez, os judeus tomaram a iniciativa de uma ofensiva


contra seus opressores: no Egito, gregos e macedônios, além dos próprios
romanos. No Egito, a revolta durou três anos, de 115 a 117, e,

para reprimi-la, os romanos precisaram apelar para tropas estrangeiras de

guarnição e para um chefe especialmente nomeado para a circunstância,

Marcius TUrbo. Contaram-se milhares de mortos por toda parte, sobretudo nas
terras dos insurgentes, como seria esperado. A pilhagem das colónias e dos bens
dos judeus foi imensa. Em Alexandria, a maior parte

dos bens judeus foi confiscada, a grande sinagoga foi destruída e, pela

primeira vez na história, os judeus foram confinados pelo prefeito

Quintus Ramius Marsalis dentro de um verdadeiro gueto, do qual só

podiam sair em circunstâncias determinadas. Depois dos pogroms, o

gueto.É preciso dizer que o furor levara os judeus a destruir numerosos

monumentos da cidade, incluído o Nemeseum, templo da deusa grega

Nemesis, protetora dos exércitos e das raças, deusa também da vingança

—escolha simbólica e possivelmente funesta. Alexandria fora gravemente


danificada pelos judeus, tendo cabido a Adriano reconstruí-la. Foi nessa cidade,
contudo, que eles sofreram menos sevícias, pois em Alexandria a revolta foi
mais rapidamente contida do que no resto do país, o que

diminuiu o desencadeamento de paixões de ambas as partes.

Por volta do ano 120, sob o reinado de Adriano, parece ter estourado

um conflito entre os judeus e os helenos, e provavelmente também os

egípcios, a propósito do estabelecimento de judeus na cidade e de uma


história de escravos fugidos.13 Mas es a lufada não parece ter apresentado a
amplitude das duas precedentes, e é provável que um bom número de outras
escaramuças não registradas pelos cronistas tenha ocor ido em

Alexandria e em outras colónias judias do Mediter âneo.

A insur eição de Simão bar Kochba em 132 foi a última grande manifestação da
rebelião judia sob o Império. Bar Kochba, “O Filho da Estrela”, apresentava-se
como o Messias, tendo sido reconhecido como
OS MASSACRES DE 66. 70, 115 E 132

99

tal pelo maior rabino de seu tempo, Akiva ben Joseph. As perdas de vidas

humanas e de bens materiais ao final de três anos de uma verdadeira


guer a foram inimagináveis: 580 mil judeus mortos em combate, outro

número imenso de mortos de fome ou queimados vivos, 985 cidades e

vilas destruídas, segundo Díon Cássio.14

Jerusalém foi ar asada, e Adriano mandou construir sobre ela uma

cidade romana, a Aelia Capitolina, onde foram edificados templos de

Baco, de Vênus, de Serápis. O templo de Júpiter Capitolino elevava-se

sobre o local do Templo. Jerusalém perdera seu nome. Um teatro,

banhos públicos, diversas construções como o Tetranynfon, o Dode-

capylon e os Quadra foram erguidos nas proximidades. E, como última

manifestação de anti-semitismo imperial, os judeus (mas não os cristãos

de origem não judia) foram proibidos de lá permanecer,15 além de a proibição


da circuncisão ter sido renovada, a fim de eliminar o judaísmo.

A história dos judeus sob o Império Romano fechou com humilha​

ção. Continuaram tolerados, mas dali em diante como indivíduos de

segunda classe. “Essênios” e zelotes desapareceram. Para os próprios

judeus o pior tinha-se produzido 50 anos antes: internamente, com a

atroz destruição da Cidade Santa pelas mãos dos judeus, e externamente

pelo gládio dos romanos. Quanto ao nacionaiismo judeu, ele iria se

estender por 20 séculos. O judaísmo iria mudar de natureza, despoliti-

zando-se.

Por mais odiosos que possam ter sido certos episódios deste capítulo, convém
destacar que os romanos nunca cogitaram da destruição dos judeus, como foi o
caso no decor er dos séculos posteriores. Também

não os obrigaram a repudiar sua fé, e os abusos que cometeram especificamente


em relação a eles, em nome do Império, foram limitados: os massacres de
Alexandria em 38 e 66 foram da responsabilidade de populações autóctones, e
não se tem conhecimento de fatos equivalentes em Roma ou em Corinto, por
exemplo. Além disso, esses abusos tiveram

sempre uma motivação política, que era a manutenção da Pax Romana.

Não existiu um racismo romano, e menos ainda xenofobia religiosa: os

romanos acolhiam todas as divindades e cultos estrangeiros, contanto

que não perturbassem a ordem pública. No século II antes da era cristã,


100

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Var on enumerava 30 mil deuses, e, sob o Império, os cultos estrangeiros

de ísis, Atis, Cibele e Mitra eram florescentes. Renan escreveu que até
mesmo o cristianismo por pouco foi suplantado pelo culto de Mitra. Mas

esses cultos não chegavam a ameaçar verdadeiramente a república nem o

Império, que na época eram ainda fortes o bastante para absorvê-los. O

judaísmo só se tornou perigoso e foi reprimido por trazer consigo as

ambições políticas de um povo.

Duas grandes lições podem ser retiradas dos capítulos que acabamos

de ler. A primeira é que os judeus entraram no mundo imperial romano

da maneira mais prejudicial para seu futuro: perpetraram contra si próprios


quatro episódios de perseguições ter íveis não em tempo de guerra, mas de paz:
38, 66,115 e 132. Também realizaram duas guer as civis ter íveis, a
desencadeada por Alexandre IVJaneu em 76 antes da era cristã, que fez mais de
50 mil mortos, e a do cerco de Jerusalém, que causou a destruição da cidade de
David e mortes incalculáveis. Sua imagem no

mundo mediter âneo alterou-se ir emediavelmente.

A segunda é que, mesmo tendo sido violenta e freqi entemente

odienta, a perseguição aos judeus durante o império foi essencialmente

cultural e política. Não cor espondeu a noção contemporânea de anti-

semitismo. Será diferente mais tarde.


OS MASSACRES DE 66. 70. 115 E 132

101

Bibliografia e notas críticas

1. A única fonte disponível sobre a revolta de 66 é Flavius Joseph (La Guerre


desJuifs,
I , 18, 6-11, trad. Pierre Savinel, Éditions de Minuit, 1977). Resta estabelecer
em que

medida a precursora “luta de classes” teria preparado o sucesso das


previsões de Paulo.

2. Lucas XXIV, 21.

3. João, XIX, 12.

4. João XI, 50.

5. La Guerre des Juifs, op. cit., VII, 8,1-4.

6. A esse respeito, Joseph fez por duas vezes alusão à repugnância que os
judeus

helenizados sentiam em tomar o partido dos zelotes na guerra que esses


travavam contra

os romanos, como, por exemplo, quando se recusaram ajuntar-se a eles em


Citópolis:

a...O que dizer dos judeus de Citópolis? Eles ousaram fazer uma guerra
contra nós em

nome dos gregos, mas se recusaram a nos ajudar, a nós, seus irmão de raça,
a expulsar os

romanos.” (La Guerre des Juifs, VII, 8, 364). Na realidade, os judeus de


Citópolis tinham

se recusado a fazer parte de uma expedição punitiva dos zelotes contra os


romanos (id. II,

18, 1) e os haviam expulsado. Fizeram mal, aliás, pois foram por sua vez
massacrados

pelos helenos.
1.
O caso desse historiador é excepcional. Joseph, autor de dois iivros de
referência,

as Antiquités judaiques e La Guerre des Juifs, é um dos raros autores aos


quais se pode atribuir o título de historiador, devido à precisão e à
abundância de suas informações. Judeu (Joseph ben Mathias), pertencente
por parte de pai a uma família sacerdotal e descendente por parte de mãe
dos reis asmonianos, foi recrutado pelos romanos, que souberam reconhecer
nele um personagem de elite: durante a insurreição da Judéia, foi nomeado

comandante-em-chefe das tropas romanas na face norte de Jerusalém. Foi


nessa ocasião

que adotou o nome com o qual passou à posteridade. Joseph pretendia, pois,
ser pró-

romano e pró-judeu, e é por esta razão que muitos historiadores vêem com
reserva seu

testemunho, alguns deles chegando até a refutá-lo por completo (thoroughly


unreliable,

“totalmente não confiável”, chegou a escrever Paul Johnson em A História


dos Judeus, o

que é no mínimo excessivo).

Joseph deve ser visto sobretudo como um patrício culto, determinado a


dissociar o

nacionalismo judeu da religião judaica. Assim como Fílon e como o


sobrinho deste último, Tibério Alexandre, pertencia a uma classe social
aristocrática e helenizada, que considerava que a religião não implicava
política, e vice-versa; era o oposto de um escritor

“engajado”. Quando relatou longamente a intervenção de Tibério


Alexandre no Egito e o

massacre dos judeus insurgidos contra Roma, apresentou no fundo um


reflexo de sua

própria experiência: ele próprio exortara os judeus sitiados em Jerusalém a


render-se, ao

mesmo tempo tentando evitar as flechas que eles lhe lançavam. A morte era
para ele a
102

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

derrota terminal e ele pagou para ver: esteve do outro lado da barreira, o
dos judeus perseguidos, quando em Jotapata, em 67, viu-se cercado durante
47 dias por aquela mesma armada romana da qual ainda não fazia parte.
Quis fugir, mas foi impedido. Os sitiantes
recorreram ao suicídio recíproco por sorteio, como iriam fazer em Massada
em 72; aquele que tivesse o número mais baixo tombava sob os golpes do
que tinha o número seguinte. Seu destino, ajudado por sua inteligência,
poupou-o: aconteceu de ser um dos dois últimos, com um número de
executor; persuadiu então o que ele deveria matar a permanecer vivo e os
dois homens sobreviveram ao pacto infernal que havia matado “40 pessoas
importantes”.

Para ele, os habitantes de Jerusalém eram, pois, vítimas e prisioneiros de


um bando

de patifes que os estavam conduzindo ao desastre. Pois ele conhecia bem o


estado de

espírito destes últimos e mesmo um pouco do estado de espírito dos


“essênios”, pelos

quais não demonstrava infelizmente grande interesse, o que nos valeu


testemunhos em

primeira mão e de boa qualidade. Sua aversão pelos zelotes, obcecados pela
idéia de uma

catástrofe final, não foi dissimulada um só instante: aqueles iluminados


sanguinários eram

inimigos da nação judia, pois se opunham a Roma, o que só servia para


provocar derramamentos de sangue. Sua boa-fé me parece sincera ou, pelo
menos, sua objetividade.

É provável que Joseph tenha deturpado um pouquinho a verdade histórica.


E desse

modo enegrecido excessivamente os zelotes, sem se perguntar o porquê de


tantos “bandidos” entre os judeus, e sem expor sua ideologia. Também
exagerou de maneira ostensiva o número de mortos durante o cerco de
Jerusalém. Mais uma vez Joseph, da mesma maneira que Tácito, Suetônio,
Díon Cássio, não se conscientizou de quais seriam as exigências futuras dos
historiadores. Mesmo assim continua sendo uma fonte importante de
informações sobre a história judia e romana do século I.
Joseph não desejava renunciar nem às riquezas culturais helenísticas, nem
ao saber

político dos romanos, e acreditava que fossem compatíveis com sua


judeidade fundamental. Percebe-se facilmente que ele aspirava a um
ecumenismo, no qual os judeus continuassem a praticar sua fé em um
mundo não judeu. Por que não? O problema é que

quando fala dos judeus, está falando sobretudo de sua classe de letrados, e
sua função de

lugar-tenente dentro do exército romano ocultou-lhe os tormentos


nacionalistas de seu

povo. Hoje em dia dir-se-ia que Joseph era um partidário da Realpolitik ao


mesmo tempo

que um judeu laico. Mas os cristãos o tomaram como um espírito inferior,


por ter escolhido o campo oposto ao daqueles cuja mensagem iria triunfar
durante séculos, os partidários de Jesus. E para muitos judeus, ele cometeu
o pecado de ter vestido o uniforme dos que carregavam o gládio contra os
judeus. Joseph, com efeito, foi testemunha da cisão

final entre o judaísmo apocalíptico dos “essênios” e dos zelotes de um lado e


o judaísmo

ecuménico e laico dos saduceus. Tomou o partido do segundo. E sofreu a


maldição que

os chineses lançavam a seus inimigos: “Que vocês tenham que viver em uma
época interessante.”

8. Sua construção tinha sido começada no tempo de Herodes, o Grande, mas


os
romanos a interromperam.
9. Cf. Joachim Jeremias ,Jêrusalem au temps deJésus (Le Cerf, 1976).

10. Eusebius, Ecclesiastical History, 2 vol., trad. Kirsopp Lake e J. E. I.


Olton (The Loeb
OS MASSACRES DE 66, 70, 115 E 132

103

Classical Library, Harvard University Press, Cambridge, Mass., e William


Heinemann,

Londres).
11. Flavius Joseph, La Guerre desJuifs, VII, 8,368.

12. Esse enfrentamento foi relatado por A. Tchérikover e A. Fuks, nos Actes
des

martyrs paíens, em Corpus Papyrorum Judaicarum, 2 vol., 1968 e 1970. O


relato parece situar-se nos primeiros anos do reinado de Adriano.

13. Convém precisar que o grande sacerdote de Jerusalém não tinha, no


momento

da queda de Jerusalém, a livre disposição dos impostos coletados dos judeus


a título de

contribuição para o Templo; estava sujeito ao controle romano. Mais tarde,


contudo, os

chefes ou etnarcas das colónias judias do império recuperaram o direito de


retirar o dízimo do culto.

14. Histoire Romaine, IX, 3. A população inteira da Judéia na época devia


estar próxima dos dois milhões e meio (Nicholas de Lange, Atlas of
theJewish World, op. cit.).

15. Eles recuperaram brevemente o direito de permanência e de sacrifícios


durante

a dominação persa de Cosroes, de 614 a 629. Depois da cristianização do


império, em

seguida à conversão de Constantino, muito edifícios cristãos foram erguidos


em

Jerusalém. Em 637, o califa Omar apoderou-se da cidade e tomou o cuidado


de não provocar nenhum estrago, mandando construir em 688 a atual
mesquita El Aksa. A cidade iria permanecer nas mãos dos muçulmanos até
1917, quando Lorde Allenby tomou-a dos
otomanos.
II.

O ANTIJUDAÍSMO E O

ANTI-SEMITISMO CRISTÃOS
1.
O caso Saulo
O ANTIJUDAÍSMO DE PAULO E DA IGREJA PRIMITIVA NÃO ERA
ANTI-SEMITISMO

— AS OMISSÕES DOS EVANGELHOS CANÓNICOS E SUA


HOSTILIDADE AOS

JUDEUS — O ENIGMA DE SAULO/PAULO, FUNDADOR DA IGREJA:


POLICIAL

ROMANO OU DOUTOR DA LEI? — O GÉNIO DE PAULO —


PROBLEMAS, IMPOR​

TÂNCIA E CONSEQÚÊNCIAS DE UMA CIDADANIA ROMANA


CONTRADITÓRIA

Às vezes somos tentados a invocar um anti-semitismo cristão primitivo, que


seria de natureza totalmente diferente do anti-semitismo dos romanos. Seria o
caso de começar com o trabalho apostólico e teológico

de Saulo, mais tarde chamado de Paulo, verdadeiro fundador da Igreja

cristã nas cidades do Mediter âneo oriental. É, pois, essencial debruçar-

nos sobre os primórdios do cristianismo e sobre o homem que o criou.

Mas é essencial também colocar a seguinte premissa: as acusações,

muitas vezes virulentas e injustas, formuladas contra os judeus pelos primeiros


chefes da Igreja não podem de nenhuma maneira ser comparadas com o anti-
semitismo moderno. Este é a perseguição de uma minoria

por uma maioria, aquele, muito ao contrário, era a rejeição de uma maioria por
uma minoria: não era anti-semitismo mas, sim, antijudaísmo.

Nos primórdios do cristianismo, antes do ano 70, existiam, de acordo

com as mais plausíveis estimativas, entre seis e sete milhões de judeus no


Império, sendo uns dois milhões e meio na Judéia e cerca de quatro

milhões e meio na diáspora, ou seja, um décimo da população do

Império,1 enquanto os cristãos não representavam mais do que 100 ou

200 mil almas no final do século I. De mais a mais, sua unidade já se

encontrava comprometida por heresias.2 Enfim, esse antijudaísmo com-


108

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

portava uma particularidade car egada de consequências: na época, eram

os cristãos das “sinagogas nazarenas” os perseguidos pelos judeus,


enquanto esperavam ser perseguidos pelos romanos.

Qualquer paralelo com os anti-semitismos posteriores é, pois, infundado.Esse


antijudaísmo está esboçado nos quatro Evangelhos ditos canónicos, ou seja,
reconhecidos como autênticos pelo direito canónico (“cânone” significa norma)
católico na metade do século I .3 Sua leitura

deixou os historiadores perplexos. Assim, o primeiro na ordem tradicional, o de


Mateus, teve o grande cuidado desde as primeiras linhas de estabelecer a
ascendência davídica de Jesus, fazendo dele um judeu por excelência e, ainda
mais, um judeu predestinado à realeza; mas todos, principalmente o quarto, o de
João, referem-se sem cessar aos judeus como estrangeiros e inimigos, sem
jamais explicar que os saduceus e bom

número de fariseus tinham boas razões para desconfiar de um messias,

como foi exposto mais acima, mas que uma boa parte do povo, os amha-

retz, os zelotes e a minoria dos “essênios”, dedicava a Jesus uma devoção

fervorosa. Os que jogaram palmas diante de seu jumento no momento

da entrada final em Jerusalém não foram os que o escarneceram depois

de sua prisão; mas aqueles que o iriam coroar rei e os saduceus alarmados

é que se opuseram a esse projeto e provocaram uma rebelião para se livrar

do agitador.

Se sabiam disso, os autores dos Evangelhos canónicos não disseram

uma única palavra: no início do século I , a cisão entre os adeptos da seita de


Jesus, ou cristãos, e os judeus estava consumada. Aqueles autores não iriam
oferecer argumentos aos ouvintes (os Evangelhos eram lidos

principalmente em público, para populações cuja taxa de alfabetização

era baixa ou nula) que servissem para fazê-los compreender historicamente a


tragédia de Jesus. Preferia-se o mais das vezes esquecê-la, mas os evangelistas
eram antes de mais nada propagandistas, não historiadores.

Por falta de perspectiva, ou mesmo para esconder qualquer perspectiva,

abstiveram-se de dizer que Jesus, o Galileu, quer dizer, originário de um

território particularmente rebelde ao clero de Jerusalém tanto quanto aos

ocupantes de todas as denominações, e chefe de uma facção de galileus


O CASO SAULO

109

(com exceção de Judas Iscariótis), representava a massa do povo judeu.

Do povo no sentido social, não etnológico.


A leitura dos outros Evangelhos e dos textos apócrifos4 produz igualmente
perplexidade, mas por razões diametralmente opostas: neles quase não se
encontra hostilidade para com os judeus. Muito pelo contrário, encontram-se
sobretudo referências à afeição dos apóstolos pelos judeus

e à veneração dos judeus por Jesus, como nestas passagens dos Atos de

Felipe, no qual este apóstolo declara: “Meus irmãos, filhos de meu pai,

vocês são a riqueza de minha raça segundo Cristo...” e onde, mais adiante, a
judia Nicanora, mulher do procônsul da Síria, tendo acabado de ouvir o
ensinamento de Felipe, clama: “Eu sou judia, filha de judeus.

Fale-me na língua de meus pais. .” Decididamente, ainda está porvir um

trabalho comparativo imparcial sobre as influências que nortearam a

redação dos Evangelhos canónicos e dos apócrifos.

Veremos mais adiante as razões dessa diferença radical: as autoridades que


coordenaram a redação dos Evangelhos canónicos são totalmente diferentes das
que coordenaram a redação dos apócrifos.

O mais desconcertante paradoxo da história das religiões talvez seja a

afirmação de que o cristianismo, tal como o conhecemos, foi inventado

pelo homem que participou da luta feroz do sinédrio de Jerusalém contra os


zelotes e outros messianistas: Saulo, renomeado Paulo à maneira romana. Pois o
fundador da igreja romana — e como foi romana! —

começou sua car eira como perseguidor dos discípulos de Jesus: ele foi

— mais um paradoxo — o único santo apontado como responsável pelo

assassinato de outro santo, o protomártir Estevão. Este último foi um dos

primeiros neófitos a fazer parte do Conselho Apostólico de Jerusalém,

mas foi acusado de blasfémias5 pelo grupo da Sinagoga dos Libertados de


Jerusalém, que contava com cirenaicos, alexandrinos, cilicianos e asiáticos. Foi
condenado ao apedrejamento pelo grande sacerdote, provavelmente em 33-34.
Antes de concluírem a tarefa, os executores colocaram

“suas próprias roupas ao pé de um jovem de nome Saulo.”6 Ora, tal gesto


demonstrava submissão dos executores a um chefe ou, pelo menos, a um agente
a mando do Sinédrio, encar egado de velar pelo bom prosse​
110

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

guimento do apedrejamento. Teria Saulo se oposto àquilo? Não: “E

Saulo estava entre os que aprovaram aquele [de Estevão] assassinato.”7


Para confirmar, o autor dos Atos dos Apóstolos acrescenta: “Era uma

época de violenta perseguição contra a Igreja de Jerusalém; e estavam

todos, com exceção dos apóstolos, espalhados pelos distritos rurais da

Judéia e da Samaria (. .) Durante es e tempo, Saulo perseguia a Igreja;

investigava as casas uma por uma, prendendo os homens e as mulheres e

enviando-os para a prisão.”8 Tratava-se, pois, de um jovem que tinha

poder: fazia revistas dentro das casas e provavelmente não ia sozinho.

Uma milícia o acompanhava; prendia as pessoas e enviava-as para a prisão por


pertencerem aos quadros dos sectários de Jesus: era um algoz a serviço do
Templo, detentor de poder de polícia que o autorizava a prender as pessoas e
mandá-las para a prisão. Evidentemente, era um funcionário da polícia do
Templo e do partido dos saduceus, e, pelo visto, influente, pois, quando
perseguia os discípulos de Jesus, tinha a possibilidade de ir até a casa do
“soberano sacrificador”, ou seja, do grande sacerdote, para solicitar-lhe ordens
escritas dirigidas às sinagogas de

Damasco, “a fim de, caso lá houvesse partidários da nova doutrina, trazê-

los amar ados a Jerusalém”.9

Esse homem merece algum exame. Foi, com efeito, um dos personagens mais
importantes da história das religiões, um igual de Moisés e um dos génios mais
discutidos e menos conhecidos da história. Um dos mais

contraditórios também, pois sua obra foi tão grandiosa quanto seu personagem
foi suspeito.

Paulo é discutido porque sua criação, a Igreja, foi a grande instigadora do


segundo período do anti-semitismo, que durou perto de 16 séculos até seu
arrependimento público, abordado na terceira parte desta obra.

Existe alguma relação entre o fundador e a perseguição de que os judeus


foram objeto por parte dos cristãos, desde os primórdios? Para responder

a isto é preciso examinar de perto o personagem e a biografia do

“homem-charneira” que foi Saulo/Paulo. Uma tradição mantida pela

Igreja tem-se esforçado ao longo dos séculos (a ponto de negar as evidências)


para inscrever Paulo no judaísmo, com vistas a legitimar o cristianismo. Da
mesma maneira que os evangelistas tentaram — ingenuamente
O CASO SAULO

11

— fazer a genealogia de Jesus remontar a David, assegurando que ele

teria sido concebido pelo Espírito Santo. Desse modo, o cristianismo


apareceria como um ramo natural do judaísmo. Ocorre que os fàtos contestam
inteiramente a tese da judeidade de Saulo/Paulo.

Paulo dizia-se judeu “nascido em Tarso, na Cilicia, educado nessa

cidade” e vindo para Jerusalém estudar “ao pé do rabino GamalieF. Por

duas vezes teria chegado a esclarecer, na verdade a pessoas que não eram

judias, portanto pouco informadas das realidades do mundo judeu, que

descendia da tribo de Benjamim.10 Asserção desprovida de sentido, pois,

como observa Hyam Maccoby,1 “era arriscado para qualquer judeu

daquela época pretender realmente pertencer à tribo de Benjamim.

Embora uma parte dessa tribo tivesse sobrevivido na Palestina após a

deportação das Dez Tribos por Salmanassar da As íria, com o tempo os

benjaminitas foram praticando com tanta frequência a exogamia com a

tribo de Judá, que acabaram perdendo a identidade separada e se tornaram

todos judeanos (. .) A distinção entre judeanos e benjaminitas, ao não

corresponder a nenhuma significação religiosa, carecia de motivo para

ser conservada”. Maccoby conclui que a pretendida ascendência benja-

minita era uma fraude.

Porém, mais tarde, Paulo reivindicou por três vezes a cidadania

romana: a primeira, ao ser preso pelos romanos em Felipos, acusado de

fomentar agitação e atirado à prisão após ter sido flagelado como um servo; a
segunda, quando foi de novo preso pelos romanos emjerusalém no átrio dos
Gentios e, ameaçado de flagelação, lembrou ao centurião que
um cidadão romano não podia ser flagelado; o tribuno Cláudio Lysias,

alertado pelo centurião, veio inter ogar Paulo: “Diga-me, você é romano?”, e
Paulo respondeu: “Sim.” A terceira vez quando assegurou a Lysias que era
nascido romano. Ainda se poderia contar uma quarta vez, quando

Paulo reivindicou junto ao prefeito um privilégio reservado aos cidadãos

romanos, que era o de ser julgado pelo imperador em pessoa.

Lysias não foi o primeiro soldado que chegou: ele era tribuno das

coortes, governador da cidadela da Antonia, portanto um militar de alta

patente. Acor eu com diversos centuriões e seus homens, ou seja, diversas


centúrias legionárias e, numa ocor ência absolutamente notável que
112

H ISTÓ R IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

quase escapa à compreensão, autorizou Paulo a anunciar à multidão sua

conversão sobre o famoso caminho de Damasco — tudo isso sob a pro-


teção do exército romano!12

A situação foi romanesca: o antigo policial que exercia sua função em

nome do Sinédrio e dos romanos coligados estava preso e se via sob a

proteção dos romanos. Balzac e Dumas não teriam imaginado cena

melhor.

Lysias observou que ele havia adquirido seu direito de cidadania contra o
pagamento de uma grande soma.13 Paulo reivindicou sua cidadania pela terceira
vez e respondeu: “Mas eu nasci com ela.” Ele gozava, pois,

de cidadania romana a título hereditário, Tàl cidadania não era uma palavra vã; a
lei Porcia, proclamada no tempo de Augusto, transformava seus detentores em
protegidos do imperador; em caso de conflito jurídico, era

o imperador em pessoa que solucionava. A cena passou-se em 58, e o

imperador era Nero. Foi admirável a solicitude do romano Lysias, que

“estremeceu à possibilidade de Paulo ser feito em pedaços” e “ordenou

aos soldados que descessem, o cercassem e o conduzissem à caserna”. Foi

alojado na torre Antonia. O sobrinho de Paulo veio informá-lo de que 40

judeus estavam jejuando até conseguir do Sinédrio a morte de Paulo,

como tinham conseguido a crucificação de Jesus. Paulo chamou um cen-

turião e confiou-lhe o jovem, que “tinha uma notícia para o tribuno”.

Pergunta-se por que Jesus não foi beneficiado com proteção semelhante.

Nem Estevão, a primeira vítima de Paulo.

Mas a sequência dos acontecimentos foi ainda mais surpreendente.

Com efeito, Lysias, ao ser informado de que Paulo encontrava-se em


perigo, tratou de chamar dois centuriões e dizer-lhes: “Preparem 200 soldados
para ir a Cesaréia, com 70 cavaleiros e 200 arqueiros, às nove horas da noite.”14
Significava que o tribuno Lysias estava mobilizando 470

homens para garantir a transferência de Paulo para lugar seguro; quem

quer que esteja familiarizado com a história romana sabe que uma escolta como
aquela — porque era uma escolta — era reservada apenas a personagens
especiais.

Policial, rico ou mesmo muito rico, uma vez que podia corromper

um governador romano, Paulo gozava, pois, de um prestígio extraordi-


O CASO SAULO

113

nário e impressionante junto às autoridades romanas. Na ocasião em que

foi preso pela polícia romana no átrio dos Gentios em Jerusalém, e que
alardeou a cidadania romana, para onde o conduziram sob escolta real? A

Cesaréia, em casa do procurador Antonius Félix, sucessor de Pôncio

Pilatos, que estava descansando à beira-mar. O grande sacerdote Ananias

e vários membros do Sinédrio, incluindo um reitor chamado Tertulius

ou Tertulius, pressionados pelos 40 jejuadores e pela opinião pública,

foram depor contra Paulo; as razões destes últimos eram evidentes, e

o grande sacerdote, como autoridade, tinha que alegar um ponto: que o

propósito de Paulo era contrário à religião judaica. Aquele Paulo estava

difundindo o mesmo ensinamento nefasto que o tal Jesus de Nazaré

difundira cerca de 25 anos antes: era o ensinamento dos zelotes e dos

essênios, pessoas que achavam que um messias iria libertar o povo e que

desejavam provocar um banho de sangue; em suma, um bando de arruaceiros.

Mas Félix recusou-se a julgar na ausência do tribuno Lysias, o que foi

apenas um adiamento a favor de Paulo. Ordenou ao centurião manter

Paulo em Cesaréia, mas tratando-o “com indulgência”.15 Os Atos dos

Apóstolos relatam que Félix, o representante mais poderoso do Império,

“convocava Paulo e lhe falava com muita frequência”, o que é também

estranho. Quando em 60 outro governador, Porcius Festus, sucedeu a

Félix, podia-se supor que a benevolência extraordinária e inexplicável

com a qual Paulo até então vinha sendo beneficiado iria terminar. Não

foi o que se viu: Festus mais uma vez acedeu à demanda de Paulo de ser
julgado por Nero em pessoa, o que prova a cidadania romana de Saulo,

pois qualquer usurpação dessa qualidade expunha à morte.

Detalhe indubitável: Herodes Agripa I , rei de Cálcis e mais tarde de

Ituréia, notoriamente hostil ao povo judeu (esqueceu seus ancestrais,

pois era descendente dos reis asmonianos), de passagem por Cesaréia, fòi

fazer uma visita de cortesia a Festus, em companhia de sua irmã Berenice.


Festus lhes expôs o caso Paulo, e os visitantes reais pediram para vê-lo. Festus
organizou uma reunião com as pessoas importantes de

Cesaréia e convocou Paulo. Este interpelou o rei: “Você está aderindo aos

inspirados [quer dizer, aos profetas]? Sei que está adèrindo!” Em vista de
114

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

que o rei declarou que Paulo era inocente.16 Eis aí um personagem


verdadeiramente fora do comum: não apenas não era um cidadão romano
comum, como também, na ocasião em que foi preso, permaneceu longos
meses em casa do representante do imperador em Cesaréia, a despeito

dos protestos indignados dos notáveis judeus, e ainda interpelou reis de

passagem.

E esse favor nunca foi desmentido: Paulo era protegido pelos mais

altos personagens do império, como no passado tinha sido de Galion,

procônsul de Acaia, sediado em Corinto. Quando Paulo foi preso mais

uma vez nessa cidade, denunciado pelos judeus de Corinto, e teve que

comparecer ao tribunal, Galion livrou-o da fúria dos judeus mandando

esvaziar a pretoria.17 Note-se como Paulo exasperava ao máximo os

judeus de todos os lugares, mas terminava sempre protegido pelos romanos. O


próprio Jesus nunca obteve tantos favores.

Paulo foi, pois, eu repito, um cidadão romano excepcional. Há mais

um ponto revelador: em suas Epístolas nunca se prevaleceu de sua roma-

nidade, mas apenas de sua judeidade. Foi exclusivamente por intermédio

de Lucas que se soube que Paulo por três vezes invocou a cidadania

romana. Lucas, por assim dizer, “desfez a trama”.

Os que sustentam o duplo e contraditório status de judeu e cidadão

romano de Paulo baseiam-se no fato de que houve outros judeus desse

tipo. Paulo pode muito bem. ter sido um deles, mesmo que não tenham

sido muito numerosos. Pois is o é essencial à tradição cristã: para come​

çar, por isentar Paulo da suspeita de mentira, depois porque o duplo sta-
tus judeu-romano de Paulo é essencial para a legitimidade do fundador

da Igreja. Se ele não fosse judeu, o fundamento judaico-cristão de sua

predicação cairia realmente por ter a, e o resto de suas alegações ficaria

comprometido pela suspeição. Realmente, Augusto conferiu aos cidadãos ricos


de Tarso, antiga cidade que rivalizava com Alexandria e Antioquia, o direito à
cidadania romana. Depreende-se que, aparentemente, Paulo seria descendente de
uma rica família judia de Tarso.

Quanto a sua riqueza, ela é confirmada pelo fato de o procurador Félix

em pessoa — homem também não desprovido de recursos — esperar

dinheiro dele, um suborno que o faria liberar seu prisioneiro.18 Está cia-
O CASO SAULO

115

ro que não seria do modesto fabricante de tendas, que Paulo se dizia ser,

que Félix obteria o suborno.


A sequência dos acontecimentos deu razão à incerteza quanto ao caso

de Paulo. Este último permaneceu dois anos em Cesaréia, ou seja, até os

meses iniciais de 60, primeiramente durante o governo do procurador

Félix, depois durante o de seu sucessor Festus, em um cativeiro que

parece ter sido especialmente leve. Ora, no final de 59, Nero, farto dos

recursos abusivos ao poder imperial dos judeus cidadãos romanos garantidos


pela lei Porcia, retirou-lhes o gozo desse direito.19 A ab-rogação desse direito é
crucial, pois prova formalmente que Paulo era mesmo um

cidadão romano de origem não judia. Caso contrário, o procurador Félix,

ou então Festus, teria declarado a seu eminente prisioneiro que Nero

acabara de abolir seus direitos romanos e, sendo ele cidadão judeu, o teria

entregue ao Sinédrio, ou teria ele mesmo decidido a saída para seu caso.

Nada disso aconteceu.20

Diga-se de passagem, a personalidade do primeiro dos carcereiros de

Paulo, Félix, merece atenção: ele era um antijudeu obcecado. Até Tácito,

jamais suspeito de simpatia pelos judeus, deplorou sua “barbaria” e disse

que, na Palestina, “ele exercera o poder de um rei com o espírito de um

escravo”. Sua brutalidade foi de íàto a causa de sua chamada a Roma em

60 e de sua substituição por Festus. Ora, foi esse antijudeu o carcereiro

de Paulo e que o tratou com cuidados especiais. Se estivesse diante de um

judeu ar uaceiro, sua atitude teria sido diferente.

Paulo era, pois, incontestavelmente romano e, ao menos para as


autoridades romanas, não tinha origem judia (mais precisamente, seu pai

não era judeu). Poder-se-ia argumentar que os romanos não sabiam

tudo, que talvez Paulo tivesse mentido para se livrar. .

Mas essa hipótese é desmentida pelo que sabemos formalmente da

judeidade de Paulo, supostamente concomitante com sua romanidade:

ela se toma desde logo comprometida pelas alegações sem fundamento a

respeito de sua ascendência benjaminita, que nenhum verdadeiro judeu

se teria aventurado a sustentar diante de judeus da Palestina. Em seguida

fica fortemente abalada pela pretensão de ter sido formado por Gamaliel.

Esse foi o mais célebre dos doutores da Lei de seu tempo; não manteve
116

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

nem uma escola primária, nem uma escola secundária e, como lembra

Maccoby,21 “ele aceitava apenas alunos que tivessem uma formação sólida e
estivessem eles próprios aptos a transmiti-la”.2
Dizer ter sido formado pelo rabino Gamaliel sem ser doutor da Lei,

é a mesma coisa que, na França contemporânea, afirmar ter feito os estudos


primários com Merleau-Ponty ou, na Alemanha, os estudos secundários com
Heidegger. Ora, nada indica que Paulo tenha sido rabino; quando teria tido
tempo? Em 33-34, ele era, para falar claro, policial, e

Gamaliel nunca teria aceito um policial entre seus alunos, sem falar do

fato de que nenhum aluno de Gamaliel teria cogitado de ser um policial.

Mesmo as intenções de Paulo são enigmáticas: após, supostamente,

ter estudado com Gamaliel, terminou — o fato é certo, está explicitado

nos Atos dos Apóstolos — na polícia do Templo, na qualidade de perseguidor


dos mesmos judeus que serão perseguidos, 30 anos mais tarde, pelo prefeito de
Alexandria Tibério Alexandre, os que Flavius Joseph,

membro da aristocracia judia, chamaria de “bandidos”. Paulo não poderia


ignorar que se era admitido para estudar com Gamaliel para ser doutor e não
para terminar trabalhando na polícia.

Mais importante ainda é o fato de Paulo infringir em dois pontos

fundamentais o ensinamento de Gamaliel. Foi, na verdade, esse mesmo

doutor, célebre por sua tolerância, que mandou absolver o apóstolo

Pedro, preso pela polícia do Templo por propaganda herege.23 E não só

Pedro como também todos os apóstolos, a respeito dos quais recomendou aos
juizes máxima circunspecção. “Os senhores não sabem —

declara-lhes em suma — se es as pessoas não foram na verdade enviadas

por Deus.” Nessa perspectiva, Paulo opunha-se radicalmente ao ensinamento


daquele de quem se dizia discípulo.

Segundo ponto: em 37-38, após seu “deslumbramento” no caminho


de Damasco, Paulo lançou-se em um empreendimento missionário que

o levou a concluir que a Torá era uma “maldição”. Proposição inconcebível,


inacreditável na boca de um judeu, e com mais razão na de um doutor da Lei,
sobretudo ao qualificar a Torá como “medida temporária”.24

Um judeu, Paulo? Aluno de Gamaliel? Alguns exegetas judeus,

cheios das melhores intenções, acreditaram perceber nele um certo


O CASO SAULO

117

conhecimento da Torá. Mas eu me pergunto se às vezes não achamos o

que queremos encontrar. Em primeiro lugar, porque seu conhecimento


de hebraico parece ter sido limitado: quando citava a Bíblia, era na versão

grega dos Setenta, ao passo que Gamaliel utilizava evidentemente a versão


hebraica. Em seguida, porque Paulo professava idéias desconhecidas da tradição
judaica, como a da “sabedoria predestinada desde sempre aos

que são perfeitos”,25 o que tomava supérflua para estes últimos qualquer

interpretação da Lei Mosaica, além de introduzir um conceito estranho

ao judaísmo, o da perfeição humana. Com certeza não foi Gamaliel

quem lhe ensinou is o, e, mesmo que Gamaliel tenha tratado da hachga-

hah, isto é, da Divina Providência, foi para lembrar a importância da

liberdade humana, como seu sucessor Hanina o faria no século I . Além

do mais, Paulo professava idéias contrárias ao ensinamento do próprio

Jesus, como, por exemplo, a da perfeição humana, que tomava a reden​

ção inútil, ou quando declarava que ajustiça de Deus se revelara em Jesus

sem a Lei26 quando, na verdade, o que Jesus disse foi: “Eu não vim para

abolir a Lei, mas para completá-la.”

Não há como não concluir que essa formação junto a Gamaliel foi

pura e simples invencionice. A singular insistência com a qual Paulo se

dedicou a provar sua judeidade não pode ser explicada a não ser pela

necessidade de dispor de um salvo-conduto para seu proselitismo: se não

fosse judeu, ou tido como, os apóstolos o teriam pura e simplesmente

proibido de fazer uso do ensinamento de Jesus.

Paulo, portanto, não era judeu e sim romano. Por razões, aliás, erróneas, são
Jerônimo, o tradutor da Vulgata, também duvidou das origens tarsenses de
Paulo, o que significa tê-lo chamado de mentiroso com palavras mal
disfarçadas.27 Mas o personagem é infinitamente mais complexo do que o
construído pela tradição cristã.

Mesmo que tenha sido romano de nacionalidade, portanto de pai,

não o foi inteiramente. Seu nome indica liames judeus que só poderiam

vir pelo lado materno, o que explica por que também reivindicou a judeidade
diante de estrangeiros; pois, de acordo com a tradição judia, se é judeu pelo lado
da mãe. Filho de família abastada, por certo, já que nascera romano, como o pai,
e que a cidadania romana só era concedida às
118

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

pessoas ricas ou influentes. Rebento de uma família da Decápole, associada à


família dos herodianos e talvez ele mesmo um herodiano, são as hipóteses mais
plausíveis.28 De todo modo um homem que possuía cultura helenística, da qual
se encontram eloqi entes excertos em suas epístolas, tâis como citações de
Eurípides ou passagens inspiradas em Esquilo e outros autores gregos clás icos.

Pouco importa, dir-se-ia, que Paulo tenha sido judeu ou não se ele

fundou a Igreja. Ora, is o seria um erro da maior importância por duas

razões: para começar porque, se ele tivesse sido judeu, talvez o antijudaísmo
cristão não tivesse nascido e, por conseguinte, não se teria transformado em anti-
semitismo; pois o anti-semitismo foi uma consequência de seu discurso. Com
efeito, fossem quais fossem suas queixas a respeito do clero de Jerusalém, Jesus
e seus discípulos nunca chegariam a ponto de denunciar ao estrangeiro a Lei e o
povo judeu. Afinal e antes de mais nada, era para judeus que Jesus pregava, não
para romanos! É um ponto

que o conjunto da exegese cristã ocultou: o ensinamento de Jesus

destinava-se aos judeus, tendo sido modificado e virado contra eles por

causa da intervenção de Paulo. As imprecações de Jesus contra os fariseus

e saduceus destinavam-se apenas a ouvintes de dentro da comunidade

judaica: fora desse contexto elas mudavam inteiramente de sentido e

equivaliam a uma acusação do povo judeu inteiro. Jesus não teria condenado a
totalidade do povo judeu ao qual se dirigia, pois não faria nenhum sentido.

Somente um não judeu poderia ter separado o ensinamento de Jesus

do judaísmo, e foi o que Paulo fez. E por es a razão sua obra por pouco

não perdeu inteiramente o crédito, ao menos no Oriente um século

depois de sua morte.29

Em seguida, a cristandade não teria elegido Roma, como o fez a partir do século
I. Paulo, o romano, muito cedo deu mostras, aliás, de sua intenção de ir a Roma.
Quando finalmente lá chegou, ironia do destino,

foi como prisioneiro, tendo sido sua última etapa. Mas aquela cidade
representava então o centro do mundo: de lá o ensinamento de Jesus iria

ir adiar-se pelo ecúmeno; e, uma vez mais, Paulo enxergara certo.


O CASO SAULO

119

O grande feito de Paulo foi ter rompido com a Torá (que, segundo

ele, não bastava para salvar o ser humano, enquanto a fé, sim, era capaz)
recorrendo a dois conceitos: a Redenção e o dualismo do mundo, dividido entre
o Reino da Luz e o Reino das Trevas. Em sua versão do Acontecimento que
salvara o mundo, o Deus do universo encamara-se

em Jesus — noção familiar aos greco-romanos pelo exemplo das inúmeras


descidas à terra de seus deuses —, que se sacrificara na luta entre a Luz e as
Trevas para salvar a humanidade (noção estranhamente próxima

do gnosticismo). Deus não era mais estrangeiro nem indizível, ele estava

no meio dos humanos, como Júpiter em Filêmon e Báucis. Não era mais

o Deus ciumento dos judeus, mas um Deus aces ível a todos. A partir de

então os pagãos, objetivo principal de Paulo, podiam se unir em torno de

uma religião nova, pois ela era por definição acolhedora. Mas Paulo

acrescentou à Encarnação pagã uma escatologia condizente com a angústia


humana: Zeus, Apoio ou Artermis haviam encarnado para suas tarefas ter estres;
Jesus, por sua vez, como um novo Mitra, encarnara e se sacrificara para a
salvação das almas.

Outro aspecto do gênio de Paulo é ter abrangido a situação com um

olhar de águia. A causa do judaísmo estava perdida no mundo romano, e

o judaísmo estava minado em seu interior. Talvez Paulo, policial do

Templo, tenha captado a primeira crise do judaísmo: esse se encontrava

dividido entre judeus helenizados ou romanizados e judeus messianistas,

e provavelmente não conseguiria sair do impasse. Só o ensinamento de

Jesus, devidamente adaptado, poderia conquistar multidões estrangeiras,

como havia conquistado as da Galiléia e da Judéia. Mas não era necessário que
fos e praticado na Palestina, já se tinha visto o resultado da aventura. Paulo
partiu, pois, à conquista do mundo romano, da Capadócia à própria Roma. Com
apenas uma condição: dissociar formalmente seu
ensinamento do judaísmo, que decididamente não agradava aos povos da

Ásia Menor, da Grécia, da Ilíria e da Itália.

Paulo avaliara a capacidade de absorção religiosa do mundo romano

e provavelmente a extraordinária penetração de uma religião estranhamente


próxima do que fora o cristianismo primitivo: o mitraísmo, com suas fontes
batismais, seu heroísmo e o culto de um deus redentor. Eram
120

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

grandes suas possibilidades de sucesso. O mundo romano, com efeito,

não mais se satisfazia com a religião do Império — uma coleção de ritos


que mantinha, reconheça-se, uma certa coesão da Cidade, mas que não

respondia à necessidade de transcendência inata no ser humano.

Numerosos historiadores, entre os quais John North e J. B. Rives,30

destacaram o seguinte aspecto: na época imperial era possível observar

uma transformação na religião romana. Ela havia perdido sua carga política; a
iniciativa religiosa individual, que tinha sido reprimida nos tempos da república,
passara a ser tolerada. O vazio então criado provocara o

sucesso de religiões “exóticas” no interior do Império, a exemplo do

mitraísmo, do culto de ísis e, em uma certa medida, do judaísmo, com a

única diferença de que este último estava associado a um povo rebelde, o

que não era o caso nem do mitraísmo nem do culto isíaco. O judaísmo

era, pois, muito menos tolerado.31 A astrologia conheceu um sucesso

esplendoroso e até os imperadores se permitiram fraquezas que a república não


teria tolerado. Augusto exibia os horóscopos que lhes eram favoráveis, e Tibério
tinha seu astrólogo da corte, um certo Trasilo, que

teria praticamente fundado em Roma uma dinastia de astrólogos!

Em suma, Roma poderia ser comparada a uma esponja que absorvesse todas as
religiões, encontrando-se madura para o cristianismo, parecido com o mitraísmo
em diversos aspectos, incluindo o batismo e a pia batismal à entrada dos
santuários mitríacos ou mithraea. Em suas etapas

evangélicas ao longo do Império até a periferia da metrópole, Chipre,

Antioquia, Éfeso, Corinto, Tes alônica, Paulo foi, pois, difundindo a fé

inteiramente reformada da seita judaica que ele havia perseguido— a dos

cristãos — e cobrindo de invectivas aqueles mesmos que no passado o


tinham pago para is o, os judeus.

Claro que é preciso evitar o culto da personalidade, apresentando

Paulo como um deux ex machina e pretendendo explicar a história por

intermédio de indivíduos isolados, mas o inverso às vezes continua sendo


verdade. De Alexandre a Churchill e de Gaulle, é longa a lista de homens que
mudaram o rumo da história, para melhor ou para pior. Mas

é preciso igualmente admitir que, sem Paulo, o cristianismo talvez jamais

tivesse existido ou então tives e sido muito diferente, e os ensinamentos


O CASO SAULO

121

de Jesus se tivessem perdido. Enquanto Paulo levava os ensinamentos

para além dos mares, os apóstolos originais expunham-se à perseguição


da polícia do Templo. A partir do ano 40 aproximadamente, foram
desaparecendo uns após os outros. Restou um punhado de discípulos que não
tinham nem autoridade nem número suficiente para garantir a

sobrevida daqueles ensinamentos, que de qualquer maneira teriam desaparecido


com a destruição de Jerusalém, em 70.

Foi esse o fundador da Igreja, o homem que propagou nos grandes

centros do Império os ensinamentos que atribuía a Jesus. Mas Jesus teria

declarado que “Israel fez grandes esforços para alcançar uma lei de reti-

dão mas nunca conseguiu”? E por quê? Porque seus esforços não se

baseavam na fé, mas nos “atos”?32 Foi uma das primeiras condenações

radicais a Israel em sua totalidade: a acusação de que o judaísmo se atinha

a ritos sem conteúdo, exatamente aquilo de que muitos romanos se queixavam


em sua própria religião. Contudo, não fora Jesus que opusera os atos aos
discursos pios? Não fora ele que declarara que a árvore devia ser

julgada pelos frutos? Paulo apropriou-se dos ensinamentos de Jesus,

interpretou-os a sua maneira, contra a vontade do Conselho Apostólico

de Jerusalém, e mudou o destino do mundo. Mas também criou uma

Igreja que perseguiu os judeus durante séculos.

Resta saber se Jesus quis fundar es a Igreja, e por que ela acabou se

tornado anti-semita depois de ter sido antijudia, ou seja, por que o cristianismo
foi, afinal, par icida.
122

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1. Nicholas de Lange, Atlas of theJewish World, op. cit.


2. Muitas das passagens das Epístolas de Paulo contêm advertências sobre a
habilidade sedutora dos hereges (por exemplo, Rom. XVI, 17-20) e, observa Gi
nter Bomkamm em Paulus (Kohlhammer Verlag, Stuttgart, 1970): “O
apocalipse de São João,

que data do último decénio do século I, animado por um espírito totalmente


diferente,

não faz nenhuma alusão ao ensinamento de Paulo.”

3. Convém notar que, por acaso, a maior parte dos primeiros Evangelhos, os
atuais

canónicos e os outros, é anterior ao direito canónico, que começou a ser


esboçado no

Conselho de Elvira por volta de 300.

Segundo as teorias admitidas até o momento, os três Evangelhos sinópticos —

Mateus, Marcos e Lucas — foram compostos depois da queda de Jerusalém em


70, sendo sua versão atual mais tardia: a de Mateus, redigida em Alexandria, era
desconhecida de Clemente de Roma em 95 e de Inácio em 110; uma primeira
citação foi feita por

Policarpo entre 120 e 135.0 Evangelho de Marcos, cuja versão atual é truncada,
era desconhecido de Inácio em 110 e de Policarpo entre 120 e 135.0 Evangelho
de Lucas teria conhecido uma primeira versão, dita “proto-Lucas”, inspirada em
Marcos, e uma segunda versão teria sido redigida por volta de 93-94. A versão
atual foi redigida em Antioquia e era também desconhecida de Clemente de
Roma em 95 e de Inácio em 110; foi citada

pela primeira vez por Policarpo entre 120 e 135. O Evangelho de João teria
conhecido

uma primeira versão anterior à queda de Jerusalém e uma segunda versão foi
redigida por

volta de 100 ou 125. A versão atual foi redigida em Éfeso. O Evangelho de


Tomás, por sua
vez, foi redigido entre 60 e 70 em aramaico ou em hebreu, e mais tarde transcrito
em grego. A versão atual foi redigida em Edessa.

Depreende-se de tudo isso que a versão atual dos quatro Evangelhos canónicos
foi

composta muito tempo depois do desaparecimento do Conselho Apostólico de


Jerusalém e da constituição da primeira Igreja sob os auspícios de Paulo, na
ocasião em que os cristãos tinham em vista dissociar-se da comunidade judaica.
Só ficaram conhecidos

por volta da metade do século II, e por parte de um número restrito de


pregadores.

4. Os apócrifos cristãos (o termo “apócrifos” deve ser claramente discriminado


de

“pseudo-epígrafes”, significando nesse contexto “secretos” e não “falsos”)


constituem

uma espécie de continente epigráfico que só começou a ser realmente explorado,


de

modo esporádico, no decorrer deste século. A única menção de sua existência,


que não

era conhecida até 30 ou 40 anos atrás senão de alguns especialistas, contraria


evidentemente uma tradição mantida com uma vigilância desconfiada por certos
meios da Igreja.

Durante muito tempo a Igreja quis fazer crer que só havia os quatro canónicos e
que eles

teriam chegado até nós sem modificações, desde que a inspiração divina os havia
ditado

aos apóstolos. Prova disso é a exasperação especialmente corrosiva com a qual


alguns

cães-de-guarda do cânone católico acolheram as informações que ofereci ao


grande

público, relativas ao Evangelho de Tomás e aos Evangelhos apócrifos, na


ocasião da
O CASO SAULO

123

publicação dos quatro volumes de UHomme que devint Dieu. Dois volumes de
insultos

pessoais, baseados em críticas surpreendentemente ignorantes vindas de um


“professor

de estudos bíblicos”! Quanta honra...

Ora, a exegese não estabeleceu apenas que os cânones sofreram numerosas


corre-

ções desde suas primeiras versões e que os evangelistas aos quais eles são
atribuídos são

meros personagens fictícios; estabeleceu também que a corrente evangelista dos


primeiros séculos de nossa era produziu um corpus extremamente abundante de
evangelhos e de atos atribuídos aos apóstolos, uns inspirados em uma
apologética ingénua, outros ricos

em informações que escaparam aos ditames tendenciosos das autoridades


eclesiásticas

romanas.

Uma biblioteca de porte mal seria suficiente para conter as publicações eruditas

dedicadas aos apócrifos cristãos até nossos dias. O tema desses textos ultrapassa
largamente o objetivo destas páginas, embora ofereça esclarecimentos
reveladores a respeito das origens do anti-semitismo cristão. Em respeito ao
leitor que não deseja aprofundar-se em uma especialização, mas quer informar-
se a respeito dos textos e de seu valor, indico que minhas primeiras pesquisas se
basearam em The Apocryphal New Testament, de Montague Rhodes James
(Clarendon Press, Oxford University Press, Oxford, 1924),

compêndio crítico que teve em sua época a vantagem de abranger, em primeiro


lugar e

com competência digna de elogios, um domínio esclarecido a contragosto. Mais


tarde

surgiu uma obra enciclopédica de amplitude consideravelmente mais vasta,


Écrits apocry-

phes chrétiens, sob a direção de François Bovon e Pierre Geoltrain (Gal imard,
1997).

5. Acusações, aliás, fundadas, pois Estevão teria declarado que os sacrifícios de


animais eram contrários ao espírito do Antigo Testamento, o que demonstrava
desenvoltura considerável em relação aos textos.

6. Atos, VI , 58.

7. Id.y VI I, 1.

8. Id.y VI I, 3.

9. Id., IX, 1-2.

10. jRom., XI, e Fil, I I, 5.

11. Paul et Vinvention du christianisme (Lieu commun/Histoire, 1987).

12. Atos, XXI, 27 e XXI I, 10.

13. Despropósito inusitado por parte de um personagem da importância de um


tribuno, pois a lei estipulava que a cidadania não podia ser adquirida por meio de
transações financeiras (cf. Norbert Hugedé, Saint. Paul et Rome> Les Belles
Lettres/Desclée de

Brouwer, 1986).

14. Atos, XXI I, 23.


124

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

15. Atos, XXIV, 23.

16. Atos, XXVI, 27.


17. Atos, XVI I, 1-17. Esse Galion era o irmão mais velho de Sêneca, o que
inspirou

uma tradição segundo a qual Saulo e Sêneca teriam travado relações epistolares;
desde o

século IV circulou, de fato, uma correspondência presumida entre os dois


homens, da

qual Jerônimo tomou conhecimento e considerou autêntica. Galion era um


funcionário

de sorte tanto quanto influente: foi beneficiado com o favor de Cláudio e mais
tarde o de

Nero, a quem serviu de arauto, como relatou Tácito ÇAnnales XV, 73 —XVI,
17).

18. Atos, XXIV, 26.

19. Flavius Joseph, Antiquitésjudaiques, XX, 182-183. Joseph acrescenta que


essa decisão teria sido obtida por Berilo (ou Burrus), a quem os sírios, eles
mesmos cansados dos judeus, teriam oferecido uma grande soma. História
duvidosa, pois a anulação de direitos cívicos de uns poucos judeus que eram
cidadãos romanos não alteraria significativamente as querelas com o conjunto
dos judeus. É mais provável que os judeus de Cesaréia, fartos, por sua vez, da
brutalidade anti-semita de Félix, tenham importunado Nero com

recriminações.

20. Alguns autores argumentaram, para contornar uma evidência contrariante,


que

os procuradores não podiam decidir sobre o recurso de Saulo por ter sido
formulado em

Jerusalém por um judeu que não era de Cesaréia. . É um exemplo insustentável


de argúcia: os procuradores tinham poder sobre o conjunto das províncias
imperiais da Palestina, e não tinha nenhuma importância se Paulo era de
Jerusalém ou de outro lugar: se ele fosse judeu, estaria destituído de seus direitos
cívicos romanos em qualquer lugar.

21. Paul et Vinvention du christianisme, op. cit.

22.0 que é confirmado por J. Jeremias, em Jérusalem au temps deJésus, op. cit.

23. Atos, V, 34-42.

24. Gal., I I, 13 e 19.

25. 1. Cor. II, 1-5. Gunther Bornkamm, em Paul, apôtre de Jésus-Christ (Labor
et Fides, 1970), observa que isso é uma idéia gnóstica.

26. Rom. I I, 21 sq. Hans Dieter Betz, em seu estudo fundamental, Der Apostei
Paul

une die sokratische Tradition (Tubingen, 1970), sustenta e demonstra que Saulo
foi conscientemente influenciado pelo cinismo grego. O contexto presente não se
presta a uma discussão das idéias filosóficas de Paulo. É suficiente dizer que elas
não são nem judaicas,

nem correspondem aos ensinamentos de Jesus.

27. Jerônimo rejeitava a cidadania tarsense de Saulo: para ele, este último era
nativo
O CASO SAULO

125

de Giscala na Judéia e, quando essa cidade passou para o domínio romano,


emigrou com

os pais para Tarso, tendo depois sido mandado para Jerusalém (De Viris Il
ustribus). A

hipótese é mais do que frágil e tem o único mérito de demonstrar que a


autobiografia de

Saulo deixou perplexo mais de um autor. Permito-me remeter o leitor à tentativa


de

reconstituição dessa biografia feita por mim em UIncendiaire: Vie de Saul


apôtre (Robert

Laf ont, 1991).

28.

A não judeidade de Paulo e a obscuridade que ele manteve a respeito de suas


origens (não conhecemos o nome de seu pai, o que é curioso para um
personagem-chave dos Atos dos Apóstolos) provocam evidentemente a seguinte
questão: por que não teria

dito a verdade? A razão mais plausível é que ele não podia. E, se não podia, é
porque essa

verdade comprometeria sua missão.

Algumas passagens dos Atos e de suas Epístolas oferecem de todo modo


indicações

importantes sobre suas origens.

A passagem dos Atos, XIII, 1 — assim formulada nas versões correntes: “Ora,
na

igreja de Antioquia havia profetas e mestres, a saber: Bamabé, Simeão, chamado


Níger,

Lúcio de Cirene, Manaém, comensal de Herodes, o Tetrarca, e Saulo” —


apresenta um

enigma e oferece uma pista importante. As últimas palavras, ...Manaém, que


havia sido

educado com Herodes o Tetrarca e Saulo, são lidas assim em grego: “. Manahn
teHrodon

tou Tetrarkon suntrophos kai Saulos11. Em todas as versões oficiais dos Atos,
suntrophos é traduzido por “comensal”. O que me parece ser um erro
surpreendente: o Dictionnairegrec-

français de A. Bail y (Hachette, 1950), cuja competência ninguém contesta, dá


como primeira equivalência dessa palavra “nourri ou élevé avec” (alimentado ou
educado junto); Manaém não seria, pois, um “comensal”, termo vago e de pouca
significação, seria mais

provavelmente um amigo de infância de Herodes, o Tetrarca. Imagina-se a


dificuldade

dos tradutores e compreende-se melhor ainda sua versão estranhamente infiel: já


é surpreendente que um amigo de infancia do tetrarca, odiado pelos judeus, se
encontre em Antioquia em uma assembléia ao mesmo tempo que Paulo. Mais
surpreendente é o fato

de a tradição inserir uma vírgula entre suntrophos e kai Saulos, o que resulta na
seguinte tradução: “.. Manaém, que havia sido educado com Herodes o Tetrarca,
e Saulo.” Mas o texto grego não continha esta vírgula. Os escribas da época
deviam, contudo, compor

suas frases de tal maneira que não existisse nenhum equívoco. Portanto, o texto
deveria

ser lido assim: “...Manaém, que havia sido educado com Herodes o Tetrarca e
Saulo.” O

que muda tudo: Manaém teria sido educado com Herodes, o Tetrarca (levando
em conta as idades prováveis de Manaém e de Paulo, teria sido Herodes Agripa
I) e Saulo, o que produz um efeito bastante embaraçoso: Saulo, fundador do
cristianismo, teria sido educado com Herodes, o Tetrarca, facilmente confundido
com Herodes Antipas, o rei que mandou decapitar João Batista. Mas é o que o
texto grego parece indicar.
Parece apenas um caso de vírgula — que me valeu ser tratado de impostor por
um

jornal tido como sério, mas aparentemente mais sisudo do que sério. Acrescente-
se a ele,

contudo, a intrigante saudação que Paulo colocou no final da epístola: “Saudai


aos da casa

de Aristóbulo, saldai Herodion meu parente” (Rom. XVI, 10-13), concluiu no


final da

epístola redigida em Corinto em intenção dos cristãos de Roma. Os nomes de


Aristóbulo

e de Herodion não podem deixar de chamar atenção: são, de fato, específicos da


família

dos herodianos e, justamente naquela época, existia um Aristóbulo e um


Herodion em

Roma. O primeiro era Aristóbulo I I, filho de Herodes de Cálcis e primo de


Herodes
126

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Agripa II, aquele que foi visitar Paulo em 60, quando este esteve preso em
Cesaréia, em

casa do prefeito. Era um favorito de Nero, que lhe concedeu em 54 o reino da


Pequena

Arménia, em 60 uma parte da Grande Arménia, e na ocasião da morte de seu pai,


o reino

de Cálcis. Também havia em Roma naquela época um Herodion, ou seja, um


“pequeno

Herodes”, ainda um jovem — ainda não havia herdado o reino de seu pai. Esse
Herodion

poderia da mesma forma ser, segundo Robert Ambelain, o filho mais velho de
Aristóbulo

III (La Vie secrète de Saint-Paul, Robert Laf ont, 1971), hipótese cujas falhas já
expus em

L ’Incendiaire, vie de Satil apôtre, Robert Laf ont, 1991.

A verdade é que há inúmeras coincidências e existem sérias razões para achar


que

Paulo pode ter sido membro da vasta família dos herodianos, talvez o filho de
Antipater.

Assim, de algum modo estaria explicada a estranha benevolência do procurador


Félix,

que pertencia ele mesmo por aliança à família dos herodianos; com efeito, ele
desposou a

irmã de Agripa I , Drusila...

29. Por volta do ano 160, muitos cristãos de origem judia e judeus convertidos
ao

cristianismo rejeitavam a autoridade das Epístolas de Paulo e reconheciam


apenas um só

texto sagrado, o Evangelho de Mateus. Para eles, Paulo não pas ava de um
herege, e suas

preces de cristãos pediam a reconstrução do Templo de Jerusalém. Cf. Gerd


Ludemann,

Heretics (SCM Paperback, Londres, 1996).

30. Religion andAuthority in Roman Carthage JromAugustus to Constantine


(Clarendon

Press, Oxford, 1955).

31. Ele exercia, todavia, uma fascinação sobre os romanos, por razões
demoníacas: os

judeus eram tidos como mágicos por excelência, e os papiros e as tabuletas de


chumbo

entalhadas da época romana (por volta dos séculos I e III), descobertas em


Cartago,

empregam efetivamente numerosas palavras de origem hebraica (J. B. Rives,


Religion and

Authority in Roman CarthageJromAugustus to Constantine, op. cit.)

32. Rom.t IX, 30 — 32.


2.

A Igreja subtraída dos judeus

JESUS QUIS FUNDAR UMA IGREJA? AS RAZÕES EVANGÉLICAS PARA


NÃO SE TER

CERTEZA — A QUASE AUSÊNCIA DA PALAVRA “IGREJA” NOS


EVANGELHOS — A

PROCLAMADA INDEPENDÊNCIA DE PAULO EM RELAÇÃO AOS


APÓSTOLOS — A

ESTRANHA PRISÃO DE PAULO E SUA “ABOLIÇÃO” DA TORÁ— CISÃO


DO CRISTIA​

NISMO E DO JUDAÍSMO — ACUSAÇÕES E INSULTOS DOS PRIMEIROS


AUTORES

CRISTÃOS DIRIGIDOS AOS JUDEUS — NOVIDADE DO CRISTIANISMO


E ACUSA​

ÇÕES DE “ARCAÍSMO” EM RELAÇÃO AO JUDAÍSMO

A história do anti-semitismo desde a conversão de Constantino até o

século XX está tão estreitamente ligada à da Igreja primitiva, que continua sendo
indispensável, mesmo 20 séculos depois, compreender como uma Igreja
derivada dos ensinamentos de um judeu conseguiu tomar-se

anti-semita.

É verdadeiramente um dos paradoxos mais cruéis da história o fato

de a hostilidade interna quase anti-semita dos saduceus e da grande burguesia


judaica em relação aos zelotes messianistas e outros dissidentes judeus ter
ensejado o nascimento do anti-semitismo amplo propriamente dito, que iria se
perpetuar até o século XX. De fato, uma vez constituída por volta do século I , a
Igreja de Cristo, que nascera da corrente messianista mencionada nas páginas
anteriores, se iria voltar contra seus perseguidores. Esquecendo-se de que Jesus
foi judeu e nunca abriu mão desse status, como tampouco seus apóstolos, os
partidários da Igreja

iriam, em nome do judeu Jesus, cobrir “os judeus” de anátemas. E levariam sua
determinação até o ponto de falsificar os relatos dos que foram testemunhas da
Paixão: por exemplo, o que descreveu a multidão em
128

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

fúria reunida diante da residência de Pilatos para pedir que o sangue de

Jesus caísse sobre eles e sobre seus filhos.1


Dois pontos ainda precisam ser examinados.

O primeiro é a situação de Jesus no judaísmo de seu tempo. O

judaísmo, religião viva, não era no começo de nossa era um bloco homogéneo
nem fixo; ele comportava cor entes suficientemente fortes para provocar cismas,
como o samaritano, o saduceísta, o boetusiano e o

“essênio”. E a diversidade só fez crescer, pois, após a destruição do

Segundo Templo em 70, chegou-se a contar não menos do que 24 seitas

distintas. Grande número de indícios leva-nos a pensar que Jesus fazia

parte da corrente farisaica, mas que teria igualmente sofrido influência

“esseniana”; contudo, isso não é suficiente para defini-lo. Tudo o que

sabemos a seu respeito se resume ao que está escrito nos Evangelhos apócrifos e
canónicos, alguns apócrifos (seu número é restrito, cinco ou seis) sob certos
aspectos tão reveladores (o que não é sinónimo de “confiáveis”) quanto os
canónicos, dos quais frequentemente diferem. Ora, a forma atual dos Evangelhos
canónicos só foi fixada no primeiro terço do

século I , sendo bem difícil separar o que fazia parte das intenções propa-

gandísticas e apologéticas do que era verdade. Tentar definir Jesus


historicamente é tão difícil quanto discernir a realidade mediante uma
superposição de vidros deformantes.

Também é verdade que, se é para dar fé aos Evangelhos canónicos, as

palavras de Jesus nem sempre refletem o judaísmo fariseu. Um preceito

como “Entreguem a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”,

por exemplo, decerto não cor esponde à tradição rabínica. Os escassos

ecos da tradição dos midrash nos ensinamentos de Jesus também atraíram

a atenção de exegetas.
Além do mais, em meio às seitas dissidentes — as minim, como as

designavam os rabinos — havia uma de particular importância, a dos

judeus-cristãos ou nazarenos, discípulos de Jesus. Nossa informação

sobre eles não poderia ser mais sucinta. Excluídos da sinagoga, onde nos

anos seguintes à destruição do Segundo Templo se liam a cada manhã

imprecações contra eles, formavam um grupo heterodoxo e perseguido.

Ter-se-iam se organizado em comunidade independente, com um chefe


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

129

e um corpo de crenças? É pos ível. Mas quais teriam sido suas relações

com o Conselho Apostólico de Jerusalém, aquele que os apóstolos ainda


vivos tinham constituído depois da crucificação? E com Paulo?

O que leva ao segundo ponto a ser verificado: Jesus desejou verdadeiramente


fundar uma Igreja e aquiesceu a que os seus fossem banidos da humanidade?
Para inúmeros cristãos, sua religião foi constituída desde a

primeira palavra de Jesus, já completa com Igreja e dogmas, aí incluída a

execração teológica dos judeus. A tradição cristã afirma que Jesus,

enquanto vivo e mais claramente ainda depois de morto, foi considerado

unanimemente pelos apóstolos como Filho de Deus e Encarnação de

Deus, e estava determinado a fundar uma Igreja. Numerosas passagens

dos Evangelhos canónicos parecem fundamentar firmemente essa tradi​

ção. Contudo, outros textos igualmente evangélicos, assim como a análise


epigráfica convidam a considerar com cuidado essa certeza.

Assim, quando Cleofas e um apóstolo não designado caminhavam em

direção a Emaús e um desconhecido veio perguntar-lhes sobre o que


conversavam, eles responderam: “. .sobre um profeta poderoso em palavras e
atos diante de Deus e de todo o povo.” Ora, um profeta certamente não

seria o Filho de Deus. Foi somente quando ele se revelou aos dois que os

homens mudaram de opinião. Voltaram a Jerusalém e anunciaram a novidade aos


outros apóstolos: “É verdade. O Senhor ressuscitou.”2 O que significa que até
então Jesus era tido como um profeta. Nos Atos dos

Apóstolos, Pedro, dirigindo-se ao povo, declarou: “Homens de Israel,

escutem-me, estou falando de Jesus de Nazaré, um homem especificamente


designado por Deus e que vocês conhecem pelos milagres, predi​

ções e sinais que Deus realizou diante de vocês por intermédio dele, como

bem sabem.”3 Não é de um Mes ias nem do Filho de Deus que se está
falando nesse caso, mas de um homem designado por Deus. E quando

Maria Madalena, Maria, mãe de Jesus, e Salomé vão até a tumba de Jesus

para envolver o cadáver em óleos aromáticos e encontram a tumba aberta

e o cadáver desaparecido, o enigmático jovem vestido de branco dirige-se

a elas e diz: “Nada temam. Vocês estão procurando Jesus, o Nazareno,

que foi crucificado. Foi retirado [de entre os mortos]. Ele não está

aqui. .”4 Ele falava apenas de Jesus, o homem, e não do Filho de Deus.
130

HISTÓ R IA GERAL DO A N TI-SEM ITISM O

Outras contradições de mesma natureza encontram-se aqui e ali nos

Evangelhos, notadamente nos sinópticos.5 Podemos explicá-las parcialmente


pelo fato de os Evangelhos terem sofrido diversos remanejamen-tos sucessivos,
beneficiando-se ou sofrendo com aditamentos segundo a

evolução da teologia, ou até as orientações do copista. No final do século

I , Irineu já adjurava os copistas “em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo

e de sua gloriosa parúsia” que prestassem atenção no que escreviam.6

Suas reescritas resultaram às vezes em absurdos, como a passagem de

Marcos na qual se vê a multidão de judeus pedindo a libertação do bandido Bar


abás em vez de Jesus.7 Acontece que o primeiro nome desse bandido também
era Jesus, e o copista, que visivelmente ignorava o

hebreu, não compreendeu que “bar Abbas” significava “filho do pai”, e

que então aquele bandido mítico de nome expressivo, “Jesus filho do

Pai”, não era outro senão o próprio Jesus. A multidão estava na verdade

reclamando a libertação de Jesus, e o copista se viu obrigado a refazer o

relato para opor Bar-Abbas a Jesus, ou seja, Jesus a si mesmo, e o relato

acabou se tomando incoerente.

É o que se pode dizer a respeito da confiabilidade dos textos fundadores. Resta a


posição da Igreja: Jesus teria dito: “Na verdade eu lhe digo, você é Pedro e sobre
esta pedra construirei minha Igreja?”8 Não há

nenhuma certeza: para Bultmann e outros numerosos exegetas, essa passagem


teria sido introduzida depois de 70,9 ou seja, depois da morte de Pedro e de
Paulo; foi, pois, uma criação a posteriori. A explicação para isso

parece simples: uma vez que a comunidade cristã se havia dissociado do

judaísmo, tomava-se urgente para ela buscar uma identidade sancionada

pela vontade divina. E sobretudo uma identidade nova, inteiramente distinta do


judaísmo. Como Pedro tratou de ir às pressas para Roma, talvez para evitar que
Paulo se declaras e chefe da comunidade cristã da capital,
os copistas dos Evangelhos introduziram a passagem que parecia cumprir

a vontade de Jesus. Os Evangelhos canónicos que nós conhecemos hoje

eram desconhecidos da maior parte dos autores cristãos do século II, sendo
duvidoso que tenham alcançado uma forma próxima da que conhecemos antes
do século VI.

O aditamento fraudulento foi provavelmente introduzido às pressas,


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

131

e as autoridades que tomaram es a decisão nem sequer prestaram atenção

ao fato de que a palavra “Igreja” só aparecera duas vezes nos Evangelhos,


e ainda por cima no mesmo Evangelho, o de Mateus.10 Ora, a designação

de Pedro toma-se mais duvidosa ainda sabendo-se que, no Evangelho de

Tomás, quando os apóstolos perguntam a Jesus para quem eles deveriam

voltar-se caso ele desaparecesse, Jesus designou Tiago, provavelmente

Tiago de Alfeu, dito o Menor ou o Virtuoso.11 De fato, foi ele, e não

Pedro, que foi admitido como primeiro chefe ou presbítero do Conselho

Apostólico de Jerusalém.12

Nada nos Evangelhos confirma, portanto, a vontade de Jesus de fundar uma nova
religião e uma Igreja, e menos ainda de confiar sua direção a Pedro, uma “pedra”
decididamente bastante quebradiça pela própria

confissão de Jesus, que lhe vaticinou a célebre renegação antes de os galos

começarem a cantar. Prova suplementar de que Jesus jamais projetou

nomear Pedro chefe de uma muito hipotética Igreja independente: após

sua enigmática partida de Emaús, quando acompanhou os apóstolos até

Betânia e depois seguiu seu caminho, episódio que concluiu o Evangelho

de Lucas, os apóstolos voltaram a Jerusalém e foram louvar a Deus no


Templo.
Efetivamente, os apóstolos sempre se consideraram judeus. E, mesmo antes, a
Congregação cristã continuara a pagar o dízimo ao Templo,13

a despeito do fato de já estar em desacordo com as autoridades do Templo

e de Jesus ter anunciado aos apóstolos que sua hora estava para chegar. E,

do mesmo modo, Jesus e a Congregação continuavam a ir às sinagogas e

a se considerar submetidos a sua jurisdição.14 O Conselho Apostólico de

Jerusalém, que se formou depois da partida de Jesus e era composto por

Pedro, André, João, Tiago de Alfeu — teoricamente presbítero ou primeiro


“bispo” de Jerusalém — e por Felipe, continuou se considerando integralmente
judeu. O primeiro concílio, que ocorreu provavelmente

no ano 49 com a presença de Saulo/Paulo e de seu companheiro Bamabé,

vindos de Antioquia, recomendou aos neófitos a estrita observância da lei

mosaica: abstenção de came imolada aos ídolos, de carne cozida, de sangue, de


fornicação. .15

O célebre teólogo e exegeta Rudolf Bultmann, aliás, disse-o clara​


132

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

mente: a Congregação cristã não se considerava uma nova religião, distinta do


judaísmo,16 mas, sim, o verdadeiro Israel.

Contudo, um deslocamento estava insensivelmente acontecendo: a


perseguição dos discípulos de Jesus, efetuada por Saulo entre outros e

mantida pelo Sinédrio até a ocasião do cerco de Jerusalém, deveria


inevitavelmente forçá-los a deixar a capital e depois a Palestina. Quando o
número de gentios convertidos ao cristianismo começou a crescer, estes

retomaram por sua conta o anti-semitismo greco-romano, acrescido dessa vez de


um anti-semitismo religioso em relação ao “povo deicida”, e atiraram os judeus
às trevas exteriores.

Quem, pois, desejou converter os gentios? Sabe-se muito bem, foi

Saulo/Paulo. Ele foi o personagem crucial da cisão entre os discípulos do

judeu Jesus e a comunidade judia. Seu papel foi capital pelas repercussões que
provocou, e pelo fato de ter sido a partir de Paulo que o cristianismo passou a se
opor ao judaísmo. Para essa finalidade, recebera ele carta branca do Conselho
Apostólico? Na verdade, não. Mal dispunha de

sua tolerância, e mais, o decor er dos acontecimentos iria provar que ela

era limitada, depois que lhe tinha sido retirada. Talvez seja preciso descrever
aqui a realidade histórica: que membro do Conselho poderia esquecer que fora o
policial Saulo, não ainda Paulo, de cidadania romana,

que presidira ao apedrejamento de Estevão e prendera inúmeros discípulos altas


madrugadas, à frente de seu bando de mercenários? E com que direito, aliás, ar
ogava-se a missão de apóstolo? Ele não fizera parte dos

Doze e ignorava tudo do ensinamento de Jesus. De repente, uma visão

no caminho de Damasco o fizera mudar; era possível, mas não garantia

de que ela lhe tivesse inoculado a percepção do ensinamento que ele estava
pretendendo difundir.

Mas Paulo nem se importou: em suas Epístolas, proclamou com veemência sua
independência do Conselho.17 O requisitório mais severo contra Paulo foi
elaborado por Bultmann, mais uma vez: “De fato, suas
Epístolas mal permitem divisar a tradição palestinense no que diz respeito à
história e ao ensinamento de Jesus (. .) Quando ele se refere a Cristo como
exemplo, não está pensando no Jesus histórico, mas no preexistente. 18 Ele não
cita as palavras do Senhor a não ser em I Coríntios VIE,
A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

133

10 sq., e IX, 14 e, nos dois casos, são regulamentos para a vida da Igreja

(. .) O que tem importância decisiva é que a teologia específica de Paulo,


com suas idéias teológicas, antropológicas e soteriológicas, não é de forma
alguma uma recapitulação do ensinamento intrínseco de Jesus nem um
desenvolvimento desse ensinamento, e o fato de nunca utilizar as

palavras de Jesus sobre a Torá para sustentar seu próprio ensinamento

sobre a Torá.” Em suma, ojesus de Paulo já era um personagem mítico,

e o ensinamento que ele propagou foi fruto de sua própria invenção.

A vocação de missionário teria sido reiterada em Paulo depois da visão

no caminho de Damasco graças às injunções de Ananias, judeu da Síria

que lhe restituiu a vista.19 Para o Conselho de Jerusalém, fora antes de

mais nada uma manifestação do Espírito Santo que se apossara do convertido.


De acordo com os Atos,20 o número de judeus da diáspora convertidos por
Paulo na Fenícia, em Chipre e em Antioquia acabou chamando a atenção da
comunidade nazarena, ou seja, do Conselho de Jerusalém, que

teria despachado Bamabé para Antioquia, a fim de ver como as coisas se

passavam.21 A realidade era mais penosa: o Conselho de Jerusalém foi

informado da crescente hostilidade de Paulo em relação à Torá e em especial à


circuncisão, e de sua inclinação para partilhar as refeições com os gentios.

Em seguida, Bamabé foi trazer Paulo de Tarso, onde se encontrava,

para Antioquia. Os Atos não dizem uma única palavra sobre o que se

seguiu: mas foi em Antioquia que ocor eu um dos conflitos mais violentos entre
Paulo e o Conselho de Jerusalém. Paulo chamou Pedro de “falso irmão” e
indiretamente de “indivíduo falso” e, mais do que tudo, rejeitou a Torá, à qual
Pedro continuava apegado. Paulo declarou, com

efeito, que “Cristo resgatou nossa liberdade da maldição da Lei, que se

tomou por nossa causa uma coisa maldita”. Era a ruptura total com o
judaísmo, e ainda por cima com uma blasfémia. A maldição da Lei! Mas

Paulo acrescentou: “E quem se importa com a Lei?. . Era uma medida

temporária...”2 Eis aí o homem que se declarava judeu, benjaminita e

pretendia ter sido educado “ao pé do rabino Gamaliel”! Apenas essa

declaração já indica sua inventividade. Que judeu teria pronunciado uma

abjuração tão radical? Com certeza não os apóstolos, que, no entanto,

tinham suas razões para sentir rancor em relação aos defensores da Lei.
134

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Paulo concluiu com uma frase estar ecedora: “E a finalidade de tudo

aquilo era que a bênção de Abraão fos e estendida aos gentios por intermédio de
Jesus Cristo.” A noção de povo eleito, a Aliança, a interdição do casamento com
os gentios que assombra a Torá, tudo que prolongava a

bênção de Abraão desaparecia, o que dá a medida dos conhecimentos de

Paulo em matéria de judaísmo. Abraão dissera, dirigindo-se aos judeus:

“Em vocês, todas as nações encontrarão a bênção”; com Paulo era o

inverso, já que todas as nações encontrariam a bênção em si mesmas,

com exceção dos judeus.

Pode-se imaginar a consternação do Conselho de Jerusalém, vendo-

se atirado ao incerto limbo. Representava o que dali em diante? Nada. Os

apóstolos, que eram as testemunhas de Jesus e os primeiros depositários

de seu ensinamento, viram-se despossuídos. Paulo espalhou pelo império um


número considerável de comunidades cristãs: Derbe, Listra, Icônio, Antióquia de
Pisídia, Tarso, Tróia, Tessalônica, Beréia, Atenas,

Corinto, Filipo, Éfeso, Asso, Mileto, Cos, Rodes, sobre as quais eles não

tinham nenhum poder. A toda essa gente ele disse que a Torá havia sido

revogada. .

Eles iriam então tentar uma última defesa de sua herança espiritual.

Convocaram Paulo a Jerusalém, para onde ele foi obrigado a se dirigir

“sob injunção do Espírito” (Santo).23 Assim que chegou lá, Paulo dirigiu-

se à casa do chefe dos apóstolos, Tiago e, na presença de todos os

“Antigos” (os outros apóstolos e outros membros eminentes da comunidade


nazarena), prestou contas de “tudo o que Deus realizou entre os gentios por
intermédio de seu ministério”. Após haver louvado a Deus,

os apóstolos fingiram não ter escutado o que ele disse e apenas observaram que
os milhares de adeptos judeus eram firmes defensores da Lei.

Nem chegaram a fazer menção aos gentios convertidos.

“Recebemos agora, retomam, certas informações a seu respeito:

dizem que você vem ensinando a todos os judeus do mundo gentio a

virar as costas a Moisés, a renunciar a circuncidar os filhos e a deixar de

seguir nosso modo de viver.” A acusação não poderia ser mais clara. Em

vista do que os apóstolos observaram que os judeus de Jerusalém estavam

certamente a par de sua presença na cidade. E, para se desculpar, Paulo


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

135

deveria cumprir as obrigações rituais de purificação junto com quatro

homens que fizeram um voto de penitência, designados pelo Conselho


isto é,. . após o que poderiam raspar a cabeça. Bem entendido, Paulo fará

este voto de penitência. “Então todo mundo verá que não há nada de verdade nas
histórias que estão sendo contadas a seu respeito e que você é um judeu
praticante e que respeita a Lei.”

Em suma, o Conselho estava exigindo de Paulo uma abjuração completa. As


sanções em caso de recusa eram claras: mensageiros seriam enviados às
comunidades que ele fundara para declarar que ele não tinha

nenhum poder, que seu ensinamento era considerado sem valor e que a

Lei continuava em vigor. Paulo captara há algum tempo a ameaça que

pesava sobre ele: “Espero que não sejamos desqualificados”, já declarara

na segunda Epístola aos Coríntios.24 Tratou de obedecer: submeteu-se ao

ritual de purificação e dirigiu-se ao Templo para publicar a data na qual o

período de penitência, que era de sete dias, terminaria. Pouco antes do

final desse período, Paulo foi visto dentro do Templo por judeus da Ásia,

e estes provocaram uma altercação: “Homens de Israel! Socorro!

Socor o! Olhem aí o tipo que anda espalhando sua doutrina pelo mundo,
atacando nosso povo, nossa Lei e este santuário. E como se não bastasse ainda
deixa os gentios entrarem no Templo, profanando este lugar santo!” Os “gentios”
no caso era Trófimo de Éfeso, pagão convertido que

acompanhara Paulo a Jerusalém. Como convertido, tinha direito de acesso ao


Templo, mas os judeus da Ásia fingiram não sabê-lo. Ar astaram Paulo para fora
do Templo e quiseram matá-lo pelo crime de anti-semitismo: “Ele ataca nosso
povo.” Paulo foi salvo na última hora pela

legião romana.

O que aconteceu com os quatro nazirs 24* que acompanhavam Paulo?

Mistério. Poderiam ter testemunhado a favor dele, mas desapareceram. E


o que fez o Conselho? Nada. Poderia por exemplo ter delegado alguns

homens para justificar Paulo, senão na hora, pelo menos mais tarde,

quando os judeus assediaram as autoridades romanas para obter sua condenação.


Nada disso. O essencial é que de Paulo foi retirada a capacidade de criar
problemas; foi duplamente desacreditado, primeiro porque

renegou publicamente seu próprio ensinamento, depois porque foi cias-


136

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

sificado também publicamente de antijudeu. O episódio pareceu-se

estranhamente com uma armadilha.


Depois disso, não se teve mais nenhuma notícia de um eventual con-

tato entre Paulo e o Conselho de Jerusalém. Contudo, seu cativeiro em

Cesaréia foi longo. Os apóstolos poderiam ter-lhe enviado um mensageiro. Mas


não. Fora-se o estorvo.

Paulo foi levado a Roma para ser julgado, de acordo com sua solicitação, pelo
imperador em pessoa, Nero. Ele estava presente em Roma durante o grande
incêndio de 60, e depois seu rastro se perdeu. A tradi​

ção conta que foi decapitado, entre julho de 67 e junho de 69, provavelmente na
mesma data em que Pedro, que o teria encontrado em 64, foi condenado à morte,
mas não decapitado. A decapitação provaria mais

uma vez sua romanidade: só os cidadãos romanos tinham direito a essa

morte honrosa, os demais eram enforcados ou crucificados.

Mas o essencial estava feito: as comunidades cristãs fundadas por

Paulo iriam se desenvolver segundo sua própria dinâmica. E com mais

facilidade ainda pelo fato de os discursos de Paulo terem inspiração pagã:

“Por causa de sua origem pagã — escreve Hyam Maccoby — , Saulo via

na história da morte e da ressur eição de Jesus significados que na verdade


estavam ausentes do espírito dos nazarenos (. .) O significado da morte do deus
nos cultos com mistérios teria ressurgido com ele.”25 Jesus era um nova versão
dos deuses sacrificados enquanto jovens pelos poderes

do mal ou superiores para garantir a vida: Osiris, Hércules, Tamuz,

Adonis.

Paulo pretendeu também introduzir uma nova definição do “verdadeiro judeu”:


não é o que visivelmente é judeu, mas o que tem o coração circuncidado,26
audaciosa fórmula retórica digna do helenismo, que iria

permitir rejeitar os judeus de fato e de direito como falsos judeus. Os


judeus pertenciam a “Israel segundo a carne”,27 por oposição a “Israel de

Deus”,28 visão platónica que supõe a existência de um Israel preexistente

por toda a eternidade e que prefigura A Cidade de Deus, de Santo

Agostinho. Mais uma vez, o judeu-judeu, se podemos falar assim, torna-

se um humano de segunda clas e, um ar ogante que irrefletidamente se

felicita por haver respeitado a Lei, que se vangloria de Deus e da Torá29 e


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

137

que se enche de ares com suas “visões” e suas “revelações”.30 De um só

golpe, implicitamente, os profetas eram precipitados dentro de um fosso


profundo, tornando-se não mais do que visionários ar ogantes. Impossível ler as
Epístolas de Paulo sem deparar numerosas vezes com o ene-grecimento
sistemático dos judeus, de seus ensinamentos e de todo seu

sistema.

Seria fácil ou tentador condenar Paulo, mas seria esquecer que ele

não teve escolha: as comunidades judias de além-mar eram ainda bastante


numerosas para lhe valer insultos, como em Corinto. Mas o tempo cor ia, e era
preciso que tivesse conseguido reunir um número suficiente de neófitos antes do
ocaso de sua vida para diminuir o risco de que a hostilidade das comunidades
judaicas os sufocassem. Um fato é certo: a

ruptura entre o cristianismo e o judaísmo fora consumada. “Foi a partir

do momento em que Paulo entrou em cena que o fosso entre as duas

religiões se abriu e se aprofundou.”31 A base do judaísmo é a Torá, e Paulo

a aboliu. Os novos cristãos iriam concentrar seus esforços na negação da

Torá e, portanto, contra os judeus. O antijudaísmo especificamente religioso


estava surgindo pela primeira vez na história.

Durante aproximadamente dois séculos, as primeiras comunidades

cristãs oscilaram entre a rejeição pura e simples da Torá e os acomodamentos


casuísticos a respeito da nova interpretação que lhe convinha dar.32 No final do
século I, a espera febril do retorno do Messias e do

advento da Idade de Ouro esgotara-se. A Igreja dos gentios fundada por

Paulo não podia, entretanto, renunciar a sua grande esperança escatoló-

gica: foi então que estabeleceu a teologia da graça e dos mistérios da fé, a

qual despertou profundas ressonâncias no mundo latino helenizado e

familiarizado com os mistérios de Elêusis, Dionisio e Orfeu. Paulo já


havia semeado os grãos dessa teoria quando, em sua Epístola aos Gálatas,

assegurava-os, depois de tê-los chamado de “gente estúpida”, de que

haviam recebido o Espírito Santo.3 Iriam negá-lo? Era, como observou

Wil iam Nicholls,34 um passo a mais a separar os cristãos do judaísmo, o

qual nunca cultivara uma escatologia como aquela.

No século I , os primeiros autores cristãos, como Justino, por exemplo, já


exploravam a noção de “povo deicida”; ele, contudo, não acredita​
138

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

va que os sofrimentos fossem a sanção para o crime. Justino estimava

apenas que a circuncisão era uma assinatura negativa, que excluía os


judeus da comunidade dos crentes, não sendo mais o sinal da aliança com

Deus.35 Melitão de Sardes, chefe da comunidade cristã dessa cidade,

opunha, por sua vez, a Páscoa cristã à Páscoa judaica, de longe “inferior”,

censurando os judeus por celebrarem sua Páscoa enquanto crucificavam

Jesus. Eles eram, pois, os verdadeiros sacrificadores do cordeiro pas-

coal,36 sendo o próprio Deus que crucificavam. Insistiu também no fato

de os pagãos terem acolhido Cristo melhor do que os judeus o fizeram.

Vejamos: Melitão se esquecia de que a expulsão de Roma, pelo imperador


Cláudio, dos “judeus” que se amotinavam impulsore Chresto, visava aos
cristãos e não aos judeus. Esquecia-se igualmente das perseguições de

Nero e da “semiperseguição” de Trajano.37 E fazia um julgamento precipitado.

Antes de sua ruptura com a Igreja, Tertuliano, que no entanto definiu os cristãos
como uma “seita judaica”, fez aos judeus incriminações tão mordentes quanto
injustas, acusando-os de se terem afastado da lei

divina (que, no entanto, Paulo havia declarado abolida) e de haverem

cometido “toda sorte de prevaricações”, razão pela qual seu sofrimento

seria a merecida punição: “Dispersos, er antes, banidos de seu solo e de

seu clima, vagueiam por toda a ter a, sem ter como rei nem um homem,

nem um Deus, e não lhes sendo permitido aclamar e pisar o solo pátrio,

nem mesmo a título de estrangeiros.”38

Os cristãos, entretanto, não se encontravam em situação melhor,

como bem prova A Apologética, do mesmo autor: eram acusados de infanticídio,


incesto, orgias e de toda sorte de hor ores. Estavam cercados de inimigos
“especialmente os judeus, por ódio — escreve ainda Tertuliano
—, e os soldados, por necessidade de exações”.

De todo modo, a verdadeira história de Jesus e de sua atuação dentro

das comunidades cristãs foi inteiramente encoberta por uma mitificação

integral. Mesmo o herege gnóstico Marcion, que não acreditava que

Jesus tivesse plenamente encarnado, qualificou o judaísmo de “obsoleto”

e de revelação de um “Deus inferior”, que não era o verdadeiro Deus do

cristianismo. O cristianismo nascente chegou a refutar a idéia de que o


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

139

Messias tenha sido judeu e, o que não é a mesma coisa, que um Messias

judeu tenha existido. Alguns teólogos chegaram a pretender que a predestinação


de Jesus demonstrou que o cristianismo era anterior ao judaísmo. Argumentação
que merece ser examinada com atenção, por

implicar a existência de um “progresso” nas religiões,39 mas também por

demonstrar um conhecimento superficial do judaísmo ou um pretenso

desconhecimento. A julgar por seus textos, o cristianismo nascente


aparentemente ignorava tudo a respeito da história do judaísmo, da dissidência
samaritana e saduceísta que rejeitava a lei oral bem como a

Mishnah, e da tradição halaca; o judaísmo era tratado como um bloco

imutável, coisa que jamais foi. E claro que a história comparada das religiões
não existia na época, mas, mesmo assim, é espantoso que não se encontre na
literatura patrícia nem uma palavra de reconhecimento, no

sentido fundamental da palavra, em relação ao monoteísmo, introduzido

na história pelos judeus e do qual os cristãos se apropriaram. Foi a partir

desse momento que se formou o que pode ser chamado de “a fantasia

judaica”, que perpetuará seus malefícios para além da expansão do cristianismo.

Também é verdade que a máquina retórica cristã tinha entrado em

marcha. E ela não pararia mais, durante séculos, em seu esforço de

demonstrar que os judeus eram culpados do famoso “deicídio”.40 Os

judeus eram, com efeito, muito numerosos dentro do Império.

A acusação de arcaísmo que Marcion fez ao judaísmo é reveladora do

estado de espírito da jovem cristandade. Esta se encontrava impregnada

da convicção de que se produzira efetivamente uma revolução metafísica

— verdadeiro oxímoro conceituai, pois justamente a metafísica exclui

qualquer evolução e, com muito mais razão, qualquer revolução. Mas a


cristandade acreditava, e provavelmente com sinceridade, que Deus

havia de repente virado as costas ao judaísmo para criar uma nova religião

ou, mais exatamente, uma religião nova e que, portanto, o judaísmo ficara
démodé. E Marcion não era o único: a mesma idéia pode ser encontrada em
quase todos os autores cristãos dos primeiros séculos, os quais retomaram o tema
paulino da abolição da Lei e do advento da única verdadeira religião, a nova, o
cristianismo.
140

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Observe-se que, assim procedendo, os primeiros cristãos se mostraram muito


mais herdeiros do judaísmo do que possam ter imaginado, uma vez que foi o
judaísmo que, pela primeira vez, fez Deus intervir nas
questões humanas, como se vê no Pentateuco. E acrescente-se que a convicção e
o sentimento inexpugnável de “novidade” dentro dos corações da cristandade
asseguraram-lhe um dinamismo excepcional. E um desdém que chegou às raias
do desprezo pelos judeus, sempre à espera de um Messias que, como se sabe, já
tinha vindo.

De novo, evidentemente, seria exces ivo apontar Paulo como o único


responsável por esse novo antijudaísmo. “A semente não é nada, o terreno é
tudo”, dizia Pasteur. Mas a semente foi ativa e virulenta: se ele não tivesse
rompido os liames com o judaísmo e se não tivesse defendido teorias infamantes
a respeito da Lei, Paulo não teria incorporado o antijudaísmo ao cristianismo,
abrindo assim o caminho para as perseguições que se iriam transformar em anti-
semitismo, estender-se ao longo dos

séculos e adotar formas frequentemente odiosas. Mas ele não se podia

afastar da linha traçada por Jesus em sua tomada de posição inicial, ou

seja, das imprecações contra os fariseus e os saduceus.

Pode-se argumentar que Paulo e os primeiros apologistas poderiam,

com efeito, ter atenuado sua hostilidade em relação aos judeus. Mas para

isso teriam sido necessárias duas condições: a primeira é que os próprios

judeus não lhes fossem hostis — e eles o eram. A segunda, que fossem

humanistas. Mas não existiu nem poderia ter existido apóstolo humanista:
somente o convívio com os filósofos teria aplacado o rigor, suavizado as
convicções e diminuído o ardor dos prosélitos. De mais a mais, Paulo

era romano, e vimos mais acima que não havia humanismo romano. O

humanismo relativiza as convicções e inculca o respeito pelo outro, e

nenhuma religião pode conquistar terreno se respeitar as convicções do

outro.A cidadania romana que Paulo reivindicou não foi, pois, acidental:
ela lhe foi essencial e orgânica. Seu terreno de conquista foi, de fato, o do

mundo latino. Apresentada tal como tinha sido, a mensagem de um profeta


crucificado judeu não teria atraído as platéias extraordinárias que ele reuniu. A
cruz era um suplício infamante, que os neófitos teriam consi​
A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

141

derado inadmissível para um deus. A genialidade de Paulo consistiu em

reinterpretá-la, em elevá-la à altura de um mito e servir-se da crucifica​


ção como um paradoxo supremo: o rebaixamento do poder supremo

pela exposição sobre a cruz, na humilhante nudez dos crucificados. E isso

para a salvação do mundo. Fatalmente era preciso encontrar culpados e,

também fatalmente, foram os judeus os escolhidos.

Mas, a essa altura, é preciso ultrapassar as circunstâncias históricas

assim como o impacto das personalidades sobre elas.

A cisão entre um judaísmo antigo e o cristianismo nascente, que

começou a ocorrer a partir dos primeiros empreendimentos missionários

de Paulo, e o sucesso fulminante que estes obtiveram são incompreensíveis fora


do domínio dos mitos. O mito cristão do deus que se sacrificou para a renovação
do mundo, tal como expunha Paulo, correspondia profundamente aos esquemas
das grandes mitologias greco-latinas: era especialmente próximo do mito de
Dioniso, o deus filho do rei dos deuses, Zeus, dilacerado pelos mênades e
oferecido aos deuses, carne e sangue,

assim como o de Adonis, o deus que renasceu de seu próprio sangue para

dar o sinal da primavera. Paulo, aliás, cita. As Bacantes, de Eurípedes, por

duas vezes, mas evidentemente sem o dizer.41 A aceitação da liturgia da

Eucaristia, que implica o consumo simbólico da carne e do sangue divinos,


estava preparada há longa data pelos mistérios dionisíacos, eleusí-

nios, órficos. Enfim, ao autorizar e encorajar as representações do sagrado


(esculturas, pinturas, mosaicos), o cristianismo inscrevia-se em linha direta na
cultura greco-romana. A tradição das imagens ilustrava o mito,

transformado em dogma, da Encarnação. O ícone representando o divino


provava tanto sua encarnação quanto sua transubstanciação.

O mito judeu, em compensação, com sua rudeza e abstração, era


provavelmente capaz de seduzir por seu mistério alguns grupos da sociedade
greco-romana (talvez os mais abertos ao gnosticismo, por exemplo), mas não
dispunha nem da dinâmica, nem do terreno necessários para suplantar as antigas
religiões pagãs. Os fatos o demonstram: as conquistas do proselitismo judeu em
três séculos foram infinitamente mais fracas do que as do proselitismo cristão. O
Deus único intransigente e

ciumento no qual ele se assentava e que era proibido nomear e represen​


142

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

tar, e a ausência integral de qualquer presença feminina no céu judaico

não podiam obter a adesão de um mundo pagão, sensual, impregnado de


imagens, de encantações e de beleza.

Até hoje nos interrogamos, passados cerca de 18 séculos, sobre as

causas do crescimento surpreendente do cristianismo nos três primeiros

séculos de nossa era, crescimento que ocultou e depois tentou sufocar o

judaísmo. Alguns historiadores vêem aí uma prova quase mística da

espera do cristianismo; outros o atribuem ao fato de que a religião romana se


tomara “literária” demais, bem contada demais em relatos que despojavam os
mitos de seus mistérios. Em outras palavras, a religião teria sido rebaixada ao
nível do folclore.

Parece-me bem mais provável que a religião romana desconhecesse a

necessidade inata e irreprimível da transcendência. Tbmara-se uma religião


cívica, e o grande erro dos imperadores foi ter-se deixado divinizar ou mesmo
reivindicar a divindade, como Calígula. O povo, assim como

a aristocracia, conhecia bastante bem as imperfeições de seus senhores,

seus segredos vergonhosos, sua luxúria, suas prevaricações, seus inumeráveis


ardis. Os romanos de Roma assim como os de Corinto ou de Filadélfia sabiam
perfeitamente que aqueles não eram os seus deuses,

mas intrigantes que haviam conseguido conquistar o trono por meio do

punhal, do veneno ou do sexo. Os desfiles e cortejos que celebravam

Augusto ou Nero imitando Júpiter Capitolino ou Fulgur, Apoio ou

Hércules não ofereciam resposta ao sentimento que acreditamos pertencer


somente ao século XX— a angústia existencial, essa etema angústia que levou
até o racional Cícero ao suicídio. Eles aspiravam a uma religião

transcendente que os fizessem ser penetrados pela divindade, e aquela

que Paulo estava lhes oferecendo respondia a seus anseios tanto quanto a
suas tradições.

Os judeus tinham esperado sobreviver a essa eclosão de angústia,

mas foram surpreendidos em seu isolamento.


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

143

Bibliografia e notas críticas

1. Essa frase ter ível, apenas mencionada por Mateus (XXVI , 26), é
particularmente suspeita por ser uma inversão exata da fórmula recomendada
pela Mishnah para os inimigos de Deus: nenhum judeu pediria que o sangue de
quem quer que fosse caísse sobre si e sobre seus filhos. Ian Wilson, em Jesus —
The Eviâence (Weidenfeld & Nicolson, Londres, 1984), estima que o Evangelho
de Mateus tenha sido escrito em Roma por

alguém que demonstrava preconceitos favoráveis aos romanos. A frase não tem
mais credibilidade do que a que João atribuiu à multidão: “Nosso único rei é
César!” (XIX, 25).

Se os judeus sofriam sob a tutela romana, é altamente improvável que


reivindicassem

César como rei, uma vez que Pilatos por pouco não desencadeara revoltas
justamente por

ter ameaçado o Templo com as águias romanas.

2. Lucas, XXTV, 19.

3. I , 22. E preciso notar que Pedro se serve de uma expressão discutível, “Jesus
de

Nazaré”, que, historicamente, não tem fundamento, pois tratava-se de Jesus, o


Nazareno.

4. Marcos, XVI, 1-7. Os termos do anjo na mesma cena descrita em Mateus,


XXVI I,

1-7, são quase idênticos.

5. Uma das contradições mais desconcertantes é a que opõe os Evangelhos de

Mateus e de Lucas: Mateus dedica toda a introdução de seu Evangelho (1-17) a


uma

genealogia que tende a demonstrar que Jesus era descendente de David,


enquanto Lucas

cita uma reflexão de Jesus que anula qualquer interesse por essa genealogia:
“Como
podem dizer que o Messias descende de David? Pois o próprio David diz no
Livro dos

Salmos: “O Senhor disse a meu Senhor: ‘Assenta-te à minha direita, até que eu
ponha os

teus inimigos por escabelo dos teus pés’.” David o chama, pois, de “Senhor”.
Como

poderia então ser ele o filho de David?” (XX, 39-44).

6. Eusébio, Histoire ecclésiastique, V, 20, 2. Existe um considerável corpo de


literatura

exegética que permite separar as inumeráveis camadas de aditamentos que


recobrem o

texto original e sem dúvida inacessível do Novo Testamento. Apenas zAnchor


Bible

(Doubleday and Company, New York) dedica a eles 20 volumes de mais de mil
páginas

cada um (dos quais dois volumes, num total de 2.500 páginas, só para o
Evangelho de

João).

7. Marcos, XV, 6 sq.

8. Mateus, XVI, 17-18.

9. Histoire de la tradition synoptique (Éditions du Seuil, 1973). Bultmann cita


outros

autores que compartilham de sua opinião.


144

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

10. Mateus, XVI , 24-27 e XVI I, 17.

11. Évangile selon Thomas, logion 12, trad. Philippe de Suarez (Metanoia,
1975) e
Écrits apocryphes chrétiens, op. cit.

12. É provável que, na ocasião em que o aditamento do famoso “Você é Pedro


etc.”

foi realizado, os bispos não se lembrassem mais da nomeação de Tiago. Segundo


Flavius

Joseph, Tiago foi morto ao mesmo tempo que muitos de seus companheiros,
durante um

recesso do cargo de gpvemador.

13. Mateus, XVI , 24-27.

14. Marcos, XII, 9 e Mt. X, 17.

15. Atos, XV, 2,4,12 e22.

16. Theology of the New Testament, vol. 1 (SCM Press, Londres, 1952). Eu
retomei e

trouxe de novo à baila, paralelamente, em L’Incendiaire, vie de Sai l apôtre, op.


cit., essas opiniões de Bultmann; alguns cães-de-guarda passaram a me chamar
de “impostor”. De todo modo, estou em melhor companhia junto de Bultmann
do que deles.

17. GaU 1-2.

18. F/7.I , 5 sq.; II Cor. XI I, 9; Rom., XV, 3.

19. Atos, IX, 15 e XXI , 12 sq.\ I Cor. IX, 1 eXV, 9.

20. Atos, XI, 19-25.

21. Estas páginas não tratam do empreendimento missionário de Paulo; nelas,


portanto, não serão encontrados os detalhes das reações do Conselho de
Jerusalém a seu empreendimento. Mas poderão ser encontradas em
UIncendiaire, vie de Saúl apôtre, op. cit., notas 120 e 127, entre outras, as
razões de duvidar da versão dos Atos da missão de
Bamabé em Antioquia; na realidade, parece mesmo que o Conselho de
Jerusalém destinou um vigilante para Paulo, a fim de trazê-lo de volta à linha do
Conselho, que não pretendia afastar-se da Torá nem do judaísmo.

22. Gal., I I, 13 e 19.

23. Atos, XX, 22. Um pouco mais adiante (XXX, 4) curiosamente, o mesmo
Espírito

Santo advertiu os discípulos de Paulo em Tiro para que o fizessem renunciar à


visita. E

evidente que eles estavam cientes do conflito entre Paulo e o Conselho e não
anteviam

nada de bom daquela entrevista.

24. XIII, 6.

24*. Nazir: entre os israelitas, homem consagrado a Deus. (N.T.)


A IGREJA SUBTRAÍDA DOS JUDEUS

145

25. Paul et Vinvention du christianisme, op. cit.

26. Rom., I , 28.


27.7 Cor.,X, 18.

28. Gal, VI, 16.

29. Rom., I , 17 e 23.

30 .1 Cor., XI , 1.

31. La Civilisation de Vantiquité et le christianisme (Arthaud, 1970).

32. Bultmann analisou no capítulo The Church, Judaism and the Old Testament,

de Theology of the New Testament, op. cit., os esforços de autores como


Clemente, Ptolomeu e Justino Martyr para conservar a herança do Antigo
Testamento simultaneamente ao

desenvolvimento da teologia de Paulo, o que requereu peripécias singulares, tais


como a

recuperação dos judeus graças ao expediente das congregações gnósticas,


capítulos pouco

conhecidos da Igreja primitiva.

33. Gal, I I, 2.

34. Christian Antisemitism — A History of Hate (Jason Aronson Inc. Aronvale,


New

Jersey, Londres, 1995).

35. Dialogue, XI, 123-124, itt Robert A. Kraft, The Aposfolie Fafhers — A
Npiv

Translation and Commentary, 3 vol. (Nelson, New York, 1965).

36. B. Lohse, Die Passa-Homilie des Bischofs Meliton von Sardes (E. Brill,
Leyde, 1958).

37. Plínio, o Jovem, nomeado em 111 governador da Bitínia, interrogou Trajano


sobre a política que conviria seguir em relação ao cristianismo, que se expandia
de maneira alarmante. O próprio Plínio mandara executar os que se declaravam
cristãos e que, portanto, recusavam os ritos de celebração dos deuses pagãos e do
imperador. Trajano

respondeu-lhe que não era preciso ir procurar os cristãos, mas apenas punir os
obstinados que recusavam os sacrifícios aos deuses. Cf. Mareei Simon, La
Ciuilisation de Vantiquité

et le christianisme, op. cit. Era, pois, uma medida paliativa de Trajano, mas uma
distinção já

estava se estabelecendo entre o judaísmo e o cristianismo.

38 .Apologétique, XXI, 4-5, texto traduzido e apresentado por J. P. Waltzing,


introdu​

ção e notas de Pierre-Emmanual Dauzat (Les Bel es Let res, 1998).

39. Essa noção de “progresso” na história das religiões, profundamente


paradoxal e

mencionada na introdução destas páginas, será retomada no século XX por


antropólogos

como Lucien Lévy-Bruhl em La Mentalité primitive, Emile Durckheim em Les


Formes élé-

mentaires de la uie religieuse e Bronislaw Malinowsky no conjunto de sua obra.


146

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

40. Alan T. Davies, Antisemitism and the Foundations of Christianism (Paulist


Press,

New York, 1979).


41. O célebre conselho “Não recalcitre contra os aguilhões” (Atos XXVI, 14) é
uma

citação direta da injunção de Dioniso a Penteu zm As Bacantes, 795 (trad. franc.


Henri

Grégoire, Les Bel es Let res, 1961): “Em vez de recalcitrar contra seu aguilhão
— um

mortal contra Deus! — sacrifico-me a ele. .” E a forma inusitada da frase de 2


Tim. IV, 6

“Quanto a mim, minha vida já está estendida sobre o altar. .” foi reaproximada
do verso

de Eurípedes “Este Deus, por mais Deus que seja, estende-se em oferenda aos
Deuses...”

As Bacantes, 285, todas duas comportando a forma pas iva rara do verbo grego
orcBvSa) e

o verbo igualmente raro (3eo|i(XKEiv.


3.

A grande confusão

dos primeiros séculos

OS PAGÃOS INSULTAM OS CRISTÃOS, E OS CRISTÃOS, OS JUDEUS —


SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO TRATA OS JUDEUS DE “GERENTES DE BORDÉIS” — OS
JUDEUS PRI​

VADOS DE SEUS DIREITOS CÍVICOS — PROIBIÇÃO DE CONSTRUIR


OU DE RES​

TAURAR SINAGOGAS — PROIBIÇÃO DA CIRCUNCISÃO E


AUTORIZAÇÃO PARA

VIOLAR SANTUÁRIOS JUDEUS — PARALELO ENTRE AS MEDIDAS


ANTIJUDIAS DE

BIZÂNCIO E AS DO TERCEIRO REICH — INFLUÊNCIA DE SANTO


AGOSTINHO,

HERDEIRO DE PLATÃO E ARISTÓTELES — REFLEXÕES SOBRE O


TOTALITARISMO

Antes de o status do cristianismo ter sido oficializado pelo édito de

Tessalônica, em 380, 43 anos depois da conversão e da morte quase

simultâneas de Constantino, o anti-semitismo cristão não se podia manifestar


senão por escritos individuais. Fosse qual fosse a eloquência, as vituperações dos
oradores iam pelos ares e não se respaldavam em

nenhum poder civil, nenhuma lei; permaneciam, pois, sem efeitos. Para

os cristãos, não gostar dos judeus era um direito seu, mas, para os romanos, isso
não tinha mais importância do que a antipatia eventual dos trá-

cios pelos bitínios: pois o que eram os cristãos para os romanos senão

uma seita judaica?

A primeira Igreja era ela mesma perseguida pelos romanos, não tinha

meios nem poder temporal algum e, por falta de autoridade central, estava
dividida por cismas e heresias insistentes, notadamente o arianismo e o
gnosticismo,’ dos quais só se iria ver livre em decorrência de uma
sucessão de concílios. As primeiras comunidades cristãs — Cesaréia,

Éfeso, Antioquia, Tes alônica, Corinto — estavam submetidas aos pode-


148

HISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

res dos chefes locais e às pressões espirituais e temporais dos cultos

locais. Não tinham nem dogmas, nem teologia propriamente ditos, mas
um mosaico de interpretações dos Evangelhos e praticamente tantas cris-

tologias quanto bispos e patriarcas que se anatemizavam e províncias que

rivalizavam entre si.

Até os séculos III e IV os próprios cristãos sofreram ataques ideológicos muitas


vezes de extrema virulência, como o do filósofo pagão Porfírio de Tiro (por volta
de 232-305). Em seu panfleto Contra os

Cristãos, Porfírio nega a divindade de Jesus e declara que os cristãos só

estão atrás de riqueza e glória.2 Ammien Marcel in, historiador grego do

século IV, não foi mais gentil a respeito deles: “Os animais mais selvagens

são menos temíveis para os homens do que os cristãos entre si.” Mesmo

após a conversão de Constantino, a partida ainda não estava ganha para

eles: em 362, o imperador Juliano, dito o apóstata, tentou restaurar o

paganismo (mais especificamente, o mitraísmo), mandando reabrir os

templos e proibindo os cristãos de ensinar as letras clássicas. No ano

seguinte, publicou o panfleto Contra os Galileus, no qual descreve os cristãos


como gente inculta e gros eira.

A perseguição dos cristãos na época romana tem sido muito exagerada: uma
propaganda desencadeada no século XIX quis fàzer crer que, em Roma, passava-
se o tempo nos jogos do circo, onde todas as tardes cristãos eram oferecidos
como comida aos leões e a iluminação era feita com

“tochas cristãs”. Espantoso que os leões ainda tivessem fome. Entretanto,

es a perseguição era desencadeada esporadicamente e foi por isso que, no

século I , por exemplo, Tertuliano admoestou o procônsul Scapula de

Cartago: se você perseguir os cristãos, disse-lhe em resumo o apologista,


vai ter que se haver não só com a multidão dos pobres, mas até com as

pessoas de sua própria clas e.

Suas próprias agruras, admita-se, não incitavam os cristãos à brandura em


relação aos judeus. Muito pelo contrário, a campanha antijudia que praticavam
só fazia aumentar. No século I , um texto intitulado^ Epístola

de Barnabé, ao qual dois autores de peso, Clemente de Alexandria e

Orígenes, conferiram autoridade canónica, está cheio de distorções

espantosas sobre a interpretação da Torá:


A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

149

“E que impressão lhes causa es a ordem que é dada a Israel, de que os

homens culpados dos piores er os tragam uma novilha, a degolem e a


queimem; e que então as crianças recolham as cinzas e as despejem em

urnas, que enrolem em volta de uma madeira a lã escarlate (também uma

expressão da cruz, com a lã escarlate) e o hissopo, e em seguida aspirjam

o povo, para purificá-lo de seus pecados? Prestem atenção na simplicidade dessa


linguagem. A novilha designa Jesus, e os pecadores que vêm imolá-la são os
mesmos que o conduziram à morte. E a partir de então

esses homens estão perdidos, está perdida a glória dos pecadores...”3

A abolição da Lei é a maior obsessão dos autores cristãos primitivos:

“Persistir até hoje em viver segundo a Lei é confessar não ter recebido a

Graça”, assim escreveu Inácio de Antioquia aos magnesianos.4

Cerca de dois séculos mais tarde, o antijudaísmo subiu alguns graus

em violência. O mais veemente dos antijudeístas cristãos (e provavelmente o


menos falado) foi com certeza João Crisóstomo (“Boca de Ouro”), o mais
reverenciado dos doutores da Igreja do Oriente, postumamente santificado, e de
quem se louvou mais do que a todos “a beleza espiritual” dos sermões. No
século IV, pois, esse teólogo inspirado contava que os judeus “haviam construído
um bordel no Egito, que

faziam amor furiosamente com os bárbaros e adoravam deuses estrangeiros”.5


“Ateus, idólatras” (curiosa contradição em uma boca de ouro),

“infanticidas, apedrejadores de seus próprios profetas e culpados de 10

mil horrores”, prossegue ainda Crisóstomo. Apóstatas, deicidas, pagãos,

corrompidos e de agora em diante gerentes de bordel, esses seriam os

judeus. E os oradores cristãos ainda iriam mais longe do que seu senhor,

sem poupar jamais insultos degradantes quando queriam rebaixar os

judeus, mesmo sob o fogo das invectivas pagãs. Os mais virulentos anti-
semitas do século XX, como se vê, nada inventaram.

Seria possível encher uma enciclopédia com os discursos das autoridades morais
e religiosas cristãs: acusações, injúrias e deblaterações diversas escritas e
publicadas contra os judeus, que eram lidas para os

fiéis, difundidas, deformadas, amplificadas, atiçando o ódio mais selvagem,


incluído o religioso. Como já vimos, a tradução do Antigo Testamento para q
grego foi um momento funesto na história do judaísmo,
150

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

porque passou a fornecer permanentemente aos cristãos armas para “provar” a


baixeza do povo judeu; povo que havia tentado assassinar Moisés (o que era uma
interpretação no mínimo tendenciosa da passagem do Êxodo
XVI , 4, na qual Moisés declara a Deus temer ser lapidado) e com o qual

Deus rompera sua aliança (o que é falso). Os efeitos perversos da

Septuaginta não terminavam de repercutir ao longo dos séculos.

Sob es as avanias de car oceiros e es as diatribes distorcidas, proferidas do alto


de suas cadeiras e à sombra do poder imperial, triunfava uma retórica
particularmente perversa que consistia em se apropriar das

imprecações dos profetas judeus contra seu povo (e elas não faltavam)

para provar que o povo judeu quebrara sua aliança com Deus e que o

povo dos gentios é que o havia substituído como Povo eleito. A Igreja

tomava o lugar do Israel histórico para tornar-se o Israel celeste. E

Eusébio, bispo de Cesaréia, autor entre outros da prolixa Preparação

Evangélica (15 volumes), pretendeu no final do século IV que Abraão,

Isaac e Jacó não fossem judeus e sim pertencentes, como cristãos, a uma

“raça universal” e à Igreja eterna e predestinada. Retiravam-se, pois, dos

judeus até seus patriarcas e seus livros sagrados.

Para complicar as coisas, um sincretismo surpreendente, o judaico-

cristão, mestiçado de gnosticismo, florescia à margem do cristianismo,

nutrindo-se dos evangelhos não canónicos6 e difundindo-os, desagregando os


espíritos cristãos assim como os judeus, e suscitando a fúria de ambos. Ele
existia desde o tempo de Paulo; era a esses cristãos, que não

queriam abandonar completamente o judaísmo, que era dirigida a advertência


radical da Epístola aos Gâlatas (I, 8): “Se alguém, nós mesmos ou um anjo do
céu vier pregar um evangelho diferente do que nós pregamos, que seja
anatematizado.” Mas a dissidência era tenaz.
Mas, afinal, o cristianismo ia lentamente prevalecendo sobre o paganismo, e os
judeus constataram-no pela saraivada de éditos imperiais que não só lhes
retiravam os privilégios concedidos pelos pagãos como também os rebaixavam,
usando termos injuriosos, ao patamar de humanos inferiores. Após o Concílio de
Nicéia, em 325, a histeria antijudaica

redobrou seu furor. Cristo foi definido como “Divindade da Divindade,

Luz da Luz, Verdadeiro Deus do Verdadeiro Deus, consubstanciai ao


A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

151

Pai”, e a acusação mais corrente que se fazia aos judeus era de “deicidas”.

Impossível encontrar melhor pretexto para persegui-los.


Tudo começou em 18 de outubro de 315, quando Constantino proibiu os judeus
de adotarem medidas contra seus cor eligionários convertidos ao cristianismo, na
mesma ocasião em que ele próprio tomou medidas para desencorajar os cristãos
de se converterem ao judaísmo.

Em 7 de março de 321 Constantino decidiu que o domingo seria o

dia oficial do Império. Aparentemente não era uma medida especificamente


dirigida contra os judeus, mas Constantino não era suficientemente bobo para
ignorar que ela lhes tiraria um dia de trabalho, pois até então todo mundo
trabalhara nos domingos ou no dia que quisesse.

Como os judeus se abstinham de qualquer atividade aos sábados, teriam

que se abster também no dia seguinte.

Não se conhece exatamente a data na qual a jurisdição bizantina

decidiu que os judeus que circuncidavam seus escravos teriam que, por

assim dizer, libertá-los simultaneamente. Os judeus, de fato, seguindo os

preceitos da Torá, circuncidavam seus escravos, talvez por proselitismo,

mas igualmente para fazê-los participarem mais estreitamente da vida de

seus domicílios. Tornou-se progressivamente impossível para os judeus

ter outros escravos que não fossem judeus. A medida nada tinha a ver

com qualquer compaixão a respeito dos escravos, menos ainda com uma

atitude antiescravagista, uma vez que os próprios cristãos possuíam

escravos. Ela visava ao enfraquecimento económico dos judeus, privando-os da


mão-de-obra graças à qual podiam manter seus artesanatos e seus comércios.

Em 3 de agosto de 339, Constâncio, filho do bastardo Constantino, o

Grande, e de uma albergueira sérvia encontrada ao acaso, e herdeiro do


trono imperial, decidiu que, se um judeu comprasse um escravo judeu,

este seria automaticamente confiscado pelo Tesouro imperial. Os judeus,

com efeito, haviam eventualmente se habituado a ter escravos não circuncidados


e, na prática, tinham aceitado a imposição, mas o que se pretendia agora era não
lhes conceder por mais tempo o privilégio de possuir escravos. Além disso, a
circuncisão do escravo não mais provocaria ape​
152

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEMITISM O

nas sua libertação automática, mas também o confisco de todos os bens

do comprador judeu e a pena de morte.


Constâricio promulgou duas outras leis segundo as quais um cristão

que desposasse uma judia teria todos os seus bens confiscados pelo

Tesouro imperial, e uma cristã das paróquias imperiais que desposasse

um judeu, seria de facto mandada de volta às paróquias, e o marido seria

condenado à morte.

Foi durante o reinado de Graciano (375-383) que o cristianismo se

tornou verdadeiramente religião de Estado. Os membros do clero judeu

foram obrigados a renunciar a suas funções enquanto não cumprissem a

função de coletores das taxas imperiais, tarefa particularmente odiosa

para o povo.

Teodósio, o Grande, o glutão hidrópico que viu ou acreditou ter visto os


espectros de São João e de São Felipe montando cavalos brancos e anunciando-
lhe uma vitória militar, reinou de 363 a 395. Supõe-se que

ele protegeu os judeus. Na verdade, foi sob seu reinado que foram promulgadas
leis contra os judeus com referências insultuosas como nenhum imperador
jamais utilizara—seita bestial ,feralis secta, imersa em

vergonha ou turpitudo, sacrílega quando se reunia— e, pior do que tudo,

descrevendo os convertidos como pessoas que se poluíam no contágio

com o judaísmo, Judaicis semet polluere contagi s. Nem mesmo o Terceiro

Reich encontrou termos mais degradantes para expressar seu ódio aos

judeus. A ignomínia que os autores cristãos atribuíam aos judeus foi com

certeza igualada ou até ultrapassada pela forma com que expressavam seu

ódio.Teodósio, tentando manter suas prerogativas de protetor de todos os


cidadãos do Império, pretendeu defender os direitos dos judeus contra as

perseguições dos funcionários imperiais. Chegou até a entrar em um conflito —


o que poderia pressupor alguma boa-fé — contra o bispo Ambrósio de Milão,
espécie de aiatolá cristão de seu tempo, o qual sustentava o direito dos cristãos
de queimar as sinagogas.7 Mas o que significava defender os direitos dos judeus
quando o próprio Império promulgava

leis proibindo a construção de novas sinagogas e a restauração das antigas,

e qualificando de “adúltero” o casamento entre judeus e cristãos?


A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

153

Seus filhos Honorius e Arcadius, que dividiram entre si o império,

ampliaram a hostilidade. Digamos em sua defesa que eles eram dois


adolescentes fracos, dos quais um, Arcadius, era considerado retardado.
Foram instrumentos de regentes, ministros, generais e administradores.

A administração de Honorius proibiu aos judeus exercer funções oficiais,

e a de Arcadius, contemporâneo de João Crisóstomo, autorizou a viola​

ção de santuários judeus até que as dívidas dos judeus responsáveis fossem
pagas;8 entre outras vexações, proibiu também aos judeus o direito de
testemunhar diante de tribunais cristãos.

Provavelmente cansados de sua própria hipocrisia, os cristãos de

Bizâncio culminaram a degradação cívica dos judeus retirando do

patriarca judeu o status de prefeito pretoriano, até então funcionário do

Império.

William Nicholls, em sua notável obra Christian Antisemitism — A

History of Hate,9 traçou um surpreendente paralelo entre as medidas do

Império cristão do Oriente e as do Terceiro Reich. Depreende-se que

este último nada inventou em sua perseguição aos judeus, a não ser o

Holocausto. O estado de espírito foi idêntico. Todas as medidas anti-

semitas da Lei canónica de 306 até 1434 são reencontradas quase que

palavra por palavra na jurisdição do Terceiro Reich, de 1933 a 1941: da

obrigação do uso de uma insígnia sobre as roupas designando os judeus,

do quarto Concílio de Latrão em 1215 (cânone 68) até a proibição

imposta aos cristãos de vender bens aos judeus, decretada no sínodo de

Ofen em 1279. A inegável conclusão que resulta dessas medidas é que os

judeus deveriam ser eliminados da sociedade, e os que permanecessem


deveriam ser condenados à condição de párias.

Em pouco mais de meio século os judeus viram-se rebaixados ao

patamar mais inferior da humanidade, que permaneceria sendo o seu

durante cerca de sete séculos, até a Revolução Francesa, ou seja, até o fim

da monarquia cristã de direito divino. Até a proclamação do Estado teís-

ta (mas não ateu, contrariamente a um preconceito difundido) em 1789,

a caridade só foi cristã para os cristãos. Do antijudaísmo, a cristandade

passou então ao anti-semitismo declarado.

Os impérios cristãos do Oriente e do Ocidente não podiam acusar os


154

H ISTÓR IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

judeus de rebelião política: ela não existiu. Desde que o cristianismo

triunfou em Bizâncio até o século XIX, os judeus jamais demonstraram


ter ambições políticas. O único motivo da perseguição perpetrada com

infatigável ardor pelos cristãos foi em princípio religioso (mas veremos

mais adiante que esse pretexto encobriria a pilhagem e o confisco dos

bens judeus). Tudo se passou como se os cristãos tivessem conseguido

persuadir os judeus da indignidade que lhes era atribuída.

Os primeiros movimentos de perseguição foram oficiais: visavam à

destruição das estruturas económicas e jurídicas de seus estabelecimentos. A


pequena e a média burguesias judias já se encontravam enfraquecidas pela quase
proibição de possuir escravos, e a clas e rica se enfraquecera devido às cobranças
consideráveis do decurionato.10 Tratava-se na verdade de um movimento
organizado para destruir as comunidades

judaicas, cujo primeiro efeito era forçar os judeus menos corajosos a se

converter para sobreviver.

A esse fato seguiu-se um movimento igualmente organizado para a

eliminação do próprio judaísmo: o batismo cristão tomou-se obrigatório

para todos os judeus em diversos reinos, Bizâncio, evidentemente

(decreto de 632), mas também França (decreto de 633) e Espanha (decreto de


613). Esse endurecimento fora, por sinal, preparado com medidas das
autoridades relacionadas aos locais de culto: em Minorca em 418, a

sinagoga foi destruída, e os judeus obrigados ao batismo — exatamente o

que ocorreu em Ravena em 495, em Génova em 500, em Clermont em

535. . As sinagogas que permaneceram de pé foram destruídas na Palestina entre


419 e 422, outras foram confiscadas pelos cristãos em Antioquia em 423, em
Roma e em Amida (Diyarbakir) em 500, em

Caralis (Cagliari) e em Panormo (Palermo) em 590.1


Quatro séries de leis imperiais podem resumir es a vontade de aniquilação
espiritual e social dos judeus: as leis de Constantino, as leis de Constâncio, as
leis de Teodósio e as leis de Justiniano. É claro que outras

minorias viram-se submetidas às mesmas leis: os samaritanos, os mani-

queístas, os hereges e os pagãos. Mas, mesmo que para os judeus eles fossem
hereges, os samaritanos eram judeus. Os maniqueístas ou discípulos de Mani,
um persa que viveu no século I I, pregavam um sincretismo das
A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

155

doutrinas pitagóricas e platónicas e do ensinamento de Jesus, e afirmavam


essencialmente que dois princípios governavam o mundo, o bem e o mal, e que
os dois não podiam emanar do mesmo deus. Sem que previssem, acabaram
oferecendo uma solução própria para um problema que nenhuma religião havia
resolvido até aquele dia. Mas, mesmo sendo

numerosos, os maniqueístas não eram um povo como os judeus, menos

ainda um povo de tradições tão antigas e do qual o próprio cristianismo

se originara. Os hereges eram, por sua vez, abundantes, representando

um perigo muito mais considerável do que os judeus, uma vez que propagavam
suas heresias em detrimento da doutrina dominante, enquanto o proselitismo
judeu, pelas razões que já vimos, fora anulado. Mas os

verdadeiros inimigos continuavam sendo os judeus, de um modo semelhante às


disputas de família, em que os ódios entre irmãos são muito mais intensos do
que em relação a estranhos.

Essa perseguição sistemática parecia demonstrar que os impérios

cristãos do Oriente e do Ocidente haviam definitivamente abandonado a

cultura helenística e sucedido diretamente o Império Romano. Na verdade, isso


era apenas uma aparência. Contrariamente ao moderno conceito ao mesmo
tempo idealista e artificial, a Grécia helenística e a Grécia clás ica não eram o
modelo de tolerância que se imagina: o totalitarismo

intelectual, inerente a qualquer discurso e denunciado no século XX por

Roland Barthes, estava claramente enunciado no princípio de Aristóteles

segundo o qual “existiam os gregos e os bárbaros”, o que fazia pressupor

que toda a civilização morava na Grécia, e o resto era apenas o caos. Em

sua Política, Aristóteles explicita o totalitarismo inerente a sua concepção

do mundo: “Nós não devemos considerar nenhum dos cidadãos pertencentes a si


mesmos, mas todos pertencentes ao Estado.”12 A Grécia tolerou com
dificuldade que se ensinassem filosofias diferentes: o exemplo de Sócrates
demonstra o fato (o mesmo Sócrates a respeito do qual

Nietzsche perguntava se não teria sido judeu...). As cidades gregas por


pouco não acolheram uma filosofia de Estado. A Roma cristã teve problema
equivalente.

Uma vez mais os judeus viam-se desprovidos de qualquer meio de

resistência: não suficientemente numerosos, sem terra, sem exército,


156

H ISTÓ R IA GERAL DO ANTI-SEM ITISMO

esbar avam constantemente na presença imperial. Se quisessem fugir,

era quase preciso que se fos e para a Lua, a Ásia ou a África não romani-
zadas. A América ainda não havia sido descoberta. Eles estavam condenados à
sujeição quase universal. E, ainda por cima, eram vítimas da maior espoliação
cultural da história do mundo: o cristianismo lhes havia tomado seus Livros, o
Antigo Testamento, clamando com furor que todos os termos desses Livros os
condenavam. Esses Livros não mais lhes pertenciam. A Bíblia, a própria Torá
dos judeus, escrita por judeus, não era mais dos judeus, pertencia dali em diante
ao cristianismo. Os judeus não

podiam mais sequer citar seus Livros santos, pois as citações eram tachadas de
impostura.

Por outro lado, ao se difundir em Roma, o cristianismo apropriou-se

da gigantesca herança greco-romana (sobretudo grega) — Aristóteles,

Platão, Virgílio — ao mesmo tempo em que eventualmente saqueou seus

tesouros artísticos, templos e estátuas, sem contar os manuscritos, durante seus


impulsos de febre iconoclasta.13 Ao ocupar os territórios onde o helenismo
havia florescido, os romanos, por sua vez, simplesmente adotavam sua cultura e
suas obras de arte, que passavam a lhes servir de

modelos supremos. O cristianismo pretendeu sobrepujar a herança

greco-romana e reavivá-la por meio de sua teologia. Esse vasto projeto de

colonialismo cultural efetivamente atirou o judaísmo, pai do cristianismo, às


trevas exteriores: eles mesmos no passado não haviam rejeitado o helenismo?

O judaísmo foi novamente descrito como “arcaico”, acusação que

seria declinada de todas as maneiras durante séculos, até Voltaire e mais

além. O judeu passou a ser visto como uma figura atrasada, praticamente
selvagem, que insistia em suas crenças malsãs e suas péssimas maneiras, em vez
de confessar seu er o para ser admitido na Santa Ceia do cristianismo. Pois
aquele que persevera em seu er o é um imoral; no melhor dos casos é um idiota;
nos outros, um ser ruim.

Culturalmente espoliado, o judeu tomou-se além do mais, a partir


de Bizâncio, um indivíduo de segunda clas e, excluído da apoteose espiritual do
cristianismo. E assim foi criado um hábito que perduraria por dois milénios.
A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

157

Ao adotar o projeto imperialista, a Igreja só estava aplicando o sistema político


definido por Santo Agostinho em A Cidade de Deus. Em linha direta com A
República, de Platão, e com o culto da ordem divina que
impregnou toda sua obra, Agostinho substituiu o bem público pelo culto da
ordem divina. Para Agostinho, “o amor a si até o desprezo de Deus”

construíra a Cidade ter estre; e o amor de Deus, assim como “a promessa de


Redenção”, construiria a Cidade celeste. Daí a noção desenvolvida
posteriormente de um pontífice supremo que regeria as duas Cidades.

Noção que, como se sabe, não teve sucesso, “pois o papa exerce o poder

temporal, e o imperador procura participar do poder espiritual”.14

O cristianismo, por sua vez, adotou e impôs o modelo romano do

centralismo estatal até no domínio filosófico. Na verdade, nem sequer

havia necessidade de filosofia, uma vez que o cristianismo respondia a

todas as questões. Nota-se nesse aspecto a rejeição romana do humanismo,


conforme descrevemos: o Estado romano pagão ofereceu ao cristianismo um
molde ideal ao qual ele se podia encaixar com facilidade. E

assim nasceu a primeira tirania intelectual do mundo. Muito mais próximo do


cristianismo, ao qual havia fornecido a genealogia e as credenciais, o judaísmo
não poderia ser mais tolerado dentro do Império cristão do

que as grandes heresias cristãs, como o arianismo e o gnosticismo.

Não era apenas o judaísmo que estava em jogo, mas a totalidade das

comunidades não cristãs, cismáticas, hereges, pagãs e outras, os judeus

incluídos, é óbvio. A persistência das perseguições contra os judeus tinha

a ver com sua surpreendente resistência. Os cismas e as heresias estavam

sendo submetidos à prova de fogo. Ou foram suficientemente fortes para

resistir, como foi o caso da Ortodoxia, que conseguiu se assentar em territórios


inexpugnáveis, ou foram esmagados (o Pluquet, famoso Dicionário

das Heresias, mostra o imenso número dos que foram de fato esmagados).
Os judeus não eram cismáticos: eles pareciam cismáticos. Foi o suficiente para
que fossem jogados em meio ao tropel dos perseguidos.

Contudo, se quisermos incriminar um anti-semitismo específico,

não será em última análise o da Igreja, mas o da herança greco-romana,

que continua sendo até hoje muito mais um território sagrado do que

um local de estudos verdadeiramente críticos. De nada adianta opor


158

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Aristóteles e Platão aos papas em nome de um humanismo que foi forjado


tardiamente: todos eles compartilharam do mesmo totalitarismo de pensamento.
Salvo que Aristóteles não detinha poder (ele foi o preceptor
de Alexandre) e que Platão, que prudentemente se esgueirou após o processo de
Sócrates, foi apenas o conselheiro do tirano Denis de Siracusa.

A história não pode ser escrita somente de um ponto de vista moderno: como
nota Jean B. Neveux, “os historiadores evitam erradamente uma visão teológica
dos acontecimentos, e o ‘fim último’, a meta, fica sendo seu próprio tempo”.15

'Certamente, a tolerância poderia ter sido pleiteada. Mas não podemos esquecer
que ela, tal como a entendemos (e praticamos tão pouco) no século XX, é uma
noção em essência moderna, admitida virtualmente graças a um universalismo
midiático.16 A tolerância era dificilmente defensável em uma época de
convulsões incessantes, como a que se

seguiu à queda do Império Romano e nos séculos seguintes: tolerar os

arianistas, marcionitas e outros montanistas, assim como os judeus, era

correr o risco de assistir a insur eições sem-fim. Agostinho declarou-o

em alto e bom som em A Cidade de Deus: o estado pagão cometera o erro

de tolerar todas as filosofias. “O verdadeiro é transmitido junto com o

falso e pouco importa ao diabo, seu rei, o erro que triunfa, pois todos

conduzem igualmente à impiedade”, escreveu Étienne Gilson.17 “O

povo de Deus nunca conheceu uma licença assim, pois seus filósofos e

seus sábios são profetas que falam em nome da sabedoria de Deus.”

Animado pelo eterno e assustador otimismo dos que desbravam as avenidas da


Idade de Ouro, Agostinho chegou a encar egar o historiador Orósio de fazer o
inventário das tribulações sofridas pelos povos pagãos

por se terem afastado da Verdade da Cidade de Deus. Dali em diante o

mundo cristão ia viver imerso na paz bem-aventurada da luz celeste.

Diante de tais premissas, é claro que não poderia ser diferente.


Da época romana até o século XIX, todas as civilizações, todas as culturas e
todas as religiões não conheceram senão a lei do gládio; não é que a ela se
tenham resignado: escolheram-na e erigiram-na como um princípio legítimo.
Assim, todas elas consideraram a escravidão justa; todas

— o judaísmo incluído — estimaram que era normal privar um ser


A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

159

humano de sua liberdade física e moral e sujeitá-lo a suas vontades e seus

costumes. O judaísmo, por exemplo, impôs a circuncisão aos escravos


que não eram judeus. A tolerância no sentido moderno da palavra, o respeito
pelo outro tal como foi ensinado por Jesus no século I, era inconcebível: foram
os Estados cristãos que praticaram o tráfico de negros até o século XIX,
impunemente e com a consciência tranquila.

Podem-se isentar todas as injustiças e hor ores do passado porque os

culpados foram eles próprios vítimas de um estado de espírito ir esistível? Com


certeza não, mas nós não dispomos de todos os elementos, e esse género de
processo é sempre instruído segundo leis retroativas. Os

erros da cristandade, que foram o tema deste capítulo e o serão do

seguinte, comportam, entretanto, uma lição: o totalitarismo ideológico

provoca fatalmente o rebaixamento intelectual por mutilar tanto o culpado


quanto a vítima. Vimos exemplos eloquentes ao longo do século XX: os 70 anos
do império comunista da URSS, os 12 anos do Terceiro Reich

e o meio século já transcor ido do império comunista foijado por Mao

Tsé-tung. O Império cristão do Oriente e do Ocidente foi o precursor,

representando um dos momentos mais tenebrosos da história das civilizações. O


que interessa é que es a lição ultrapassa o problema do anti-semitismo.

Mas o anti-semitismo cristão distinguiu-se de todas as outras perseguições pela


duração de uma mentira que se serviu da imagem de um Deus da caridade para
professar uma desumanidade. Uma desumanidade ainda mais obstinada pelo fato
de se acreditar portadora de uma palavra revelada. É certo que, sem
totalitarismo, o cristianismo teria desaparecido. Resta saber se sua sobrevivência
não ficou manchada justamente por seu totalitarismo. Resta saber, no alvorecer
do novo século, se é possível a fé existir e não ser totalitária. Resta saber se o
amor de Deus exclui o do próximo.

A cristandade, todavia, não teria tempo de debater a questão: a grande noite da


Idade Média estava próxima.
160

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1.0
arianismo, ou heresia de Arius, sustentava que, se os Evangelhos não continham

nenhuma menção à Trindade, ela não existia e que Jesus era humano de origem
humana. Essa heresia iria provocar repercussões espirituais, teológicas e
políticas de primeira grandeza, e até enfrentamentos militares. O gnosticismo é
uma corrente intelectual e

religiosa que atravessou os séculos, cujos três principais pilares são os seguintes:
o conhecimento divino, ou gnose, não pode ser adquirido pelo logos, mas por
uma iluminação do ser; a graça divina é ou não dada; por último, o mundo
material é mau (cf. Histoire généra-

le de Dieu, do autor, Robert Lafont, 1970.

2. R. Joseph Hoffmann, Porphyry's Against the Christians, The Literary


Remains

(Prometheus Books, Amherst, New York, 1994). Todos os exemplares desse


panfleto

foram queimados em 448 por ordem da Igreja imperial; os fragmentos que


chegaram até

nós foram salvos pelo clérigo Macarius Magnes. Muitas das críticas que Porfírio
fez ao

cristianismo são de uma veemência descabida; em compensação, algumas


análises de textos evangélicos, notadamente o destaque de suas contradições,
demonstram que esse autor leu com atenção os Evangelhos. Porfírio indignou-se
com o fato de Jesus querer

edificar sua Igreja sobre Pedro, por ele chamado de Satã e de poltrão. Mas não se
pode

reduzir Porfírio a um panfletário anticristão: ele foi um universalista que


considerava

uma “debilidade” reivindicar uma identidade cultural fechada, mesmo que ela
fosse hele-
nística.

3. Les Pères apostoliques, écrits de la primitive Église (Le Seuil, 1980).

4 Ad.

5.

Orations contre les juifs, VI, 2. O destino de João Crisóstomo, um dos


inspiradores

da Igreja Ortodoxa e a respeito de quem se pode acrescentar que foi também um


dos

grandes inspiradores do anti-semitismo eslavo, iria contudo sofrer pelos excessos


de sua

linguagem. Foi fácil para seus inimigos, entre os quais o próprio Teófilo, bispo
de

Alexandria que o havia sagrado bispo de Constantinopla por ordem do


imperador, persuadir a imperatriz Eudóxia, esposa de Arcadius, de que os
discursos inflamados que ele proferia contra o luxo eram na verdade dirigidos a
ela. Como João Crisóstomo havia oferecido em 403 um refúgio a monges
egípcios excomungados por Teófilo, este encontrou o pretexto para anular a
ordem imperial: foi imediatamente para Constantinopla, convocou um falso
sínodo e depôs João Crisóstomo, sob o pretexto de que havia caluniado a
imperatriz. João Crisóstomo partiu, pois, para o exílio, e, dois meses mais tarde,
um incidente, verdadeiro, fabricado ou exagerado, agravou seu caso. Erigiu-se
uma estátua de Eudóxia na praça principal de Constantinopla e João Crisóstomo
teria na ocasião pronunciado um discurso evocando “Herodes que pediu a
cabeça de Batista sobre uma bandeja”. Eudóxia, tomada pela raiva, mandou
exilar João Crisóstomo pela segunda e última vez. Ele se queixou ao papa
Inocêncio I, que recor eu ao imperador do Ocidente,

Honorius, e os dois convocaram um sínodo para examinar o caso do orador. Mas


A GRANDE CONFUSÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

161

Arcadius não quis saber do resultado, e os dois legados do papa e do imperador


do

Ocidente foram, então, aprisionados em Constantinopla. João Crisóstomo só foi


reabilitado depois de sua morte, no Ponto, em 407, ocasião em que o papa
excomungou seus detratores.

6. Os judeus cristãos, representados por seitas como a dos nazarenos, dos


ebionitas

(e provavelmente os sabeístas), praticavam rigorosa observância da Lei e


rejeitavam com

veemência o ensinamento de Paulo, considerado traidor e não judeu. Alegava-se


que eles

se teriam servido de uma versão aramaica primitiva do Evangelho de Mateus, da


qual não

se encontrou vestígio, e que difundiam evangelhos hoje classificados entre os


apócrifos,

como o Evangelho dos hebreus e o Evangelho dos nazarenos. Fortemente


impregnados

de gnosticismo, os judeus cristãos não faziam sucesso entre os judeus ortodoxos


nem

tampouco entre os cristãos. Durante muito tempo se afirmou que a seita judaico-
cristã

teria desaparecido no século IV; é mais provável, contudo, que ela tenha
influenciado a

imagem do cristianismo no Corão, o que significa que Maomé, no século VI ,


teria tido

conhecimento do ensinamento judaico-cristão.

7. Em 388, os cristãos de Calinicus, a antiga Niceforum e atual Rakka da Síria,


cidade situada na confluência do Belikh e do Eufrates que se tomaria mais tarde
a capital do califa Harun el-Rachid, tocaram fogo na sinagoga local por incitação
do bispo. O prefeito romano da cidade escreveu ao imperador Teodósio I, que
respondeu que os responsáveis deveriam pagar a reconstrução da sinagoga. Mas
o bispo local, por sua vez, dirigiu-se ao temível Ambrósio, bispo de Milão, que
interrompeu um ofício religioso ao qual o

imperador assistia, alegando que não era motivo para tamanho escândalo o
incêndio de

uma sinagoga, “local de incredulidade e impiedade, reservatório de loucura que


o próprio

Deus condenara”. Quem deveria, pois, vingar os judeus, perguntou o bispo: o


Deus que

eles haviam insultado ou o Cristo que eles haviam crucificado? Teodósio tentou
resistir

a Ambrósio, mas, preocupado com uma excomunhão e após uma altercação


entre o bispo e um lugar-tenente do séquito imperial, preferiu ceder. Não foi a
tolerância que ditou a resistência de Teodósio, mas o sentimento de que devia
prosseguir na missão de protetor de todos os habitantes do Império, mantido
desde o último imperador pagão (cf.

William Nicholls, ChristianAntisemitism— A History ofHate, op. cit.).

8. Codex Theodosianus, XVI, 8,10,11 e 15, citado por James Parkes, em The
Conjlict of

the Church and the Synagogue: A Study in the Origins of Antisemitism


(Hermon Press, New

York, 1974).

9. Op. cit.

10. Conjunto de cobranças municipais acrescidas de obrigações ruinosas às quais


o

clero cristão escapava.

11. Nicholas de Lange, Atlas of theJewish World\ op. cit.


12.1337 a, 28-29 (Les Bel es Let res, 1998). É possível supor que foi também se
inspirando em Aristóteles que Paulo, Agostinho e diversos outros chegaram a
uma visão cia-
162

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISM O

ramente depreciativa das mulheres, inúteis em tempo de guer a, causadoras do


relaxamento dos costumes, favorecendo o homossexualismo, estimulando o
gosto pelo dinheiro (graças a seus dotes...) Politique JI, IX, 5-15.
13. Gys-Devic, De la Guerre des Titans à la bataille des manuscrits (Cahiers du
Cercle

Ernest Renan, n? 181, primeiro trimestre de 1993). Esse autor demonstrou que
muitas

construções pagãs cuja destruição se atribuiu a terremotos ou outras catástrofes


naturais,

na verdade, foram destruídas por iconoclastas cristãos.

14. Jean B. Neveux, De optimo piae reipublicae statu — Questions et réponses


de T. H.

Morus, de A. Frycz-Modijewski et de J. V. Andrea (XI^-XVI]? siècles), em


Religion et politique

— Les avatars de Vaugustinisme (Université de Saint-Étienne, 1998). Para


Agostinho, a vontade de poder ter estre emanava do orgulho humano, pecado
imperdoável, donde a necessidade de substituí-lo pelo poder espiritual, que era
imanente.

15. Id.

16. Em seu Traitésurla tolérance (trad. franc. Gal imard, Es ais, 1998) Michael
Walzer

menciona a tolerância de grandes impérios, como o Egito antigo e Roma, nos


quais os

burocratas decerto desprezavam os povos conquistados, mas garantiam a


administração

do conjunto sem se preocupar com a uniformização dos cultos, das culturas e dos
costumes. Parece-me que essa visão comporta nuanças: para começar, a
tolerância em questão era inspirada em considerações políticas; com efeito, uma
perseguição muito efetiva corria o risco de fomentar revoltas, como de fato
fomentou. No caso dos judeus do Império Romano, vimos nos capítulos
precedentes, a tolerância parece-me ter sido reduzida a sua
mais simples expressão, justamente por razões relacionadas a cultos e culturas.

17. La Philosophie au MoyenÂge (Payot, 1986).


4.

As trevas da Idade Média,

do século IV ao século XIV:

I. França, Espanha, Alemanha


A PAZ ANTES DA TEMPESTADE — OS MASSACRES JUDEUS DAS
CRUZADAS — OS

CLUNIACENSES — A TOLERÂNCIA DOS VISIGODOS NO LANGUEDOC


— AS AMBI​

ÇÕES HEGEMÓNICAS DO PAPADO E A PRETENSÃO AOS “DOIS


GLÁDIOS” — A

TOLERÂNCIA DOS VISIGODOS NA ESPANHA — OS TEÓLOGOS


IMPÕEM AOS

JUDEUS O USO DA ESTRELA AMARELA—SE A IGREJA TIVESSE


QUERIDO REPRIMIR

O ANTI-SEMITISMO... — A QUESTÃO DA PROFISSÃO JUDIA DE


BANQUEIRO — A

PERSEGUIÇÃO DOS JUDEUS NA ALEMANHA — OS MITOS DA


PROFANAÇÃO DA

HÓSTIA, DO ASSASSINATO RITUAL E DO ENVENENAMENTO DOS


POÇOS

A partir do final do século IV o destino dos judeus dependeria do

destino do Império e da história do mundo a seu redor.

Até 395, o Império estendia-se do oeste da Inglater a até a Península

Ibérica na Europa e até a Mauritânia na África; até o Ponto, a Capadócia,

a Síria, a Judéia, a Arábia e o Egito a leste. Suas tentativas de expansão na

Mesopotâmia e na Arménia tinham sido de breve duração. Ao longo de

todo o século IV, os “bárbaros” tinham exercido pressão cada vez mais

forte sobre o Império. A despeito da série de guarnições instaladas nas

fronteiras setentrionais para contê-los, jutos, anglos, francos, burgún-


dios, turíngios e alamanos reforçavam suas ameaças sobre a margem

oriental do Reno; marcomanos e quados pressionavam as defesas da

Itália do norte e da Ilíria; vândalos, asdingos, gépidas, visigodos e ostro-

godos ameaçavam atirar-se sobre a Grécia; enfim, a nordeste e a leste, ala-

nos e persas ameaçavam os territórios da atual Turquia, local da sede do


164

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Império. A Pax Romana tomara-se precária. É provável também que a

transferência da capital de Roma para Bizâncio, que havia deslocado o


centro do poder para o leste, tenha tomado cada vez mais difícil o controle de
territórios tão vastos.

Após a morte de Teodósio, em 395, o império foi cortado em dois,

segundo uma linha vertical que ia aproximadamente de Sírmio a Cirene,

completando assim a divisão já esboçada em 364.1 A metade ocidental

coube a Honorius, e a oriental, a Arcadius, os dois filhos de Teodósio, na

verdade dois pusilânimes. Nem a queda de Roma, em 476, nem o esfacelamento


progressivo do Império iriam conter a perseguição aos judeus nos círculos de
influência imediatos de Bizâncio e de Roma. Contudo, os

status especiais editados pelas leis imperiais não provocaram anti-

semitismo importante nem imediato nas populações cristianizadas dos

novos reinos e territórios independentes do antigo Império Romano do

Ocidente: suevos, bascos e visogodos, na Espanha, francos e burgúndios,

na França, germanos e lombardos, na Alemanha, gépidas, ávaros e eslavos, nos


Bálcãs e na Europa oriental. O que prova que era de Roma e de Bizâncio que
emanavam as vagas de anti-semitismo.

Recentemente cristianizadas, mas em grande parte oriundas da heresia arianista,


estimuladas por um dinamismo que frequentemente modificou suas fronteiras, es
as populações estavam muito pouco imbuídas do centralismo hegemónico
imperial. Após sua independência, não estabeleceram querelas ideológicas com
os judeus, que viviam em comunidades neutras e laboriosas, não se imiscuíam na
política e cujas atividades agrícolas e artesanais pareciam-lhes fontes de
prosperidade. Enfim, as

ordens monacais de obediência romana, monges de Cluny, franciscanos

e dominicanos ainda não se haviam formado e ainda não havia quem

trouxesse a palavra do papa ou do imperador para aquelas populações


designadas pelo o nome de “bárbaros”. Foi, por exemplo, o que se verificou em
relação à especial tolerância dos visigodos no sul da França e na Espanha.

A tolerância perdurou ao longo de todo o reinado de Carlos Magno

e após a divisão de seu império no Tratado de Verdun, em 843. O status

dos judeus era mais ou menos o mesmo que fora definido pelas leis
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

165

imperiais; não era igual ao dos cidadãos do Império, mas era aceitável e

permitia aos judeus alcançar uma certa prosperidade e implantar-se de


maneira duradoura. Por vezes alguns privilégios chegaram até a lhes ser

concedidos: em 1084, por exemplo, o governador de Spira, Rudiger, concedeu


diversos privilégios aos judeus da cidade, entre os quais o de cercar seu bairro
com uma muralha. Em 1090, o imperador Henrique IV

chegou a estendê-los. O duque da Boémia, Vratislaw I , concedeu autonomia aos


judeus. Provisoriamente, a Igreja ocupava-se menos com eles do que com as
disputas teológicas (que se envenenaram) entre as Igrejas do Oriente e do
Ocidente (no século VI , a rebelião das comunidades monofisitas da Síria e do
Egito contra as avanias de Bizâncio iria favorecer, diga-se de passagem, a
conquista desses países pelo Islã).

Foi a partir do século X que a modificação começou a tomar corpo. A

reforma monástica empreendida no século IX pelos beneditinos colocou

sob a autoridade direta do papado poderosos instrumentos de ação ideológica e


teológica: os cluniacenses, fundados em 910, os cistercienses, os
premonstratenses e as duas grandes ordens mendicantes que iriam ser a

dos dominicanos, fundada em 1216, e a dos franciscanos, fundada em

1223. Os cluniacenses, uma congregação poderosa com 350 monastérios

espalhados pela Europa, representavam nos séculos Xe XI um verdadeiro


exército espiritual. Seu “general” era, segundo a opinião unânime, o segundo
personagem da cristandade; colaboravam estreita e ativamente

com Roma para o resgate de uma cristandade que o enfraquecimento do

Império, os cismas e as heresias haviam perigosamente minado.

Em 1095, o papa Urbano I I decidiu galvanizar e unir a cristandade

por intermédio de uma operação de grande envergadura, uma cruzada

para reconquistar a Ter a Santa — ou seja, a Palestina — ocupada pelo

Islã. Curiosamente, a idéia levou tempo para amadurecer, pois o pretexto fora
um acontecimento ocor ido 24 anos antes: a tomada de Jerusalém (e da Síria) em
1071 dos califas fatímidas do Egito, pelos turcos seljúcidas. A realidade é que
Jerusalém havia passado de mãos muçulmanas, os

fatímidas, para mãos de outros muçulmanos, os seljúcidas, o que em

nada mudava o status da cidade, conquistada pelo Islã em 636. Além do

mais, a recente conquista da cidade é um problema decorrente da rivali​


166

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

dade muçulmana: Alp Arslam, o conquistador seljúcida, havia sido

nomeado califa dos muçulmanos em 1055 e pretendia usurpar dos fatí-


midas esse título prestigioso. Nada disso dizia respeito à cristandade.

Retrospectivamente, a súbita febre libertadora que acometeu a cristandade


ocidental chega a parecer um despropósito. Na verdade, ela foi uma expedição
de pilhagem. O Ocidente enfrentava uma aflitiva escassez

de ouro — os romanos haviam esgotado as reservas da Gália, da Ibéria e

do Egito para equilibrar suas balanças comerciais, eternamente deficitárias —, e


imaginava-se que do Oriente transbordavam riquezas.2

Também é verdade que Urbano I I, comportando-se como um chefe de

guerra do Ocidente inteiro, decidira empreender uma vasta guerra de

religião contra os “pagãos” da Europa do Leste bem como contra o Islã. E

contra os judeus.

Na França, a primeira cruzada degenerou rapidamente em roubos,

violações e massacres de judeus pelo exército de Pedro, o Eremita, e de

Emigo de Leisingen, ao longo do Reno. Guibert de Nogent, cronista da

época, escreveu em nome dos cruzados de Rouen: “Nós desejávamos ir

combater os inimigos de Deus no Oriente, mas tínhamos sob os olhos os

judeus, raça mais inimiga de Deus do que qualquer outra.”3 A observa​

ção deve ser entendida para além do aspecto religioso: os judeus eram

ricos, por que ir tão longe buscar dinheiro? As perseguições e massacres

de judeus se organizaram. Pois não se tratava mais de empreender uma

guerrilha económica e social, e, menos ainda, teológica: pretendia-se a

eliminação material ou mesmo puramente física.


Pier e de Cluny, lugar-tenente do papa, portanto o personagem mais

importante da cristandade depois do pontífice, reiterou a pergunta de

Guibert de Rouen a Felipe I: “Por que devemos procurar inimigos de

Cristo em países longínquos, se os judeus blasfemadores, bem piores dos

que os sar acenos, vivem no meio de nós a ultrajar impunemente Cristo

e os santuários da Igreja?” E difícil imaginar que os judeus pudessem

ultrajar Cristo num contexto daqueles, a não ser pelo fato de continuar

sendo judeus. O caridoso monge foi ouvido: em 1096, Felipe I expulsou

os judeus de seus Estados. A expulsão não foi desinteressada: ela implicava o


confisco dos bens imobiliários que os judeus, obrigados a partir, não
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

167

podiam car egar consigo e não podiam vender a não ser a baixo preço,

exatamente como se veria mais tarde na Alemanha nazista e na Europa


em guer a.

Durante esse tempo, os cruzados se comportavam na Ter a Santa

como se poderia imaginar. Dos 15 mil homens que partiram do Meuse e

do Baixo Reno, os que conseguiram chegar ao destino decerto massacraram os


muçulmanos que ocupavam a cidade, mas também os judeus que nada tinham a
ver, e o fizeram com um furor que refletia a carta ao papa

de seu chefe Godofredo de Bouil on, o herói das canções de gesta francesas: “Se
querem saber o que foi feito com o inimigo em Jerusalém, saibam que no Pórtico
e no Templo de Salomão nossa gente tinha o sangue vil dos sar acenos até a
altura do joelho de seus cavalos.” Os judeus da

cidade foram trancados nas sinagogas e queimados vivos.4 Um Oradour-

sur-Glane com oito séculos e meio de antecedência. Os relatos feitos na

volta pelos cruzados inflamaram os ardores: como poderíamos fazer

menos do que os bravos cavaleiros que partiram para defender nossa fé

em terra sar acena? Conviria, pois, na boa terra da França atacar o judeu

onde quer que estivesse.

Não demorou muito tempo: em 1144, Luís VI , aquele que deu

impulso à dinastia dos Capetos, expulsou de novo os judeus da França,

sob pena de serem condenados à morte ou mutilados. Adivinha-se que,

na exaltação histérica das cruzadas, mais de uma cidade encarregou-se de

se adiantar aos desejos reais. . e de se apropriar dos bens dos judeus. O

zelo evangélico desdobrava-se em deslavada cupidez. A primeira cruzada

tinha, com efeito, custado mais dinheiro do que tinha trazido, sendo por
isso necessário reorganizar as finanças.

Em 1181, Felipe Augusto mandou prender judeus em Paris durante

a celebração do sabá e ordenou que entregassem todo seu ouro, todo seu

dinheiro e suas pedras preciosas, bem como seu mobiliário, que só lhes

seria devolvido contra o pagamento de uma “multa” de 15 mil marcos:

era o começo da política de roubo puro e simples que a Santa Inquisição

adotaria prodigamente mais tarde com vistas ao próprio enriquecimento.

No ano seguinte, sempre às voltas com a falta de dinheiro, o monarca fez

melhor: deu três meses aos judeus para deixarem seu território e
168

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISMO

apropriou-se de todos os seus bens imobiliários, casas, campos, provisões

de toda espécie, bem como de seus créditos. Para que essa gatunagem
pura e simples fosse aceita pelas populações cristãs, gatunagem que afinal

ia além das prescrições da caridade cristã, Felipe Augusto declarou que os

devedores poderiam liberar-se de suas dívidas mediante o pagamento de

um quinto de seu valor ao Tesouro real. Nem um pouco perturbado por

escrúpulos, o mesmo rei iria reabrir suas fronteiras aos judeus em 1196,

mediante o pagamento de uma soma destinada ao Tesouro.5 É verdade

que eles seriam colocados sob a “proteção” do rei, contanto que a usura

não ultrapassasse um certo limiar.

Em linguagem contemporânea, tais exações poderiam ser resumidas

dizendo-se que a religião não teve grande coisa a ver com o anti-

semitismo da época, relacionado apenas a meras questões de numerário.

De fato, os judeus voltavam à carga: um campo de atividade lhes era

reservado, era o empréstimo dito “a usura”, ou seja, a juros. Um mito iria

se formar desde então, o do judeu de dedos crispados, ávido por ouro. A

verdade é diferente: em 1179, o segundo Concílio de Latrão proibiu aos

cristãos dedicar-se ao comércio de dinheiro. Como não existe atividade

comercial sem empréstimo, nem empréstimo sem juro, consentiu-se aos

judeus o que era proibido aos cristãos. Assim se criou, pelas mãos dos

cristãos, a tradição do poder económico dos judeus.6

Entre exações e espoliações, os massacres continuaram: massacres

em Rouen em 1096; massacres na Bretanha entre 1236 e 1239 e de novo


em 1240; massacres no Maine e na Gasconha em 1288; massacres na

Borgonha entre 1306 e 1315 e de novo entre 1322 e 1361; massacres em

Toulouse, Tours, Chinon e Bourges em 1320; massacres em Paris em

1380; revoltas antijudias entre 1348 e 1350 em Vil edieu, Saint-Satumin,

Châtel, Saint-Genx, Yennes, Chambéry, Aiguebel e, Montmélian, Tain-

1’Ermitage, Valence, Veynes, Nyons, Buis-lès-Baronies, Forcalquier,

Orange, Manosque, Vauduen, Toulon, Malemort, Mirabel. .

A França não era inteiramente anti-semita, mas apenas sujeita a surtos como se
eventualmente fos e acometida por uma febre quartã ou ter​

çã. Os judeus emigraram para o Languedoc governado pelos condes de

Toulouse, herdeiros do reino ocidental dos visigodos. Era uma terra de


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

169

asilo desde os visigodos, muito menos imbuída de religião do que as

regiões do império cristianizado que eles haviam derrotado pelas armas:


eles apreciavam os talentos e os serviços dos judeus. Cristãos, mas adeptos da
heresia de Arius, sustentavam que o Pai e o Filho não eram consubstanciais; e
que o Filho tinha sido engendrado, ao contrário do Pai, que não o havia sido —
heresia car egada de consequências, pois o Filho

tomava-se então uma criatura sem preexistência por toda a eternidade, e

o dogma da Igreja eterna e revelada, sobre o qual Roma fundava suas pretensões
à hegemonia universal, via-se minado. Os visigodos tinham, pois, bem menos
razões do que os cristãos para perseguir os judeus.

Chegaram a ser tão tolerantes, que, no século V, Salviano de Marselha

contrapôs as virtudes desses “bárbaros” aos vícios dos romanos e manifestou a


esperança de que os visigodos obtivessem a salvação a despeito de sua heresia.

Instalados na Espanha e na Aquitânia, os visigodos protegeram os

judeus desde os primórdios de seu reino. Fiandeiros, agricultores, viticultores,


importadores, os judeus revelaram-se essenciais à prosperidade do reino e
instalaram-se em Narbonne, Agde, Aigues-Mortes, Mont-pellier, Béziers,
Nimes, Carcassone, e evidentemente em Toulouse.

Tinham sinagogas em Touiouse, Béziers, Mende, Pamiers, Posquières,

Lunel, Nímes, Saint-Gil es.

Por certo não convém fazer uma imagem excessivamente idílica da

tolerância do Languedoc: “Em Béziers, escreve Philippe Bourdrel,

costumava-se jogar pedras nos judeus e atacá-los no dia de Ramos, para

Vingar o Senhor’. Em Toulouse, recebiam um soco em pleno rosto desferido


pela mão de alguém importante, recoberta com a manopla de ferro, no dia da
Páscoa, como lembrança dos que ultrajaram Cristo no calvário.”7

Falsa calmaria. Os albigenses também gozavam do direito de asilo no

Languedoc onde, conhecidos pelo nome de Bons Homens, eram profundamente


respeitados por suas virtudes, virtudes que, evidentemente, o papa Inocêncio I I
não levava em conta: os albigenses, assim chamados

por haver uma grande concentração deles em volta da cidade de Albi,

eram os seguidores da escandalosa heresia cátara, ela própria derivada do


170

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

gnosticismo maldito pela Igreja, que proclamava que a Encarnação não

podia ter ocorrido, pois o mundo espiritual e o mundo material eram


inconciliáveis. A heresia cátara, trazida pelos bogomilos da Trácia, ou seja,

da Bulgária (daí o nome de bugros que foi dado àquela corja que recusava

o comércio carnal, provavelmente por ser homossexual, claro!), contaminou a


própria Itália, além da Bósnia e do conjunto dos Bálcãs e até de Bizâncio. Sua
impertinência chegou a ponto de nomear um papa e bispos.

Para a Igreja de Roma, separada desde 1054 das Igrejas do Oriente e,

portanto, enfraquecida, a questão revestiu-se de enorme gravidade.

Inocêncio III decidiu realizar uma cruzada albigense. Enviou legados,

monges pregadores de São Domingos, ou dominicanos, aos bispos católicos para


mobilizá-los para a cruzada contra os albigenses. Os bispos se recusaram a
obtemperar às ordens pontificais, julgadas exorbitantes.

Raimon VI, conde de Toulouse, manifestou a mesma obstinação: não via

nenhuma razão para perseguir os Bons Homens e não acreditava nas

acusações de satanismo com que os católicos de Roma cobriam os cáta-

ros. Pior, em 15 de janeiro de 1208, Pier e de Castelnau, legado do papa,

foi assassinado.

Inocêncio II enviou uma ordem a Felipe Augusto: “Trate de expulsar o conde de


Toulouse da ter a que ocupa e de tirá-la dos sectários para entregá-la a bons
católicos.” Mas o rei não tinha total liberdade de ação,

dado que João da Inglater a e Othon da Alemanha estimulavam dissen-

sões na França. Porém, instigado por Inocêncio III, Arnaud-Amaury,

abade-geral de Cíteaux e promovido a legado do papa, pôs-se a pregar a

cruzada contra os albigenses, liberando das dívidas todos aqueles que

dela participassem. O argumento foi convincente. Foi nessa ocasião que


o sinistro Arnaud-Amaury, a quem se perguntou como reconhecer os

hereges, deu esta famosa resposta, inteiramente impregnada de fé e caridade


cristãs: “Matem-nos todos, Deus reconhecerá os seus.” No ano seguinte,
ameaçado pelas tropas do norte, Raimon VI terminou fazendo

um pacto com Roma depois de numerosas peripécias: decidiu incorporar-se ao


exército dos cruzados.

O arrependimento de Raimon IV não protegeu nem os cátaros, evidentemente,


nem os judeus, que se viram inopinadamente no centro do
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

171

duelo do papa e do Languedoc. Ao entrarem em Béziers, os cruzados

degolaram 15 mil cátaros e judeus.8 Raimon IV acreditou que a tempestade


havia passado, depois de ter ido a Roma para evitar a excomunhão de que estava
ameaçado, naquela época tão perigosa para um cristão quanto

uma fetwa de Teerã para um muçulmano na nossa época. Mas, ao retornar, os


legados pontificais cumularam-no de exigências inapeláveis, ameaçando mandar
destruir seus castelos e os de seus vassalos, caso não

abrisse mão de todos os seus poderes e seus bens em favor do clero, e não

se decidisse a “colocar fora de sua proteção os judeus pérfidos e os hereges que


os clérigos lhe [indicassem]”.

Na época, fazia sete séculos que as autoridades cristãs vinham perseguindo os


judeus. O antijudaísmo das minorias cristãs transformara-se desde então no que
se convencionou chamar de anti-semitismo. A má

vontade cristã institucionalizara-se. E só seria refreada seis séculos mais

tarde, depois que Joseph Bonaparte cortou o braço secular da Igreja — a

Inquisição — e finalmente colocou um ponto final nas exações que a

Igreja pretendeu exercer em nome do judeu Jesus.

A combustão extraordinária — claramente patológica — do ódio

cristão em relação aos judeus foi descrita inúmeras vezes. A maioria das

descrições concede-lhe o caráter de um desastre ir esistível, comparado à

peste negra que devastou o mundo na mesma época. É, a meu ver, o erro

denunciado na introdução destas páginas, no que diz respeito às descri​

ções da Shoah. Tende a fazer crer que o anti-semitismo se parece com

essas doenças inexplicáveis que dormem dentro do DNA das células e

cujo desenvolvimento nada consegue bar ar. Contudo, não é o que a

análise dos fatos revela.


A França, assim como o resto da Europa e do mundo, não era intrinsecamente
anti-semita, como o exemplo do Languedoc demonstra. A evidência é
indiscutível: a autoridade central que estimulava o anti-semitismo europeu era
Roma. E, na época, Inocêncio I I. Nomeado papa

em 1198, considerava-se o instrumento de uma teocracia mundial; tinha

a intenção de colocar todos os poderes políticos sob o controle do poder

espiritual absoluto do qual se julgava detentor. Já praticamente reinando

sobre a Itália, conseguiu eleger o imperador Othon IV (que depois exco​


172

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

mungou por ter ele desaprovado a ocupação imperial da Toscana) e pretendeu


ditar suas vontades políticas a Felipe Augusto e depois a João sem Ter a. . A
arrogância pontifical adotou a sucessão direta da arrogância
romana. Os papas seguintes reforçaram-na: a bula Unam Sanctam, de 1302,

afirmava que todo poder, o temporal incluído, estava submetido à autoridade do


papa. Era o triunfo das teses ditas “hierocráticas”, segundo as quais “não existe
nenhum título justo de posse, nem para os bens temporais, nem para as pessoas
laicas (. .) a não ser sob a autoridade da Igreja e pela Igreja”, como proclamou
Gil es de Roma.

Ora, as pretensões papais de dispor dos “dois gládios” — o espiritual

e o temporal — e a plenitudo potestatis do mundo dito cristão não tinnam

nenhuma base: nem uma única palavra no ensinamento de Jesus as justificava.


Esse ensinamento, já reinventado por São Paulo, não tinha necessidade de poder
temporal. A prova formal foi dada no decorrer do

século XX: a Igreja sobreviveu sem suster o gládio temporal, que ela

usou de forma tão detestável durante séculos. O anti-semitismo insensato foi


uma das feridas mais condenáveis no orgulho romano e uma mancha indelével
sobre as armas de São Pedro. Até o momento em que o poder temporal a
despojou de qualquer possibilidade de intervenção na

vida das pessoas, Roma desejou que o mundo inteiro fosse católico. Seu

totalitarismo visava exterminar os judeus e eliminar definitivamente o

judaísmo da face da Ter a. Ao menos a esse respeito o cristianismo revelou suas


profundas origens judaicas e a convicção num Deus intervencionista preocupado
em regular as questões humanas: o Deus de Moisés, portanto.

Se a vontade pontifical fos e de proteger os judeus, sob Inocêncio I I

assim como sob seus sucessores, ela teria tido todos os meios. Os clérigos

exerciam considerável influência sobre o povo: a Igreja teria podido, por

intermédio deles, proibir os massacres sob pena de excomunhão, assim

como poderia ter pressionado as autoridades laicas para reprimir o anti-


semitismo. Ela fez o contrário, e se vangloriando de uma humanidade

tolerante:9 os concílios, em particular o quarto de Latrão, nunca terminavam de


detalhar a doutrina de Santo Agostinho, segundo a qual “o povo testemunha”
estava condenado a sobreviver em estado de inferioridade.
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

173

“As disposições eram retomadas pelos sínodos, tais como o de Fritzlar

(1259) e o de Viena (1267), a fim de regulamentar no nível do detalhe as


relações entre os judeus e os cristãos”, escreve Francis Rapp.10 Em 1246,

durante o Concílio de Béziers, que mostrou a determinação do clero de

se imiscuir no menor detalhe a respeito das relações entre judeus e cristãos, os


bispos proibiram os cristãos de recorrer aos cuidados de um médico judeu, “pois
é melhor morrer do que dever a vida a um judeu”.

As conclusões dos concílios de Viena e de Breslau, em 1261, que foram

adotadas pelas leis seculares, chegaram a proibir os cristãos de comprar

víveres dos judeus: o rumor que cor ia era o de que os judeus faziam seus

filhos urinarem sobre eles. .

Em nome de Jesus, Roma terminou pisoteando a dignidade humana.

Ao rejeitar a política de Gregório, o Grande (590-604), que sabiamente

afastara a opção do batismo forçado,1 Roma de novo compeliu os judeus

à conversão, sem escrúpulo moral ou psicológico aparente: que valor

poderia ter uma conversão debaixo de gládio?

Muito pouco, com efeito: ela condenava o judeu à traição ou à infa-

mia. O judeu convertido Nicolas Donin, por sua própria vontade, foi

visitar o papa Gregório IX car egando uma lista de acusações contra o

Talmude e a literatura rabínica, desencadeando uma extensa inquirição

européia sob a ordem de Roma: o Talmude não era uma fonte de crenças

hereges?

A imposição da estrela amarela aos judeus da Europa, depois do

advento do nacional-socialismo foi, com razão, deplorada: essa sinistra


insígnia, que anunciava a mais tenebrosa perseguição de judeus vista até

então, foi, entretanto, uma invenção da Igreja. Foi decretada em 1215, no

Concílio de Latrão: os judeus eram obrigados ao uso da insígnia redonda

amarelo-açafrão, segundo as recomendações de São Luís e de Gregório

IX, além do fato de serem proibidos de exercer qualquer cargo público.

Foi São Luís quem impôs es a prática na França (retomada sete séculos

mais tarde pelo governo de Vichy em 1940) e que confiou seu monopólio aos
bailios: somente eles tinham autorização para dispensar do uso algum
“beneficiário”, “por exemplo os comerciantes importantes que

tinham que viajar para fora do reino”.12


174

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

As disposições do mesmo Concílio de Latrão dissipam qualquer

ambiguidade a respeito da determinação da Igreja de atirar os judeus às


trevas exteriores ou pelo menos fora da sociedade, uma vez que incluíram a
proibição de mostrar-se em público em certas épocas, notadamente durante a
Semana Santa. Seu status tomava-se, pois, inferior ao dos

escravos da Roma antiga.

A agitação política de Inocêncio I I trouxe consequências: a guer a

civil entre o norte e o sul dividiu a França. Simão de Monfort comandava as


tropas do norte e Raimon VI de Toulouse encarnava a resistência do Languedoc
à intolerância pontifical. Tudo isso aparentemente devido a

uma interpretação singular do dogma da Encarnação, mas na realidade

devido ao questionamento dos poderes da Igreja sobre o universo inteiro. A guer


a iria durar muito tempo, e sempre às expensas dos judeus, envolvidos em um
conflito no qual seu único erro foi ter senhores franceses como protetores.

Em 1217, as tropas de Raimon VI liberaram Toulouse. Simão de

Montfort morreu em combate. O pânico tomou conta do norte: iriam

perder o Midi? O filho de Montfort, Amaury, pediu ajuda ao rei, e o futuro Luís
VI I organizou o cerco de Toulouse. No dia 1? de agosto de 1219, a resistência
foi tamanha, que o príncipe Luís levantou o cerco. O

Languedoc estava livre! Mas não por muito tempo: em 1226, os exércitos

reais retomaram a ofensiva, e o cerco de Toulouse asfixiou a cidade. Dessa

vez o rei muito cristão tomou-a. O Languedoc capitulou, e o Tratado de

Meaux anexou-o à coroa da França. Raimon VI de Toulouse, diante dos

legados do papa, comprometeu-se a não dar empregos públicos aos

judeus nem aos hereges.

O judaísmo estava entrando em um período tenebroso.

No resto da Europa seu destino não era invejável. As perseguições na


França promoveram uma diáspora em sentido inverso que conduziu os

judeus para países mais tolerantes, como os territórios da Igreja

Ortodoxa, a África do Norte, a Mauritânia, a Cirenaica, o reino de

Nápoles e o antigo Benevento, que então pertencia aos Hohenstaufen. A

Polónia, igualmente mais tolerante do que os estados submetidos aos


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

175

ditames de Roma, acolheu os judeus. Assim, em 1264, o rei Boleslav IV,

o Casto, concedeu aos refugiados uma carta de autonomia, ou seja, o


direito de julgar os seus segundo suas próprias leis.

O caso da Espanha ilustra particularmente bem a ausência de anti-

semitismo anterior à dominação da Roma cristã. Lá também o mérito

dessa tolerância, por sinal bastante relativa, deveu-se em parte aos visigo-

dos. Em 494, durante o reinado de Alarico I (de 484 a 507), os visigodos

espalharam-se da Aquitânia até além dos Pireneus, ocuparam a Espanha

e, no reinado de Atanagildo (de 551 a 567), transferiram sua capital para

Toledo.13 Tudo parecia anunciar o pior: os visigodos, minoritários,14

eram arianistas como vimos, e os hispano-romanos, católicos. Os judeus,

imprensados entre os dois, estavam, pois, expostos a uma dupla persegui​

ção. Os casamentos interconfessionais eram proibidos. Mas não há traços

de perseguições especiais contra os judeus na situação instável que se

seguiu e que perdurou por alguns anos.

Mais tarde os católicos se rebelaram e fizeram valer sua superioridade numérica.


O rei Reccared, sucessor de Leovegildo, seguiu o exemplo de Clóvis e
converteu-se ao catolicismo por razões políticas: no terceiro

Concílio de Toledo, em 589, o catolicismo foi proclamado religião de

Estado. Até então não havia traços de perseguições anti-semitas, apesar

de o clero católico ter começado a exercer seu domínio sobre o país. As

perseguições só começaram em 612, com a coroação de Sisebut, que reinou até


621; foi esse rei que, em 613, ordenou o batismo obrigatório dos judeus. A
consolidação do catolicismo para os visigodos era, com efeito,

essencial à coesão do povo. Mas tudo iria mudar rapidamente para esses
reis, assim como para os judeus: a partir do quarto Concílio de Toledo,

presidido por Santo Isidoro, o rei e o governo ficaram submetidos à autoridade


eclesiástica.

Havia judeus na Espanha, naquela ocasião: o judaísmo fora introduzido no país


pelos romanos convertidos. Sua condição havia sido bastante confortável, pelo
menos no norte da península, fracamente cristianizada. Eles se beneficiavam da
relativa tolerância instaurada pelo Império até o reinado de Sisebut e os dois
últimos concílios de Toledo. Mas, naquele
176

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

momento, tudo mudava. A vindita romana iria alcançar os judeus até nas

Colunas de Hércules.
Mas a situação evoluiria mais uma vez de maneira imprevista. No

entretempo, com efeito, o Islã avançara até as extremidades da África. Em

711, Tarik, governador de Tânger, atravessou o estreito de Gibraltar e

derrotou os exércitos visigodos em Medina-Sidonia, no dia 19 de julho.

O último rei visigodo, Roderick, desapareceu da história. Com exceção

das Astúrias, a península passou para o controle islâmico. Em 956, os

omíadas estabeleceram sua capital em Córdoba. Uma idade de ouro

começava para os judeus: os muçulmanos iriam protegê-lo por ver neles,

como mais tarde Frederico I Hohenstaufen, os artesãos da prosperidade

confercial de seu reino. De fato, a colónia judia floresceu, e os judeus

criaram inúmeras indústrias, como as reputadas fiações de seda, as fábricas de


vidro e outros artesanatos. O efeito mais notável da proteção muçulmana, que
será exposto com mais detalhe no próximo capítulo, foi

ter realizado trocas fecundas entre as culturas hebraica e islâmica em um

clima de confiança excepcional.

A Reconquista da Espanha pela cristandade, porém, pôs termo a esse

período de paz, ou convivência, durante o qual muçulmanos e judeus viveram


em boa harmonia. De início os cristãos demonstraram moderação no período de
transição, em que tinham necessidade dos judeus, e mantiveram os privilégios
que os muçulmanos lhes haviam concedido. A perseguição, contudo, foi-se
desenvolvendo progressivamente. Mais

uma vez foi o clero cristão a dar o primeiro impulso. Um exemplo entre

outros: o rei Jaques I (1213-1276), do reino de Aragão, foi passar a sexta-

feira santa na cidade de Gerona. A despeito da presença real, o clero


tocou o sino de alarme da tor e da catedral. Mas o sino não estava tocando para
anunciar a sexta-feira santa: era um apelo à população para que fos e cometer
exações contra os judeus. A caça aos judeus começou então.

Bateram-lhes, espancaram-nos, pilharam e incendiaram suas casas. O rei

ficou indignado, vendo-se na situação inédita de dever pegar em armas

para defender os judeus contra o povo incitado pelo clero. Seu filho,

Pedro I I de Aragão, por diversas vezes advertiu o bispo de Gerona a propósito


dos incitamentos às perseguições, cuja responsabilidade recaía
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

177

sobre seu clero. Em uma ocasião, em 1278, o pregoeiro da cidade deu aos

padres a ordem de cessar os apelos às depredações: foi motivo de chacota. Os


testemunhos sobre es as desordens organizadas estão notoriamente ausentes dos
registros da chancelaria episcopal. Mas sabe-se, por um testemunho preciso do
ano de 1302, escapado à censura da Inquisição,

que elas eram regulares.15 E não aconteciam apenas em Gerona, mas

também em Barcelona, Vilafranca del Penedes, Camarasa, Pina, Besalu,

Daroca, Alcolea, Valência, Buriana, Apiera e Teruel.

Naquele mundo bárbaro que se dizia tomado de beleza interior, o

judeu tomou-se provavelmente feio. Obrigado a só se casar com os seus,

portanto sujeito ao empobrecimento de seu pool genético, frequentemente mal


nutrido e vivendo em etema angústia, é possível que tenha terminado por se
parecer com a caricatura que os admirados pintores da

Renascença se esforçaram para reproduzir, e que perdurou até a Revolução


Francesa: um personagem curvado, de nariz adunco. Um pária.

Como no Egito, antes do Êxodo. A feiúra, claro, não era cristã. A coroa

de Aragão nomeou uma guarda civil para proteger os judeus durante a

Semana Santa. Mas, em 1473, os judeus da cidade de Castellón se recusaram a


pagar a guarda — pagamento que lhes competia — porque ela mesma os havia
apedrejado!

Em 1378, o arquidiácono de Ecija, Fer ante Martinez, desencadeou

uma grande campanha anti-semita, que ele mesmo intensificou ao se

tomar administrador da diocese de Sevilha. Revoltas antijudias explodiram


novamente em Gerona, Burgos, Toledo, La Cuenca, Segóvia, Valência, Córdoba,
Sevilha e em Palma de Maiorca em 1391. Milhares de

judeus — um terço da população judia do país16 — foram massacrados,

sinagogas foram transformadas em igrejas, bair os judeus foram queimados,


mulheres e crianças vendidas como escravas. O êxodo dos judeus recomeçou em
direção aos territórios sob domínio muçulmano e aos
países do leste.

A Alemanha acertou o passo com o anti-semitismo francês com cerca de meio


século de atraso. Foi no início do século XVI I que a vaga de perseguições anti-
semitas cresceu verdadeiramente. Lembremos, contudo, que as fronteiras do
império germânico não eram as que conhece​
178

H ISTÓ R IA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

mos: diversos territórios há muito tempo não alemães, no sentido atual

dessa palavra, faziam parte dele na época. O ducado da Baixa Lorena


compreendia a Bélgica e os Países Baixos atuais; o reino da Borgonha

compreendia o sudeste da França; o margraviato de Verona compreendia

aproximadamente todo o Vêneto, e a Boémia tomou-se a partir de 1041

um feudo alemão. Os discursos sobre o anti-semitismo “hereditário”

alemão resultam, pois, de um desconhecimento histórico surpreendente. A


entidade alemã não existia então. Se é preciso definir o foco original do anti-
semitismo religioso europeu, é no norte da França que convém

situá-lo, entre a Normandia e Flandres.

Inicialmente, o espírito germânico não era mais anti-semita do que o

do Languedoc. O imperador Luís I, o Pio, conhecido também pelo epíteto de o


Complacente,17 terceiro filho de Carlos Magno, concedeu proteção aos judeus, e
seus sucessores lhes concederam privilégios. A trégua

foi breve. Insuflados pelo ativismo do cristianismo popular do outro lado

do Reno, as populações começaram sua guer ilha anti-semita a partir do

século XI, na ocasião da primeira cruzada, em 1096. Os massacres foram

suficientemente atrozes para suscitar a compaixão de cristãos como o

arcebispo de Mainz; o prelado tentou abrigar os judeus no arcebispado,

mas o furor popular atiçado por Rodolfo de Clairvaux foi tal, que o próprio
arcebispo precisou fugir para evitar ser massacrado. Só na cidade de Mainz mil
judeus pereceram sob o gládio do populacho e pelas próprias

mãos, pois, seguindo o exemplo dos sitiados de Massada, muitos deles

mataram suas mulheres e seus filhos antes de se suicidar, para evitar a

conversão ou as violências dos fanáticos.18 Quando o arcebispo se queixou ao


superior de Rodolfo de Clairvaux, o célebre São Bernardo, da ingerência
explícita de seu subordinado sobre o território sob sua jurisdi​
ção, Bernardo respondeu que condenara Rodolfo aos chefes por pregar

sem sua autorização, por demonstrar desprezo pela autoridade episcopal

e por incitar o assas inato. É uma espantosa equivalência colocar no mesmo


patamar o incitamento ao assas inato e a pregação sem permissão!19

Sete anos mais tarde, em 1103, a lembrança desses acontecimentos levou

o imperador Henrique IV a proclamar em Mainz a paz imperial, que

garantia aos judeus a proteção do imperador, mas não lhes reconhecia,


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

179

entretanto, o status de “homens livres”: o que significava que não tinham

o direito de pegar em armas.


A tolerância imperial pareceu renovar-se um século mais tarde, em

1236, com Frederico I Hohenstaufen, que designou os judeus valets de

sua casa, Servi camerae nostrae. Mas o reverso da medalha foi extraordinário: a
“proteção” dos judeus desdobrou-se pela primeira vez em sujeição integral. Os
judeus tornaram-se propriedade dos príncipes, da mesma

maneira que os escravos do Império Romano; não tinham mais sequer o

direito de se deslocar sem o consentimento de seus senhores. Como

atesta o caso dos judeus de Spira, que por 10 vezes foram usados como

garantia pelo imperador. Seu status inferior foi oficializado. A convicção

de que os judeus eram sub-homens apoderou-se até dos espíritos mais

moderados. E as perseguições na Alemanha começaram a adquirir um

caráter particularmente virulento.

Foi na Alemanha, ao que parece, que nasceu o mito venenoso e especificamente


cristão da profanação da hóstia, pretexto de numerosos massacres de judeus. Em
1243, perto de Berlim, correu o rumor de que judeus teriam roubado uma hóstia
e a estariam utilizando em cerimónias

profanatórias e diabólicas. Em 1298, em Rõt ingen, na Francônia, outro

rumor de hóstia profanada desencadeou novos massacres. Mais outro explodiu


em Nuremberg, com os mesmos efeitos. De versão em versão e de acréscimo em
acréscimo, o rumor foi-se desenvolvendo até as proporções de mito. O delírio
paranóico forneceu-lhe argumentos: os

judeus estavam pretendendo crucificar pela segunda vez o corpo de

Cristo presente na hóstia. Almas piedosas despacharam aos conventos

fragmentos de hóstias pretensamente profanadas, a fim de que fossem

expostas à veneração dos religiosos e das multidões, o que evidentemente era


uma maneira de estimular o anti-semitismo.

Uma epidemia de profanações de hóstias propagou-se por toda a

Europa, suscitando uma variedade de fábulas: a hóstia que teria escapado

das mãos dos judeus e levantado vôo provocando o desabamento da sinagoga, ou


então que teria se transformado em borboleta e ido curar leprosos, ou emitido
gritos lancinantes como os de uma criança crucificada.

Ademais, outro mito estava se formando na mesma época: o das


180

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

crianças crucificadas pelos judeus, que lhes chupavam o sangue e

utilizavam-no na fabricação de hóstias satânicas. Mas esse mito do as assinato


ritual não era de origem alemã: a primeira versão conhecida situa-se em
Norwich, na Inglater a, em 1144;20 conhecem-se outras versões,

como a de Blois em 1171, em seguida às quais toda a comunidade judia

dessas cidades foi queimada viva; e mais tarde a de Pontoise, em 1179.0

menor dos incidentes oferecia pretexto para alegações de mortes rituais,

e seguiam-se os assassinatos, as degolas, os enforcamentos ou as fogueiras de


judeus. A tradição popular incorporava-os, e canções perpetuavam o mito da
criança sangrada até a morte por judeus, como “Bom Wemer”,

de Bacharach, em 1287. Muitos anos mais tarde, monges e pessoas

importantes de Bacharach chegaram a tentar institucionalizar um culto

oficial do menino que teria sido vítima dos judeus. Numa época em que

a mortalidade infantil era muito elevada, não havia criança que morresse

de crupe, mordida de cobra ou insolação sem que se visse nisso a obra

dos judeus, de seus sortilégios, intrigas ou feitiçarias. Rapp, já mencionado,


supõe com toda razão que esse folclore só surgiu muito depois dos
acontecimentos, para justificar as explosões de violência: só tomou forma, com
efeito, muito anos ou dezenas de anos após os massacres supostamente
provocados por eles.

Alguns autores atribuíram es a virulência a fatores financeiros e económicos. Em


A História dos Judeus, Paul Johnson explica as perseguições pelo fato de que os
judeus eram os únicos emprestadores. Em Perpignan

no século XI I, observa ele, 43% dos tomadores de empréstimos eram

camponeses, 41% citadinos, 9% cavaleiros e aristocratas, e 5% membros

do clero. Os perseguidores teriam, pois, pensado que o melhor meio de

se livrar das próprias dívidas era livrar-se dos credores. É a teoria que cronistas
da Idade Média, como o natural de Estrasburgo Twinger,já sustentavam: a
hipótese é plausível, mas resiste mal à análise histórica e revela-se até
tendenciosa.

Com efeito, a ordem de 1230, provinda do rei muito cristão São Luís,

proibiu os judeus de emprestar a juros; as perseguições e massacres


prosseguiram, contudo, na França como em outros lugares, e muito depois dessa
data. Além do mais, seria necessário atribuir aos habitantes de
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

181

Perpignon, assim como aos citadinos de outras cidades onde se perseguiam


judeus, uma visão bem curta: a exterminação destes últimos privaria a cidade de
recursos financeiros de longo prazo. A prova é que, na mesma época, em
Ratisbonne, “uma união de cristãos foi formada com o
objetivo de proteger a comunidade judia, a qual garante o aporte de grandes
somas à municipalidade”.21 Enfim, era do interesse de todos os monarcas contar
com uma comunidade judia ativa e próspera, por um

lado por causa das taxas particularmente pesadas impostas aos judeus e,

por outro, porque eles produziam capital, de que os reis de França

sofriam aflitiva escas ez. Outras críticas destacaram igualmente que na

Francônia, por exemplo, as sevícias anti-semitas eram cometidas por citadinos,


quando na verdade era aos camponeses que os judeus emprestavam dinheiro.

Por certo, o fato de os judeus possuírem riquezas, uma vez que eram

os únicos a exercer a função de banqueiros,2 despertava em muitos casos

animosidade contra eles. As taxas praticadas nos empréstimos eram, com

razão, qualificadas de usurárias: até 173%23 (no Reino Unido, no século

XX, os tribunais admitiram empréstimos com taxas superiores a 48% e

até 100% para empréstimos de longo prazo24). Taxas assim exorbitantes

chegaram a ser consideradas tão escandalosas, que o Antigo Testamento

proibia o empréstimo a juros.

É difícil avaliar hoje em dia, na cultura económica, com a livre concor ência
bancária e o Estado exercendo controle sobre os juros bancários (que, por sinal,
bem que mereceriam algumas observações “cristãs”

mas, infelizmente, anacrónicas), a profunda indignação que a usura, em

todas as suas formas e em todos os níveis, suscitava nos meios primitivos

da Idade Média. Cristão ou judeu, o usuário era um “ladrão de tempo”,

“O usurário não vende ao devedor nada que lhe pertença, a não ser o
tempo que pertence a Deus, escrevia no século XIII Thomas de

Chobham. Portanto, ele não pode lucrar com a venda de um bem que

não é dele.”25 Precursor da economia moderna para o historiador igualmente


moderno, o usurário ofendia profundamente, e sem nenhuma dúvida com toda
sinceridade, o senso moral de seu devedor, tanto mais

pelo fato de não ter a mesma religião que ele e, portanto, parecer não ter
182

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

senso moral. O usurário expunha o devedor à lei do dinheiro, ou seja, à

razão do mais forte, que excluía qualquer compaixão. Mesmo sendo cristão,
cobria-se de opróbrio; assim, quando o empréstimo a juros foi autorizado para os
cristãos, o grande emprestador de Carlos VI , favorito do papa Nicolau y Jaques
Coeur, um dos primeiros grandes banqueiros da

história, foi instado a desculpar-se publicamente em Bourges no ano

1451 e a devolver os juros “indevidamente” percebidos.26

Mas é preciso lembrar que a necessidade de dinheiro vivo era dura-

mente sentida na época e que a lei canónica admitia haver situações nas

quais o emprestador poderia legitimamente exigir uma remuneração

sobre o dinheiro adiantado. Foram, assim, os monges franciscanos os

inventores das casas de penhor no século XV, para poder socorrer os

pobres que não dispunham de nenhum recurso financeiro.27 “A liga das

cidades renanas autorizou empréstimos a 43% para pagamento por

semana e a 33% para pagamentos anuais”, escreveu Rapp. Alguns judeus

conseguiram, pois, acumular fortunas consideráveis, que lhes valeram a

animosidade das populações: aos olhos delas, tratava-se de dinheiro

ganho às expensas das necessidades alheias, sendo os judeus, portanto,

uns parasitas.

Mas é muito provável que os principados tenham recuperado boa

parte dos juros ar ecadados pelos judeus por meio de impostos elevadíssimos,
empréstimos forçados, cobranças igualmente exorbitantes por atividades
normalmente não taxadas (restauração de um teto); e que os

mesmos principados tenham cometido na época abusos claramente ilegais, como


o que consistia em decretar a anulação de créditos de judeus por motivos como o
deslocamento de um judeu sem o consentimento de
seu senhor.

É também igualmente certo que o anti-semitismo antecedeu as ativi-

dades banqueiras dos judeus, e que nem as autoridades religiosas, nem os

patrícios, na Alemanha assim como no resto da Europa, adotaram medidas


enérgicas para conter os furores anti-semitas. Estes, como se verá no próximo
capítulo, perduraram mesmo na ocasião em que a concor ência

dos lombardos e dos cahorsinos havia rebaixado os judeus da categoria de

banqueiros para a de pequenos emprestadores. Imbuídos da idéia de que


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

183

os judeus eram, aos olhos dos teólogos e do clero, indivíduos inferiores,

as autoridades faziam vistas gros as.


Em 1298, um cavaleiro alemão chamado Rindfleisch, “Carne de

Boi”, organizou bandos de matadores de judeus; esses precursores das SS

chegaram a massacrar judeus em 46 localidades da Alemanha do sul e do

centro.28 A loucura assassina tomou a Francônia, a Suábia, o Hesse, a

Turíngia e o Heilbronn. Em 1336, partindo de Worms, os mesmos bandos de


matadores de judeus denominados, a partir de então, Annleder,

“Braços de Couro”, agrediram particularmente em Wtirtemberg, na

Francônia e na Alsácia. Mas nenhuma cidade germânica, do século XI I

ao Xy escapou da histeria anti-semita e as as ina posta em marcha pelo

cristianismo, de Colónia em 1424 a Salzburgo em 1470, de Praga em

1400 a Zurique em 1435.

Um dos períodos mais sinistros da Idade Média foi, com toda certeza, quando
uma epidemia de peste negra devastou a Europa entre o final de 1348 e o verão
de 1354. Os que fugiam das cidades atingidas, ao chegar nas que ainda não
tinham sido, espalhavam boatos extravagantes segundo os quais os judeus teriam
envenenado os poços. Trezentas e cin-qiienta comunidades judias da Europa
foram vítimas de perseguições

motivadas por es es boatos.

É espantoso que ainda tenham sobrado judeus na Europa. Expulsos

da França pela primeira vez em 1306, o foram pela segunda vez,


“definitivamente”, em 1394, com exceção da Provença, do Delfmado e de
Avignon. Tinham sido expulsos da Inglaterra em 1290, e o Grande

Inquisidor Torquemada iria expulsá-los da Espanha em 1492, no mesmo

ano da descoberta da América, e em 1496, de Portugal.

Essa longa crise de loucura que foi a Alta Idade Média, plena de
imprecações, anátemas, turbas ululantes assas inas, gritos de agonia ou

de exaltações religiosas, iluminada pelos clarões avermelhados das

fogueiras, pintada de vermelho com o sangue das guerras, empestada

pelas centenas de milhares de cadáveres que as epidemias iam semeando

à sua passagem, provavelmente explica, de certa maneira, as perseguições

de que foram vítimas os judeus. A razão desertara inteiramente daquele

mundo que demorava muito para se reorganizar depois da queda do


184

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMIT1SMO

Império Romano: reinavam apenas as paixões e as certezas e, como disse

Nietzsche, “não é a dúvida que enlouquece, é a certeza”. Pois, com efeito, todos
os poderes estavam seguros da justeza de suas ambições hegemónicas. E, entre
eles, o que se encontrava mais imbuído de certeza era o poder pontifical,
representante autoproclamado do poder de Deus: a

seus olhos, os judeus encarnavam uma mancha vergonhosa na criação do

Tòdo-Poderoso.

A própria diáspora tinha tomado os judeus vulneráveis: eram gente

sem ter a, não eram uma nação, muito mal um povo. Eles eram os mais

fracos. E a fraqueza era um crime no mundo dos cristãos, quando não se

era cristão.
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

185

Bibliografia e notas críticas

1. Essa divisão fora feita em 364 entre Valentiniano I, imperador do


Ocidente, e
Valente, do Oriente. Mas o império foi em seguida reunificado por Teodósio.

2. René Sédillot, Histoire morale et immorale de la monnaie (Bordas, 1989).


Os sucessores do Império Romano do Oriente e do Ocidente não possuíam a
competência de seus predecessores na exploração das minas, cuja maior
parte estava esgotada, como as dos
gauleses.
3. Citado por Victor Duruy, Histoire de VEurope et de la France au
MoyenÂge, op. cit.

4*. Cf. Malcolm Hay, The Roots of Christian Antisemitism (Freedom Library
Press,

1981).

5. Philippe Bourdrel, Histoire des juifs de France (Albin Michel, 1974).

6. São Tomás de Aquino (1225-1274) insistiu em proibir a usura assim como


as

letras de câmbio, indispensáveis, no entanto, para o comércio entre Estados;


mas, no

século XIV, alguns comentaristas como Henri de Gand e Alexandre de


Alexandria permitiram a reinterpretação dos textos canónicos, tomando-se
lícito recorrer às letras de câmbio, salvo para a especulação. Cf. Marie-
Thérèse Boyer-Xambeu, Ghislain Deleplace

e Lucien Gillard, Monnaieprivée etpouvoir des princes (CNRS, 1986).

7. Histoire des juifs de France, op. cit.

8. Jacques Madaule, Le drame albigeois et le destin français (Grasset, 1962);


Jean-Pierre

Cartier, Histoire de la croisade contre les Albigeois (Grasset, 1969).

9. Em 1247, por exemplo, o papa Inocêncio IV incitou os prelados da


Alemanha a

condenar os fiéis que utilizassem pretextos como as mortes rituais para


molestar os

judeus. Mas nenhuma sanção foi imposta, e os “molestamentos”


prosseguiram como

antes. Cf. Henry Chadwick, The Pelican History of the Church (3 vol.,
Penguin Books,

Harmondsworth, Middlesex, 1967).

10. Les Juifs en Allemagne à la fin du Moyen Âge, em Histoire du


Christianisme, t. 6,

sob a direção de J. M. Mayeur, Ch. Piétri, A.Vauchez e M. Venard


(Desclée/Fayard, 1990).

11.0 cuidado desse papa em equilibrar os princípios de “preservação” e de


“miséria” dos judeus (miséria prescrita pelos Doutores da Igreja, como
Agostinho e Tertuliano) necessariamente suscita a reprovação do leitor do
século XX; para a época,

demonstrava louvável moderação. Faltou pouco para que Gregório, o


Grande, frequente

e abusivamente apresentado como um modelo da generosidade pontifical a


respeito dos
186

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

judeus, tivesse brilhado pela agudeza de seus desígnios: proibiu o batismo


forçado dos

judeus, mas multiplicou as medidas económicas e sociais que os


constrangiam a se converter. Proibiu o confisco das sinagogas, mas se
limitou a condenar a “precipitação” dos que o fizeram, como o bispo Victor
de Palermo que, tendo se apossado de uma sinagoga,

transformou-a em igreja e negou-se a devolver a construção aos judeus.


Pior: condenou

o bispo a pagar a construção de uma nova sinagoga, o que a transformou


em... propriedade da Igreja! Cf. Edward A.. Synan, The Popes and theJews
in the MiddleAges (Macmillan, New York, 1965).

12. Les Juifs en Allemagne à la fin du Moyen Âge, em Histoire du


Christianisme, t. 6,

op. cit. Nove concílios renovaram a recomendação da insígnia redonda entre


1215 e 1370;

e os papas Pio II, em 1459, e Alexandre VI, em 1494, renovaram essa


recomendação,

insistindo sobre a cor amarelo-açafrão. Em 1363, contudo, o rei da França,


João II, decretou que a insígnia redonda, já adotada por Thibaut de
Navarra em 1234, deveria ser vermelha e branca. Como o Santo Império
Romano Germânico havia demonstrado repugnância em impor o porte da
insígnia redonda, em 1233 o papa Gregório IX queixou-se do fato em uma
carta aos bispos alemães. E os judeus de Colónia, Augsburgo e Nuremberg

foram então forçados a se submeter. São Luís impôs uma multa exorbitante
de 10 libras

de Tours aos judeus que se negassem a portar suas insígnias redondas. Em


Jeffrey

Richards, Sex, Dissidence and Damnation (Routledge, Londres e New York,


1990).

13. O enfraquecimento do Império Romano, no começo do século V, criou


uma

situação confusa e constantemente em mutação: os “bárbaros” (vândalos,


suevos, alanos)

que pressionaram as guarnições romanas e atravessaram o Reno em 406-


407 invadiram a

França e a Espanha sem encontrar grande resistência. As populações locais


acolheram-

nos até com alívio, na esperança de que os novos ocupantes as liberassem


dos coletores de

impostos imperiais. Mas a divisão acrescentou-se à confusão: no norte, os


asturianos e os

bascos viram-se praticamente independentes, assim como a região


montanhosa de

Cuenca, de Albacete e da Sierra Nevada, habitadas pelos oróspedes (que


mantiveram sua

independência até o século VI). As únicas grandes estruturas que


permaneceram na

Espanha foram as estabelecidas pelo Império Romano: legislativas,


administrativas e religiosas (a Igreja cristã). Foi então que, para estabelecer
um pouco a ordem, as populações do norte apelaram para os visigodos.

14. Não eram mais do que 200 mil (Spaiti, Enciclopédia Britânica).

15. O próprio clero participava dessas revoltas: na ocasião de uma delas,


um monge

de 15 anos chamado Simão foi reconhecido como autor de um ataque com


funda contra

um adolescente de sua idade, que morreu logo em seguida. Em Espana


Sagrada, teatro

geografico-historico de la Iglesia de Espana (Florez, Madrid, 1918); J.


Vincke, Documenta selecta mutuas civitatis arago-cathalaunicae et ecclesie
relationes illustrantiz (Barcelona, 1936), citados por David Nirenberg,
Communities in Violence — Persecution ofMinorities in the MiddleAges

(Princeton University Press, Princeton, 1996).

16. Esquisse de 1’histoire du peuple juif, in Dictionnaire encyclopédique du


judaisme, sob

a direção de Geoífrey Wigoder (Cerf/Robert Laf ont 1996).


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

187

17. Ele mandou mutilar e executar de forma atroz seu sobrinho, rei da
Itália, que

havia demonstrado independência a seu respeito.


18. Z. Avneri, Germania Judaica, II, von 1238 bis surMit e des 14
Jahrhunderts, 2 vol.

(Tubingen, 1968).

19. William Nicholls, ChristianAntisemitism: A History oJHate, op. cit.

20. Pouco depois da Páscoa, segundo o rumor, um menino chamado


William, filho

de um rico fazendeiro e aprendiz na casa de um curtidor de peles,


desapareceu. Fora visto pela última vez entrando na casa de um judeu. Seu
corpo foi encontrado dois dias mais tarde a leste da cidade, em Thorpe
Wood, com o crânio raspado e todo retalhado. A mãe

do menino e um padre local, Goldwin, afirmaram que a vítima teria sido


raptada depois

do serviço em uma sinagoga de Norwich para uma repetição da Paixão de


Jesus.

Empregados de uma casa judia afirmaram mais tarde ter assistido ao


martírio do menino

através de uma fenda na porta: tinham-lhe posto sobre a cabeça, disseram


eles, uma coroa

de espinhos, em seguida o colocado sobre uma cruz e o pregado; depois


perfuraram-lhe

as costas e derramaram água fervendo sobre o corpo. O encarregado de


polícia, farejando

a maquinação, recusou-se a prender e a deixar que os judeus fossem


julgados, uma vez

que eram propriedade do rei, e mandou-os, para garantir-lhes a segurança,


para o castelo

do senhor de Norwick. Ao que parece, o menino teria sido vítima de uma


crise de epilepsia durante a qual feriu o crânio.

A história não parou aí: começaram a ser registrados milagres efetuados


pelo pretenso mártir. O menino viu-se promovido à santidade por consenso
popular. Mas os eclesiásticos locais permaneceram tão céticos quanto as
autoridades judiciárias. Dois anos mais tarde, quando um dos curas
partidários Ho rumor se tornou bispo de Norwich, sua

eleição serviu de pretexto para uma grande manifestação antijudia. Santo


William de

Norwich iria ser apenas o primeiro de uma longa série de santos inventados.
Cf.

Augustus Jessop e M. R. James, The Life and Miracles of St. Wil iam of
Norwich by Thomas

of Monmouth (Cambridge University Press, Cambridge, 1896), citado por P.


Johnson,

História dos Judeus, op. cit.

A novela do assassinato ritual é resistente, pois reapareceu no século XX na


Itália,

quando os fiéis pretenderam reativar o suposto antigo culto de um menino


mártir,

Domenichino del Vai, que teria sido morto por judeus de Saragossa por
volta de 1250

(Response, boletim do Centro Simão Wiesenthal, setembro de 1989).

21. Id. Foi, de fato, o próprio São Bernardo, pregador oficial da primeira
cruzada,

que declarou ser meritório matar um infiel. Bernardo de Clairvaux opunha-


se, em todo

caso, ao massacre de judeus, e quando foi à Renânia teve que enfrentar


pessoalmente o

furor anti-semita das massas. Mas conseguiu acalmá-las e salvar da morte


bom número
de judeus.
22. O rabino Joseph Colon conta, a propósito dos judeus da França e da
Itália na

segunda metade do século XV, que eles não exerciam outro ofício. Cf. S.
Katz, The Jews

in Visigothic Kingdoms ojSpain and Gaul (Cambridge University Press,


Cambridge, 1937).

Contudo, os judeus não emprestavam dinheiro entre si.


188

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

23. Rapp, op. cit.

24. Money-lending, Enciclopédia Britânica.


25. Summa confessorum, Université de Louvain, Louvain, 1968.

26. De fato, suspeitou-se de que ele teria envenenado Agnes Sorel, a amante
do rei,

e a totalidade de seus bens na França foi confiscada. Sobre a usura na Idade


Média, ver o

estudo de Jacques Le Goff, La Bourse et la Vie (Hachette, 1987).

27. Money-lending, op. cit.

28. Nicholas de Lange, Atlas of theJewish World, op. cit.


5.

As trevas da Idade Média,

do século IV ao século XIV:

I . Itália, Inglaterra, Leste Europeu


A TOLERÂNCIA DETEODORICO—O ABRIGO MUÇULMANO DA
SICÍLIA—AEXCE-

ÇÃO ROMANA — O FANATISMO INGLÊS — O MASSACRE DA


COROAÇÃO DE

RICARDO CORAÇÃO DE LEÃO — OS MASSACRES DE YORK— O


MITO DO ASSASSI​

NATO RITUAL — 1290: EXPULSÃO DOS JUDEUS DA INGLATERRA—


OS PRECÁRIOS

ASILOS DA EUROPA DO LESTE E O REFÚGIO ALEATÓRIO DA


GRANDE LITUÂNIA—

A PROIBIÇÃO MOSCOVITA — TRIUNFO DO OBSCURANTISMO E


DA SUPERSTI​

ÇÃO NA EUROPA— REFLEXÃO SOBRE OS CAPÍTULOS


PRECEDENTES

Quando, em 493, no final de uma guer a de quatro anos e de aventuras que


desafiam a imaginação romanesca mais exaltada,1 o rei ostrogodo, Ostergoth,
Goth do Leste ou, mais exatamente, Deus do Leste,

Teodorico (474-526) se apossou de Roma, a alegria explodiu: aquele

guerreiro esplêndido e melancólico de 39 anos estava instaurando uma

idade de ouro que iria durar 33 anos. A paz reinava sem restrições, a
prosperidade parecia der amar-se de enormes comucópias de abundância, a
agricultura era de tal maneira fecunda, que, de país importador de cereais,

a Itália se tornava pela primeira vez na história um país exportador.

Melhor, as turbulências dos oficiais ostrogodos eram reprimidas tão

severamente quanto a cínica venalidade dos funcionários romanos. E

Teodorico, cerca de 15 séculos antes de Mussolini, começou a drenagem


dos pântanos Pontin (ao sul de Roma), local insalubre, infestado de

malária.

A “barbárie” dos visigodos, tema caro aos bons manuais escolares do

início século XX, é uma vergonhosa invenção.


190

HISTÓRIA GERAI DO ANTI-SEM ITISM O

Diferentemente dos imperadores romanos, Teodorico, que era aria-

nista, praticava absoluta tolerância religiosa. Contudo, cedendo aos preconceitos


que já grassavam pelo Império, concedeu aos judeus reconhecimento sem
reservas, com a condição de que não participassem da vida política. Três
comunidades judias importantes desenvolveram-se, pois,

em Roma, Ravena e Milão. A situação perdurou por muito tempo depois

do reinado de Teodorico.

A Itália ocupava uma posição especial no mundo imperial: tal qual

um eixo que se estendesse praticamente até a África, ela servia de ligação

entre os judeus do norte, os asquenazes, do sul, os sefardis, do leste e do

oeste, judeus da diáspora e judeus da Palestina e do Oriente. Os judeus

da Itália, por outro lado, não eram nem estes, nem aqueles.

A ocupação islâmica da Sicília, que começou em Palermo em 831 e

terminou em Taormina em 902, em nada mudou o destino dos judeus da

grande ilha: mesmo que seu status tenha permanecido o de cidadãos de

segunda clas e — os dhimmi —, o império islâmico ofereceu-lhes notável

terreno de exploração e expansão. As trocas de informações entre o mundo


letrado islâmico e judeu estimularam a produção de tratados filosóficos, além da
redação dos primeiros tratados médicos italianos medievais de medicina, de
cosmologia e de astrologia, os de Shabetai Donnolo.

Durante o século que durou a ocupação árabe da Sicília,2 os judeus puderam


viajar livremente pela maior parte do mundo conhecido, entre o reino dos
omíadas de Córdoba e o dos idrísidas de Fez, e os reinos dos samânidas, dos
saíridas e dos safáridas da Grande Pérsia, passando pelo

dos aglábidas da Tunísia, dos tulúnidas do Egito e dos zaiditas do Iêmen.

A Sicília, em especial, foi o centro de uma rede comercial que ia do Irã à

Espanha. “Estabeleceu-se na Itália e na Palestina3 uma tradição de trocas


culturais (com a Provença e a Renânia).”

Dentro da própria península, a situação dos judeus, que já tinha

sofrido com a proximidade de Roma, permaneceu relativamente protegida, de


início pelos reis normandos cujos ter itórios se estendiam até as fronteiras do
Estado pontifical, depois pela coroa imperial germânica4 e

notadamente por Frederico I Hohenstaufen (1212-1250). O imperador

deu aos judeus o monopólio da manufatura da seda e do tingimento de


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

191

tecidos. Prolongou a política cultural árabe inaugurada na Sicília: os

judeus passaram a ser admitidos em grande número na escola médica de


Salerno, por exemplo, e as colónias judias de Nápoles e de Palermo brilharam
por sua prosperidade financeira e cultural.

A assimilação dos judeus da Itália manifestou-se pela adoção da língua corrente,


dita vulgar. Podia-se esperar então que ela prosseguisse sem percalços e
representasse uma exceção em meio ao anti-semitismo europeu. Contudo, a
influência pontifical fez-se sentir depois do quarto Concílio de Latrão, por meio
de pressões para a conversão dos judeus. No final do século XI I e no início do
Xiy depois da queda de Hohenstaufen

e sobretudo durante o reinado de Anjou, submissas às vontades pontificais,5 as


pressões acentuaram-se, e grupos inteiros de judeus da Itália, os

giudecche, foram convertidos à força. É provável que muitos judeus

tenham visto nisso vantagens económicas, sociais e psicológicas (o fim da

discriminação e das reprimendas incessantes por apostasia). Outros se

obstinaram em manter sua fé: não demoraram a sentir as consequências.

Em 1485, foram expulsos de Perúgia, em 1486 de Vicenza, em 1488 de

Parma, em 1489 de Milão e de Lucca. Em 1494, após a queda dos

Médicis, que os haviam protegido, foram igualmente expulsos do

Milanesado e da Toscana.

Ignora-se quando os primeiros judeus chegaram à Inglaterra. Os

documentos pioneiros a respeito deles na Europa são raros e, com relação

às ilhas Britânicas, inexistentes. O que parece certo é que os judeus que

atravessaram o Canal da Mancha eram sobreviventes das perseguições da

primeira cruzada, no início do século XI . Algumas centenas, alguns

milhares no máximo, instalaram-se em Londres, York, Winchester,


Lincoln, Canterbury, Northampton, Norwich, Oxford.6 Parece que

teriam sido bem acolhidos pelo poder real: Henrique I Beauclerc, que

reinou de 1100 a 1134, promulgou em favor deles uma carta que lhes

concedia livre circulação, isenção de taxas aduaneiras, o direito de serem

julgados por seus próprios tribunais religiosos e de prestar juramento

sobre a Torá, e o direito de comércio em todos os domínios. Tanta gene​


192

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

rosidade comportava, entretanto, um reverso: os judeus gozavam da pro-

teção do rei, como se fossem sua propriedade particular.


Mais tarde os dois pretendentes ao trono, a imperatriz Mahaut e

Estevão de Blois, iniciaram uma guer a feroz e, como ambos necessitassem de


dinheiro, impuseram, sucessivamente,7 impostos muito pesados aos judeus. Um
século após sua chegada, o anti-semitismo europeu

alcançava os judeus: foi em Norwich, no ano 1144, como vimos no capítulo


precedente, que surgiu o mito do assas inato ritual. Reapareceu em Lincoln em
1255; em Gloucester em 1168; em Bury St. Edmunds em

1181; em Bristol em 1183; em Londres em 1189 e no ano seguinte; e

depois novamente em Norwich, onde foram massacrados todos os

judeus encontrados em casa (os demais, mais uma vez, tinham se refugiado no
castelo). A cada festa da Páscoa, massacravam-se judeus. E cada cruzada era
inaugurada com massacres de judeus. A cristandade das ilhas

Britânicas era então católica e, portanto, submetida às campanhas papais

seguidas pelo clero.

Contudo, a engenhosidade dos judeus permitiu-lhes mais uma vez

sobreviver e até prosperar na Inglater a, o que, aliás, era de grande conveniência


para a coroa. Depois do caos dos reinados de Estevão e de Mahaut, Henrique, o
Plantageneta (1154-1189), tão logo se cobriu com

a púrpura real tentou restaurar a ordem no reino. Procedeu à conquista

da Irlanda com os recursos emprestados por um grande “capitalista”

judeu de seu tempo, Joscé de Gloucester.8 O desenvolvimento da economia


inglesa convinha tão bem aos judeus quanto aos monarcas que os exploravam.
Foi es a a razão pela qual os judeus afluíram à Inglater a, a

despeito das numerosas restrições que pesavam sobre eles, por sinal as

mesmas que no continente.

A subida de Ricardo I da Inglater a, dito Coração de Leão, personagem bem mais


próximo de um aventureiro sem escrúpulos do que do monarca lendário da
tradição,9 pôs fim ao período pacífico dos judeus na

Inglater a. Ricardo teria sido o responsável? O certo é que nada fez para

impedir. No próprio dia de sua coroação, os judeus de Londres que vieram lhe
render homenagem foram repelidos com brutalidade e muitos foram assas
inados. Os textos dos cronistas da época são impressionantes
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

193

por sua mistura de unção eclesiástica e ódio fanático. Assim escreveu

Richard Devizes:
“No próprio dia da coroação, na cidade de Londres, na hora solene

em que se imolava o Filho ao Pai, começou-se a imolar os judeus a seu

pai, o diabo. E tomou tanto tempo celebrar tão grande sacrifício, que mal

se conseguiu terminar o holocausto no dia seguinte. Outros locais, outras

cidades do país imitaram o ato de fé dos londrinos, enviando aos infernos

com a mesma devoção todas aquelas sanguessugas e o sangue com que se

saciaram. Na mesma ocasião, pelo reino afora, mas com fervor desigual,

ocor eram ações semelhantes contra os indesejados. Apenas a cidade de

Winchester poupou a coija que ela nutria: a população dessa cidade foi

sensata e prudente e soube todo o tempo agir com moderação. .”10

Para encontrar o equivalente de um texto apologético tão abominável

na literatura anti-semita do século XX, é preciso ir buscar em Mein

Kampf, de Adolf Hitler, e nos escritos de Josef Goebbels em Võlkischer

Beobachter: neles o anti-semitismo se revela em suas cores mais cruas. Já

Guillaume de Neubourg descreve os massacres nestes termos:

“A morte de um povo herege, que havia começado em condições

espantosas, e a nova ousadia dos cristãos contra os inimigos da cruz de

Cristo marcaram o primeiro dia do muito glorioso reinado do rei

Ricardo; quer nos refiramos à regra que convida a interpretar no melhor

sentido os duvidosos fatos ou, melhor ainda, quer nos refiramos ao mais

claro significado desses acontecimentos, eles foram desde esse dia um


presságio a anunciar o progresso do cristianismo durante a vida do rei.

Com efeito, poderia haver presságio mais claro, admitindo-se que é um

presságio? A morte de um povo ímpio ilustrou o dia e o local da sagração

real, bem no início de seu reinado, quando os inimigos da fé cristã come​

çaram a cair e ser abatidos bem perto dele. Nem o incêndio que ocorreu

em uma parte da cidade, nem o louco ardor dos amotinados devem

impedir quem quer que seja de fazer uma justa e piedosa interpretação de

um acontecimento notável: os amotinados combatem na fileiras de uma

organização Superior, e o Todo-Poderoso frequentemente realiza Sua

vontade, que é inteiramente boa, por intermédio da vontade má e das

más ações de homens absolutamente desprezíveis.”11


194

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Quantas expressões extraordinariamente edificantes: “atos de fé”,

“indesejados”, “corja”, “piedosa interpretação”, “vontade divina” — os


massacres dos judeus ingleses são simplesmente interpretados como

manifestações da piedade cristã e da vontade divina. O status dos autores

não é desprovido de importância: Richard de Devizes era monge no convento de


Swithun, em Winchester, e Guilherme de Neubourg era frade agostiniano em
Santa Maria de Neubourg. O clero católico da Inglater a

aplaudiu o assassinato fingindo deplorar (apenas Neubourg) a ferocidade

da turba. Essa não o podia ignorar: portanto, estava tacitamente sendo

encorajada.

Ricardo Coração de Leão decidiu afinal reprimir. Depois dos acontecimentos de


Londres, promulgou uma lei garantindo aos judeus a segurança e a paz em seu
reino. Ele o teria feito por generosidade? Possivelmente não, sabendo-se que os
massacres privavam o Tesouro dos bens e dos desembolsos feitos pelos judeus. E
deplorável, em todo caso, que

Ricardo não tenha usado o exército contra os massacres que mancharam

seriamente o dia de sua coroação.

O decorrer dos acontecimentos foi igualmente infame: assim que

Ricardo partiu para a Ter a Santa, seus ministros, a exemplo de

Guilherme de Longchamp, retomaram as exações contra os judeus com o

objetivo de se livrar das dívidas de curto prazo. Na ocasião de um novo

pogrom, os judeus de York refugiaram-se no castelo da cidade. O castelo

foi atacado e incendiado. Os judeus suicidaram-se, mais uma vez. Os

massacres adquiriram tal amplitude, que o monarca, que se encontrava na

Ter a Santa, decidiu reprimir: encar egou seu chanceler, administrador do

reino, de abrir um inquérito contra os cidadãos de 'Vbrk. Teria sido uma


perfídia da parte do rei? O chanceler era o bispo de Ely, mas, mesmo

assim, obedecia às ordens do rei. Não sem temporizar: os culpados tiveram


tempo de sobra para fugir para a Escócia, mas o encarregado do governo da
província de York foi transferido. “Até hoje”, escreve

Neubourg, “ninguém foi levado ao suplício por es e massacre de judeus.”

De volta do cativeiro, é provável que Ricardo Coração de Leão tenha

percebido com clareza a razão dos massacres: muito deles, senão todos,

tinham sido perpetrados para se desfazer de dívidas contraídas com os


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

195

emprestadores judeus. Uma medida original foi então tomada: a partir

daquele momento os reconhecimentos de dívidas deveriam ser depositados


oficialmente nas caixas de um organismo do Estado, o Tesouro dos judeus ou
Scaccarium Judaeomm, e contadores ou quirógrafos manteriam

o inventário atualizado: caso o emprestador viesse a falecer, o devedor

teria sua dívida transferida para a Coroa.

O dinheiro decididamente era uma obsessão para os cristãos tanto

quanto se dizia que era para os judeus: o papa Inocêncio III não parava de

manifestar o desejo de que todas as dívidas dos cristãos com os judeus

fossem suprimidas, porque os judeus deveriam ser condenados à servidão eterna


por terem crucificado Jesus. Velho refrão que encorajava os devedores a realizar
novos ataques e os donos do reino a exigir cada vez

mais dinheiro dos “deicidas”. A situação dos judeus da Inglater a só piorava.


Durante os reinados de João sem Ter a (1199-1216) e de Henrique I I (1216-
1272), os impostos tomaram-se mais pesados, a ponto de quase arruinar os
judeus. O Concílio de Oxford, em 1222, aplicou na Inglater a as medidas ditadas
sete anos antes pelo Concílio de Latrão: a

insígnia redonda tomou a forma de dois quadrados brancos, evocando as

Tábuas da Lei, que os judeus deveriam costurar em seus casacos. A nova

sinagoga de Londres foi bruscamente confiscada, e a liberdade de circula​

ção, anulada: “Por duas vezes, em 1254 e 1255”, escreve Anne Grymberg,

“comunidades judias solicitaram coletivamente a João sem Ter a que as

deixassem partir do reino, mas este lhes recusou com firmeza.”12

Na ocasião da revolta dos barões, dirigida por Simão de Monfort,

conde de Leicester, os judeus viram-se acusados de ser os instrumentos

da opressão real. E as comunidades judias foram devastadas em Londres

em 1263 e 1264, bem como em Cambridge, Canterbury, Worcester,


Lincoln e Leicester, de onde Simão de Monfort os expulsou após ter

declarado seus créditos abolidos.

Faltou pouco para que o reinado de Eduardo I tivesse abolido inteiramente os


judeus, já bastante enfraquecidos por seus percalços sob Henrique I I: como o
Statutum de judaísmo de 1275 proibira aos judeus o

empréstimo à usura e eles não tinham outro meio de subsistência, o

comércio sendo-lhes vedado, já que não podiam pertencer às guildas de


196

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

mercadores, bem como à agricultura, eles se encontravam em apuros.

Alguns ainda tentaram praticar o ofício de emprestador. Deram-se mal:


293 deles foram enforcados em Londres por ter infringido a proibição

real. . que, por sinal, seria revista, pois a coroa estava sempre precisando

de dinheiro: os judeus iam poder emprestar de novo, mas por quatro

anos, no máximo. Curta tolerância: em 1282, o arcebispo de Canterbury

mandou fechar todas as sinagogas de sua diocese. A cristandade inglesa

decididamente tinha dificuldade em lidar com os judeus: no dia 18 de

julho de 1290, Eduardo I expulsou-os todos da Inglater a.13

Quantos deixaram o reino? Dezesseis mil? Quarenta mil? Esse êxodo esquecido,
mais um, foi pior do que se pode imaginar: alguns tiveram seus bens roubados
no navio, outros se afogaram. Foram para o outro

lado do Canal da Mancha, para a França, Flandres, Alemanha. Outros,

aos magotes, é possível que tenham permanecido na Inglater a; em 1310,

“uma meia dúzia de judeus penetrou o país, mas para tentar — inutilmente —
negociar as condições de um retorno eventual de seus cor eligionários”, escreve
Anne Grymberg. O “quadrilátero apertado” do clero católico não lhes oferecia
espaço onde se insinuar: por volta do ano 1300,

havia uma paróquia constituída para cada 100 casas e, no início do século Xiy
contavam-se na Inglater a 5.500 monges, 3.900 cónegos regulares, 5.300 irmãos
e 3.300 religiosas, ou seja, um total de 18.000 regulares e

mais 24.500 seculares: totalizando 42.000 religiosos para uma população

de aproximadamente cinco milhões de almas.14

Os judeus só retomariam oficialmente em 1656.

Foi, pois, com total desconhecimento de causa que, em 1600,

William Shakespeare descreveu em O Mercador de Veneza o judeu


Shylock, vindo reclamar a libra de carne que Bassanio lhe devia e que

havia sido dada em garantia de três mil ducados. No tribunal, Shylock

pretende prevalecer-se das leis de Veneza. Ele recusa os três mil ducados,

quer sua libra de carne. “Como sou um cão, tome cuidado com meus

dentes afiados.”

Já não havia judeus na Inglater a há mais ou menos três séculos.

Shakespeare explorava um mito que assombrava as imaginações inglesas.


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

197

Enquanto esperavam a outra Ter a Prometida que Cristóvão

Colombo iria descobrir, os judeus prosseguiram em sua diáspora, nota-


damente na direção do Império Islâmico e do Leste Europeu. Foi sua

última terra de acolhida na Europa cristã ou em vias de cristianização:

assim, os judeus que fugiram das perseguições da Boémia, em 1098, já

estavam instalados na Silésia. Os que se juntaram a eles também iriam

para a Polónia. A maior parte dos países que eram conhecidos e que ainda são
conhecidos no século XX na Europa Oriental ainda não havia nascido na época:
a potência dominante era a Grande Lituânia, cujos contornos incluíam
aproximadamente a Polónia oriental, a Rússia branca e a Ucrânia atuais — a
“Russucrânia” — e que, no mar Báltico, ficava bem

longe de sua posição atual.

É preciso ter em mente sua configuração: a própria Rússia, que só

começou a se formar no século XI , era um amontoado de principados

mais ou menos em órbita em torno do principado de Moscou. A

Hungria, governada pelos Anjou, era um Estado gigantesco que ia ao

norte até a Silésia, e a leste até a Valáquia e a Moldávia, e do qual mais tarde
seria recortada aproximadamente a Eslováquia, o norte da Iugoslávia, a Roménia
e a Bulgária. Depois da morte do último representante da

dinastia “natural” dos tchecos, os Premyslides, o reino da Boémia foi

governado a partir de 1310 pelos Luxemburg; estava repartido entre a

Silésia e a Áustria. A Polónia de início era dividida em diversos principados que


constituíam uma Grande e uma Pequena Polónia, tendo mais tarde se juntado
sob o cetro do último rei da dinastia dos Piast, Casimiro,

o Grande. Ela só entrou para a cristandade em 1386. A Ordem Teutônica

reinava sobre o Báltico, cujas margens eram ainda grandemente pagãs.

As fronteiras estavam constantemente em mutação: entre 1300 e


1386, as da Lituânia, por exemplo, foram modificadas três vezes seguidas.

A Volhínia, a Podólia, a Pomerânia, a Mazóvia mudavam todo o tempo de

suserania ao sabor das alianças, dos desentendimentos de sucessão e das

guer as. Catolicismo e ortodoxia disputavam entre si a primazia do favor

das alianças, dos apoios morais, financeiros e políticos. Dentro dos territórios
submetidos à mesma fé, como nos principados dos Cavaleiros Teutônicos, o
arcebispo de Riga tentava disputar o poder com os
198

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMIT1SMO

monges-cavaleiros que controlavam o país, por sinal fracamente cristianizado. A


Boémia, que já era cristã há tempos, tornou-se a partir de 1420

fortemente hussita, ou seja, adepta da heresia de Jan Hus,15 o que fez


com que se tornasse mais acolhedora para os judeus: as guer as hussitas,

que duraram exatamente meio século, de 1298 a 1348, acar etaram êxodos
maciços de judeus em direção à Polónia.

Não existia nessa época, na maior parte da Europa oriental, hostilidade


organizada contra os judeus: nada além de uma desconfiança latente entre os
povos que haviam sido cristianizados tardiamente, por volta do

século X 16 Nos séculos XI e XI havia na Rússia apenas um escasso clero, e os


ucranianos mal sabiam quem eram os judeus. A partir do século XII, estes
últimos instalaram-se mais ou menos pacificamente em

Lublin, Kiev, Vilna, Cracóvia, Lvov. Em Kiev, por exemplo, havia judeus

vindos de Bizâncio, sefardis vindos da Espanha e asquenazes vindos da

Alemanha e de Flandres, e de retomo da Inglater a. Eles prosseguiam sua

expansão. Quando o ducado da Lituânia conquistou a Volhínia e a

Galícia em 1321, seguiram os exércitos lituanos.

“Desde o século XI I a existência de judeus vem sendo mencionada

em Plock; um cemitério foi comprado pela comunidade de Kalicz em

1283; o bairro judeu da Cracóvia foi citado em 1304; em 1356

mencionou-se a comunidade de Lvov; em 1367 a de Sandomierz; em

1379 a de Poznan. .”17

Algumas cidades não aceitavam os judeus, outras sim, e comunidades de muitos


milhares, até de dezenas de milhares de judeus, instalavam-se nas cercanias das
grandes cidades ou então em cidades “privadas”,

miazteczki, pertencentes à nobreza. Nesses locais tinham que participar

da defesa da cidade, como atestam as sinagogas de tetos planos cercados


de seteiras. Em Rzsezsow, exigia-se dos imigrantes judeus que tivessem

tantos fuzis quanto homens, munições, balas de canhão para quatro

canhões por sinagoga. .18

Tais asilos eram, todavia, precários. Mesmo que os monarcas fossem

favoráveis aos judeus, o clero terminava sempre levando vantagem sobre

o favor real. Assim, em 1453, Casimiro IV da Polónia rejeitou as recomendações


do Concílio de Basiléia de 1448, que proibia as associações de
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

199

judeus e cristãos, e manteve sua carta autorizando essas associações. O

arcebispo de Cracóvia, o cardeal Zbygniev Oleshnitzki, obteve a colaboração do


célebre franciscano e pregador italiano Giovanni da Capistrano, cuja eloquência
anti-semita havia feito maravilhas na Alemanha. Os dois

agiram juntos e, após a derrota militar de 1454, conseguiram revogar

aquela “carta ímpia”.19 Obviamente, uma vez que os obstáculos tinham

sido retirados pelos dois eclesiásticos, as perseguições anti-semitas se

desencadearam. O filho e sucessor de Casimiro IV, João Alberto, prosseguiu


com a política de discriminação dos judeus, e sob seu reinado foi criado o
primeiro gueto da Polónia (devastado durante os massacres de

1494). Os judeus então fugiram para a Criméia.

Na Grande Lituânia, o grão-duque Alexandre, filho de Casimiro IV

e irmão de João Alberto da Polónia, restaurou em 1492 a carta concedida

aos judeus por seu pai, reembolsando-lhes uma parte dos fundos que

lhes haviam sido recusados; mas em 1495, pressionado pelo clero, expulsou os
judeus do país e confiscou todos os seus bens. Seis anos mais tarde, em 1501, o
novo rei da Polónia, Alexandre I, chamou de volta os judeus e devolveu-lhes
uma parte dos bens confiscados por seu pai:

casas, sinagogas, propriedades e cemitérios.

Os humores dos príncipes variavam de um dia para o outro, o mais

das vezes de acordo com suas finanças; a animosidade do clero, por sua

vez, era sempre estável. Os judeus iam e vinham segundo o equilíbrio

entre os dois.

Quanto à Rússia, pelo menos o que se chamava então por esse nome,

ela estava proibida aos judeus, tidos como gente perigosa. O embaixador

de Basil I I em Roma, grão-duque de Moscóvia, contou ao letrado italiano Paolo


Giovio que os moscovitas tinham verdadeiro pavor dos judeus e não os
deixavam atravessar suas fronteiras: alguns comerciantes da

Polónia e da Grande Lituânia eram, no máximo, autorizados a chegar

junto às muralhas de Smolensk, mas nunca além. O czar Ivan, o Ter ível,

chegou a revogar em 1550 a tolerância das trocas comerciais com os

judeus. Em 1563, ao ocupar a cidade de Polotsk, situada na fronteira de

seu país, forçou os judeus a se converterem à ortodoxia sob pena de

serem afogados no Dvina. Aqueles cuja curiosidade ou o desejo de fazer


200

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

negócios faziam com que se aventurassem a chegar até Moscou, corriam

o risco de penas severas, caso fossem presos.20


Era assim a terra oferecida aos judeus no Ocidente.

Aqui farei uma pausa. A história jamais é fria: ela queima tão logo a

estudamos de perto. Ser historiador é fazer-se espectador, e o ofício comporta


seus riscos.

Os capítulos que acabam de ser lidos foram escritos em meio à tristeza e à


náusea. Eles são a descrição de um Auschwitz diluído no tempo e no espaço.
Não lhes pude restituir nem o desespero, nem a abjeção. Ou

os gritos pelas afeições inter ompidas, a crueldade da injustiça perpetrada com a


mesma frieza dos car ascos mais alucinados. Tampouco o desespero, que é como
um punhal para qualquer ser humano condenado ao horror de ser um espectador.
Todo cristão apegado ao ensinamento real de Jesus sente necessariamente
repugnância pelos sofrimentos infligidos aos judeus por seus discípulos
autoproclamados e pela Igreja

que ele jamais fundou.

Convém, pois, refletir sobre os tempos em que a infâmia começou.

Épocas bárbaras das quais por muito tempo se duvidou que pudesse surgir uma
civilização digna desse nome. Guer as incessantes, epidemias de

“peste negra”, fanatismo e paranóia: as convulsões do Ocidente nascente, atrozes


para a imensa maioria dos judeus, não foram mais favoráveis para muitos outros.
Na realidade, da queda do Império Romano à aurora do Renascimento não
houve senão uma lei — darwiniana no sentido banal do termo —, que foi a da
selva, isto é, a lei do gládio.

É preciso igualmente levar em conta o obscurantismo que hoje em

dia nos parece insensato ou mesmo inacreditável, mas que constituía a

regra para as massas populares analfabetas. E mesmo para muitos instruídos.


Naqueles tempos, ainda se acreditava que São Cristóvão, mártir do século I I e
ainda bastante popular nos séculos posteriores, havia sido

meio homem, meio cão: um cinocéfalo.


“No século X”, escreve Lucian Boia, “Ratramne, monge de Corbie,

precisou escrever uma longa carta para responder às inter ogações de um

missionário de partida para os países do norte, onde evidentemente espe​


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

201

rava encontrar seres meio homens, meio bichos, sobretudo os famosos

cinocéfalos. Como tratá-los? Poderiam ser considerados humanos?


Participariam da Redenção? Ratramne retomou a argumentação de

Agostinho: uma vez que os cinocéfalos eram dotados de razão, pertenciam à


família humana, a despeito de seu aspecto físico insólito. Tudo concor ia para
estabelecer sua condição de seres razoáveis. .”21

Viajantes traziam descrições extravagantes de homens-porcos ou de

homens de uma perna só. Bem mais tarde, aliás, Voltaire não excluiu a

possibilidade de que um macaco pudesse fazer amor com uma negra, e o

grande Locke assegurou ter visto uma mestiça de gato e rato. . Qualquer

humano que não falas e a língua de seu observador, não praticasse sua

religião e seus costumes — o judeu, portanto — era passível de sofrer as

mais loucas acusações.

Naqueles séculos selvagens, as coroas eram ar ancadas pelo fio da

espada, e as alianças eram atadas, desatadas e reatadas com surpreendente

constância, foijando-se ao sabor das novas ambições. O cinismo assumia o

papel da lei, e o direito dependia apenas do desejo dos príncipes. Nos campos,
soldados bêbados lançavam-se sobre as famílias, exigindo a virgem e o vinho, o
dinheiro e o corpo. A Europa, aliás, as istiu a algo semelhante e

ainda as iste no momento em que escrevo estas linhas, por exemplo, na ex-

Iugoslávia. Dilacerada por cismas e heresias, com seus bispos alucinados,

predicadores enfurecidos, rivalidades entre vaidades eclesiásticas, monges

tomados pelo desejo de poder e já se vendo papas, descontroladas tor entes de


retórica e eloqtiências de bazar, intrigantes lúbricos e prevaricadores iluminados,
a Igreja por pouco não soçobrou. Sobretudo no carnavalesco

período de Avignon e dos antipapas. Três papas ao mesmo tempo! Por


várias vezes seguidas! E alguns da menos honrosa categoria. .

Grande parte dessas atribulações explica-se pela ambição do Vaticano

de deter o gládio temporal, assim como o espiritual, e por sua persistência em


manter a ilusão de que a sede de Roma podia garantir-lhe a primazia exercida no
passado pelo ilmpério. O papa pretendia ser rei, juiz e proprietário do universo
inteiro!

Recentemente, alguns autores2 tentaram explicar ou mesmo justificar esse caos


por meio do argumento da interdependência entre a Igreja
202

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

e o Estado: para sobreviver, as comunidades religiosas tinham necessidade de


ordem e de paz, razão pela qual apoiavam o Estado, mas com a condição de que
ele, por sua vez, as apoias e. Portanto, era preciso perseguir os judeus. Seria a
política do profeta Samuel: quando o rei Saul não o
espera para celebrar um sacrifício após uma vitória, ele declara que, tendo
celebrado ele mesmo o sacrifício, o rei usurpou suas funções e, portanto,
desmereceu a realeza; ele nomeia outro rei, David. E impõe a Israel a absurda
situação de ter dois reis até a morte de Saul. Ora, o argumento é capcioso:
primeiro, porque os judeus não ameaçavam o cristianismo, pois suas
comunidades não paravam de diminuir, chegando a cair, no século X, a um
sétimo do que tinham sido à época da conversão de

Constantino; em seguida, porque a religião trata do espiritual e, ao se

imiscuir nas peripécias do temporal, estava indubitavelmente pondo em

risco sua autoridade. E, de fato, o Vaticano perdeu esse poder temporal

com Frederico II Hohenstaufen, e tempos depois com Napoleão. O cálculo, se é


que houve algum, foi erróneo, além de criminoso.

O argumento é também capcioso porque durante o Império pagão só

se perseguia esta ou aquela comunidade por razões políticas, praticamente nunca


religiosas (os raros casos de interdição foram motivados por manobras
sediciosas). Se Roma ainda nos parece envolta em graças,

deve-se a sua tolerância religiosa. Roma poderia muito bem, com seu

poder, fazer prevalecer sua religião; mas não o fez, com sabedoria. Se a

Igreja estivesse tão segura de sua inspiração divina, com certeza teria

podido abster-se — e certamente se sentido obrigada a abster-se — de

suas perseguições políticas, mas, se não fos e Napoleão, teria prosseguido com
elas até o século XX. A Igreja tinha a ilusão do poder absoluto, o

hubris, que os gregos com razão haviam denunciado.

É provável também que es a ilusão tenha impedido a Igreja de refletir sobre sua
ar ogância, esquecendo-se de que era constituída de seres humanos e de que
todos os humanos são iguais. Pois é a “ilusão romana”
que explica os excessos e o fanatismo da Igreja em relação aos judeus

assim como aos cismáticos e hereges. A ilusão suscita e perpetua a injustiça e a


desumanidade, pois os hereges e os cismáticos, tal como era concebido pelo
Vaticano, realmente ameaçavam o cristianismo. De fato, eles lhe ar ancaram
territórios imensos no Leste Europeu e no Oriente, assim
AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

203

como a Reforma mais tarde arrancou-lhe outro tanto no coração da própria


Europa. Nem os anátemas, nem o sangue, nem o gládio temporal frearam a
ortodoxia e o protestantismo.
Mas os judeus, de seu lado, como já dissemos, não representavam

qualquer ameaça: nenhuma outra a não ser, para as almas mais esclarecidas, a de
um remorso possível em relação ao povo de Jesus, o judeu. Os ódios e a aversão
furiosa desencadeados pelas cruzadas, encorajados pelo

IV Concílio de Latrão e depois por papas e por um clero cego, do qual

Inocêncio III e Pedro de Cluny representam os exemplos mais tristes,

esses ódios e essa aversão não tinham nenhum motivo. Os judeus se

haviam tornado pessoas sem ter a, e o único poder que detinham, o do

dinheiro — pelo menos quando podiam conservá-lo —, lhes havia sido

dado pelo próprio papado. Eles só pediam para sobreviver.

A Roma cristã era bem a herdeira, a es e respeito, da Roma pagã: tal

como aquela, não tinha nem humanidade, nem humanismo.

Os textos estão aí: o motor do anti-semitismo desde o século IV foi a

instituição religiosa cristã. Ela teria podido frear a maldade; mas, quando

não a atiçou, tolerou-a. Pretendeu pregar a moderação, mas em muitos

lugares permaneceu silenciosa diante dos massacres. Teria podido

inter ogar-se sobre as fontes do anti-semitismo. Mas o clero era, de alto

a baixo, inculto, incapaz de decifrar a verdadeira história de Jesus e de

refletir sobre seu ensinamento: lia os Evangelhos ao pé da letra e os transcrevia


de acordo com suas emoções primárias. Foi possível ler essa grosseira tradução
no abominável Mistério da Paixão, encenado em Donaueschingen, nos anos 60
do último século, com um grande sacerdote judeu caricatural que, para cúmulo
do horror do paradoxo, se parecia com um car asco de Auschwitz.

O efeito mais impressionante e mais paradoxal da vontade cristã de


pisotear os judeus pela eternidade demonstra com clareza sua cegueira: a

perseguição reforçou a identidade judia. O genocídio lento — pois foi

decididamente um genocídio — empreendido pelo cristianismo revigorou o


judaísmo, como se verá em capítulo adiante. O cristianismo tinha querido
persuadir os judeus de que eram judeus, ou seja, pessoas infames. Convenceu-os
a serem judeus, ou seja, resistentes.
204

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1. Teodorico não foi apenas reconhecido como o maior de todos dos reis dos
godos,
visigodos e ostrogodos, mas provavelmente como um dos mais importantes
reis da Idade

Média e um igual de Carlos Magno. Filho de Teodomiro, um dos reis dos


godos do leste, e de uma concubina eslava, Erelieva, aos sete anos foi
enviado como refém à corte de Constantinopla e lá ficou durante 10 anos,
aprendendo as boas e a más maneiras da política. Em seu retorno, aos 17
anos, assumiu o comando de um bando armado e tomou de seu próprio pai
a cidade de Singidunum, a atual Belgrado. Em seguida assumiu o comando
de uma expedição imperial contra os insurgentes da Moésia e da
Macedônia, cujo sucesso lhe valeu o estabelecimento dos ostrogodos como
membros principais dos

fceâerati do Império. Teodorico tinha 20 anos quando seu pai morreu, e os


14 anos que se

seguiram foram dedicados a guerras contra praticamente todo o mundo, aí


incluído seu

antigo protetor, o imperador bizantino Zenon; mas sobretudo contra um


outro príncipe

ostrogodo que cometeu a impertinência de ter o mesmo nome que ele,


Teodorico. Ele

travou uma batalha feroz contra este último e venceu-o; defrontou-se em


seguida com as

tropas do ocupante da Itália, Odoacro, guerreiro não menos digno de estima


do que ele,

que lhe barrou a passagem em Isonzo, mas que, depois de uma cruel derrota
em Ravena

no dia 26 de fevereiro de 493, se declarou vencido. Teodorico cedeu à vindita


e, renegando as promessas de dividir o poder com seu rival e poupar-lhe a
vida, degolou Odoacro com suas próprias mãos durante um banquete, em
15 de março de 493. Odoacro entregou a alma bradando: “Onde está Deus
em tudo isso?” Mas Teodorico não se importou: a Itália lhe pertencia.
Homem contraditório, violento e sanguinário por um lado, generoso e
imparcial

por outro, Teodorico arbitrou equitativamente a rivalidade entre os dois


pretendentes ao

papado, Símaco e Lourenço. Tempos depois deu vazão à cólera e mandou


degolar o perdedor Símaco, mesmo sendo ele papa, uma vez que Lourenço
era considerado somente um antipapa. Exasperado com as perseguições dos
arianistas empreendidas pelo imperador Justino em 524, mais tarde obrigou
o papa João I a ir até Constantinopla exigir tolerância do imperador
Justino. Depois, quando o papa voltou, atirou-o na prisão e deixou-o morrer
dois anos mais tarde. Teodorico ter-se-ia se arrependido no final de seus dias
dos

assassinatos de Odoacro e Símaco.

2. A Sicília foi reconquistada por Robert Guiscard, da Normandia, a partir


de 1060.

3. A. Guet a, Italie, em Esquisse de 1’histoire du peuple juif, em Dictionnaire


encyclo-

pédique du judaisme, op. cit.

4. Em 1186, o imperador Henrique VI desposou Constância, filha de Roger


II e herdeira dos duques da Normandia. A partir de então, os Hohenstaufen
passam a possuir toda a Itália, com exceção do Estado pontifical, pelo
menos teoricamente: na verdade,

Henrique VI morreu antes de haver estabelecido um império hereditário e o


papa se opôs

à reunião da Sicília, onde possuía extensas propriedades no Império.


AS TREVAS DA IDADE MÉDIA

205

5. Em 1265, a Cúria deu a Sicília e o reino de Nápoles a Carlos d’ Anjou,


irmão de

São Luís. Em 1442, após inúmeras tribulações, o reino de Nápoles e a Sicília


passaram às

mãos dos Aragão, permanecendo até 1707 sob dominação espanhola.

6. Paul Johnson, em História dos Judeus, op. cit., baseando-se nas pesquisas
de Cecil

Roth, The Jews of Medieval Ooçford (OUP, 1951) e de V. D. Lipman, The


Jews of Medieval

Norwich (Weidenfeld & Nicolson, 1967), estimou o total de judeus na


Inglaterra em cinco mil. Johnson supõe que eles teriam vindo no rastro dos
barões de Flandres que haviam participado da expedição de Guilherme, o
Conquistador, em 1066; nesse caso, eles teriam

chegado muitos anos mais tarde, provavelmente depois da morte de


Guilherme, em

1087. Cristão convicto, influenciado pela opinião de dois prelados católicos,


Lanfranc de

Canterbury e Geoffroy de Coutances, Guilherme não poderia ter achado de


bom augúrio trazer com ele “deicidas”. Parece-me mais provável que os
judeus da Europa que atravessaram o canal da Mancha o fizeram para
escapar dos massacres ocorridos na Renânia no início da primeira cruzada,
em 1096. Uma séria indicação disso é o fato de que os

judeus de Norwich, os primeiros a se instalar na Inglaterra, eram todos de


origem rena-

na, como aponta V. D. Lipman em TheJews of Medieval Noiwich.

7. Mahaut (ou Matilde) era a filha de Henrique I Beauclerc e de uma


religiosa.

Estevão, filho de Estevão Henrique, conde de Blois e de Chartres, era


marido de Adela,

uma filha do rei. Até 1125, o filho de Estevão Henrique, Estevão, portanto
neto do rei e
sobrinho de Mahaut, foi por esse considerado seu herdeiro natural. Mas,
quando o rei

morreu, Mahaut fez valer seus direitos à coroa com o apoio de seu meio
irmão, que obrigou os barões a reconhecê-la rainha e a admitir o direito à
coroa do filho de Mahaut, Henrique I d’Anjou. Quando Henrique d’Anjou
morreu, Mahaut foi a seu enterro.

Estevão aproveitou a ocasião apresentada pela ausência da rainha para


reunir os barões; e,

alegando que sua renúncia à coroa havia sido arrancada à força e que, como
filha de irmã

de caridade, a rainha era uma soberana ilegítima, fez-se coroar rei pelos
londrinos com a

aprovação de seu próprio irmão, Henrique, bispo de Winchester (que, por


sua vez, havia

convocado o bispo de Salisbury). Essas peripécias shakespearianas da coija


real da época

resultaram em uma guerra civil, na qual todas as pessoas que possuíam


algum bem,

senhores ingleses e judeus incluídos, foram espoliados como a plebe dos


campos, e que

só acabou após a morte de Estevão em 1154.

8. Cf. Anne Grymberg, Angleterre, em Esquisse de Thistoire du peuple juif,


em

Dictionnaire encyclopédique du judaisme, op. cit.

9. Poucos personagens da época são tão complexos ou mesmo tão suspeitos


quanto

o filho de Henrique II Plantageneta (rei da Inglaterra e inimigo de seus


próprios filhos) e

de Leonor de Aquitânia, esposa de dois reis. Vencedor de Saladino, amante e


rival de

Felipe Augusto, inusitado prisioneiro de Henrique VI, imperador da


Alemanha, aparece

nos relatos dos cronistas como uma mistura contraditória de religiosidade


supersticiosa e

de veemência insincera: um ator grandioso levado pelos acontecimentos.

10. Michèle Brossard-Dandré e Gisèle Besson, Richard Coeur de Lion,


Histoire et

Légetide, Christian Bourgois, 1989.


206

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O


11. Id.
12. Angleterre, op. cit.

13. Raul Hilberg, The Destruction ofEuropean Jews (Holmes & Meier, New
York,

1985); Jacob Marcus, TheJew in the Medieval World: A Source Book, 315-
1791 (Atheneum,

New York, 1975); V. D. Lipman, Three Centuries of Anglo-Jewish History


(Weidenfeld &

Nicolson, Londres, 1961).

14. Un temps d’épreuves: 1274-1449\ Histoire du christianisme, t. 6, op. cit.

15. Discípulo de WyclifFe (que ele traduziu para o tcheco), Jan Huss,
reformador da

Boémia (1369-1415), distinguiu-se pelos sermões nos quais instava os


cristãos a desistir

de buscar os sinais materiais da presença de Cristo e a procurar sua


presença imaterial,

mas nos quais também denunciava a cupidez do clero. Tremendamente


popular, inquietou o clero e as autoridades pontificais. Entregue às
autoridades pontificais devido à trai​

ção do rei Sigismundo IV, foi queimado pela fogueira da Inquisição em 6 de


julho de

1415. Foi nessa fogueira que Lutero acendeu a chama de sua revolta contra
Roma.

16. Primeira cristã da dinastia dos príncipes de Kiev, Olga, viúva de Igor, foi
batiza-
da em 957 em Constantinopla, por ocasião de uma visita oficial a
Constantino Porfiro-

geneta. Em 959, encarregou uma missão de ir até Oto I, imperador do Santo


Império Romano Germânico, para solicitar que lhe fossem enviados um
bispo e padres. Volodymyr Kosik, VEmpire de Kiev et le baptême de
VUkraine, Historia, setembro de 1987.

17. S. A.. Goldberg e A. Derczansky, Monde ashkénaze, em Esquisse de


1’histoire

du peuplejuif, em Dictionnaire encyclopédique du judatsme, op. cit.

18. Id.

19. S. M. Dubnov, History of theJews in Russia and Polandt 1.1 (The Jewish
Publication

Society of America, Philadelphie, 1976). Capistrano, anti-semita notório e


canonizado,

que chamava os judeus de “os hussitas”, propagou a idéia de que a derrota


da Polónia

contra a Ordem Teutônica era uma “punição do Céu”.

20. Id.

21. Entre Vange et la bete: le mythe de Vhomme différent de VAntiquité à nos


jours (Plon,

1995).

22. Por exemplo David Martin, em Does Christianity Cause War?


(Clarendon Press,

Oxford, 1998).
6.

A trégua islâmica

AS SEMELHANÇAS ENTRE O JUDAÍSMO E OISLAMISMO—AS


TRÊS RAZÕES PARA A

DISPOSIÇÃO FAVORÃVEL DOS MUÇULMANOS EM RELAÇÃO AOS


JUDEUS — OS

TERRITÓRIOS ISLÂMICOS, TERRA DE ASILO DOS JUDEUS NA


IDADE MÉDIA— PRI​

VILÉGIOS DA DHIMMITUDE—FLORESCIMENTO DA CULTURA


JUDAICA— SEDU​

ÇÕES RECÍPROCAS DO JUDAÍSMO E DO ISLAMISMO —


AFINIDADES JUDAICO-

ISLÂMICAS E FIM DO DIÁLOGO — O GHIYÂR E OS MELLAHS —


RAZÕES CULTU​

RAIS E EVOLUÇÃO DA ATITUDE ISLÂMICA

Um dos capítulos do anti-semitismo menos conhecidos do grande

público, e dos mais paradoxais, é a tolerância do Islã em relação aos

judeus.

Nada a anunciava: depois do cerco da cidade de Medina, na Arábia,

onde se tinha refugiado, Maomé mandou decapitar muitas centenas de

judeus da tribo dos banou quorayza por motivos incertos.1 Começo alarmante
das relações entre o novíssimo Islã e os judeus.

Mas o Islã devia muitíssimo ao judaísmo para rejeitá-lo de imediato;

ele era e continuava sendo, tanto quanto o cristianismo, uma religião saída do
Antigo Testamento. A inspiração do Profeta foi pessoal; os ritos que lhe foram
necessários para foijar em alguns anos a identidade muçulmana foram adaptados
de outras religiões da região. Ignora-se quais foram os encontros do órfao
Maomé quando acompanhou seu tio Abu Tàlib,

comerciante abastado, em viagens pelos países vizinhos da Arábia.

Ignora-se da mesma maneira quais desses encontros marcaram mais o


adolescente, depois o jovem; o único encontro cujo relato chegou até nós

ocorreu em Bosra, na Síria.2 Essa cidade era não apenas um centro


208

HISTÓRIA GERAL DO A NTI-SEM ITISM O

comercial importante, como também um grande centro cristão, dotado

de uma catedral; a Síria estava, com efeito, sob jurisdição bizantina. Lá,
Maomé e Abu Talib pararam em uma ermida e conversaram com um

monge “muito versado na religião cristã”, portanto provavelmente cristão,


embora herege—também segundo o relato —, chamado Bahira. Foi Bahira que
predisse ao jovem3 seu extraordinário destino.

A região também abundava em anacoretas, além de comerciantes e

eruditos judeus. Os judeus estavam instalados desde tempos muito antigos em


diversos territórios que iriam passar para o controle islâmico: na Palestina, é
claro, na África do norte, onde, cerca de dois mil anos antes

de nossa era, haviam seguido os colonos fenícios fundadores de Cartago,

e, finalmente, na Arábia. Yathrib, que mais tarde se tornou Medina, havia

sido provavelmente submetida à dominação dos hebreus,4 e a influência

hebraica havia impregnado a região. Outros encontros podem, pois,

explicar as proximidades estreitas entre passagens do Corão e dos dois

Testamentos5 e certas semelhanças entre os ritos judaico-cristãos e os

ritos muçulmanos: os judeus, por exemplo, são convidados a se virar para

Jerusalém no momento das preces; judeus e cristãos fazem as ações de

graças ao levantar-se e ao deitar-se; na Igreja nestoriana, o sábado é ado-

tado como dia de repouso, mais tarde adiantado para a sexta-feira a fim de

se diferenciar dos judeus; e a proibição de comer a carne do porco.

Assim, em sua origem, a nova seita não nutriu animosidade em rela​

ção aos judeus nem aos cristãos. Pode-se perguntar sobre as razões dessa

boa vontade, pois, como se sabe, os cristãos não a exerceram, apesar de

sua dívida em relação ao judaísmo ter sido bem maior. Elas se resumem
a três. Primeiro, Maomé e seus seguidores visavam confederar as tribos

da Arábia e partiram para o as alto militar e político de um mundo praticamente


virgem, quase esquecido do Império Romano do Oriente e do Império Sassânida:
os desertos da península arábica.6 As poucas tribos

judias que eles conheciam na Arábia não podiam representar um obstáculo sério,
o que não havia sido o caso de Paulo e de seus sucessores: estes tiveram, ao
contrário, que se lançar ao assalto de um império inteiro, no

qual os judeus, numerosos e implantados de longa data, estavam em condições


de opor resistência a seu apostolado. Acrescentemos que os pri​
A TRÉGUA ISLÂMICA

209

meiros muçulmanos não tinham sequer idéia do mundo que iriam conquistar: a
maior parte deles nunca havia saído da Arábia. Sua bagagem material limitava-
se o mais das vezes a um sabre e alguns sacos de ouro e
de tâmaras que cabiam sobre um cavalo, e sua bagagem intelectual

resumia-se a versículos do texto de Maomé. Lançavam sobre o mundo

um olhar novo.

Em seguida, os muçulmanos não dispunham do imenso aparelho

jurídico do mundo romano cristianizado, essa máquina centralizadora

que regia e regulamentava. Foi somente sete séculos mais tarde, quando

adquiriram o instrumental, que os muçulmanos começaram a exercer

uma segregação mais severa em relação aos judeus. Eles levaram perto de

um século para apreender a realidade gigantesca que haviam conquistado

e que a partir de então precisavam organizar.

Por último, eles não dispunham, ademais, do apresto retórico e teológico dos
cristãos. Nenhum Tertuliano, nenhum Agostinho, nada de bispos, nenhum
alicerce de textos de onde tirar as interpretações sediciosas que haviam feito o
sucesso dos propagandistas cristãos; isso só viria mais tarde. Os árabes que
difundiram o Islã constituíam uma população

homogénea; eram gente do centro. Assim como os do norte, eram semi-

nômades e caravaneiros, diferentemente dos do sul, do Iêmen e do

Hadramaut, terras muito mais férteis, agrícolas, em que desde muito

tempo Estados tinham se constituído, com cidades cujos habitantes edificaram


santuários para as divindades pré-islâmicas, mantidos por uma organização
clerical complexa. Já os seguidores do Profeta, habituados a

se contentar com pouco, não tinham nenhuma experiência de clericalis-

mo; sua visão do mundo era simples, e o código que Maomé lhes impôs

era simples também, fundado na lealdade, na misericórdia e na presença


de Alá.

Os cristãos puderam alegar que Jesus tinha sido condenado à morte

e morto por judeus. Mas, para os muçulmanos, Jesus não era o filho de

Deus, conceito inadmissível; e, por sinal, ele não tinha sido morto na

cruz (reflexo direto da heresia docetista6*). Os judeus tinham simplesmente


querido matar Jesus, o mensageiro de Deus, mas não tinham conseguido porque
Deus havia sido mais esperto do que eles:
210

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

“Eles [os judeus] conspiraram contra Jesus,

Mas Deus também conspirou


E Ele é o mestre dos conspiradores.”

Corão, II , 54

Essa denúncia em nada modificava o fato de que existia uma

convergência entre judeus e muçulmanos a respeito do imperativo categórico da


Lei divina. Como observa Bemard Lewis,7 a Halakha judia e a

Sharia’a muçulmana, suas respectivas leis religiosas, têm entre si muito

mais em comum do que o conceito jurídico cristão. Acrescente-se que os

judeus, com quem os muçulmanos conviviam, viviam mais ou menos

como eles, em tendas no deserto ou então dentro de burgos fortificados.

Como eles, comiam carneiro, alfaces e tâmaras. Como eles, eram cuidadosos
com sua limpeza física e eram circuncidados. Fisicamente se pareciam. E suas
línguas eram mais próximas que a dos bizantinos e dos bárbaros que eles iriam
subjugar. Existiam mais árabes judaizados e judeus arabizados do que o quadro
atual das intolerâncias permite supor: cerca

de um século antes de Maomé, um poeta judeu de língua árabe, Samuel

ibn Adiyya, ficou célebre na Arábia do norte.

Os judeus do deserto que conheciam os árabes pré-islâmicos da

península não exerciam o ofício de emprestador: como eles, eram pastores e


agricultores. E, quando os recém-criados reinos muçulmanos lhes ofereceram
hospitalidade, os judeus puderam verificar que tinham aptidão para outras
profissões que não a temerária prática do empréstimo a juros, indelevelmente as
ociada a eles no Ocidente: vidraceiros em Alep,

joalheiros no Cairo, fabricantes de seda em Tebas ou em Córdoba, negociantes


de marfim, de pérolas ou de coral em Shiraf ou Kerman, e sempre agricultores.
A hospitalidade via-se recompensada.

Finalmente, o estudo da História às vezes negligencia sentimentos


simples. Os dos muçulmanos em relação aos judeus poderiam por certo

ser resumidos a esta constatação: se os judeus não queriam se converter

ao islamismo, pior para eles: “Aquele que é conduzido por Alá está no

bom caminho, e aquele que dele se afasta não achará nenhum mestre

para conduzi-lo” (Corão, XVI I, 16).


A TRÉGUA ISLÂMICA

211

Além disso, na ocasião da expansão islâmica, os novos senhores do

Mediterrâneo e do Oriente parecem ter aplicado preferencialmente dois


preceitos do Profeta, o da tolerância religiosa8 (compensada contudo

pelas sevícias recomendadas aos infiéis) e: “Mais vale uma justiça imparcial sem
religião do que uma tirania fundada em princípios religiosos.”9

Preceito que hoje em dia parece voltaireano e ao qual os próprios judeus

tiveram grande dificuldade em aderir, mas do qual, ainda assim, estiveram entre
os principais beneficiários.

Eles afluíram em direção às ter as do Islã: Alep, Cairo, Kairuan, Fez,

mas também Pérsia e Babilónia. Foram-lhes conferidos — e dessa vez

sem segundas intenções e em toda plenitude — privilégios que o antigo

Império Romano lhes havia concedido e que os imperadores cristãos

lhes haviam retirado. Exilarcas, rabinato, tribunais judeus, estava tudo lá,

apenas com a tênue diferença de que os judeus tinham que pagar impostos
excepcionais, assim como os cristãos e os pagãos: eles eram dhimmis,

cidadãos de segunda clas e. Até o século XI , escreve Nicholas de Lange,

“a legislação discriminatória era frequentemente aplicada de maneira

laxista, ou mesmo ignorada”.10 Os massacres nessas regiões foram muito

mais raros do que na Europa cristã: eis por que o de Granada em 1066

marcou época. Ocorreu em seguida à conquista da cidade pelos berberes

muçulmanos, que não eram árabes, e à queda da dinastia omíada.

Esse primeiro parêntese sangrento da história da tolerância islâmica

merece que nos detenhamos nele. Como qualquer outra, a fé muçulmana, por ela
mesma, não era decerto uma garantia de tolerância, e os berberes, neófitos da
África do norte, não tinham sequer uma migalha da tradição de enterite e de
tolerância dos árabes. Essas misteriosas tribos louras de olhos azuis da África do
norte, que os próprios árabes qualificavam de barabra, “bárbaros”, formavam
grupos distintos, belicosos, provocadores, de independência e orgulho notórios,
que não conheciam praticamente nada do mundo exterior, nem mesmo suas
cidades.1 Movido pela ambição militar, aparentemente sem o menor senso de
solidariedade

com seus correligionários, esse povo do deserto desembocou em

Córdoba em 1013, escandalizou-se com o refinamento da corte, com o

luxo geral da Espanha omíada e com os costumes que em nada corres​


212

HISTÓRIA GERAL DO A N TI-SEM ITISM O

pondiam ao que seu ardor de neófitos lhe permitira imaginar.

Der ubaram a dinastia omíada e impuseram a sua, dos almorávidas.


Violentos, imprevisíveis, deixaram que os infiéis fossem massacrados por

seus fanáticos, os mourabitun, em toda a Espanha do sul, notadamente em

Granada em 1066. A dinastia berbere seguinte, a dos almoades, novamente


permitiu que sua malta, os mouwaidun, irrompesse com ainda mais furor na
África do norte e na Espanha do sul, no século XI : nesses

locais desapareceram tanto as comunidades cristãs muito antigas quanto

as comunidades judias. Sinagogas e academias foram fechadas, e os

judeus, obrigados a se converter. Seguindo o exemplo dos cristãos, os

almoades impuseram aos judeus um uniforme especial, uma túnica azul

ou então roupas amarelas, proibindo-lhes qualquer comércio de valor.

As consequências foram ruins para eles: os judeus foram instalar-se

em reinos mais tolerantes, e os negócios dos almoades pioraram. De todo

modo, por volta de 1200, a Reconquista iria acabar com o califado e o

império berberes. A aproximação de almorávidas com almoades não

durou dois séculos; os que foram capturados terminaram o mais das

vezes na escravidão.

Esse sombrio parêntese comporta uma lição: cada vez que o Islã escapou dos
árabes propriamente ditos, quer dizer, dos povos originários da Arábia, ele
derivou para o fanatismo, como observou Emest Renan. Isso

não teve, contudo, um efeito imediato nem profundo sobre a tolerância

islâmica. Cinco séculos após a conquista, no século XII portanto, o viajante


judeu Benjamin de Tudèle,12 visitando Bagdá, lá contou cerca de 40

mil judeus, 28 sinagogas e 10 academias ou yeshivôt.


Talvez seja o caso de moderar as estimativas desse viajante: ele aponta um total
de 80 mil judeus em Ghazna, no reino de Kharezm (de fato fortemente
judeizado), e 50 mil em Samarcanda. De todo modo, o êxodo em direção aos
territórios islâmicos decorrentes das expulsões da Europa foi considerável e
constante, tendo durado até o século XV, mesmo quando a condição judia nos
países islâmicos tomou-se muito mais rigorosa. A expulsão da Espanha atirou às
rotas do exílio muitas dezenas

de milhares de judeus (de 50 a 150 mil). Assim, os judeus se sentiram à

vontade junto dos árabes.


A TRÉGUA ISLÂMICA

213

Dois personagens, de um bom número de outros, demonstram com

brilho o florescimento do judaísmo sob a égide do Islã. O primeiro é


Saadiya ibn Youssouf el Fayyoumi, também conhecido pelo nome de

Saadia ben Yosef Gaon. Nascido em 882 em Pitom, atual Abu Sueir no

Alto Egito, viajou quando jovem, tendo ido a Alep e depois a Bagdá antes

de se instalar na Palestina. A partir de 921, ilustrou-se com o debate que

opôs o dirigente da academia de Jerusalém, Aaron ben Méír, às comunidades da


Babilónia, a propósito do estabelecimento do calendário judeu.

O ponto era importante não só porque o calendário unificava as celebra​

ções do povo judeu, mas também porque a autoridade que vencesse

deteria a primazia religiosa. Os sábios da Palestina estavam, pois, disputando


essa primazia com os da Babilónia, e a questão transformou-se em cisma:13 para
eles, era o Talmude da Babilónia que tinha autoridade, e

não o Talmude de Jerusalém. Foi aí que Saadia se ilustrou (ele foi um dos

raros doutores a citar e defender o Talmude de Jerusalém, introduzindo

uma renovação que dura até o século XX). Foi também nessa época que

ele escreveu diversas obras, algumas de linguística, como um dicionário,

que codificaram a língua hebraica (gramática e léxico), e outras de filosofia,


formando as bases do que iria se tomar a filosofia judia medieval. Sua influência
deveria atravessar os séculos.14

O outro personagem, Moisés Maimônides, é ainda mais célebre: foi

um dos grandes filósofos medievais. Nascido em Córdoba em 1135 ou

1138, precisou fugir junto com seus próximos em 1148 devido às perseguições
dos almoades. A família estabeleceu-se em Fez, sendo lá que Maimônides
recebeu a formação de médico. Mais tarde a família partiu

para a Palestina e finalmente para o Egito. Permaneceram um tempo em


Alexandria e depois terminaram se fixando em Fustat, a velha cidade do

Cairo. Em 1185, Maimônides tomou-se o médico oficial da corte de Al

Fadil, vizir de Saladino, lá ficando até mor er, em 1204; durante todo esse

tempo, desde 1177, foi chefe da comunidade judia de Fustat. Escrevia em

árabe, o que demonstra a integração efetiva das duas culturas, e foi traduzido
para o hebreu e o latim. Astronomia, medicina, escritos halácicos, ou seja, de
jurisprudência rabínica, e filosofia, Maimônides produziu de

tudo, tendo deixado uma obra considerável. Mas continua célebre hoje
214

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

em dia sobretudo por seu Guia dos Perplexos (Dalalat al HairinÍS) e sua

“Segunda Torá”, Michneh Torah, a mais considerável de suas obras haláci-


cas. A primeira obra pretende ser uma resposta à angústia dos judeus de

seu tempo, presos entre o racionalismo aristotélico e platónico que prevalecia na


época nos meios eruditos arabófonos, e a tradição rabínica; ele retomou a
tentativa de Fílon de conciliar o pensamento racional grego

com o judaísmo ortodoxo. A segunda é uma monumental síntese da lei

judaica.

Saadia e Maimônides são o testemunho da longa hospitalidade que

o Islã ofereceu aos judeus; mas muitos outros judeus que alcançaram as

mais altas dignidades nos califados e sultanatos muçulmanos demonstram que, a


despeito de algumas sujeições (implantação em bair os específicos, limitação do
número de sinagogas, impostos especiais), a dhimmi-

tude era um paraíso em comparação com o inferno europeu, onde imperavam o


chicote, a matança, o as as inato puro e simples, os incêndios de casas e de
sinagogas, as negações de dívidas, as imprecações dos pregadores, as injúrias e
as insígnias para se usar na rua, as taxações absurdas, as prisões seguidas de
imersões forçadas em pias batismais, as expropriações

seguidas de expulsões. Os judeus das ter as do Islã estavam dispostos a

fazer bastante concessões para não ter que retornar ao jugo cristão. O

judeu Hisdai ibn Shaprout, por exemplo, se estivesse em Lion, Norwich

ou Trier, jamais poderia sonhar em ser o doutor da corte de um potentado


ocidental, como ele foi no palácio do califa omíada Abd el Rahman I I (912-
961), nem em se tornar o mecenas dos médicos, eruditos, filósofos

e poetas judeus da região.

“Não se contavam menos do que 44 cidades da Espanha omíada nas

quais se tinham formado comunidades judias importantes e prósperas”,

escreve Paul Johnson.16 Não foi no Ocidente que os funcionários da corte se


dirigiram aos exilarcas nos seguintes termos: “Nosso Senhor, o Filho de David”.
O mais notável é que não se tratou no caso de umas

poucas exceções: a lista dos judeus da corte que alcançaram posições


consideráveis é imensa, do judeu caraíta Abou Sa’ad Ibrahim al Toustari (morto
em 1048), que se tornou o homem forte do califa Al Moustansir,

no Cairo, até Sa’ad al Dawla (morto em 1291) que, na Pérsia, foi o vizir
A TRÉGUA ISLÂMICA

215

do rei Ukhanide Argoun Khan. Muitos desses judeus foram banqueiros

como no Ocidente, mas muitos outros foram ministros, embaixadores,


médicos, conselheiros, e seu judaísmo não pareceu incomodar os potentados
muçulmanos; eles trataram os cristãos da mesma maneira. Assim, famílias judias
como os Ben At ar, os Maimran, os Waqquasa, os Ben

Zamirou e os Pal ache monopolizaram certos cargos honoríficos.17

Contudo, deve-se evitar angelizar a paisagem. O fanatismo já existia:

depois da execução de Saad al Dawla, os judeus foram perseguidos no

império mogol. E a boa disposição islâmica fundamentava-se no realismo: os


judeus foram empregados oficialmente por regimes pobres em competências
administrativas, o que chamaríamos hoje em dia de “quadros”. Suas redes de
relações no interior e no exterior dos territórios sob dominação muçulmana, sua
experiência comercial e seu conhecimento

de línguas estrangeiras tornavam-nos preciosos.

É grande e real a tentação de comparar esses judeus de corte com

seus homólogos europeus, os Hoj uden, porque havia honra. Tentação

útil, já que permite avaliar as diferenças. A primeira é que um contrato

tácito ligava os potentados muçulmanos aos judeus de corte: estes

últimos eram os governadores de fato, os ra’issin el Yahoud ou nagidin das

comunidades judias, às quais eles podiam, por exemplo, solicitar esforços

financeiros especiais; em troca do que a segurança dessas comunidades

estava garantida. Tal não era o caso da Europa; assim, no século XIV,

enquanto o banqueiro judeu Simão, o Rico, de Deneuvre financiava a

nobreza alsaciana, a comunidade judia de Estrasburgo era vítima de perseguições


violentas. A segunda diferença é que muitos judeus das cortes muçulmanas,
como um certo Samuel ibn Negrela, eram verdadeiros

mecenas, que não só transformaram seus palácios em centros de cultura


judia, enriquecendo a língua, a poesia e a reflexão filosófica, mas ainda se

esforçaram para elevar o nível social e cultural das comunidades judias;

ora, is o era impensável no Ocidente: por exemplo, Namanides, um bailio de


Gerona no reinado de Jaime I de Aragão, não poderia oficialmente difundir a
cultura judia à vista da Inquisição.

A tolerância muçulmana permitiu, pois, aos judeus, durante muito


216

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

tempo escapar da abjeção de ser judeu que lhes era imposta dentro dos

territórios ocidentais do cristianismo. Ofereceu durante três séculos um


terreno fértil ao desenvolvimento, à evolução da cultura judaica. Com

frequência evoca-se o papel dos árabes na transcrição dos autores gregos,

que teriam sido perdidos sem eles, mas pouco se fala de seu papel de pro-

tetores da cultura judaica; ele foi, no entanto, considerável. Enquanto na

Europa a Igreja católica fazia guer a ao Talmude e procedia regularmente a


autos-de-fé de seus manuscritos (dos quais o mais tristemente célebre foi o de
Paris, em 1424),18 as academias e os doutores judeus dentro do mundo árabe,
como Haí Gaon, Saadiya, Ben Houchiel, Maimônides

e outros, enriqueciam-nos com comentários e multiplicavam seus exemplares. À


sombra do Islã, o judaísmo rabínico pôde desenvolver uma adaptação ao mundo
a sua volta, hostil ou, no melhor dos casos, moderadamente tolerante. Os
talmudistas, como o conjunto dos judeus, puderam assim alcançar a era da
imprensa, a partir da qual o Talmude se tornaria virtualmente indestrutível.

A própria cultura islâmica beneficiou-se, ao menos em um primeiro

momento: uma grande parte dos autores árabes reputados, como Kindi,

Farabi, Miskawaih, Avicenne, Ghazali, Aver oès, Rhazès, os irmãos El

Safa, El Ash’ari e muitos outros se beneficiaram do clima de abertura, do

espírito crítico e filosófico das responsa judaicas cultivado nas academias,

e das traduções que os judeus (às vezes convertidos) fizeram de autores

gregos.19

E também possível que a população judia do Mediterrâneo deva parcialmente


aos muçulmanos o fato de ter sobrevivido fisicamente. No começo da era cristã,
o total da população judia do mundo mediter âneo

chegava a uns oito milhões: no século X, caíra para um número próximo

de um milhão e meio a um milhão de almas. O conjunto da população


dessa parte do mundo decerto declinara durante o mesmo período,20 mas

é fácil imaginar que as perseguições de que os judeus vinham sendo obje-

to há séculos, deslocamentos constantes, massacres, conversões forçadas,

não estimulavam a reprodução.

Como foi então que a situação degenerou? Qualquer observador do

mundo contemporâneo se pergunta como os muçulmanos e os judeus


A TRÉGUA ISLÂMICA

217

puderam ter chegado aos desrespeitos e às violências que encheram os

noticiários das últimas décadas do século XX.


Na realidade, a situação não degenerou verdadeiramente do estrito

ponto de vista religioso. A deterioração das relações entre judeus e

muçulmanos só se produziu realmente no século XX, a partir da

Declaração Balfour de 1919 e da fundação da pátria judia na Palestina —

ou seja, desde o triunfo do sionismo. Ou, mais ainda, desde que a coexistência
judeus/muçulmanos deslocou-se do domínio religioso para o político. O ponto
será examinado ao tratarmos do sionismo, no final desta obra.

Dois fatores históricos modificaram fundamentalmente o mundo

muçulmano. O primeiro foi a tomada de consciência do que era o Islã,

mediante contatos com o resto do mundo. O segundo foi a tomada do

poder pelos conquistadores vindos de países tardiamente islamizados —

persas, otomanos, mongóis —, de culturas fundamentalmente diferentes, que não


tinham as mesmas razões para a tolerância em relação aos judeus.

Em 638, no decorrer de sua fulminante conquista do mundo, o Islã

apossou-se com uma manobra de Ctesifonte, a capital dos sassânidas, e o

Império persa desabou como um castelo de cartas. Entre 640 e 642, o

califa Osman devorou o Egito e lançou-se em direção da Cirenaica, a

atual Líbia. Entre 644 e 655, mal completados 33 anos da morte do profeta, os
muçulmanos tinham conquistado todo o planalto iraniano. No exterior, eles
descobriram o mundo, e no interior de si mesmos, sua irresistível dinâmica. Eles
tomaram consciência, com embriaguez e talvez também um certo receio, do
poder dessa fé nova que era o Islã. E que

lhes pertencia. Eles passaram a refletir sobre sua identidade. Ainda não

tinham terminado de refletir quando, em 751, o ano seguinte à queda do


califado dos omíadas, bateram os chineses em Talas. O mundo a partir de

então era deles; nunca mais ninguém lhes resistiria. Mas, como todas as

crianças, foram descobrindo lentamente que o mundo era diferente

deles. Começaram, pois, a se definir em relação aos outros, todos os

outros, judeus incluídos. O que não significa que a modificação tenha

sido negativa, mas tão-somente que o Islã, tendo deixado a Arábia, adqui​
218

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

riu personalidade própria e diferenciou-se daquele judaísmo do qual

estivera tão próximo enquanto durara sua gestação.


A “Casa do Islã” teve que se abrir muito depressa, e em seguida crescer para
acolher os oportunistas que, como era de esperar, acor eram na última hora. Em
750, 90 anos após a fundação do califado omíada em

Damasco por Mou’aweya, o hachemita Abou el-Abbas tomou o poder e

se tornou o primeiro califa da dinastia dos abássidas;21 ele transferiu o

centro do poder para Bagdá. Abou el-Abbas só tomou o poder graças à

cumplicidade dos persas sassânidas convertidos: o mínimo que pôde

fazer foi confiar-lhes o governo do Império. O Islã a partir daquele

momento não era mais árabe, no sentido estrito desse termo. E nunca

mais o seria, nem no século XI com os tulúnidas do Egito, que eram otomanos
assim como os seljúcidas, nem com os ikhshiditas e mais tarde os mamelucos,
também otomanos, nem com os fatímidas de Ifrika, originários da Cirenaica. O
mundo islâmico, que se tomara grande demais, perdera sua unidade; via-se
incessantemente dividido por guer as de conquistas. Príncipes vindos de direções
opostas, da extremidade do Magreb e do outro lado do golfo Pérsico pegaram em
armas com o concurso de

ar ivistas e aventureiros, e passaram a disputar infindavelmente os sulta-

natos e os califados originários da epopéia dos árabes de Meca.

Ademais, o próprio Islã teológico encontrava-se dividido entre duas

grandes correntes que permanecem antagónicas até nossos dias: a sunna

e a shi’a. Os partidários dessas tendências diziam-se, ambos, os únicos

herdeiros da fé muçulmana. O olhar ao mesmo tempo cúmplice e desafiador,


mas tolerante, que os companheiros de Maomé tinham lançado aos judeus
desapareceu. Para o regente negro Kafur, que servia de tutor

ao califa impúbere Ounoujour no Egito, em 961, ou para o eslavo

Bourjouwân, que também servia de tutor para o califa também impúbere (11
anos) Al Hakim bi Amr Al ah,2 em 1009 — califa de mãe cristã, di-ga-se de
passagem —, os judeus eram duas vezes estrangeiros: a solidariedade
muçulmana já se tinha esvaído diante das ambições, e seus cor eligionários
muçulmanos eram o alvo de tentativas de as as inatos ininter uptos.

Acrescente-se que os judeus terminaram deixando os muçulmanos


A TRÉGUA ISLÂMICA

219

aturdidos com sua filosofia. O fervor filosófico dos muçulmanos foi,

com efeito, relativamente breve: do século IX ao século XI . Já no século


XI, El Gazâli (1058-1111) tinha-se cansado, duvidando de que a filosofia

e a teologia pudessem provar o que quer que fosse — a existência de

Deus, a estrutura do universo ou a imortalidade da alma. Sua obra mais

célebre, Tahafout el falasifah, “A incoerência dos filósofos”, sustentava que

os profetas eram mais importantes do que os filósofos. No século XI I, o

Islã estava entrecruzado por cor entes teológicas frequentemente antinô-

micas que ameaçavam sua integridade, e muitos autores, como Ibn

Taymiyyah (1263-1328), rejeitaram as influências hereges ou estrangeiras,


notadamente o aristotelismo.23 No século XIV, o ilustre Ibn Khaldoun (1332-
1406), autor de Muquaddimah ou “Prolegômenos”, o

primeiro historiador a compreender a importância da cultura na evolu​

ção das sociedades, consumou a ruptura declarando que a especulação

filosófica era inútil e mesmo fútil. A cultura académica e especulativa

judia não mais apresentava grande interesse para os muçulmanos. A

Revelação tinha ocor ido, e era o essencial. Contudo, as diferenças teológicas


não ensejaram perseguições religiosas do tipo europeu.

Uma modificação produzira-se. A institucionalização progressiva do

Islã e as ameaças cada vez mais fortes que o Ocidente fazia pesar sobre ele

o haviam tomado rígido. O legalismo tendeu a substituir o pragmatismo

e, como na Igreja, foi progressivamente excluindo o judaísmo. Em um primeiro


momento, os judeus não se deram conta. A enorme confusão da época os
induzira ao er o. Chegavam a se imiscuir na política com uma

audácia que se aproximava da impudência: como em 973, no Egito, o convertido


Jacob ben Kil is que, alçado ao nível de vizir, vivia a fazer intrigas; quando se
achou maltratado por um outro vizir (um ikhshidita) chamado

Ibn Fourât, tramou com um rival fatímida nada menos do que a ocupação

do país; melhor, envenenou um general turco, Aftakin, cujo prestígio o

atrapalhava. Em 977, um judeu não convertido, Manasseh ben Abraam,

foi nomeado (pelo cristão arabizado Jesus de Nestorius, vizir do Egito)

governador da Síria. . Excesso de “visibilidade” que lhes trouxe problemas:

durante o reinado do sultão mameluco Baibars, seu conselheiro Khader

el-Mihrani organizou perseguições de judeus e de cristãos.


220

HISTÓRIA GERAL DO A N TI-SEM ITISM O

É possível que os judeus, finalmente, tenham se encantado com a

cultura árabe. Pode-se adivinhar o que os teria seduzido. Para começar, a


língua, que é de uma eloquência sem igual; é uma música. Ela é igualmente uma
poética: como todas as línguas semíticas, essencialmente feitas para ser
escutadas, presta-se notavelmente à transcrição de movimentos da alma,
diferentemente das línguas ocidentais, que se destinam a transcrever conceitos.
O hebreu, o aramaico, o árabe, que são lingi istica-mente tão próximos,
expressam-se naturalmente em períodos. Sua sonoridade é encantatória. As
recitações dos salmos predispunham à escuta do Corão. E não foi por acaso que
a literatura árabe contou com inúmeros

poetas judeus.

Os muçulmanos foram sensíveis a is o, como sua história demonstrou. Um ponto


merece ser sublinhado: a ambivalência crescente dos muçulmanos a respeito dos
judeus jamais chegou perto dos picos de execração do mundo cristão; o massacre
sistemático de judeus só por serem judeus esteve ausente da história do Islã,
exceção feita aos poucos casos

citados mais acima. Os muçulmanos não iriam seguir o exemplo dos

Frangs, que se mostravam tão lamentavelmente desumanos em relação

aos judeus; era um comportamento de bárbaros.

“Com relação às cidades dos francos, há três dias no ano que são bem

conhecidos, são os dias em que os bispos dizem à plebe: Os judeus roubaram a


religião de vocês e mesmo assim vivem em seu país.” É nesse momento que a
plebe e os citadinos, juntos, precipitam-se à procura de

judeus e, quando os encontram, matam-nos. E em seguida pilham todas

as casas que podem”, escreveu no final do século XII o polemista egípcio


Ahmed ibn Idris el-Quarafi, para descrever os maus costumes dos europeus.24
Ele provavelmente também sabia que os cristãos perseguiam

da mesma maneira os muçulmanos, pois havia passado um tempo na

Espanha depois da Reconquista e pudera constatar que os mouros não

eram muito mais bem tratados do que os judeus.


Os abás idas, pois, continuaram tolerantes e mantiveram um cosmopolitismo
frequentemente negligenciado pelos historiadores: falava-se grego em Bagdá,
pois foi lá que se refugiaram os eruditos helenófonos

expulsos de Constantinopla, e também se liam obras da índia. Mais


A TRÉGUA ISLÂMICA

221

extraordinário ainda era que a administração e a polícia estavam nas mãos

de cristãos muitas vezes islamizados, submetidos aos persas sassânidas, e


que os judeus continuavam senhores de suas academias. Foi uma idade

de ouro. Mas que, provavelmente, terminaria se maculando: a partir do

século XI I, a legislação de segregação, ou ghiyâr, começou a ser aplicada

com mais rigor; no Mar ocos, os idrísidas relegaram os judeus aos guetos
denominados mel ahs, onde eles ficaram confinados até períodos bem recentes;
e no Egito, após a deposição do último dos aiúbidas, Turanshah,

em 1250, e o fim de sua dinastia, os mamelucos, que não eram árabes no

sentido étnico do termo, mas otomanos, também impuseram aos judeus

turbantes e cintos de cor distinta: amarela. É verdade que eles impuseram

as mesmas medidas aos cristãos, cuja cor era azul. Ademais, era proibido

aos judeus assim como aos cristãos ir à cidade a cavalo ou em lombo de

mula, e igrejas eram pilhadas e fechadas tanto quanto sinagogas.

Mas, no decorrer dos séculos, a situação dos judeus estabilizou-se no

conjunto do mundo muçulmano. Ela só começou a ser alterada na África do


norte com a revolta do dei Hussein de Alger, em 1805. Mas só se degradará
verdadeiramente a partir da guerra entre Egito e Israel em

1949, por razões especificamente políticas. Até a operação de Suez em

1956, importantes comunidades judias viveram em condições relativamente


seguras no Egito, apesar de esse país ser o centro do ativismo nacionalista árabe.

Paradoxalmente, é a atitude do Islã em relação aos judeus que oferece a melhor


chave da compreensão da atitude da cristandade. O que se vê nela? Que até o
século X es a atitude foi muito tolerante; a partir dessa

época, tendeu à assimilação mais ou menos constrangida dos judeus e à

segregação institucionalizada. A modificação é explicável, como vimos,


pela tomada de consciência do Islã e pela entrada em cena de potentados

não árabes. O que fez com que a tolerância tivesse continuado?

Para compreender, é preciso examinar os grandes movimentos da conquista


islâmica. As dinastias surgiam, enfrentavam-se, sucediam-se a um ritmo
vertiginoso: em 750 surgiu o califado abás ida; em 756 os omíadas de

Córdoba; em 777 os rustêmidas da Argélia; em 800 os aglábidas da Tunísia;

em 821 os taíridas do Khorasan; em 864 os zaíditas do Tabaristan; em 867


222

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

os safáridas do Sistan; em 869 os tulúnidas do Egito; em 875 os samânidas

de Transoxiane; em 893 outro ramo dos zaíditas, os do Iêmen; em 905 os


hamdanitas da Síria. Em 909, os fatímidas dominaram a Ifrika, e em 1036

os seljúcidas impuseram-se, seguidos dos gaznevidas.25

Essa gente toda chegava em levas, montando pequenos cavalos rápidos e, com
poucas manobras, conquistava territórios em que se instalava antes de partir de
novo para outro lugar. A maioria das populações

convertia-se para ficar do lado dos vencedores e porque mudanças são

sempre bem acolhidas. Esses conquistadores, que percor iam milhares

de quilómetros a cavalo e se instalavam onde bem lhes aprouvesse, eram

nómades. Como os judeus antigamente. Mesmo quando conquistavam

cidades, que seus chefes ocupavam ou nas quais construíam palácios e

mesquitas, mesmo quando impunham suas leis sobre os mercados, permaneciam


nómades, prontos para partir de novo em direção a novos horizontes. Daí as
origens étnicas de alguns desses conquistadores e de

seus descendentes: partindo de Alep, por exemplo, alcançaram Gibraltar

após haver semeado crianças no Cairo, em Trípoli, em Túnis, em Argel,

em Fez. Alguns seriam louros, outros negróides — pouco importa, eram

devotos do Profeta. A invasão árabe fez fervilhar um gigantesco melting

pot étnico, primeira consequência desses deslocamentos desenfreados. O

Islã era a casa de Deus, e ele definitivamente não era racista.

Os judeus não queriam se converter? Pior para eles. Seriam obrigados a prestar
serviços e pagar impostos mais pesados. Eles sabiam forjar armas para os
homens, cinzelar jóias para as mulheres, tecer e tingir a

seda, bordar roupas de luxo, sabiam onde se abastecer de pimenta, canela,


açafrão, cravo. Além do mais, não representavam nenhum perigo político:
estavam ocupados demais em fazer negócios. Em meio à vasta cavalgada
muçulmana, eles virtualmente se fundiam à paisagem. Seus tipos físicos eram
bem próximos dos de seus invasores mesmo que, no decorrer dos séculos, os
asquenazes em fuga da Europa tivessem acrescentado uma cor diferente às
comunidades judaicas do Islã. Suas diferenças religiosas não tinham
importância. Desde que levantaram vôo de Meca, os muçulmanos os
encontraram muitas e muitas vezes; não adquiriram o

hábito de persegui-los porque não tinham razão para is o.


A TRÉGUA ISLÂMICA

223

A situação era diametralmente oposta à que prevaleceu na Europa

cristã, onde a quase totalidade das populações era sedentarizada desde o


século V e cujos únicos nómades eram justamente os judeus. Nesses reinos em
que a aliança entre a Igreja e o trono era uma condição expressa da segurança e
da estabilidade social, eles se destacavam de maneira

ameaçadora. O que tinham vindo fazer? Comprometer a fé cristã? De

todo modo são hereges e, portanto, inimigos. Por que nossos homens

não podem desposar suas filhas? Quem são es as pessoas? Por que deixaram
seus países? Por que não falam nossa língua? São estrangeiros, portanto, mais
uma vez, inimigos.

O fanatismo religioso cristão não foi tão religioso quanto pareceu: foi

inicialmente cultural. Supondo, é verdade, que se possam estabelecer

fronteiras rígidas entre o religioso e o cultural.


224

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1. Das três tribos de judeus com as quais se encontrou na Arábia, os banou


quayno-
ka, os awas e os banou quorayza, Maomé poupou as duas primeiras e
mandou executar a

terceira; o número de homens executados (uma única mulher foi também


supliciada)

varia entre 600 e 900. A hipótese geralmente admitida para explicar esse
massacre é que a

atitude desses últimos tinha-lhe provocado inquietação durante o cerco da


cidade pelos

quoraixitas, seus inimigos (cf. Maxime Rodinson, Mahomet, Le Seuil, 1961).


Contudo,

ele nada tinha de específico contra os banou quorayza. Tinha-lhes guardado


rancor por

não terem tomado francamente seu partido? Mas, ao que parece, o


massacre não foi

motivado por razões religiosas, mas sim políticas.

Alguns autores atribuem a Maomé a intenção original de unir as tribos e as


comunidades judias da Arábia em sua nova fé. Tendo se dado conta de sua
resistência, desistiu.

2. Não confundir com Basra, na Mesopotâmia.

3. O episódio foi relatado pelo historiador árabe Tabarri.

4. Max L. Margolis e Alexander Marx, A History of theJewish People (A


Temple Book

Atheneum, New York, 1973). Segundo esses autores, a fundação de Yathrib


remonta ao

século IV antes de nossa era, e os judeus estariam instalados no Hedjaz


desde o século VI
antes de nossa era; alguns chegam a dizer que estariam lá desde a época de
David ou até

de Moisés. Segundo o autor árabe do fim do século XIII Abou el-Faraj el-
Isfahani (Kitâb

el Aghâni, Cairo, 1970), a tradição conta que os primeiros ocupantes da


Arábia teriam

sido os amalecitas, o que parece confirmar a frabe de Nom. XXTV, 20, que
os define como

“os primeiros de todas as nações”. Cf. também Charles C. Torrey,


TheJeiuish Foundation

oflslam (Yale University Press, Yale, 1967).

É preciso também lembrar que após a breve conquista abissínia do reino de


Sabá, no

início do século IV, um rei de origem local surgiu em 375. Ele incluiu em
seus territórios

o Dhou Raidân,o Hadramaout e o Yamnât. Seu sucessor converteu-se ao


judaísmo,

como um desafio, acredita-se, ao poder romano que havia inutilmente


tentado controlar

essa porta de acesso ao mar Vermelho. Em 575, o último rei judeu de Sabá,
Youssef Dhou

Nouwas, foi assassinado por um abissínio cristão que o sucedeu e governou


o reino em

nome do rei da Abissínia. Os estabelecimentos judeus do Hedjaz


experimentaram um

declínio económico e político, tendo, contudo, continuado a existir, vivendo,


entre
outras atividades, do comércio de incenso e mirra, na rota dos perfumes
(Gordon Darnell

Newby, A History of the fews of Arabia, University of South Carolina Press,


Columbia,

1988). A expropriação de seus grandes reservatórios de água e pastos não foi


uma ação

súbita de Maomé, como certos textos querem fazer crer: ela já estava em
curso (Michael

Lecker, Muhammad at Medina: A Geogmphical Approach, Jerusalem Studies


in Arabic and

Islam, 6,1985).

O que é preciso reter desses acontecimentos, geralmente mal conhecidos do


público, é que no tempo de Maomé a Arábia não era na verdade um
deserto; era, de fato, o teatro de atividades políticas e comerciais intensas.
Uma série de escavações realizadas no
A TRÉGUA ISLÂMICA

225

Hedjaz em 1992 e 1993 chegou a revelar importantes vestígios urbanos.


Além do mais, os

judeus da Arábia estavam então profundamente integrados nas sociedades


locais, e os árabes os consideravam com respeito; eles chegaram até a se
interessar pelo misticismo judeu.

5. Por exemplo, no Antigo Testamento, entre a sura 1,5 e o salmo XXVII, 2;


entre a

sura XXI, 105 e o salmo XXXVII, 29; no Novo Testamento, entre a sura VII,
48 e Luc.

XVI, 24. Os contatos de Maomé com os meios judeus e cristãos refletiram-se


na interpretação — errónea — de certas passagens da Bíblia, por exemplo,
na confusão entre Haman, ministro de Ashaverus, e Haman, ministro do
faraó; entre Miriam, irmã de

Moisés, e Miriam, mãe de Jesus. Maomé também teve acesso a certos textos
literários da

época. Por exemplo, a descrição de Alexandre como “o homem dos dois


chifres”, foi

recolhida do Roman d*Alexandre, texto helenístico alexandrino do século III


(falsamente

atribuído a Calístenes), no qual Alexandre é descrito dessa maneira porque


seu pai,

Júpiter Ammon, tinha os dois chifres. O Corão faz também referências aos
Evangelhos

apócrifos e aos relatos da Haggadah. Esses paralelismos foram objeto de


numerosos trabalhos de exegese.

Parece, além disso, que Maomé teve contato com “essenianos”, pois eles
também

estavam na Arábia, com mandeístas (seita ou religião gnóstica de origem


pré-cristã) ou

seguidores de João Batista e com docetistas.


6. Vastas porções da península encontravam-se, no entanto, sob seu controle
teórico: a Pérsia dominava a Arábia do sul, o Iêmen e o Hadhramaut, e
estendia sua influência até a Arábia oriental. Bizâncio controlava o norte, o
Sinai, a Palestina, os territórios correspondentes hoje em dia à Jordânia, à
Síria, ao Líbano e a Israel, assim como a maior

parte da Mesopotâmia.

6*. Docetismo: remota heresia cristã que negava a existência de um corpo


material a

Jesus Cristo, que seria apenas espírito. (N.T.)

7. Semites & Antisemites, Weidenfeld & Nicolson, Londres, 1986.

8. A tolerância religiosa está implícita na sura X, 98: “Compete a você


decidir pelos

humanos a quem vão aderir?” Também se encontram ecos em VI, 109;


XLV, 14; LII, 45,
entre outras suratas.
9. Esse apotegma estaria em contradição com uma tradição muçulmana que
pretende que Maomé, em seu leito de morte, teria declarado que duas
religiões não poderiam coexistir na Arábia, e que o califa Omar teria, pois,
expulsado os judeus do Hedjaz para a

Síria após os haver expropriado. A história é contada por Tabarri, de fontes


secundárias e

mesmo terciárias e de exatidão aproximativa. É possível que o califa Omar


tenha mandado comprar terras pertencentes aos judeus, mas sabemos por
intermédio de um bom número de fontes que as comunidades judaicas
continuaram a viver no Hedjaz e no resto da Arábia depois do califa Omar.
Assim, não houve expulsão determinada dos judeus da Arábia. Cf. Gordon
Darnell Newby,/! History of theJews ofArabia fromAncient Times to

their Eclipsefrom Islam, op. cit.


226

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

10. Atlas of theJewish World, op. cit.

11. A denominação helenística de “bárbaros” e a qualificação romana


correspondente poderiam à primeira vista prestar-se à confusão, por
permitir supor que os berberes descenderiam dos godos, visigodos e
ostrogodos, engajados nos exércitos romanos de

ocupação da África do norte após a queda de Cartago; o que, no caso, e um


pouco superficialmente, explicaria seus traços decididamente nórdicos,
perpetuados até nossos dias.

Na realidade, o termo barabra é muito mais antigo do que a ocupação


romana: já constava das inscrições egípcias de 1700 e 1300 antes de nossa
era, na época em que as tribos berberes do Saara, do Atlântico aos oásis do
Egito, eram também conhecidas pelos nomes

de lebou, mashoumasha, tamaou e kanaka, citadas por Heródoto; essa


antiguidade elimina, pois, a hipótese “gótica”. Além do mais, as
representações dos berberes nos monumentos egípcios desde o século XVIII
antes de nossa era são claramente de personagens de tipo “europeu”. É
necessário, pois, considerar uma origem bem mais antiga do que a

dos godos e lembrar a ocupação do Tassili pelos fenícios durante o segundo


milénio antes

de nossa era. Lembremo-nos igualmente dos berberes númidas, getulos e


mouros.

Agostinho, o célebre bispo de Hipona, era berbere.

Numerosos historiadores contemporâneos enriqueceram nosso


conhecimento dos

berberes, desde a grande Histoire des Berberes, do historiador árabe Ibn


Khaldoun, que data

do século XIV; de origem árabe, ele viveu praticamente toda sua vida no
meio dos berberes, pelos quais professou grande admiração. A partir de
1945, há uma tendência a chamar os berberes de imazighen. Cf. Michael
Bret e Elizabeth Fentress, The Beibers (Blackwell, Oxford, 1997).

12. Não se sabe praticamente nada sobre Benjamin de Tudèle, a não ser que
era
judeu e negociante de pedras preciosas, e que seu Livre des Voyages, escrito
entre 1159 e

1172, é uma mina de indicações, ou de informações confiáveis, a respeito do


mundo

mediterrâneo e médio-oriental da época.

13. Um espírito contestatório decerto reinava entre os judeus da Babilónia,


pois

diversos sacerdotes dissidentes já se tinham separado da yeshiva local para


ir fundar uma

academia em Kairouan, no século I I, o que elevou Kairouan ao nível de


grande centro

islâmico do judaísmo.

14. Dictionnaire encyclopédique du judaisme, op. cit.

15. Traduzido do árabe por Salomon Munk (Verdier, 1979), Maimônides


pode ser

definido como um espiritualista teocêntrico, para quem a razão é uma via


de acesso ao

conhecimento de Deus. Essa idéia foi retomada em Traité de logique


(traduzido do árabe

por Rémi Brague, Desclée de Brouwer, 1995), no qual Maimônides


apresenta a lógica

como uma linguagem universal, esboçando assim a proposição da filosofia


como linguagem igualmente universal. A influência de Maimônides foi
considerável, a despeito (ou por causa) das controvérsias violentas que se
desenvolveram a respeito dt* sua obra muito depois de sua morte. Verifica-
se sua descendência até em Spinoza. Representa a primeira etapa de uma
“laicização” filosófica do judaísmo, que prosseguiu até nossa época.
A TRÉGUA ISLÂMICA

22 7

16. História dosJudeus, op. cit.

17. Sobre este assunto, que ultrapassa o propósito destas páginas, consulte-
se a obra
aprofundada de Nicole S. Serfaty, Les courtisans juifs des sultans marocains
XIlIe-XVII1?

siècle, hommes politiques et hauts d ignita ires, prefácio de Haím Zafrani


(Bouchene, 1999).

18. Não foi o único auto-de-fé do Talmude: Luís IX, Felipe III e Felipe IV
ordenaram pelo menos um, cada um deles. O papa Clemente IV deu ordem
ao rei Jaime de Aragão de confiscar todas as cópias da obra, alegando que
“em seu enorme conjunto...

havia numerosos insultos e blasfémias detestáveis contra o Senhor Jesus


Cristo e sua

muito santa mãe”. Cf. Jeffrey Richards, Sex, Dissidence and Damnation
(Routledge,

Londres e New York, 1991).

19. Da equipe de sete tradutores designados pelo califa abássida El


Ma’amoun, no

século IX, para traduzir Aristóteles, faziam parte dois judeus, Hounain ben
Ishâq, o

Johannitius dos escolásticos cristãos, e Ibn el-Nadím, bem como um cristão,


Louka el-

Balabakki. Cf. Histoiregénérale de Dieu, do autor (Robert Laf ont, 1997).

20. Uma parte desse declínio demográfico deve ser atribuída às epidemias
de peste

negra, que dizimaram, estima-se, perto de um terço das populações


européias. Declínios

demográficos, de causas ainda incertas, haja vista a ausência de dados,


parecem ter ocorrido por diversas vezes ao longo da história, pelo menos de
acordo com os dados disponíveis. Assim, de 100 milhões de habitantes em
1650, a população da África decresceu para 95 milhões em 1750 e para 90
milhões em 1800, enquanto a da Europa, no mesmo

período, teria passado de 100 milhões para 187 milhões. De 1965 a 1975, a
taxa de fecundidade, aliás, baixou entre 10 e 20% na maior parte dos países
do Terceiro Mundo, diminuindo 34% na China, e mesmo 47% em Cuba (
Population, Enciclopédia Britânica,

Géographie humaine, Quid 96).

21. O nome é derivado do nome do tio de Maomé, El Abbas, do clã


hashimita dos
quoraixitas.
22. Al Hakim bi Amr Allah, o “Calígula do Oriente”, é talvez um dos
personagens

mais pitorescos de uma época por si só pitoresca. Foi ele quem, em 1010,
mandou destruir a igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, desencadeando
assim o furor do Ocidente cristão; mas ele também mandou construir a
grande Biblioteca do Cairo, instalada dentro do palácio dos fatímidas. Ao
mesmo tempo em que perseguia os cristãos, continuava a lhes confiar, a eles
e aos judeus, cargos de alta responsabilidade. Governador competente de
califado, deixou-se, contudo, consumir pela megalomania e no último ano de
seu reinado, em 1020, reivindicou a divindade! Mas seu nome continuou
reverenciado no

Islã, notadamente em Alep e em Massoul.

23. É a opinião de alguns historiadores, como E. Gutwirth (Hispano-Jewish


At itudes

to the Moors in the Fijteenth Century, em Sefarad n? 49,1989) e N. Roth


(Jews, Visigoths and

Muslitns in Medieval Spain: Cooperation and Conjlict, E. Bril , Leyde, 1989).


228

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

24. Os “francos” em questão são todos os europeus, e não apenas os francos;


até

hoje, em árabe, os europeus são designados pelo termo Frang. Citado por
M. Cohen,

Under Crcscentand Cross: TheJews in theMidlleAges (Princeton University


Press, Pinceton,

1994).

25. Gérard Chaliand e Jean-Pierre Rageau, Atlas des Empires (Payot, 1993).
7.

O exemplo asiático

ANTIGA PRESENÇA MÍTICA E MENOS MÍTICA DOS JUDEUS NOS


CONFINS DA

TERRA—OS FALACHAS, JUDEUS ANTERIORES AO TALMUDE—A


ROTA DA SEDA E

A CHEGADA DOS JUDEUS NA CHINA — A SINAGOGA ORNADA DE


CITAÇÕES DE

CONFÚCIO — OS BENE-ISRAEL, DESCENDENTES DE NÁUFRAGOS —


A AUSÊNCIA

DE PERSEGUIÇÕES NA ÁSIA E AS LIÇÕES DO EXEMPLO ASIÁTICO

A diáspora interior, mencionada no primeiro capítulo deste livro,

impulsionou os judeus em direção a novos horizontes bem antes das

perseguições. Não surpreende ouvir que ela os teria lançado no rumo das

Américas em companhia dos fenícios, segundo teses cada vez mais insistentes
que afirmam terem eles abordado o outro lado do Atlântico no primeiro milénio
de nossa era. Século após século, correm as lendas mais loucas a respeito dos
judeus, como os das famosas tribos perdidas que

teriam alcançado os confins da Ter a. De fato, há quem acredite tê-los

visto nas Américas, e um certo Montezimos pretendeu ter “encontrado

índios judeus1 no Peru”.

De todo modo, eles foram os primeiros a chegar e a se instalar muito mais longe
do que todos os outros. Como, por exemplo, os judeus da Etiópia — os falachas
—, que não conheceram o Talmude. Transplantados para Israel em 1984, em
meio a um clamor midiático, consideram-se descendentes da tribo de Dan, tribo
de fato “perdida” ou meio perdida desde o Exílio na Babilónia. Eles pretendem
ter habitado a Etiópia desde os tempos de Salomão, talvez desde a saída do
Egito. A história nos

reservou algumas surpresas: qualquer das duas alegações é plausível. Se

os falachas não conheciam o Talmude, só pode ser porque estavam


230

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMIT1SMO

ausentes de Israel desde o século I antes de nossa era, data em que as leis

judaicas e suas interpretações2 começaram a ser colecionadas.


De todo modo, os judeus viajaram muito, sendo Cristóvão Colombo

um de seus representantes emblemáticos. E preciso lembrar que “os

judeus foram dos primeiros povos a libertar a Europa do jugo da geografia


cristã”, como disse o historiador Daniel Boorstin?3 O famoso Atlas

Catalão, realizado em 1375 pelo geógrafo judeu Abraão Cresques, foi de

fato o primeiro a finalmente apresentar os contornos reconhecíveis da

Ásia.Um ponto é certo: o sopro da diáspora propulsionou-os na direção

da Ásia. Vimos mais acima que eles foram para lá, onde se estabeleceram

desde o século VI antes de nossa era. O esquema de sua primeira instala​

ção foi premonitório das instalações posteriores: perderam sua identidade e


fundiram-se à população. Muitos autores da Cachemira declaram, como vimos
também, que seu povo tem ascendência judia.

A rota da seda abriu-lhes, a partir do século I, um domínio frutuoso,

pois havia muito dinheiro a ser ganho com a importação desse tecido, do

qual os romanos eram grandes consumidores: eles o pagavam, literalmente, a


peso de ouro. O tingimento da seda tomou-se uma especialidade judia em Tiro,
Palmira e Hierápolis. Os judeus tomaram-se, pois,

“armadores de caravanas”, mercadores, intérpretes e, por que não, seguradores.4


Contudo, o dinheiro não era o único motor da exploração da Ásia para os judeus;
havia também o famoso mito de um reino hebraico

oriental, do qual os judeus em guer a contra os romanos esperavam em

vão o socor o militar.

Ao comércio da seda acrescentou-se, no decor er dos séculos, o da

porcelana, de que os soberanos ilslâmicos eram grandes apreciadores (os


navios que traziam os judeus não tinham mais o direito de acostar em

Bizâncio), depois o de pólvora, pedrarias, animais exóticos, eunucos... A

rota da seda, com efeito, serviu igualmente para transportar as mercadorias


trazidas da índia e da Insulíndia: chá, coral e gemas de Taprobane, antigo nome
do Sri Lanka, aloé, cânfora e drogas diversas, incluindo

ópio, de Calicute, de Cochin, de Málaca. Sabe-se, pelo geógrafo árabe

Ibn Khourdazbih, provavelmente originário de Bagdá, que as rotas


O EXEMPLO ASIÁTICO

231

comerciais que partiam de Bagdá e iam para a China eram frequentadas

por mercadores muçulmanos e judeus,5 certamente também por nesto-


rianos, maniqueístas e mazdeístas.

Como seria de esperar, os mercadores judeus, assim como os demais,

estabeleciam feitorias ao longo do percurso, nas grandes etapas e na própria


China. Instalavam-se também nos grandes portos, como Fuzhou e Cantão. Só
indiretamente a importância disso pode ser medida. Em

Cantão, durante a repressão chinesa que ocorreu por volta de 758 e

depois novamente em 879, devido às revoltas camponesas chefiadas por

Huang Chao contra os soberanos Tang, 120 mil comerciantes estrangeiros,


cristãos, muçulmanos e judeus, foram massacrados, relatou o viajante árabe
Abou Zayd.6 Talvez Abou Zayd tenha querido dizer que a comunidade de
mercadores de Cantão tinha 120 mil almas, estimativa decerto bastante pessoal,
e que tinha sido inteiramente dizimada; pois 120 mil

cadáveres, convenhamos, representam um massacre desmesurado. São,

de todo modo, as primeiras menções de estabelecimentos de judeus na

China. Ignoramos a que época remontam, mas não foram os últimos.

A despeito de dois massacres em pouco mais de um século, a despeito


igualmente do fato de que no século X a China da dinastia Song fechou-se e o
comércio com os estrangeiros foi oficialmente proibido, os

judeus não foram embora. Devem ter compreendido, provavelmente,

que os massacres não tinham sido dirigidos especificamente contra eles.

As comunidades judias perduraram, tanto no interior quanto no litoral.

“Os arquivos locais informam que no século X os judeus eram ativos em

numerosos domínios, como o comércio, a agricultura, o exército e o serviço


público”, escreve Nicholas de Lange.7 Em Kai Feng, capital do Honan, existia
um sinagoga que se tornou célebre no século XII.

Construída em 1163, foi reconstruída em 1653 pelo mandarim judeu


Chao Ying Chen; ainda estava de pé no século XIX Existiram outras, e

sabemos que elas eram enfeitadas com citações de Confúcio em chinês.8

Durante muitos séculos os judeus mantiveram uma verdadeira atividade

religiosa na China, como demonstra especialmente uma Torá em chinês,

escrita sobre couro de cabra e resgatada da inundação de uma sinagoga

pelo rio Amarelo em 1642. Alguns raros textos em hebreu anteriores ao


232

HISTÓRIA GERAI DO A N Tl-SEM ITISM O

século XI foram descobertos em TUen Huang e próximo a Khotan, e,

escrevem François-Bemard e Édith Huyghe, “os judeus de olhos puxados”, que


tanto excitam as imaginações, poderiam descender desses judeus de Narbonne
que foram até o Sind, a índia e a China, ora pelo

mar Vermelho, ora pelo golfo Pérsico, de acordo com Ibn Hourd”.9 As

mestiçagens, com efeito, acabavam puxando-lhes os olhos. Como não

encontravam judias para se casar, os viajantes judeus se casavam com

asiáticas. Quanto à memória dos filhos. .

O mais extraordinário não é que es as comunidades não tenham sido

objeto de perseguições religiosas. O confucionismo, como o budismo

original, era tolerante; ele não é, aliás, uma religião e decerto não uma

religião revelada, mas uma filosofia; judaísmo e confucionismo viveram,

pois, em boa harmonia, já que suas prescrições eram bastante assemelhadas. O


mais extraordinário é que a tolerância chinesa tenha atingido primeiro a
assimilação perfeita, depois a dissolução harmoniosa do judaísmo dentro da
cultura chinesa ao final de alguns séculos.

Aconteceu o mesmo na índia: apesar de o hinduísmo ser de fato uma

religião, até mesmo uma religião excludente, ele permaneceu tolerante

até o século XX10 Os primeiros imigrantes do norte foram provavelmente


exilados que permaneceram onde estavam após a queda da Babilónia, na
atmosfera de clemência generosa de Ciro e Dario, e que

mais tarde se disseminaram pela Bactriana, o atual Afeganistão, e

Cachemira. Mais ao sul, os primeiros (e trágicos) a chegar foram provavelmente


os judeus que partiram de barco em seguida às perseguições de Antíoco IV
Epifanio (175-163) antes de nossa era. Eles embarcaram em

Elath, a antiga Ezion-Geber, e naufragaram cerca de 50 quilómetros ao

sul de Bombaim. Só sete famílias sobreviveram; foi o suficiente para fundar uma
colónia que existe até hoje, nos distritos de Kolaba, de Bombaim e de Shana, que
contavam com 13 mil almas nos anos 40 e 15 mil nos

anos 80. São os Bene-Israel, ou Filhos de Israel, também chamados de

judeus negros da índia.

Não conseguiram salvar do naufrágio nenhum de seus livros e

esqueceram rapidamente o hebreu, substituído pelo dialeto local, o

marathi, e foi na língua marathi que suas tradições foram conservadas e


O EXEMPLO ASIÁTICO

233

recolhidas em 1937.1 Mas não se esqueceram nem do repouso do sabá,

nem da prática da circuncisão, nem das prescrições alimentares judaicas


e nem da shema.u* E muito provável que tenham sido sefardis.

Uma segunda leva de imigrantes juntou-se aos Bene-Israel em uma

época indeterminada. A colónia que então nasceu divide-se atualmente

em judeus de Goa, brancos, e de Kala, negros. Parece que foram estes

últimos os que chegaram primeiro.

Colónias de mercadores judeus e árabes foram implantadas na costa

ocidental da índia desde o século X: uma parte de suas correspondências

com os mercadores do Cairo foi encontrada na célebre geniza, ou sinagoga, da


capital egípcia, tendo-se constituído em achado precioso para a his- j

tória dos judeus. Os judeus eram tratados com respeito que pode ser

constatado por um documento de 974-1055. Trata-se de uma placa de

cobre gravada em escrita tâmil antiga, com a lista dos privilégios concedidos a
Istippu Irappan, Joseph Raban: isenção de todos os impostos e concessão de
rendimentos de um bair o inteiro do porto de Cranganore, na costa de
Malabar.12 No começo do século XVI, novas levas de imigrantes,
provavelmente sefardis da Espanha e asquenazes da Europa ocidental, chegaram
da Europa à costa ocidental da índia, especialmente em Cochin, e ampliaram o
número de estabelecimentos comerciais já existentes. Entre 1820 e 1830, cerca
de dois mil sefardis chegaram de Bagdá, sempre na costa leste.13 A última leva
remonta à década de 1930, fugindo

das perseguições anti-semitas que começavam nos países totalitários.

Interessante é que todos es es judeus adotaram a divisão social em

castas, conservada até nossos dias; uma casta suplementar chegou a se

formar, composta de filhos de uniões de judeus e escravas concubinas.

Mas eles praticavam suas religiões em sinagogas separadas.


O capítulo da diáspora judia na Ásia é o mais das vezes tratado pelos

historiadores do judaísmo como um parênteses pitoresco e desprovido

de significado. A mim parece, pelo contrário, comportar duas lições

essenciais.

A primeira reside no fato de nenhuma das comunidades da China e

da índia ter sido perseguida por razões religiosas. A explicação decerto

não reside na estabilidade política: desde os primeiros estabelecimentos


234

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

de judeus na China até a queda do Império, no século XX, a história da

China tem sido uma sucessão de convulsões violentas e de constante


instabilidade política. Mesmo que a história da índia, durante a ocupação
britânica e depois da independência, tenha apresentado uma certa estabilidade,
ela não foi tão melhor assim do que a da China em matéria de agitação. Tanto em
um quanto no outro país não faltaram rebeliões: a revolta dos sipaios em 1857
nada deixou a dever à dos boxers em 1900.14

A perenidade dos assentamentos judeus foi atribuída por alguns

autores à capacidade de adaptação dos judeus a circunstâncias muito

diversas. Essa capacidade é indubitável, ainda que não pareça especificamente


judia: os estabelecimentos cristãos na índia e nestorianos na China igualmente a
demonstraram. E a adaptabilidade dos judeus não

impediu as numerosas expulsões de que eles foram vítimas na Europa.

Mais significativo é o fato de que, diferentemente do que ocorreu no

Ocidente, os judeus nunca tenham sido perseguidos, muito pelo contrário. Em


1937, por exemplo, um judeu foi nomeado prefeito de Bombaim, que na época
era a capital do judaísmo na índia; os judeus

eram, no entanto, bastante minoritários na cidade, mas isso não provocou

perturbações importantes. A perenidade em questão me parece, pois,

tudo dever à tolerância religiosa das populações. O confucionismo, como

vimos, é a própria tolerância. O hinduísmo, o budismo, o jainismo não são

mais intolerantes. Ocor e, contudo, que se trata de religiões não reveladas (o


budismo sim, mas a partir de uma adulteração tardia); elas não têm a convicção
de uma verdade imanente e não apresentam nenhuma disposição de a impor.
Quanto ao islamismo, que prevaleceu na índia a partir da ocupação mogol,
também não parece ter sido perturbado pelos estabelecimentos judeus. Vimos
como o islã era tolerante; e o foi mais ainda sob os mogóis (nome dos mongóis
muçulmanos que ocuparam a índia):

“Para os mongóis não há escravo nem homem livre, nem crente, nem

pagão, nem cristão, nem judeu: eles consideram que todos os homens
pertencem à mesma espécie”, escreveu o judeu convertido cristão mono-

fisista Bar Hebraeus (1226-1286).

A segunda lição es encial do capítulo dos estabelecimentos judeus na

Ásia é que, ao contrário do que alguns discursos contemporâneos susten​


O EXEMPLO ASIÁTICO

235

tam, as minorias não suscitam necessariamente hostilidade. As ideologias

é que são racistas. Mais uma vez, o anti-semitismo é uma emanação da


ideologia, portanto um fenómeno cultural.

Somos tomados por um irresistível desejo de sonhar com esses

períodos abençoados da Ásia, em que as pessoas compreendiam que a

existência já era suficientemente difícil para que se quisesse complicá-la

mais ainda com ódios a pessoas que acreditavam em um deus diferente.

A lição da tolerância asiática torna-se ainda mais amarga tendo em vista

os capítulos seguintes.
236

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1. François-Bernard Huyghe e Édith Huyghe, Les Empires du Mirage


(Robert
Laf ont, 1993). A tese da presença de judeus nas Américas antes de Colombo
contraria

evidentemente as noções “clássicas” da descoberta desse continente, assim


como as da

ocupação única das Américas por populações mongólicas do milénio


anterior a nossa era.

Mas ambas foram ganhando crédito no decurso das décadas, sustentadas


por trabalhos de

antropologia e etnologia (a tese da ocupação mongólica das Américas parece


abalada por

trabalhos efetuados sobre o homem de Kennewick, que sugerem uma


ocupação européia

das Américas 25.000 anos antes de nossa era (Roger Lewin, Young
Americans, New

Scientist, 17 de outubro de 1998). A Pedra de Metcalf, descoberta em 1966


na Geórgia,

indica de tal maneira um correlação entre os ritos religiosos dos índios


Yuchis e dos

judeus, notadamente as prescrições do Levítico, que é no mínimo audacioso


ver aí apenas simples coincidência (cf. Cyrus Gordon, Be/ore Columbus,
Crown Publishers, New York, 1971). Gordon recusa a tese de que os Yuchis
seriam uma das “tribos perdidas”.

Não há necessidade de recorrer a essa tese: os judeus da Palestina podem


muito bem ter-

se juntado aos fenícios: a escrita da Pedra de Metcalf apresenta numerosas


semelhanças

com a escritura egéia, de origem fenícia, da segunda metade do terceiro


milénio antes de
nossa era. O tema, contudo, ultrapassa a proposta desta obra.

2. O Talmude compreende a Mishnah, forma codificada da lei oral dada por

Moisés sobre o Sinai, e a Gemarah, conjunto de discussões rabínicas. A


Mishnah, transmitida oralmente, esteve ameaçada de se perder até o século
III, ocasião em que foi fixada por escrito pelo rabino Yehuda Hanassi, e o
primeiro Talmude conhecido foi o

chamado Talmude da Babilónia, completado somente no final do século V


de nossa

era (cf Dictionnaire encyclopédique du judaisme, op. cit.). É, pois, possível,


que os falachas se tenham instalado na Etiópia em um período mais recente
do que eles supõem, talvez após

a queda do reino judeu de Sabá.

3. Daniel Boorstin, Les Découvreurs (Seghers, 1983).

4. Em geral, ignora-se o quanto o seguro é antigo. No entanto, ele remonta a


4000

antes de nossa era: os babilónios já o praticavam. Há provas de sua prática


na índia no

século VII, na Grécia no século I I igualmente também antes de nossa era. .


A prática

antiga decorria de um empréstimo de fundos, que consistia em obter um


empréstimo em

dinheiro com base em uma operação comercial, dinheiro que estava


depositado junto a

um terceiro que exercia a função de banqueiro. (Cf. Assurances, em Les


Grandes inventions

de 1'humanité, do autor, Bordas, 1988.)


5. Cf. René Khawam, Les Aventures de Sindbad leMarin (Phébus, 1985).

6. Citado por Cécile Beurdeley, Sur les Routes de la Soie (Office du Livre,
Fribourg,

1985).
O EXEMPLO ASIÁTICO

237

7. Atlas of thejewish World, op. cit. Em 1988, o especialista em China David


Selboume

publicou The City ofLight (Lit le, Brown, Londres): tradução de um


manuscrito do mercador judeu Jacob de Ancona, relato de sua viagem pela
China em 1270. Esse viajante italiano faz referência à presença de judeus no
porto de Quanzhou, na época chamado de Zaitoun. A autenticidade desse
livro suscitou controvérsias exaltadas entre os sinólogos,

alguns deles chegando até a acusar Selboume de ter produzido uma


falsificação. Parece,

contudo, que a autenticidade do livro foi confirmada pelo Museu da


Marinha de

Quanzhou. Assim, The City of Light, “A Cidade de Luz”, constituiria uma


prova suplementar da presença de judeus na China na Idade Média.

8. D. D. Leslie, The Survival of the ChineseJews (E. J. Bril , Leude, 1972).

9. F.-B. Huyghe e E. Huyghe, Les Empires du Mirage, op. cit.

10. As perseguições de cristãos pelas facções extremistas dos partidos


políticos da

índia parecem, com efeito, ter concluído uma história ininterrupta de


grande tolerância

religiosa, mesmo sabendo-se que os cristãos da índia não representam senão


23 milhões

de almas — uma ninharia diante do bilhão que totaliza a população.

11. Menachem Begin, WhiteNights (New York, 1977).

11*. Shema: palavra hebraica que significa “escuta”. Primeira palavra de


um dos textos mais importantes do ritual de preces judaico. (N.T.) 12.
Hermann Kulke e Dietmar Rothermund, A History of índia (Bames & Noble

Books, New York, 1986). Os autores mencionam um longo documento


redigido pela

guilda de mercadores de Ayyavole em 1055, que demonstra um orgulho


impressionante:
“Célebres no mundo inteiro, providos de numerosas qualidades, verdade,
pureza, boa

conduta, disciplina, compaixão é prudência; protetores da lei dos vira-


Bananju-dhar-

mana [lei dos mercadores heróicos]...” Assim, eles enumeram as próprias


virtudes e o

próprio esplendor com eloquência no mínimo desenvolta.

13. Paul Johnson, História dos Judeus, op. cit

14. Os boxers começaram de fato a perseguir os cristãos, qualificados de


“demónios

estrangeiros secundários”. Era o começo da insurreição nacionalista


chinesa.
8.
A Europa dos guetos
O PROSSEGUIMENTO DAS PERSEGUIÇÕES E EXPULSÕES — OS
MITOS DO JUDEU

DIABÓLICO E DO JUDEU ERRANTE—O DUPLO EFEITO DA REFORMA


—A REVIRA​

VOLTA E O ANTI-SEMITISMO DE LUTERO—OS MASSACRES DE


CHMIELNICKI—A

AMBIVALÊNCIA DE ROMA E DOS PRÍNCIPES — O STATUS DOS


JUDEUS NA FRAN​

ÇA E AS REVOLTAS DA ALSÁCIA E DA LORENA — O STATUS DOS


JUDEUS NOS PAÍ​

SES GERMÂNICOS, NA INGLATERRA E NA RÚSSIA — O MEDO DO


JUDEU E SUAS

RAZÕES

Desde o século XV o principal instrumento de poder e de sobrevivência


disponível para os judeus, o ofício de banqueiro, passara em boa parte para mãos
cristãs. Na verdade, já fazia perto de dois séculos que os

cristãos tinham superado as interdições eclesiásticas, dos concílios ou dos

sínodos, bem como a denúncia do dinheiro feita por São Paulo, para

ceder às injunções do bom senso: a moral sustentava-se melhor em meio

à prosperidade, a qual dependia das boas finanças. Essa tomada de consciência


decerto se misturava a alguma inveja dos judeus, que possuíam longa
experiência nessa área. Mas, no final, o senso de finanças prevaleceu.1 Um
panfletário francês anónimo do século XIV deplorou, contudo, que os cristãos
tivessem substituído os judeus: estes últimos pareciam condescendentes,
“camaradas”, comparados a seus sucessores.2
Seria possível esperar que as avanias infligidas aos judeus tivessem

chegado ao fim. Nada dis o. Tendo-se tomado inúteis, e as ordens católicas


estando implantadas em toda parte, eles foram igualmente expulsos de toda
parte: de Viena e de Linz, escreve Paul Johnson, em 1421; de

Colónia em 1424; de Augsburg em 1439; da Baviera em 1442 e de novo


A EUROPA DOS GUETOS

239

em 1450; das cidades da Morávia em 1454; de Florença e de toda a

Toscana em 1494 e do reino de Navar a em 1500. Da Inglater a não era


mais o caso, pois já tinham sido expulsos em 1290. Da Espanha já tinham

sido expulsos em 1492. E de Portugal em 1496, em condições confusas, é

verdade: dividido entre o catolicismo obrigatório e seu interesse, uma

vez que os judeus traziam dinheiro para o reino, o rei Manuel I decidiu

que todos os judeus de Portugal seriam convertidos à força, sem recurso.

Em 1499, mandou fechar as fronteiras — os judeus não poderiam mais

sair. E então eles se converteram — a contragosto —, engrossando a massa dos


marranos ou judeus convertidos do mundo ibérico, também chamados de
criptojudeus, alvo preferencial da Inquisição. Sacrifício inútil: em 1506, os
massacres de Lisboa conduziram à morte dois mil judeus.

Eram os “hereges” mais visíveis: judeus do Oriente, bronzeados, eram

reconhecidos imediatamente, tinham vindo de outro lugar. A xenofobia

reforçava a intolerância religiosa e o racismo espontâneo.

Da França, já haviam sido expulsos em 1394, após sinistros conluios

supervisionados por Felipe V Em 1321, em visita a Poitou, o rei ouviu

rumores que diziam que os judeus, associados aos leprosos, eram os


responsáveis pela propagação da peste: eles teriam pago aos leprosos para que
confeccionassem drogas à base de sangue humano, urina, ervas

maléficas, cabeças de serpente e patas de sapos.3 Para que simplificar

quando é possível complicar? O rei ordenou aos bailios, senescais e pre-

bostes que adotassem sanções variadas: da prisão até o confisco dos bens

dos culpados. A questão era esta: Felipe V estava precisando de dinheiro.

Contudo, foi durante o reinado de seu sucessor, Carlos VI, que os judeus
foram expulsos do reino, ameaçados de pena de morte.4 Eles dispuseram

de um mês para recuperar seus créditos. Como o prazo era insuficiente,

em 1397 os créditos dos judeus foram anulados de direito, e os documentos


atestatórios queimados por oficiais reais, para simplificar o procedimento. Os
cristãos tomavam-se assustadoramente parecidos com a imagem que faziam dos
judeus e, por sinal, não pela última vez: até o século XX, tão logo tinham
oportunidade, roubavam e pilhavam os judeus,

comportando-se como ladrões de feira.

Mesmo assim alguns judeus permaneceram — os mais ricos, é claro,


240

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

ou seja, aqueles de que o poder tinha necessidade. Quanto aos convertidos, os


marranos, nem por isso puderam escapar: a Santa Inquisição começou a
interessar-se por eles, na França bem como em outros lugares.
Aquela gente se dizia cristã, mas sabia-se muito bem que guardavam o

judaísmo em seus corações; eram na realidade inimigos disfarçados.

Foram equiparados aos hereges pelo papado, e o passo seguinte consistiu

em acusá-los de satanismo. Os processos em cortes eclesiásticas sucede-

ram-se aos processos de intenção. Uma das primeiras caricaturas conhecidas de


judeus, datada de 1277, é inglesa e traz a inscrição: Abraão, filho do

Diabo.5 Era um nunca acabar de detalhamentos da natureza diabólica dos

judeus. Os teólogos também participavam: São Tòmás de Aquino e Santo

Alberto, o Grande, postularam que o Messias esperado pelos judeus só

poderia ser o Anticristo e — cúmulo de loucura especulativa —,


necessariamente um judeu nascido na Babilónia! Bem entendido, o Anticristo
era o instrumento do diabo, e a imaginação popular, apropriando-se de um

tema que os curas pregavam do alto de suas tribunas, fazia do Anticristo o

filho do diabo com uma prostituta da Babilónia, iniciada na magia e nas

artes do ocultismo pelos feiticeiros judeus. Ele reinaria por três anos e

meio. Foi nessa época que Felipe I I da França, imbuído de um fervor

muito cristão, impôs aos judeus o porte de uma efígie com chifres acima

da insígnia redonda. Daí a idéia popular de que os judeus escondiam uma

cauda embaixo do casaco e chifres embaixo do chapéu.6

Eles foram evidentemente acusados de todos os vícios e taras: sodomitas,


feiticeiros, escrofulosos, hereges, envenenadores. Na França, na Alemanha e na
Espanha a Inquisição ocupou-se em preparar processos

contra aquela corja, sempre em meio a uma confusão mental e ideológica diante
da qual os processos de Moscou e o anti-semitismo nazista foram modelos de
clareza. Assim, no século XI , Walter Map, arquidiá-

cono de Oxford, contava como os cátaros invocavam o diabo, pois estava

claro que eles o invocavam:

“Por volta das primeiras vésperas da noite (. .) cada família aguarda

em silêncio em sua sinagoga; desce, então, por uma corda que pende em

meio às pessoas, um gato preto de dimensões impressionantes. Ao vê-lo,

apagam as luzes e não cantam distintamente os hinos, apenas os murmu​


A EUROPA DOS GUETOS

241

ram, com os dentes apertados, e vão se aproximando do local onde viram

seu senhor, procurando-o com o tato, beijando-o7 assim que o encontram.”


Eis aí o final da história: os cátaros eram judeus, uma vez que se reuniam em
sinagogas, e vice-versa! Ora, onde é que o arquidiácono tinha visto que os
cátaros se reuniam em sinagogas? Pouco importa, o essencial

estava contido no amálgama judeu/cátaro/herege/leproso. Construía-se

desse modo um reservatório de fantasias mefíticas que se iria despejar

lentamente pelo inconsciente coletivo: bastava torturar um suspeito, e a

Inquisição não se privou de fazê-lo, para que ele confessasse o que se quises e. O
inventário dessas confissões fantásticas encheria volumes. “Em Jungensburg, na
Livônia, em 1692, um homem de 80 anos, de nome

Thiess, que seus compatriotas consideravam um idólatra, confessou aos

juizes que o inter ogaram que era um lobisomem.”8 O que hoje em dia

pertenceria ao campo da psiquiatria, à época se constituía em “provas”.

É que o clima de obscurantismo beato e santar ão, sustentado pela

hierarquia da Igreja de alto a baixo — papas, teólogos, cardeais, inquisidores,


dominicanos, franciscanos e baixo clero, sobretudo o baixo clero (a respeito do
qual se pôde verificar na França, em pleno século XX, que

receptáculo de bobagens ele pode ser por vezes), com suas ineptas fábulas de
íncubos e súcubos, de complôs satânicos e feitiçaria e suas suspeitas de heresia
— ainda existia no século XVI .9 Ele perdura, aliás, no século XX,10 sob uma
forma pasteurizada, na psicanálise. Nesse breviário

colérico e insano da perseguição religiosa, o Mal eus Maleficarum ou

Martelo das Feiticeiras, monumento de imbecilidade cristã que serviu

durante séculos de breviário para os inquisidores e paranóicos aparentados, o


crime das feiticeiras é definido pela infidelidade: “Ou dizem não à fé cristã
exibida diante de seus rostos, que é a infidelidade dos judeus; ou

dizem não à manifestação atual da verdade, que é a infidelidade dos hereges.”


Entendamos com isso que todos os judeus são suscetíveis de ser infiéis, portanto
satânicos e fazedores de malefícios. E mesmo mais satânicos do que os pagãos:
“Os judeus pecaram mais gravemente do que os pagãos: eles receberam, com
efeito, a imagem da fé cristã na antiga Lei,

mas a corromperam ao interpretá-la mal, o que os pagãos não fazem.”


242

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Será uma imagem apreciada, a que representa a fé cristã recebida “no rosto”.
Mesmo quando os judeus jejuam, estão imersos no mal: “Tudo que eles fazem é
pecado mortal.”1
O Mal eus Maleftcarum conheceu imenso sucesso entre 1486, ano de

sua publicação, e 1650. Cerca de uma centena de milhares de pessoas

foram objeto na Europa, entre 1450 e 1750, de processos de bruxaria,12

cuja maior parte foi condenada à morte, afogada ou pelo suplício da roda.

É hoje impossível determinar, desse total, quantos foram os judeus convertidos,


os não convertidos e os cristãos, os fracos de espírito e os inocentes convictos de
“pactos com o diabo”. Mas um grande número de judeus foi incluído sem que se
pos a presentemente estabelecer se foram

condenados à morte como judeus ou como convertidos.

Do século XV ao XVI , a atitude da hierarquia romana foi controvertida, como


se tivesse uma dupla personalidade: por um lado, alguns papas garantiram sua
proteção aos judeus, e, por outro, a Inquisição, os teólogos

e o clero os perseguiram. Tudo se pas ava como se a Igreja não mais tivesse a
respeito deles nem doutrina, nem política. Paulo I I, que reinou de 1534 a 1549,
chegou a encorajar o assentamento em Roma das comunidades expulsas de
Nápoles por Carlos V; e seu sucessor, Júlio II , renovou es as garantias. Mas,
durante es e mesmo tempo, a Inquisição prosseguia

com suas exações; que sentido tinha então a proteção pontifical? A

Inquisição emanava diretamente do poder pontifical, e qualquer papa

poderia ter moderado aquelas atividades ou mesmo as eliminado, mas

nenhum fez isso.13

Contudo, a situação terminou por se elucidar, mas para o pior: dois

meses depois de sua ascensão, o sucessor de Júlio I I, Paulo IV, antigo

Grande Inquisidor conhecido pelo nome de “flagelo dos judeus”, cercou

o bair o dos judeus com muro não só em Roma, mas em todas as cidades
dos Estados pontificais. Estava imitando, desse modo, o gueto veneziano,

com suas restrições a respeito do toque de recolher e da liberdade de circulação


nas cidades, a fim de impedir a contaminação dos crentes por aqueles infiéis que
eram os judeus.

No meio-tempo, o clero e os teólogos atiçavam o fogo: o diabo, que


A EUROPA DOS GUETOS
243
é judeu, uma vez que é inimigo de Deus, também está dentro dos tonéis

de suas lojas. Essa história havia começado com Santo Agostinho: “Ao

renegar Cristo, eles [os judeus] renegaram Moisés e os profetas. Destru-

indo-o, destruíram-se a si próprios e destruíram a Lei.” Nenhuma men​

ção à negação de Pedro nem ao fato de que foi Paulo quem aboliu a Lei,

e não os judeus. Retomava-se o tema do Apocalipse de Satã, tomado

emprestado do Apocalipse (I , 9). Inventava-se um mito, mais um, o do

Judeu Errante, anunciador de calamidades, o mesmo que esbofeteara

Jesus no Caminho da Cruz. O bispo de Schleswig assegurou tê-lo visto

em uma igreja de Hamburgo em 1542. Como pôde saber que era aquele

judeu, e como explicou que tives e sobrevivido por 15 séculos? Mistério.

Acrescente-se que, a partir de então, começou-se a ver por toda parte o

famoso judeu, visto pela última vez em Londres em 1818. Na realidade,

efetivamente era possível vê-lo em toda parte: continuavam existindo

judeus no mundo, sim, salvo que nenhum havia esbofeteado Jesus.14

Em seu conjunto, por volta de 1500, a Europa era um continente

maldito, fechado, funesto. Só restavam uns poucos refúgios para os

judeus, que eram bastante aleatórios, mesmo que os éditos de expulsão

não chegassem a provocar o desaparecimento total das comunidades


judias. Os judeus se refugiaram, pois, nas ter as do Islã, como vimos.

No século XVI, dois cismas de primeira grandeza modificaram contudo essa


paisagem sinistra, ao menos para os cristãos: o dinamismo explosivo do
Renascimento ou, melhor dizendo, dos Renascimentos, e a

Reforma. A alta Renascença, produto de uma cultura de corte, do mecenato e da


prosperidade das guildas, havia decerto adulado o hedonismo dos príncipes e
cardeais mecenas, mas continuara sendo essencialmente

respeitosa em relação aos valores cristãos. O segundo Renascimento, por

sua vez, caracterizou-se mais pela emergência do sentimento da realidade e pela


busca da razão.

Uma tradição que perdura até hoje, fiel a Jacob Burckhardt e a sua

célebre Civilisation de la Renaissance (Civilização do Renascimento), pretende


que a Europa tenha então revelado ao mundo a cultura greco-latina e, sobretudo,
redescoberto o humanismo greco-romano. Não está erra​
244

HISTÓRIA GERAL DO ANT1-SEM1TISMO

do, mas ainda assim aproxima-se de uma interpretação ideológica da história,


segundo a ótica do século XIX.

O mais evidente é que diversos fatores convergiram em direção a


uma emancipação — por sinal restrita aos meios cultos — da aristocracia

italiana para começar, ou pelo menos de uma parte dela. Os focos da

Renascença ficaram circunscritos a algumas cidades italianas ricas, antes

de alcançar o resto da Europa.

De início, os príncipes italianos começaram a se cansar da ar ogância

política e das ingerências do clero de obediência romana em suas questões; e


então eles demonstraram com mais audácia sua vontade de independência. Em
seguida, a instrução dispensada por universidades como as de Bolonha, Pádua e
Salemo estendeu a noção de cultura para além

dos limites rígidos da escolástica, até o domínio profano. O olhar dos clérigos,
mas também dos artistas, voltou-se na direção dos mestres gregos e latinos. “Eu
vou despertar os mortos!” bradava Ciríaco de Ancona, infatigável explorador do
mundo antigo. O cristianismo começou a sofrer o olhar crítico de elites cada vez
mais cultas e, portanto, aptas ao racionalismo e ao ceticismo, mas também à
experimentação científica. Em suma,

as elites redescobriam o mundo real. O movimento de emancipação

alcançou rapidamente a França, depois a Alemanha, a Espanha e finalmente a


Inglater a. A partir do final do século XV, a invenção da imprensa, em especial,
passou a permitir a difusão de textos profanos não mais sujeitos à vontade dos
monges copistas, e que suscitaram a livre discussão das idéias. Imediatamente
redescobriu-se a Bíblia e passou-se a comentá-la livremente.

Finalmente, os meios eclesiásticos refinaram-se, e os cardeais lançaram-se em


um mecenato privado, “modernista”, subvencionando pintores, poetas, filósofos,
em suma, adotando o humanismo. Uma época em que foi possível atribuir ao
papa Leão X esta afirmação impetuosa:

“Quantos benefícios essa fábula de Cristo nos terá trazido!” A paixão

pelo mundo antigo, eleito como domínio privilegiado do Belo, do Bom

e da Razão, resultou em uma reconstituição idealizada até a ficção. Essa


nova visão do mundo estava fadada a renovar o modelo cristão; de fato,

ela o fez empalidecer.


A EUROPA DOS GUETOS

245

O interesse do Renascimento para nosso objetivo reside no fato de

ter funcionado como um poder contrário ao obscurantismo ar ogante do


baixo clero, espécie de polícia clerical onipresente e ignara. Mas os

judeus não obtiveram disso nenhum benefício: à Atenas e à Roma antigas,


reinventadas pelos pensionistas dos mecenas, nada poderia parecer mais estranho
do que o judaísmo. Os maus-tratos que os judeus sofreram em todos os países
em que a Renasacença floresceu o demonstram claramente; com seus cafetãs,
suas barbas não cortadas, seus peot (papelo-tes) e seus filactérios, decididamente
não pertenciam à Nova Atenas,

nem à Nova Roma. Foram confinados cada vez mais em seus guetos. Em

suma, o culto dos ideais antigos racionalizou o ostracismo de que eram

vítimas, e o Renascimento enraizou ainda mais o anti-semitismo. Além

do mais, a condescendência da Igreja em relação ao humanismo e à contestação


tinha seus limites: em 1600, a Inquisição queimou em praça pública o erudito
Giordano Bruno pela inacreditável razão de ele não

gostar de Aristóteles nem acreditar suficientemente na imortalidade da

alma e repudiar qualquer metafísica. Os devaneios intelectuais e artísticos de uns


poucos cardeais não eram suficientes para libertar os judeus do ostracismo
cristão. Eles eram hereges como todos os outros, piores do

que os outros.

A Reforma, por sua vez, teve consequências políticas quase imediatas: pôs um
ponto final na hegemonia do Vaticano sobre a Europa e arrancou-lhe em algumas
dezenas de anos toda a Europa do norte. Dali

em diante, as decisões dos concílios sobre os judeus não seriam mais aplicadas
automaticamente em toda parte no Ocidente. A perseguição tornava-se, de uma
certa maneira, descentralizada.

A Reforma teria podido modificar rapidamente para melhor a situa​

ção dos judeus, mas não o fez diretamente. A partir do século XV, o
autoritarismo, a arbitrariedade e a ar ogância do papado, assim como o luxo
ostentatório e a cor upção do alto clero, começaram a suscitar reprovação
cada vez maior do campesinato e do povo das cidades. As execuções nas

fogueiras de contestadores como Jean Hus e Girolamo Savonarola (este

último paradoxalmente reabilitado em 1998, ao mesmo tempo que

Giordano Bruno) não tinham sido senão prelúdios. No século seguinte a


246

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

revolta propagou-se como fogo no mato, que foi aceso na Alemanha por

Lutero, na Suíça por Zwingli, na França por Calvino, na Escócia por


Knox. Católicos e protestantes tentaram conquistar os judeus para suas

causas respectivas. Prudentes, os judeus declinaram es as ofertas: tomar

partido de uns ou de outros seria angariar mais inimigos, e isso eles já

tinham de sobra.

A reviravolta protestante foi desconcertante de tanta má-fé. Lutero

havia começado por denunciar as perseguições cristãs dos judeus em seu

panfleto de 1523, DassJesus Christus eingeborenerJude sei, “Sobre o fato de

Jesus Cristo ter sido um judeu”:

“(Os católicos) trataram os judeus como se eles fossem cachor os e

não seres humanos. Com relação a eles, não fizeram outra coisa senão

maldizê-los e confiscar-lhes os bens. Eu aconselharia e suplicaria a todos

e a cada um tratar os judeus com boa vontade e ensinar-lhes as escrituras;

em um tal contexto, podemos esperar que venham a nós (. .) Devemos

recebê-los com benevolência e permitir-lhes ganhar a vida como nós (. .)

E, se alguns recusarem, que diferença faz? Nem todo o mundo é bom

cristão.”

Adulando-os desse modo ele esperava que os judeus aderissem em

massa a seu cristianismo, lhe aderissem. Eles retorquiram que o Talmude

oferecia interpretação da Bíblia melhor do que a dele e o convidaram a se

converter. Ora, Lutero tinha um temperamento sanguíneo e teria,

segundo a lenda, atirado seu tinteiro na cara do diabo: ele vituperou a


obstinação dos judeus em 1526, expulsou-os de Saxe em 1537, tentou

igualmente expulsá-los de Brandeburgo em 1543 (mas chocou-se com a

oposição do Grande Eleitor) e, no mesmo ano, visivelmente louco de

despeito, escreveu o que pode ser considerado hoje em dia uma espécie

de introdução a Mein Kampf, um dos textos anti-semitas mais virulentos

do género que, como se sabe, não é desprovido de profundidade, intitulado Von


den Juden und ihren Liigen, “Sobre os judeus e suas mentiras”:

“Para começar, suas sinagogas deveriam ser incendiadas, e o que

sobrasse delas deveria ser enter ado na poeira, de tal modo que ninguém

pudesse ver uma pedra nem um fragmento (. .) Suas casas deveriam ser

ar asadas e destruídas (. .) e esses vermes envenenados deveriam ser


A EUROPA DOS GUETOS

247

condenados a trabalhos forçados e a ganhar seu pão com o suor de seus

rostos...”
Intenções que não caíram sobre ouvidos surdos. Seus discípulos

saquearam a sinagoga de Berlim em 1572 e conseguiram expulsar os

judeus do país; e, como Calvino, por outro lado, se mostrasse bem mais

moderado em relação aos judeus, acusaram-no de filossemitismo.

Como se vê, mesmo protestante, o clero continuava a propagar o

anti-semitismo. Nesse campo, Lutero não era diferente dos monges

católicos interioranos e primários que acreditavam estar defendendo

uma religião de caridade por meio do ódio.

O ponto mais importante da questão, porém, era que Roma não dispunha mais
do consenso popular (nem do privilégio da perseguição dos judeus) nem do
consenso dos príncipes. O protestantismo expandiu-se

ao longo de todo o norte da Europa, Alemanha, Países Baixos, Inglater a,

Escócia e, em breve, a França. O imenso corpo da cristandade deslocara-

se. A reação não poderia ter sido mais feroz, como demonstrou o massacre da
noite de São Bartolomeu: iniciado em Paris na noite de 23 para 24

de agosto de 1572, instigado pela politiqueira Catarina de Médicis, possuída por


ódio histérico ao almirante Coligny, espalhou-se pela província e não parou
senão no dia 3 de outubro do mesmo ano: resultou em 50

mil mortos. Em sua parvoíce sanguinária, o papa Gregório XIII mandou

soltar fogos comemorativos sobre as colinas de Roma. Cinquenta mil

cristãos mortos, e o vigário de Cristo exultava. Obviamente não se dava

conta de que os massacres eram apenas os primeiros abalos do cisma que

iria devastar a Europa Ocidental e, acessoriamente, a própria Igreja.


Acometidos de febre fanática, na qual política e religião competiam

entre si com fúria inigualável, as potências católicas — a da Liga Católica

— e protestantes — a da União — enfrentaram-se em uma guerra que

durou de 1618 a 1648, a muito famosa Guerra dos 30 Anos. A seu término, a
Alemanha viu-se exangue por cerca de um século, e a Europa, ceifada de sua
juventude, de Castela à Suécia e da Alsácia à Lombardia. A história é cheia de
perigos: o estudo da época pode, quatro séculos mais

tarde, tornar-se definitivamente anti-religioso. Nesse pavoroso conflito,


248

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

católicos e protestantes foram os judeus uns dos outros. A neutralidade

dos judeus, contudo, não lhes poupou da vindita nem de uns, nem de
outros. Para os protestantes, eles haviam recusado a mão que Lutero lhes

estendera; para os católicos, haviam demonstrado deslealdade ao não

tomar seu partido.

O paralelo entre a Guer a dos 30 Anos, certamente a mais mortífera

da história do Ocidente desde o Renascimento, e as convulsões militares

e políticas que provocaram a queda do Império Romano é ir esistível:

nos dois casos, o jugo de um poder com pretensões hegemónicas e


centralizadoras foi abalado pelo caráter heterogéneo dos territórios que ele
englobava. Nos dois casos, a hegemonia foi quebrada e novos equilíbrios

formaram-se ir eversivelmente. Ao final da Guerra dos 30 Anos, a cristandade


estava não só cingida em duas, mas também dividida pela hostilidade entre
católicos e protestantes. Roma havia perdido a Europa do norte. Seu
enfraquecimento político provocou inevitavelmente o de seu

poder espiritual. Mas os judeus — e a idéia da dignidade do indivíduo, é

preciso sublinhar — ainda deveriam esperar um século e meio antes de

colher os benefícios.

A mim parece que não se refletiu suficientemente sobre o poder destruidor das
convicções religiosas e sobre a maldição representada pela imagem de um Deus
dos exércitos, decerto a mais blasfematória de

todas.Nem todas as gueras são, é claro, motivadas pela religião, mas aquela
seguramente começou com a questão da secularização das terras da Igreja e a
nomeação de bispos protestantes. Se alguém falava religião,

falava política. Os judeus felicitaram-se por não ter tomado partido e

sobretudo por se terem ausentado. Encontravam-se, com efeito, nos

confins daquele mundo: de um lado, na Polônia-Lituânia e, de outro, no


Império Otomano. Não é que sua situação nesses lugares fosse invejável:

as revoltas desencadeadas contra os poloneses pelo cossaco Bogdan

Chmielnicki em 1648-1649 provocaram uns dos massacres de judeus

mais abomináveis de uma história já pesada de sofrimentos. A testemunha do


acontecimento foi o rabino Nathan Hata Hannover.
A EUROPA DOS GUETOS

249

“De uns ar ancavam a pele, e suas carnes eram atiradas aos cães, de

outros cortavam os pés e as mãos e os atiravam no meio da rua: os car os


passavam por cima, os cavalos pisoteavam (. .) Muitos eram enter ados

vivos; crianças eram degoladas no colo das mães; outras eram despedaçadas
como peixes; cortavam os ventres das mulheres grávidas, retiravam os fetos e
batiam em seus rostos; abriam os ventres das outras mulheres

para colocar lá dentro gatos vivos; ainda estavam vivas e os gatos cavavam

dentro de seus ventres, e eles cortavam as mãos das vítimas para que não

pudessem fazer os gatos saírem dos ventres. Havia crianças penduradas

nos seios das mães, e eles as espetavam em outras para assá-las no fogo e

depois trazê-las às mães para que as comessem (. .) Milhares de judeus

foram mortos do outro lado do Dnieper, centenas foram obrigados a

mudar de religião.”15

Mas esse não foi um massacre exclusivamente anti-semita: os poloneses e


sobretudo os padres sofreram os mesmos tratamentos.16 O horror não resultou
em nenhuma lição para os ucranianos: novos motins, como o dos haidamaks,
mobilizando os cossacos e invocando

Chmielnicki (à época, morto há cerca de um século), ocorreram entre

1740 e 1750. As principais consequências foram o quase desaparecimento da


comunidade judia da Ucrânia e um novo êxodo, dessa vez em dire​

ção ao oeste e ao sudeste.

Apesar de tudo, os judeus continuaram a residir nas cidades da

Polónia e da Lituânia, obviamente bem ao norte da Ucrânia, contanto

que a nobreza passasse a lhes conceder proteção, consciente da importância de


comunidades ativas e ricas. Foi assim até a partilha da Polónia, no século XVI I,
entre a Prússia, a Rússia e a Áustria, ao final da qual o status

dos judeus se deteriorou mais uma vez, ao menos nos novos territórios
russos e austríacos.

Os países católicos não modificaram sensivelmente sua atitude a respeito do


judaísmo imediatamente após a Guer a dos 30 Anos. A França, de todo modo,
nem teve tempo de descansar: 11 anos de Fronde iriam

seguir-se reforçando aparentemente o absolutismo do rei católico de

direito divino, mas, na verdade, minando-o e preparando a Revolução

Francesa, primeiro acontecimento liberador do judaísmo civil.17 Para os


250

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

católicos da França, a questão estava resolvida: os judeus não faziam parte

e jamais fariam parte do povo francês. Contudo, era evidente que, a não
ser que fosse considerada uma “solução final”, os judeus estavam lá e era

preciso conviver com eles. Mantinham-nos em seus guetos e sua sujeição.

Nos países protestantes, tudo se pas ava diferentemente. A atividade

comercial dos países alemães, sobretudo, era essencialmente fundada em

corporações, e os judeus eram considerados uma dessas corporações.

Ora, a corrente centralizadora e absolutista, que prevaleceu após o esfacelamento


do Sacro Império Romano-Germânico e a Guerra dos 30

Anos, tendeu a impor às corporações procedimentos legais e administrativos


uniformes.18

Essa corrente teve um duplo efeito: por um lado, dava aos judeus um

status legal e, por outro, criava novas tensões entre eles e os Estados. O

protestantismo decerto não havia modificado o estado de espírito do clero e das


populações, fossem elas reformadas ou luteranas. E, já que era preciso a partir de
então aceitar os judeus (que praticavam cada vez

menos a usura), parecia necessário limitar seu número e seu poder.19

Sustentados pelos príncipes, as guildas insurgiram-se também contra a

concorrência que os judeus exerciam contra elas e pediram sua expulsão;

e, quando es a era recusada pelos poderes, as perseguições recomeçavam.

Assim, a despeito da proteção dos príncipes, em 1614, os bens dos judeus

foram pilhados em Frankfurt, à margem do rio Main, no Hesse-Kassel,

por instigação de guildas fortemente endividadas com eles.

Por outro lado, a mesma cor ente tendia à instauração de um verdadeiro status
civil para os judeus; portanto, uma certa legalidade. Eles próprios, aliás, haviam
tomado a iniciativa: desde 1603 vinham tentando unificar as comunidades judias
do império e criar uma autoridade que

servisse de mediadora entre o imperador, os judeus e as comunidades

protestantes, a exemplo do que fora feito sob Carlos V,20 tentativa que foi,

por sinal, torpedeada. O Império queria de fato manter os judeus sob sua

proteção, mas não lhes deixar a liberdade total de comércio.21

A idéia recentemente divulgada pelo historiador Daniel Goldhagen,

de um anti-semitismo germânico de tradição, não resiste bem ao exame.

Na primeira metade do século XVI I, com efeito, existiam diversos


A EUROPA DOS GUETOS

251

Estados alemães, com culturas diferentes e sobretudo divididos entre

duas religiões. Apesar das fronteiras variarem com muita frequência na


época, a situação podia ser assim resumida: ao sul, o reino da Baviera e da

Áustria, de predominância católica; ao norte, os reinos de Saxe, de

Hanover e da Prússia, de predominância protestante. Ocorre que suas

respectivas atitudes a respeito dos judeus eram muito diferentes. Os

Hohenzollern — prussianos e protestantes — decerto manifestavam-

lhes uma tolerância restritiva, porém real, com liberdade de movimentos

(salvo para os judeus do ducado de Posen, tirado da Polónia e anexado

em 1793) e direito de residência transmissível a um filho. Os Habsburgo

da Áustria, católicos, expulsaram-nos por duas vezes (de Viena em 1670

e de Praga em 1744) e impuseram-lhes “restrições muito severas em

matéria de atividades, residência e liberdade de movimentos. Maria

Teresa tentou por diversas vezes reduzir a população judia da Galícia austríaca
expulsando os vagabundos”, escrevem Sylvie Anne Goldgerg e Alex
Derczansky.2

Foi na Europa germânica que a oposição entre os príncipes e as autoridades


católicas acerca dos judeus mostrou-se mais evidente. De Frederico I I a
Frederico I da Prússia, a atitude dos soberanos germânicos foi, com efeito,
ambivalente, parecendo voltar-se ora para a tolerância, ora para a ameaça. Por
um lado, não desejavam desencadear um conflito aberto entre o clero e as
populações incitadas por ele, mas, por outro, desejavam manter as comunidades
judias, uma vez que contribuíam para

a prosperidade de seus Estados. Assim, Maximiliano I, que reinou entre

1493 e 1519, tratou de expulsar os judeus de Nuremberg, da Estíria e da

Caríntia, mas permitiu-lhes instalar-se em Burgen. Pareceu disposto a

ceder às pressões dos dominicanos, que exigiam o confisco do Talmude,


mas em seguida revogou a proibição e submeteu o livro ao estudo de eruditos.
Após a pilhagem do bairrojudeu de Frankfurt, em 1614, o imperador Matias, que
reinou de 1612 a 1619, mandou prender o provocador, um mestre de corporação
chamado Vicenz Fet milch, além de seus cúmplices, e mandou decapitá-lo.
Reação assim tão enérgica nunca tinha sido vista antes, em nenhum lugar; não
tem, pois, sentido, alegar que existe

uma “tradição anti-semita” alemã. É claro que havia anti-semitismo, mas


252

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

ele não conhecia fronteiras nem bandeiras; constituía um dos aspectos da

intolerância religiosa, que é internacional e sempre esteve presente.


Com efeito, o anti-semitismo europeu e cristão da época não pode

ser compreendido se não for recolocado em seu contexto. Os católicos

não toleravam os protestantes mais do que os judeus, tendo sido por

razões religiosas tanto quanto políticas que Felipe I da Espanha lançou

em 1588 a desastrosa armada contra a Inglaterra: o papa Sixto V

prometera-lhe um milhão de escudos, soma considerável, para montar a

empresa. Era preciso fazer a Inglater a e os Países Baixos voltarem ao seio

do catolicismo, com a bênção do papa. Mas a der ota fragorosa que

encerrou a conquista católica da Inglater a foi explicada em termos teológicos:


“Com frequência Deus retarda a vitória dos que lhe são fiéis.”23

Se a armada tivesse alcançado seu objetivo, os católicos espanhóis teriam

massacrado os protestantes ingleses com pelo menos a mesma fúria com

que os franceses massacraram os protestantes franceses durante a noite

de São Bartolomeu. Pois a intolerância religiosa não tem limites: foi

necessário esperar o final do século XX para ver a paz instaurar-se na

Irlanda entre católicos e protestantes; e, na índia, em 1998, perseguiam-

se os cristãos com vigor desconhecido no passado.24

É igualmente necessário lembrar a extraordinária influência dos teólogos


católicos na Europa dos séculos XVI e XVI : eles não toleravam nenhuma fé que
não fos e estritamente católica, apostólica e romana. Os

judeus encontravam-se dentro do mesmo saco que os ortodoxos eslavos

ou os protestantes: eram todos igualmente partidários de Satã e “inimigos de


Deus”. Pela primeira vez na Europa a reação do imperador Matias deu um basta,
ao menos durante algum tempo, na virulência anti-semita.

Os periódicos locais abstiveram-se de representar os judeus de forma

caricatural. A comunidade judia de Frankfurt pôde a partir de então prosperar.25

Mas é preciso temperar bastante a imagem dessa prosperidade: ela

era manchada de indignidades que hoje em dia nos pareceriam intoleráveis. Na


metade do século XVI I, nes a mesma Frankfurt, os judeus estavam submetidos
ao toque de recolher todas as noites e aos domingos, e
A EUROPA DOS GUETOS

253

não tinham o direto de sair de seu gueto. Não tinham o direito de entrar

nos jardins municipais, de se casar nem de fundar um comércio sem


autorização oficial, e deles se exigia que levantassem o chapéu e cedessem

passagem a qualquer cristão que lhos ordenasse.26

Na mesma época, a atitude dos ingleses oscilava entre o odioso e o

ridículo. Crente convicto, Oliver Cromwel , “o car asco de Carlos I”, o

inimigo dos católicos e dos anglicanos,27 foi também o primeiro a revogar

em 1656 a proibição de permanência estabelecida contra os judeus por

Eduardo I, em 1290. Após cerca de três séculos e meio de ausência, os

judeus então voltaram. Não em grande número, contudo: 150! Com a

restauração da monarquia, Carlos I , apesar de católico, prometeu-lhes

oficialmente sua proteção em 1664 e, em 1673, concedeu-lhes liberdade

de culto. O preconceito antijudeu permaneceu mesmo assim ativo: “Em

1684, durante uma questão relacionada à Companhia das índias, foi

decretado que os judeus eram infiéis estrangeiros, inimigos permanentes

da Coroa, que só os toleraria em seu ter itório.”28 É que a obsessão judia

estava no auge: não se contavam, no final do século XVI mais do que 600

judeus na totalidade do território britânico: banqueiros como Samson

Gideon ou Joseph Salvador, alguns médicos, comojacob de Castro

Sarmento. Para “inimigos da Coroa”, poderiam ter arranjado melhor!

Claro, também havia pobres, mas não era a derrubada do trono da

Inglater a o que os preocupava.

O fenómeno foi, contudo, europeu e não apenas inglês: assim, quando a


República de Veneza instituiu seu gueto,29 em 1516, a cidade não contava senão
com algumas centenas de judeus; em 1586, um recenseamento revelou o número
de 1.684judeus para uma população de mais de 50 mil almas; e, meio século
mais tarde, em 1633, ainda eram apenas

2.419.30 Havia na cidade mouros, eslavos, pessoas do norte, mas ninguém


jamais os confinou em qualquer gueto. É que os judeus não eram apenas judeus,
mas símbolos vivos do perigo espiritual no qual incor iam

os cidadãos cristãos da Sereníssima República de Veneza, obcecados por

espionagem, complôs e traições e cuja vida social era regida por um sentido
quase paranóico do secreto.

O temor ao judeu enriqueceu-se ao longo dos séculos com um novo


254

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

motivo: ele é, assegurava-se, um temível cobiçoso. Contem seus dedos

quando um deles lhes apertar a mão! O mais das vezes mantido em uma
situação precária, apenas autorizado a se instalar, eternamente à mercê de

uma reviravolta do humor das autoridades a seu respeito, foi obrigado a

cultivar a única arma a sua disposição: o dinheiro. Mesmo depois que os

cristãos se transformaram em seus sucessores no domínio da usura e passaram a


rivalizar livremente com os banqueiros judeus, ele desenvolveu um talento
comercial e financeiro excepcional; está mais pronto do que

os outros a captar e explorar as necessidades de uma sociedade, seja de

pedras preciosas ou de especiarias, de peles ou de cavalos de raça.

Adquire rapidamente a preeminência desses comércios e aufere lucros

que fazem inveja às pessoas de espírito menos rápido. Toma-se, pois,

suspeito de maquinações tenebrosas, até diabólicas: ele não conhece o

segredo infernal da transmutação do ouro?

Ele pertence igualmente a uma comunidade imbuída de um sentimento agudo de


solidariedade: as perseguições desenvolveram a ajuda mútua mais do que em
qualquer outra comunidade; a diáspora e a dificuldade dos casamentos
interconfessionais estendeu geograficamente essa solidariedade: o judeu de
Londres com toda certeza tem um irmão,

um cunhado ou um primo em Amsterdã, e o de Paris, em Berlim ou na

Cracóvia. Assim, os judeus teceram, em razão de sua história, uma vasta

rede informal de correspondentes, que concedem a suas operações

financeiras uma eficácia de que os não judeus não dispõem. O preconceito tenaz
contra seu savoir-faire perdurou até o século XX.

Era, pois, imperativo para as autoridades da época conter os judeus:

eles não eram numerosos, mas, se fossem deixados com a rédea solta,
dominariam tudo. Velha obses ão, que parece refletir um sentimento de

inferioridade.

Do ponto de vista demográfico, a obsessão judia dos ingleses não

tinha mais justificativa no final do século XVI I do que no século XVI : a

Inglater a e o País de Gales contavam à época pouco mais de oito milhões

de habitantes,31 sendo 22 mil judeus, dos quais 20 mil asquenazes e dois

mil sefardis, ou seja, 0,25% da população. Mas em 1753, quando a Câmara

dos Comuns foi chamada a votar a “Bula Judia”, que concederia facilida​
A EUROPA DOS GUETOS

255

des de naturalização aos judeus instalados no país há mais de três anos e

cujos filhos tivessem nascido na Inglater a, foi um pandemónio: os whigs


eram a favor, os tones eram contra, a Câmara dos Lordes era a favor, mas o

interior do país foi tomado por uma crise de xenofobia. Ingleses que

jamais haviam visto um judeu e que teriam dificuldade em reconhecer

um se o vissem, alarmaram-se ante a idéia de uma “invasão”. E a lei foi

rejeitada no ano seguinte. Pior: o rei George I I promulgou um édito estipulando


que todos os oficiais do exército, funcionários públicos, juristas e membros do
parlamento deveriam prestar um juramento nestes termos:

“Sobre minha fé cristã.” O cúmulo: a Sociedade Judaica para a Promoção

do Cristianismo entre os Judeus foi constituída em Londres em 1807.

Muitos judeus converteram-se de fato. Outros prosperaram e desempenharam


um papel cada vez mais importante nas finanças do país. A questão da
nacionalidade foi resolvida em 1826, mas, mesmo assim, os judeus

— como de resto todos os súditos ingleses que não fossem anglicanos —

não tiveram acesso aos direitos plenos.

A Rússia, por sua vez, viu-se bastante desconfortável com a conquista

envenenada que realizou na ocasião das duas últimas partilhas da Polónia,

em 1793 e em 1795: com efeito, o que restou da grande Lituânia, a Polesye,

a Volhíma e a Podólia, transformadas em províncias russas, continha a

maior comunidade judia da Europa. Contrariamente ao imaginário corrente, não


se tratava de usurários de narizes aduncos com suas túnicas gordurosas em cujos
lados batiam tranças cheias de peot e filactérios, mas de administradores de
propriedades, fazendeiros, moleiros, estalajadeiros,

artesãos ou mascates. Sabiamente, os russos mantiveram o statu quo, e em

especial a autonomia dos judeus. Foram os próprios judeus que deram


prova de deplorável falta de compostura, com as facções de hassidim e de

mitnaggedim em permanente disputa sob os olhos dos russos.32

À época de sua grande reforma administrativa inspirada nos alemães,

que dividiu a Rússia em províncias, por sua vez divididas em categorias,

Catarina II integrou os judeus nas guildas. Mas as sedes das guildas ficavam nas
cidades e, em 1782, mercadores, ou seja, judeus ricos, e burgueses, ou seja,
judeus menos ricos, foram obrigados a residir nas cidades.

Isso resultou na expulsão dos judeus dos vilarejos e dos campos. Na rea​
256

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM1T1SMO

lidade, a administração imperial tinha em mente conter os judeus. O fantasma do


“perigo judeu” também existia por lá. O fato nunca ficou tão evidente quanto na
proibição do czar Alexandre I: os judeus não estavam
mais autorizados a habitar os vilarejos, nem mesmo como locatários.

O âmbito destas páginas presta-se mal à análise da fantasia russa do

“campo”: o mujique era o esterco de onde brotava a fina flor da nação.

Antes de tudo era preciso não deixá-lo contaminar-se pelo judeu. Também nesse
caso o judeu foi cercado de muralhas e fechado dentro dos guetos, na cidade.

A urbanização progressiva da Europa fez crescer o número e a densidade desses


guetos: Judengasse, Great Jewry Street, rua Payenne, rua da Juiverie e outras.

Paisagem sinistra. Vastas estepes tenebrosas var idas pelas tempestades do ódio
e, em tempos calmos, habitadas pelas brumas mefíticas de um anti-semitismo
larvar, de um mal-estar indefinível. Seria um câncer?

Ou uma gripe? Era o que havia de pior: um estado de espírito.

Massacravam-se menos judeus há já algumas décadas. Mas eles não perdiam


nada por esperar.

Contudo, não foram eles os únicos a sofrer a violência do Ocidente

cristão armado da cruz e do gládio: as Américas começaram a experimentá-la.


Os conquistadores tinham começado lá sua grande obra de massacres e
expropriações. Para os astecas, maias, incas, assim como para os judeus,

o apocalipse estava em marcha e duraria séculos. Iam esfolar vivos, estripar,


decapitar, pilhar, queimar, violar aqueles bípedes que de humano só tinham a
aparência e que acreditavam em outros deuses, portanto, em

diabos. Uma vez mais, xenofobia e racismo seriam atiçados pelo fanatismo. O
mundo seria cristão e europeu ou não seria nada. O Ocidente acreditava estar
difundindo a luz, mas era o sangue que estava espalhando. Ele apregoava um
Deus da pobreza, mas era o ouro que cobiçava.

Dois oásis de luz em meio a essas trevas inferiores: a França da

Revolução e a América. Elas merecem sozinhas os capítulos seguintes.


A EUROPA DOS GUETOS

257

Bibliografia e notas críticas

1. Foi no final do século XIV que o uso da letra de câmbio impôs-se de


maneira definitiva. Os primeiros cristãos que tomaram a iniciativa foram os
banqueiros de Piacenza.

Rapidamente sofreram a concorrência dos de Siena, Luca e Florença, o que


lhes valeu o

apelido de “Iombardos”.

2. Philippe Bourdrel, Histoire âes juifs âe France (Albin Michel, 1974).

3. Fadiay Lovsky, Antisémitisme chrétien et mystère d’Israèl (Albin Michel,


1955).

4. Depois das revoltas das “clavas” contra os impostos em 1382, durante as


quais os

judeus de Paris foram violentamente atacados, e seus filhos arrancados dos


pais e levados

às pias batismais, Carlos VI, então sob a regência do duque d’ Anjou, emitiu
um decreto

que lhes foi, contudo, favorável. A necessidade de dinheiro fizera-o mudar


de opinião.

5. Jeffrey Richards, Sex, Dissidence and Damnation, op. cit.

6. Joshua Trachtenberg, TheDevil and theJews (Yale University Press, New


Haven e

Londres, 1943).

7. Walter Map, De Nugis Curialium, 1181-1192, citado por J. Richards em


Sex,

Dissidence and Damnation, op. cit.

8. Cario Ginzburg, Lc Sabbãi dcs Soícícícs (Gal iínicUu, 1989).

9. Acrescente-se que o Talmude, a despeito de sua elevação moral e riqueza


filosófica, não está isento de tais fábulas: nele se lê, por exemplo, que
Chamath, o demónio do óleo, provoca acne e eczema.
10. Em janeiro de 1999, a Igreja de Roma divulgou uma versão revista do
manual

dos exorcistas, aprovada pelo papa João Paulo I em 1? de outubro de 1998.


A identifica​

ção de Satã foi, dessa vez, submetida a critérios psiquiátricos...

11. Henry Institoris e Jacques Sprenger, Le Marteau des Sorcières (Plon,


1973). Para

mais detalhes a respeito da loucura criminosa da caça às bruxas, v.


Histoiregénérale du dia-

ble, do autor (Robert Laf ont, 1993).

12. Brian P. Levack, La Grande Chasse aux sorcières (Champ Vallon, 1991).
Um

inventário sumário de H. C. Erik Midelfort recenseou, em 1968, 509 obras


dedicadas aos

processos de bruxaria. Levack cita um grande número delas. Não consultei


todas: ao final

de umas 20, a náusea nasceu da repetição, nessa vasta e monstruosa história


da loucura e
da infamia.
258

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

13. Fundada em 1232 por Gregório IX, essa jurisdição especificamente


eclesiástica

foi confiada às ordens mendicantes e, para começar, aos dominicanos e aos


franciscanos.

Os primeiros inquisidores organizados em colégio foram, em 1231, os


dominicanos de

Friesach e o temível Conrad de Marbourg; o primeiro inquisidor titular foi


o dominicano Alberico, que se dirigiu em missão de investigação à
Lombardia, com o título de

Inquisitor hereticae pravitatis. Menos de um século mais tarde, a Inquisição


alcançaria violência inaudita, pois a pena se estendia aos filhos e aos netos
dos supliciados, como atesta o Liber sententiarum inquisitionis de Bernard
Guidonis, em vigor entre 1307 e 1323. A acusação de heresia estendia-se,
pois, aos descendentes dos condenados e os expunha ao confisco de seus
bens. É notório que os bens confiscados enriqueciam os capítulos locais da
Inquisição: esta funcionava ao mesmo tempo como Gestapo e máfia. E não
iria demorar

a servir de instrumento para acertos de contas entre o papado e as famílias


dos príncipes:

foi desse modo que o papa Bonifácio VIII, que pertencia à família dos
Caetani, eternamente em atrito com os Colonna, declarou estes últimos
hereges porque contestavam seu poder secular; e que Clemente V, que em
1309 se apropriara indevidamente da cidade de Ferrara em detrimento da
família d’Este, decretou hereges todos os venezianos por terem passado a
dirigir-lhe imprecações. Mas, evidentemente, não se podia enviar à

fogueira uma família inteira e menos ainda uma cidade inteira, e com muita
frequência a

Inquisição só serviu para estimular uma mascarada sinistra, destinada a


esconder a cupidez dos pontífices e dos inquisidores mais do que a combater
a heresia (cf. Paul-Daniel Alphandéry, Inquisition, Enciclopédia Britânica).

Quando Napoleão suprimiu a Inquisição, em 1813, o Vaticano protestou


energicamente, mas em vão. Ela vigorou contudo até 1908, depois teve o
nome mudado para Santo Ofício. Em outubro de 1998, a Igreja declarou
arrepender-se não da instituição da
Inquisição, mas de suas fogueiras.

14. Uma fusão entre o Judeu Errante e o Judeu Suss iria ocorrer no século
XVIII. O

mito deste último derivou de um personagem histórico, Joseph Susskind,


apelidado de

Jud Suss, banqueiro e conselheiro económico do duque Karl Alexander de


Wurtemberg a

partir de 1732. O duque havia provocado a hostilidade dos protestantes, em


decorrência

de sua conversão ao catolicismo e devido a seu projeto de conferir ao


catolicismo igualdade em relação ao protestantismo em seus territórios;
correu o rumor de que o duque iria então forçar todos os seus súditos à
conversão ao catolicismo. Após sua morte, o

judeu de corte Susskind foi preso, considerado o responsável pelos


desregramentos do

duque, e enforcado no dia 4 de fevereiro de 1738, em meio a grande júbilo


local (Ruth

Gay, The Jeius of Germany — A Historical Portrait, Yale University Press,


New Haven a Londres, 1992).

15. Em Le Fond de 1’abíme, citado por Sylvie Anne Goldberg e Alex


Derczansky,

Monde aschkénaze, em Dictionnaire encyclopédique du judaisme, op. cit.

16. Apesar de hetman (titular do grau militar mais elevado) dos cossacos,
Bogdan

Chmielnicki era de origem polonesa, portanto cristã. Foi a expulsão


polonesa que o for​

çou a se refugiar junto dos cossacos, ao lado dos quais combatera contra os
otomanos em

1646. Tornou-se príncipe da Ucrânia, mas, tendo estendido suas ambições à


Moldávia,

que contava deixar para seu filho, entrou em choque com os exércitos
poloneses e litua-
A EUROPA DOS GUETOS

259

nos, e foi vencido em Beresteczko em 1651. Cf. Bogâan Chmielnicki,


Enciclopédia

Britânica.
17. A Fronde de maio de 1648 opôs, pela primeira vez na história da França
e da

Europa, o parlamento de Paris, na qualidade de “parlamento do povo”, ao


poder político

e católico da realeza, representado pelo cardeal Mazarin: o Parlamento


opôs-se ao imposto que Mazarin pretendia recolher dos oficias de justiça
desse parlamento, mas exigiu ademais que fossem anulados éditos
financeiros anteriores e pediu reformas constitucionais. O fato de essa
rebelião ter obtido o apoio da Fronde dos príncipes não deve ocultar o de
que o elemento desencadeador foi precisamente o Parlamento, sustentado
pelo povo

de Paris. Por uma coincidência premonitória, a guerra civil que se seguiu


conheceu a

virada decisiva na Bastilha, na ocasião em que a Grande Mademoisel e


(duquesa de

Montpensier) apontou os canhões da fortaleza contra os inimigos do


príncipe de Condé,
defensores de Mazarin.
18. Cf S. A.. Goldberg e A. Derczansky, Monde ashkénaze, em Dictionnaire
encyclo-

pêdique du judaísme, op. cit.

19. Tratava-se, de fato, de expulsar os judeus pobres.

20. Josel von Rosheim (por volta de 1478-1554) era o diretor e porta-voz das
comunidades judias do Império Germânico, reconhecido como tal pelo
imperador, de quem obteve a proteção de numerosas comunidades contra as
perseguições. Combateu com

vigor a influência de Lutero, os arroubos anti-semitas do príncipe eleitor


Johann-

Friedrich de Saxe e do reformador Martin Butzer, outro anti-semita


notório, que amea​

çava os judeus de Hesse. Cf. Nachum T. Gidal, Les Juifs eti Allemagne de
Vépoque romaine à

la Republique de Weimar (Kõnemann, Colónia, 1998, em versão francesa).

21. Era-lhes proibido vender tabaco para fumar (mas não para aspirar),
couro, lã,

álcool e licores (com exceção do vinho kasher). Estavam autorizados a


comercializar

pedrarias, metais preciosos (mas não a fundi-los), roupas de luxo, cavalos,


peles, cera,

mel, café, chá, chocolate.


22. V. nota 16.
23. Leopold Ranke, Histoire de la papauté pendant les seizième et dix-
septième siècles,

Robert Laffont/Bouquins, 1986 (edição acrescida de comentários


surpreendentemente

sectários e reacionários de um certo M. de Saint-Chéron, que trata, por


exemplo,

Elizabeth I da Inglaterra de “hipócrita e sanguinária”...). A Armada


Invencível — 7.000

marinheiros e 17.000 soldados — fora montada por três razões principais: a


destruição do

partido católico na Inglaterra após a decapitação de Maria Stuart, que


contrariou fortemente o papado, a vindicta de Felipe I contra a Inglaterra,
que sustentava desde 1581 a emancipação dos Países Baixos da tutela
espanhola, e a ambição de Felipe I de reivindicar a coroa de Maria Stuart,
de ocupar a Inglaterra, de reocupar os Países Baixos e de unificar todo o
mundo católico sob a coroa espanhola.
260

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

24. Cf. Françoise Chipeau, “Os ataques se multiplicam contra os cristãos na


índia”,

Le Monde, 22 de dezembro de 1998. Na índia há apenas 23 milhões de


cristãos, mas suas

boas obras irritam os fundamentalistas hinduístas da Bharatyajanata.

25. Uma rica burguesia conseguiu formar-se da qual um dos mais célebres
representantes foi Siisskind Stern (1610-1687), banqueiro, ancestral dos
Rothschild da França; os Stern têm hoje em dia numerosos descendentes na
aristocracia britânica (por exemplo,

a condessa Rosse, mãe de lord Snowdon, ex-marido da princesa Margaret).

26. Foi a situação na qual Meyer Amschel Rothschild, fundador da dinastia


dos

Rothschild, conseguiu apesar de tudo construir sua fortuna. Amos Elon,


Founder —

Meyer Amschel Rotschild and his Time (Harper Collins, Londres, 1997).

27. S. A. Goldgerg e A. Derczansky, Monde ashkénaze, em Dictionnaire


encyclopédique

du judatsme, op. cit.

28. No que diz respeito aos católicos, ele havia declarado que não toleraria
jamais

que se celebrasse a missa no território inglês. Quanto aos anglicanos, eles


eram suspeitos
de realismo.
29. O vocábulo parece derivar deget o, o antigo bairro da fundição de
canhões.

30. Giuseppe Trebbi, em Storia di Venezia dalle origine alia caduta delia
Sereníssima, 8

vol. (Istituto delia Encyclopedia italiana, Roma, 1997).

31. England, Enciclopédia Britânica. Em 1801, o reino contava com cerca de


8.900.000 habitantes.
32. S. A. Goldgerg e A Derczansky, Monde ashkénaze, em Dictionnaire
encyclopédique

du judaisme, op. cit.


9.
A liberdade e os três desafios

O “PROBLEMA JUDEU” DA ALSÁCIA, DA LORENA E DOS TRÊS


BISPADOS E AS

REVOLTAS QUE SE SEGUIRAM — OS DEFENSORES —


PROCURADORES DA REVO​

LUÇÃO: O ABADE GRÉGOIRE E ROBESPIERRE —JUDEIDADE OU


LAICIDADE, O

DILEMA JUDEU — BONAPARTE, PAI DO SIONISMO? — O DESAFIO DA


NOÇÃO DE

ESTADO — NASCIMENTO DO RACISMO “ANTROPOLÓGICO” — O


SERVIÇO PRES​

TADO PELA REVOLUÇÃO AO PAPADO

No último decénio do Antigo Regime, um “problema judeu” eclodiu na França:


o das comunidades asquenazes da Alsácia, da Lorena e dos Três Bispados: Metz,
Toul e Verdun. Geográfica e moralmente, elas estavam imprensadas entre uma
França católica e tradicionalmente anti-semita e uma Alemanha protestante que
se tornou anti-semita. Era, aliás,

a região de onde partira a primeira cruzada, em 1096, e onde surgiram as

primeiras manifestações de anti-semitismo religioso.

Desde o Renascimento, com efeito, os judeus se encontravam imobilizados em


uma situação praticamente uniforme em todos os países da Europa, a despeito
das flutuações suscitadas pelos humores dos monarcas ou pelas circunstâncias
políticas: destinados ao limbo, uma no man’s

land em que não eram cidadãos de nenhum país, a não ser que se convertessem.
Estrangeiros eternos, minoritários por excelência, tolerados com a condição de
se fazerem úteis. Sua principal fraqueza era de ordem histórica: não possuíam
nenhuma unidade, pois a diáspora fragmentara-os há muito tempo em uma
miríade de comunidades que não chegavam às

vezes a uma centena de almas e que, ainda por cima, estavam divididas

entre sefardis e asquenazes, que não falavam a mesma língua e tinham


262

HISTÓRIA GERAL DO ANT1-SEMITISMO

poucas afinidades uns com os outros. Eram, pois, essencialmente vulneráveis.


Ninguém se inter ogava a respeito de seus direitos humanos: para isso seria
preciso esperar a Declaração de 1789. A França não era uma
exceção.

Em 1780, contavam-se cerca de 10.300 judeus na Alsácia, mas seu

número aumentou rapidamente com os judeus vindos da Alemanha; em

1784, eram 25.000 em todo o leste da França. Essa “proliferação” inquietava os


católicos, que impuseram pela primeira vez uma medida cuja invenção mais
tarde acreditou-se poder atribuir ao governo de Vichy: a

limitação dos nascimentos. Isso foi feito por meio da proibição do casamento
sem autorização real e, fato nunca visto, mesmo fora dos territórios do domínio
real. A situação dos judeus era insuportável, pois viam-se submetidos a
constantes cobranças de impostos a respeito de tudo ou

de nada: direito de pedágio corporal e de admissão em domicílio de três

libras por dia e por cabeça em Estrasburgo. Sujeitos a uma miríade de

regulamentos, não tinham direito a comprar nem vender nada, seus

filhos lhes eram ar ancados à força e batizados — mas, batizados ou não,

nem por is o tinham o direito de se casar com católicos. Para culminar,

era proibido a judeus e a cristãos habitar sob o mesmo teto.

Os judeus da Lorena e dos Três Bispados não eram mais bem aquinhoados.
Supostamente sua liberdade de comércio era reconhecida, mas eles não tinham,
por exemplo, o direito de comprar uma casa na qual não

fossem morar, nem uma fazenda que não fosse para ser explorada por

eles mesmos. Evidentemente, não podiam empregar pessoal cristão. Em

suma, católicos e judeus, todos estavam descontentes. O rei, informado,

constituiu uma comissão especial1 e, em 1784, isentou os judeus do

pedágio corporal, mas manteve a proibição de casamento sem autoriza​


ção real. Ninguém ficou satisfeito. Os judeus, porque não obtiveram

praticamente nada fora a isenção do pedágio corporal; os cristãos, porque

os judeus a obtiveram.

Observemos, no entanto, que, a despeito dessa discriminação, os

judeus da França não eram os que estavam em pior situação: dispunham

de liberdade de culto, que era recusada aos protestantes. Apenas na cidade

de Bayonne contavam-se, em 1735, 13 sinagogas,2 mas não havia um


A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

263

único templo no país. A França pretendia ser um reino católico e foi com

consciência perfeitamente tranquila que lançou ao ostracismo os que não


eram católicos.

Os judeus do leste representavam nessa época um poderio financeiro que


excedia de longe seu status social e seu número. Durante os debates da
Assembléia Constituinte, em 1789, o abade Maury chamou aten​

ção para a ameaça representada por suas riquezas. Na Alsácia, garantia,

“eles possuem 12 milhões de hipotecas sobre as ter as. Em um mês serão

proprietários da metade desta província; em 10 anos eles a terão conquistado


inteiramente, e ela não será mais do que uma província judia”.3 Era querer
exagerar de verdade: os judeus naquele tempo totalizavam 40 mil

almas, das quais a metade no leste, sobre uma população de 24 milhões

de franceses. A despeito disso, monsenhor de la Fare, bispo e deputado

de Nancy, relatou à Assembléia Constituinte que suas ovelhas lhe tinham

declarado: “É verdade, se o senhor viesse a nos faltar, veríamos um judeu

tornar-se nosso bispo, de tanto que eles são hábeis em tomar conta de

tudo.” E o prelado opunha-se a que se admitissem nos empregos públicos e na


administração os judeus, dos quais o povo “tem hor or”. Parecia que se estava
ouvindo por antecipação as vituperações ofegantes de

Louis-Ferdinand Céline contra a “yupinização” da França. Mas o prelado


decerto não foi o único a exagerar: o país estava absolutamente obcecado pelo
fantasma judeu. Mil exemplos o demonstram. A França colhia os frutos do ódio
aos judeus semeado seis séculos antes, durante a primeira cruzada, pelos
predecessores de monsenhor de La Fare.

Com apenas uma diferença, mas es encial: o problema judeu tinha

passado das mãos do papado e do clero para as dos políticos. O maior dos

serviços que a revolução “atéia” de 1789 prestou ao papado foi o de

retirar-lhe o peso do problema judeu. O que diziam os papas, cujo discurso


provocava cada vez menos ecos na França revolucionária, assim como nos
reinos cristãos europeus, dali em diante imunizados contra as

censuras pontificais, não tinha mais tanta importância: o que contava era

o que as nações sentiam e diziam. A longo prazo, contudo, os judeus não

tinham nada a ganhar.


264

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Sendo assim, os discursos de monsenhor de La Fare não eram destituídos de


fundamento. A França do Antigo Regime era seguramente subdesenvolvida
financeiramente, e continuaria a sê-lo por muito tempo devido à atitude
moralizadora er ónea, para não dizer hipócrita, que adotava em relação ao
dinheiro. Todo mundo, notadamente os oficiais nas

cidades de guarnição, se endividava para manter o padrão de vida e não se

poderia endividar senão com os judeus. Eram eles os garantidores da vaidade do


Antigo Regime, reino da aparência. Ora, a usura criticada nos judeus não
existiria se o dinheiro não fos e tão raro e se existissem mais

emprestadores — portanto, emprestadores cristãos, donde taxas mais

baixas. Não era o caso, pois a religião proibia aos cristãos da França o

empréstimo a juros e continuaria a proibi-lo sob o Império, sem cogitar

que o ofício de emprestador tinha sido imposto aos judeus por ela mesma. Poder-
se-ia imaginar que os judeus obtinham sucesso com a usura, mas suas
comunidades estavam fortemente endividadas com o Tesouro,

pois os judeus nunca conseguiam pagar suas dívidas.4

Eclodiram revoltas na Lorena no início de 1788, devido ao aumento

do preço do pão. Os judeus foram acusados de especular: eles possuíam,

com efeito, celeiros de trigo. Em Lunévil e, em Pont-à-Mousson, em

Nancy, em Lixheim, em Sar eguemines, quebraram-se vidros, pilharam-

se celeiros, famílias foram expulsas de suas casas, houve tiros dentro de

sinagogas e molestaram-se os judeus que foram encontrados na rua. A

tropa foi despachada para o local, mas o estado de espírito da população

em relação aos judeus permaneceu o pior possível. Os judeus, a quem o

poder real, o povo, o clero e a turba tinham praticamente convencido de

que eram. . judeus, começaram a sair de seu torpor.

Em dezembro de 1788, de fato, o rei convocou os Estados Gerais e,


entre os protestos que os representantes dos Estados apresentaram ao

monarca, havia o de seus eleitores sobre os judeus. Os judeus decidiram

não permanecer mudos e encar egaram um de seus representantes mais

abastados, Cerf-Ber , de tomar-lhes a defesa. E os acontecimentos se


precipitaram.

Em 1787, a Academia Real das Ciências e das Artes de Metz abriu

um concurso sobre o tema: “Existem meios de tomar os judeus mais


A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

265

úteis e mais felizes na França?” O interesse que ele exprimia parecia

demonstrar uma importante abertura de espírito; mas se fosse mesmo o


caso, o tema do concurso deveria ter sido: “Existem maneiras de tornar

os franceses mais tolerantes a respeito dos judeus na França?”, pois, como

vimos no capítulo precedente, os judeus não eram considerados, nem

durante as revoltas, nem em sua frustração. Sua condição na França era

miserável. Mesmo que se tenha tomado letra morta, o decreto de expulsão de


Luís XI I não chegou a ser revogado; Luís XIV na verdade só queria tolerar os
judeus ricos, como o banqueiro Samuel Bemard; Luís XV

não demonstrou compaixão particular pelos judeus, e mesmo que Luís

XVI se tenha deixado emocionar pelos judeus que encontrou na estrada,

segundo conta uma anedota,5 continuou sendo um rei católico que abertamente
não tolerava nem os protestantes, nem os judeus e outros hereges. Esse ser
alheiro amador era na verdade um totalitário apático.

Mas, finalmente, havia quem se dignasse a se interessar pela sorte dos

judeus, criadores de tantos problemas no reino. Alguns pensadores

começaram a se interrogar a respeito dos maus-tratos a eles infligidos.

Alguns filósofos iluministas não se haviam esquecido das idéias de

Locke. No final do século XVI , com efeito, o Essai concernant la tolérance

(Epistola de Tolerantia) (Ensaio sobre a tolerância) de John Locke, filósofo

inglês que inaugurou a Idade das Luzes e da Razão na Inglater a, e cuja

influência permanece viva até hoje, declarava em sua conclusão: “Nem

os pagãos, nem os maometanos, nem os judeus devem ser excluídos dos

direitos civis da comunidade por causa de sua religião.” Não havia

“pagãos” na Inglaterra e bem poucos na Europa; alguns punhados de


muçulmanos nos países do sul, mas sobretudo judeus. Era uma tomada

de posição audaciosa para a época e que suscitou numerosos ecos.

Dois anos mais tarde, a Revolução Francesa abalou profundamente a

paisagem. Ela tem sido, frequentemente, apresentada como atéia. Mas

não é bem isso, pois o teísmo, mesmo tendo dissolvido os poderes dos

clérigos, não era ateísmo. A Revolução foi anticlerical e antipapista. O

confisco dos bens do clero, que suscitou a vindita anti-revolucionária do

clero no século XIX, fazia parte da agitação revolucionária contra a feu-

dalidade. “A Igreja, proprietária de uma porção do território como na


266

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Idade Média”, escreveu Alexis de Tocquevil e em LAncien Régime et la

Rêvolution (O Antigo Regime e a Revolução), “estava infiltrada no governo e


tinha fortes ligações com ele”. Era inevitável que sofresse do mesmo descrédito.
Inevitável igualmente que se interessasse por aqueles que

tinham sido as almas danadas dos Bourbons muito católicos: os judeus.

Em 1789, estes encontraram na Assembléia Constituinte um defensor inesperado


na pessoa do abade Henri-Baptiste Grégoire. Loreno, nativo de Vého, cura de
Emberménil e representante de Lunéville na

Assembléia, tinha tinturas de jansenismo e de idéias liberais, vivia próximo aos


judeus, e seu coração encheu-se de compaixão por eles: apesar de sua fé católica
o ter impedido de perceber que a miséria e os sofrimentos

deles estavam diretamente relacionados com a intolerância dessa fé. Para

Grégoire, o destino dos judeus poderia ser melhorado à medida que eles

se reformassem e que lhes fosse permitido ter acesso à luz de Cristo.

Seus temores do estrangeiro eram “fruto da escravidão”. Eles deveriam

escapar à tirania dos rabinos, assim como os cristãos se haviam libertado

da tirania de Roma. Discurso eminentemente galicano, nota-se.

Contudo, Grégoire estava retomando praticamente a antiga idéia de que,

se fossem tratados com bondade, os judeus se converteriam. Em meio a

essa esperança, pleiteou, pois, sua emancipação civil. Para tanto, eles

deveriam obrigatoriamente aprender o francês nas escolas. E os cristãos

deveriam modificar sua atitude em relação a eles.

Era um daqueles discursos com tinturas de igualitarismo humanista

da era das Luzes, como se ouviram tantos no século XVI I, e- que talvez

autorizassem a esperança de que finalmente a aurora iria surgir. Mas traía

um surpreendente desconhecimento do judaísmo, associado a um desprezo ainda


mais pernicioso por se dar ares de benevolência. Em seu Essai

sur la régéneration physique, morale et politique des juifs (Ensaio sobre a


regeneração física, moral e política dos judeus) — um programa completo —,
ele retomou argumentos já envelhecidos por um uso secular sobre “o
relaxamento moral dos judeus”, o perigo de tolerá-los tal como eram devido a
seus comércios e à usura, “sua aversão pelos outros povos” etc. Esse texto geral
acrescentava que “às vezes se pretende que os judeus exalam constantemente um
mau cheiro”, de que o autor sabe a causa: “sua falta
A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

267

de limpeza, seu género de alimentação”, e comidas que são evidentemente “mal


escolhidas”. Pode-se supor, ao ler es e texto, que se os judeus comessem porco,
cheirariam menos mal. Não vinha ao espírito do abade
Grégoire que a aversão dos judeus pelos outros povos pudesse estar grandemente
justificada pelas mesmas razões; que Luís XIV não tomara um único banho em
toda sua vida, que a nobreza de Versalhes car egava piolhos em suas perucas e
defecava nos matos; e sobretudo que, se os judeus vivessem em condições mais
toleráveis, sua higiene melhoraria. Mas nós

escutamos na França, e em épocas bem recentes,- outros discursos do

mesmo jaez sobre os odores de merguez nos corredores. O abade

Grégoire usava argumentos de um racista comum. O interesse de seu

pleito reside nas circunstâncias em que o pronunciou.

Mais graves do que es as asneiras ofensivas eram as acusações que o

abade Grégoire fazia contra o Talmude, “causa do atraso moral do povo

judeu”: “Esse vasto reservatório, eu quase falei cloaca, onde são acumulados os
restos do espírito humano...” O Talmude era “a causa da infertilidade do povo
judeu” e a razão pela qual “eles não tinham senão idéias emprestadas; e que
idéias. .”.6 O abade não lera, pois, Spinoza e — não

lhe guardemos rancor — não poderia prever nem Karl Marx, nem Max

Weber, nem Alfred Einstein, nem Ludwig Wittgenstein, nem Gustav

Mahler, espíritos de grande banalidade, como todos sabem.

O Essai apelava, pois, para uma reconciliação em uma espécie de

“Abracemo-nos Fol evil e”6* que faria rir se o assunto não fosse tão sério.

Em suma, só era preciso que os judeus renunciassem a sua religião, a seus

rabinos e se deixassem batizar, e eles seriam excelentes franceses, originais,


bem-humorados, limpos e cheirosos. Como diz o ditado, com amigos assim,
quem precisa de inimigos? Contudo, o pleito que Grégoire pronunciou diante da
Constituinte teve efeitos extremamente positivos.

Tanto mais que não foi o único, em um ambiente que, no entanto, não
era filossemita. Ele modificou os espíritos. O que não era fácil.

Uma ilusão otimista poderia afirmar que os Enciclopedistas eram

hostis ao anti-semitismo, como a toda forma de discriminação racial; a

afirmação comporta muitas nuanças. Voltaire, por exemplo, foi clara e

abertamente racista. Em seu Traitéde métaphysique (Tratado de Metafísica),


268

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

ele registrou que os brancos lhe “parecem superiores aos negros, assim

como os negros são superiores aos macacos, e os macacos, às ostras”.


Estranho sistema de interpretação do mundo. E verdade que seu comércio
negreiro, baseado em Nantes, transformou-o em “um dos 20

homens de mais posses do reino”,7 pois ele foi um traficante de negros.

Mas ele escreveu coisa bem pior no artigo intitulado Anthropophages

(Antropófagos) — nada menos! — de seu Dicionário Filosófico: que os

judeus eram “o povo mais abominável da terra”. Consagrou-lhes por

sinal um artigo independente, Judeus, para que ninguém ficasse sem

saber: “Vocês verão neles apenas um povo ignorante e bárbaro, que de

longa data reúne a mais sórdida avareza à mais detestável superstição e ao

mais invencível ódio por todos os povos que os toleram e que os enriquecem.” Já
se conhecia Voltaire como anticristão. Em suas memórias, o príncipe de Ligne,
que passou oito dias em Ferney em companhia de

Voltaire, escreveu: “A única razão pela qual M. de Voltaire se lançou em

tamanhas diatribes contra Jesus Cristo é que Ele nasceu em uma nação

que ele detesta.” O mesmo que dizer que Voltaire era anticristão apenas

porque era anti-semita. Se examinarmos um pouco mais detidamente as

opiniões de François-Marie Arouet, glória da cultura francesa, nos ar iscamos a


encontrar nelas as premissas de Charles Maur as.

Outro advogado ardente da emancipação verdadeira foi Maximilien

de Robespier e: “Os vícios dos judeus derivam da degradação na qual

vocês os mergulharam; eles serão bons quando descobrirem alguma vantagem


em ser bons.”

Não vamos nos deter sobre “os vícios dos judeus” e a “bondade” que
eles não têm; pela primeira vez na história a tónica da questão era a
responsabilidade da sociedade com relação aos judeus. A declaração de
Robespierre iria ressoar longamente. O primeiro escrutínio da

Assembléia sobre a cidadania dos judeus, no final de 1789, foi negativo:

403 “a favor” e 408 “contra”. Mas em janeiro de 1790, o status de “cidadãos


ativos” foi concedido à comunidade de judeus sefardis de Bordeaux, Dax e
Bayonne, e recusado à dos judeus asquenazes da Alsácia, da Lorena

e dos Três Bispados. Após a prisão de Luís XVI, os espíritos ganharam em

audácia: em 27 de setembro de 1791, a Assembléia Nacional votou a libe​


A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

269

ração de todos os judeus da França: os das regiões que acabamos de mencionar e


os do Comtat Venaissin, estabelecidos principalmente em Avignon e Carpentras.
A população francesa oficial foi enriquecida com
mais 40 mil almas.

A emancipação política seguiu a emancipação cívica e os exércitos

franceses. Pouco depois da conquista de Pádua pelas tropas francesas, em

1797, e da queda da podestà veneziana, o novo governo central da cidade,

imposto pelos franceses, decretou que o bair o judeu não seria mais chamado
pelo “nome bárbaro e destituído de sentido de gueto”, mas pelo nome de Via
Libera, “Rua Livre”. Símbolo importantíssimo. Duas semanas mais tarde, em
decor ência do decreto datado de “Fructidor, ano V da República Francesa e ano
I da Liberdade Italiana”, as muralhas do gueto

foram postas abaixo, de tal maneira que não restou mais nada daquela

antiga separação de ruas vizinhas.8

No ano seguinte, Bonaparte lançou um apelo aos judeus, convidando-os


ajuntarem-se a ele em sua expedição ao Egito para ajudá-lo a reconquistar a Ter
a Prometida. Esse apelo foi ocultado em seguida, pois

ele demonstrava tanto a duplicidade oportunista de Napoleão, “dialéti-

ca”, como diriam certos contemporâneos, quanto seu gênio.

A certeza da ocor ência desse apelo só chegou a nosso conhecimento devido a


seis linhas do jornal oficial da época, La Gazet e Nationale ou le

Moniteur Universel, de 22 de maio de 1799 — no jargão utopista da época,

em 3 Prairial do ano VI . Pode ser consultado na Biblioteca Nacional,

pelo menos o que resta dele, em sua fantástica e seguramente premonitória


estranheza:

Política
Tur qui a
Constantinopla, 28 Germinal

Bonaparte mandou publicar uma proclamação na qual está convidando todos os


judeus da Ásia e da África a virem alinhar-se sob
270

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

suas bandeiras para estabelecer a Antiga Jerusalém. Já conseguiu

armar um grande número deles, e seus batalhões ameaçam Alep.


Parece sonho. Bonaparte teria sido o primeiro sionista? Pois o proje-

to sionista ainda não existia. A informação não passou despercebida; foi

retomada por outros jornais, como La Décade de 29 de maio de 1799, que

publicou um comentário cuja conclusão era: “É bem provável que o

Templo de Salomão seja reconstruído.” O Templo de Salomão reconstruído por


um general da República Francesa! Não se tratou de notícia inventada, uma vez
que o Le Moniteur voltou com a informação dois

meses mais tarde, em 29 de julho: “Não foi apenas para devolver

Jerusalém aos judeus que Bonaparte conquistou a Síria.” Estava claro que

Bonaparte planejava marchar sobre Constantinopla a fim de conquistar

uma posição-chave a partir da qual pudesse ameaçar Viena e São

Petersburgo.

Um documento perdido durante a Segunda Guerra Mundial só chegou até nós


em uma versão traduzida, pacientemente reconstituída. Nela se lê:

Quartel-General, Jerusalém, Floréal I, ano VI da

República Francesa.

Bonaparte, comandante-em-chefe dos exércitos da República

Francesa da África e da Ásia, aos legítimos herdeiros da Palestina.

Israelitas, nação única que durante milénios a sede de conquista

e a tirania conseguiram espoliar de sua ter a ancestral, mas não de seu

nome nem de sua existência nacional! (. .) Levantem-se e alegrem-se

todos vocês, exilados! Por uma guer a sem exemplo nos anais da história, guer a
empreendida com o objetivo de autodefesa, por uma nação cujos ter itórios
hereditários foram considerados pelo inimigo

um butim a ser dividido arbitrariamente e a seu bel-prazer por uma

penada das chancelarias, es a nação está vingando sua própria vergo-


A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

271

nha, assim como a vergonha dos povos mais longínquos, esquecidos

desde longa data sob o jugo da escravidão; ela está vingando também
a ignomínia que pesa sobre vocês há cerca de dois mil anos (. .)

Herdeiros legítimos de David!

A grande nação que não faz tráfico de homens nem de territórios, diferentemente
daqueles que venderam seus ancestrais a todos os povos (Joel, IV, 6), faz neste
momento um apelo a vocês: por certo não um apelo para que façam a conquista
de seu património, mas simplesmente para que tomem posse do que
conquistaram e que,

com a garantia de ajuda dessa nação, continuem sendo os donos...

O documento é longo; fizemos a opção de não citá-lo aqui em sua

integralidade. O tom é napoleônico. O cálculo também, e é o que concede


alguma veracidade a esse texto desconcertante. Em um sonho digno de
Alexandre, Napoleão cogita em ameaçar o Império Otomano por

meio da criação de um Estado judeu na Palestina, Estado que seria dela

tirado; e, a partir de então, com a ajuda de seus aliados fundamentais —

os judeus soberanos — manter a distância a Áustria e a Rússia. A generosidade


revolucionária servia também a uma estratégia política perfeitamente coerente
com o personagem do general Bonaparte.

O que aconteceu em seguida? Simplesmente Napoleão não conseguiu tomar São


João de Acre. A conquista da Palestina revelava-se impossível. Ele havia
superestimado suas forças e publicado o apelo aos judeus antes de executar o
cerco. Não dispunha da Palestina e não a podia

oferecer aos judeus em sua magnanimidade calculada. Última indignidade: os


judeus tinham servido de peões.9

De todo modo, uma mão fora estendida, e os judeus não a poderiam

recusar. As sanções eventuais já estavam evidentes; a emancipação concedida


em 1791 já não tinha mais suscitado uma reação anti-semita no sentido estrito da
palavra, mas antijudaico-cristã. O teísmo liberal do Iluminismo sentia
repugnância, com efeito, em ver qualquer religião
transpor os recintos sagrados da República. As idéias de outro filósofo
272

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

inglês, Thomas Hobbes (1588-1679), no passado exilado em Paris, trouxeram


para ela frutos numerosos. Para Hobbes, o ideal político era um Estado secular
que car egasse em uma das mãos o gládio político e na
outra o cetro de uma Igreja nacional; o que, é preciso sublinhar, já convinha às
tendências galicanas e antipapistas da cristandade francesa, mas não anunciava
uma evolução das idéias republicanas.

Os libertários de 1789 foram mais longe, com efeito, ao recusar qualquer status
oficial para a religião, pois o Estado não deveria mais ser confundido com a
sociedade civil. Para esta, ou para partes dela, estava liberada a prática de uma
religião, caso desejassem, mas teria que fazê-lo de maneira inteiramente
independente. O que pode ser compreendido sem

dificuldade na teoria e na prática. Na teoria, como a monarquia de direito divino


fora abolida, a união do trono e da Igreja também o fora. Na prática, a lembrança
das guer as de religião só resultara na cisão da França

em campos inimigos. Como a religião, de Estado fora nefasta para a

República, as religiões não teriam mais direito de cidadania senão a título


voluntário, sem a proteção nem a intervenção do Estado. Ora, o judaísmo
representava para os revolucionários a pior das religiões, uma

vez que fora ele que havia engendrado todas as demais. Como escreveu

Bernard Lewis, o crime dos judeus não foi ter matado Jesus, mas tê-lo

engendrado.10 Os judeus iriam servir de bodes expiatórios ao anticlerica-

lismo em todas as direções. E este era virulento: seguramente Voltaire

não estava sozinho com sua opinião.

Mal escapados das gar as do anti-semitismo religioso e admitidos na

legalidade republicana, os judeus viam-se confrontados a três perigos de

primeira grandeza. O primeiro era a laicidade que, em 1998, mais de dois

séculos mais tarde, o grande rabino da França achava “intolerante” (a

propósito do fato de as autoridades religiosas não terem sido consultadas

sobre o Pacto Civil de Solidariedade, ou Paes).1 A laicidade era uma


noção inteiramente nova na Europa e no mundo, para a qual os judeus

não estavam nem um pouco preparados: toda a cultura judia é de essência


religiosa. Instados a se apressar em responder às aspirações revolucionárias de
abolição da religião, viam-se obrigados a renunciar de um só golpe a sua própria
identidade, uma vez que toda a história e a moral
A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

273

judias eram fundadas na adesão à Lei. Não apenas não poderiam mais

observar o sabá como também deveriam renunciar à autonomia jurídica,


uma vez que a autoridade rabínica até então operara como autoridade

jurídica e mesmo judiciária, como vimos no sistema de devoluções ainda

em vigor em numerosos países da Europa. Sem is o, os judeus se auto-

relegariam a uma espécie de Antigo Regime próprio, iguais aos que se

julgavam cristãos antes de serem republicanos. Em suma, tinham-lhes

concedido a igualdade, a liberdade e a fraternidade com a condição de

que renunciassem àjudeidade. Estavam-lhes, pois, oferecendo um batismo laico.


“Vão continuar existindo, contanto que renunciem a sua memória.”

O segundo perigo era o do Estado-Nação. Noção antiga, frequentemente


mencionada desde o século XVI por Maquiavel e por Jean Bodin, autor de uma
obra de primeira grandeza, La Republique, publicada em

1576, o Estado-Nação continuara sendo até 1789 um conceito entre tantos


outros, uma idéia, quase uma utopia, em um Ocidente constituído de reinos em
que as pessoas se preocupavam muito mais com a prosperidade dos príncipes do
que com a de seus súditos. Ou de principados eletivos, como a República de
Veneza, tão pouco republicana e tão elegantemente “feudárquica”. A Revolução
Francesa conferiu-lhe de repente uma realidade de tal maneira explosiva, que
não se chegou a

apreendê-la, mesmo em seu declínio, e que iria abalar inteiramente o

Ocidente, filosófica e politicamente. Esse conceito, com efeito, iria inspirar a


guer a de independência americana e engendrar a primeira potência económica e
política do século XX, os Estados Unidos da

América.12 O Estado-Nação exigia dos cidadãos a submissão a um conceito


supremo, o bem público, ao qual convinha sacrificar os particula-rismos
linguísticos, religiosos ou outros. Jules Grévy foi um dos representantes mais
eminentes desse ideal, em nome do qual se iria pedir aos judeus — ou, mais
exatamente, deles exigir — não só que renunciassem

ao iídiche, como ainda que cessassem de se distinguir como “judeus” e


de manter uma judeidade arcaica.13

É provavelmente difícil, neste final do século XX, quando a Europa

se prepara para abolir suas fronteiras e quando as mídias tendem a criar


274

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

uma espécie de cultura internacional, nos darmos conta da perturbação

intelectual e psicológica provocada na época pelo surgimento desse conceito.


Até então os europeus tinham consciência de pertencer a províncias e a culturas
locais, mas não a Estados, no sentido moderno da palavra. Lombardos e vênetos,
por exemplo, tinham sido tanto austríacos quanto italianos, os ucranianos eram
ora poloneses, ora russos, ora austríacos. Mas, à medida que as fronteiras
tendiam a se estabilizar (e a história da Europa mostra uma evolução
característica e contínua em dire-

ção à constituição de grandes Estados-Nação), essa idéia ia progredindo.

A ponto de, no final do século XVI I, Emmanuel Kant ter podido declarar: “Não
se pode causar maior prejuízo a uma nação do que lhe retirar o caráter nacional e
as idios incrasias de seu espírito e de sua língua.” Formulação infeliz como
nenhuma outra, pois ela iria erigir o célebre valetudinário de Kõnigsberg em
protetor do nacionalismo.

A idéia de Estado-Nação impôs-se então como um fato natural, imanente,


inelutável, fundamento da dignidade individual e coletiva. Por muito tempo
limitadas às fronteiras da cidade ou da província, as consciências da identidade
passaram a se estender, dessa vez até os limites da abstração, até as fronteiras de
um Estado que a maior parte dos habitantes nunca tinha visto em lugar algum. A
modificação que se seguiu iria desempenhar um papel determinante na atitude
dos países em relação

aos judeus.

A instrução obrigatória foi decerto o maior beneficio oferecido pela

laicidade a um judaísmo que mofava cada vez mais dentro de tradições

medrosas e que, se tivesse continuado no mesmo caminho, talvez tivesse

resultado em seu próprio desaparecimento, por pura e simples degenerescência


cultural. Mas ela, paralelamente, difundiu o conceito de Estado-Nação, que se
revelou bem mais ameaçador. Ninguém previu na

época que ele engendraria uma das piores doenças políticas de todos os

tempos, o nacionalismo, que foi quase fatal para o judaísmo, sem falar do

fato de ter feito a Europa sangrar durante três guer as sucessivas (1870,
1914-18 e 1939-45). De Hobbes a Déroulède, e de Déroulède a Hitler, o

caminho foi, com efeito, espantosamente curto: a Pátria e a Bandeira

iriam fatalmente levar ao ressuscitamento da noção merovíngia e poten​


A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

275

cialmente assassina do “direito do sangue” (que a Alemanha reunificada

só aboliu em 1998).
O terceiro perigo iria engordar os dois outros por efeito de convergência, não
tendo sido o mais negligenciável: o nascimento da antropologia. Nascera do
cientificismo enciclopédico, ilustrado no exterior por gigantes, tais como Alex
von Humboldt, Cari von Linné e Johann

Gottfried Herder, sem contar, mais uma vez, Kant, o sábio que interrompeu seu
passeio cotidiano sob as tílias de Kõnigsberg quando lhe trouxeram a notícia da
Revolução Francesa. A antropologia, ou ciência da raça humana, foi em seus
primórdios um apanhado dos mais extravagantes de

todas as escórias mentais, com o qual a descoberta do mundo pôde juncar os


espíritos picados pela ciência. Ela provocou estragos sob as mais aber antes
formas até o começo do século XXL Uma de suas mais ilustres

emanações, a frenologia, ilustrada por César Lombroso, pretendeu definir as


capacidades mentais humanas pelo formato dos crânios. Célebre caçador de
“degenerados”, Lombroso merece a imortalidade por haver

revelado em Sócrates, Darwin e Dostoiewski uma “fisionomia cretino-

sa”, bem como por esta constatação transcendental: ‘A genialidade é uma

psicose degenerativa do grupo epilético.” Conclusão que tem o mérito de

demonstrar que Lombroso não era um gênio. Foi sobre essas bases fantásticas
que os nazistas se aplicaram à tarefa de verificar a origem ariana por meio da
medida do crânio. Loucura do país de Nietzsche: julgava-se

a “arianidade” pela medida do ângulo que ia da ponta do nariz ao centro

das orelhas!

A antropologia levou igualmente ao conceito, cientificamente aberrante aos


olhos da genética contemporânea, de “raças humanas”. Era ainda mais
prejudicial para os judeus do que as cretinices de Lombroso.

Um breve olhar circular sobre as idéias da época nesse domínio não

pode senão encher o espírito de um desolação consternada. Para Herder,


por exemplo, os negros eram uma “raça inferior”, incapaz de civilização.

Praticamente a mesma coisa, diga-se de passagem, que os autores muçulmanos


da Idade Média diziam a respeito dos brancos nórdicos, que eles estimavam
terem sido criados por Deus para servir de escravos aos

outros. E exatamente o contrário do que Humboldt sustentava: “Ao


276

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMIT1SMO

mantermos a unidade da espécie humana, nós rejeitamos necessariamente a


deplorável distinção entre raças superiores e raças inferiores”.14

Isto não fez grande diferença. Em 1853, um viajante romancista e


escritor de qualidade, Arthur, conde de Gobineau, autor do romance elitista Les
Plêiades (As Plêiades), publicou uma obra de ignorância e pretensão que
poderiam parecer divertidas se não se tivessem tomado pesadas com tantas
consequências sinistras: o Essai sur Vinégalité des races humaines

(Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas). Gobineau decerto

não era um antropólogo e jamais sonhou em se dedicar à maluquice da

época, o estudo comparativo das capacidades cranianas (a dos golfinhos é

superior à dos humanos); ele era um mero diplomata chegado às belas-

letras. Suas idéias resumiam-se ao fato de haver três raças, a amarela, a

negra e a branca, à convicção de que o “gênio de uma raça” era inato e à

idéia de que apenas a raça branca era capaz de cultura, embora sua
potencialidade estivesse esgotada porque sua composição “racial” não mais era
pura.Eis aí uma fulminante coleção de contraverdades científicas. Não há

“raça branca”, nem “negra”, nem “vermelha”, nem “amarela”, mas apenas
características pigmentares relacionadas à melanogênese da derme e a estruturas
culturais. Só se pode falar de raça, salvo dizer qualquer bobagem, quando não
existe interfecundidade entre uma raça específica e outra; ora, um banto pode
muito bem se acasalar com uma mulher aina

ou um manchu com uma marselhesa. A história e a etnologia vêm

demonstrando que o conjunto das populações européias que designamos

pelo nome de “raça branca” sofreu tantas invasões ao longo dos milénios,

que seria frívolo procurar aí um único filão. O reservatório indo-

europeu despejou na Europa, a partir da última glaciação, etnias de tal

modo diferentes, que elas não se reconheceriam nem mesmo a poucos

séculos de distância: as levas mais recentes de celtas, por exemplo, massacraram


os estabelecimentos mais antigos. Quanto às outras “raças”, elas são da mesma
maneira fictícias: descobertas recentes levam-nos com fortes razões a pensar que
as Américas foram povoadas há 25 mil anos por migrações européias antes de
sê-lo pelos povos mongolóides.15

Pouco importa; a idéia de “raça”, notadamente a de uma “raça judia”,


A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

277

exercia uma influência ir esistível sobre as consciências, tanto quanto

sobre os inconscientes. Em 1803, meio século antes de Gobineau, um


obscuro panfletário alemão, Friedrich Grat enauer, colocou os alemães

em guarda:

“Que os judeus sejam uma raça inteiramente particular não pode ser

negado pelos historiadores e pelos antropólogos, segundo uma assertiva

antiga, mas geralmente válida, de que Deus os puniu afligindo-os com

um odor excepcionalmente ruim, assim como com diversas doenças

hereditárias e outras detestáveis enfermidades. Isto não pode ser inteiramente


provado, mas, por outro lado, não pode ser negado, mesmo se levarmos em
conta outras considerações teleológicas.”16

Gobineau não foi provavelmente um “anti-semita” — especificamente anti-


semita, como todo mundo na época —, mas suas idéias a respeito da pureza
racial foram acompanhadas de induções que pavimentaram o caminho para os
racistas dos séculos XIX e XX, pois, à idéia já falsa de raça, ele associou
características físicas e intelectuais: assim, a raça ariana, elite vinda da índia,
teria engendrado os “teutônicos” (duas fic-

ções em uma única proposição, os “arianos” e os “teutônicos”17), possuidores


das virtudes da nobreza, do amor pela liberdade e do culto da espiritualidade. Os
judeus não foram mencionados, mas a imensa falange de pesquisadores e
intelectuais que seguiram passo a passo Gobineau, como

Robert Knox, James Hunt, Hippolyte Taine, Georges Vacher de

Lapouge, Ot o Amon e outros não tardariam a lhes conceder “características


psicológicas raciais”. As induções de Gobineau foram invertidas: se determinada
característica, como a “nobreza”, estava associada aos arianos, sua ausência
aparente em um indivíduo significaria que esse não era verdadeiramente um
“ariano”.18

A subcultura ocidental desembocava assim em um desses vastos terrenos de


despejo em que se entornam até nossos dias banalidades e idéias nocivas
praticamente não degradáveis: os franceses são frívolos (Pascal e
Rimbaud, por exemplo), os alemães são brutais (como Schubert e

Brahms), os italianos têm alegria de viver (como Leopardi e Moravia), os

russos são místicos (como Stalin e Yeltsin), os negros têm o ritmo no sangue
(como Mandela e Richard Wright) etc. Os judeus são evidentemen​
278

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

te velhacos, interesseiros, venais e traidores (como Einstein, Mahler e

Wittgenstein). Uma ansiedade comum a todos os racistas, a “degenerescência”,


iria adquirir um impulso particularmente sinistro um século mais tarde.
Uma interpretação determinista (o racionalismo dos indigentes) do

mundo uniria racismo e darwinismo sob o jugo da seguinte constatação:

as coisas são o que são porque elas não poderiam ser de outra forma. As

raças inferiores o são em função de fatores hereditários, e sua inferioridade é a


expressão de uma justiça divina imanente. O término do tráfico de negros
coincidiu com o surgimento do escravagismo mundial da era

colonial. Africanos, asiáticos, árabes e assemelhados se submeteriam à

raça branca, porque ela é “superior”. Os judeus estão em toda parte e em

nenhum lugar; eles não seriam, pois, colonizados abertamente, mas pelo

interior.

Laicidade, Estado-Nação e “raça”, os judeus não tinham como dominar tantos


perigos. Os dois primeiros constituíam realidades às quais os judeus bem ou mal
se acomodaram, mas o terceiro era uma ficção contra

a qual eram impotentes. A inexistência de “redes ocultas” de poder judeu

foi aqui demonstrada de maneira gritante: os judeus eram vulneráveis da

mais perigosa maneira. Tinham acreditado poder prosperar em um mundo


cristão. Ledo engano.
A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

279

Bibliografia e notas críticas

1. Philippe Bourdrel, Histoire desJuifs de France, op. cit.


2. Juifs, em Jean de Viguerie, Histoire et Dictionnaire du temps des Lumières,
1715-1789

(Robert Laffont/Bouquins, 1995).

3. Ph. Bourdrel, Histoire desJuifs de France, op. cit.


4. Id.
5. “Em 1814, 750 contribuintes de Metz, obrigados a partir para outros
lugares da

França, ainda se encontravam inscritos nas “listas de devedores”. A


liquidação definitiva

só iria acontecer em 1860. Os herdeiros Cerf-Berr, por exemplo, ainda


deviam na Alsácia

60 mil libras, os Moch, 5.500.” Ph. Bourdrel, Histoire desJuifs de France, op.
cit.

6. Ruth F. Nescheles, The Abbé Grégoire, 1737-1781 — The Odissey of an


Egalitarian

(Greenwood Publishing Corporation, Westport, Conn., 1964).

6*. Referência à peça de teatro vaudeville de Eugène Labiche. (N.T.)

7. Cf. Léon Poliakov, Histoire de Vantisêmitisme (Le Seuil, Paris, 1991.)

8. Sob a direção de Pierre Birnbaum e Ira Katznelson, Paths of


Emancipation, Jews,

States and Citizcnship (Princcton University Press, Princcton, 1995).

9. O caso da proclamação de Napoleão levanta diversas questões.

— Para começar, deixando de lado as duas notícias do Moniteur, teria ela de


fato

acontecido? Podemos achar que sim com base em diversos documentos,


entre eles a

denúncia anónima da agitação dos messianistas judeus de Praga, em 1799,


provocada pelo
general Bonaparte, que “alimentava a superstição desses judeus”.

— O que aconteceu com o documento original e por que Bonaparte jamais


fez alusão

a ele? E possível que tenha sido destruído por Bonaparte na volta de sua
campanha, uma

vez que o apelo tinha sofrido um doloroso desmentido militar.

— A idéia de restaurar um Estado judeu na Palestina foi uma invenção de


Napoleão?

Não é o que parece: “Circulou na França, exatamente nessa época, um


apelo aos judeus

italianos, intitulado Lettres à nos Frères (Carta a nossos Irmãos), propondo


a restauração

dos judeus na Palestina”, escreve Paul Giniewski na mais completa e mais


concisa análise desse estranho episódio da história napoleônica ( VEtat ju if
de Napoléon, Histoire, dezembro de 1986).

10. Scinitcs and Antisemites (Weidenfeld & Nicolson, Ltd., Londres, 1986).

11.0 p roje to do Paes, com efeito, diz respeito apenas às instâncias da


legislação
280
HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

republicana, da mesma forma que o casamento civil; não é, pois, da


competência das

organizações religiosas, que não têm que se pronunciar a respeito do tema,


como apesar

disso o fizeram em 1998 a Conferência dos Bispos da França e o grande


rabino.

Fica aberto um debate decerto considerável a respeito da questão de saber


se a laici-

dade, que é o ponto de confluência de todas as confissões e que, no caso, foi


a força principal que abriu aos judeus as portas da legalidade civil
republicana, pode ser “intolerante”, ou então “rigorosa”. E se a intolerância
da intolerância e de todas as premissas de intolerância é de fato uma
intolerância.

12. A análise desse conceito, que evidentemente ultrapassa o âmbito destas


páginas,

foi magistralmente realizada no volume VIII da New Cambridge Modern


History, The

American and the French Revolution, 1763-Í799 (Cambridge University


Press, Cambridge,

1965). As antigas colónias inglesas da América tinham somente um modelo


para constituir sua nova identidade nacional, que era o da República que a
Revolução Francesa definira, e do qual o americano Tom Paine foi um dos
mais ardentes partidários.

13. Existiam no leste da França escolas hebraicas, em Metz Ettendorf,


Biesheim,
Westhoffen na Alsácia (Ph. Bourdrel, Histoire desjuifs eti France} op. cit.),
mas elas ministravam apenas um ensinamento religioso, e em hebreu,
estimulando evidentemente a insu-laridade linguística e a ignorância do
mundo.

14. Rebatizada de “etnologia”, a antropologia moderna lamentavelmente


não perdeu

pelo caminho, na primeira metade do século XX, os preconceitos já


denunciados por

Humboldt. Permito-me remeter o leitor à longa análise que dediquei, em


minha Histoire

générale de Dieu (Robert Laf ont, 1997), às aberrações racistas de alguns


dos mais eminentes etnólogos modernos (em meio aos quais,
paradoxalmente, há judeus). A extraordinária, perturbadora e racista
convicção europeu-centrista da superioridade da “raça branca”

sobre os povos “primitivos” merece ser confrontada aos massacres da ex-


Iugoslávia, que

nada deixam a dever aos dos hutos e tutsis.

15. Roger Lewin, Young Americans (The Nexv Scientist, 17 de outubro de


1998).

Acrescentemos que as tentativas de constituir uma colónia “ariana”, como o


fizeram no

Paraguai em 1883 alguns iluminados alemães analfabetos, liderados pela


virago megalómana, falsaria e mais tarde hitlerista — a deplorável
Elizabeth Nietzsche —, resultaram na criação de um agrupamento de
degenerados e cretinos: a seleção de indivíduos “arianos” e louros da Nueva
Germania do Rio Ayaragua-umi não produziu senão débeis intelectuais e
físicos, um século mais tarde. Falsificadora inveterada de textos de seu
irmão Frederico, a única coisa que Elizabeth conseguiu foi comprometer um
filósofo de gênio,

execrador de anti-semitas ainda por cima. V. Ben Macintyre, Forgotten


Fatherland

(Macmillan, Londres, 1992).

16. Wider die Juden: Ein Wort der Wamung na alie unsere christliche
Mitburger. Cf. Léon

Poliakov, Le mythe aryen: essai sur les sources du racisme et du nationalisme,


1971.

17. Até hoje não existem provas de que tenha alguma vez existido uma etnia
ária distinta, e menos ainda de que os ários sejam originários desta ou
daquela parte do mundo.
A LIBERDADE E OS TRÊS DESAFIOS

281

Tudo o que se pode dizer é que existiu um conjunto, de início restrito, de


populações ou

tribos que falavam a mesma língua, dita indo-ariana. Elas teriam, segundo
os conhecimento atuais, se concentrado nos altos platôs do Irã (dos quais
não foram, contudo, os primeiros ocupantes), no Afeganistão e na
Mesopotâmia e, de lá, se teriam espalhado, em

invasões sucessivas, na direção do norte da índia e, a oeste, no quarto


milénio antes de

nossa era, na direção da Europa. Aí, elas se teriam constituído em etnias


distintas nas

bacias do Dnieper e do Donetz no decorrer de uma parada.


Antropologicamente,

distinguiam-se por pele clara e olhos azuis, facilmente explicáveis por um


isolamento

genético e pela expressão de gens recessivos. Guerreiros, criadores de


cavalos pequenos e

rápidos, modelaram as sociedades européias dos milénios seguintes.


Adoradores de deuses masculinos, demonstravam um desprezo específico
pelas mulheres, ricos na tecnologia mais avançada da época, deram origem
à maior parte das populações que colonizaram a Europa ao longo do último
milénio.

Quanto aos teutônicos, Pitéas de Marselha (Messalia), o navegador um


tanto fabu-

lista, fez-lhes menção no terceiro milénio antes de nossa era; eles


constituíam uma tribo

céltica, do ramo dos helvécios, que só foi conhecida bem mais tarde pelos
romanos,

quando, em 103, expulsos da Espanha pelos celtiberos, foram engrossar os


grupos de

cimbros. Designá-los, como o fez Gobineau, como os únicos descendentes


dos “arianos”
é fazer antropologia de bazar: foram apenas seus tetranetos, da mesma
maneira que inumeráveis populações européias.
18.
Acrescentemos que esse racismo duradouro também se baseou na
superioridade

do homem sobre a mulher. Um certo Virey, médico eminente, afirmava no


século XDC

que “toda a constituição moral do sexo feminino deriva da fraqueza inata de


seus órgãos”

( em Lucien Boia, Entre l’ange et la bête de VAntiquité à nos jours, op. cit.).
10.
América, América!

AMÉRICA LATINA: AS PROMESSAS DAS COLÓNIAS E AS EXAÇÕES


DA INQUISIÇÃO

— A TOLERÂNCIA INGLESA — FRAQUEZA NUMÉRICA DOS


IMIGRANTES JUDEUS

— A INDUSTRIALIZAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS E O NASCIMENTO


DO ANTI-

SEMITISMO AMERICANO— WASPS, HEGEMONIA CRISTÃ E BRANCA E


RACISMO—

HENRY FORD E CHARLES LINDBERGH, ARAUTOS DO ANTI-


SEMITISMO AMERICA​

NO — O NUMERUS CLAUSUS CANADENSE — REVOLTAS DE 1917


EJUDEUS “DESA​

PARECIDOS” DA DITADURA MILITAR NA ARGENTINA

O Velho Mundo tomara-se sufocante. Foi então que os judeus atentaram para a
descoberta de seu cor eligionário Colombo em 1492: exatamente no mesmo ano
em que o rei e a rainha da Espanha, eles próprios

apavorados com as imprecações de um louco sanguinário que dirigia a

Muito Santa Inquisição da Igreja — Torquemada —, assinaram o decreto de


expulsão de todos os judeus que se recusassem a se converter. Os primeiros que
se fizeram ao largo para emigrar, na metade do século XVI,

foram os que estavam geograficamente mais próximos e que, portanto, já

tinham ouvido falar, nos portos da Europa e da África Ocidental, daquelas ter as
desmesuradas, de florestas gigantescas, montanhas tocando o céu e planícies
sem-fim habitadas por populações de pele acobreada;
eram os marranos, aqueles convertidos que a Inquisição estava sempre

pronta a perseguir a despeito de sua conversão, por suspeitar de que eles

só haviam abjurado sua fé sob a ameaça da fogueira e do crucifixo transformado


em gládio. Tinham esperança, queriam ter esperança de que a polícia dos cristãos
não iria fundar um capítulo além dos mares e que eles

poderiam então, naquelas regiões, reconquistar a dignidade.


AMÉRI CA. AMÉ RI CA!

283

Como era normal, foram primeiro para a América Latina, onde se

falava sua língua. A Espanha tentou proibir-lhes seus territórios de ultramar:


trabalho perdido. Para começar, suas vontades eram menos respeitadas lá do que
na metrópole; depois, o espírito empresarial dos judeus era um bem mais
precioso do que o benefício das imprecações satânicas

de Torquemada.

Contudo, as esperanças dos imigrantes “cristãos-novos”, ou seja,

judeus convertidos, conversos, ou marranos tomaram-se bem depressa

decepcionantes: a Inquisição sabia que as colónias da América do Sul

abrigavam muitos mar anos, notadamente portugueses. Ela decerto não

iria abandonar as ter as da coroa sem vigilância nem se deixar influenciar

pelo temor de contrariar seus interesses. É preciso, com efeito, lembrar

que a Inquisição costumava apropriar-se sem maiores escrúpulos dos

bens dos “culpados”, não tendo, pois, nenhuma razão para deixar a

Coroa lucrar sozinha com as riquezas coloniais. Em 1570, estabeleceu

seu primeiro tribunal em Lima; no ano seguinte, outro no México, na

Nova Espanha, e, em 1610, um terceiro em Cartagena, na atual

Colômbia. Esses tribunais evidentemente cobriam todo o território, que

podia ser imenso, já que a autoridade do tribunal de Lima estendia-se não

só ao Peru como também ao que corresponde à Argentina e ao Chile

atuais.

Apenas o Brasil, recentemente descoberto (1502), e cuja exploração

havia sido paradoxalmente confiada a um mar ano, Fernando de

Noronha, escapou durante alguns decénios (até 1591) às “visitas episcopais” dos
emissários da Inquisição. O primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de
Souza, para lá enviado em 1549, era provavelmente um

mar ano, como Noronha. Em 1577, a interdição espanhola de emigração

feita aos judeus foi revogada por haver caído em dessuetude. A coroa,

aliás, só teve com que se congratular: colonos natos, os judeus desenvolviam a


agricultura e o comércio em grande escala. É provável que sua prosperidade
pessoal e espírito empresarial os tivessem mais uma vez

prejudicado e, com certeza, não pela última vez. Eles possuíam a maior

parte das plantações açucareiras e dominavam o comércio de pedras pre​


284

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

ciosas e semipreciosas; era o bastante para produzir invejosos. Em 1654

foram expulsos do Brasil.


A Inquisição, no entretempo, agia contra os marranos: estavam se

dando bem demais e se tomando ricos demais ou influentes demais; as

denúncias não poderiam deixar de afluir. Em janeiro de 1639,81 pessoas

foram presas, das quais 63 condenadas à fogueira. As prisões de marranos

prosseguiram, e, como seria de esperar, eles começaram a deixar aquelas

terras onde o sucesso lhes estava valendo o ódio.1 Eles não partiram

todos, mas se espalharam por outras colónias da coroa, no Caribe e na

América do Sul.2

A história se repetia, apesar de algumas variações. Assim como os

muçulmanos tinham oferecido asilo aos judeus expulsos das ter as cristãs,
conscientes de estar agindo em seu próprio interesse, os governadores de outras
colónias européias apressaram-se em acolher os judeus nos territórios que era
preciso explorar, ar endar, cultivar, minerar, desenvolver comercialmente. Eram
essencialmente as colónias inglesas, pois a França dos Bourbons expulsara os
judeus de suas colónias em 1683.

Convertidos ou não, os judeus foram, pois, os primeiros a introduzir, em

St. Thomas, nas atuais ilhas Virgens e em Barbados, extensas plantações

de cana-de-açúcar. Um dos pais fundadores dos Estados Unidos,

Alexander Hamilton, que foi também o primeiro secretário do Tesouro,

nasceu em Nevis em 1757, de uma união natural do plantador e aristocrata inglês


James Hamilton com uma judia, Rachel Faucett Levine, tendo feito seus estudos
na Escola Judia de Charlestown. A Coroa da Inglater a, alarmada com a presença
exces iva de judeus no Caribe, acreditou uma vez mais ter que remediar a
situação e mandar expulsá-los não mais por razões religiosas, mas políticas; com
efeito, esses judeus exilados do Brasil eram legalmente espanhóis, e, como
Espanha e Inglater a estavam em guer a, os mar anos passavam a ser súditos
inimigos. Mas,

em 1671, o governador assegurou ao rei que não havia súditos mais úteis

do que os judeus e os holandeses, apresentando o seguinte argumento:

“Eles têm mercadorias e cor espondentes.”3 A cupidez dos gentios triunfou


sobre a religião. Para isso bastaria que nenhuma Muito Santa
AMÉRICA, AMÉRICA!

285

Inquisição se intrometesse. Os protestantes não tinham inquisição.

Sendo assim, os judeus ficaram.


Quantos eram? Algumas centenas no mínimo, cinco mil no máximo. As cifras da
época são moderadamente confiáveis. O número de judeus expulsos da Espanha
deve ter chegado a 150 mil, dos quais 50 mil

se teriam convertido para não se ar iscar na aventura; dos 100 mil restantes, 50
mil teriam ido procurar refúgio com os otomanos e os muçulmanos da África do
Norte, e o resto se dispersou pelos países da Europa, da Ásia e da África. Apenas
cinco mil teriam partido para as Américas.4 Esses

números parecem evidentemente muito pequenos, mas são confirmados

pelos dados disponíveis: em 1800, não se contavam em toda a América do

Norte mais do que três mil judeus (para uma população total presumida

de quatro milhões de almas).5 E, a título indicativo, “um recenseamento

efetuado em 1645 no Brasil holandês contava 1.450 judeus sobre um

total de 12.703 pessoas, das quais 2.899 brancas”, escreve Samy Katz.6 E

preciso lembrar que os perigos da traves ia do Atlântico nos tempos da

navegação a vela e o desconhecimento das condições de vida que os imigrantes


iriam encontrar em seus novos países eram bastante dissuasivos.

Os primórdios não foram nem um pouco promissores: quando, em

1654, o navio francês armado como corsário, o Sainte-Catherine, desembarcou


23 judeus expulsos do Brasil pelas autoridades espanholas no porto então
chamado Nieuw Amsterdam e na ilha de Manahatta (comprada em 1626 por
Peter Minuit dos índios canarsee por 26 dólares), o governador da colónia
calvinista, Peter Stuyvesant, protestou junto à Companhia Holandesa das índias
Ocidentais contra a chegada de representantes do que ele chamou de “es a raça
desleal”, cuja “religião abominável” venerava “os pés de Mammon”. Os colonos
da época — e de mais tarde, por sinal — eram racistas a toda prova, como
demonstrou seu

comportamento em relação aos índios “selvagens”. O racismo anti-


semita fora, pois, exportado como qualquer outro, e os judeus, destituídos de
todos os direitos e proibidos de construir uma sinagoga, muito mal foram
autorizados a permanecer. A situação não foi alterada senão

em 1664, quando a cidade passou às mãos dos ingleses e foi rebatizada

como New York. Os ingleses atribuíram aos judeus os mesmos direitos


286

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

dos da metrópole.7 — o que não significava, contudo, que gozassem dos

mesmos direitos que os cristãos.


O número de judeus imigrantes permaneceu ainda assim reduzido.

Eles se concentraram na costa leste: em Newport, onde se instalaram em

1677, na Filadélfia em 1745, em Charleston em 1750. Na véspera da

guerra da Independência, eram apenas dois mil; de 1775 a 1825 sua

população tinha dobrado, mas, a despeito das leis de encorajamento à

imigração de judeus votadas pelo parlamento inglês em 1740,8 ela teria

continuado negligenciável se as convulsões da política européia não os

tivessem expulsado em direção a paragens mais tolerantes. As reações

anti-semitas que se seguiram às der otas napoleônicas, descritas no capítulo


seguinte, provocaram, sobretudo nas novas gerações, o abandono acelerado do
velho continente. A partir de 1830, a emigração judia come​

çou a se expandir; em 1840, a população judia dos novos Estados Unidos

passou a 15.000 indivíduos e, 40 anos mais tarde, alcançou 250.000. No

final do século XIX, só da Alemanha, 120.000 judeus tinham emigrado

para os Estados Unidos.

Os primeiros imigrantes, vindos da Espanha, foram os sefardis;

diluíram-se rapidamente em meio à abundância de asquenazes vindos do

norte da Europa. Trabalhavam como comerciantes, banqueiros e agricultores; a


partir de 1848, seus filhos se tomaram representantes da burguesia abastada,
universitários, médicos, químicos, físicos, teólogos, rabinos também. Eles
chegavam cada vez mais jovens. Para começar, aceitavam

ofícios humildes ou penosos: mascates, vendedores de quinquilharias,

merceeiros, lenhadores, agricultores, pioneiros no oeste — o Far West.


Depois, adquiridas as bases, começaram a exercer seus talentos.

Comerciante no Middle Western 1852, Lazarus Straus tornou-se suficientemente


próspero para mandar buscar sua família, e seus filhos alcançaram notoriedade
nacional: o mais velho, Isidor, foi eleito para o Congresso, o do meio, Nathan,
tomou-se comissário da Saúde Pública do Estado de New York, e o mais novo,
Oscar Salomon, embaixador e um

dos personagens de maior influência na fundação da Sociedade das

Nações. E foram os três filantropos. Esse é apenas um dos exemplos: os

Oppenheim, Kahn, Warburg, Loeb, Kuhn, Sulzberger (fundador do New


AMÉRICA, AMÉRICA!

287

York Times), Guggenheim, Seligman, Gimbel e muitos outros constituíram uma


alta burguesia perfeitamente assimilada por uma população, ela mesma vinda em
grande parte de países estrangeiros. Fundaram também
estruturas sociais e financeiras que permitiram acolher as levas sucessivas

de imigrantes, em especial os que vinham da Alemanha. E que não foram

poucos! Fundado em 1901, o Comité de Assistência aos Judeus Alemães,

ou Hilfsverein der deutschen Juden, iria organizar a emigração de 200 mil

judeus dos países do leste para a América.9

A tolerância americana em relação aos judeus a partir do século XVI I

explica-se por quatro fatores. O primeiro foi a necessidade de mão-de-

obra que aquele imenso país tinha e que, na época da construção das

estradas de fer o do oeste, por exemplo, o obrigou a importar milhares de

chineses. Qualquer imigrante que possuísse alguma aptidão em não

importa qual domínio tinha certeza de encontrar emprego rapidamente.

De mais a mais, a maioria dos imigrantes judeus era jovem (“70% dos

emigrados provenientes de Wurtemberg, por exemplo, tinham menos de

31 anos”10) e particularmente qualificada.

A segunda razão é que, antes da Guer a de Independência a carência

de mão-de-obra coincidiu, no pensamento das autoridades inglesas, com

o desejo mais ou menos confessado de despachar para o além-Atlântico

seus “excedentes” de judeus — donde as leis inglesas de 1740, que autorizavam


também a naturalização dos judeus nas colónias.

O terceiro é que os emigrantes se reagrupavam entre si, nas cidades,

nas comunidades rurais, nos estados, onde reconstituíam microcosmos


de seus países de origem. Irlandeses, escoceses, holandeses, alemães, russos,
casavam-se entre si, construíam igrejas de seus ritos, mantinham seus padrões de
culturas e suas festas. Es as comunidades tinham, pois,

pouco contato entre si; os motivos para fricções eram reduzidos, e os

judeus não tiveram dificuldade de se estabelecer, de construir sinagogas,

cemitérios e de fundar comércios.

Quarta e última razão: as seitas religiosas proliferavam particularmente na


América, ter a virgem, não existindo comunidade suficientemente grande para
exercer fortes pressões sobre os judeus nem os obrigar a se converter ou para
persegui-los.
288

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Os judeus não foram evidentemente os únicos a emigrar para a

América. Em 1910, cinco milhões de alemães — cifra enorme, quase


inacreditável — deixaram sua pátria em direção a outras ter as, dos quais 90%
para a América; os 120.000 judeus alemães citados acima representavam, pois,
apenas 4,1% do total.1 Na aurora da era da marinha mercante, aquela gente toda
embarcava em Hamburgo ou Liverpool em navios com capacidade para mil pas
ageiros; e as linhas alemães ofereciam, diferentemente de suas concor entes
inglesas e alemães, refeições quentes para que os viajantes não tivessem que
levar sua própria comida, garantindo seus clientes contra “ a sujeira, a
licenciosidade” e o particular perigo representado pelos “irlandeses” que
embarcavam nos barcos ingleses. A

diferença entre os judeus e os outros era que os primeiros estavam fugindo da


discriminação e do anti-semitismo mais ou menos larvar que campeavam à
época na Europa, e os demais fugiam simplesmente da pobreza.

O mundo moderno, em consequência do êxodo dos judeus para a

América, deu uma guinada cuja importância parece mal avaliada ainda

hoje em dia, pela qual a América foi favorecida sozinha, em detrimento

do velho continente. Os judeus encontraram na América dois elementos

preciosos que a Europa jamais lhes ofereceu: por um lado, a tolerância,

ou seja, a possibilidade de explorar livre e plenamente os dons que

haviam desenvolvido na desgraça; por outro, o imenso potencial do próprio país.


A chegada dos judeus na América lembra um conto fantástico em que um gênio
comparável a Ariel tives e vindo despertar um gigante,

e os dois então se pusessem a realizar proezas. A contribuição de gerações

sucessivas de emigrados judeus para o desenvolvimento dos Estados

Unidos em todos os domínios, comercial, financeiro, económico, científico e


artístico é inestimável e inspirou obras numerosas, mas não é o tema destas
páginas. Ela só é mencionada por ser, em nível impossível de

ser estimado, o produto do anti-semitismo, de início cristão, depois

nacionalista.
Não se pode deixar de mencionar, nem que seja paralelamente, o

papel dos promotores judeus em uma das indústrias mais especificamente


americanas, o cinema. Foi em grande parte graças a homens como Samuel
Goldwyn, Wil iam N. Seligjesse Lasky, Louis B. Mayer, Adolph
AMÉRICA. AMÉRICA!

289

Zukor e outros que Hollywood se tornou um dos centros de ir adiação

cultural internacional.
O desenvolvimento do anti-semitismo americano pode, portanto,

causar surpresa em um tal contexto. Mas a América era receptiva às correntes


ideológicas prevalentes no resto do Ocidente, notadamente às idéias
pseudocientíficas sobre as raças. Repousando sobre o género de

considerações quantificáveis e normativas de que eram apreciadoras,

essas idéias deveriam seduzir as massas, tanto mais que essas tinham a

experiência “visual”, donde aparentemente ir efutável, dos índios e dos

negros. O papel nefasto da ciência para o racismo da época é com frequência


subestimado, e o peso do racismo e da intolerância é inúmeras vezes atribuído
em excesso à religião. Foram precisamente teorias “raciais” aberrantes e não
suas convicções religiosas que levaram Alexis Carrel a defender a eugenia,
assim como foram considerações pseudocientíficas e não religiosas que
induziram mais tarde uma democracia modelo como a Suécia a esterilizar à força
63.000 pessoas entre 1935 e

1975. Se as pessoas eram “legitimamente” racistas a respeito dos índios e

dos negros, elas tinham suficientes fundamentos, com a consciência

tranquila, para se mostrar racistas em relação aos judeus.

O anti-semitismo implantou-se com tanta facilidade, que a América

chegou até a demonstrar, em certos casos, um espírito reacionário marcante,


como no caso do escandaloso processo Scopes, em 1925. Thomas Scopes era
professor de Ciências em uma escola secundária de Dayton,

Tennessee. Foi condenado a 100 dólares de multa, soma elevada na época, por
haver ensinado a teoria da evolução das espécies, pois o evolucio-nismo era
proibido pelas leis do Estado do Tennessee por ser contrário ao

ensinamento da Bíblia. O processo colocou as autoridades judiciárias em

uma situação extremamente embaraçosa por, de um lado, não quererem


transgredir as opiniões dos fundamentalistas, segundo as quais a Bíblia

era a autoridade científica suprema e, de outro, por também não quererem se


cobrir de ridículo rejeitando a evolução das espécies e ainda mais negando o
direito à liberdade de opinião. O Caso Scopes, desgraçadamente, renovou-se no
Estado do Kansas em 1999.
290

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM1TISMO

Essas considerações teóricas provocaram efeitos particularmente

perversos antes, durante e depois da Primeira Guer a Mundial.


Efetivamente, a partir do final do século XIX, os Estados Unidos passaram da
idade agrícola para a idade industrial e da situação de país agrário para a de país
urbano. Essa dupla revolução provocou uma expansão caótica das cidades e
especialmente dos bair os operários, onde vivia a mão-de-obra das indústrias.
Ora, essa mão-de-obra era composta em sua

maior parte de imigrantes, entre os quais uma importante proporção de

judeus. Era preciso acabar com aqueles “guetos” insalubres que ofendiam a
sensibilidade da burguesia protestante, católica e branca.

Foi então que, em 1921, o Congresso decidiu organizar a imigração

fixando quotas, idéia louvável a não ser pelo fato de se basear em critérios

“raciais” e por adotar como objetivo manter “a preponderância racial do

grupo de base americano”; em outras palavras, era uma medida racista

inspirada no nacionalismo identitário. Seu objetivo real era manter a

hegemonia dos Wasps ou White Anglo-Saxon Protestants no país e conter a

imigração judia, entre outras. O que ela efetivamente fez.12

Os Estados Unidos estavam, pois, repudiando sua dívida em relação

aos judeus e, como se verá na terceira parte deste livro, iriam, segundo os

mesmos princípios, manifestar durante a Segunda Guerra Mundial uma

indiferença ou mesmo uma crueldade desconcertantes a respeito dos

judeus que fugiam do nazismo.13

Pois se desenvolvera então um anti-semitismo americano. As comunidades


européias que se haviam reconstituído nos Estados Unidos tinham trazido suas
atitudes culturais nas bagagens, da mesma maneira,

por sinal, que os Pais fundadores; e, no meio delas, o anti-semitismo,


meio religioso, meio político. Religioso, porque elas permaneciam fiéis a

suas religiões de origem; político, porque o nacionalismo americano se

vinha afirmando desde o fim da Guer a de Independência, se bem que

dificilmente pudesse ser comparado aos agres ivos nacionalismos europeus. Não
era um anti-semitismo declarado, mas sim um anti-semitismo não falado, do tipo
segregacionista. Era originário de duas grandes correntes: uma, do sudoeste, era
constituída de populistas ligados aos movimentos agrários que guardavam ainda
fresca na memória sua derrota na
AMÉRICA. AMÉRICA!

291

guer a civil, responsável pela emancipação dos negros e pela ruína dos

grandes latifundiários; a outra, do norte, era constituída pelos wasps,


notadamente a aristocracia dos brâmanes da costa leste (representantes da

elite do poder cuja existência os americanos não admitiam senão com

reticência, até recentemente).

As duas correntes eram politicamente conservadoras e, portanto,

hostis à comunidade judia, dentro da qual existia uma forte corrente sindicalista,
socialista e comunista, até mesmo anarquista. Mesmo que não pudessem ler o
iídiche, os americanos protestantes não poderiam ignorar

a imprensa nessa língua que contava, desde o final do século XIX, com

cerca de 50 títulos, entre os quais o diário Abend Blat , abertamente marxista, o


Di Arbeiter Tseitung, mais moderado, mesmo assim socialista, o

Forverts, progressista, o mensal Hamer, comunista, criado em 1924, e o D i

fraye Arbeter Shtime, anarquista. Mas também não lhes faltavam pessoas

capazes de informá-los e de traduzir para eles. Mesmo que o comércio e

a indústria americanos contassem com importantes patrões judeus, os

movimentos sucessivos de greves desencadeadas entre 1909 e 1914 pelos

sindicatos de trabalhadores predominantemente judeus, como o

International Ladies Garments Workers de New York, criado em 1900,

só poderiam alarmar os importantes patrões protestantes e o capitalismo

americano em geral.

Fortes tensões agitavam o clima social da primeira metade do século

nos Estados Unidos. Era a época dos furadores de greve e dos enfrenta-

mentos armados nos conflitos do trabalho. E também de uma justiça


mais inclinada a favorecer os poderes estabelecidos do que seus contesta-

dores, como demonstrou o caso Sacco e Vanzetti, cujo crime real

resumiu-se ao fato de serem imigrantes e anarquistas.14 A presença

manifesta de grupos judeus importantes dentro dos movimentos progressistas


provocou um endurecimento das atitudes da direita americana.

O segregacionismo, que proibia, por exemplo, aos judeus o acesso aos

clubes de Wasps, adquiriu um tom mais virulento e claramente anti-

semita. Assim, o magnata do automóvel Henry Ford lançou um hebdo-

madário, The Dearborn Independent, com tiragem de centenas de milhares

de exemplares e o objetivo de difundir as absurdas teses do Protocolo dos


292

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Sábios de Sião. O crash da bolsa de 1929 e o New Deal posto em ação por

Roosevelt em 1932 para remediar a formidável crise social causada por


esse crash alimentaram o anti-semitismo latente da direita. O crash foi

atribuído aos capitalistas judeus, e a coloração socialista do New Deal, que

em uma certa medida sujeitava os interesses privados ao interesse nacional, foi


lançado à conta dos numerosos judeus do entourage do presidente. Como havia
sido o caso na Alemanha sob o Império e depois durante a República de Weimar,
formara-se nos Estados Unidos um estereótipo

segundo o qual o judeu era socialista.

Era certo que o judeu se colocava — e sempre se colocou, em princípio — como


antípoda do nacionalismo identitário, que, por sinal, o rejeitava. Era igualmente
certo que, vítima hereditária de sociedades feudais, depois de nacionalismos,
cada vez que tinha oportunidade trabalhava por uma sociedade mais justa, donde
sua atração natural pelo socialismo. Mas também era absolutamente certo que o
judeu não era de nenhum modo inimigo do capitalismo; o espetacular sucesso de
judeus

como os que já foram aqui citados, nas finanças, na indústria ou no

comércio, são a prova. Em suma, o judeu não era nem de direita, nem de

esquerda por determinação genética, mas era evidentemente impossível,

para os americanos bem como para o resto do mundo, admitir que, retomando
uma fórmula conhecida, os judeus se recrutavam “entre os civis”.

A coesão, a civilidade, o respeito mútuo e a eficácia daquelas comunidades que


eles viam ter sucesso a partir de praticamente nada reforçavam o sentimento
obscuro de que os judeus tinham “traços” específicos, não

culturais, mas hereditários.15

O surgimento do fascismo na Itália e sobretudo do nacionalismo na

Alemanha reavivou o anti-semitismo americano. Que foi mantido até a

entrada dos Estados Unidos na guer a por uma parte das vastas comunidades
americanas de origem alemã, pela propaganda do Bund nazista, muito ativo, e,
além de Ford, por pessoas como Charles Lindberg, simpatizante reconhecido dos
nazistas,16 como o célebre padre católico Coughlin, virulento propagandista
nazista, como William Ward Ayer,

pastor da igreja batista do Calvário em Nova York, e muitos outros

oriundos das variadas direitas americanas. A difusão das informações


AMÉRICA. AMÉRICA!

293

sobre as perseguições não só de judeus, mas igualmente de cristãos pelos

nazistas na Europa obrigou os pró-nazistas a manifestar em surdina suas


diatribes. A entrada dos Estados Unidos na guer a, assim como a proibi​

ção do Bund nazista e a equiparação de qualquer proposição pró-nazista a

uma propaganda inimiga, acabou por amordaçá-los.

Mas mesmo assim o anti-semitismo, forçado a ir para a clandestinidade, persistiu


sob uma forma difusa, de que o princípio do numerus clau-

sus nas universidades, nos hospitais, nas administrações públicas e privadas foi a
expressão mais evidente. O medo surdo dos cristãos americanos de uma
“judeização” dos Estados Unidos é impossível de ser quantificado. Exigiria por
si só um estudo específico que ultrapassa de longe o âmbito destas páginas.
Pode-se entretanto verificar sua realidade no fato

de ter sido impossível para as comunidades judias americanas trazer os

judeus da Europa do leste, a despeito da morte certeira que os esperava

nos campos nazistas, mesmo sabendo-se que as quotas de imigração

eram insuficientes.17 Pode-se, pois, falar de um anti-semitismo “passivo”, mas


nem por isso menos mortífero. A evolução da situação dos judeus nos Estados
Unidos será exposta no último capítulo.

A história dos judeus no Canadá parece-se muito com a precedente.

A realeza francesa lhes havia proibido a instalação na Nova França, tendo

sido apenas quando os ingleses conquistaram o país, em 1759, que eles

puderam ir para lá. Seu número permaneceu ínfimo: eram apenas 107

em 1831, e sua população atual alcança cerca de 350.000.

Sua população era em princípio muito reduzida para suscitar reações

anti-semitas, mas a expansão demográfica excepcional dos judeus na primeira


década do séculoXX (400% entre 1901 e 1910), bem como o notável sucesso de
sua política comunitária em Montreal e em Toronto, alarmou o resto da
população. Sua ascendência não só sobre os primeiros imigrantes judeus, mas
também sobre as populações locais nas áreas de

educação, cultura, sindicalismo e política, suscitou um antagonismo cujo

efeito mais evidente foi a limitação, a partir de 1927, da imigração vinda

da Europa do leste (“com exceção da reunificação de famílias”, escreveu

Mikhael Elbaz18). Os efeitos posteriores desse anti-semitismo foram ainda mais


detestáveis do que nos Estados Unidos: “O sentimento antiju-
294

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

deu dentro da população impediu a entrada de judeus no Canadá. Assim,

de 1933 até 1945, enquanto os Estados Unidos e diversos países da


América Latina aceitaram cada um mais de 100.000 refugiados, o Canadá

acolheu menos do que 5.000, apesar das campanhas do Congresso judeu

canadense.”

O choque da descoberta dos campos nazistas no final da guer a, as

primeiras contagens de judeus que mor eram de forma atroz, e notada-

mente as provas de que os nazistas haviam igualmente perseguido cristãos


obtiveram o mesmo efeito internacional: a partir de então o anti-semitismo
declarado ou tácito passou a ofender a decência. Em 1962, o

governo canadense parou de selecionar os emigrados segundo critérios

“raciais”. É a política adotada atualmente.

Assim, com exceção do período da ocupação espanhola da América

do Sul, que prolongou as exações cristãs contra os judeus na Europa, as

Américas praticamente não conheceram as explosões de violência anti-

semita que davam ensejo a mortes de homens e espoliações. A exceção é

representada pelo episódio sangrento ocor ido na Argentina após a revolução


bolchevique de 1917. As elites argentinas, fortemente hostis ao bolchevismo,
incriminaram os judeus originários da Rússia, em seguida

a uma greve geral na qual se acreditou entrever inspirações comunistas.

Judeus foram maltratados e roubados “diante da polícia”.19 A Argentina,

como o Brasil, acolheu depois de 1945 um número muito grande de

judeus, e a importância de suas comunidades suscitou naturalmente o

antagonismo dos nazistas refugiados no primeiro desses dois países. O

anti-semitismo argentino perduraria por numerosos anos, a despeito das


tentativas de Perón de controlá-lo a partir de 1949: o sentimento antiju-

deu eclodiu na época da ditadura militar instaurada em 1976, e aproximadamente


20.000judeus figuram atualmente entre as “pessoas desaparecidas” sob os
regimes dos generais Viola e Gualtieri.20

O anti-semitismo das Américas constituiu-se, pois, em um pálido

reflexo do anti-semitismo europeu. Teria sido assim graças ao afastamento das


regiões devoradas pelo ódio que devastava a Europa naquelas mesmas épocas? É
plausível. Mas é mais provável que os colonos cristãos tenham se sentido de
alguma maneira solidários com os imigrantes
AMÉRICA. AMÉRICA!

295

judeus que, do norte ao sul, vieram compartilhar suas condições de vida

e participar da criação de um mundo novo. No pior dos casos, o anti-


semitismo importado dentro das bagagens dos cristãos traduziu-se por

uma indiferença culpada em relação aos refugiados que, na metade do

século XX, fugiam às perseguições nazistas. No melhor dos casos, ele se

manifestou mediante uma segregação mais ou menos confessada, cujas

consequências serão analisadas no final desta obra.


296

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Bibliografia e notas críticas

1. Samy Katz, Amérique Latine, em Esquisse de Thistoire du peuplejuif,


Dictionnaire
encyclopédique du judaisme, op. cit.

2. Os primeiros territórios em que eles parecem ter-se fixado foram a


Venezuela e o
Peru.
3. Cecil Roth,/l History of the Marranos (Jewish Publication Society of
America, New

York, 1932); Paul Johnson, História dos Judeus, op. cit.

4. Max I. Dim ontjews, God and History (Mentor Books, New York, 1994).

5. Nicholas de Lange, Atlas of the Jewish World, op. cit. Lange não esclarece
se esses

quatro milhões incluíam os índios, o que parece improvável. Com efeito,


entre as 147 tribos indígenas sobreviventes da América do Norte no século
XX, uma tribo como a dos chippewas contava na metade deste século com
32.000 indivíduos ÇLes Indiens des deux

Amériques, do autor, Tal andier, 1973). Ora, quando se conhece o


extraordinário declínio

demográfico dos índios da América do Norte desde a colonização (em 1853,


chegavam a

uns 100.000 índios apenas no Estado da Califórnia e em 1906, de acordo


com a Enciclopédia

Britânica, não restavam mais do que 19.000), pode-se razoavelmente estimar


a população

indígena da América do Norte por volta de 1800 em dois milhões de


indivíduos.

6. Amérique Latine, op. cit.

7. Joseph J. Blau e Saio W. Baron, The Jews in the United States: 1790-1840,
3o vol.

(Columbia University Press, New York, 1963).


8. Essas leis encorajavam a naturalização dos judeus nas colónias. Tinham
sido parcialmente inspiradas na necessidade das comunidades ativas nas
áreas comerciais e financeiras das colónias, mas também no desejo de ver os
judeus deixar o país.

9. Nachum T. Gidal, Les Juifs en Allemagne, op. c/r.; Joseph J. Blau e Saio
W. Baron,

The Jews in the United States: 1790-1840, op. cit.\ Paul Johnson, História dos
Judeus, op. cit.

10. Rachel Ertel, États-Unis, em Esquisse de 1’histoire du peuplejuif,


Dictionnaire

encyclopédique du judaisme, op. cit. Essa juventude dos imigrantes é um


traço encontrado nos

que chegaram no começo do século: 70% dos que chegaram entre 1900 e
1914 tinham 14
a 40 anos de idade.
11. Ruth Gay, The Jews of Germany— A Historical Portrait, op. cit.

12. O McCarren Walter Act, ou seja, a lei sobre imigração e naturalização


de 1952,

que reforçou o Johnson-Reed Act de 1924, só foi abolida em 1965.


AMÉRI CA. AMÉRI CA!

297

13. Robert W. Ross, So it Was True: the American Protestant Press and the
Persecution of

the Jews (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1980).


14. A agitação causada nos meios judiciários americanos, desde a prisão de
ambos em

1921 por um crime que acabou se tornando claro que fora cometido pelo
bando Morelli,

até o pedido de revisão dos processos em 1959, demonstra amplamente as


carências e a

parcialidade do procedimento que os enviou à morte em 1927.

15. Não posso evitar de mencionar experiências pessoais, em um campo que


tem a

ver tanto com a “psicologia das massas” quanto com a etnologia. Familiar
dos Estados

Unidos desde 1960, pude muitas vezes constatar em conversas que os não
judeus atribuem aos judeus “traços psicológicos” hereditários. Essa alusão
não é, entretanto, sempre pejorativa, é frequentemente também admirativa,
e alguns de meus interlocutores

lamentam não serem judeus o que, segundo crêem, lhes teria permitido se
dar melhor

nos negócios...

16. Durante um jantar oficial em Berlim, em 1938, o marechal Goering


ofereceu-

lhe uma medalha de ouro, a título de reconhecimento de seu valor para a


LuftwafFe, e

Lindbergh aceitou, tendo sido evidentemente criticado por isso logo em


seguida. (A.

Scott Berg, Lindbergh, Macmillan, New York, 1998).

17. Os Estados Unidos tinham, entre 1933 e 1941, admitido 150.000 judeus
da
Alemanha (Rachel Ertel, États-Unis, op. cit.)\ recusaram-se a passar desse
número, a despeito da certeza de que os que estavam sendo rejeitados
estariam ipsofacto condenados à morte.

18. Canada, em Esquisse de 1’histoire du peuple juif, Dictionnaire


encyclopédique du

judaisme, op. cit.

19. Nicholas de Lange, Atlas of the Jewish World, op. cit.

20. Id.
11.

A máquina infernal e as promessas

traídas do século XIX

A REVOLUÇÃO EMANCIPADORA— AS AMBIGÚIDADES DE


NAPOLEÃO — A QUES​
TÃO JUDIA PASSA PELA PRIMEIRA VEZ DO CAMPO RELIGIOSO
PARA O POLÍTICO—

AS REVOLTAS HEP! HEP! E OUTRAS NEFASTAS CONSEQÚÊNCIAS


DE WATERLOO

— A ASCENSÃO SOCIAL DOS JUDEUS APÓS A RESTAURAÇÃO E AS


APARÊNCIAS DE

TOLERÂNCIA EM RELAÇÃO AOS JUDEUS NA FRANÇA, NA


INGLATERRA E NA ALE​

MANHA, E OS EXEMPLOS DOS ROTHSCHILD, DOS IRMÃOS


PÉREIRE, DOS WORMS,

DE MONTEFIORE E DOS DEPUTADOS JUDEUS ALEMÃES — OS


TRÊS CASOS — O

PROBLEMA DO SOCIALISMO E A QUESTÃO JUDIA — O PRINCÍPIO


DE NAÇÃO E

SUAS SEQUELAS — O ANTI-SEMITISMO DE MARX E DE ENGELS —


O FALSO ENIG​

MA DOS JUDEUS DENUNCIADOS AO MESMO TEMPO PELA


DIREITA E PELA
ESQUERDA.
O efeito mais importante da Revolução para os judeus não só da

França, mas do mundo inteiro tinha sido a emancipação: a aquisição dos

direitos civis, o acesso à instrução primária, secundária e superior e a

liberdade de movimentos tinham aparentemente feito deles cidadãos

como os outros. A França servia de modelo para as outras nações, e mesmo


aquelas que não a imitavam eram pressionadas para fazê-lo pela
aristocracia quando essa era evoluída, assim como pelos intelectuais, sob
pena de parecerem retrógradas.

Ainda na França, os regimes que haviam sucedido o Império, a

Restauração, a Monarquia de Julho e depois a República— não se haviam

arriscado a retroceder e reconsiderar os direitos adquiridos pelos judeus.

Contudo, sua inserção oficial na nação não provocara de fato sua


assimilação, uma vez que eles próprios colocavam um limite lógico: a
liberdade
A M Á Q I J I N A I N F E R N A L E AS P R O M E S S A S T R A Í D A S

299

de permanecer judeus. A igualdade de direitos não conduzia à liberdade

de culto? Um episódio administrativo do Império é revelador da situação


dos judeus. Em 20 de julho de 1808, um dos quatro decretos imperiais a

respeito dos judeus, confirmado por circular, tomava obrigatório para

eles o estado civil, mas nestes termos significativos:

“Estamos decretando o que se segue: os súditos de nosso Império

que professam o culto hebraico e que, até o presente, não têm sobrenome e
nome fixos, serão obrigados a adotá-los dentro de um prazo de três meses a
partir da data da publicação do presente decreto, e a fazer a

declaração correspondente diante do oficial do estado civil da comuna

onde são domiciliados.” Artigo 3: “Não serão admitidos como sobrenome


nenhum nome saído do Antigo Testamento nem nenhum nome de
cidade...”1

A advertência era clara: nem o Império, nem a França do ultramar

desejavam que a comunidade judia da França fosse muito visível. O estado


civil era uma ocasião para assimilá-los à força, nem que fosse
superficialmente. Os judeus que tinham o mesmo nome há muito tempo
estavam autorizados a mantê-los, mas também estavam autorizados a
modificá-los, o que constituía um convite tácito. Ora, muitos preferiram

manter os nomes hebraicos, “adotando frequentemente seu prenome

como patrônimo”.2 De uma maneira ou de outra, recusavam-se, mais

uma vez, a renunciar a sua identidade. E se recusaram numerosas vezes

mais tarde. A propósito da estrela amarela, o judeu Robert Weltsch


escreveu na Jiidische Rundschau do dia 4 de abril de 1933 um artigo célebre:

“Usem com orgulho o estigma amarelo!” {Tragt ihn mit Stolz, dengelben

Fleck!)

A vontade de Napoleão de assimilação dos judeus baseava-se em um


princípio autoritário, típico de seu sentimento de superioridade política e

cultural, como demonstra o projeto imperial de lhes impor casamentos

mistos: passava a ser obrigatório realizar um casamento com um cristão

para cada dois casamentos entre judeus. Esse projeto chocou-se contudo

com a oposição irredutível do sinédrio dito “de Napoleão”.3 O anti-

semitismo tácito do imperador, um mestre em ambiguidades e que já há

muito tempo se esquecera de seu generoso projeto de reconquista da


300

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

Palestina, não tinha contudo inspiração religiosa, mas sim política. Os

judeus se davam conta disso? E os cristãos?


Essa diferença é considerável. Uma mudança de curso fora realizada

com a Revolução: a questão judia deslocara-se do campo religioso para o

político. Pela primeira vez a situação dos judeus europeus não dependia

mais direta nem unicamente das preferências ou intolerâncias das


autoridades cristãs. Aparentemente era um grande avanço para os judeus:
podia-se ao menos tratar a questão no âmbito da política, o que antes fora

impossível em relação à religião. Porém, a transição não se iria fazer em

um piscar de olhos. No intervalo, o anti-semitismo tradicional, enraizado há


séculos, tomava-se mais ameaçador, borbulhando como um caldeirão de
bruxa.

No norte e do outro lado do Reno, a República Batava emancipara

por sua vez os judeus. Os países germânicos sob dominação napoleônica,

o reino da Vestfália e a cidade hanseática de Hamburgo naturalmente

seguiram o exemplo. Na Prússia, em 11 de março de 1812, um édito real

concedeu a legalidade civil aos judeus, salvo no que concernia ao serviço

público, a respeito do qual o rei se reservava um direito de vigilância;

Frederico Guilherme III recusava-se, com efeito, a admitir na


administração pública os judeus decorados com a Cruz de Ferro, devido à
“baixeza original da moral judia”..

Waterloo fez soar o dobre de finados para as aquisições judias. O

humor europeu estava mudando: aquele imperador só tinha sido guindado


ao poder por causa da Revolução dos ímpios — culpa de Voltaire ou culpa
de Rousseau, de acordo com os gostos. Ao final do Congresso de

Viena, o mesmo Frederico Guilherme III proibiu aos judeus o acesso às

escolas e às universidades e despediu os professores judeus: não havia por


que encorajar “essa gente” a semear suas idéias sediciosas na juventude.

Napoleão havia dotado os Estados alemães de uma Constituição francesa e,


em 1809, também o ducado de Baden havia concedido a legalidade civil aos
judeus. Mas, ainda no final do Congresso de Viena, a constitui​

ção da federação dos Estados alemães decretou que os Estados dotados de

uma Constituição francesa poderiam revogar os direitos concedidos aos

judeus. Nem todos o fizeram, entretanto, e os judeus conseguiram recu-


A M ÁQUINA INFERNAL E AS PROMESSAS TRAÍDAS

301

perar os direitos que lhes tinham sido retirados. Mas a luta se anunciava

difícil.
As populações dos Estados alemães, habituadas a manter os judeus

sob uma sujeição ignóbil, levantaram-se contra a emancipação, e revoltas

explodiram em 1819. Em Wurzburg, o bairro judeu foi pilhado e judeus

foram mortos. Entretanto, fato novo, não era o populacho que exercia

essas exações nem o clero, mas sim os estudantes, arautos da intolerância

política, que gritavam “Hep! Hep! Hep!” acrónimo de Hyerosolyma Est

Perdita: “Jerusalém está perdida.” As revoltas Hep! Hep!, como iam ser

chamadas, iriam ter consequências psicológicas profundas sobre os

judeus alemães; elas lhes provocaram um sentimento desesperado de

que o anti-semitismo era decididamente irremediável e desencadearam

uma grande onda de emigração para a América, que não parou mais e que

amputou não só da Alemanha, mas também de outros países europeus,


uma parte de suas elites.
Nos territórios italianos, na Lombardia, no Vêneto, na Sardenha, os

novos direitos dos judeus também estavam sendo anulados. Os Estados

pontificais retiraram-lhes a liberdade de movimento. Na Rússia, contudo,


sua situação tinha melhorado consideravelmente desde a ascensão ao trono
do czar Alexandre I. Em 1802 constituiu-se um comité de estudos

sobre a questão judia e, em 1804, foi decretado que os judeus seriam

admitidos nas escolas russas, polonesas e alemães, e estabeleceu-se que as

escolas judias seriam mantidas. Em contrapartida, ficava proibido usar o

hebreu e o iídiche em todos os documentos de interesse dos judeus; apenas


quem falasse as línguas do país seria admitido em cargo público... até como
rabino. Contudo, os ucasses anteriores que proibiam aos judeus

morar em cidades foram mantidos, salvo em territórios designados pela

administração imperial: os judeus podiam comprar terras com a condi​

ção de que eles mesmos as explorassem e podiam igualmente instalar-se


em terrenos designados pelo governo.
A situação era razoavelmente tolerável. Mas, naturalmente, uma rea​

ção antinapoleônica, antiliberal e anti-semita desencadeou-se também na

Rússia após a queda do Império; tinha a ver com o estado de espírito da

Santa Aliança entre os monarcas da Prússia, da Áustria e da Rússia. A rea-


302

H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O

firmação da identidade cristã que, para além da ortodoxia, do


protestantismo e do catolicismo, rejeitava “o espírito francês”, sinónimo de
ateísmo, não era evidentemente de bom augúrio para os judeus. Os efeitos
dessa mudança de rumo não foram tão violentos na Rússia quanto na
Alsácia e nos Estados germânicos, mesmo que numerosas medidas imperiais
tivessem adquirido um caráter despótico, como a conscrição obrigatória dos
judeus decretada em 1827, durante o reinado de Nicolau I: tinha sido uma
maneira de obrigá-los ao batismo, uma vez que o exército só admitia
cristãos. Podia-se esperar com isso reduzir consideravelmente as
comunidades judias em uma ou duas gerações, ou até mesmo dissolvê-las
completamente em água benta. Essas comunidades alarmaram-se de ver sua
juventude masculina arrancada da própria cultura;4

elas emigraram para regiões isentadas da conscrição, como as províncias

da Polónia e da Bessarábia.5

O movimento reacionário russo adquiria contudo amplitude, e, em

1843, os judeus, considerados cada vez mais elementos estrangeiros,

foram expulsos de Kiev e proibidos de se instalar em uma zona de 50

verstas em tomo das cidades e dos vilarejos.6

Poder-se-ia deduzir que a transferência da questão judia do campo

religioso para o político não havia mudado muita coisa. Errado: a renova​

ção do anti-semitismo religioso havia sido apenas uma breve recaída; ele

estava sendo suplantado progressivamente por um anti-semitismo


ideológico que se tomava cada vez mais autónomo. Daquele momento em
diante os judeus passavam a ser detestados por ser diferentes, e não mais

por convicção cristã. Foi na França, e durante um governo apesar de tudo

reacionário, que a emancipação dos judeus recuperou o elã.

Mas isso ocorreu de maneira acessória. Em 1818, os judeus da

Alsácia foram postos na berlinda a propósito de uma questão financeira

que por pouco não se tomou económica. Um dos quatro decretos imperiais
de 1808, chamado pelos judeus de “decreto infame”, limitou severamente os
juros de usura e tomou possível anular empréstimos judeus aos cristãos.7
Reativados após os desastres de duas invasões, esses empréstimos estavam
ameaçando, com efeito, levar à ruína os cristãos. Os judeus protestaram, e,
meio século depois de Luís XVI, Luís XVIII ordenou uma
a m á q u i n a i n f e r n a l e as p r o m e s s a s t r a í d a s

303

nova consulta. As duas Câmaras rejeitaram a confirmação do decreto de


1808.8
Os judeus podiam reaver a confiança. O mundo estava menos amea​

çador do que antigamente. Alguns membros de suas comunidades alcan​

çaram respeitabilidade e poder tais, que os elevaram aos mais altos escalões
dos Estados europeus. Mayer Amschel Rothschild foi conselheiro do
príncipe-eleitor Guilherme I de Hesse; o barão Cari von Rothschild

foi membro do parlamento prussiano; Sir Moses Montefiore foi uma

personalidade no mundo inglês de negócios; Disraeli (convertido ao nascer)


foi chefe do Partido Conservador inglês. Em 1853, os judeus foram
autorizados a ter assento na Câmara dos Comuns, com Lionel de

Rothschild como primeiro deputado judeu. Na França, Achille Fould foi

ministro das Finanças de 1840 até 1852; os Worms destacaram-se no

transporte e no armamento marítimo, e os irmãos Péreire, que já estavam

estabelecidos com seu banco popular, o Crédit Mobilier, também se


destacaram na construção de estradas de ferro. E os judeus — Heine,
Meyerbeer, Offenbach... — brilharam com repercussão internacional

nas artes e nas letras. Com exceção do episódio islâmico, foi a primeira

vez desde a queda de Jerusalém que o judaísmo pôde expor à luz do dia

seus méritos sociais, económicos, intelectuais e artísticos.

Os judeus afluíram a Paris: eram 500 durante a Revolução, chegaram

a 25 mil em 1870. E se tomaram mais ousados, como se viu durante os

três casos célebres: o caso Isidore, o caso Thomas e o caso Mortara.

O caso Isidore foi desencadeado em 1839 por um rabino de Falsburg,


Lazare Isidore, que, instado a prestar juramento no tribunal, se recusou a

jurar sobre a Torá, more judaico, no interior da sinagoga mais próxima

como era o usual. Cidadão francês, pediu para jurar sobre Deus, como os

cristãos e os protestantes. Para o tribunal, evidentemente, o fato de um

judeu jurar sobre Deus não tinha nenhum valor, como se 'Yàhweh não

fosse Deus. Isidore foi levado à justiça. Escolheu um jovem advogado,

Adolphe Crémieux. De instância em instância e de recurso em recurso,

o caso durou sete anos. Em 3 de março de 1846, o tribunal deu razão a

Crémieux e a Isidore, e o juramento judeu foi abolido.

O caso Thomas, por sua vez, foi sangrento: em fevereiro de 1840,


304

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

padre Thomas, superior dos capuchinhos de Damasco, desapareceu ao

mesmo tempo que um de seus serviçais judeus. O mito do assassinato


ritual voltava à superfície: o judeu teria desejado oferecer a seus
correligionários um sacrifício de sangue cristão. Chérif Pacha, governador
do Egito e, portanto, da Síria, sob o reinado do quediva Mohamed Ali,
mandou prender judeus aleatoriamente. Alguns foram torturados. Eles
confessaram qualquer coisa, dando nomes de pessoas importantes que
rapidamente também foram presas. Revoltas antijudias explodiram em
Damasco, assim como em Beirute e em Esmima. O caso adquiriu
repercussão internacional. Crémieux, o advogado de Isidore, e Sir Moses
Montefiore (um dos precursores do sionismo, criador de estabelecimentos
agrícolas judeus e de instituições de caridade na Palestina) comoveram-se e
alertaram seus governos. O secretário de Estado do Foreign Office, Lord
Palmerston, prometeu intervir rapidamente, mas Thiers tratou de garantir
sua ascendência sobre o Egito. Crémieux e Montefiore organizaram uma
delegação e embarcaram para Alexandria. O quediva

acalmou os ânimos e mandou libertar os prisioneiros judeus, livrando-

os, ao mesmo tempo, das acusações que pesavam sobre eles.

O caso Mortara explodiu em 1858 quando a comunidade judia da

França tomou conhecimento de que um jovem judeu de Bolonha,

Mortara, cidadão dos Estados pontificais, fora batizado com a idade de

sete anos por uma criada cristã, e o Santo Ofício e, segundo se dizia, o

próprio Pio IX, imediatamente ordenaram que fosse retirado de sua

família.9 A partir dos dois casos precedentes a comunidade judia


internacional tomara consciência de sua nova força e a manifestava com
alarde.

Tanto mais que uma certa desjudaização estava em curso: não fora visto,

em 1842, o próprio filho do grande rabino Deutz e seu genro, Drach,

igualmente rabino, batizarem-se voluntariamente? Muitos judeus, cansados


da discriminação, terminavam, com efeito, convertendo-se. E o movimento
estendeu-se por toda a Europa: em 1823, Henri Heine
(judeu convertido) escreveu a seu amigo Immanuel Wolhwill:

“Nós não temos mais força para usar barba, jejuar, odiar e, por causa

desse ódio mesmo, para sobreviver. E o motivo de nossa Reforma. Os

que recebem de atores sua cultura e inspiração querem dar ao judaísmo


A M ÁQUINA INFERNAL E AS PROMESSAS TRAÍDAS

305

um novo palco e novos cenários, a fim de vestir mais rapidamente o


colarinho branco (de um ministro protestante) no lugar de uma barba (...)
Outros gostariam de um pouco de cristianismo evangélico debaixo de
uma insígnia judia e fabricam um talles [xale de prece] com a lã do cordeiro
de Deus, costuram uma túnica com as penas da pomba do Espírito Santo e
calças com o amor cristão. E vão terminar na bancarrota, e seus

descendentes se chamarão Deus, Cristo & Co. Com um pouco de sorte,

essa firma não durará muito tempo.”10

O poeta fazia alusão ao movimento reformista que estava começando e que,


em 1842, em Francfurt, iria fazer com que os Reformfreunde, reformistas
extremistas, chegassem a rejeitar a autoridade do Talmude, a

circuncisão, a espera do Messias e a promessa de retorno à Terra

Prometida. Na mesma época, Samuel Holheim declarou que os judeus

não eram nem uma nação, nem um povo, e propôs que se celebrasse o

sabá no domingo. Seria possível constituir uma vasta antologia de


proposições emanadas de judeus visando a banalizar o judaísmo. O perigo
tornou-se evidente para alguns deles: o conforto social corria o risco de

erodir o judaísmo mais seguramente do que a perseguição e o cristianismo,


e de absorvê-lo em poucas décadas. As comunidades judias alarmaram-se.

A intervenção judia no caso Mortara foi, pois, enérgica. Sir Moses

Montefiore dirigiu-se a Roma para solicitar a restituição do jovem

Mortara — em vão. O imperador da Áustria, Francisco José, intercedeu

junto ao papa — em vão. Napoleão III fez o mesmo — em vão. O


movimento católico estimulado por Louis Veuillot investiu contra os judeus.

Mortara entrou para as ordens, não saiu mais e morreu em 1940, prelado

de Sua Santidade em Liège. Mesmo que o anti-semitismo não estivesse

mais nas mãos do papado, esse fazia questão de manifestar o pouco poder

temporal que lhe restara, sempre pronto para resistir a imperadores, não
deixando escapar uma ou outra oportunidade de deitar as garras nos
judeus.
Contudo, ninguém pareceu prestar atenção ao fato: o cunho internacional
dos três episódios foi um prelúdio de outro maior, o caso Dreyfus, que iria
explodir alguns anos mais tarde. O anti-semitismo pretendeu
30 6

H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O

tirar a desforra graças a um escândalo destinado a desacreditar os judeus

diante da opinião pública. Como se verá no capítulo seguinte, a transição


do campo religioso para o político só serviu para tornar o anti-semitismo
mais perigoso.
A despeito do revés experimentado no caso Mortara e em inúmeros

outros, os judeus, confiantes nas instituições e nos governos, continuaram a


pleitear e a lutar por um acesso pleno aos direitos civis, que eles ainda não
tinham adquirido em toda a Europa, apesar de sua condição ter

melhorado muito. Eles se tornavam cada vez mais visíveis. Assim, na

ocasião das revoltas de 1848 em Berlim, os judeus de Dresden fizeram

um apelo direto à opinião pública alemã. Pode-se ler no Allgemeine

Zeitung desJudentums de 20 de março:

“As convulsões que começaram no oeste e ganharam toda a Europa

civilizada, exortando à liberdade e à independência, causam emoção em

nós também, cidadãos israelitas da Saxônia. Também tomamos parte, e

uma parte ativa, no combate pelo bem mais sagrado da humanidade, uma

vez que nos sentimos alemães e saxões com não menos entusiasmo do

que nossos irmãos cristãos. Tomamos parte na luta pacífica por meios

legais, da mesma maneira que inúmeros israelitas arriscaram suas vidas

em 1813 na libertação da Alemanha do jugo estrangeiro. Mas pleiteamos

nossos próprios direitos não só ao governo, mas a vocês também, nossos

irmãos cristãos, o povo saxão (...) Os cidadãos e os residentes israelitas da

Saxônia sentem-se iguais a todos os outros, por sua educação moral e

intelectual, iguais segundo os estatutos eternos da razão e da humanidade;


nós nos voltamos para vocês, irmãos cristãos, e esperamos que não mais
aceitem essas leis discriminatórias (...) que estabelecem diferenças

entre os direitos dos cidadãos.”11

Era querer demais: as revoltas anti-semitas de Francfurt tinham ocorrido


há apenas 30 anos, e a proibição de celebrar os ofícios judeus no templo
Beer em Berlim, por sua vez, datava de não mais de 25 anos.12

Ademais, no ano seguinte, em abril de 1849, quando uma delegação do

novo parlamento pangermânico de Francfurt, dirigido pelo judeu


convertido Eduard Simson e pelo não convertido JohannJacoby, deputado
de Kõnigsberg, foi oferecer ao rei Frederico Guilherme IV da Prússia a
coroa
A M Á Q J J I N A I N F E R N A L E AS P R O M E S S A S T R A Í D A S

307

dos Estados alemães unidos, ele a recusou com altivez. Talvez tenha sido

por razões ideológicas: um monarca de direito divino recusava-se a se


tornar um rei eleito como Louis-Philippe. Mas os termos que empregou
para explicar a recusa a seu embaixador em Londres, Cari Josias von

Bunsen, foram particularmente desproporcionais: “Um rei legítimo pela

graça de Deus não apanharia um objeto redondo daqueles, feito de lama e

argila.” O objeto redondo em questão era evidentemente a coroa oferecida


por Simson. No ano seguinte, a Constituição do Estado da Prússia renovou o
status de igualdade civil dos judeus do Estado, mas também a

declaração do pai do soberano: a Prússia era um Estado cristão, e os judeus

não podiam ter acesso a funções oficiais, ser professores de universidade

ou oficiais do exército.

Mesmo que tivessem feito a “sua” revolução de 1848, os Estados alemães


não tinham tido a de 1789, e os sucessos dos judeus, aliados a sua expansão
demográfica, começavam a despertar nos alemães velhos fermentos anti-
semitas, possivelmente atiçados pela vizinhança da Rússia.

Só na Prússia a comunidade judia alcançava 200.000 almas, o que a fazia

a comunidade mais poderosa dos Estados alemães. Em 1871, a população

judia de Berlim tinha sextuplicado desde 1837, chegando a alcançar

36.000 almas; na Baviera, a de Francfurt triplicara, e a de Munique


quintuplicara, com 3.000 almas; em Hanover, a de Hamburgo praticamente
dobrara, alcançando 13.000 almas, e a de Breslau quase triplicara, com

14.000. A Baviera contava com 50.000judeus.

Uma expansão tão rápida não poderia deixar de alarmar populações

hereditariamente habituadas a que os judeus fossem gente de segunda

classe, expressão corrente na Alemanha desse tempo: zweite Gesellschqft.

Claro, os judeus não representavam na maioria dos países europeus, a


França incluída, senão entre 1,25% e 1,5% da população, mas, de repente,
se tinham tornado socialmente “visíveis”, e tanto mais que a maioria deles
era comerciante. As intervenções internacionais de judeus eminentes como
Crémieux e Montefiore trouxeram de volta as hipóteses eternas de
“conspiração judia”, atribuídas evidentemente à “judaria internacional”. A
obsessão não terminou até hoje, como se sabe.
30 8

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

Tudo parecia finalmente estar entrando em ordem. Ilusão.

Uma formidável mecânica estava sendo posta em marcha, que iria se


revelar bem mais perigosa para os judeus da Europa do que a Inquisição

havia sido: o conflito entre as doutrinas socioeconômicas que iria resultar

na cisão entre as esquerdas e a direitas — e revelar o verdadeiro deus ex

machina: o princípio de nação, assim como sua sequela, o nacionalismo.

De início favoráveis aos judeus, as idéias de justiça social, que a

Revolução Francesa havia liberado tal qual o gênio da lâmpada de

Aladim, tinham voltado para a mesma lâmpada com o Império e, mais

ainda, após o fracasso da epopéia napoleônica, com a Restauração e o


fracasso dos Cem Dias. A mesma coisa acontecera no resto da Europa
depois do Congresso de Viena e da constituição da Santa Aliança. Já
firmemente estabelecida em suas posições, a reação encrespava-se. E ainda
mais quando a revolução industrial abalou seus alicerces e o socialismo se

tomou ameaçador.

Efetivamente, a revolução industrial havia criado na Europa, no início do


século XIX, um vasto proletariado urbano que vivia em uma miséria abjeta.
A crítica social fora retomada com novo ímpeto, para completar a obra
empreendida pela Revolução de 1789.0judaísmo viu-se levado a um debate
ao qual, de imediato, se considerou estranho, mas no qual acabou
engolfando-se mesmo sem querer. Esse debate resumia-se

ao seguinte não dito: os judeus eram em sua maior parte desfavorecidos;

era preciso ajudá-los? De início, na verdade, os judeus não eram a questão,


mas sim os pobres, entidade quase abstrata que realmente só era vista
surgindo nas ruas em dias de revolta, em um minuto mandada de volta a

seus antros pela polícia ou pelo exército.

Existiam, é claro, teóricos, na França, na Alemanha, na Inglaterra, na

Rússia: Fourier, Saint-Simon, Louis Blanc, Proudhon, Blanqui, Cabet,


Fichte, os hegelianos de esquerda como Feuerbach, Bauer, Hess, Owen,

Bakunin... Animados pela mesma convicção de que era preciso instaurar

uma maior justiça social, cada um propunha um modelo diferente.

Sempre permanecendo no domínio das idéias. Mas a primeira consciência


que realmente informou a opinião pública sobre a miséria do proleta-
A M Á Q U I N A I N F E R N A L E AS P R O M E S S A S T R A Í D A S

3 09

nado foi, na Inglaterra, Charles Dickens com seu romance Oliver Twist,

publicado em 1837-1838 (no qual se encontra, por sinal, uma


impressionante caricatura de judeu, Fagin). O romance foi, na época, uma
verdadeira ferramenta de informação e o equivalente da televisão neste
final do século XX. A obra conheceu sucesso retumbante e suscitou
consterna​

ção: levou ao conhecimento da aristocracia e da burguesia o fato de que

os subúrbios das grandes cidades eram povoados por uma fauna subuma-

na, constituindo um estigma insuportável sobre a face de uma sociedade

que se pretendia e se acreditava cristã. O sentimento de que “era preciso

fazer alguma coisa” tomou-se imperioso, talvez por efeito da compaixão

social, mais seguramente pelo temor da ameaça que aquelas massas


desfavorecidas representavam. Situação que se repetiria nas grandes
cidades dos Estados Unidos três ou quatro décadas mais tarde, quando as
elites

descobriram com indignação os bairros insalubres onde apodrecia um

proletariado que constituía a mão-de-obra de suas indústrias e comércios


florescentes.
O mais importante para nosso objetivo é que o debate sobre a injustiça
social iria alargar-se e que a sensibilidade socialista acabara de nascer.

Os judeus, cujos ideais de justiça eram ainda mais vivos pelo fato de

terem eles própnos sofrido tanto com a injustiça, não se poderiam abster

de participar desse debate. Até então, os pobres tinham sido uma questão

de moral, de damas caridosas e suas boas obras. Tomava-se, porém, uma

questão para os políticos e para os teóricos, incluídos os judeus.

Sempre na Inglaterra, que de toda maneira não foi o único país onde

essa consciência social nova estava aparecendo, pensou-se em remediar a

situação dos pobres por meio das célebres Poor Laws, as “Leis para os

pobres”, de 1834. Entre outras coisas, as Poor Laws instituíram as work-

houses ou “casas de trabalho”, mais corretamente qualificadas de “campos

de trabalho”, cujos pensionistas tinham que vestir um uniforme especial,

eram separados de suas famílias e de seu meio e, após sua morte, seus

cadáveres podiam ser dissecados. Como se vê, existem invenções sinistras


que são mais antigas do que se suspeita.

As workhouses representaram a primeira “solução para a pobreza”,

mas principalmente a maneira autoritária como o capitalismo a ela reagiu.


310

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

O efeito desse gueto social foi deplorável além de vergonhoso, e foi

sobretudo corrosivo para as boas consciências. Disraeli condenou as work-


houses em um discurso eleitoral de 1837: “Eu penso que essa lei (as Poor

Laws) desonrou nosso país mais do que qualquer outra que tenha sido

inscrita em nossos anais. Simultaneamente crime moral e enormidade

política, ela proclama em face do mundo que na Inglaterra a pobreza é

um crime.”13

Mas as Poor Laws lançaram igualmente a idéia do Estado-Provi-

dência, ou seja, da intervenção do Estado a favor dos pobres, que iria


suscitar debates de surdos até este final do século XX. Para uns, o Estado-
Providência mantinha os pobres na inação e os infantilizava; para outros,

era a bengala sem a qual era impossível reabilitar os paralíticos. De forma

incidental, é possível julgar o descalabro moral da cristandade da época a

partir desta opinião de Thomas Malthus (1766-1834), expressa no final

do século XVIII: “Um homem que nasceu em um mundo que já tem

donos, se não puder obter dos pais a subsistência de que tem direito a

lhes pedir, e se a sociedade não tem necessidade de seu trabalho, não tem

nenhum direito de reclamar a mínima partícula de alimento e é, de fato,

demais no banquete da natureza.”14

Em princípio os judeus nada tinham a ver com a cisão que se efetuava

inexoravelmente entre o capitalismo e as consciências críticas de esquerda.

Tratava-se de um debate que eles não haviam desencadeado e no qual não

tinham posição fundamental, dado que, a seus próprios olhos, em suas

comunidades assim como no resto da sociedade européia, havia ricos e


pobres. Mas, uma vez que fora aberto, eles não se poderiam abster de
participar. Os judeus da França, da Inglaterra e sobretudo da Alemanha
mili-taram nas falanges de intelectuais que pleitearam a justiça social. Não
tinha

sido ao triunfo dessas idéias de justiça, por ocasião da Revolução de 1789,

que eles deviam o começo de sua emancipação? Candidamente


participaram, pois, dos movimentos sociais: em todos os foros da revolução
— reuniões, manifestações ou barricadas — em Paris, Berlim e Viena, eles
acorreram em grande número, em socorro da liberdade.

Era o erro que eles iriam repetir durante a Primeira Guerra Mundial.

Deram-se por integrados depressa demais.


A M Á Q U I N A I N F E R N A L E AS P R O M E S S A S T R A Í D A S

311

Na Alemanha, em Berlim, Leopold Zunz rememorou em termos

ardentes as vítimas judias da revolução de março, expressando o duplo


sentimento de pertencer ao mesmo tempo ao povo alemão e ao povo

judeu. A ilusão podia basear-se em progressos inimagináveis um século

antes: pois o parlamento de Francfurt contava com inúmeros judeus,

incluindo o vice-presidente da primeira Assembléia Nacional, Gabriel

Riesser. O fracasso da revolução de 1848, que foi da mesma maneira o

das aspirações judias, deveria endurecer as posições tanto em um sentido

quanto no outro. Na Prússia, por exemplo, a monarquia editou uma

Constituição na qual o cristianismo foi uma vez mais designado como

religião do Estado. A hostilidade latente a respeito dos judeus continuava

viva como sempre, como demonstrou em 1850 o precursor do sionismo,

presidente da comunidade judia de Colónia, Moses Hess: “Por causa do

ódio que é nutrido contra ele, o judeu alemão esforça-se sem parar para

se desfazer de qualquer coisa que o identifique como tal...”15

Falar de socialismo trazia também de volta o seguinte problema: seria,

pois, preciso que as classes ricas reabilitassem os judeus? E por que fazê-

lo? Essa gente era toda estrangeira. O socialismo assumiu dessa forma

uma tónica judia, e os judeus, uma tónica socialista. Judeus e socialistas

adquiriram juntos aos olhos das classes dirigentes as feições de inimigos

da ordem estabelecida, de reivindicadores que iriam ocasionar a cobran​

ça de impostos suplementares. No entretempo, a justiça social estava

sendo esquecida; ela não poderia englobar os judeus, uma vez que eles
não faziam verdadeiramente parte da sociedade.

A hostilidade antijudia adquiriu, contudo, uma dimensão internacional


devido à difusão crescente da imprensa e às trocas também crescentes entre
os movimentos e os interesses políticos. Para a opinião reacionária

européia, os judeus haviam participado das tentativas de derrubada da

ordem social para poder impor-se, enquanto, para os meios socialistas, os

judeus jogavam um jogo duplo, pois contavam em suas fileiras com pluto-

cratas que, na realidade, estavam procurando segurar as rédeas do poder.

Em Paris, não se havia visto James de Rothschild doar com uma das mãos

50 mil francos-ouro para as vítimas das barricadas de 1848? E com a outra

doar 250 mil francos-ouro ao ministro do Interior, Ledru-Rollin, para

“fins patrióticos”? Não fora ele que, em Viena, permitira a Mettemich


312

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

fugir da cidade incendiada pelas rebeliões? Não fora por causa do


socialismo, inimigo do progresso ao pretender empobrecer os ricos
industriais, que os judeus tinham se imposto no cenário político da
Alemanha? Não
tinham sido representados por Ferdinand Lassalle, Eduard Lasker,

Leopold Sonnemann, Ludwig Bamberger? Após a derrota de 1870, também


se passou a dizer que os judeus se fartavam do sangue da França e faziam
dinheiro à custa da desgraça: a garantia dos cinco bilhões exigidos

pela Alemanha, cuja maior parte fora assegurada por Alphonse de

Rothschild e seu banco, trouxera aos Rothschild uma comissão de cinco

milhões e 300 mil francos da época.16

As divergências entre as diversas nuanças de socialismo e de capitalismo


alargaram-se até abrir primeiro um fosso, depois um vale, e se tornaram
eternas com a publicação do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich
Engels, em dezembro de 1847. O quiproquó adquiriu igualmente
proporções monstruosas. Karl Marx, judeu convertido e racista convicto,17
há vários anos defendia posições de um anti-semitismo virulento em seus
artigos na Rheinische Zeitung. No primeiro deles, datado de 1842, intitulado
Sobre a questão judia, ele escreveu que “a traição é o verdadeiro Deus dos
judeus (...) O dinheiro é o Deus ciumento de Israel diante do qual nenhum
outro pode existir”.18 O que não o impediu de

pregar o apocalipse e a instauração iminente do reinado da justiça


(operária), à maneira de um profeta, mas de um profeta sem Deus: ele
anunciou a revolução nove vezes, mas não acertou nenhuma delas.19 Essas
vituperações serviram de pretexto para reforçar o velho anti-semitismo

dos eslavos e adquiriram um tom doutrinal após a Revolução de 1917:

Marx e Engels o disseram; portanto, era verdade. Foi assim que o anti-

semitismo se enraizou no Partido Comunista russo e lá ficou até hoje,

como pôde ser verificado em novembro de 1993.20

A direita e a esquerda eram, pois, ambas, hostis aos judeus por razões

antinômicas. Mas eram semelhantes às máscaras gregas que eram


penduradas acima dos palcos dos teatros gregos, uma hilariante, outra
desolada: eram os símbolos de uma tragédia chamada Nação. O conflito
latente

iria exacerbar-se nas décadas seguintes e adquirir cunho cada vez mais

assassino e não só em relação aos judeus.


A M Á Q J J I N A I N F E R N A L E AS P R O M E S S A S T R A Í D A S

313

Bibliografia e notas críticas

1. Citado por Ph. Bourdrel, Histoire des juifs de France, op. cit.
2.1d.

3. Depois de uma reunião de notáveis, em 26 de julho de 1806, quando se


tratou das

leis matrimoniais judias, da atitude dos judeus em relação ao Estado, da


autoridade de

suas instituições autónomas, da usura, dos comércios e das profissões,


Napoleão reuniu

o “Grande Sinédrio”, dito “Sinédrio de Napoleão”, com uma pompa toda


napoleônica (a

administração decidira até novos trajes para os rabinos, transformados


tacitamente em

funcionários do Império) em 9 de fevereiro de 1807. Efetivamente, nessa


ocasião, o

Império impôs sua vontade aos judeus, revogando as disposições religiosas e


políticas que

tinham regido “o povo de Israel na Palestina no tempo em que ele tinha suas
leis, seus

pontífices, seus magistrados”. Ao sinédrio só restou inclinar-se, salvo no que


tocava aos

casamentos mistos. De fato, o chefe do “Sinédrio de Napoleão”, Joseph


David

Sintzheim, estava seguindo o conselho daquele que era então considerado o


chefe do

judaísmo ortodoxo europeu, Moisés Sofer, de Presburg, adversário


declarado do “assimi-

lacionismo”.
Napoleão estava, dessa maneira, impedindo a integração iniciada pela
Revolução.

Mesmo assim dotou as comunidades judias de uma estrutura jurídica que


existe até hoje,

e que provou sua utilidade: o consistório. C f Sanhédrin de Napoléon,


Dictionnaire ency-

clopédique du judaisme, op. cit. O consistório foi a primeira organização legal


a harmonizar

as atividades dos judeus com as leis francesas. Era ele, por exemplo, que
liberava uma das

duas patentes a qualquer j udeu que desejasse exercei um comércio.

4. “Arrancar” é bem o termo, pois a administração recorria à ajuda


daqueles que

eram chamados de caçadores de crianças ou khappers, para os quais se


fixavam quotas de

conscritos a serem recrutados, e eles literalmente capturavam os jovens


judeus para

enviá-los ao exército.

5. As crianças inscritas nas escolas públicas eram isentas da conscrição, o


que provocou uma onda maciça de inscrições nas escolas governamentais (S.
A.. Goldberg e A..

Derczansky, Monde achkénaze, em Dictionnaire encyclopédique du judaisme,


op. cit.)

6. A Haskalah, movimento judeu dito “das Luzes”, que começara no século


XVIII e

que postulava a evolução do judaísmo no sentido de uma adaptação ao


mundo contemporâneo, influenciou a administração czarista, persuadindo-a
de que os judeus esclarecidos representavam uma utilidade para o país. A
tradução dessa influência, denegrida pelos tradicionalistas ortodoxos, foi
que Nicolau I fez uma distinção entre os judeus

“úteis” — banqueiros, artesãos e agricultores — e os “supérfluos”. Foi um


judeu “útil”,

Simon Poliakov, que dirigiu a construção da rede ferroviária russa


utilizando a mão-de-
obra judia local.
314

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

7. A renovação do édito napoleônico, sempre em vigor, fora proposta pelo


marquês

de Lattier, representante do departamento de Drôme, levantando um ponto


constitucional que estava na ordem do dia: significava que a realeza se
considerava virtual e juridicamente solidária com o Império.

8. A prática, todavia, não desapareceu do mundo civilizado, uma vez que em


1998

ficou-se sabendo que milhares de jovens índios do Canadá foram levados à


força entre

1950 e 1980, colocados em escolas cristãs onde só se falavam inglês e


francês... e submetidos a “sevícias sexuais”, como se diz pudicamente. (Alain
Gerbier, “Le martyre oublié des Amérindiens”, Libération, 9 de novembro
de 1998).

9. Heinrich Heine, Briefe (Friedrich Hirth, Mayence 1950).

10. Os relatos desses casos basearam-se na obra de Ph. Bourdrel, Histoire


des juifs de

France, op. cit.

11. Allgemeine Zeitung des Judentums, 20 de março de 1848, em Ruth Gay


>Jews o f

Germany— A Historical Portrait (Yale University Press, New Haven and


London, 1992).

12. O banqueiro Jacob Herz Beer, pai de Giacomo Meyerbeer, abria sua
vasta residência em Berlim às congregações do sabá, chegando a reunir
umas 400 pessoas e atraindo judeus que há 20 anos tinham estado isolados
do judaísmo. Essas reuniões duraram de 1814 a 1823, até o dia em que a
polícia, por conta de um decreto real inopinado, lhes pôs
fim.
13. Em Tíie Tdea ofPoverty, citado por Albert O. Hirschmann. Deuxsiècles de
rhétorique

réactionnaire (Fayard, 1991).

14. Essai sur le príncipe de population, 1798.

15. Ronie etJérusalem (Éd. du Lérot, Paris, 1981).

16. Ph. Bourdrel, Histoire des juifs de France, op. cit.

17. Apesar de ter nascido em uma família que contava com eruditos e
rabinos, Karl

Marx foi batizado com a idade de seis anos, atendendo à vontade do pai.
Suas relações de

início tensas e depois declaradamente cheias de aversão em relação à mãe


conduziram-no

a um anti-semitismo resoluto (Nachum T. Gidal, Les juifs enAllemagne, op.


cit.). Sem falar

de seu pai, a história do jovem Marx é um caso exemplar do ódio de si que


pode ser insuflado pelo anti-semitismo em temperamentos mais fracos, e
que é uma consequência desse racismo.

18. Marx nunca mais iria se desvencilhar de um anti-semitismo insensato,


mesmo

em relação a amigos que lhe ofereceram hospitalidade, como o socialista


berlinense

Ferdinand Lassalle, a quem tratou de “judeuzinho” e de “negro judeu”,


alegando que ele

descendia de um dos negros que haviam seguido Moisés durante o Êxodo.


Pois Marx
A M Á Q U I N A I N F E R N A L E AS P R O M E S S A S T R A Í D A S

315

também era racista, por vezes do tipo dissimulado. Amenidades que lhe
valeram ter sido

por sua vez chamado de “judeu envergonhado” por outros revolucionários


como Diiring

e Bakunin. Nem um pouco perturbado pela contradição, costumava


aconselhar sua filha,

conhecida por “Pussy”, a ir assistir a conferências sobre os profetas judeus...

19. Em 1849, 1850, 1851, 1852, “entre novembro de 1852 e fevereiro de


1853”

(notável precisão), em 1854, em 1857, em 1858 e em 1859. Cf. Paul Johnson,


História dos

Judeus, op. cit.

20. No dia 3 de outubro de 1993, o general comunista russo Albert


Makachov declarou publicamente em Moscou, na ocasião da rebelião
militar: “Se eu morrer, serão despachados pelo menos 10 jidi (judeus) para
o outro mundo. Há uma lista!” Um mês mais tarde, eclodiu uma crise
parlamentar por meio da qual se descobriu a sobrevivência na

Rússia e na Sibéria de um vivo anti-semitismo. Observou-se que o líder dos


neobolche-

viques, Vladimir Jirinovski, de quem se conhecem os discursos anti-semitas


inflamados,

era ele próprio de origem judia, assim como o primeiro ministro Evgueni
Primakov.

(Véronique Soulé, “L’ antisémitisme russe à voix hautes”, Libération, 11 de


novembro de

1998).
III.

O ANTI-SEMITISMO NACIONALISTA
1.

A explosão francesa

da Belle Époque

O CASO DREYFUS E AS AMEAÇAS DE GUERRA CIVIL EM 1898— A


ILUSÃO DA “BEL​
LE ÉPOQUE" — PSICOSE FRANCESA E REALIDADE DA AMEAÇA
ALEMÃ — A IGREJA

SITIADA E O CASO DAS CONGREGAÇÕES— A ALIANÇA DA


IGREJA E DAS DIREITAS

— O CONCEITO DE “NAÇÃO”. MÁSCARA DO DEMO E SUA


VIRULÊNCIA— O ANTI-

SEMITISMO DA DIREITA NO ESPELHO DE MAURRAS — O ANTI-


SEMITISMO AMBÍ​

GUO DA ESQUERDA NO ESPELHO DEJAURÈS.

As memórias são frequentemente curtas. Quarenta e dois anos antes

da concentração de judeus na França no Vél’d’Hiv’, em 16 de janeiro de

1898, em plena Belle Époque, cerca de 20.000 pessoas desfilaram em Paris,

da Praça Vendôme a Montmartre, gritando “Morte aos judeus!”. A polícia

barrou-lhes o acesso ao Boulevard Haussmann, onde morava a família

do capitão Dreyfus, e à Rue de Bruxelles, onde morava Émile Zola. O

motivo era, adivinha-se, a publicação do J ’accuse! (Eu acuso), de autoria

deste último, publicado três dias antes no jornal LAurore. O panfleto de

Zola, com efeito, foi espontaneamente interpretado como uma defesa do

judaísmo por intermédio do judeu Dreyfus, que um complô tortuoso do

exército conseguira inculpar de alta traição.

Paris inteira foi tomada por manifestantes!1 Eles não se contentavam

com gritarias: quebravam janelas e vitrinas de lojistas judeus ou suspeitos

de sê-lo. Todas as classes sociais estavam representadas na rua, do visconde


ao entregador de pão. E até os colegiais e ginasianos do Louis-le-Grand, do
Henri-IV, do Rollin, que, sobre judeus, sabiam quando muito

o que lhes diziam seus pais. A manifestação foi retomada na tarde do dia
320

H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O

seguinte. Um encontro organizado no Tivoli-Hall reuniu a fina flor, mas

também verdureiros, nacionalistas e anti-semitas. E não foi um ajuntamento


de uns poucos desatinados: três mil pessoas no lado de dentro, três mil no
lado de fora, espalhadas da Place de la République até o cais

de Valmy. Vieram em resposta à convocação de Edouard Drumont,

Henri de Rochefort, Maurice Barrès, Gustave Cuneo d’Omano, Albert

de Mun, de boulangistas de todas as nuanças, de bonapartistas e de


republicanos, todos comungando no anti-semitismo.2 A convocação estivera
afixada em quase todas as paredes de Paris.

Não foi o texto de Zola no L! Aurore3 que fez germinar em toda aquela gente
o anti-semitismo, tal qual uma gripe. Ele estava sendo incubado de longa
data. Desde a derrota de 1870 e a Comuna.

Por certo, o artigo de Zola provocou a rediscussão do processo e

sobretudo trouxe à cena Esterhazy, que acabara de ser acusado de ser o

verdadeiro traidor, e o coronel Henry, dois personagens-chave da incul-

pação de Dreyfus.4 Graças a informações clandestinas divulgadas pela

imprensa, a opinião pública anti-semita, massa irracional e tosca de espírito,


percebeu confusamente que Esterhasy e Henry eram personagens
escabrosos, cuja visão distorcida tinha servido para estimativas
simultaneamente infundadas e sórdidas por parte do exército. Mas se as
aceitassem e se Dreyfus fosse inocentado, os anti-semitas corriam o risco de
perder uma das maiores batalhas, talvez a maior delas, da guerra aos

judeus, e o exército ficaria desacreditado. De fato, quando Henry foi

condenado seis meses mais tarde, um comentarista das reações do exército


teria declarado: “Isso é pior do que Sedan.”

Retrospectivamente, pode-se dizer que nem fevereiro de 34, nem

maio de 68 suscitaram na França tantas perturbações quanto fevereiro de

1898. A agitação ganhou todo o território e chegou a se estender até os

três departamentos da Argélia. Em Argel, Bufarik e Oran ocorreram


verdadeiras insurreições, ocasião em que judeus foram mortos e policiais,
feridos. A Argélia era, de fato, um dos focos do anti-semitismo colonial,

tendo sido, aliás, a única região em que correu sangue. Os argelinos


aderiram a essa causa.

O Caso Dreyfus, “o Caso” simplesmente, como se diria, colocou a


A EXPLOSÃO FRANCESA DA BELLE ÉPOQUE

321

República em perigo. Ela era sabidamente frágil: governada por partidos

— por sua vez entregues a facções e interesses particulares coloniais,


agrícolas, de pequenos fabricantes de vinhos, de professores laicos — e

estava à mercê das ruas. Os fantasmas da Comuna decerto ainda não se

tinham dissipado. Até os moderados guardavam rancor dos judeus por

considerá-los a causa dessa nova crise. O governo temeu uma guerra civil

e uma São Bartolomeu de judeus.

Não era apenas um caso de espionagem que estava fazendo a febre

subir, o mais importante era que o “traidor” era um judeu. E o fato de

que grande parte da opinião pública francesa ansiava por foijar uma
identidade nacional, considerada ameaçada, e da qual os judeus estavam
evidentemente excluídos, por princípio. Mas o que ameaçava essa
identidade? Em primeiro lugar, a Alemanha, cujo expansionismo e
militarismo agressivo haviam sido encorajados pela vitória de 1870. O kaiser
estava

convencido de que as potências ocidentais, Inglaterra e França notada-

mente, tentavam fechar o cerco em torno da Alemanha. A Alemanha

estava, pois, se rearmando ativamente e, seguindo o conselho de Moltke,

não construía mais fortalezas, mas sim vias férreas, para tomar os
transportes de tropas mais rápidos.

Hoje em dia, a hipótese de uma guerra entre as potências européias

parece inverossímil, e a exacerbação dos sentimentos nacionalistas da

época pode parecer ridícula. Mas, se nos colocarmos dentro do contexto

histórico e psicológico internacional da época, tudo se passa de forma

inteiramente diferente. A Europa inteira vivia imersa na psicose do estado


de sítio. Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, Áustria, Rússia, todos estes
países poderiam, por um súbito capricho, desencadear um conflito
generalizado. Essa psicose era, além de tudo, justificada: quando Zola

publicou J ’accuse!, apenas 16 anos separavam a França do horror da

Grande Guerra. Naquele estado de espírito, cada país contabilizava os

seus e concluía que os judeus não faziam parte deles.

A Belle Époque foi, por sinal, uma das mais fúteis imposturas da história
recente: uma conversa fiada macabra na antecâmara do horror.

Como Peter Gay demonstrou magistralmente, ela foi possuída pelo

ódio.5 Não só o de um país pelo outro ou das maiorias sociais em relação


322

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

a comunidades estrangeiras, mas de grupos sociais e religiosos entre si.

Após ter proclamado que “a França está decadente”, eterno refrão dos
fanáticos dispostos a comprometer o dia de amanhã, Edouard Drumont,

grande divulgador do anti-semitismo, declarou em La France juive que

“todo protestante é metade judeu”. Todos os países do Ocidente, incluindo


os Estados Unidos, deploravam ininterruptamente a decadência moral, o
egoísmo e a influência destrutiva dos grupos estrangeiros, nos

quais os judeus estariam incluídos, mas não apenas eles. Era um estado

de espírito extraordinariamente tenaz. Assim, no começo da Segunda

Guerra Mundial, uma sondagem Gallup revelou que a maioria dos


americanos estimava que a França e a Inglaterra eram países corrompidos
aos quais a ocupação alemã faria um grande bem.6 Veremos em um
capítulo

próximo os detalhes dessa obsessão pela força e, naturalmente, pela

“pureza” racial.

Por outro lado, a França, ferida pela abolição da monarquia, pela

Comuna e por Sedan, carregava o luto da imagem ideal que fazia de si

mesma, a de um reino luminoso e moral dominado pela Igreja, pelo rei

— o “bom rei”, é óbvio — pela aristocracia, virtude, prece, trabalho,


respeito e família, onde cabecinhas louras se erguiam ao final do dia para
cabeças encanecidas, depois da labuta, para lhes estender uma vasilha

com água. Essa França imaginária, em que Joana d’Arc era praticamente

contemporânea de São Luís e de Pio IX, jamais existiu a não ser nos
quadros de Greuze revistos pelo imaginário sulpiciano; foi uma dessas fic-

ções históricas que o século XIX soube fabricar em série, baseando-se em

mitólogos armados do prestígio da “tradição”.7 Os judeus não participaram


de nenhuma delas nem histórica nem cultural, nem religiosamente.
Os clichés herdados da Idade Média foram ressuscitados numa época em

que evidentemente se exaltavam “a Idade Média cristã”, “o século das

catedrais”, “o ardor das cruzadas” etc. Os judeus eram “infiéis”. O

Vaticano ainda iria esperar um século antes de repudiar o qualificativo

“deicida”.

A Igreja teria tido uma melhor inspiração se tivesse se mantido afastada


daquele jorro indescritível de ódio, mas, uma vez que tinha rancor à
República e à laicidade, não iria deixar passar a ocasião. Não foi capaz de
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q U E

323

enxergar que o destino do capitão Dreyfus assemelhava-se estranhamente


ao de um judeu que vivera dois mil anos antes. Provavelmente os ventos do
Espírito Santo não estavam soprando em 1898. Mas é preciso não esquecer
que a Igreja da França atravessava um dos momentos mais difíceis de sua
história. A República e a laicidade vinham empreendendo contra ela nos
últimos 10 anos uma guerra declarada. Os jesuítas estavam

de novo na linha de frente: em 15 de março de 1879, Jules Ferry, ministro


da Educação, obteve da Câmara de Deputados, e por maioria esmagadora
(363 votos contra 144) a aprovação de uma lei cujo artigo 7 excluía as
“congregações não autorizadas” do ensino público ou privado. A lei foi

rejeitada no Senado por mínima diferença. Mas, no ano seguinte, dois

decretos sobre o ensino superior acarretaram a dissolução da Companhia

de Jesus. Em 15 de junho, os jesuítas foram expulsos da rue de Sèvres, 33,

em Paris, sob a vigilância do chefe de polícia da cidade; as outras


congregações não aprovadas foram também dissolvidas. A indignação era
considerável entre os católicos e as direitas.

Praticamente minoritária, a direita, que sempre postulou a aliança do

trono e do altar, insurgiu-se, acusando, evidentemente, os judeus, os

franco-maçons e os ateus. A Igreja naturalmente aliou-se a ela e aqueceu

o coração dos anti-semitas. Tratava-se de ótimo pano de fundo para o


caso Dreyfus.
Espírito republicano, a laicidade, separação entre Igreja e Estado, eis

aí os grandes males de que a França sofria, segundo as direitas francesas.

Uma montanha de textos os demonstram. Vamos tomar um ao acaso,

um dos mais reconfortantes, o discurso do cardeal Langénieux, arcebispo de


Reims, por ocasião da celebração do décimo quarto centenário do batismo
de Clóvis, em 1896, portanto. Depois de ter desejado “que (a

França) se ajoelhasse em uma mesma homenagem de fé e de patriotismo”, o


prelado ateve-se ao plano místico: “Não existe (...) na base de nossa vida
nacional, um pacto divino que consagra nossa constituição

social e liga nossos destinos aos da Igreja de Jesus Cristo? Esse pacto tem

sido a lei de nossa história: a França sofreu todas as vezes em que traiu

sua missão, e todas as vezes o Deus de Clóvis, de Carlos Magno e de São

Luís abençoou seu povo quando ele foi fiel aos engajamentos de seu
324

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

batismo (...) Nós queremos que a França rejeite todas as doutrinas da

mentira e que ela reprove a obra de ateísmo que a divide e a esgota!”8


E depois, obviamente, também desejou “reunir a França (...) que se

arrepende, que sofre e que tem esperança (...) em tomo de suas tradi​

ções”, para “assegurar um melhor futuro à nossa querida pátria”. A


autoridade eclesiástica impediu certamente o presidente Félix Faure (que
viera a Reims inaugurar uma estátua de... Joana d’Arc) de observar que as
cruzadas e a revogação do Edito de Nantes não tinham sido momentos

particularmente abençoados da história da França. Era a época em que o

“padrezinho” Combes, aquele “anão de cabeça de rato” como seria mais

tarde chamado por Georges Bemanos, era ministro da Instrução Pública

e dos Cultos. Donde “o sofrimento e o arrependimento”.

Em outros lugares e com outras vozes, o catolicismo francês seria

bem menos confortador. Assim, La Semaine catholique de Tbulouse registrou


sem meias palavras: “Dizemos e repetimos que Dreyfus não é francês. Ele é
judeu e franco-maçom. Essas duas vergonhas gravadas em sua testa são
suficientes para explicar sua felonia.”9 Estava claro: a nacionalidade
francesa proibia ser judeu. La Croix, que se proclamava “o jomal mais
antijudeu da França”,i° não era mais moderado e louvava o exemplo

do czar, que os expulsara de seu exército e de seu país.

O caso Dreyfus serviu, pois, de detonador do furor explosivo da

direita. Não foi apenas Paris que se agitou e fez, como diria Feydeau, uma

gravidez nervosa, mas a França inteira: Brest, o centro, a Lorena,

Marselha, Toulouse, Bordeaux, a Vandéia e a Argélia, na época constituída


de três departamentos franceses. A França inteira explodia com um anti-
semitismo selvagem quando Zola, contra quem o exército moveu

um processo, foi condenado a um ano de prisão e três mil francos de

multa (a pena seria anulada pelo tribunal de instância superior). “O


veredicto condenando Zola à pena máxima foi acolhido com manifestações
de um entusiasmo indescritível”, narrou Le Matin. Cidades onde
normalmente se deitava cedo, como Pau, Dinan, Caen, agitaram-se tarde da
noite para gritar “Morte aos judeus!”. “Em Caen e em Cherbourg, os

caixeiros-viajantes expulsavam dos hotéis onde estavam hospedados os

comerciantes judeus”, relatou Pierre Bimbaum. De Nantes a Verdun, de


A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE Ê P O Q I J E

325

Clermont-Ferrand a Lile, de Reims a Cherbourg, a imprensa, as paredes,

os cabarés refletiam a lufada nacional de ódio ao judeu, cujo furor e


vulgaridade continuam chocantes um século mais tarde. Jorravam as
injúrias de carroceiros: Youpin, youtre, youde queue-coupé. As expressões
como

“complô judeu”, “judiaria cosmopolita internacional”, “sindicato judeu”

transformaram-se em lugar-comum.

A direita estava em vantagem, porque dispunha de uma formidável

artilharia constituída pela imprensa — La Libre Parole, LÉclair, LÉcho de

Paris, Le Petit Parisien, La Patrie, Le Gaulois, LeJour, Le Petit Journal — sem

falar da imprensa católica, La Croix, La Revue du Pélerin.

Nos muros de Nancy estava pregado um cartaz:

Patriotas como Drumont e Morès há 10 anos nos vêm denunciando

O PERIG O JU D E U .

Eles desmascararam as especulações e os golpes na Bolsa efetuados por

um punhado de hebreus vomitados em cima da França por todos os guetos

da Alemanha (...) Franceses, a Pátria está em perigo!

Notas anónimas publicavam um comunicado imaginário de Zola:

Estão todos convidados a assistir ao cortejo, serviço e sepultamento do

pornógrafo e defensor do traidor Dreyfus, a se realizar em Porc-en-Tmie:

Émile Zola

Falecido em pleno tribunal, no Palácio da Justiça de Paris, com a idade

de 58 anos, depois de uma longa e dolorosa escandalite aguda causada pelo

amolecimento cerebral, agravada por uma indigestão de biscoito israelita.


O ilustre escritor, antes de morrer, ainda teve tempo de circuncidar-se-

o que não o impediu de se ir ad patres.

Da parte de Salomon Préptice, Baronne (Lévy ) d’Ange, Barons Isaie Kahn-

Hulf, Kohn-Naas, Nathan Komun-Cerf, Sordulac, Botile-de-Jiiif, Grattmoiloss,

Kifeltmc. .
326

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

Uma onda de torpeza verbal e comportamental precipita-se sobre a

Filha mais velha da Igreja. De infâmia, igualmente: começa-se a perguntar


se fulano é judeu ou não, como uma prefiguração do que a França será sob
a Ocupação. Delações e depredações perdem em violência apenas

para a vilania dos intelectuais antidreyfusistas, jornalistas, panfletários,

cancionistas, comentaristas políticos e polemistas de todos os matizes.

A polícia não sabia para onde se dirigir diante das provocações.

Quando a prova da fraude urdida pelo exército se tomou patente, os anti-

semitas nem por isso reconheceram seu erro, mesmo os mais cultos deles.

Após o suicídio do coronel Henry e com a má-fé de que raramente abria

mão, Charles Maurras começou por supor, na La Gazette de France, que

Henry teria cortado a própria garganta “para evitar a guerra, talvez”.

Maurras já se afirmava como o articulador da federação das direitas, papel

que ele conservará até a libertação de Paris e que apenas poucos chefes
disputarão com ele, por pouco tempo. E ele fará uso destas palavras
indecentes, reflexos do totalitarismo que o acabará impregnando: “Não
quero mais entrar no velho debate, inocente ou culpado. Minha primeira e
última

opinião desde o princípio foi a de que, se Dreyfus fosse inocente, seria


preciso promovê-lo a marechal de França, mas fuzilar uma dúzia de seus
principais defensores pelo triplo mal que causaram à França, à paz e à
razão.”

Dito de outra forma, os defensores do inocente deveriam ser sacrificados


por terem perturbado a ordem pública...

Muitos anos mais tarde Maurras detalharia essa opinião escandalosa:

“Esse traidor Dreyfus, por ele mesmo, não significa absolutamente nada

quando comparado à idéia que tornou seu triunfo possível e mesmo fácil:

esse estado de espírito dos franceses do século XIX, estado de espírito


quase religioso e que podemos chamar, a partir de 1897, de dreyfusionis-

mo (...) Doutrina (...) caracterizada por um encontro geral de todos os

erros que sacrificam o conjunto em favor do detalhe, a sociedade em

favor do indivíduo...”11

Esse texto data de 1908, ou seja, cerca de 10 anos depois do Caso.

Dreyfus por ele mesmo não tem para Maurras nenhuma importância:

seu erro foi ter feito valer seus direitos de indivíduo contra os da sociedade.
Atentemos para o detalhe, que é de uma importância capital: a conde​
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q U E

327

nação do individualismo. Maurras não cita o outro erro maior de

Dreyfus, o de ser judeu, mas desse já se ouvira bastante. Pois o teórico da


Action française cultivava uma visão medieval dos judeus. Sete anos antes

ele escrevera, com efeito:

“A idéia anti-semita deve ser definida como a primeira idéia orgânica

e positiva, a primeira idéia contra-revolucionária e naturalista que, nos

últimos 100 anos, vem gozado entre nós de uma popularidade verdadeira e
forte (...) Quando a Lei e o Estado favorecem a espoliação financeira dos
autóctones e seu desapossamento administrativo, quando os recém-vindos,
agrupados, disciplinados, com sua lei e seus ritos particulares,

vêm desapossar os cidadãos antigos, há um escândalo e um mal-estar tão

profundos que a religião política à qual os franceses estão secularmente

habituados, a velha religião de 89, é varrida com um justo suspiro de

cólera e de rebelião.”12

Está tudo aí: o caráter “contra-revolucionário” do anti-semitismo,

sua natureza “positiva”, o arcaísmo da ética revolucionária, “essa velha

religião de 89” que uma justa cólera é suficiente para varrer. O que ele

quer dizer com “espoliação” e “desapossamento”? Decerto que os judeus

não são ladrões, pois o argumento seria tosco demais para ser admitido;

não, a idéia de Maurras é a de que o dinheiro que os judeus ganham,

mesmo com o suor de seus rostos, e as posições sociais e políticas que

conquistam, mesmo graças a seu próprio valor, não podem ser


legitimamente merecidos, uma vez que eles não são franceses.

O tema de referência é a nação e é por isso, aliás, que Maurras, assim

como todos os pensadores de direita, de ontem, de hoje e de sempre, é


intrinsecamente anti-humanista: ele recusa a idéia de uma cultura
universal; para ele, uma cultura é nacional e não universal, “cosmopolita”,
como se dizia então com desdém. Paul Bourget, seguidor de Maurras e

ídolo da juventude de direita, escreveria, aliás, um romance célebre


intitulado Costnopolis, retrato de uma sociedade que perdeu “suas raízes”. E
é por isso que Maurras, como toda a direita, Henri Béraud, Léon Daudet e

outros, aderirão de fato à ideologia do nacional-socialismo 40 anos mais

tarde. Para os nazistas, com efeito, a cultura nada mais era do que a

Kultur, expressão especificamente nacional dos valores tradicionais.


328

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

Depreende-se naturalmente que a nação impunha o sacrifício do indivíduo


assim como o da individualidade. Naquela época, que se tomou
incompreensível e inimaginável hoje em dia, bastava pronunciar a palavra
“pátria” para galvanizar os mais apáticos e provocar arrepios nos mais
cínicos. Era o verdadeiro Deus do mundo moderno.13

A idéia de nação tomou-se, depois da Revolução Francesa — e até

mesmo para os novos monarquistas que, contudo, execravam com fúria

todas as aquisições dessa revolução— , o princípio supremo da existência.

As devastações advindas da idéia de nação identitária não foram


suficientemente avaliadas— e jamais o serão — se não encararmos o fato de
que, quando considerada um conceito fechado, invariável, a idéia de nação

comporta um princípio antiético: ela é essencialmente a justificativa da

rejeição do outro e do assassinato em massa, como o século X X — o mais

sinistro de todos — demonstrou amplamente, ad nauseam, com seus 50

milhões de mortos das duas guerras européias, os massacres de um

milhão e meio de arménios, os 30 milhões de mortos das expurgações,

fomes e gulags soviéticos, os seis milhões de mortos dos campos nazistas

e os milhões de mortos de guerrinhas que não param de sangrar a


humanidade nos cinco continentes, dos ibos na Indonésia de Suharto (500
mil mortos), da ex-Iugoslávia ao Timor, da Indochina à Irlanda, da
Nicarágua

ao Cambodja, do Afeganistão a Angola. E em toda parte.

A idéia de nação é a máscara de um demo xenófobo, sempre pronto a

transformar a fé em fanatismo e o entusiasmo em furor. A emoção do

demo transforma-se espontaneamente em distúrbios, e a soma dos


indivíduos que o compõem é inferior à de suas humanidades. Não foi apenas
em Paris que isso pôde ser verificado, por ocasião dos sinistros dias de

janeiro de 1898: já tinha sido visto durante os distúrbios da Revolução,


seria visto de novo em muitas outras ocasiões, da tomada do Palácio de

Invemo de São Petersburgo à Noite de Cristal de 1938 e aos massacres de

Ruanda de 1997. Finalmente, a idéia de nação pode converter-se na própria


encarnação da infâmia nascida em sangue, na renúncia aos princípios éticos
mais elevados. A mais triste prova disso já foi apresentada pela confissão de
um dos verdadeiros heróis do século XIX, mesmo um dos mais virtuosos,
Abraham Lincoln, campeão da luta contra o escravagismo, mas
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA B EL L E É P O Q U E

329

já tomado também pela infecção nacionalista: em plena guerra civil, ele

declarou que estava pronto a admitir o escravagismo para salvar a


União.14

A idéia de nação, que une as massas, requer por ela mesma o tirano,

o qual é obrigado a estar sempre adulando os cavalos loucos que o

puxam, eternamente prontos para derrubá-lo e pisar seu cadáver na


primeira curva perigosa. Stalin, Mussolini, Hitler, Franco, Salazar, Tito,
Mao Tsé-tung, Kim II Sung, Pol Pot, Ne Win, e todos os tiranos e tirane-tes
que o século dos nacionalismos por excelência — o século X X — reuniu na
mais sinistra das galerias de monstros de toda a história. Todos
esmagadores de minorias, kuíaks, republicanos e democratas, tibetanos,

burgueses, mas principalmente judeus. Os francesas aspirarão a ser


“verdadeiros franceses”, os ingleses, “verdadeiros ingleses”, os húngaros,

“verdadeiros húngaros”, e assim por diante, tomados pela loucura obsessiva


das heranças culturais sagradas.

Mas, à época, não era possível enxergá-la. Ou pelo menos os “grandes


pensadores” do tempo não o conseguiram. Encontravam-se encerrados no
delírio lógico por meio do qual organizavam uma herança cultural quase
inteiramente fabricada, mítica, mitológica e mistificadora, segundo a qual
só se poderiam comportar como filhos piedosos, na

França como em outros lugares.

Todo o final do século XIX e o começo do século X X estiveram

infectados pela idéia de “autenticidade” que era projetada sobre a pátria e

sobre o mundo. Essas longas décadas de sífilis que foram o século X IX e

o começo do século X X foram particularmente perseguidas pelas fantasias


de “degenerescência” da raça, “amolecimento fatal” causado pelas

“influências estrangeiras” (entendam os judeus, suas fêmeas imorais e os

metecos) e pelo abandono das “virtudes viris”. Os censores-mentores-


patriotas incessantemente denunciavam a juventude esquecida das
“tradições ancestrais”, desgarrada pelo livre exercício da sexualidade (que
inspirou a interminável crise de nervos que foi a “Cacania” de Robert

Musil em O Homem sem Qualidades e as teorias de Freud). Os maiores

espíritos cederam a elas: François Arago já proclamava em 1836 que o

transporte das tropas por estrada de ferro provocaria a “emasculação” das


33 0

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

tropas, e, com sua largueza de visão, Philippe Pétain declararia um século


mais tarde, em 1939, que a “impotência dos tanques era gritante” (o
marechal Foch já havia declarado, em 1911, que os aviões eram
“brinquedos interessantes, mas sem valor militar”).15 Foi igualmente a
época (1886) em que numerosos proprietários de imóveis parisienses
esbravejaram contra a “tirania socialista” quando foram obrigados a fazer
a liga​

ção de seus imóveis à rede de esgotos, chegando até a ver no fato uma

ameaça às “liberdade cívicas”, e em que numerosos sábios defenderam

com ardor os banheiros à moda turca (instalavam-se cada vez mais privadas
com assento, inventadas na Escola Monge em 1883), justamente porque
eram incómodos e “bíblicos”, acusando as privadas com assento de
favorecer a disseminação da sífilis e a masturbação...16

Na realidade, é impossível compreender a trágica fermentação do

anti-semitismo do final do século XIX e começo do século XX, fermentação


na qual já fervilhavam os germes das perseguições nazistas, sem captar o
“grande medo dos pequeno-burgueses”, retomando, em sentido

inverso, a famosa expressão de Georges Bemanos: a Europa estava


paralisada às raias do cretinismo patológico pelo medo da novidade,
sinónimo para ela de desordem, e pelo medo de revisão de suas pseudo-
tradições cristãs, que deviam mais ao anti-semita Drumont e aos papas

precocemente senis do que ao judeu Jesus. Trémula e rancorosa, xenófoba e


passadista, a Europa se crispava até o espasmo diante de tudo que ignorava.
Ela opunha uma rejeição desdenhosa ou irritadiça, de acordo

com o caso, a tudo o que atrapalhava seus hábitos, ao judeu (convertido)

Bergson, ao judeu Einstein, a todos os judeus portadores de uma idéia

nova.17 De fato, o que ela ignorava é que sua degenerescência, que era

bem real, era causada justamente por esse “voltar para dentro de si mesma”
e pela sufocação que se impunha ao respirar os miasmas de seu terror.
Ignorava que era esse próprio terror que ia conduzir aos massacres das
duas guerras, como se ratos enlouquecidos com injeções de adrenalina
estivessem sendo forçados a se matar uns aos outros dentro de uma gaiola
de laboratório. Pioneiros, elétrons livres, vibriões e ludiões, os
judeus eram, naquele contexto sinistro, tidos cada vez mais como os
inimigos congénitos. Não tardariam a pagar, como Bardamu, o herói do
A EXPLOSÃO FRANCESA DA BELLE ÉPOQUE

331

anti-semita histérico Louis-Ferdinand Céline, em Viagem aos Confins da

Noite.
Maurras foi um dos representantes perfeitos dessa psicose. Seu ideal

político era o de uma cidade ateniense ou pelo menos da representação

que fazia dela e que era calcada em A República autoritária de Platão,

transformada para a circunstância em realeza, e na Política de Aristóteles.

Era racista apenas acessoriamente, e uma das principais mudanças de

rumo que recomendou à direita, a partir do começo do século, foi rejeitar “o


arianismo, o selecionismo, o aristocratismo de Gobineau (como) perigosas
ondas”18 — , partido adotado, aliás, por seu discípulo Jacques

Bainville. Esses pretextos, cuja falsidade farejou, eram bastante inferiores

a sua causa. E seu anti-semitismo explica-se em grande parte — mas não

inteiramente— pelo fato de considerar os judeus uma “nação” e que, por

ser diferente da nação francesa, devia ser mantida fora das fronteiras.

Como perseguiam seus próprios fins, os judeus eram, pois, ingovemá-

veis. Ademais, como não tinham as tradições “humanistas” e “nacionais”,

corrompiam a cultura com suas inovações, e seu “modernismo” era


intolerável.19

O mais paradoxal, provavelmente, é que a esquerda ou, mais precisamente,


as esquerdas, cujas teorias são contudo antinômicas, compartilhavam a
ideologia anti-semita com a direita. A imagem ideal e frequentemente
idealizada da esquerda moderna, forjada na Europa depois de 1945, não
pode ocultar as circunstâncias de seu nascimento: reação anti-feudal em
1789, relançada pela revolução industrial no começo do século X IX contra
a exploração dos operários, nasceu do mesmo núcleo cultural que a direita.
As diferenças entre direita e esquerda, radicais no campo social, são
sublimadas em política pela idéia de nação. Proudhon

assim escreveu: “O judeu é o inimigo do género humano. É preciso


mandar essa raça para a Ásia ou exterminá-la.”20 Execração que é
encontrada até no meio dos delírios de Baudelaire: “Uma bela conspiração a
ser organizada para o extermínio da raça judia.”

Contrariamente a uma idéia bastante difundida, a fantasia de extermínio


não era específica da direita: ela era nacional e internacional: a Alemanha
nacional-socialista (e a palavra socialista conserva nesse caso
332

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

todo seu sentido) do século XX foi na realidade o teatro de um projeto

pan-europeu.
A esquerda denunciou da mesma maneira o famoso “modernismo”.

Arthur Huc, diretor do La Dépêche du Midi, diário radical de grande

influência, censurou os judeus pelo modernismo de que a Torre Eiffel

era o símbolo.21 UCEuvre, publicação mensal de esquerda que seria lançada


oito anos depois do escândalo do J ’accuse!, estampava sob seu título a
menção “Nenhum judeu é assinante de LCEuvre".'22 Melhor do que La

Croixl Uma parte da esquerda, impossível de ser quantificada um século

mais tarde, era antidreyfusista. Mas, com notável clarividência tática, Jean

Jaurès inverteu a corrente, galvanizou seus discípulos e, sem lhes dar

tempo para pensar, fez campanha a favor de Dreyfus. Apresentou-o

como a “testemunha viva das mentiras militares, da covardia política, dos

crimes da autoridade”; não parou enquanto Dreyfus não foi reabilitado.

O Caso era para ele uma causa que era preciso dissociar do “problema

judeu” e que demonstrava a opressão de uma classe sobre a outra; foi

nesse sentido que ele a apresentou. O Caso desviou para si todo o mal-

estar de um país tomado pela febre do medo, do medo de tudo, do alemão,


do inglês (“a pérfida Albion” de Bainville), do italiano, do chinês, do
polonês, do americano e, é claro, do judeu, onipresente e proteiforme.

Os dreyfusistas foram rapidamente identificados pelos antidreyfusistas

como inimigos da pátria, e os antidreyfusistas como cúmplices da tirania

militar-burguês-plutocrata.

O que não impede que Jaurès tenha sido, a sua moda, um anti-

semita: mesmo se tendo recusado, assim com Maurras, a dar crédito às


teorias antropológicas do racismo de Gobineau, que Drumont explorou

à vontade na mesma época, apressou-se em “denunciar na ação judia um

caso particularmente agudo de ação capitalista”.23 Como as palavras


acabaram por perder o sentido, Jaurès qualificou seu adversário eleitoral, o
marquês de Solages, que se distinguiu por uma campanha violentamente
anti-semita, de “um dos mais belos espécimes da judiaria cristã”.24 O

que, convenhamos, era o cúmulo: ser “judeu” mesmo quando não se era!

E até quando se estava atacando os judeus.

Essa questão desorientou mais de um historiador, mesmo em nossa


A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA B EL L E Ê P O Q U E

333

época: como Jaurès pôde, pois, ter feito o mesmo discurso que Maurras

sobre os judeus? E que tanto um quanto outro pertenciam à mesma


corrente, a do nacionalismo identitário, mesmo que tenham se situado nas
extremidades opostas do espectro político. A filosofia nacionalista
transcende a política — e atrapalha por vezes as idéias dos observadores,
tornando qualquer discussão impossível. Foi desse modo que Mussolini foi
marxista em sua juventude; ele considerava Marx “o maior teórico do

socialismo” e o marxismo “a doutrina científica da revolução das classes”.25


Donde, igualmente, a dificuldade de situar ideologicamente, tempos depois,
personagens como Mareei Déat, que veio do socialismo, e Jacques Doriot,
que veio do comunismo, e aderiram ao regime de Vichy:

fizeram parte dos numerosos ativistas que formaram a “direita


revolucionária”, definida por Zeev Stemhell.26 Fazem parte do mesmo
fenómeno que a paradoxal “direita proletária” do início do século.27

Aparentemente alguns homens permaneceram lúcidos, como

Clemenceau, que escreveu no LAurore: “Junto com os republicanos do

governo triunfando sob o tacão do estado-maior, a Igreja trombeteia a

guerra religiosa contra os judeus, os protestantes e os ateus (...) É


precisamente de anti-semitismo que se trata, qualquer um pode ver. Não
existe lei para Dreyfus apenas porque ele é judeu, só isso.” Mesmo assim

Clemenceau deixou-se levar por argumentações indignas: no mesmo ano

de 1898, ele invectivou contra “o judeu imundo” de “nariz adunco”.28 Ele

também não enxergava com suficiente clareza que não era a Igreja a
causadora daquela explosão de anti-semitismo, era o nacionalismo. Mesmo
que estivesse consciente, não poderia ainda assim denunciar: como vimos
mais

acima, na ótica do final do século XIX o sentimento nacional e o patriotismo


eram sagrados. Constituíam postulados incontestáveis e a própria base da
ética: um homem que não fosse patriota era um pobre-diabo, um
fracassado, um deficiente, um verdadeiro verme, de todo modo não um
francês. E, como era óbvio, um judeu não poderia ser um patriota.

Podemos nos interrogar a respeito do anti-semitismo ambíguo da


esquerda, que contou mesmo assim com grandes humanistas como

Jaurès. Deveu-se a dois fatores simples. O primeiro é que a esquerda era

laica, e os judeus não estavam dispostos a renunciar ao judaísmo; ora, não


334

H IST Ó R IA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

havia nenhuma razão para se fazer uma exceção para eles e autorizá-los a

manter um ensinamento religioso quando esse não era consentido aos


cristãos. O segundo é que o mundo dos grandes capitalistas incluía muitos
grandes industriais e banqueiros judeus, e a consciência popular não
relacionava o judeu ao trabalhador francês comum. Os judeus talvez fossem
ainda mais estrangeiros sob a República do que tinham sido sob a
monarquia.

A febre acabou por se acalmar no final de 1898. Para o alívio de muitos, a


noite de São Bartolomeu dos judeus não ocorreu. A esquerda não estava,
contudo, vacinada contra o anti-semitismo: do socialismo em breve iria sair
uma corrente que produziria o fascismo italiano, uma outra que produziria
o marxismo-leninismo, as duas anti-semitas, por razões diferentes.

Tal foi a sombria herança legada pela Revolução de 1789 a seus herdeiros
republicanos: Deus fora substituído pelo Estado-Nação. A histeria da direita
de 1898 era a mesma das cruzadas de 1096, apenas com uma pequena
diferença: a identidade nacional estava substituindo o Deus que,

no passado, tinha sido a primeira encarnação de sua identidade. Foi então

que começou o grande desvario do qual os judeus acabaram sendo as

vítimas.
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q J J E

335

Bibliografia e notas críticas


1.
O inventário detalhado das manifestações feito por Pierre Birnbaum em Le

mometit antisémite — Un tour de la France en 1898 (Fayard, 1998) indica,


com efeito, que poucos bairros foram poupados.

2 .Id.

3. Na verdade, os elementos da fraude tinham sido expostos em detalhe já


em 1896,

ou seja, 14 anos antes, pelo escritor Bernard Lazare em seu manifesto Une
erreur judiciai-

re, que publicara peças do dossiê que o exército queria mater secretas. A
evidência da

montagem criminosa estava vindo à tona; os antidreyfusistas estavam


perfeitamente

conscientes de que uma reviravolta na situação em favor de Dreyfus era


sempre possível

e que as consequências seriam devastadoras para eles. Contudo, o faccuse!


constituía um

ultimato intolerável para o governo e para o estado-maior.

4. Talvez “O Caso” contenha ainda pontos obscuros, mal elucidados cerca


de um

século depois. Gastou-se um bocado de tinta com ele, e nele só me detenho


mais uma vez

pelo fato de ter concentrado todo o anti-semitismo francês do final do século


X IX

Lembremo-nos brevemente do essencial: a arrumadeira Bastian, que


trabalhava na

verdade para o exército francês, descobriu nas cestas de papéis da


embaixada da Alemanha

uma listagem redigida por um oficial estagiário do estado-maior francês. O


documento

parecia ter sido redigido pela mão de Alfred Dreyfus. Ele foi preso e o
serviço de informação do exército “justificou” sua prisão fabricando falsos
intentos para comprometê-lo como réu. O principal culpado era o coronel
Henry (que havia apelado para o falsário e

escroque judeu Moisés Leeman...). Nesse meio-tempo, a mesma senhora


Bastian descobriu nas mesmas lixeiras da embaixada da Alemanha um
“papel azul” — ou seja, um telegrama — que o serviço de informação
atribuiu ao adido militar Schwarzkoppen. Esse, conta a história, teria tido a
intenção de enviar a mensagem ao comandante francês

Marie-Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy, na Rue de La Faisanderie, 27.


Ninguém,

nem nos serviços de informação, nem no estado-maior pareceu se espantar


com essa atribuição de Schwarzkoppen: as iniciais da assinatura, C. T.,
contudo, não correspondiam às suas.

Um lance teatral: uma análise grafológica mostrou que a famosa listagem


fora redigida por Esterhazy, personagem no mínimo dissimulado,
mulherengo e coberto de dívidas. A investigação foi conduzida pelo coronel
Picquart. Dreyfus deveria, pois, ser inocentado, e Esterhazy inculpado em
seu lugar. Nada disso aconteceu: o chefe do estado-maior, o general
Boisdeffre, mandou Picquart para a África do Norte. Com efeito, o estado-
maior, já alarmado com o panfleto de Bernard Lazare, que demonstrava as
tramóias do exército, considerou impossível inocentar Dreyfus diante da
opinião pública, a não ser

se desacreditando de forma grave. Outro absurdo: Picquart foi preso por


ter tentado fazer
triunfar a verdade.
Mas Esterhazy foi a julgamento, e foi nesse momento que se desencadeou a
agitação

das primeiras semanas de 1898. Henry, igualmente inculpado por ordem de


Cavaignac e
336

H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O

depois detido, cortou a própria garganta em 30 de agosto de 1898. Dreyfus,


por sua vez,

permaneceu preso e, indultado ao final de quatro anos, só foi inocentado em


1906.

Esse caso bastante tenebroso, digno de Fantômas*, contém inúmeras


estranhezas, a

começar pela desenvoltura extravagante atribuída ao personagem da


embaixada da

Alemanha, que jogava na cesta de lixo peças tão comprometedoras quanto a


listagem de

Esterhazy, além do telegrama a ele dirigido; sem falar do fato de que a tal
listagem teria sido

anotada pela própria mão do... imperador Guilherme II. Os alemães não
seriam tão idiotas

a ponto de ignorar que os serviços de informação franceses vasculhavam


suas lixeiras, pois

eles próprios vasculhavam as das embaixadas em seu país. Um documento


da importância

da listagem estaria trancado em um cofre; ademais, em minha opinião, o


papel da personagem romanesca que foi a senhora Bastian não foi
suficientemente analisado.

De acordo com Henri Giscard d’Estaing, longamente citado por Ph.


Bourdrel, é possível que o comandante Esterhazy tenha trabalhado para
uma alta patente do exército francês, “provavelmente o general Mercier”,
que o teria utilizado para transmitir aos estados maiores alemão e italiano
informações truncadas, em suma, para passar “contra-informação”. O
inquérito realizado dentro do exército a respeito da descoberta da famosa
listagem seria, pois, o resultado de uma falta surpreendente de coordenação
(a menos que a descoberta dessa listagem tenha sido uma maquinação
efetuada por gente do estado-maior

interessada em comprometer o general Mercier). Só desse modo se


explicaria a espantosa
indulgência com que Esterhazy foi tratado, apenas reformado e obrigado a
deixar o exército, enquanto, como autor do documento que demonstrava sua
traição, deveria ter sido levado ao Conselho de Guerra e ter o mesmo
destino de Dreyfus, ou seja, ser mandado

para a cadeia. Em uma carta espantosa a Waldeck-Rousseau, o general


Gallifet pedia que

fossem “para sempre isentados de culpa os oficiais-generais ou outros que


estiveram

envolvidos com esse caso lamentável. E preciso abrir-lhes as portas do


esquecimento”.

A conclusão parece ser que o exército francês, incomodado pelos


vazamentos e se

recusando a admitir que empregava agentes duplos, tenha decidido fazer


Dreyfus, judeu

e pouco apreciado pelos colegas, “pagar o pato”. O caso Dreyfus não foi um
caso que acidentalmente teve a ver com um judeu; foi, sim, um caso
desencadeado pelo desejo deliberado de envolver um judeu.

Apenas para lembrar, o coronel Henry, denunciado como autor da


falsificação,

suicidou-se em 30 de agosto do mesmo ano. Em dezembro de 1898, o jornal


de extrema

direita La Libre Parole abriu uma subscrição em favor da viúva de Henry, a


fim de lhe permitir acusar em juízo “o judeu Reinach”. Fosse por
compaixão ou manifestação de hostilidade a Dreyfus, Maurice Barrès deu
50 francos, Paul Valéry, três, François Coppé, Pierre Louys e Paul Léautaud
também ofereceram seu óbulo. Um certo abade Gras deu

cinco francos e acrescentou esta nota: “Para fazer um tapete de beira de


cama com pele de

judeu, a fim de poder pisar nele de manhã e à noite.” Para aliviar as letras
francesas, mencionaremos que o diretor do Instituto Pasteur, Emile
Duclaux, professores do Colégio de França, Charles Péguy, Anatole France,
André Gide, Jules Renard e Octave Mirbeau

engajaram-se a favor de Dreyfus. (Ph. Bourdrel, Histoire àes Juifs de France,


op. cit.)

*Pcrsonagcm dc bandido que nunca conscguc ser preso e que, criado cm


1911, ensejou numerosas

adaptações cinematográficas. (N.T.)


A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA B ELLE Ê P O Q U E

337

5. La culture de la haine, hypocrisies etfantasmes de la bourgeoisie de Victoria à


Freud, 1993

(Plon, 1997).
6. A primeira sondagem realizada junto à opinião pública americana em
setembro de

1939, após as declarações de guerra da França e da Grã-Bretanha à


Alemanha, deu os

seguintes resultados:

— a favor da entrada imediata na guerra ao lado da Inglaterra, da França e


da

Polónia: 2,5%;

— a favor de permanecer inteiramente afastado do conflito, mas vender


para todo o

mundo, a Alemanha incluída, na base do cash and carry: 37,5%;

— a favor de permanecer afastado de qualquer nação em guerra, sem


sequer fazer

comércio com elas na base do cash and carry: 29,9%.

Ou seja, 67,4% dos americanos preferiam deixar a França e a Grã-


Bretanha lutarem

contra a Alemanha, só 2,5% julgando necessário entrar na guerra do lado


delas. E quando Roosevelt solicitou ao Congresso, em 1940, autorização
para armar a marinha e o exército americanos, o ilustre Lindbergh
qualificou seus propósitos de “falatório de détra-qué”.

7. Um dos exemplos mais significativos dessa “mitologização” é o de Luís


IX, São

Luís, esteio ideológico de numerosos historiadores de uma legendária


“França cristã”.

Em sua notável história-biografia, SaintLouis (Gallimard, 1996), Jacques Le


Goff escreveu: “São Luís foi uma criação de Joinville”; depois terminou
concluindo que o senescal de Champagne (Joinville) era ainda assim
confiável e que São Luís foi o último rei santo.

Poderíamos ao menos esperar que esse eminente historiador aprofundasse a


noção de

“santidade”, depois de haver descrito um monarca que negligenciava a


mulher e os filhos,

mas com certeza não a mãe, a temível Blanche de Castilha, que passava a
maior parte dos

dias e das noites em preces e devoções, que se autoflagelava por prazer,


proibia o riso às

sextas-feiras, insistia em lavar os pés do primeiro que chegasse e outras


excentricidades

ditadas por uma fé singularmente meticulosa, sem falar do fato de haver


imposto o porte

da insígnia redonda a todos os judeus. Certamente não há por que nos


espantarmos em

demasia, uma vez que o monarca vivia à mercê dos dominicanos, anti-
semitas encarniçados, como se viu nos capítulos precedentes. Ele foi
canonizado, com impressionante celeridade, um quarto de século depois de
sua morte.

Ousaríamos acrescentar uma nota marginal a essa obra notável? Aos olhos
de um

historiador em busca de uma “história total”, que “santidade” seria essa,


que nutre o anti-

semitismo mais primitivo? Significa dizer que a santidade implica ódio? De


minha parte,

e na qualidade de cristão, penso que São Luís por si só justificaria a


psicanálise moderna:
parece-se furiosamente com um masoquista fanático, vítima de uma
imagem punitiva do

cristianismo e precursor simultaneamente de histéricos como os flagelantes


de Sevilha e

desses aiatolás que a consciência contemporânea cobre da mais veemente


reprovação.

8. Patrick Demouy, “Le baptême de Clovis” ( Historia, abril de 1988).

9 .6 de janeiro de 1895. Citado por Pierre Birnbaum, Le moment antisémite—


Un tour

de la France eti 1898, op. cit.


3.38

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

10. Os tempos tinham mudado. A partir de 1927, La Croix, que tinha


publicado ser

Dreyfus “o inimigo judeu traindo a França” e que queria mandar


“estripar” Zola, “o novo

Judas”, temperou suas invectivas, sob influência do padre Merklen. Julgado


após a

Liberação e dispensado de sofrer processo, o jornal ressurgiu em fevereiro


de 1945. Na

ocasião do centenário de faccuse! (11-12 de fevereiro de 1998), seu redator-


chefe, Michel

Kubler, publicou um editorial de arrependimento, que incluiu passagens


bastante singulares, como atribuir “as palavras mortíferas” publicadas
durante anos a “nossos grandes irmãos assuncionistas e laicos”. E
acrescentou: “Nenhuma pessoa, nenhuma comunidade

terá futuro enquanto rejeitar o povo do qual nasceu.” Era para entender
com isso que

durante os dois milénios em que perseguiu os judeus, a Igreja não tinha


futuro?...

11. Actionfrançaise, n? 23, abril de 1910, em Dreyfus, Dictionnairepolitique et


critique, 4o vol. À la Cité des Livres, Paris, 1932-33.

12. Gazette de France, 11 de fevereiro de 1901, em Juif (la question juive),


Dictionnaire politique et critique, op. cit.

13. L’Église et la démocratie, UAction française, 1? de novembro de 1905, em

Dictionnaire politique et critique, op. cit.

14. “Nós não fazemos da nação um Deus, um absoluto metafísico mas, no


máximo,

de alguma maneira, o que os antigos teriam chamado de uma deusa.”


Charles Maurras,

Dictionnaire politique et critique, op. cit. Pergunta-se o que Maurras,


“machista” precursor, incluía nessa troca de sexo da divindade.
15. Christopher Cerf&Victor Navasky, Experts Speak (Pantheon Books, New
York,

1984).

16. Lesgrandes inventions du monde modeme, do autor (Bordas, 1989).

17. Redator-chefe adjunto durante 25 anos (até 1994) de uma revista


científica, tive

que aguentar cartas e invectivas de leitores que me admoestavam


veementemente porque

a revista dava crédito às teorias “famosas” do “judeu Einstein”.

18. Citado por John Patrick Diggins, Max Weber— Politics and the Spirit
ofTragedy

(Harper Collins, 1997). Diggins faz um paralelo entre a noção de


moralidade em Max

Weber e a confissão de Lincoln, destacando um absolutismo moral que é a


própria antítese da ética.

19. A acusação de “modernismo” feita aos judeus era persistente: em 1930,


o implacável crítico reacionário francês Camille Mauclair atacava, em Les
métèques contre Vart j\ran​

çais, dedicado a “Rosenschwein, Lévy-Tripp, Trouderat” (Édition de la


Nouvelle

Critique), os “teóricos do judeo-germanismo pictural”, mas insistindo mais


adiante no

fato de que não considerava “os belgas, os tchecos e os latinos dos dois
mundos” estrangeiros...
A E X P L O S Ã O F R A N C E S A DA BELLE É P O Q U E

339

20. Citado por Alain Brossat em Le Corps de VEnnemi — Hyperviolence et


démocratie

(ed. La Fabrique, 1998). Essa obra, bem como a de Marc Crapez, Naissance
de la gauche

(Michalon, 1998), indica igualmente que, ao contrário de outras idéias


preconcebidas, o

republicanismo nem sempre é sinónimo de democracia e que ambos


também não são

sinónimos fundamentais de tolerância.

21. 5 de março de 1898. Citado por Pierre Bimbaum, Le moment antisémite.


Un tour

de la France en 1898, op. cit. Grande parte das celebridades das letras e das
artes, sem distin​

ção de partido, possivelmente até sem anti-semitismo disfarçado, também


protestou contra a Torre, entre os quais Charles Gounod, François Coppé,
Alexandre Dumas Filho, Leconte de Lisle, William Bouguereau, Victorien
Sardou, Charles Garnier, Jules
Meissonnier.
22. Lançada em 1904 por Gusrave Téry, de início sem outra orientação
definida que

não fosse o anti-semitismo, VCEuvre hesitou entre o anarquismo e o


nacionalismo

(Claude Bellanger, Jacques Godechot, Pierre Guiral, Femand Terrou,


Histoire générale de

la pressefrançaise, t. III, P.U.F. 1972). Foi a partir de 1911 que ela teria
acrescentado a men​

ção em questão em epígrafe, uma vez que o caso Dreyfus estava encerrado
(Léon

Poliakov, Histoire de Vantisémitisme, t. III, op. cit.)

23. Jean Rabaut, J o jh Jaurès (Perin, 1971/1981), citado por François


Huguenin, À

1’école de VAction française (J. C. Lattès, 1998). Para Jaurès, “os judeus têm
desempenhado

um papel particularmente ativo” na desagregação da sociedade árabe,


“feudal e patriarcal”. (Ph. Bourdrel, Histoire des juifs de France, op. cit.) 24.
Au pied du Sinai, citado por Léon Poliakov, Histoire de Vantisémitisme, op. cit.

25. Vero Eretico (pseudónimo de Mussolini), Socialismo e Socialisti (La


Lima, 30 de

maio de 1908), citado por Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri,
Naissance de

Vidéologiefasciste (Fayard, 1989). Contudo, Mussolini mudou de opinião


após a leitura da

tradução italiana dzAu-delà du fascisme, do teórico belga Henri de Man.


26. La droite révolutionnaire (Gallimard/Folio/Histoire, 1997).

27. Talvez se deva também levar em conta o real desgosto que a Terceira
República

inspirava na época aos operários, que tinham horror ao radical


Clemenceau, e aos burgueses, que tinham antipatia pelos políticos
oportunistas. Em muitos aspectos, com efeito, a França de 1900 até 1939
lembra a República de Weimar. De esquerda ou de direita

— e as mudanças de campo se operavam com fluidez desconcertante — a


nação entrou

no campo do nacionalismo identitário, anti-semita do começo ao fim, de


1900 a 1940.

28. La Dépêche de Toulouse, 22 de abril de 1889. Citado por Pierre


Bimbaum, Le

moment antisémite — Un tour de la France en 1898, op. cit.


2.

A ilusão alemã
e a crise do Ocidente
A EMANCIPAÇÃO DOS JUDEUS EM 1871 — PAPEL EMINENTE DOS
JUDEUS NA

EXPANSÃO INDUSTRIAL, COMERCIAL E CIENTÍFICA DO REICH —


UM GESTO

SIMBÓLICO: OS SOLDADOS JUDEUS DO EXÉRCITO ALEMÃO TÊM


UM FERIADO

OFICIAL PARA A CELEBRAÇÃO DO YOM KIPUR — O PODERIO


FINANCEIRO DOS

JUDEUS NO REICH — O PAPEL DOS JUDEUS NO NASCIMENTO DA


OPOSIÇÃO

SOCIALISTA AO IMPÉRIO — OS ESTRAGOS MATERIAIS E


PSICOLÓGICOS DA DER​

ROTA DA GRANDE GUERRA — PAPEL DOS JUDEUS NA


REVOLUÇÃO DE 1918,

ESPARTACISMO E REPÚBLICAS “POPULARES” DA BAVIERA. OS


RANCORES DA

NAÇÃO ALEM× CLARIVIDÊNCIA DE NIETZSCHE

Um dos países em que os judeus tiveram, sobretudo no final do século XIX,


o mais profundo sentimento de serem aceitos foi, com toda a certeza, a
Alemanha. É provável que isso tenha a ver com um paradoxo: o poder real,
depois imperial, controlava muito melhor do que a República

as torrentes públicas de anti-semitismo. A direita não precisava bater-se

com um partido de oposição, uma vez que a esquerda praticamente não

existia. Os monarcas alemães demonstravam decerto alguma reserva ou


mesmo hostilidade latente em relação aos judeus, mas, na qualidade de

reis cristãos, reivindicavam também o status de protetores de todos os que

residiam em suas terras, incluídos os judeus.

As tradições de discriminação anti-semita prevaleceram um bom

tempo na Prússia sob Frederico II, por exemplo, mas foram rapidamente
atenuadas por homens como o conde Hoym, ministro da Silésia, célebre por
sua tolerância, que concedeu os plenos direitos cívicos a 24 famí-
A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E

341

lias judias e direitos parciais a 160 outras (não havia muitas mais).

Lavradores, negociantes ou banqueiros, de acordo com sua classe social,


os judeus puderam levar uma existência pacífica na Prússia, e
aparentemente foi sem torcer muito o nariz que a população os deixou
transformar Breslau em centro de cultura talmúdica internacional.
Dyhemfurt, perto de Breslau, viu surgir a partir de 1771 o primeiro jornal
redigido

em hebreu da Alemanha, o Dyhernfurterprivilegierte Zeitung. Outras gráficas


publicavam livros em hebreu ou em judeu-alemão.

Frequentemente descrita como o berço do anti-semitismo, a Prússia

foi, ao contrário, particularmente tolerante. A prova disso é que, por volta


de 1840, ela contava mais ou menos com dois terços da população judia da
Alemanha, constantemente acrescida dos emigrados da Ucrânia,

ou seja, 200.000 pessoas para um total de 350.000judeus.1

Eles podiam construir sinagogas (chamadas de “templos”), celebrar

festas e manter suas tradições. No sul católico a presença de judeus não

foi tão bem tolerada, como ficou demonstrado pelas revoltas “Hep!

Hep!” de 1819, descritas anteriormente. Mas, enfim, uma vez passada a

reação que se seguiu ao fim do império francês, a sorte dos judeus na

Alemanha parecia ter-se estabilizado. É possível que as autoridades alemães


dos diversos Estados tenham encorajado a corrente do reformismo judeu.
Representado por Abraham Geiger (1810-1874), essa corrente

esforçava-se para libertar o judaísmo do legalismo rígido e da casuística

que havia prevalecido desde o estabelecimento do Talmude da Babilónia,

recorrendo à razão e à pesquisa histórica.2 A pesquisa talmúdica adotava

os mesmos caminhos académicos que a universidade; ela se revestia da

respeitabilidade doutoral que os meios eruditos alemães tanto apreciavam.3


Os judeus alemães estavam progressivamente parando de falar iídiche para
empregar um alemão correto.

A formação do império alemão sob o comando de Otto von Bismarck

em 1871 e a guerra franco-prussiana de 1870-18714 marcaram mais uma

etapa na emancipação dos judeus alemães: sete mil deles serviram no

exército alemão. Paradoxo doloroso: enquanto na França os judeus eram

tachados de estrangeiros, os da Alemanha batiam-se de verdade contra a

França. Em 5 de outubro de 1870 e no dia seguinte, de acordo com o édi​


342

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

to do general von Manteuffel, os soldados alemães estacionados diante de

Metz foram licenciados para celebrar o\òm Kipur. “Nós, judeus alemães,
somos alemães e nenhuma outra coisa”, proclamava o jornal religioso

judeu Israelit em 1850.5 A Alemanha admitia a existência dos judeus não só

em seu território como também em seu exército, e respeitava sua religião.

Claro, ainda impunha diversas restrições a sua admissão em cargos


públicos, bem como em certas atividades: não tinham sempre o direito de
possuir terras, sua exclusão das guildas proibia-lhes o trabalho artesanal e,
caso tivessem sido admitidos em alguma função pública, não se poderiam

tornar procuradores do Império.

A indústria, entretanto, continuava aberta para eles. E os judeus fizeram


maravilhas. Enquanto a população judia de Berlim representava apenas
3% do total, a metade dos industriais da capital era judia. Acontecia a
mesma coisa no resto da Alemanha: Heinrich Caro, modesto químico na

nascente indústria da anilina, tomou-se em 1866 um dos fundadores do

gigante I. G. Farben. Os irmãos Loewe fundaram fábricas de máquinas

de costura em 1869, depois se lançaram na fabricação de bondes,


automóveis e, tempos depois, aviões. No final do século XIX, a pirâmide
económica das comunidades judias se havia invertido: eram os ricos os mais
numerosos, e os pobres, os menos. A teoria de um anti-semitismo latente
dentro da sociedade, tal como propõe Daniel Goldhagen,6 não é específica
da Alemanha; ele existia em outros países europeus, e o anti-semitismo
alemão, muito pelo contrário, parece ter sido moderado a se

julgar pelas cifras: em 1807,550 dos 662 bancos da Prússia eram de


propriedade de judeus.7 Quando o industrial Georg von Siemens e o
banqueiro Adalbert Delbruck, não judeus, quiseram desenvolver o
Deutsche Bank em 1870, justamente o ano em que o sentimento nacionalista
alemão estava em seu ápice, convidaram o judeu Ludwig Bamberger para
ser fundador e diretor. E Bamberger não era exatamente

um personagem “recomendável”: era tido como revolucionário e fora

banido da Alemanha por sua participação nas insurreições de 1848. Ainda


assim, esse mesmo Bamberger foi eleito no ano seguinte para o primeiro

Reichstag do Império.
A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E

343

O Dresdner Bank, o mais poderoso depois do Deutsche Bank, foi

fundado pelo judeu Eugen Guttman. E, quando o chanceler Otto von


Bismarck precisou de um banqueiro em 1859, fez questão que fosse “um

banqueiro judeu”. Recomendaram-lhe Gerson Bleichrõder que, ao final

da guerra franco-prussiana de 1870, foi convidado pelo rei da Prússia

para fazer parte da delegação alemã que ia discutir os prejuízos de guerra

na Conferência de Versalhes. Em 1872, Bleichrõder recebeu um título de

nobreza do rei, tendo sido o primeiro judeu a ser agraciado. Mas existiram
outros.

Certamente não eram sinais de hostilidade aos judeus. Pelo menos

não por parte das classes dirigentes, da administração ou da burguesia. Se

o anti-semitismo tivesse sido tão poderoso na Alemanha do século XIX e

do começo do século XX, como defende Goldhagen, os poderes públicos

não teriam deixado que se formassem os impérios alemães da imprensa

como o de Leopold Sonnemann, fundador do Frankfurter Zeitung em

1866, o de Rudolf Mosse, fundador da Berliner Tageblatt em 1871, o de

Leopold Ullstein, fundador do Berliner Abendpost em 1887, o do Berliner

Illustrierte Zeitung em 1894 e o do Berliner Morgenpost em 1898. Também

não teriam deixado Abraham Oppenheim, de Colónia, tomar-se em 1835

vice-presidente da companhia das estradas de ferro renanas, a primeira a

ligar Colónia a Anvers, nem o barão Maurice de Hirsch fundar em 1869

o Orient Express, que ia de Constantinopla até Viena, nem Albert Ballin

tornar-se presidente da Hamburg-Amerika Linie, mais conhecida pelo


nome de HAPAG, uma das primeiras companhias de navegação do mundo.
Ballin era um amigo pessoal do kaiser Guilherme II.8

O poderio financeiro judeu, maior na Alemanha do que em qualquer

outro país da Europa, ao encontrar uma saída natural na indústria,


permitiu aos judeus participarem de maneira essencial na industrialização
do Reich. Bismarck não se enganou a esse respeito: a lei orgânica de

1864, que concedeu “a igualdade civil aos cidadãos de religião israelita”,

confirmada pela lei de 1869 sobre a igualdade das confissões no plano

civil e cívico, foi estendida a toda a Alemanha após a proclamação do

Império em 1871. Eles eram 600.000 em 1910, ou seja, 1% da população,

que totalizava 60 milhões.9


344

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

Seu civismo parecia irreprochável, mesmo que não fosse do gosto de

todos. Talvez protestassem um pouco alto, o que fazia com que fossem
ironicamente qualificados de cidadãos judeus de confissão alemã; de

todo modo, finalmente, não pertenciam mais à “nação judia”. A União

Central dos Cidadãos Alemães de Religião Judaica, a Centralverein deuts-

cher Staatsbiirgerjudischen Glaubens, que reunia 70.000 membros, sem


contar os outros 200.000 indiretamente afiliados em organizações-satélites,
havia abandonado a definição estreita do judaísmo em favor de uma

interpretação correspondente ao estado de espírito dos judeus seculares

apegados a sua herança cultural, como chamou atenção Ruth Gay.

Confiando na proteção do Estado imperial, a Centralverein encorajou os

judeus a continuar judeus em virtude do direito jurídico que lhes era


garantido.
Dois acontecimentos vieram abalar aquela paisagem pacífica. O primeiro foi
a chegada em cena de uma nova geração de jovens que não tinha mais as
mesmas razões de satisfação dos que tinham vivido a emancipa​

ção. Beneficiária de melhores condições de vida e de uma educação superior,


esses jovens sentiam, contudo, a opressão das barreiras de um preconceito
mais ou menos tácito. Para eles, a despeito da melhoria da condição dos
judeus no Império, a questão judia não estava resolvida. Uma parte dessa
juventude aderiu ao sionismo, ao qual Theodor Herzl havia

oficialmente dado forma no Congresso de Basiléia de 1897. Outra

lançou-se em atividades políticas dentro dos... grupos nacionalistas


alemães.10

Tomadas de posição assim tão abertas constituíam uma atitude audaciosa,


poucos anos depois de Bismarck ter concedido aos judeus a igualdade de
direitos. O mesmo Ludwig Loewe, mencionado mais acima como industrial,
fabricante de máquinas de costura e de fuzis, foi eleito

deputado no Reichstag em 1878 e militou no partido do Progresso,

socialista, contra Bismarck (que, em seguida, proibiu o partido socialde-

mocrata). Bamberger, outro deputado, militava também contra a política

imperialista de Bismarck. Confrontado abertamente com um anti-

semitismo que a proteção imperial mantivera adormecido, demitiu-se

em 1894 de seu cargo. Paul Singer, outro deputado judeu, representava o


A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E

345

movimento operário berlinense do qual se tornou um dos chefes junto

com August Bebei e Karl Liebknecht. Eleito para o Reichstag, denunciou


também a exploração operária e foi expulso da Alemanha em 1886, devido
às leis anti-socialistas, assim como Éduard Bernstein, teórico da
socialdemocracia. Os dois últimos dispunham de uma certa influência:

Singer foi o fundador da Volksblatt e Bernstein, do Berliner Volkszeitung. O

mínimo que se poderia dizer é que seu público era antibismarckiano.

Diga-se de passagem que a orientação socialista de uma parte da intel-

ligentsia judia alemã estava de acordo com o ideal sionista.

Por outro lado, e foi a segunda razão de problema, os judeus estavam

começando a se tornar muito visíveis, provavelmente em excesso. Não

mais peles levitas e pelos filactérios, mas por sua influência no Estado —

sem contar a rebelião de seus políticos contra o governo imperial. Para

dar mostra de seu reconhecimento social, as comunidades judias das

grandes cidades mandavam construir sinagogas monumentais (realizadas,


por sinal segundo planos de arquitetos cristãos, pois não havia arquitetos
judeus, donde sua perturbadora semelhança a basílicas romanas, igrejas
góticas ou templos protestantes). A última, construída antes de 1914, em
estilo neoclássico na Levetzowstrasse, em Berlim, e inaugurada em abril de
1914, podia acolher duas mil pessoas. Confiante nas instituições do Império,
a juventude começou a manifestar uma certa agressividade em relação aos
que teriam se deixado levar pela má vontade a seu respeito: “Em 1886, um
grupo de estudantes judeus de Breslau formou

um clube de esgrima a fim de poder sustentar duelos contra pessoas que

os haviam ofendido”, escreveu Ruth Gay. Sua bandeira trazia as palavras

Nemo me impune lacessit, “Ninguém me ofende impunemente”.

Atléticos, elegantes e seguros de si, os jovens judeus certamente em

nada se pareciam com as caricaturas de duas décadas atrás. Eles


encarnavam um novo judaísmo, como nunca mais fora visto desde o
Império Romano, diante de uma consciência nacional alemã arcaica e
exclusiva,

como todas as consciências nacionais que estavam se formando no resto

da Europa. Pois — e, em minha opinião, o ponto permanece até hoje

insuficientemente analisado — todas as consciências nacionais são


constituídas a partir de um passado mitificado.11
346

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

O anti-semitismo alemão, tal como iria se desenvolver até o surgimento do


nazismo, estreou, contudo, nos meios intelectuais muito conservadores e
frequentemente produtores de mitos. Panfletos do tipo Gegen Juden,
“Contra os judeus”, de Grattenauer, e os do reputado universitário
Wolfgang Menzel circulavam há vários anos, denunciando os defeitos da
burguesia judia, evidentemente pouco à vontade nos costumes dos gentios
que ela tivera que adotar em poucos anos, e suas tradi​

ções ancestrais. O sucesso internacional do poeta Henri Heine, judeu

batizado, mas não convertido, um dos mestres incontestados da língua

alemã, exasperava particularmente os intelectuais devido a suas visões

francamente pejorativas dos alemães:

A Rússia e a Franga reinam sobre terras

A Grã-Bretanha sobre os mares,

Nós reinamos sobre o nebuloso reino dos sonhos,

Onde não existem rivais,


escrevia ele em 1830.
E, com a mesma veia, em 1855: “Quanto à Alsácia e à Lorena, não

consigo incorporá-las ao Império alemão tão facilmente quanto vocês o

fazem. As pessoas dessas regiões são intensamente apegadas à França por

causa dos direitos cívicos que ganharam durante a Revolução

Francesa...”12

Suas descrições dos alemães não eram menos caricaturais do que as

dos judeus pelos alemães: “São sempre os mesmos casacos cinzentos

com o colarinho alto e vermelho (o vermelho significa o sangue francês,

cantava antigamente Koemer em seus ditirambos guerreiros). É sempre

o mesmo povo de fantoches pedantes, sempre o mesmo ângulo reto a

cada movimento, e no rosto a mesma suficiência gélida e estereotipada.”

Fantoches, pedantes, fariseus, filisteus, decididamente era demais, e

Heine foi posto no pelourinho. E junto com ele, aliás, os judeus.

“Batizados ou não, é a mesma coisa. Nós não detestamos a religião

dos judeus, mas as numerosas e detestáveis características dessa gente

asiática e, entre elas, sua impudência e presunção frequentes, sua imora​


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347

lidade e frivolidade, seu comportamento barulhento e visão frequentemente


desprezível da vida (...) Eles não pertencem a nenhum povo, nenhum
Estado, nenhuma comunidade; erram pelo mundo como aventureiros,
farejando à sua volta (...) e ficam onde encontram grandes ocasiões para
especular. Quando tudo está tranquilo e conforme com a lei, acham que está
desconfortável”, retorquia Éduard Meyer, um dos panfletários anti-semitas.
Mas Heine já tinha morrido há vários anos, e a querela prosseguia. Um dos
anti-semitas mais influentes da década de

1870, Heinrich von Treitchske, declarou em sua Histoire de 1’Allemagne au

XIX? siècle^ que a Alemanha tinha lentamente chegado à conclusão de

que as tiradas do poeta não poderiam jamais corresponder ao espírito


alemão. “O espírito alemão” tinha, pois, consciência de uma identidade14 e
de fato percebia ou acreditava perceber uma virtude revolucionária na

rejeição da tolerância aos judeus. E essa virtude ia no “sentido histórico”

de uma afirmação nova da identidade.15 Reconhece-se aí a nova


metamorfose do conceito de Estado-Nação descrito anteriormente.

A unificação da Alemanha imprimiu uma velocidade formidável a

um feixe confuso de aspirações que até então haviam emanado de


populações muito diversas. Os antigos reinos alemães tinham sido unidos
sobretudo pela língua. A respeito de outras questões, católicos do sul e

protestantes do norte, pomerânios e bávaros, westfalianos e silesianos

eram tão diferentes quanto podem sê-lo, hoje em dia, os irlandeses e os

ingleses, ou ainda sicilianos e lombardos. De repente materializara-se a

idéia de uma nação poderosa, suscetível de reivindicar uma única cultura. O


Império tomava-se maior do que a soma de suas partes. Seus súditos
descobriram nisso um novo motivo de orgulho.

As repercussões foram vistas nos novos panfletos e conferências de

anti-semitas como Eugen Diiring, Paul de Lagarde, Wilhelm Marr, o

inventor, como dissemos nas primeiras páginas deste livro, da expressão

“anti-semita”. Não era mais por causa de seu não cristianismo que os
judeus eram rejeitados, mas por serem portadores de uma doença racial

que ameaçava contaminar a vitalidade da raça alemã. O que poderia ser

exatamente essa “doença racial”, ninguém jamais soube e provavelmente

os próprios defensores dessa tese o ignoravam: a língua alemã presta-se


348

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

particularmente a essas aproximações eloquentes, porém brumosas: ras-

sische Krankenheit soa mais convincente em alemão do que em inglês ou


em francês, mas continua de todo modo oca.

Como destaca Gordon A. Craig,16 esse discurso confuso estava

envolto em uma massa de idéias emprestadas de antropólogos (como na

França na mesma época, com o mesmo pouco fundamento e mesma má-

fé e ausência de rigor científico), biólogos (que nada tinham a dizer sobre

o assunto, porque a biologia não tinha nenhuma competência sobre as

religiões e ainda não tinha sido descoberto o DNA, grande anulador do

conceito de raças humanas), psicólogos (ainda menos qualificados), teólogos


(os últimos em competência na matéria), que lhe concederam uma
aparência de autoridade científica. Em termos claros, intelectuais efetuaram
pela primeira vez na história da Alemanha uma fusão da Kultur com

o racismo, mal lambuzada de ciência, e que produziu um efeito alarmante: a


identificação da cultura a uma produção antropológica. Os judeus não eram
assimiláveis porque sua “natureza” era o produto de uma “cultura racial”
perigosa para a raça alemã. Destaquemos, a este respeito, que tais conceitos,
retomados e desenvolvidos pelo nacional-socialismo com

as repercussões que se sabe, continuam a ser bastante e correntemente

utilizados por diversos grupelhos no final do século X X , não só na

França, na Inglaterra e na Alemanha, como na ex-Iugoslávia, na Rússia e


mesmo nos Estados Unidos.
Essas elucubrações pedantes apresentam o interesse histórico de

indicar a evolução das idéias anti-semitas, mas devem ser consideradas

com o mesmo olhar do biólogo que examina uma cultura de bactérias em

uma placa de Petri. Ao contrário das teses de Golghagen,17 decididamente


não eram defendidas pela massa do povo: seu próprio exagero as
depreciava. Os judeus estavam suficientemente disseminados em meio à

população para que qualquer um pudesse ver que eles não passavam o

tempo a envenenar os poços, que falavam um excelente alemão e educavam


os filhos como todo mundo. Eles tinham uma religião e a celebravam dentro
de templos absolutamente apropriados, alguns até suntuo-sos. Ninguém em
seu juízo poderia ter previsto que meio século mais

tarde só restariam destroços daquela paisagem.


A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E

349

A hipótese de um anti-semitismo psicopático disseminado por todas

as camadas da população alemã desde as primeiras décadas do século X IX


é exagerada a ponto de ser falsa. A verdade é provavelmente mais simples:

os judeus da Alemanha só tiveram acesso aos direitos cívicos a partir de

1871, quando então passaram naturalmente a chamar a atenção das

populações, sempre prontas a julgar se os novos eleitos mereciam ou não

os recentes privilégios; este é um ponto de psicologia das massas facilmente


desprezado por historiadores posteriores, como também pelos próprios
judeus da época. No final dos anos 1870, o historiador Theodor

Mommsen, escandalizado com os escritos anti-semitas de seu colega

Treitschke, deplorava a impossibilidade de remediar o anti-semitismo

por intermédio da razão. “E inútil, completamente inútil...”, escrevia ele.

“É uma epidemia horrível, como o cólera, que não pode ser explicada

nem curada.” Mas talvez fosse ainda um pouco cedo, apenas oito ou nove

anos depois da admissão oficial dos judeus na sociedade alemã, para julgar
o enraizamento do anti-semitismo.

E tanto mais que, no mesmo período, um acidente não provocado

nem pelos judeus nem pelos alemães havia subitamente reavivado os

preconceitos anti-semitas. Nos anos 1870, diversas bancarrotas ocasionadas


pela bancarrota do magnata judeu da indústria Bethel Henry Strousberg,
em 1873, terminaram por manchar a reputação de savoir-faire

dos financistas judeus e por dar nova força, dessa vez entre a população

comum, aos clichés sobre o civismo dos judeus. Quando eles tinham

sucesso, eram uns exploradores e, quando se viam arruinados, eram uns

trapaceiros. Strousberg fundara uma companhia de estradas de ferro que


deveria construir vias férreas na Roménia. Este país não pôde honrar suas

dívidas. Em 1873, Strousberg entrou em falência arrastando outras


companhias e provocando um craque na bolsa.

O caso teve implicações desastrosas: Strousberg e muitos de seus

associados eram judeus, e a bolha financeira criada pelo sucesso das

empresas industriais e financeiras, não judias bem como judias, tinha

atraído numerosos pequenos investidores. Mas tinha da mesma forma

atraído bom número de espertalhões interessados em aproveitar o frenesi


especulativo. Os pequenos acionistas se viram, pois, arruinados. Dessa
350

H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O

aventura, o público reteve apenas que a responsabilidade era dos judeus,

sem dar importância ao fato de que o deputado judeu Eduard Lasker


alertara publicamente a opinião pública a respeito da fragilidade da bolha

financeira, e que foi o banco Bleichrõder & Cia., também judeu, que

garantiu os prejuízos.18

Em 1893, havia de fato um partido anti-semita na Alemanha, detentor de 13


assentos no Reichstag. Mas nem por isso deixa de ser excessivo, senão falso,
dar a entender, como Goldhagen o faz, que o anti-semitismo

ativo penetrara toda a população.19 A memória histórica deve abster-se

em tais casos de ser seletiva, sob pena de incorrer em erros fundamentais

de apreciação. Torna-se necessário recorrer a comparações com a época

contemporânea: os 13 assentos do partido anti-semita não dispunham de

importância superior à que corresponde aos 15% dos votos obtidos pelo

Front Nacional na França do começo de 1998. A prova é que, se “o anti-

semitismo eliminacionista”, para retomar a expressão de Goldhagen,

tivesse dominado a Alemanha de Guilherme II, o desenvolvimento das

comunidades judias não teria podido prosseguir, como de fato aconteceu,


até a queda da República de Weimar.

O anti-semitismo existia na Alemanha em 1914 como no resto da

Europa; era, como no resto da Europa, comparável a uma infecção latente


que nada deixava transparecer que se pudesse tomar devastadora. Os
alucinados discursos anti-semitas de Herman Ahlwardt19 não eram nem

mais, nem menos virulentos do que as vociferações de Éduard Drumont.

Mas, de todo modo, a participação das minorias judias na expansão

industrial, financeira e económica alemã prosseguia com bastante vigor,


uma vez que o país inteiro se via beneficiado e a opinião pública se dava

conta disso. O acesso dos judeus às universidades ofereceu ao Império

uma série de invenções científicas e técnicas efetuadas por judeus: o

principal avião durante a guerra 1914-1918, o Taube, foi concebido pelo

judeu Edmund Rumpler (1872-1840), e o fonógrafo, o disco e o microscópio


foram inventados pelo judeu Émil Berliner (1851-1929), fundador da
Deutsche Grammophon-Gesellschaft, a célebre firma ainda em atividade
nos dias de hoje. Benno Strauss (1873-1944) participou da invenção
A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E

351

do aço inoxidável nas fábricas Krupp, da qual foi um dos diretores até

1934. Paul Ehrlich (1854-1915), um dos maiores pioneiros da biologia


moderna, inventou o método de coloração das bactérias, que permitiu

grande avanço à bacteriologia moderna, à quimioterapia e o primeiro

remédio conhecido contra a sífilis, o 606— Salvarsan.20 A lista é longa. E

como esquecer Albert Einstein, nativo de Ulm, mesmo que se tenha

mudado para Zurique após uma passagem frustrante pelo ginásio

Luitpold de Munique?21 Os judeus decididamente eram bastante preciosos


para a Alemanha de Guilherme II.

E depois sobreveio o primeiro apocalipse, a Primeira Guerra Mundial, que


devastou a Alemanha sob todos os pontos de vista— social, político e
psicológico. E não só a Alemanha como o mundo inteiro.

Os judeus não tiveram nenhuma responsabilidade nisso. O horror

de todo o século XX , esse horror que aqueceu as chamas do anti-

semitismo na temperatura do inferno, foi a ilusão darwinista dos fracos:

aquela que acredita que o mundo é uma selva em que triunfa apenas a

razão do mais forte. Foi a era do antidemocratismo e dos cesarismos. O

teatro principal dos acontecimentos foi decerto a Alemanha, pois foi lá

que o nazismo exerceu suas devastações, mas o solo europeu em seu

conjunto estava pronto para acolher os germes da intolerância.

Uma época se decifra por sua cultura ou, mais precisamente, no caso,

por seus escritos. Na França, por exemplo, as elites intelectuais estavam

claramente dominadas no primeiro quarto do século X X por escritores

pré-fascistas,22 tais como Maurice Barrès, Charles Péguy e Charles


Maurras, para não citar senão os mais célebres, mas sem esquecer Louis-

Ferdinand Céline. Cada um desenvolveu sua tese: os discípulos de

Péguy, a do espiritualismo populista, os de Barrès, uma cultura


tradicionalista e “nacional” — de fato nacionalista e bem mais próxima da
Kultur alemã do que da cultura como a entendia Goethe — , os de Maurras,
um

neoclassicismo que permitia rejeitar a modernidade, portadora dos germes


desagregadores do cosmopolitismo e de valores estrangeiros. Todos estavam,
no fundo, imersos em uma aspiração à ordem, uma ordem bem

“francesa”, que recorria com muita frequência ao totalitarismo, e todos


352

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

eram hostis a uma democracia que dava voz com muita facilidade a
elementos parasitas. Já Céline constituiu um caso à parte, e sua importância
foi desmesuradamente inflada no pós-guerra.23
Talvez nos surpreendamos por encontrar em meio a esses “faróis” o

nome de Péguy, dreyfusista e republicano militante. Mas, mesmo que

sua defesa de Dreyfus tenha sido inegavelmente sincera, seu republicanismo,


por outro lado, foi mais do que duvidoso, como é possível julgar por estas
linhas, entre outras: “Este pavoroso sistema republicano... o

único que prevalecerá no mundo moderno, o menos popular, o menos

profundamente popular que já existiu ou que já vimos no mundo, e

sobretudo o menos republicano, reina inconteste na história.”24

Estranho lamento! A dissociação, em Péguy, do republicanismo e da

democracia sob o signo do “povo” lembra, com efeito, a ideologia fascista

bem mais do que a ideologia republicana clássica, e sua república mística

se parece curiosamente com a monarquia de princípio que Maurras


defendia. As duas estão inscritas no nacionalismo identitário, mencionado
no próximo capítulo, em oposição ao nacionalismo democrático. Esse
parentesco foi a razão pela qual, aliás, os fascistas franceses se referiram
com tanta frequência a Péguy. É claro que sua orientação não significa que,
por ser fascista, tomou-se anti-semita, mas que de fato pertenceu à corrente
que

veio a favorecer a larga adesão da França ocupada ao regime de Vichy.

Barrès e Maurras, por sua vez, anunciavam mais claramente o anti-

semitismo e o racismo francês, não só por serem antidreyfusistas declarados


e anti-semitas militantes, mas também porque sua própria ideologia era a
da exclusão. Para eles, e mais claramente para Maurras, política e cultura
estavam indissolúvel e organicamente ligadas; eram as matrizes

que conferiam identidade ao indivíduo. Entendamos com isso que os

judeus (e todos os outros estrangeiros) não poderiam ser franceses, uma


vez que suas tradições eram diferentes daquelas relativas à cultura francesa.
Esse discurso, de devastadora imbecilidade sob seu aparente bom senso,
dava a entender que os americanos, compostos de ingleses, alemães,
irlandeses, franceses, holandeses, asiáticos, africanos, orientais —

sobretudo daqueles orientais aos quais Maurras conservava seu rancor25


A ILUSÃO ALEMÃ E A CRISE DO O C ID E N T E

353

— , sem falar dos índios, eram um povo decididamente inexistente. Ele

não lera Tòcqueville!


Esse discurso, contudo, influenciou gerações de intelectuais e escritores.

Mas da mesma forma uma época é decifrada por seus movimentos

sociais, e os temas de fascismo clássico podem ser localizados num

momento bastante esquecido da história dos anos anteriores à guerra: o

fascismo dos camponeses franceses dos anos 30, representado pelos

camisas-verdes de Henri Dorgères e seus comités de defesa camponesa.

Estava tudo lá: necessidade de arrancar a pátria dos políticos corruptos e

a economia dos judeus aproveitadores, rejeição da democracia parlamentar,


mito da “França profunda,” etc.26

Na Itália, desde o começo do século, uma fermentação intelectual e

social produziu um fenómeno singular que foi o de jogar o sindicalismo,

por tradição antimilitarista, dentro da corrente de um ativismo anti-

racionalista e belicista, sob a evidente influência do teórico francês

Georges Sorel e de sua obra mais célebre, Réjlexions sur la violence,27 na

verdade uma apologia da violência. Obteve-se assim o “sindicalismo

revolucionário”, que tomou forma sob a influência de pensadores como

Arturo Labriola, Paolo Orano e Giuseppe Prezzolini. Após diversas

mutações, incluída uma colusão com o futurismo de Marinetti, veemente


admirador de Mussolini, esse movimento realmente revolucionário e
antinacionalista evoluiria, cerca de 15 anos mais tarde, na direção do pólo
oposto ao fascismo.
Repercussões tardias e muito atenuadas dessa corrente essencialmente
continental alcançaram o mundo anglo-saxão nos anos 20; os representantes
mais conhecidos são o pintor e escritor inglês Wyndham

Lewis e o célebre poeta americano Ezra Pound, mussolinista fervoroso

que acabou sendo preso depois da guerra 39-45 por suas declarações pró-

fascistas na rádio de Roma durante a guerra.

O Ocidente tornara-se então uma presa da febre geral. Eram três os

sintomas mais aparentes. O primeiro era a arrogância nacionalista devida

à expansão colonial. A Europa cristã tinha sob seu jugo cerca da metade

do mundo: a quase totalidade da África, o subcontinente e o sudeste asiá​


354

H I S T Ó R I A G E R AL D O A N T I - S E M I T I S M O

ticos e a maior parte da Oceania. Ademais, exercia tutela indireta sobre

numerosas regiões, como a América Central e o Oriente Médio. O


homem branco tinha o sentimento de ser o mais poderoso representante da
humanidade.

Em seguida, a instabilidade social e política, que se iria exacerbar a

partir da revolução russa de 1917 e da revolução alemã de 1918. Um


sentimento apocalíptico flutuava, bem refletido na célebre obra de Oswald
Spengler, escrita em 1914 e publicada em 1918, O Declínio do Ocidente;

esse sentimento era reforçado pela evolução rápida das técnicas, que
abalaram os modos de vida tradicionais (o automóvel, o telefone, o rádio),
assim como pelo pressentimento de guerras iminentes. A crispação que

se seguiu favoreceu o nascimento de nacionalismos identitários, que

foram inevitavelmente anti-semitas.

Finalmente, uma onda de irracionalismo desencadeou-se sobre o

mundo, da qual as teorias de Bergson sobre o elã vital, a psicanálise e a

descoberta do inconsciente, o futurismo, o dadaísmo e depois o surrealismo


são os reflexos mais ou menos exatos. A cultura do Iluminismo estava em
crise, e com ela o sistema de valores herdado do século XVIII.

Nenhum destes aspectos era favorável à tolerância.


A I L U S Ã O AL E MÃ E A C R I S E D O O C I D E N T E

355

Bibliografia e notas críticas

1. Nachum T. Gidal, Les Juifs en Allemagne, op. cit. O número é contudo


sujeito a
revisão, e certas fontes indicam uma população claramente inferior; outras,
superior.

2. Abraham Geiger, Allgetneine Einleitung in die Wissenschaften des


Judentums,

Nachgelassene Schriften (Berlim, 1872); Ruth Gzyjews of Germany, a


Historical Portrait (Yale University Press, 1992).

3. Em maio de 1872, a HoclischuleJiirdie Wissenshajt desJudentums abriu suas


portas em

Berlim (de início em umas poucas salas alugadas) e deu cursos com a
colaboração de historiadores como Eugen Tãubler e Ismar Elbogen, de
linguistas como Franz Rosenthal, de sociólogos como Franz Oppenheimer.
Era o modelo dos cursos universitários alemães.

4. Ela começou pela formação da Confederação da Alemanha do Norte, que


unificou os principados alemães ao norte do Main.

5. Ruth Gay,Jews of Germany, a Historical Portrait, op. cit.

6. Os Carrascos Voluntários de Hitler (Companhia das Letras, 1997).


Goldhagen escreveu justamente que, no contexto do século XEX e como
preâmbulo ao projeto “eliminatório” que os alemães vinham fomentando de
longa data, “o modelo cognitivo da ontologia que sustentava a visão mundial
essencialista, racista e nacionalista ( Volkisch) contradizia e não admitia sua
contrapartida cristã, segundo a qual todas as almas poderiam ser salvas
pelo batismo...” Goldhagen afirma igualmente que, mesmo convertidos, os
judeus eram considerados inexoravelmente judeus.

Mas, com relação ao problema específico da conversão, os fatos desmentem


sua teoria: tão logo se convertiam, os judeus eram considerados cristãos.
Assim, Eduard Gans, um dos fundadores da Sociedade para a Cultura e a
Ciência dos Judeus, converteu-se em 1825

e foi admitido no ano seguinte na universidade de Berlim, até então fechada


aos judeus.

Nomeado professor ordinarius, ou seja, exatamente igual aos outros, Gans


conservou esse

posto até a morte em 1839. A época de Guilherme II, o batismo continuava a


sancionar a

alteração de status do judeu, sem o que não se veria razão para


12.000judeus se terem convertido entre 1880 e 1910 (Ruth Gayjews of
Germany, a Historical Portrait, op. cit.).

Goldhagen não parece ter tido conhecimento dos escritos de Édouard


Drumont

publicados na mesma época, que eram não menos mais ferozes e que
exprobravam bem
mais o mundo.
7. Ruth Gzy,Jeivs of Germany, a Historical Portrait, op. cit.

8. Esses dados foram tirados de Ruth Gayjews of Germany, a Historical


Portrait, op. cit.
356

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

9 .Id.

10. Nachum T. Gidal, Les Juifs en Allemagne, op. cit.


1 1 . 0 tema pode parecer aqui pouco importante, mas ele merece alguma
considera​

ção, pelo menos no âmbito do nacionalismo que desencadeou a terceira


onda histórica de

anti-semitismo: todas as celebrações nacionais, das mais sinceramente


republicanas às

mais extremistas, enaltecem um passado que tende a cristalizar atitudes


mentais. É um

excesso de ardor, por exemplo, o fato de a França celebrar o Armistício de


11 de novembro de 1918 (que deu fim ao primeiro dos terríveis morticínios
do século XX ), apresentando-o como uma vitória da pátria sobre a
Alemanha. Exemplo reforçado pela

emoção alimentada por declarações do primeiro-ministro, exortando a que


se associasse

àquela cerimonia de recordações as insurreições de 1917.

12. Germania, Poèmes et Légendes, em CEuures complètes (Calmann-Lévy,


1880).

13. History o f Germany in Nineteenth Century, introdução e comentários


críticos de

Gordon A. Craig (University of Chicago Press, Chicago, 1975).

14. Paul Lawrence Rose, Revolutionary Antisemitism in Gemiany, from Kant to


Wagner

(Princeton University Press, Princeton, 1990).

15. Peter G. J. Pulzer, Die Enstehung des politischen Antisemitismus in


Deutschland und

Õsterreich, 1850-1914 (Giitersloh, 1966). Não é para causar estranheza o


fato de os defensores da pureza cultural e racial da Alemanha (e da Áustria)
se considerarem autenticamente revolucionários no sentido histórico
decorrente das teorias de Hegel. Tal sentimento que, como se verá, se
introduziu praticamente sem modificações em toda a ideologia do Terceiro
Reich, continuou sendo percebido como “revolucionário” durante os anos
1933-1945. Fez com que os intelectuais nacionalistas se sentissem arautos (e
heróis)

de um ativismo inspirado em valores autênticos, reagindo contra uma


burguesia atacada

de amolecimento. Eram, aliás, as mesmas convicções que animavam os


marxistas na mesma época. Foram só as condições económicas que
decidiram o triunfo do nacional-socialismo contra o comunismo. Mas, por
um cruel paradoxo, a Alemanha se veria após

1945 dividida em dois países por duas interpretações diferentes do “sentido


histórico”, de
acordo com Hegel.
16. Gordon A.. Craig, The Germans (Penguin Books, Londres, 1982/1991).

17. Citando Klemens Felden, autor cujo rastro infelizmente não consegui
localizar,

que teria enumerado em Die Uebemahme des antisemitischen Stereotyps, 51


autores e publicações anti-semitas entre 1861 e 1895, Daniel Goldhagen, em
Carrascos voluntários de Hitler, op. cit., assegura por sua vez haver
recenseado na mesma fonte 28 soluções para o

problema judeu, das quais 19 apelando para sua eliminação física (Cap. 4,
The Evolution of

Eliminationist Antisemitism in Modem Germany). O amálgama da quantidade


de autores e

panfletos (Fijty-one ProminentAntisemitic Writers and Publications) é pouco


conforme as dis​
A ILUSÀO ALEMÃ E A CRISE DO O C ID E N T E

357

ciplinas históricas: quantos autores havia e quantos panfletos? Pois a


formulação permite

suspeitar de que determinados autores teriam publicado diversos planfletos.


Mas não é a

única vez que os escritos de Goldhagen beiram os limites da boa-fé que se


tem direito de

esperar de uma tese tão provocadora quanto a sua: ele já havia mencionado
que “uma

grande porcentagem de anti-semitas não propunha nenhuma intervenção”,


o que o

espantava... Portanto, os que desejavam a eliminação dos judeus eram uma


minoria.

A interpretação literal do passado por meio de fontes recentes já é um


exercício

temerário, pois consiste em encontrar o que se está procurando e não outra


coisa; e é ainda necessário não agravar os riscos de erro com distorções. Se a
Alemanha estivesse desde 1861 possuída por um anti-semitismo tão
fervoroso como o que Goldhagen descreveu, e do qual Hitler, sempre
segundo Goldhagen, não teria sido senão a faísca no barril de pólvora,
ficaria difícil de compreender que até a Kristallnacht os judeus não tivessem

sabido de nada. Por absurdo, poderíamos acrescentar que Goldhagen


considera que os

judeus estavam inconscientes do perigo há cerca de 60 anos, o que não é um


elogio.

Toma-se ainda mais difícil compreender por que as autoridades do Império


e depois da

República de Weimar, sem falar das populações, nada fizeram para


entravar a prosperidade dos judeus até praticamente o advento do nacional-
socialismo.

Na realidade, os panfletos histéricos recolhidos por Goldhagen representam


apenas
as opiniões de uma facção extremista, e apresentá-los como peças de
acusação contra a

nação alemã inteira equivale a negar uma lei fundamental da sociologia, que
é a inércia

das massas. Cf. igualmente Norman G. Finkelstein e Ruth Bettina Birn £4


Nation on Trial

— The Goldhagen Thesis and Historical Truth (Henry Holt and Company,
New York,

1998).

Um detalhe pitoresco, porém revelador da reserva dos “alemães comuns”


em rela​

ção aos extremistas nazistas, é mostrado na seguinte história: quando Hitler


e seus acólitos tentaram o famoso golpe da cervejaria Burgerbrãukeller em
Munique, em novembro de 1923, para imitar Mussolini, a direção da
cervejaria encaminhou-lhe uma fatura de

143 bocks, 80 copos, 98 bancos, duas estantes e 148 pratos e talheres


destruídos durante os

incidentes ocorridos no local. (David Clay Large, Where Ghosts Walked:


Munich Road to the

ThirdReich, Norton Londres, 1997).

Como claramente indicou Saul Friedlãnder em UAllemagne nazi et les juifs,


1.1, Les

années de pérsecution (1933-1939), trad. M. F. de Paloméra (Le Seuil, 1997),


os “alemães

comuns” eram certamente anti-semitas, mas permaneceram reticentes


quanto às perseguições de judeus. E como prova imediata do fato, a
clientela tradicional de “arianos”
continuou a frequentar as lojas mesmo depois que o boicote de lojas e
produtos judeus

foi iniciado, em 1933. Durante os cinco anos que se seguiram, esse sistema
funcionou
mal.
18. Gordon A. Craig, The Germans (Penguin Books, Londres, 1982/1991).

19. Professor demitido de seu posto por escroqueria, tomou-se demagogo;


recomendava que os judeus fossem declarados estrangeiros sobre o solo
alemão e que fossem expulsos da vida pública e cultural, bem como que lhes
confiscassem os bens e os deportassem. Contudo, só conseguiu reunir uma
audiência medíocre, relata Gordon A. Craig ('The Germans, op. cit.)
358

HISTÓRIAGERALDOANTI-SEMITISMO

20. Ehrlich já descrevera em 1885 o papel dos vacúolos do protoplasma


celular, tendo introduzido o conceito de receptores celulares, o qual só iria
adquirir importância com o surgimento da biologia molecular, no último
terço do século X X Ele também imaginou, na mesma época, a possibilidade
de matar células doentes privando-as de oxigénio e de sangue, idéia que
conserva toda sua atualidade mais de um século depois. Cf. C. H.

Browning, Émil Behring and Paul Ehrlich: Their Contributions to Science, vol.
175,1955.

21. O jovem Einstein sofreu vexames, como todos os outros estudantes


judeus, no

ginásio Luitpold. Mas, como lembra seu biógrafo Ludwig S. Feuer em


Einstein and the

Generation of Science (Basic Books, Inc., New York, 1974), a causa de sua
partida foi “o

procedimento rígido e clássico dos estudos e da disciplina militar” que


reinava naquele

estabelecimento, assim como a insistência de seus professores para que


deixasse o ginásio. As provas de que estava e se sentia em casa na Alemanha
são numerosas: ele se encontrava em Berlim no momento da capitulação do
comando supremo alemão e da revolu​

ção de 1918, e se encontrava em Nauheim, hospedado com Max Bom, em


setembro de

1920, a despeito dos ataques anti-semitas de que foi objeto por parte de
alguns físicos alemães invejosos de sua notoriedade (The Bom-Einstein
Letters, 1916-1955, cartas 21 e 81, Macmillan, Londres, 1971).

22. A referência ao fascismo no termo “pré-fascista” deve ser entendida aqui


exata-

mente como a ideologia e a história o definiram, isto é, socialismo


corporativista centralizado, bem distinto do nacional-socialismo,
nacionalismo ditatorial de orientação socialista embrionária (sabe-se que os
esforços dos irmãos Strasser para dirigir o nazismo na direção do socialismo
foram anulados por Goebbels). Os termos “fascismo” e “nazismo”

são com frequência empregados de modo indistinto e, portanto, erróneo.


23. É lícito espantar-se com o favor excepcional, com a quase canonização
de que

Céline continua a desfrutar, mesmo entre os espíritos sabidamente pouco


suspeitos de

anti-semitismo, ao contrário de outros autores aos quais, no entanto, não


faltou talento:

Henri Béraud, Léon Daudet, Lucien Rebatet (com exceção de Drieu La


Rochelle, cujo

destino literário foi mais invejável). Este livro não é uma obra de crítica
literária; então

limito-me a dizer que Céline, pelo estilo, parece ser o filho natural de Zola,
portador sem

saber de uma “modernidade” de escrita que muitos se desesperaram por


imitar. Mas sua

graça sinistra não chega a ser superior à de Pierre Desproges, para que
mereça ser erigido

em gigante da literatura. O pensamento de Céline, em compensação, é


inexistente, com

exceção de seu anti-semitismo e de seu racismo, cuja síntese é encontrada


nesse amontoado de lixo que é UÉcole des cadavres.

Não vamos citar aqui o deplorável Robert Brasillach, cujo “belo Gerhardt
Heller”,

agente da Propagandastaffel em Paris, relata ter ouvido a seguinte


observação a respeito

dos judeus: “Eles deveriam ser todos mortos, mesmo as criancinhas.” ( Un


Allemand à

Paris, 1940-44, Le Seuil, 1981.)


24. Clio: Dialogue de VHistoire et de Vâmepaienne (1912-1914) (Gallimard).

25. Pode-se avaliar a aberrante interpretação da história segundo Charles


Maurras,

no que concerne a essa visão, na seguinte passagem:


A ILUSÃO ALEMÃ E A CRISE DO O CID E N TE

359

“Todas as crises modernas importantes têm um caráter oriental: bíblicas em


espírito ou judaicas por intermédio de seus atores no século XVI, a Reforma
alemã, a Reforma inglesa e a Reforma francesa; em seguida, nos séculos
XVIII e XIX, as três revoluções
francesas entre o Terror e a Comuna; e finalmente, no século XX, as
convulsões de

Moscou, Madri e Barcelona. Todas revelam o mesmo traço mais ou menos


aparente, mas

fundamental, todas exprimem hebraísmo intelectual ou então atos hebreus


na carne e no

sangue.” (Citado por David Carrol , French Literary Fascism, Nationalism,


Anti-Semitism,

and the Ideology of Culture, Princeton University Press, Princeton, 1995).


Lutero,

Cromwell, Robespierre “hebreus”: observações tão ineptas seriam motivo


de riso, não

fosse a influência de Maurras no passado.

26. Cf. Robert O. Paxton, French Peasant Fascism, Henri Dorgères’s


Greenshirts and the

Crises of French Agriculture, 1929-1939 (Oxford University Press, 1998).


Filiado à corpora​

ção camponesa de Vichy em 1941, pétainista e nacionalista feroz, foi


contudo progressivamente relegado à sombra devido a seus desacordos com
Lavai e Déat. Personagem balzaquiano, Dorgères foi um dos últimos
descendentes de uma França rural que a urbanização crescente e a
industrialização da agricultura iriam destronar de seu antigo lugar de
honra.

27. Librairie Mareei Rivière, 1907. Sorel exerceu profunda influência sobre
Mussolini.
3.

1933-1945: o erro e o horror

A INJUSTA ACUSAÇÃO DE CUMPLICIDADE ENTRE O VATICANO E AS


DITADURAS

A RESPEITO DA PERSEGUIÇÃO DE JUDEUS — AS INABILIDADES DE


PIO XII EM

RELAÇÃO AOS 700.000 JUDEUS QUE ELE SALVOU — O ABSURDO


DAS ACUSAÇÕES

DE DANIEL GOLDHAGEN CONTRA A IGREJA— CONTRASTES ENTRE


O FASCISMO

ITALIANO E O NAZISMO — POR QUE A ALEMANHA? —


IMPRUDÊNCIAS DOS

JUDEUS DURANTE A GUERRA — A HUMILHAÇÃO ALEMÃ E A


ASCENSÃO DO

NAZISMO — A EXACERBAÇÃO DOS NACIONALISMOS E A EUROPA


DOS CESARIS-

MOS — O ANTICRISTIANISMO DE HITLER — OS CATÓLICOS


ALEMÃES AMEAÇA​

DOS DE SEREM REDUZIDOS AO STATUS DOS JUDEUS— A VIDA


DURANTE O TER​

CEIRO REICH— OS SHYLOCK NAZISTAS - ANTI-SEMITISMO E


INDIFERENÇA DOS

AMERICANOS VIS-À-VIS DA EUROPA— AS IGNOMÍNIAS DA DIREITA


FRANCESA—

IRONIA E PARADOXOS DA HISTÓRIA: O MATERIALISMO


CAPITALISTA— O NACIO​

NALISMO £ A RESISTÊNCIA FRANCESA

Um dos mitos mais tenazes na história do anti-semitismo, mas também mais


falsos e dos mais perniciosos, é o de que nos dois países em que foram
implantadas as matrizes do fascismo e do nazismo os cristãos

foram cúmplices mais ou menos tácitos da perseguição aos judeus. Esse


mito procede do seguinte raciocínio: a Itália e a Alemanha, sendo países

cristãos e tendo tolerado o hor or, precisaram de que os cristãos — católicos e


protestantes — fossem coniventes. Devido ao mesmo erro, os cristãos foram,
naturalmente, virtualmente considerados pertencentes a

uma “direita capitalista” totalitária. Esse erro é encontrado em diversas

obras, entre elas a de Daniel Godhagen, Carrascos Voluntários de H itler já

citada. Esse autor escreveu, pois, que na Alemanha moderna, “a Igreja


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

361

católica como instituição era inteira e publicamente anti-semita”.

Conclusão: o anti-semitismo sempre foi causado pelo cristianismo.


Trata-se de premissas absurdamente infundadas de uma nova guer a

de religiões que falseiam o debate. O cristianismo só merece ser citado

nas explosões de anti-semitismo do século XX devido à atitude suspeita

do papa Pio XI . O grande incitador do anti-semitismo no século XX foi

o nacionalismo, o mais das vezes associado ao capitalismo.

Eu mesmo, em outros lugares,2 deplorei que Pio XI não tivesse deixado Roma
durante a guerra para reaver sua liberdade de expressão.

Outros criticaram com razão seu pró-germanismo particularmente inábil:


expressar em alemão sua alegria ao embaixador da Alemanha a respeito dos
sucessos militares alemães em 1940 é exatamente o contrário do que se esperaria
de um pastor dos cristãos.3 Eugênio Pacel i, papa Pio

XI , não poderia ignorar que a Alemanha de Hitler não era a de Bach e de

Goethe e que o jtihrer execrava a Igreja.4 Mas faltou muito para que os

cristãos em seu conjunto tivessem aspergido o fascismo e o nazismo com

água benta, mesmo que alguns prelados, diplomatas em excesso e com

claras inclinações oportunistas, nacionalistas e anti-semitas, se tenham

deixado levar durante os anos negros por discursos e cumplicidades

indignas. João Paulo I , entre outros, não se deve ter esquecido de que

ar iscou a vida todos os dias enquanto fez seus estudos de teologia em

Cracóvia, cidade que viveu sob o terror nazista.5

A verdade é que Mussolini e Hitler foram dois anticlericais e anti-

religiosos veementes. Mussolini era de família anticlerical: seu pai,

Alessandro, nascido em 1854, era ateu e anticatólico. O jovem Benito


execrava o colégio Saint-François-de-Sales onde foi interno com a idade

de nove anos: chegou a atirar um tinteiro na cabeça do padre superior. O

folheto II Trentino visto da uno Socialista (“O trentino visto por um


socialista”), publicado em 1908, fervilha de imprecações contra a Igreja, “esse
grande cadáver”, e o Vaticano, “es e antro de intolerância”. Ele recidivou

em 1914, em outro folheto. O fascismo não seria mais piedoso: na ocasião do


primeiro congresso fascista, no dia 9 de outubro de 1919, o escritor futurista
Marinetti exigiu “a expulsão do papado da Itália e a desvati-canização da Itália”;
no mesmo ano, Mussolini solicitou o confisco dos
362

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

bens da Igreja. É claro que a monarquia e as instituições do país cederam

diante do duce. A muito famosa Marcha sobre Roma foi uma comédia: foi
com pleno conhecimento de causa que o rei e o exército entregaram o

poder a Mussolini em 8 de outubro de 1922. Mas o Vaticano não. Na

encíclica Urbi arcani Dei do mesmo ano de 1922, o papa Pio XI exortou os

católicos à vigilância. Quatro anos mais tarde, condenou o princípio do

Estado totalitário. Na queda de braço entre Mussolini e o pontífice, o

primeiro alcançou a vitória que, contudo, nada teve a ver com a questão

judia: o papa reconhecia que Roma era de fato a capital da Itália.6

Prosseguindo, não obstante, com o conflito intermitente com o

Vaticano, Mussolini declarou na Câmara em 14 de maio de 1929 que,

“dentro do Estado, a Igreja não é soberana, ela não é sequer livre. .”. No

ano seguinte, tratou o cristianismo de “seita judia”. Até o final, ele não

abandonaria o anticlericalismo e o anticatolicismo. Paradoxalmente, e

durante vários anos, não chegou a ser anti-semita: no dia 13 de maio de

1929, declarou: “É ridículo ficar imaginando, como já se disse, que é preciso


fechar as sinagogas ou a Sinagoga. Os judeus estão em Roma desde o tempo dos
Reis; é pos ível que tenham fornecido roupas depois do rapto das sabinas! Eram
50 mil no tempo de Augusto, choraram sobre o caixão de Júlio César. Vão ficar
sem ser perturbados.”7

Em 1934, ainda, relata Gérard Sylvain, ele disse que Roma poderia

olhar com piedade certas doutrinas que eram ensinadas no norte da

Europa, onde as pessoas não sabiam ainda nem ler, nem escrever quando

Roma já tinha César.

O LavoroJascista registrou no mesmo ano: “O fascismo repudia esses


excessos de simbolismo e es e falso misticismo que caracterizam o hitle-

rismo, assim como descarta deliberadamente a concepção racista, boa no

máximo para uma criação de galinhas e cavalos! O fascismo é consciente

desta verdade: Roma não foi fundada sobre o conceito da raça, mas sobre

o da civilização, e a ela os atuais discípulos de Hitler devem o fato de

serem um povo civilizado. .”8

Efctivamente, Mussolini mudou de opinião pressionado por Hitler,

tendo promulgado os dois decretos raciais de 1938. Contudo, a Itália foi


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

363

uma das potências do Eixo e dos ter itórios subjugados em que foram

contadas, durante a Segunda Guer a Mundial, menos vítimas de perseguição


anti-semita: de 7.000 a 7.5009 — bem menos do que na França, por exemplo. Os
judeus italianos foram protegidos por uma parte importante da população,
notadamente dentro dos conventos, e os judeus franceses chegaram a encontrar
além dos Alpes, durante os anos negros, uma segurança maior do que na França.
Ao contrário de Vichy, que ultrapassou de longe as vontades do ocupante em sua
caça aos judeus, a Itália demonstrou uma resistência excepcional ao anti-
semitismo. No decorrer de 1943, as autoridades francesas e alemãs
bombardearam os italianos com pedidos para que entregassem os judeus (entre
20.000 e 30.000)

refugiados nas zonas do território francês localizadas sob a dominação

desses dois países, mas as autoridades italianas fingiram-se de surdas. A

invasão da Sicília, a queda de Mussolini e sua substituição pelo marechal

Pietro Badoglio deram fim às esperanças da polícia francesa e da Gestapo

de capturar aqueles refugiados. Foi então que franceses e alemães, após o

armistício entre a Itália e os Aliados em 3 de setembro de 1943, decidiram

mudar de idéia e se atirar sobre os judeus naturalizados depois de 1927,

presentes no território francês, e que Pier e Lavai assinou uma lei mandando que
16.600 fossem entregues aos nazistas.10

Decerto não é o caso de, aqui, exonerar globalmente o fascismo, mas

simplesmente de lembrar que a cumplicidade unânime do cristianismo

com os anti-semitas durante a Segunda Guerra Mundial é uma ficção

vergonhosa. As atitudes dos cristãos em relação aos judeus foram muito

diferentes de acordo com as circunstâncias e as culturas. O povo italiano

resistiu bem melhor do que o francês às incitações ao ódio; a lição merece que se
medite sobre ela. A Itália não produziu nem Papon, nem Eichmann, nem nenhum
de seus sequazes.

Em compensação, a hostilidade entre o nacional-socialismo alemão e


os cristãos era de uma intensidade completamente diferente. A aversão

de Hitler pelos padres era notória. “Lá vem o solidéu! Só de avistar um

desses abortos de batina fico fora de mim”, declarava ele em 1942. “O

cristianismo constitui a pior das regressões pelas quais a humanidade

pôde passar, e foi o judeu, por causa dessa invenção diabólica, que a ati​
364

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

rou cinco séculos para trás. Apenas a vitória do judeu pelo bolchevismo

seria um mal ainda pior.”1


A veemência da diatribe tem, evidentemente, mais relação com a psicanálise ou
mesmo a psiquiatria do que com a análise histórica. Ainda estamos lembrados de
que Hitler vivia regularmente dopado com anfe-taminas, e Goering era
cocainômano, sem falar dos outros? Goering

resumiu (falsamente) as razões do anticristianismo bem como do anti-

semitismo nazista a partir de 1930: “O homem de preto ficou tomando

conta enquanto o marxismo as altava a casa alemã.” Acusação que reflete

bem a angústia da maioria da nação alemã durante a revolução de 1918.

Mas uma acusação iníqua: nem os católicos, nem os protestantes tinham

simpatia pelo marxismo ateu. A calúnia tinha, contudo, uma verdadeira

razão política: o catolicismo alemão encamava-se em um partido político, o


Zentrum, que ameaçava barrar a rota do poder ao nacional-socialismo e a Hitler.
Heinrich Briining, chanceler da República de

Weimar de 1930 a 1932, fora a chave do Zentrum. Os católicos eram,

pois, os adversários ou mesmo os inimigos do nacional-socialismo,

sobretudo a partir da encíclica de Pio XI, Non abbiamo bisogno, de 4 de

julho de 1931, que condenava o fascismo , “estatolatria pagã”; ora, o fascismo


era, na ocasião, o modelo que inspirava Hitler. Os nazistas sabiam perfeitamente
que nada tinham a esperar do cristianismo, católico ou

protestante. Alfred Rosenberg, seu teórico, assim escrevera: ‘A Igreja serve-se de


sua doutrina de amor para praticar uma política de governo e poderio. Ela
declarou formalmente guer a ao espírito germânico tão logo

lançou sua fórmula: um só rebanho e um só pastor! Se esse pensamento

tivesse alcançado uma vitória absoluta, a Europa não seria mais do que

uma massa de centenas de milhões de homens sem firmeza, governados


por intermédio de um bem dosado temor dos suplícios do inferno...”12

É claro que as reações dos católicos ao perigo nazista, que eles pressentiam sem
evidentemente imaginar sua iminência e assustadora amplitude, não brilharam
pela inteligência. Rosenberg mostrou-se bem esperto ao lembrar que, em 1923,
Pio XI evocara para a Alemanha então ar asada, a necessidade de “resgatar a
triste apostasia que a havia separado da Igreja romana 400 anos antes”. Porque,
em 1923, a Igreja ainda não se
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

365

resignara ao protestantismo. E, no mesmo ano, o Bayerische Kurier, órgão

do Zentrum, registrara que “a der ota de 1918 tinha sido desejada pela
justiça imanente, que havia golpeado o povo alemão por ele não se ter

querido dobrar diante da autoridade instituída por Deus, ou seja, o papado”,


como lembrou André Lama.13 Nada poderia ferir mais o nacionalismo
exacerbado pela der ota de 1918 (do qual todos ainda suportavam o peso moral e
financeiro) do que es es discursos supersticiosos. O resultado foi que os católicos
progressivamente desertaram do Zentrum.

Essa defecção não foi suficiente para acalmar a vendeta dos nazistas.

A partir das eleições de março de 1933, que lhe deram o poder na

Alemanha, Hitler encarregou Goering “de enfraquecer os católicos”,

escreve Lama. “Muito deles são presos, seus oradores são impedidos de

se expressar, seus bens são confiscados, e seus jomais fechados. . (. .) A lei

de 7 de abril de 1933, que regulava a função pública, estabeleceu uma

certa discriminação contra funcionários católicos.” O fato é pouco

conhecido: os católicos viam-se, pois, ameaçados de ser rebaixados ao

status dos judeus, todos unidos por Hitler dentro da mesma execração.

Um acordo havia de fato sido assinado entre Hitler e Pio XI (que delegara para a
circunstância o cardeal Pacel i, futuro Pio XI ), em julho de 1933. O papa tinha
pressa em limicar os desgastes, e os católicos podiam

pensar em recuperar o status integral de alemães; mas, se a liberdade de

culto estava garantida, a liberdade de expressão, em contrapartida, estava

anulada. As instituições católicas viram-se amordaçadas e reduzidas às

obras de caridade. Hitler vangloriou-se: “Nós expulsamos os padres do

terreno político e os devolvemos a suas igrejas.”

Os católicos permaneceram de todo modo suspeitos: na ocasião da


expurgação de 30 de junho de 1934, em que Emst Rohm foi assassinado

e seus SA eliminados, católicos foram também objeto da fúria nazista: “O

Dr. Erich Klausener, diretor da Ação Católica, Adalbert Probst, diretor das

Juventudes Católicas, Fritz Gerlach, editor do jornal Der Weg (O

Caminho), e o padre Stempfle” foram também “liquidados” por haver

criticado o regime, lembra ainda Lama. Em 1935 e 1936, católicos alemães

e nazistas entraram em confronto diversas vezes, e o clero viu-se criticado

por dispor de recursos aplicados no exterior. A encíclica Mit brennender


366

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Sorge (Com uma aflição ardente) de março de 1937 condenou a ideologia

nazista, e a reação do regime foi criar um serviço, confiado a Reynhard


Heydrich, encar egado de lutar “contra as Igrejas políticas, as seitas e os

judeus”. O objetivo perseguido desde 1933 pelo nazismo era exatamente

enfraquecer a Igreja católica até sua liquidação. Mais uma vez os católicos

viam-se equiparados aos judeus, e “a questão católica” era colocada na

Alemanha ao lado da “questão judia”. A diferença é que não se poderia

evidentemente prender todos os católicos para deportá-los, pois eram

numerosos demais. Na oração de Natal de 1937, Pio Xt declarou que a

Alemanha estava em plena perseguição.14 E, a partir da crise tchecoslova-

ca, ele chegou a atacar abertamente as teorias raciais do nazismo.

As acusações de Daniel Goldhagen, segundo as quais “a incontestável ausência


de qualquer protesto significativo ou de desacordo expresso privadamente (. .)
não deveria ser considerada nem o resultado da ‘lavagem cerebral’ dos alemães
pelos nazistas, nem incapacidade dos alemães de expressar sua desaprovação
pelo regime (. .) porque os documentos

sobre essa época não confirmam nem uma nem outra alegação”, são mal

fundadas no que diz respeito à Alemanha, que é o tema de seu estudo.

Entre numerosas provas de reação, em 21 de março de 1937, “todos os

párocos da Alemanha leram para suas ovelhas a encíclica Mit brennender

Sorge.xs Goldhagen ignora que em 1939 os católicos estavam sendo presos nos
Sudetos como “inimigos do Estado”?16 A Igreja passara à categoria dos
perseguidos.

O ponto essencial dessas acusações, não só de Goldhagen mas das

que são dirigidas contra a nação alemã mais ou menos tacitamente há

mais de meio século, é que elas trazem à baila uma eventual culpa coleti-
va alemã. De acordo com as teses que sustentam, um país inteiro teria

consentido mais ou menos ativamente com a liquidação de seis milhões

de judeus, dedicando-se, assim, ao mais monstruoso dos massacres perpetrados


de que os homens têm lembrança. Alemães e cristãos amalgamados seriam, pois,
inerentemente monstros e, segundo Goldhagen, constituiriam todos um povo de
capos assas inos.

Se fosse assim e se o ódio do judeu estivesse visceralmente incorporado nos


alemães, poderíamos nos perguntar, como o fizeram outros
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

367

autores —judeus, ainda por cima17 — por que não teriam eles se insurgido
contra o Estado dirigido por Guilherme, o qual, especificamente, protegera os
judeus. Nesse caso, escrevem Norman G. Finkelstein e
Ruth Bettina Birn, “o sangue judeu deveria ter corrido nas ruas” desde

muito tempo. Esse tipo de acusação pas a por cima do fato de que Hitler,

cujo anti-semitismo era conhecido antes de sua ascensão ao título de

chanceler, foi eleito com apenas cerca de 33% dos votos e que nenhuma

sondagem posterior permitiu avaliar sua popularidade real.

A própria enormidade da alegação de Goldhagen é suficiente para

que seja desconsiderada, pois, nesse caso, seria necessário julgar também

todos os russos como responsáveis pelos 30 milhões de mortos da era

leninista-stalinista, todos os cambojanos responsáveis pelos dois milhões

de mortes perpetradas pelos khmers vermelhos. Sob a lógica dessas acusa​

ções, seria então necessário, em um novo Nuremberg, levar a julgamento a


totalidade da nação alemã, proibir o uso da língua alemã e banir por completo a
menção da palavra ‘Alemanha”. Acusações como essas me

parecem relacionadas à mentalidade totalitária: elas derivam de uma

variedade nova de genocídio, o “genocídio intelectual”. Ademais, nada

explicam: elas definitivamente obnubilam o debate. Por que os alemães?

Por que apenas eles? Por que os judeus? E, assim, voltamos à questão

colocada nas primeiras linhas desta obra: por quê?

Com efeito, acusações tão tranquilamente lançadas em um período

de paz, quando ninguém imagina, não pode imaginar o que foi a vida

quotidiana, não levam em conta o aparelho policial e militar que enquadrava a


totalidade da Alemanha. A dominação do partido nacional-socialista sobre o
Estado alemão — pois apesar de tudo havia um Estado
alemão, detalhe frequentemente negligenciado pelos historiadores —

havia progressivamente dado aos nazistas o controle absoluto não só da

vida pública como também da vida privada. Os documentos reunidos

por Jeremy Noakes,18 por exemplo, permitem verificar que, ao contrário

de asserções apressadas e tendenciosas, a totalidade dos alemães estava

longe de aprovar o nazismo; os relatórios dos serviços de segurança, a

Sicherheitdienst, demonstram uma espionagem opressiva, muitas vezes

fundada na delação (como será mais tarde o caso na República


368

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Democrática Alemã). Mesmo que quisessem, os alemães cristãos não

dispunham de nenhum meio de se opor à Shoah: eles tentaram de início


salvar a própria pele e rezaram para uma vitória que lhes evitasse o apocalipse,
mesmo sabendo, desde o final de 1943, que ela era impossível. A Alemanha
tomara-se para eles um gigantesco campo de concentração.

Assim, as crianças que as autoridades se preparavam para evacuar em caso

de avanço aliado, segundo os planos da Kinderlandverschikung ou KIV,

ficavam também acantonadas em campos submetidos a uma disciplina

feroz. Milhares de mulheres alemãs empregadas nas fábricas de guer a,

por vezes mulheres velhas, foram enviadas para campos de trabalho por

infrações menores, às vezes por terem mantido relações sexuais com


trabalhadores de países ocupados — não judeus, portanto. E os trabalhadores das
fábricas de guerra que cometiam erros eram fuzilados: só em 1943, o regime
executou 5.336 por “sabotagem”. Até junho de 1944, o

Partido queria controlar até os termos das conversações entre pessoas

que se visitavam: uma circular endereçada aos centros locais do Partido

ditava as expressões que os “bons alemãs” deveriam trocar entre si!19

Exigir de uma população que vivia nessas condições que se insurgisse contra a
exterminação de judeus aproxima-se do delírio e é no mínimo ignorância
histórica das mais gros eiras ou então animosidade pressuposta. Apesar disso, es
a extraordinária distorção da realidade histórica adquiriu proporções planetárias.

Tudo isso permite constatar que o anti-semitismo nazista foi de

natureza essencialmente nacionalista e que o cristianismo não foi responsável


por ele, quaisquer que tenham sido suas falhas, suas transigências e seus
silêncios. E preciso afirmar aqui bem alto: o anti-semitismo da

primeira metade do século XX teve inspiração exclusivamente nacionalista.20 A


participação dos cristãos e de alguns de seus representantes do clero católico e
protestante não traz nenhuma modificação: o cristianismo e os cristãos de fato
contaram em seus quadros com nacionalistas que adotaram posturas ir efletidas,
aber antes, imorais ou francamente criminosas, de acordo com seus
temperamentos e as circunstâncias.21

Provavelmente também por tática, devido ao medo que lhes inspirava o

materialismo ateu marxista.


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

369

Como se chegou até es e ponto? Como um povo pôde abandonar

seu destino nas mãos de um punhado de assas inos?


A história da ascensão do nazismo foi escrita inúmeras vezes, mas

suas premissas, que são da mesma maneira importantes, são pouco

conhecidas. A partir de junho de 1919, em Versalhes, enquanto os vencedores


franceses, ingleses, italianos e americanos debatiam a sorte da Alemanha em sua
ausência, uma vez que ela fora formalmente excluída,

o próprio objeto daquele festim se estava desagregando.

Com efeito, em 3 de novembro de 1918, nove dias antes da assinatura do


armistício em Rethondes, a Alemanha já havia entrado numa guerra civil. Os
marinheiros da frota estacionada em Kiel revoltaram-se e a insur eição atingiu
rapidamente Li beck, Hamburgo, Brêmen, Hanôver

e Munique. E transformou-se em revolução. Dois dias antes do armistício,


Guilherme II abdicou. O socialista Scheidemann proclamou a República em
Berlim. Era preciso que a ordem fosse restabelecida: os

espartacistas, antena dos bolcheviques, tentavam instaurar a ditadura do

proletariado em cima dos escombros do Reich. Era grave para os alemães

e era também grave para os judeus. Quem fazia parte desse movimento?

Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin: judeus, aos quais estivera
associado alguns anus antes o deputado social-democrata judeu Paul Singer
(morto em 1911). Ora, o grupo Spartakus destacara-se ao longo

de toda a guer a por sua atitude resolutamente antimilitarista: em 1915,

ele havia denunciado como traição o apoio do partido social-democrata,

o SPD, ao esforço de guer a. Depois de 1916 e da exclusão de Liebknecht

do SPD, e em plena guer a, Spartakus participou dos movimentos de

greve desencadeados na Alemanha, notadamente em abril de 1917. Os

“patriotas” estavam sendo vistos em ação.


A imagem dos judeus sofreu com is o um golpe mortal. Mas não foi

o único. O episódio da República de Conselhos da Baviera, em 1918,

tentativa secessionista na qual os políticos judeus desempenharam um

papel preeminente, alienou-lhe uma boa parte dos nacionalistas. Foi

assim que um judeu, Kurt Eisner, em 8 de novembro de 1918, proclamou a


República Social e Democrática da Baviera, aparentemente inconsciente de que
o simples fato de ser judeu expunha-o às hostilida​
370

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

des da direita e da esquerda. “Para os comunistas”, escreve Nachum T.

Gidal,2 “Eisner era o agente da burguesia. Para a direita, era um bolchevique


judeu, ‘um prussiano sujo’. Na verdade, Eisner era totalmente indiferente ao
judaísmo.”

Quatro meses mais tarde, a guarnição de Munique tentou um golpe

de estado. Os comunistas decretaram a Segunda República de Conselhos, na


qual os comissários do povo ditavam sua vontade de governar de maneira
autónoma e evidentemente comunista. O comité de direção

contava novamente com judeus: Gustav Landauer, Eugen Leviné, Emst

Tol er, colaborador de Eisner. Os dois primeiros foram assassinados, o

terceiro suicidou-se em 1939.

É possível que a Alemanha tenha sido, de todos os países do mundo,

aquele com o qual, na história moderna, os judeus mais intimamente e

mais apaixonadamente se identificaram. Donde os riscos extraordinários

que correram ao agir tão abertamente em prol da modificação de seu destino e,


em especial, do advento de uma república socialista. Hugo Haase, Gustav
Landauer, Oskar Cohn, Otto Landsberg, Bemhard Falk e todos

os outros, numerosos demais para serem citados aqui, engajaram-se

depois da Primeira Guerra Mundial na transformação da Alemanha

como se ela fos e realmente seu país. Muitos deles praticamente abdicaram de
sua judeidade. Não foi por acaso que o redator da Constituição da República de
Weimar, que em seguida se tomou ministro do Interior, foi

Hugo Preuss. Talvez um dia es a trágica história de amor entre os judeus

e a Alemanha possa ser explicado.

A verdade é que eles estavam agindo sobre um terreno explosivo

que, de fato, explodiu um quarto de século mais tarde. A nação, já humilhada por
todas as provações que se seguiram à derrota de 1918, à ocupa​
ção de uma parte de seu território e à abdicação de seu imperador,

sentiu-se ameaçada dessa vez por seu interior. Ela se deparava com

judeus nas principais tentativas de sedição. Foi, pois, a partir de 1919, no

país mais devastado de que se teve notícia desde a Guerra dos 30 Anos —

política, económica, financeira, social e sobretudo psicologicamente —,

que o anti-semitismo alemão seguiu o caminho sinistro cujo resultado

conhecemos.
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

371

Martin Buber estava consciente do papel preeminente dos judeus na

revolução alemã. Ele escreveu em novembro de 1918 na publicação


mensal Der Jude que “durante todo o tempo eles acreditaram em um

‘devir’, em uma ‘ter a nova’, na transformação de tudo que os cercava”.

Mas quem de imediato com mais exatidão captou a situação dos judeus

no mundo moderno foi Friedrich Nietzsche. “Todo o problema dos

judeus”, escreveu ele, “existe apenas nos Estados nacionais, no sentido de

que, nesses, sua atividade e inteligência superior, o capital de espírito e de

vontade longamente acumulado de geração em geração na escola do

sofrimento terminam geralmente sobressaindo em um nível que desperta a inveja


e o ódio, de tal maneira que em quase todas as nações atuais, e ainda mais por
afetar o nacionalismo, propaga-se uma impertinência da

imprensa que consiste em conduzir todos os judeus ao abatedouro como

bodes expiatórios de todos os males pos íveis e privados (. .) Toda nação,

todo homem tem traços desagradáveis, até mesmo perigosos: é uma barbaridade
querer que os judeus constituam uma exceção.”23

A Alemanha, desgraçadamente, não era constituída de nietzschianos.

A partir de 1919, o essencial do cenário da tragédia posterior estava instalado.No


mês que se seguiu à revolução, em dezembro de 1918, os espartacistas fundaram
o partido comunista alemão, o DKR O caos prosseguia

e alcançava intensidade alarmante: uma greve geral explodiu em Berlim

instigada pelo DKR A instauração na Alemanha de um regime bolche-

vista parecia iminente; ela só foi evitada por um acordo apressado, concluído em
segredo na noite de 9 para 10 de novembro de 1918, entre o socialista Ebert e o
general Groener. As tropas governistas atacaram

Berlim em 15 de janeiro de 1919 à meia-noite. Era o começo da semana


sangrenta... “Para os espartacistas o pesadelo começara”, escreveu um

dos melhores historiadores dessa época, Pierre Benoist-Méchin.24

“Perseguidos de bair o em bair o, iam sendojuntados nos pátios dos edifícios e


fuzilados em grupos de 15 ou de 20. Uma verdadeira caça ao homem
estabelecera-se na cidade. E os mais ativamente procurados

eram, naturalmente, os chefes, Rosa Luxemburgo e Liebknecht.” Como

era previsível, Liebknecht e Luxemburgo foram encontrados naquela


372

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

noite no Hotel Eden e assas inados pouco depois. Eles não poderiam ter

dado um testemunho mais eloquente de sua hostilidade à noção mais


cara aos alemães, que era a de nação. Uma semana depois de Liebknecht

e Luxemburgo, em 21 de janeiro, Eisner era assassinado pelo conde Arco

Val ey. A República dos Conselhos da Baviera estava dissolvida.

E a Conferência de Versalhes ainda não havia começado.

Quando as delegações dos Aliados, dirigidas por Clemenceau, Lloyd

George, Orlando e Wilson se puseram a trabalhar, eles visivelmente nada

tinham entendido dos acontecimentos; pior, estavam cavando milhões

de fossos para o futuro.25 Efetivamente, em 28 de abril de 1921, a

Comissão das reparações estimou que a dívida de guerra da Alemanha

era de 33 bilhões de dólares, ou 10 bilhões de libras esterlinas, ou ainda

cinco bilhões de francos-ouro, teoricamente a serem pagos dois dias mais

tarde, em 1? de maio de 1921 (artigo 233).26Exatamente 33 vezes o montante


dos danos cobrados à França pela Alemanha em 1871. A Alsácia-Lorena voltava
à França. E a Renânia estava ocupada.27

No ano seguinte teriam bastado uns poucos dólares para saldar a

totalidade da dívida alemã, caso pudesse ser paga em marcos-papel: com

a estabilização da divisa alemã em novembro de 1923, um dólar valia, de

fato, 4,2 bilhões de marcos-papeí. .

Um novo caos instalou-se. O desemprego alastrou-se, e a inflação

alcançou rapidamente recordes astronómicos. Os que viviam de rendimentos e


os aposentados ficaram ar uinados em poucos meses, a miséria instalou-se e
ameaçou a saúde pública e a infanda. Proclamada em 1919,

a República de Weimar, assim chamada por ter sido nessa cidade que sua
Constituição foi promulgada, foi antecipadamente desacreditada pela

razão essencial de ter sucumbido aos diktats de Versalhes. Era a Alemanha

patética, grotesca e sinistra descrita, por exemplo, pelo artista satírico alemão
George Grosz em Ein KleinesJa und eingrosses Nein (“Um pequeno Sim e um
grande Não”), com suas ruas percorridas por inválidos de

guerra arrastando suas pernas de pau e as mangas sem braço de suas

camisas, e por prostitutas.28

A República de Weimar foi tratada com bastante condescendência e

desdém mesmo fora da Alemanha; de fato, ela mereceu. Era uma facha​
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

373

da política povoada de indiferentes, inconscientes da violência com que o

caldeirão infernal borbulhava sob seus pés e plantada sobre ruínas em


que se moviam sombras ameaçadoras, conspiradores, revanchistas, ideólogos de
todo tipo, ambiciosos vivendo de expedientes, uns até patriotas, outros só
aventureiros. Franco-atiradores apareciam de todo lado para

defender a nação das milícias vermelhas e da ditadura do proletariado,

que tinham desejado colocar no poder gente como Liebknecht e

Luxemburgo. Eles é que tiraram as bandeiras vermelhas içadas pelos

espartacistas sobre os principais edifícios de Berlim; os nacional-

socialistas não se esqueceriam disso quando tomaram o poder em 1933.

Um fato era certo: eram todos nacionalistas.

Sua causa, e especialmente a dos partidários de Hitler, pareceu enfraquecida com


o milagre económico de 1924-1928, realizado graças ao Plano Dawes. Caso a
prosperidade tivesse continuado, a Alemanha de

Weimar teria sido provavelmente um prolongamento pacífico do

Império. Nada disso aconteceu: a crise de 1929 atirou brutalmente o país

nos tormentos da desvalorização de 1923, inflação, desemprego etc. As

loucuras dos banqueiros de Wal Street prepararam, pois, a ascensão do

nacional-socialismo. O mesmo capitalismo que deveria fazer da

Alemanha uma muralha contra o comunismo, favoreceu indiretamente a

ascensão dos camisas-mar ons portadores da suástica invertida (invenção

da Thule Gesel schaft, organização racista) e de um punhado de criminosos


fanáticos.

A Reichswehr havia exibido seu papel de guardiã da nação, notada-

mente na Baviera e na Prússia, esmagando a sedição em toda parte e se


mostrando capaz de “eliminar” os judeus justamente onde eles eram

mais perigosos, como em Berlim, durante a revolução. Ela ruminava sua

revanche enquanto o povo repassava o amargor sentido ao assistir ao

retomo dos exércitos vencidos sobre as pontes do mesmo Reno que vira

passar as legiões de César e as hordas de Átila.

Existem provas suficientes da apreensão mais ou menos confessada

que a URSS inspirava no mundo, para se acreditar que a maior parte do

Ocidente se tenha felicitado secretamente com a reconstituição do exército


alemão a partir das sobras que a guer a conseguiu deixar. Mas não
374

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

havia de que se felicitar. Mesmo durante a guer a, os soldados do front

não estavam mais acreditando na legitimidade de seu combate; quando


voltaram para suas casas, esgotados pela der ota, encontraram um país

agitado por sobressaltos sinistros.

“Chegou o tempo em que todos tinham que lutar entre o instinto de

conservação e as injunções do dever (. .) Um duro combate estava come​

çando, feito de conflitos contraditórios, que só com um último ano de

consciência seriam enfrentados”, escreveu o soldado de infantaria de

primeira clas e Adolf Hitler, do 16° Regimento de Infantaria da Bavária.29

A provação alemã não se havia encer ado com o armistício: de volta a casa,

o soldado “tomava-se na mesma hora uma vítima da propaganda


revolucionária”, como escreveu Benoist-Méchin.30 “Ele via longos cortejos
percorrendo as ruas, car egando a bandeira vermelha e cantando:

Para a frente, irmãos, em diregão ao sol e à liberdade!”

Ele gostaria de obedecer ao dever. Mas onde estava o dever? Na defesa de uma
sociedade imperial que não era senão o corpo sem cabeça de uma monarquia que
ar astara o país ao desastre, ou na defesa de uma

aventura bolchevista que os mais ponderados estavam advertindo os

jovens de que era comandada pelo estrangeiro?

Foi nesse contexto que, com efeito, o Partido Nacional-Socialista se

impôs. Com 230 deputados, tomara-se uma força crescente não apenas

no parlamento, o Reichstag, como também em toda a Alemanha.

Chamado ao poder pelo chanceler Hindenburg em 30 de janeiro de

1933, Adolf Hitler recuperou a confiança do país. E não apenas dentro do

país, mas no exterior também. Em 1935, o homem que iria encarnar a


infâmia durante a segunda metade do século XX inspirou em quem se

iria tomar seu mais temível adversário, Winston Churchill, as palavras

seguintes:

“Não é possível fazer uma idéia completa de um personagem público que


alcançou as dimensões consideráveis de Adolf Hitler antes que a obra inteira de
sua vida esteja sob nossos olhos. Se bem que nenhuma

ação política posterior possa apagar seus atos imorais, a história está cheia

de homens que alcançaram o poder por métodos duros, brutais e mesmo


ignóbeis, mas que, contudo, foram considerados grandes figuras,
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

375

enriquecendo a história da humanidade quando suas vidas foram reveladas na


totalidade (...) A história dessa luta (de Hitler, escreve Churchill, referindo-se a
Mein Kampf) não pode ser lida sem admiração
pela coragem, perseverança e força vital que lhe permitiram desafiar,

conciliar ou vencer todas as autoridades ou resistências que lhe barraram

o caminho.”31

Ora, essas linhas foram redigidas e publicadas depois da Noite das

Facas Longas de 1934 e no período em que o anti-semitismo já se manifestava


na Alemanha desde 1929.32 Hitler inspirava confiança em grande parte do
Ocidente, adquirida graças ao cinismo da Realpolitik resumida

na fórmula: “Quem quer os fins quer os meios” e tão bem expressa 70

anos mais tarde pela fórmula de Mao Tsé-tung: “Que diferença faz se o

gato é preto ou cinza se ele caça os ratos.” O capitalismo ocidental temia

o marxismo mais do que tudo no mundo, e os judeus “pagaram o pato”.

Ele só começou a se opor a Hitler no momento em que este ameaçou

levar tudo, ou seja, a Europa inteira, e foi só então que os Estados Unidos

entraram em cena. O nacional-socialismo, para começar, era socialista,

crime capital notadamente nos Estados Unidos, onde o banqueiro John

Pierpont Morgan se recusara a falar com Franklin Roosevelt, culpado de

ter implantado o New Deal “socialista” para tirar seu país da crise de

1929, e que ele chamara de “O Vermelho da Casa Branca”.

No entretempo, o nacional-socialismo progredia na Alemanha fortalecido pela


confiança que lhe depositavam não só os alemães como personalidades
influentes do exterior: e não apenas Winston Churchil como também Charles
Lindbergh, figura legendária e ardente propagandista do nazismo nos Estados
Unidos. Os alemães deveriam, no mínimo, render homenagem ao homem que os
salvara do bolchevismo, que restaurara a prosperidade e o orgulho nacionais e ao
qual mesmo o exterior rendia homenagem, e que homenagem! Foi assim que o
nazismo se

implantou na Alemanha. Conhece-se o que veio depois: a instauração de

uma mentalidade de estado de sítio por um temível aparelho de propaganda


reforçado com um não menos ater ador aparelho policial e militar.

Retrospectivamente, a paranóia do autoritarismo alemão parece


376

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

incompreensível. Naquela época, impregnada, infectada por cesarismos,

ela era, ao contrário, perfeitamente compreensível, tomando-se aclarada


tão logo examinamos seu contexto. No leste, Stalin transformara a URSS

em fortaleza; no oeste, Franco fizera triunfar sua ditadura na Espanha; e

Portugal, desde 1932, assentara a sua em Portugal sobre uma prosperidade


económica desconhecida desde 1854. No sul, Mussolini parecia ter restaurado a
Roma imperial. Desde 1920, a regência de Horthy impunha

uma outra ditadura na Hungria e, na Rumânia, a Guarda de Ferro de

Codreanu, abertamente pró-alemã, adotava como modelo as SS nazistas.

A partir de 1926, a Grécia tinha passado praticamente sem interrupção da

ditadura de Pangalos para a de Metaxas, e desde 1924 a Turquia vivia sob

a ditadura de Mustafá Kemal. Além do mais, es a enumeração não inclui

os inumeráveis movimentos fascistas ou pré-fascistas no que restava de

democracias: do rexismo de Léon Degrel e na Bélgica ao NSB nacional-

socialista de Anton Mussert nos Países Baixos; do partido fascista de

Vidkun Quisling na Noruega aos camisas-negras de Oswald Mosley na

Grã-Bretanha. A Europa inteira estava, quer já sob o tacão dos totalitaris-

mos, quer prestes a estar, e com entusiasmo. Era absolutamente normal,

pensava-se fora da Alemanha, que um grande país como a Alemanha se

submetesse ao que, em termos eufemistas, se chamava na época de “um

regime forte”.

Pode-se dizer que no dia seguinte ao do final da Grande Guerra, e

sobretudo após a crise de 1929, o Ocidente inteiro passou a viver imerso

em medo. Muito se falava do grande dia da revolução com o qual os


comunistas ameaçavam os “burgueses”! Os nacionalismos de fato

exacerbavam-se, enrijecendo-se na prática até se transformar em totalita-

rismos. A despeito da assustadora hecatombe que provocou, a guer a nada

ensinara às consciências nacionais, na França bem como em outros lugares;


ninguém ouviu a voz dos amotinados de 1917 cuja lembrança, contudo, 80 anos
mais tarde, ainda iria agitar a política francesa, contrapondo os defensores de um
nacionalismo arcaico aos partidários da autonomia

do indivíduo.3 Muito pelo contrário, o conflito inflamou os espíritos e

atiçou os ódios. Uma vigilância patológica em relação ao estrangeiro

impregnou as culturas. Um ser humano não é senão um “nacional” de tal


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

377

ou tal país. O nascimento da URSS e a disseminação de suas cabeças-de-

ponte nos países ocidentais, com a interveniência dos partidos comunistas locais,
conferiram ao comunismo uma iminência assustadora, que contribuiu
grandemente para o advento do Terceiro Reich, pelo alarme

suscitado entre os nacionalismos capitalistas. A partir de então, os antagonismos


transformaram-se em um vasto conflito ideológico.

E os judeus viram-se isolados dentro da tempestade que se anunciava:


tradicionalmente rejeitados, frequentemente expulsos, sempre estrangeiros, eles
não tinham espaço. Eram ainda mais odiados pelos

nacionalismos do que antigamente pelas religiões cristãs.

Mesmo nos Estados Unidos, onde, na época, os judeus pareciam

geralmente admitidos e respeitados, surgiram correntes anti-semitas violentas


associando os judeus aos comunistas. Assim, em 1933, B. L.

Bridges, secretário-geral da Arkansas Baptist Convention, admitiu publicamente


que “herr Hitler” tinha razão em perseguir os judeus, que os judeus eram
“perturbadores de nações” ( disturber of nations) e que “ninguém, posto a par
dos fatos, pode duvidar de que o comunismo é judeu”.

E no ano seguinte, a Baptist World Al iance, a mais poderosa força religiosa dos
Estados Unidos, realizou seu congresso anual em Berlim, gesto car egado de um
evidente simbolismo.34

Entre os inúmeros traços comuns, existe um que todos os totalitaris-

mos compartilham: o culto dos mitos aparentados da identidade nacional

e da pureza. Foi, pois, em nome da pureza do Estado comunista que a

imprensa soviética, sob as ordens da burocracia, prolongou a tradição do

famoso documento falso da polícia czarista, o Protocolo dos Sábios de Sião.

Desde os anos 20, fiel ao judeu apóstata e anti-semita Karl Marx, repetiu

incansavelmente que os judeus eram obscurantistas, desonestos, conspiradores,


ligados ao estrangeiro, fascistas e belicistas. Ela prolongou essa tradição por
muito tempo: em 27 de setembro de 1959, quando os horrores dos campos
alemães já há muito tempo tinham sido revelados ao mundo, a Dniestrovskaia
Pravda de Tiraspol, na Moldávia soviética publicou: “O judaísmo não é somente
dirigido contra a compreensão científica do mundo, ele representa igualmente
uma força hostil aos interesses do povo.”35
378

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Mas foi na Alemanha que o mito da identidade alcançou seu paroxismo mais
assassino. O sistema implantado por Hitler visava a “reparar” a profunda ferida
infligida à Alemanha pela der ota de 1918, sentida por
ele e pela coorte de revanchistas patológicos que o cercava como uma

humilhação pessoal e que se convertera na seguinte resolução: “Nunca

mais is o vai acontecer!” Ora, o “Nunca mais isso vai acontecer!” designava não
o massacre de 14-18, mas a der ota do Império contra-assinada pela República
de Weimar, aquela república que, em seu simplismo, os

nazistas haviam assimilado aos cosmopolitas, aos democratas e sobretudo

aos judeus, todos agentes “do inimigo”. O traço característico da paranóia

era a obsessão do complô, a loucura da perseguição. Mercenários grosseiros


como Ernst Rohm, Hermann Goering, Martin Bormann, Heinrich Himmler, ou
junkers cheios de orgulho ofendido como Dõnitz, von

Ribbentrop e von Papen, todos acreditavam ser heróis de uma criação

wagneriana, quando na verdade afundavam em uma paranóia criminosa.

A guerra ofereceu-lhes a ocasião de realizar a vingança com a qual

sonham todos os paranóicos.

A loucura da reação ultrapassou a dor do orgulho ferido. Lentamente,

uma obsessão tomou corpo dentro dos espíritos da minoria que tomara o

poder na Alemanha: a purificação. Se o país fora vencido, era porque

tinha sido enfraquecido por elementos estrangeiros. De acordo com a fé

da pseudociência que cultivavam — astrofísicos delirantes como

Hõrbiger, que acreditava que o céu era cheio de gelo, antropólogos de

mentira como Eugen Fischer, diretor do Instituto Kaiser-Wilhelm de

Berlim e defensor de teorias racistas sobre o arianismo, médicos sádicos

como Josef Mengele —, os nazistas englobaram como estrangeiros todos


os que consideravam corpos estranhos, inimigos da “raça alemã”: comunistas e
trissômicos 21, opositores de diversas opiniões e alcoólatras, ciganos e
sifilíticos, homossexuais e débeis, e sobretudo judeus. Estes últimos, aos olhos
dos nazistas, eram tudo is o ao mesmo tempo: degenerados, comunistas,
homossexuais, alcoólatras etc. Eram os bodes expiatórios designados pelo ódio
delirante de Hitler.

Segundo os psicanalistas, a obses ão da purificação seria um avatar do

narcisismo.36 Para os novos chefes do Terceiro Reich, a imagem que se


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

379

faziam do país, e com a qual se identificavam, fora ferida e conspurcada;

eles decidiram restaurá-la eliminando es as “conspurcações”. Era, por


sinal, a obsessão de todos os nacionalistas europeus da época, mas os

nazistas, isolados em seu teatro de sonho, levaram-na ao paroxismo. Em

um primeiro momento, de 1933 a 1938, e sobretudo depois da Noite de

Cristal, sua agressividade foi crescendo e adquirindo um caráter cada vez

mais assassino, mas sem obedecer a um programa global de extermínio,

o qual foi estabelecido pela primeira vez publicamente em 1939.

Aparentemente, desejavam sobretudo expulsar os judeus da Alemanha

(foi a razão pela qual as leis de Nuremberg, votadas em 1935, fizeram dos

judeus estrangeiros em seu próprio país). À véspera da guer a, dois terços

dos judeus alemães haviam partido e, em 1941, só tinham ficado no país

170.000.37 A Alemanha estava, pois, quase Judenfrei. O regime chegou a

estudar com os diplomatas a possibilidade de despachar todos os judeus

restantes para uma terra longínqua, a África (Madagascar) ou a Ásia.

Quando a guer a foi declarada, oito milhões de judeus se encontravam

vivendo em territórios controlados pelos alemães. Não se cogitava mais

de expulsá-los, e Hitler pôs em prática a ameaça de extermínio revelada

em seu discurso de 30 de janeiro de 1939.

Contudo, a obsessão de purificação é incompreensível sem um componente


explosivo, exatamente o que dá especificidade alemã à Shoah: o ni lismo. Esse
fenómeno, mais ideológico e provavelmente mais psicológico do que filosófico,
suscitou uma literatura importante. De todas as análises, a mais penetrante, a
mais completa também, me parece ser a de

Leo Strauss.38 Só Strauss, com efeito, descreveu claramente o caráter do


ni lismo alemão: não era “o desejo de tudo destruir, até a si mesmo, mas

o desejo de destruir algo preciso: a civilização moderna”.39 As premissas, já

presentes no pensamento ocidental do final do século XIX, tomaram

uma coloração mais sinistra depois da guer a de 1914-1918: a mentalidade de


sitiados, com fortes tintas paranóicas, que já reinava na Alemanha de Guilherme,
misturou-se a um sentimento de que a Alemanha era vítima do mundo
circundante. Qual era es e mundo? O mundo moderno, do qual os judeus eram os
agentes.

Encontram-se na literatura alemã da época numerosos reflexos dessa


380

HISTÓ R IA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

disposição de espírito, que Strauss sublinha ser sobretudo emocional: do

Déclin de VOccident (Declínio do Ocidente), de Oswald Spengler ao


Réprouvés (Amaldiçoados) de Emst von Salomon, e ao Falaises de marbre

(Falésias de Mármore), de Ernst Jiinger, sem esquecer Martin

Heidegger, especificamente designado por Strauss, cuja denúncia de

uma entidade fluida denominada “técnica” fazia estranhamente eco à

execração da modernidade professada pelos intelectuais nazistas.40 Les

Réprouvés é talvez a mais significativa e a mais representativa des as obras

do ponto de vista emocional. Nela, o autor relata a organização e a execução do


complô, do qual participou, para o assassinato de Walther Rathenau, ministro da
Reconstrução do governo de Weimar. Rathenau,

com efeito, projetava a eletrificação da Alemanha; foi assassinado em

1922.41 Judeu e industrial cosmopolita, Rathenau já encarnava o ódio dos

ni listas alemães pelo judeu e pela modernidade.

Foi a combinação deletéria da aspiração a um regime autoritário —

que era européia — com a vontade de purificação e o ni lismo, especificamente


alemães, que levou os nacional-socialistas à loucura e os fez alcançarem o
degrau do as as inato coletivo mais inconcebível da história. Tomados pela
teatralidade própria dos histéricos, executaram seu psi-codrama sangrento diante
de um povo em estado de transe e impotente.

A partir de que momento os nazistas teriam concebido seu projeto de

“solução final”? Tudo indica, ao contrário de uma idéia difundida, que

teriam adaptado o projeto à evolução da guer a, por aproximações sucessivas.42


Uma data decisiva pode, contudo, ser indicada: a inauguração das instalações de
gás, “especialmente em Chelmno e em Belzec” no final de

1941 (e em 1942 em Auschwitz), retomando as indicações de Philippe

Burrin.43 O plano geral, porém, ainda não estava delineado, e é possível


que os nazistas, que tinham começado por considerar a expulsão dos

judeus, tenham se visto na impossibilidade de fazê-lo quando ocuparam

a maior parte da Europa. Uma indicação nesse sentido é admitida pela

maior parte dos pesquisadores e historiadores há mais de 20 anos: em 20

de janeiro de 1942, Hermann Goering organizou uma conferência sobre

a planificação da “solução final” em um palacete de Wansee, subúrbio de

Berlim. Quem a presidiu foi Reynhardt Heydrich, e o secretário foi o


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

381

lugar-tenente SS Adolf Eichmann.44 A amplitude da tarefa deixava aos

nazistas pouco tempo para agir. Era preciso acabar rapidamente com os
judeus.

Um ponto é certo: os alemães se esforçavam para manter sua opera​

ção em segredo. Uma indicação disso é a idéia fixa de traição que tomou

conta de Hitler e de seus próximos quando as primeiras informações

sobre as execuções em massa de judeus foram publicadas no exterior.

Por uma ironia sinistra, os nazistas, rivalizando em infâmia com o

célebre judeu imaginário de Shakespeare, Shylock, pensaram em vender

seus judeus. Em 1939, chegaram a pedir 25 milhões de libras esterlinas

— soma enorme para a época — à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos

para entregar judeus, não sem antes confiscar-lhes todos os bens, evidentemente.
Foi um plano preparado pelo banqueiro do Reich, Hjalmar Schacht. A primeira
“remessa” deveria compreender 150.000 judeus. O

plano não prosseguiu por causa da oposição posterior de Hitler, dominado por
sua obsessão de genocídio.45

Mais de meio século passado, o empreendimento de extermínio

nazista ainda nos deixa o espírito indefeso, incapaz de conceber a desumanidade


e a atrocidade de um massacre perpetrado a sangue-frio durante três anos.
Continua não existindo uma história completa do holocausto que seja
incontestável: subsistem inúmeras lacunas sob inúmeros aspectos. Os arquivos
alemães estão seguramente longe de ter aberto

todos os seus segredos. Assim, é estranho que os documentos contendo

as ordens de execução da “solução final” sejam tão pouco numerosos e

que não haja sequer um deles assinado por Hitler. É correto pensar que

existam caixas de arquivos escondidos do mundo, comprometedores não


só para os nazistas como também para muitas outras pessoas.

O mais perturbador é que as perseguições de judeus foram bastante

relatadas pelas imprensas estrangeiras nos anos em que elas ainda podiam

falar sobre is o, mas sem nenhuma referência à “solução final”, que era

contudo evidente.46 Obviamente, nos países submetidos aos cesarismos

enumerados mais acima, recomendava-se não publicar informações que

pudessem prejudicar os nazistas ou os pequenos césares locais. Fora das

imprensas escandinavas — dinamarquesa, sueca e norueguesa — para as


382

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

quais “a questão judia” era praticamente exótica e objeto de relatórios,

sobretudo dentro dos ministérios e das embaixadas, enquanto seus países


se esforçavam discretamente para salvar tantos judeus quanto pudessem,47 não
restava imprensa livre senão em dois ou três países da Europa: Grã-Bretanha,
França e Bélgica.

A imprensa inglesa, sensibilizada em relação à “questão judia” pela

declaração Balfour de 1919, que havia pela primeira vez desde o Império

Romano dado uma pátria aos judeus — e na Palestina, ainda por cima —

mostrou-se certamente comovida pelas perseguições nazistas, mas o

Foreign Of ice estimava que o Holocausto era uma hipótese inacreditável

e provavelmente fruto de um “exagero histérico”. A BBC recebeu em

1941 instruções para não dar mais destaque aos sofrimentos dos judeus do

que aos de qualquer outro povo sob dominação nazista. Era preciso não

atrair a atenção sobre os judeus, estimava-se, por medo de desencadear

uma onda de anti-semitismo em um país submetido a severas restrições.48

Germes de anti-semitismo infestavam o país, efetivamente. Como

por exemplo os que eram disseminados por sir Oswald Mosley, chefe da

British Union of Fascists, entre 1932 e 1940. À frente de uma milícia de

camisas-negras que frequentemente desfilava pelos bair os de predominância


judia do East London car egando bandeiras e insígnias de estilo nazista, Mosley
era ainda mais perigoso por ser apoiado pelo grande

empresário da imprensa Lord Rothermere, proprietário do EveningNews,

do Daily Mail, do Daily Mirror e do Sunday Pictorial, quatro jornais de grande


difusão. E Rothermere desenvolvera relações de amizade com

Benito Mussolini e Adolf Hitler.49


Este último ponto provava que havia no público inglês uma larga

parcela que não era hostil ao anti-semitismo. Como demonstra, por

sinal, a existência de diversos grupelhos de direita mais ou menos extrema, tais


como o Anglo-German Fel owship, The Link, a Nordic League, a National
Socialist League, os Britons, sem falar do Peoples’s Party, de

Lord Tavistock.

Os mesmos germes eram disseminados por algumas outras personalidades, tais


como o capitão A. H. M. Ramsay, membro do Parlamento, que foi também o
único deputado britânico preso durante a guerra.
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

383

Chefe do Right Club, pequeno aglomerado protofascista, Ramsay foi

oficialmente acusado de ter sido designado por Hitler para ser ogauleiter
do Reino Unido em caso de ocupação do país. Na realidade, parece que

ele era um aventureiro e um extravagante, cercado de alter egos grã-finos,

entre os quais alguns militares inquietos, um almirante aposentado que

se tornou maitre d’hôtel, e uns tantos impostores. Implicado em um

rocambolesco caso de espionagem, foi preso, passou a guer a na cadeia,

de onde só saiu em 1944.5H

Mais grave, provavelmente, era a existência de uma coorte de aristocratas


contrários a um conflito com a Alemanha, da qual o rei Eduardo VI I, mais tarde
duque de Windsor, foi o mais ilustre representante desde sua ascensão ao trono
em 1935 até sua abdicação em 1938. Durante e depois de seu reinado, ele, com
efeito, expressou por diversas vezes sua

admiração por Hitler e pelo Terceiro Reich;51 e uma parte da opinião

pública inglesa, impregnada do espírito de Munique, estava disposta a

muitas concessões para evitar a guer a; os judeus não poderiam ter grande peso
em um tal contexto, e a prudência do governo em relação às informações sobre
as perseguições de judeus se explica com facilidade ou

até mesmo se justifica de uma certa maneira.

A imprensa francesa, em compensação, não parecia considerar aquelas


perseguições merecedoras de uma atenção particular. A imprensa de direita, é
óbvio — Gringoire, Candide,Je suis partout, LAction française —,

nem sequer as levou em conta. Já a imprensa de esquerda, LHumanitê,

1’QSuvre, Cesoir, sentia o pacto germano-soviético chegar como um artrítico


sente a tempestade se aproximando. Nenhuma reação internacional, pois: o
mundo civilizado parecia admitir que os judeus eram humanos de

segunda categoria.

A despeito de uma germanofobia crescente,52 que começava a se


manifestar em Maur as, Rebatet, Georges Blond, Robert Brasil ach, E A.

Cousteau, Pierre Gaxotte e em outros à medida que a agressividade

nazista se afirmava, a imprensa de direita não perdeu uma ocasião de

investir contra os judeus, mesmo que vítimas dos nazistas, e com palavras cuja
intensidade de violência era quase igual à aversão demonstrada:

“O anti-semitismo perturba o gueto e está certo. Muito se tem com​


384

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

padecido do povinho judeu. Em meio a sua sordidez, a sua aparente

humildade é que se conservam intactos os perigosos fermentos, os preceitos


cínicos de onde saem as revoluções e as grandes espoliações. .”, escreveu, por
exemplo, Lucien Rebatet em Je Suis Partout, o jornal dirigido por Brasil ach e
por ele transformado, segundo suas próprias palavras, em “órgão oficial do
fascismo internacional”.53 Não foi seu único “feito”:

ele enviou a Cousteau uma carta de Viena na qual descreve com júbilo

“uma verdadeira dança do escalpamento* sobre os cadáveres dos judeus

de Viena (. .) Por mais inteligentes que sejam nossos leitores, existem

manifestações de selvageria com as quais ficariam surpresos se disséssemos que


são simplesmente admiráveis”.54

É pouco dizer que a direita da época execrava a democracia. Gaxot e,

por exemplo, estimava que “há nos fascismos estrangeiros um excesso de

democracia para nosso gosto. A Alemanha e a Itália desconceituaram o

fascismo”.5

Um reducionismo primário, deficiência ainda corrente no final do

século XX, resumiria provavelmente as linhas precedentes dizendo que os

judeus sofreram as consequências dos medos do capitalismo mundial

diante do espectro do comunismo. Seria evidentemente falso por ser

excessivo, mas, mesmo assim, não deixa de existir uma grande parte de

verdade nessa simplificação exagerada. E verdade que o ressurgimento do

monstro militarista alemão sob as bandeiras marcadas com a cruz gamada,

caricatura de pesadelo do exército alemão, foi independente da vontade de

um Ocidente arquejante, ele mesmo esgotado pela Grande Guer a. Hitler

ascendeu ao poder graças à complacência patológica desse Ocidente vencedor ou


mesmo graças a seu apoio. Existiam, contudo, em 1938, suficientes provas de
que o Terceiro Reich era um episódio psiquiátrico da história, uma doença
política de infecção apocalíptica para que conviesse

lhe fazer oposição. O horror nazista, que iria fazer dolorosas cicatrizes

com fer o em brasa mesmo nas consciências dos cristãos, era suficientemente
previsível em 1938, última parada antes do inferno, para que se

* Dança guerreira executada pelos índios em volta da vítima que vai ser
escalpelada.

(N.T.)
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

385

tivesse tentado evitar Munique e se tives e levado Hitler a sério. Mas a

impotência do Ocidente foi demonstrada na ocasião da guer a da Espanha


e, em Munique, quem o representou foram personagens tão lamentáveis

quanto Neville Chamberlain e Edouard Daladier, políticos decadentes

saídos dos guarda-roupas de uma Grã-Bretanha de polainas e de um

radical-socialismo francês “courtelinesco”5*— dois caniches desdentados

diante de um lobo.56 Pior ainda, o entusiasmo de inconsequentes que acolheu


Daladier no retorno de Munique, muito embora, graças aos vestígios de lucidez
que lhe restavam, ele esperas e ser linchado, demonstram suficientemente a
covardia ir emediável dos Estados que eles representavam, de Chamberlain com
seu guarda-chuva e a dele próprio.

E sobretudo, no fundo de seus corações, os nacionalismos europeus,

da maneira como tinham sido constituídos desde o século XIX, eram

anti-semitas. A América, razoavelmente anti-semita também e principalmente


infestada no mais alto grau por simpatias tácitas pelo nazismo, dormitava,
exangue, esgotada pelas orgias de cupidez de seus especuladores e nem um
pouco inclinada a intervir, nem a favor das democracias, nem dos judeus.57 Ela
opôs a estes últimos o gélido muro de suas leis

sobre imigração, como demonstra a indigna odisséia do navio Saint-Louis

no verão de 1939. Partido de Hamburgo com 900 passageiros judeus, o

Saint-Louis chegou finalmente ao largo da baía de Havana, em Cuba.

Seus passageiros estavam todos munidos de visas perfeitamente regulares

para um período de 90 dias. Mas as autoridades cubanas, que, é preciso

lembrar, estavam diretamente submetidas à autoridade americana, se

recusaram a deixá-los desembarcar. O Saint-Louis dirigiu-se em seguida

a Miami, onde os passageiros enfrentaram a mesma recusa. O navio voltou a


Hamburgo e a maioria de seus passageiros morreu mais tarde em campos de
concentração.
Os judeus, vejam só, ainda não pertenciam à raça humana. Tinham

sido sempre perseguidos: qual a novidade? Ninguém iria então correr

riscos por causa deles. Era preciso salvaguardar a pátria.

Por um paradoxo assustador, as mesmas nações cristãs que haviam

desprezado os judeus porque eles só se preocupavam com dinheiro,

dinheiro em função do qual os judeus as haviam condenado a viver, esta-


386

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

vam agora sacrificando os judeus em favor de seu próprio dinheiro, de

seu próprio capital, de seus pequenos pecúlios. Mais judias do que os


judeus, acreditavam poder dormir tranquilas, deixando o lobo Hitler

comer os judeus, já que ele as defendia contra o urso Stalin. Depois o

lobo começou a morder os que se supunha que protegesse, e, então, foi

preciso resistir.

Neste ponto, é preciso que nos felicitemos com o fato de o nazismo

ter sofrido de cegueira. A começar por Hitler, que proibiu a física relati-

vista do judeu Einstein. Essa fulminante e bem-aventurada idiotice

embruteceu os físicos alemães. Assim, quando no final de 1938 Ot o

Hahn conseguiu desintegrar pela primeira vez um átomo de urânio, por

intermédio de uma descarga de 200.000 elétrons-volts, obtendo de um

lado bário e, de outro, argônio, ele não compreendeu o que acabara de

realizar. Ele próprio me contou em 1958. “Era alquimia”, disse ele, “eu

não podia acreditar naquilo.” Quando publicou os resultados de seus trabalhos,


acrescentou como conclusão: “Mas posso ter-me enganado.” A física judia Lise
Meitner, exilada na Dinamarca, compreendeu, no entanto, o alcance da
experiência: era a primeira fis ão do átomo. Ela alertou Niels Bohr, pai de um
dos mais célebres modelos do átomo e chefe do

Instituto de Física Teórica de Copenhague. Bohr rumou para a

Inglater a. E da Inglater a para os Estados Unidos. Em 1943, a bomba

atómica entrou em experiência. Pode-se ainda tremer ante a idéia de que

Hitler poderia não ter banido “a ciência judia”.58

Fica-se tentado a concluir simplesmente atirando o nacionalismo aos

cães. É, contudo, forçoso reconhecer que a Resistência Francesa foi um


movimento nacionalista. E que foi graças a ela que a dignidade do Estado

e da nação foi restaurada. E, mesmo nesse caso, as ideologias não estavam

entregues ao sono, uma vez que houve pelo menos dois grandes movimentos que
lhe deram impulso e que, por pouco, não fizeram com que tivesse havido duas
Resistências. Mas pessoas de todas as clas es sociais e

de todas as confissões ou sem confissão, bem como judeus, dela participaram


lado a lado. Um desses movimentos era um nacionalismo identitário, que
submetia a nação ao respeito do passado e da autoridade; o

outro, um nacionalismo democrático, herdeiro direto da Revolução de


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

387

1789. Qual era a diferença entre es es dois nacionalismos? Ou, para resumir,
entre Jean Moulin e Pier e Drieu La Rochel e? A ética, para come​

çar. E a recusa do nacionalismo identitário — os dois estavam estreitamente


ligados. A ética, com efeito, dizia que não se é plenamente humano na servidão.
E, também, que ela própria é então um luxo inacessível.

Alguns milhares de homens decidiram, pois, dar fim àquela servidão,

nem que fosse ao preço de suas vidas.


388

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Bibliografia e notas críticas

1. Ao efetuar o amálgama do anti-semitismo cristão, que era, naquele


momento,
europeu, com o anti-semitismo alemão, Goldhagen faz este último, com
efeito, remontar à Idade Média, sem distinguir entre anti-semitismo
religioso e anti-semitismo nacionalista; também não parece dar-se conta de
que na República de Weimar, que precedeu o Terceiro Reich, não se cogitou
de levar o anti-semitismo a ponto de abrir campos de concentração, sem
falar das câmaras de gás.

2. Histoiregénérale cie Dieu (Robert Laf ont, 1997).

3. Episódio escandaloso, lembrado por Roset a Loy em Madame Delia Seta


aussi est

juiue (Rivages, 1998).

4. Em 1963, a peça de teatro de sucesso de Rolf Hochhuth, Le Vicaire,


revelou ao

mundo o silêncio de Pio XII durante a guerra e especialmente durante a


ocupação de

Roma pelos alemães, em 1943, e a prisão de numerosos judeus da capital


pelos nazistas.

Desde então, a atitude de Pio XII tem sido objeto de ataques frequentemente
muito violentos, reforçados pela real germanofilia desse papa, notadamente
quando era núncio em Berlim.

Contudo, colocá-lo no pelourinho tomou-se sistemático demais para não


requerer

algumas observações; a primeira é que Pio XII de fato denunciou em sua


mensagem de

Natal de 1942 “a perseguição de centenas de milhares de pessoas que, sem


haver cometido crime, às vezes simplesmente devido a sua nacionalidade ou
a sua raça, estavam marcadas para a morte ou para a extinção
progressiva”. Não poderia ter sido mais claro.

Em seguida, a tarefa de Pio XII era consideravelmente mais difícil do que a


de seu
predecessor Pio XI. Se ele tivesse novamente denunciado em 1943 os
massacres de

judeus — do qual estava informado, enquanto a maioria da população


alemã da época não

estava —, teria corrido o risco de provocar uma sublevação de cristãos, ou


seja, teria

enviado os cristãos à morte e nem por isso teria certeza de poder salvar
judeus.

Enfim, esse papa salvou cerca de 700.000 judeus da morte fornecendo-lhes


falsos

certificados de batismo, às vezes disfarçando-os em batinas ou roupas de


freiras ou

escondendo-os em monastérios, conventos e outras instituições religiosas.


Teríamos

esquecido que Golda Meír e os chefes das comunidades judias de numerosos


países

(Hungria, Turquia, Itália, Roménia, Estados Unidos) lhe agradeceram


formalmente?

Lamentei que ele não tivesse deixado Roma no começo da guerra; ainda o
lamento.

Não teria sido o primeiro papa a deixar a Cidade Eterna e talvez sua ação
pudesse ter sido

mais clara e mais eficaz no campo aliado. É claro que foi germanófilo, o que
não é um crime. É claro que cometeu outras bobagens, por omissão (v. nota
21). Mas a história pede mais prudência do que certos autores têm
mostrado.

5. James Carrol , The Silence (The New Yorker, 7 de abril de 1997). James
Carrol é
católico, antigo capelão da Universidade de Boston.
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

389

6. Cf. o notável estudo de André Lama, Mussolini, Pie XI, Hitler et la


question religieuse

(Cahier du Cercle Ernest Renan, n? 204). É preciso lembrar que até então o
Vaticano

recusara-se a considerar Roma a capital da Itália. .

7. Citado por Gérard Sylvain, La question juiue en Europe, 1933-1945 (J. C.


Lat ès,

1985).

8. Id.

9. A. Guetta cita o primeiro número: 7.000 dos 50.000 judeus que


constituíam a

totalidade da população judia da Itália ( Italie, em Esquisse de 1'histoire du


peuple juif,

Dictionnaire encyclopédique du judaisme, op. cit.). Gérard Silvain cita o


segundo número:

7.500 dos 58.000judeus (La question juiue en Europe, 1933-1945, op. cit.).

10. Susan Zucotti, The Holocaust, the French and theJews (Basic Books,
HarperCollins,

New York, 1993).

11. Libres propos sur la guerre et sur la pciix (Flammarion, 1952).

12. Citado por A. Lama, Mussolini, Pie XI et la question religieuse, op. cit.

13. Id. Podemos nos perguntar, segundo a mesma ótica, se não ocorreu ao
redator do

Bayerische Kurier a idéia de que os ingleses, por outro lado, possam ter sido
recompensados por sua apostasia.

14. Certamente houve, na Alemanha como em outros lugares, eclesiásticos


cuja

cegueira foi escandalosa. Em uma conferência proferida em março de 1946


em Zurique,

o pastor Martin Niemõller, tomado por uma contrição súbita e


desconcertante, declarou:

“O cristianismo na Alemanha carrega uma responsabilidade maior do que


os nacional-

socialistas, as SS e a Gestapo. Nós deveríamos ter reconhecido o Senhor


Jesus no irmão

que sofria e era perseguido, a despeito do fato de ser comunista ou judeu...”


Declaração

que, além do absurdo engendrado pelo exagero, parece desculpar


parcialmente o nazismo para inculpar totalmente o cristianismo e não dar
muita importância aos fatos: o catolicismo também foi perseguido e, no caso
específico da Alemanha, certamente não foi ele que nutriu o nacionalismo
assassino. Niemõller, que foi preso em 1937 por sua resistência aos nazistas,
solto, preso novamente (e que se tornou um personagem midiático na
imprensa americana), é citado por Goldhagen como testemunha de
acusação do cristianismo; ora, ele não foi o único padre preso, e a opinião de
centenas de outros que também o foram não é certamente igual a sua.

15. A. Lama, Mussolini, Pie XI, Hitler et la question religieuse, op. cit.

16. Segundo um artigo do enviado especial da revista protestante The


Evangelical

Visitor, citado por Robert W. Ross, So it was true (University of Minnesota


Press, Minneapolis, 1980).
390

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

17. Norman G. Finkelstein e Ruth Bet ina Bim, A Nation on Trial, The
Goldhagen

Thesis and Historical Tnt li (Henry Holt and Company, New York, 1998).
18. Nazism, 1919-1954,4 vol., sob a direção dejeremy Noakes (University
ofExeter

Press, Exeter, 1998).

19. Id.

20. “Declaração do Vaticano sobre a Shoah”, Le Monde, quarta-feira, 18 de


março de

1998, Documento da Comissão romana para as relações com os judeus;


tradução não oficial pela secretaria do episcopado francês para as relações
com o judaísmo. Le Monde

acrescentou que essa declaração estabelecia como cláusulas as promessas


implícitas da

carta apostólica do papa João Paulo I em 1994, Tertio millenio admi ente,
que começava

nestes termos: “É conveniente que, no final do segundo milénio do


cristianismo, a Igreja

se torne mais consciente do estado pecador de seus filhos, lembrando-se de


todas as épocas da história em que eles se afastaram do espírito de Cristo e
de seu Evangelho e que, em vez de apresentar ao mundo o testemunho de
uma vida inspirada em valores da fé,

deram provas de modos de pensar e de ação que constituíram verdadeiros


casos de

contratestemunhos e escândalo.”

É mais provável que ela estivesse cumprindo uma promessa bem mais
antiga,

remontando a 1987. À época, o papa em pessoa tinha anunciado uma


declaração sobre a

Shoah no momento em que o Estado de Israel se indignava com a acolhida


que ele reservara a Kurt Waldheim. Foram, pois, necessários 11 anos para
redigir o texto. E, de fato, espantoso. Uma das razões conhecidas do atraso é
a atitude da Conferência Episcopal

polonesa em 1992, que considerou Auschwitz uma “especificidade polonesa”


(Peter

Hertei, Pourquoi le Vatican bloque l'encyclique sur la Shoah? Golias,


setembro-outubro de

1997). Reivindicação no mínimo desconcertante: não foram, pois, os


nazistas que fundaram o campo de Auschwitz? Quer dizer então que foram
só os poloneses que morreram lá? É provável que tenham havido outras
razões; queremos acreditar que foram mais

sérias e mais dignas.

Esqueçamos o fato de que a carta em questão jogava o pecado sobre os


“filhos” da

Igreja, apesar de ter sido ela mesma que inspirou, como foi exaustivamente
visto nos

capítulos precedentes desta obra, uma forma particular de anti-semitismo, o


antijudaísmo. O essencial é que finalmente a Igreja estava admitindo sua
culpa na génese daquela aberração.

Os termos da declaração de arrependimento, bem tardia para dizer a


verdade, não

obtiveram unanimidade. O papa colocava com razão, mas em termos


duvidosos, a responsabilidade da Shoah sobre o nacionalismo alemão (“A
Shoah foi fruto de um regime moderno absolutamente neopagão”), o que fez
com que não ficasse claro o objeto do

arrependimento. De mais a mais, a evocação do “paganismo”, noção arcaica


que lembra

os motivos de excomunhão dàActioti Française por Pio XI, era incorreta: o


Terceiro Reich
não impôs nenhum deus pagão, ele fez valer a razão de Estado e a nação,
princípios que

não pertencem, seja de que maneira for, ao âmbito do paganismo. Além


disso, o paganismo, termo vago e questão por demais complexa para ser
mencionada aqui em detalhe, nada tem a ver com a génese do anti-
semitismo moderno: o paganismo foi, ou podia ser,

tolerante e dotado de um profundo espiritualismo.


1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

391

O mais estranho dessa alegação de paganismo é que ela parece absolver por
omissão

os Estados não “pagãos” que, apesar de tudo, participaram ativamente da


perseguição dos

judeus, como é o caso da França. Mesmo que tenha contado entre seus
aliados e inspira-

dores com uma pessoa como Charles Maurras, “pagão” presumido, mas
sobretudo teís-

ta, o regime de Vichy parece, ao contrário, ter insistido no catolicismo


tradicional.

O mero fato de que o antijudaísmo católico (e protestante) tenha preparado


o leito

cultural para o anti-semitismo nacionalista jamais foi especificado de modo


claro e dire-

to. O texto do Vaticano limita-se a dizer que lamenta “profundamente as


fraquezas dos

filhos e filhas da Igreja” que não elevaram a voz na Alemanha e nos países
ocupados contra as perseguições dos judeus. Deploráveis desculpas, no meu
entender: elas ignoram, com efeito, as condições nas quais os católicos em
particular viviam naqueles territórios

e parecem colocar o peso da Shoah no conjunto dos alemães. Como não se


perguntar,

nesse contexto, se as origens do pontífice não teriam influenciado a


formulação do arrependimento? O anti-semitismo polonês, que pôde e pode
ser ainda constatado até no clero católico polonês meio século depois do
final da guerra, especialmente a propósito das cruzes de Auschwitz, deveu-
se, também ele, ao “paganismo”?

Provavelmente, a principal explicação para os subterfúgios dessa declaração


envergonhada e desastrada, é a de que João Paulo II se esforçou para
preservar o dogma da infalibilidade pontifical. Esse dogma, com efeito,
ficou fortemente abalado pelo silêncio de Pio XII e pela exploração
exagerada que dele se fez (v. nota 4). Mas teria sido mais eficaz
publicar um esclarecimento a respeito do comportamento de Pio XII — cuja
honra, por

sinal, teria sido resgatada — do que jogar a culpa do anti-semitismo sobre


“os filhos da

Igreja”.

Lembremo-nos, por outro lado, a propósito de Pio XII, de que o anti-


semitismo alemão durante a Primeira Guerra Mundial era praticamente
inexistente. Como demonstra o fato de o general Erich Ludendorff ter
inaugurado diversas sinagogas e feito falas em

iídiche, dirigindo-se às platéias nestes termos: “Caros judeus...” Fatos como


esses conseguiram ocultar de muitos observadores, incluído o clero católico,
o avanço do anti-semitismo depois de 1918.
21.
Assim, na Áustria, o cardeal Innitzer, arcebispo de Viena, ordenou que fosse
lida

em 27 de março de 1938 nas igrejas do país uma proclamação convidando


os católicos a

se pronunciar a favor do Reich no plebiscito que deveria regularizar a


Anschluss. Ao

darem desse modo razão a Hitler, que não queria que os padres se metessem
na política,

eles e seus acólitos foram severamente repreendidos pela Rádio Vaticano


neste termos:

“Os bispos austríacos, com sua declaração, colocaram o fardo da luta sobre
os ombros dos

leigos. Revelaram-se covardes e indignos de continuar esta luta por Jesus


Cristo.” Como

se vê, Pio XI não tinha papas na língua nem mandava recados.

Pio XII não demonstrou a mesma severidade em relação a monsenhor


Feltin, arcebispo de Bordeaux e esteio eminente da Igreja no regime de
Vichy durante os anos negros. Após a publicação de um texto pela
Assembléia dos cardeais e arcebispos da

França, em 23 de dezembro de 1941, aplaudindo a Lei Trabalhista de Vichy,


o prelado

mandou divulgar pelos serviços de Informação de Vichy uma carta


convidando suas ovelhas “a não recusar a participação individual, cada um
em seu plano providencial, na organização profissional em curso”. A carta
pastoral em questão declarava que “a Igreja jamais considerou a liberdade
sindical algo tão essencial que qualquer regime que suspendesse
392

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

seu exercício devesse por isso ser acusado de abuso de poder”. O mesmo
Feltin mandou

celebrar uma missa para o repouso da alma do ministro da Propaganda de


Vichy, Philippe

Henriot, abatido pela Resistência. (Philippe Cohen-Grillet e Christian


Terras, Quand

Mgr Feltin collaborait avec M. Papon, Golias, setembro-outubro de 1997.)


Vale lembrar que,

a despeito do fato de o general de Gaul e ter ordenado que fosse inscrito na


lista de “indesejáveis”, Feltin terminou tranquilamente sua carreira como
arcebispo de Paris.

Pio XII, com efeito, não deu continuidade à atitude enérgica de seu
predecessor a

respeito dos totalitarismos e do anti-semitismo. Antes de sua morte em 1939,


Pio XI

havia preparado uma encíclica, Humanigeneris unitas, que definitivamente


dissipava todas

as suspeitas de tolerância ou de simpatia da Igreja por essas aberrações.


Mas Pio XII mandou que fosse guardada e ela só veio a ser publicada 50
anos mais tarde (cf. Georges Passelecq e Bernard Suchecky, Uencyclique
cachée de Pie XI, La Découverte, 1995). E provável que ele se lembrasse com
ansiedade da negociação efetuada entre Hitler e Pio XI em 1933: o futuro
Jtiher havia na ocasião declarado ao pontífice não estar seguro de poder

conter as forças do partido nacional-socialista que desejavam fechar as


escolas católicas e

proibir os movimentos de juventude católica, caso o Vaticano continuasse a


apoiar o partido católico Zentrum. Preocupado em proteger os católicos
alemães, Pio XI cedera.

Como a situação se agravou, Pio XII preferiu não ver renovada a ameaça de
Hitler (James

Pool, Hitler and His Secrets Partners, Pocket Books, New York, 1997). Mas
não foi suficiente para que a imagem desse papa deixasse de ficar manchada
pela complacência em rela​

ção à Alemanha, na qual talvez não conseguisse distinguir a Alemanha


“eterna” do fenómeno nazista. Essa miopia pode ter sido a razão pela qual
conseguiu convencer o Vaticano, em sua qualidade de núncio apostólico em
Munique, a investir milhões de

dólares na economia do Terceiro Reich. Teria sido também a razão pela qual
ele deu

dinheiro a Hitler? Efetivamente, sua criada de quarto, uma alemã, irmã


Pascalina, declarou lembrar-se de ter assistido a uma entrevista em
Munique entre Hitler e o arcebispo Pacelli, durante a qual este último
entregou a Hitler uma soma importante de dinheiro

da Igreja (Paul I. Murphy, La Popessa, Warner Books, New York, 1983).

Igualmente desastrada, e embaraçosa para seus defensores, foi sua


complacência em

relação à operação de repatriação de lingotes de ouro provenientes da


Alemanha, em

1947. A operação foi relatada por um antigo coronel, cujo nome não foi
declarado, da U.

S. Military Intelligence, e detalhada na obra de John Loftus e Mark Aarons,


The Secret War

against the Jews (St. Martin*s Griffín, New York, 1994). Ela foi montada
pelos irmãos

Dulles — John Foster, futuro secretário de Estado da administração


Eisenhower (1952),

e Allen, chefe do escritório da OSS (Organization of Strategic Services,


predecessor da

CIA) — em Berna, de 1942 a 1945. O ouro teria sido entregue a um banco


do Vaticano,
depois “lavado” e reenviado aos Estados Unidos. O número de nomes e de
detalhes fornecidos por Loftus e Aarons é suficiente para que a história
pareça plausível.

Bom número de outros Estados e de outros bancos se dedicaram a


operações similares depois da Segunda Guerra Mundial, mas o fato é que
esta última foi particularmente inoportuna.

22. Lesjuifs enAllemagne, op. cit.

23. Essa citação deveria ser suficiente para refutar a conspiração de


“semileitores”

(como qualificá-los de outra forma?) de Nietzsche, que se obstinam, contra


toda evidên​
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

393

cia, em apresentá-lo como um dos inspiradores do nazismo, do anti-


semitismo e de toda

espécie de aberrações. Em tom menor, darei o seguinte exemplo: em 1998,


The Sunday

Times publicou o relato dos delitos de jovens delinquentes e, para explicá-


los, alegou que

teriam “lido Nietzsche em excesso”. Em tom maior, podemos destacar a


seguinte frase de

Jacques Derrida: “Uma política, só por se declarar — se proclamar —


nietzschiana será

uma política nazista, e isto é, pois, significativo, devendo ser examinado em


todas as suas

consequências” ( Otobiographies: Venseignement de Nietzsche et la politique


du nom propre).

Talvez a explicação seja que os nazistas também eram semileitores,


reforçados em sua

interpretação aberrante do filósofo pelas falsificações impudentes de sua


irmã, a virago

estúpida e hitlerófila Elizabeth Foerster.

Nietzsche demonstrou suficientemente sua aversão pelo anti-semitismo —


era justamente o que ele execrava em Wagner e uma das razões pelas quais
se indispôs com ele

— para que não se inventem tamanhas contraverdades.

Por fim, é bem espantoso que muitos comentaristas se obstinem em


aproximar

Nietzsche do nazismo, mas demonstrem uma particular complacência a


respeito de

Martin Heidegger, esse sim um autêntico aliado, e cheguem a se indignar


quando este
último fato é lembrado. O ni lismo de Nietzsche não pode ser identificado ao
de

Heidegger, como demonstra amplamente a própria obra de Heidegger (.


Nietzsche,

Gallimard, 1971): o primeiro é um adeus à metafísica platonista e um apelo


à transforma​

ção dos valores, implicando superação, enquanto o nazismo, saído do


niilismo especificamente alemão, é “uma forma radicalizada do militarismo
alemão”, como escreveu Leo Strauss em uma fustigação genial em Le
nihilisme allemand (comentário n? 86, verão de

1999 — v. mais embaixo nota 39).

24. Histoire de Varmée alie mande, 1.1 (Albin Michel, 1936).

25. £ possível avaliar o estado de ignorância e de inconsciência no qual a


França, por

exemplo, se encontrava em relação à Alemanha pela seguinte frase de


Jacques Bainville:

“A paz conservou e estreitou a unidade do Estado alemão. É nisso que ela se


mostrou

amena.” ( Les conséquences politiques de la paix, reedição Éditions de


l'Arsenal, 1995).

Bainville havia contudo enxergado corretamente — uma das raras previsões


exatas da

direita francesa — quando previu que a Alemanha faria um pacto com a


Rússia para ajustar as contas com a Polónia, o que foi precisamente o caso
do Tratado de Rapallo.

26. A Conferência de Bolonha, em 21 de junho de 1920, estimou esse


montante em
269 bilhões de marcos-ouro, pagáveis em 42 anos.

27. As sanções impostas à Alemanha foras arrasadoras: a Alemanha cedia a


Prússia

ocidental e Memel. Dantzig transformava-se em cidade livre, além de


territórios adjudicados à Bélgica e à Polónia, por “revisão” de plebiscitos,
em Eupen-Malmédy, no Schleswig do norte, em algumas regiões da Prússia
oriental, na Alta Silésia... O Sarre

deveria ser ocupado durante 15 anos pela Sociedade das Nações. A


Alemanha renunciava a suas colónias: o Togo e os Camarões na África, as
ilhas Bismarck no Pacífico. Sua marinha de guerra e sua marinha comercial
eram praticamente confiscadas, todo seu

estado-maior dissolvido, a totalidade de seu material de guerra deveria ser


entregue aos
Aliados...
394

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

28. Rowohlt Verlag, Hamburgo, 1955. É, aliás, a tese exposta com impecável
clareza

por Ian Kershaw em Hitler— 1889-1936: Hubris (W. W. Norton &


Company, New York,

1998). Foi apenas graças à sequência da revolução de 1918, da crise de 1923


e da grande

depressão dos anos 30 que uma não pessoa como Hitler conseguiu se impor
na
Alemanha.
29. Mein Kampf, op. cit.

30. Histoire de Varmée allemande, op. cit.

31. Winston Churchill, Great Contemporaries, 1935. Cinco anos mais tarde,
em 20 de

agosto de 1940, André Gide escreveu em seu Journal: “Não consigo deixar
de sentir por

Hitler uma admiração cheia de angústia, temor e estupor.” Momento de


desatino, certo,

uma vez que Gide se uniu à França Livre, mas de desatino mesmo assim.

32. Em 14 de maio de 1929, o Võlkischer Beobachter, jornal de Munique


comprado

pelos nacional-socialistas e dirigido por Josef Goebbels, drou do


esquecimento a abjeta

falsa notícia do assassinato ritual: “Documentos do Vaticano confirmam os


assassinatos

rituais dos judeus” (Vatikanische Akten ais BeweismaterialJur die Judischen


Ritualmorde).

33. De um ponto de vista geral, a condenação do motim, considerado revolta


contra

o corpo constituído do Estado, decorre, com efeito, do conceito de


supremacia absoluta

e praticamente religiosa do Estado. Mas isso faz com que se considere


também a

Resistência como um motim; e se, como alguns o fizeram, se estima que o


regime de

Vichy representava efetivamente o Estado francês, chega-se a um conflito de


princípios

que me parece ter sido negligenciado.

34. Robert W. Ross, So It Was True, op. cit. O gesto revestiu-se de uma
gravidade proporcional à importância da Baptist World Alliance que, nos
anos 50, reunia 20 milhões de membros no mundo (. Baptists, Enciclopédia
Britânica). A decisão desencadeou fortes críticas, mas a BWA manteve sua
decisão. O correspondente do diário americano The

Watchman-Examiner, John Bradbury, destacado para cobrir a conferência,


apresentou um

quadro idílico da Alemanha, onde não havia jazz, nem literatura “sexual”,
nem “filmes

pútridos de gângsteres” (R. Ross, So It Was True).

35. Georges Araniossy, La presse antisémite en URSS (Alatros, Paris, 1978).

36. Cf. Béla Grunberger e Pierre Dessuant, Narcissisme, christianisme et


antisémitisme

(Hébraíca/Actes Sud, 1997). Não sou partidário dos exageros de


interpretação de alguns

defensores da psicanálise em matéria de política: contudo, é forçoso


constatar que o que

sabemos dos comportamentos da maior parte dos chefes do Terceiro Reich,


de Hitler a

Heydrich, Hess, Himmler e outros, indica patologias mentais óbvias.

Não serão encontradas nestas páginas referências aos “estudos hitleristas”


que abundam há muitos anos. A mim parece, com efeito, que muitos deles
tendem a atribuir uma importância exagerada ao acessório. E pouco
plausível, por exemplo, que o fato de ter

sido condiscípulo do célebre filósofo de origem judaica Ludwig


Wittgenstein, possa
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

395

explicar o anti-semitismo de Hitler. Havia muitos outros meninos na mesma


classe, e

nem por isso formaram um Bund anti-Wittgenstein. A sexualidade de Hitler,


tema particularmente repugnante, suscitou inúmeras hipóteses. Mas é
igualmente pouco plausível que o monorquidismo eventual possa contribuir
para explicar Hitler. Mais determinante, em compensação, seria sua
toxicomania.

37. “Vers la solution finale” (L’Histoire, octobre 1998). Philippe Burrin é


professor

de história de relações internacionais na École des Hautes Études


Internationales de
Genebra.
A constituição do aparelho policial no qual se transformou o partido
nacional-

socialista entre 1933 e 1935, e a maneira pela qual esse aparelho fez reinar o
terror sobre

todo um povo são um tema que ultrapassa de longe o âmbito destas páginas.
Pode-se,

contudo, encontrar sua descrição completa nas duas obras de George S.


Browder, The

Foundations of the Nazi Police State: The Formation of SIPO and SD


(Oxford University

Press, 1990), e Hitler’s Enforcers, The Gestapo and the SS Security Service in
the Nazi Revolution

(Oxford University Press, 1997).

Fica evidente que a polícia, herdada quase inteiramente da República de


Weimar e

mesmo do Império, se uniu aos nazistas de boa vontade, tanto mais que eles
lhe deixaram

o campo livre para exercer as exações contra os comunistas. Estes, é preciso


lembrar,

começaram a ser geralmente considerados os inimigos da nação a partir da


revolução de

1918, e desde o início se mostraram inimigos do nazismo. A polícia, relata


Browder,

sentira-se abandonada pela República de Weimar em sua caça aos


comunistas.
Contrariamente ao que Goldhagen escreveu, essa polícia não estava
imbuída de um

anti-semitismo “de base”, mas essencialmente de um anticomunismo


virulento.

Examinando os dossiês de contratação de recrutas da Sicherheitsdienst de


1932 a 1934,

Browder destaca que somente 3% deles expressavam sentimentos anti-


semitas: o anticomunismo era bem mais importante para eles. Foi apenas
após a promulgação das leis raciais de Nuremberg, em 1935, que a força
policial foi chamada para estender suas exa​

ções aos judeus.

Ademais, os nazistas obtiveram a fidelidade da polícia liberando-a de


qualquer respeito pelos direitos humanos dos que ela perseguia, autorizando
interrogatórios brutais e lhe concedendo meios materiais e homens em
abundância.

38. Leo Strauss (1899-1976), nascido na Alemanha e americano por adoção


(emigrado em 1932, naturalizou-se em 1944), é um dos filósofos políticos
mais eminentes do século XX. Autor, entre outras obras, de On Tyranny
(1948, reed. 1968) e de Natural Right

and History, constitui uma das referências essenciais de qualquer tentativa


de interpreta​

ção dos totalitarismos e sobretudo do nazismo.

39. Le nihilisme allemand, op. cit., texto de uma conferência pronunciada em


26 de

fevereiro de 1941 em Nova York. É um dos textos mais brilhantes de Leo


Strauss e a análise mais clara da distinção entre o niilismo em geral e o
niilismo alemão.

40. O leitor encontrará um amplo material de reflexão sobre a conjugação


do anti-
semitismo e da rejeição da modernidade na obra de Fritz Stem, Politique et
désespoir— Les

ressentiments contre la modemité dans VAlletnagne préhitlérienne (Armand


Coli, 1990). No que
396

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

diz respeito a Heidegger, nâo pretendo estabelecer aqui um debate que não é
o objeto

destas páginas; mas dois fatos me parecem indiscutíveis, seu niilismo e sua
denúncia anfl-

gúrica, mas não menos temática, da técnica como “fim da metafísica”.

41. Filósofo industrial e, ironia da história, fundador da Allgemeine


Elektrizitãts

Gesellschaft ou AEG, fundador de um partido democrata, Rathenau foi


acusado pelos

reacionários pré-nazistas de querer “vender a Alemanha aos Aliados”. Seu


assassinato teve

efeitos contrários aos que esperavam seus matadores: provocou a queda do


gabinete

Wirth, do qual era ministro, e depois a ocupação do Ruhr pela França.

42. É a tese de Hermann Rauschning (La Révolution du Nihilisme,


Gallimard, 1939),

admitida por Leo Strauss (Le nihilisme al emandop. cit.): a ausência de


qualquer objetivo

predeterminado entre os nazistas. O sentido de método aplicado ao


extermínio dissimulou frequentemente as modificações sucessivas de
estratégia, da ascensão de Hitler ao poder em 1933 até as decisões de
massacres de 1941-1942.

43. G. S. Browder, The Foundations of the Nazi Police State: Theformation of


SIPO and

SD e Hitler's Enforcers, The Gestapo and the SS Security Service in the Nazi
Révolution, op. cit.

44. Trinta cópias numeradas das atas da conferência foram distribuídas aos
chefes

nazistas envolvidos. O essencial do que sabemos a respeito da Conferência


de Wannsee
foi exposto na magistral obra de Raul Hilberg, The Destruction of the
European Jews

(Quadrangle Books, Chicago, 1961), que relata as informações fornecidas


por Eichmann

em seu processo, durante a seção de 26 de junho de 1961. Duas outras


obras-chave sobre

a sempre atual questão me parecem ser as de Gerald Reitlinger, The Final


Solution: The

At empt to Exterminate the Jeivs ofEurope, 1939-1945 (Thomas Yoseloff, New


York, 1968),

e a de Lucy Davidowicz, The Waragainst the Jews (Holt, Rhinehart,


Winston, New York).

45. Os detalhes dessas tratativas estão expostos na obra de Gerald


Reitlinger, The

Final Solution: The At empt to Exterminate theJeivs ofEurope, 1939-1945, op.


cit.

46. Robert W. Ross relacionou 616 referências diretas e indiretas na


imprensa protestante americana entre 1939 e 1942. Cf. p. 130, So It Was
True, op. cit.

47. É, pois, notório que a Dinamarca salvou cerca de 7.000 judeus,


especialmente

evacuando-os para a Suécia em outubro de 1943. Veio a público, contudo,


que houve

algumas falhas na compaixão dinamarquesa, e que, por exemplo, 132


refugiados dos

quais 25 ou 30 judeus foram mandados de volta para a Alemanha na mesma


época, aparentemente por culpa de altos funcionários favoráveis aos
nazistas. A existência em seu seio de grupos de pressão anti-semitas só faz
tomar mais admirável o devotamento dos

dinamarqueses que salvaram os judeus em seu país, uma vez que ela
demonstra que a

empresa não era destituída nem de riscos nem de adversários (cf. Antoine
Jacob,

“L’image du Danemark ‘sauveur des juifs’ égratignée”, Le Monde, 23 de


janeiro de 1999).

48. Richard Breitman, Official Secrets: What the Nazis Planned, What the
British and

Americans Knçw (Allen Lane, Londres, 1998). O autor relata que foi
somente por inter​
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

397

médio, da vigilância das mensagens de rádio alemãs, efetuadas pelo célebre


centro de

contraespionagem de Bletchley Park, que os ingleses ficaram sabendo que


os batalhões de

polícia alemães haviam sido encarregados da execução de judeus no front


oriental em 1941

e 1942. A menção de Churchill às atrocidades alemães, em um discurso de


outubro de

1941, desencadeou em Hitler uma paranóia a mais, o temor de ser traído


por alguém de

seu próprio círculo.

49. Preso em seguida à declaração da guerra, depois libertado em 1943 por


razões de

saúde, Mosley lançou em 1948 o Union Movement, de inspiração


evidentemente fascista, que centralizava 51 organizações de extrema direita
(na realidade, clubes de livro que editavam obras anti-semitas e fascistas).

50. A carreira política de Ramsay pareceu-se mais com um romance de


Evelyn

Waugh do que com um verdadeiro episódio político. E certo que ele se


meteu em espionagem, o que lhe foi fatal. Um dos membros do seu Right
Club, Tyler Kent, trabalhava no serviço secreto dos Estados Unidos; em
1940, ele interceptou telegramas secretos

entre Churchill e Roosevelt e confiou cópias deles a Ramsay e a uma certa


Anna Wolkoff,

que os repassaram a um “Mr. Macaroni” da embaixada da Itália (Richard


Griffiths,

Patriotism Perverted, Captain Ramsay, the Right Club and British Anti-
semitism, Constable,

Londres, 1998).

51. James Pool, Hitler and his Secret Partners, op. cit.
52. Germanofobia que não impediu, contudo, que seus possuidores
colaborassem

com o ocupante nazista, como se sabe.

53. A data é 2 de setembro de 1938, depois da Anschluss. O artigo foi


publicado com

este título: “Viena sob a cruz gamada. Os judeus desejavam a Anschluss.


Foi por causa

dos judeus que os vienenses a aceitaram.” O que é acrescentar o absurdo ao


odioso.

Citado por Pierre-Marie Dioudonnat, em seu notável estudo Je Suis Partout


1930-1944 —

Les maurrassiens devant la tentation fasciste (La Table Ronde, 1973), em que
se constata que

o pensamento da direita era, na ocasião, um indescritível aglomerado de


contraverdades

e fanatismo, sem falar de idéias desmentidas pela história.

Paralelamente, fica faltando examinar em que medida as idéias defendidas


por Je

Suis Partout o identificaram realmente com o fascismo, criação


mussoliniana que nos

parece ideológica e culturalmente diferente. E seguramente seria mais


fecundo, para

poder extrair lições dos desregramentos da direita francesa anteriores à


guerra, contrapor

o pensamento reacionário, tão vivo no mundo ocidental, até nos Estados


Unidos, ao pensamento democrático. Como muito bem expôs Albert O.
Hirschman em The Rhetoric oj
Reaction: Perversity, Futility,Jeopardy (Harvard University Press, Harvard,
1991), trad. fr.

Deuxsiècles de rhétoríque réactionnaire, Fayard, 1991), ele se distingue pelos


postulados paradoxais segundo os quais a democracia é um perigo para a
liberdade, e o Estado-providência um perigo para a liberdade e a
democracia ou para os dois ao mesmo tempo. E no

âmbito da retórica reacionária que o racismo em geral se inscreve mais


naturalmente, o

que situa, pois, os judeus, ou mesmo o todo o judaísmo, em uma condição


filosófica que

me parece até hoje mal explorada.


398

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

54. Id.

55. Id. Ficamos imaginando, horrorizados, qual seria o regime ideal para o
eminente historiador, eleito para a Academia Francesa em 1953 e autor
entre outras obras de

Siècle de Louis XV.

55*. Que tem o caráter cômico e satírico de uma peça de Courteline,


especialmente

quando fala do exército e da administração. (N.T.)

56. “Em vez de se ver em Reynaud e em Daladier dois homens que levaram
o país à

derrota, um por imprudência, o outro por abstenção, fica-se imaginando


que um quis a

guerra e o outro, a paz”, escreveu na época Alfred Fabre-Luce no capítulo


Paris 40 de seu

Journal de la France% março de 1939-julho de 1940 (Imprimerie J. E. P.,


Paris, 1941).

57. É preciso lembrar que Franklin D. Roosevelt, prisioneiro de um


Congresso, de

um Senado e de uma opinião pública isolacionistas, precisou do ataque


japonês a Pearl

Harbor em 1942 para poder declarar guerra às potências do Eixo?

Alguns editorialistas, antes e depois da guerra, sustentaram que os Estados


Unidos

não teriam podido melhorar a sorte dos judeus na Alemanha antes de seu
engajamento

militar ao lado dos Aliados, haja vista a impossibilidade de intervenção nas


questões internas de um país. Argumentação capciosa, pois os Estados
Unidos teriam podido agir, por exemplo, exigindo a mudança de local
dosjogos Olímpicos de 1936, que se realizaram em
Berlim e ofereceram a Hitler a oportunidade de uma nova onda de
propaganda heróica.

Eles teriam evidentemente podido, e isto é um ponto crucial, entrar na


guerra mais

cedo, se tivessem avaliado a amplitude do horror nazista. Mas grande parte


da elite mandante americana era não só isolacionista como também pró-
nazista.O exemplo mais célebre de pró-nazista americano foi o embaixador
em Londres, Joseph Kennedy, pai do presidente de mesmo nome, que
apoiou a anexação dos Sudetos pela Alemanha em 1938.

Circulavam rumores em Londres de que o exército alemão estaria


preparando um golpe

de Estado contra Hitler; Kennedy opôs-se a que os Estados Unidos o


encorajasse, por

achar que seriam os comunistas que então tomariam o poder (James Pool,
Hitler and His

Secret Partners, Pocket Books, New York, 1997). Pretexto sem fundamento,
pois o exército alemão em 1938 era profundamente nacionalista, como me
foi confirmado em 1956

durante conversações privadas com o general Fritz von Bayerlein.

Bem pior, durante uma conversa em Londres com o embaixador da


Alemanha,

Herbert von Dirksen, o mesmo Joseph Kennedy declarou que a Alemanha


podia “se

livrar” (get rid oj) dos judeus, se o fizesse discretamente. Acrescentou que os
próprios

Estados Unidos eram anti-semitas e citou como prova o fato de os judeus


não serem

admitidos no clube de golfe de Boston há 50 anos (J. Pool, Hitler and H b


Secret Partners,

Pocket Books, op. cit.). Observações de extrema gravidade, uma vez que
faziam dos

Estados Unidos os cúmplices objetivos da eliminação dos judeus na


Alemanha.

Enfim, em 1939, Kennedy entrou em entendimentos com James D. Mooney,


dire-

tor da General Motors na Alemanha, para organizar um empréstimo


vultoso à Alemanha.

Ele deveria encontrar-se em Paris, no Hotel Ritz, com o Dr. Helmut


Wohlstatt, representante de Goering para os assuntos económicos. O
Intelligence Service alertou o Departamento de Estado americano, e
Kennedy viu recusada sua autorização para ir a
1933-1945: O ERRO E O H O R R O R

399

Paris. Wohlstatt é que foi a Londres e ao final de uma entrevista de duas


horas com

Kennedy este último combinou de emprestar um bilhão de dólares-ouro ao


Terceiro

Reich. O empréstimo nunca foi concretizado: em 3 de setembro, a Grã-


Bretanha declarava guerra à Alemanha, o que fez Kennedy fundir-se em
lágrimas. Desde então, ele passou a envidar todos os seus esforços para
impedir os Estados Unidos de entrar na guerra (JW.).

A influência de Charles Lindbergh não se limitou a frases de salão:


trabalhando em

equipe com Kennedy, sua opinião pesou na decisão inglesa de não intervir
na

Tchecoslováquia, devido a suas ponderações de que a Luftwaf e poderia


destruir Paris e

Londres sem contra-ataque possível.

Mas Joseph P. Kennedy e Charles Lindbergh não foram as únicas


personalidades

americanas favoráveis ao Terceiro Reich: os irmãos Dul es, já citados (v.


nota 21) e

Nelson Rockefeller, presidente do Chase National Bank, que controlava a


companhia

petrolífera Standard of New Jersey e que se tornou mais tarde secretário de


Estado

Adjunto para a América Latina, depois vice-presidente dos Estados Unidos,


também

colaboraram ativamente com os nazistas e continuaram a fazê-lo até 1945.


Nesse ano, os

irmãos Dulles ajudaram, com efeito, a transferir os bens nazistas para fora
da Alemanha.

E durante toda a Segunda Guerra Mundial, a Standard of New Jersey


enviou petróleo ao

Terceiro Reich com a intermediação da Espanha. O que fez com que, em


1942, Harry

Truman, que era então apenas senador, declarasse que o comportamento


dos Rockefeller

deveria ser considerado traição. Cf. John Loftus e Mark Aarons, The Secret
Waragainst the

Jews, op. cit.


58.
A história é, de fato, mais complexa. A fissão do átomo foi efetuada a partir
de

1932, mas sem resultados que permitissem obter as liberações de energia


necessárias a

uma reação em cadeia. A experiência de Hahn e Strassmann indicaram pela


primeira vez

essa possibilidade, verificando ao mesmo tempo a célebre fórmula de


Einstein, E = mc2.

Bohr, consciente da importância da descoberta, foi para os Estados Unidos


em janeiro de

1939, onde discutiu a experiência de Hahn e Strassmann com Einstein, J. A..


Wheeler e

outros físicos. Os cálculos matemáticos mostraram que a reação produzia


2,5 nêutrons

por átomo flssionado, permitindo então a reação em cadeia. Em 2 de


dezembro de 1942,

depois de numerosos problemas teóricos e práticos terem sido resolvidos, a


primeira

pilha atómica do mundo entrou em funcionamento na Universidade de


Chicago e produziu pela primeira vez energia atómica contínua e com
reação controlada. Logo em seguida o Projeto Manhat an começou a ser
executado.

Com frequência tem causado espanto o fato de os físicos alemães não terem,
paralelamente, seguido o mesmo caminho intelectual de Bohr. Mas a
questão permanece mal conhecida. Em resumo, segundo um dos mais
brilhantes deles, Wemer Heisenberg, os
físicos teriam compreendido muito bem o alcance da experiência de Hahn.
Encarregados

na época de um programa de pesquisas, teriam voluntariamente “feito


corpo mole” a fim

de não dar a bomba A a Hitler.


4.

À guisa de memorial

A HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO COM CERTEZA NÂO PÁRA


AQUI. A

REFLEXÃO QUE ELA PROPÕE CONDUZ À FILOSOFIA E À POLÍTICA


O anti-semitismo, espero ter conseguido demonstrar, conheceu três

épocas principais de extensão desigual. A primeira, pré-cristã, foi causada

essencialmente pelo irredentismo de uma grande parcela do povo judeu

do Mediterrâneo oriental e sua recusa legítima a se submeter ao jugo

estrangeiro, qualquer que ele fos e, religioso, cultural ou político. Esse

nacionalismo foi levado ao paroxismo pelas ações suicidas de uma resistência


zelote com as quais os judeus ilustrados e abastados, como Flavius Joseph, não
se pretenderam solidarizar. Mantido em seguida pelo ostracismo helenístico e
romano, por pouco resultou no desaparecimento de Jerusalém, cidade simbólica
por duas vezes destruída. Pode-se situar essa

época aproximadamente entre as conquistas de Alexandre e a proclama​

ção do cristianismo como religião do Império Romano, ou seja, três

séculos antes e depois de nossa era: seis séculos.

A segunda época, a mais longa, começa com o conflito entre a Igreja

crista nascente e a religião da qual ela foi derivada. Seguiram-se as lutas

incessantes da Igreja contra os cismas e as heresias, entre as quais ela passou a


incluir o judaísmo, depois as convulsões provocadas pelas intrigas políticas da
Igreja na Europa. Ela coincide por cerca de um século com a

precedente e pode ser situada aproximadamente entre o começo do século I e a


metade do século XIX, época em que a ascendência de Roma sobre as questões
temporais se tinha definitivamente enfraquecido. Os
À GUISA DE MEMORIAL

401

nacionalismos identitários começam então a se afirmar e a rejeitar os

judeus por motivos que não são mais religiosos, mesmo que eventualmente ainda
invoquem a religião, mas aparentemente culturais, na acep​
ção germânica da palavra Kultur, que considera a cultura não um bem

universal, mas um património restrito e que é, portanto, antinômico da

cultura.

A terceira, desencadeada com o crescimento dos nacionalismos, terminou com a


Shoah e a derrota do Terceiro Reich. Ela se desenrolou sobre a tela de fundo do
conflito entre o Ocidente capitalista e a URSS,

quando uma grande parte do Ocidente começou a considerar, mais ou

menos explicitamente, o Terceiro Reich uma muralha contra o comunismo. Tela


de duplo fundo, na verdade, pois o conflito desenrolou-se da mesma maneira
entre, de um lado, um nacionalismo reacionário de que

a URSS esteve tão imbuída quanto o fascismo e o nazismo e, de outro,

um ideal revolucionário que penosamente se desligou da Revolução de

1789, ou seja, da ética democrática. O que aqui considero nacionalismo

reacionário é um autoritarismo cesarista, inimigo específico e inconciliável da


democracia, como tão eloquentemente demonstrou Hirchman.1

Questão extensa, apenas esboçada no capítulo precedente, que diz respeito à


filosofia e que poderia ser assim resumida: o nacionalismo está fundado sobre
uma noção fechada de identidade nacional, por definição

xenófoba e, portanto, racista, enquanto a democracia está fundada sobre

a ética realmente cristã (talvez a palavra “crística” seja mais apropriada) de

abertura ao outro, de alteridade, para retomar o conceito de Emmanuel

Levinas.

O que não impede que se pos a, ao mesmo tempo, ser nacionalista e

democrata como demonstrou a Resistência, episódio da história da


França que me parece não completamente explorado, do ponto de vista

filosófico pelo menos, se me for permitido es e paradoxo. Pois é possível

aderir a uma identidade nacional, como o fizeram os resistentes, sem

recusar o enriquecimento constante nem a abertura ao outro. Essa atitude exige


um “estado de crise” constante e uma vigilância que não caminham no sentido
dos populismos nos quais se transformaram tantos partidos políticos no mundo.
Mas es e problema ultrapassa o âmbito destas
402

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

páginas. Acrescente-se que o conflito entre o nacionalismo identitário,

matriz dos cesarismos desastrosos, e o nacionalismo democrático não


estão resolvidos. As dificuldades de constituição de uma Europa unida e

os conflitos sucessivos da ex-Iugoslávia, para citar apenas dois exemplos

deste final de século, demonstram-no amplamente. Os nacionalismos

identitários, todos reacionários, todos definidos como recusas da modernidade e


todos racistas, portanto virtual ou efetivamente anti-semitas, proliferam hoje em
dia.

Essas noções são relativamente novas; entretanto, permitem fazer

um diagnóstico comum das três grandes épocas do anti-semitismo: as

três foram causadas pelo nacionalismo identitário. Os romanos não

suportavam a recusa a entrar para a identidade romana, e os cristãos, herdeiros


de Roma em mais de um aspecto, para a identidade cristã. Os nacionalistas do
século XIX e do XX não suportavam que não se entrasse para as identidades
nacionais — francesa, russa ou protestante —, que eles identificavam, de forma
aces ória e superficialmente, ao cristianismo

(o nacionalismo nazista, de seu lado, não suportava nem mesmo o cristianismo,


considerado estrangeiro a uma imaginária identidade “ariana”).

Parece-me necessário dizer aqui: a despeito de suas alegações de cristianismo, o


regime de Vichy nada teve de cristão.

Paralelamente, essa intolerância, es a recusa do outro, me parecem

condenar sem apelo as duas últimas épocas — a cristã, inclusive — por

terem sido intrinsecamente anticristãs. O mais profundo erro do cristianismo foi


ter sido identitário e manter sua divisa: “Fora da Igreja não há salvação.”

Vinte e três séculos de anti-semitismo se explicariam, pois, pela ciumenta recusa


dos judeus a se submeter aos jugos das culturas estrangeiras e à renúncia da
judeidade em troca dos benefícios da assimilação. Um caso único: a honra dos
judeus. Basta folhear um dicionário de religiões
para nos darmos conta do número das que desapareceram, absorvidas

pelas culturas dos conquistadores, do mitraísmo à religião dos celtas.

Nem o gládio nem a prédica, nem a ameaça, nem a promessa de recompensa das
fontes batismais conseguiram vencer sua determinação.

Reduzidos de uns oito milhões no século I para um milhão e meio no


À GUISA DE MEMORIAL

403

século X, perseguidos, expulsos, sur ados, submetidos a leis infames e

humilhantes, proibidos de exercer inúmeras profissões, isolados sob


ameaça em bair os separados ou então proibidos de residir nas cidades,

sur ados, por vezes forçados ao suicídio coletivo, a cabeça enfiada à força

dentro das pias batismais, banidos da humanidade, esmagados por acusa​

ções dementes, como envenenar a água dos poços e fazer pão com o sangue de
crianças cristãs, sempre às voltas com os vencedores, acusados de cupidez por
gente mais cúpida do que eles, ofuscados pelo brilho das

armas ou do ouro de seus senhores, eles curvaram as costas, mas não baixaram a
cabeça.

Se os judeus tivessem cedido definitivamente às seduções do hele-

nismo ou aos atrativos que os potentados cristãos exibiram diante deles,

com a condição de se converter, a Shoah não teria existido. Mas eles se

recusaram a renunciar à liberdade de consciência.

Como resistiram por tanto tempo? O Deus sem representação e sem

nome que incandesceu na Sarça Ardente, reduzido a uma voz e para

sempre interior, permitiu-lhes sobreviver a todos os avatares culturais.

Eles o transportaram dentro de si, mesmo depois de a Arca da Aliança se

perder. Que importavam a Arca e seus querubins de ouro, se o Verbo ressoava


neles! Os cristãos, no século XX, podem legitimamente duvidar de que seu Deus
seja mesmo o velhinho atrabiliário e barbudo, um policial

que mora nas nuvens, tal como lhes foi representado até bem recentemente. Uma
dúvida como es a não ameaça os judeus.

Algumas pessoas podem argumentar que, nos dois primeiros períodos, os judeus
também exerceram o nacionalismo identitário. Seria deturpar o sentido das
palavras: o nacionalismo baseia-se em uma idéia

ter itorial. A diáspora demonstrou amplamente que es a idéia está ausente do


judaísmo. Desde a reconstrução por Adriano, no século II, de uma cidade pagã,
Aelia Capitolina, sobre as ruínas da cidade de David, os

judeus renunciaram ao nacionalismo ter itorial. Só iriam ressuscitar a

idéia no século XIX, com o sionismo. Até a instalação na Palestina, no

século XX, os estabelecimentos judeus no mundo foram totalmente

pacíficos. Não existe um único exemplo de sedição política dos judeus

nos países onde se instalaram, na Pérsia ou na Luisiânia. Apenas pediam


404

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

permissão para se instalar, acostumando-se até com o fato de não lhes

concederem a nacionalidade do país, como em Alexandria. Seu único


erro foi provavelmente acreditar que estavam assimilados ao nacionalismo
alemão: e, por confiança ingénua, tão pungentemente castigada em seguida,
envolveram-se no destino de uma maioria que tinha um objetivo hostil.

A identidade judia era fundada na religião. O cristianismo, potência

ter itorial, disputou com os judeus este direito.2

Essas questões definitivamente não são claras para todos. Com efeito, elas
abordam um conceito que parece “natural”, o do nacionalismo identitário, que se
aplica da mesma maneira à cultura, como vimos.

Assim, muito tempo depois da guer a, uma semiverdade prevaleceu, e

muitas pessoas respeitáveis acreditaram livrar-se de sua responsabilidade

no surgimento do nazismo atirando a culpa da Shoah sobre “o louco

Hitler”, esse louco que, no entanto, deixaram crescer, como o Golem da

lenda judaica de Praga. Elas não tiveram nada com aquilo, alegaram. Em

seguida operou-se, em sentido inverso, um amálgama detestável no qual

acreditaram alguns historiadores equivocados, pois diplomas não imunizam


contra o erro, e historiadores, como policiais, são recrutados entre os civis. Os
nazistas foram, pois, identificados com a Alemanha inteira.

Quiseram fazer crer que o anti-semitismo seria uma criação alemã,

exclusivamente alemã. Retomo do nacionalismo identitário e da xenofobia:


risquem a Alemanha do mapa, disseram em suma os defensores desta
falsificação, e o anti-semitismo desaparecerá. Ora es a!

Pior ainda, um punhado de pseudofilósofos e pseudopolíticos teimou em


demonstrar que Auschwitz, Buchenwald, Dachau, Theresiens-tadt não foram
senão campos de prisioneiros. O Zyklon B? Era perigoso

demais para que alguém o utilizas e. Seis milhões de mortos? Puro delírio.
Apenas algumas centenas ou milhares de pessoas, ciganos, pederastas e
“degenerados” diversos, rebotalhos da sociedade acometidos de disenteria ou de
pneumonia, sifilíticos em fase terminal. Um “detalhe da história”, vomitou
obstinada e publicamente aquele que representou provisoriamente um bom
quinto do eleitorado francês, ignorando massas de documentos sobre o assunto,
como muitas outras coisas, aliás, e decerto
À GUISA DE MEMORIAL
405
preocupado em preparar a ascensão de um regime antidemocrático que

preservasse o que restava dos pretendidos “valores cristãos”, mas, na realidade,


odioso, de uma França fantasma — a “verdadeira França de São Luís e de Joana
d’Arc”. E cemitérios.

A França, apresso-me a esclarecer, não é o único país a ser mencionado: em


muitos outros, até nos Estados Unidos, prolifera a mesma mentalidade
nacionalista e acometida da mesma praga contagiosa do anti-semitismo.

Menos de 20 anos depois da guer a, o horror da Shoah, espectro

gigantesco, tornou-se impossível de ser evitado e, amplificado pelas

mídias, pelos monumentos comemorativos e arrependimentos públicos

de políticos, desencadeou uma reação de defesa entre os que continuaram


ruminando um anti-semitismo e um racismo secretos. De uma forma muito mais
primária, essa reação desenvolveu-se na juventude, de início sob a aparência de
uma moda: tráfico de insígnias nazistas, trajes

absurdos ou simplesmente ridículos, crânios raspados, botas e casquetes

de SS, tatuagens de broncos, em suma, toda uma exaltação primária de

pseudomachos possuídos por um narcisismo igualmente primário. Nos

subúrbios de Los Angeles e até mesmo na pacífica Escandinávia, motociclistas e


skinheads de todo tipo, uma corja que pretende ser “viril”3 e que se considera a
reencamação dos vikings e das SS, desfila pelas ruas com

suas suásticas nas braçadeiras, em meio à barulheira de canos de escapa-

mento e de clamores imbecis, resolvendo os casos “entre homens”, a

tiros, vociferando seu ódio do judeu e do estrangeiro. Na França, eles


jogam orgulhosamente bougnoules 3* na água, alegando sua qualidade de

membros de um serviço de ordem política ou desenter am judeus. Na

Alemanha, pois não há razão para que esse país seja poupado, essas hordas, por
não encontrarem mais judeus, atacam os imigrantes, incendiando moradias de
turcos ou de outros estrangeiros.

Epifenômenos sem importância? Não. Pois o discurso simbólico

estruturou-se. Nos Estados Unidos, es es nostálgicos de uma guerra que

não conheceram formaram inúmeras milícias privadas, construíram bun-

kers para se proteger contra a polícia federal e se armaram até os dentes;

persuadidos de que os judeus estavam preparando, por intermédio da


406

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

ONU e de suas tropas, a ocupação dos Estados Unidos, eles se prepararam e,


aliás, continuam se preparando, com o fuzil automático na mão, para defender a
“raça” branca e cristã.4 Depois passaram a difundir suas
insanidades pela Internet e em folhetos diversos, fortalecidos pela liberdade de
expressão que o primeiro artigo da Constituição lhes garante.

Também são, evidentemente, vistos na Rússia, de uniformes pretos e carregando


bandeiras protonazistas, jurando restabelecer a monarquia e a honra da Rússia
“eslava e cristã”, cujo declínio provocou o da “Rússia

eterna”, como assegurou Alexandre Soljenytsin na televisão de Moscou.

A comunidade dos cristãos também não está livre disso: a mesma

fantasia antimodernista e reacionária agita os adeptos fanáticos de monsenhor


Lefèvre e os farsantes de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, em Paris, variante
contemporânea dos convulsionários de São Medardo.

Acreditar que a reação e o anti-semitismo morreram em Auschwitz é

uma perigosa ilusão.

O neonazismo floresceu, pois, no Ocidente nestas últimas décadas.

Qualificá-lo de nacionalismo identitário seria uma homenagem desmesurada: é


claramente um nazismo nutrido de hambúrgueres em vez de chucrute.
Americano, francês ou alemão, ele sonha com um Quarto

Reich. Enquanto espera, coloca bombas, inscreve-se em clubes de

“irmãos” e seu maior prazer é dar tiros até que seus tímpanos estourem,

preparando secretamente sua grande noite neonazista. Rendamos-lhe

aqui uma homenagem: demonstra publicamente que o nazismo foi exa-

tamente o que pareceu, e de maneira tão evidente, que temos que nos

esforçar, por incredulidade, para perceber nele alguma nuança. Ou seja,

a emanação de espíritos pervertidos, nutridos do culto da força bruta e de

fragmentos mal digeridos de darwinismo social, o mais das vezes justificando


uma internação psiquiátrica.
Possivelmente nunca existiu outro fenómeno que tenha suscitado

tantos delírios e mentiras deslavadas quanto o anti-semitismo e particularmente


os campos de extermínio. Prova evidente da perturbação, provavelmente da
culpa que es e episódio assustador — único na história, por suas proporções e
pelo sangue-frio com que foi executado — suscitou e

continua a suscitar nas consciências. Prova também das dificuldades que


À GUISA DE MEMORIAL

407

têm as sociedades de se desprender de noções praticamente mamadas

junto com o leite materno: o patriotismo de exclusão e a necessidade de


conservar a “raça” pura, desrespeitando todas as evidências da biologia.

Durante vários meses do ano de 1998, a França foi mantida em transe por um
processo que se assemelhou estranhamente a uma sessão de espiritismo: refiro-
me ao processo Papon. O passado de meio século anterior foi invocado, como a
pitonisa de Endor invocara os manes do profeta Samuel para o assombrado Saul.
A França inteira recuou, ater ada como a

pitonisa. Ela se deu conta penosamente, com efeito, de que o processo de

gerações anteriores tinha ressurgido. Imaginem uma ses ão de espiritismo

em que o quarto inteiro começa a virar junto com a mesa. O processo foi

encer ado sem um veredicto real, como se as pessoas esperassem que o

inculpado entregasse a alma antes de ser chamado. É provável que o processo de


um só homem tenha sido mais simbólico do que outra coisa, mas provavelmente
também teria sido difícil fazer comparecer diante dos

juizes, e 50 anos mais tarde, a mentalidade de uma nação. Entendo com

is o a noção de patriotismo nacionalista em voga na época, que as pessoas

sentiram repugnância em discutir apesar das provas evidentes de sua

malignidade. Resta perguntar se a França européia continuará cantando o

verso tão famoso quanto assustador da Marselhesa: Qu’un sang impurabreu-

ve nos sillons (Que um sangue impuro sature nossos campos).

A idéia de “pureza” nacional me parece ter demonstrado sua natureza criminosa


no nazismo, mas também no Kôsovo.

Ainda durante o ano de 1998, assistimos a um conflito, por certo abafado, mas
não menos revelador, entre o presidente da República e o primeiro-ministro a
respeito das insur eições de 1917. Defensores de uma

certa noção de patriotismo talvez estivessem preferindo que se continuasse a


deixar aqueles revoltosos na indignidade do esquecimento; outros preferiam que
se devolvesse a dignidade às vítimas de uma noção

cega de pátria.

Ora, esse conflito e o processo Papon convergem muito mais profundamente do


que algumas pessoas desejariam. Raros, em minha avaliação, foram os
observadores que se deram conta disso.

Como um adendo à semiverdade mencionada acima (um desses sen​


408

HISTÓRIA GERAL DO A NTI-SEM ITISM O

timentos que pertencem ao domínio do não dito, muito mais extenso do

que o do dito), uma suposta cor ente pretende, ou teria pretendido, que
a Shoah foi uma questão judia que não interessa mais aos não judeus, e

que o processo Papon foi um desses “grandes casos” que se deixam aos

livros como se fossem questões relativas a defuntos, colocados em caixas

para que cada um possa formar a opirflão que bem entender. A lógica

feroz da história quis que fos e diferente: ainda no mesmo ano de 1998,

revelações irromperam de todos os lados sobre as espoliações, os desvios

e os roubos de bens judeus concretizados durante a guer a. As autoridades


morais e bancárias puseram-se a produzir desculpas, por intermédio de argúcias
burlescas, misturando crises de contrariedade, espemeios e

incredulidades escandalizadas de bancos nacionais e internacionais, de

diversos escritórios de “gestão” de bens judeus e, entre outros, das dire-

ções dos museus nacionais da França e de Navar e. Como reter um sorriso


sarcástico? Foram, pois, necessários levantamentos minuciosos e indiscrições —
com frequência severamente criticadas pelos ladrões —

para que mais de meio século passado os espoliadores se decidissem a

devolver o produto de suas apropriações, acreditando ter a garantia da

impunidade!

Cúmplices objetivos dos nazistas, que tiveram a idéia de vender os

“seus” judeus, ultrapassando desse modo em ignomínia os judeus inventados por


suas próprias fantasias, esses pequenos-burgueses roubaram aqueles a quem no
passado chamaram de usurários. Foram outros os verdadeiros

usurários. Pior: os pequenos-burgueses estavam-se revelando espoliadores

de cadáveres. Impossível, pois, manter fechadas as caixas. A evidência era

grande demais para as caixas, mesmo que tivessem sido cuidadosamente


enterradas sob os selos dos segredos de Estado, nos subterrâneos dos

bancos e das cupidezes coletivas. As mortalhas atiradas às pressas sobre

um período em que a informação não circulava bem foram ar ancadas,

revelando comportamentos indignos. Ficou-se sabendo assim que uma

célebre marca de leite para crianças exigia de seus empregados um “certificado


de arianidade” (o que demonstra a ignorância crassa de seus dirigentes, uma vez
que a “arianidade” é um mito literário) e que o govemo helvético solicitava a
Berlim que imprimisse o infamante selo com o
A GUISA DE MEMORIAL

409

grande J vermelho, de Judeu, nos passaportes dos judeus alemães, o que

permitia excluí-los oficialmente.5


Essas revelações ameaçaram mais de uma vez transformar-se em

acertos de contas. No entanto, felizmente, elas continham uma moral

mais elevada: a Shoah, enriquecida com uma história de ladrões, acabou

sendo também uma questão de consciência mundial.

Como escrevi na introdução deste livro, a Shoah foi uma verdadeira

lição universal sobre as trevas.

E ela não é recuperável. Enquanto freiras católicas retardatárias,

lábios resmungando preces como durante o glorioso período do Pax— o

movimento polonês católico-fascista dos anos 60 — atarefavam-se para

plantar cruzes “cristãs” em Auschwitz,6 a verdade não emergia de um

poço tranquilo, mas dos vapores das câmaras de gás e das bolhas do sabão

fabricado meio século antes com a gordura dos guetos: os judeus faziam

parte do género humano. Matar judeu foi na realidade um suicídio adiado. Jesus
não disse outra coisa, mas ficou evidente também que os que, no passado,
acreditaram poder invocá-lo impunemente — ministros,

generais, papas, cardeais, pastores, pequenos-burgueses, politicamente corretos


e todo o resto — foram os verdadeiros pagãos. No século XX, a fábula do
aprendiz de feiticeiro de Goethe revelou-se em toda sua crueldade: os que
desencadeiam as potências do ódio terminam sendo suas vítimas. Os nazistas
foram os últimos a ser consumidos pelas chamas das

fogueiras que acenderam. Seus cúmplices iriam arder mais tarde dentro

das brasas ainda vivas.

Essa lição é a primeira do género em toda a História. Ela atribui uma

ter ível iminência à advertência do judeu Jesus: “Não façam aos outros o
que não desejam que seja feito a vocês mesmos.” Durante a guerra de

1939-1945, os cristãos viram-se, pois, perseguidos, decerto não como os

judeus, sem dúvida não nas câmaras de gás, mas, mesmo assim, milhares

morreram em campos — padres e fiéis —, por ser cristãos e não acreditar


naquele paganismo de histriões que o nazismo queria impor. Durante séculos
tinham-se acreditado investidos de um direito histórico, imprescritível, o de
julgar os outros em função de seus credos, e eis que eles próprios viam-se
submetidos à lei do mais forte — que não era cristã.
410

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

Também, desde séculos, tinham-se ar ogado uma boa consciência infalível, em


nome de uma Igreja que tardiamente se autoproclamara infalível, mas que
“fizera corpo mole” em seu aggiomamento—notadamente quanto à anulação da
noção de “povo deicida” — e eis que se revelavam, em meio aos mais
respeitáveis dos seus — cristãos ou protestantes —, faces

de carniceiros e de Judas.

Pior ainda: o passo seguinte foi ter que suportar ver essa Igreja, da

qual esperavam que lhes permitisse manter a face, manifestando sem

parar seu arrependimento pela desumanidade e até mesmo pelas fogueiras da


Inquisição!7 Inquisição que, como vimos nestas páginas, determinara como seu
objetivo principal desalojar os marranos que permaneciam secretamente fiéis à
Torá.

Imagine-se o embaraço dos críticos do “relativismo cultural”. Como

não ser relativista em presença de tais fatos? E o embaraço dos reacioná-

rios, seus parentes próximos, para os quais nada muda, e que teriam de

boa vontade continuado a considerar os judeus o “povo deicida”? Certos

ódios, com efeito, perduram. Neste velho Ocidente marcado com tantas

cicatrizes que terminaram desenhando em sua face uma nova geografia

da crueldade e da dor, sua presença pode ser verificada até o final deste

século: na dificuldade de instaurar a paz entre católicos e protestantes na

Irlanda, nos horrores do Kôsovo, onde os cristãos continuam a sentir

pelos muçulmanos vizinhos uma aversão as as ina, nos acontecimentos

recentes da ex-Iugoslávia, que lançaram as “etnias”8 umas contra outras — na


verdade, populações mais próximas entre si do que qualquer outra —, nos
discursos furiosamente anti-semitas proferidos por certos

personagens políticos da Rússia apenas 50 anos depois da Shoah. E nos

discursos e violências reacionárias noticiados até nossos dias pela


imprensa quotidiana.9

É possível que os ódios religiosos no Ocidente estejam prestes a se

acalmar. A mudança, contudo, é o fato de os cristãos, que dominavam o

mundo há até cerca de dois séculos, não representarem mais do que um

terço dos habitantes do planeta.10 Seus impérios coloniais evaporaram-se

há décadas. Eles não provocam mais medo. O cristianismo mudou,

tornou-se bem menos agres ivo. O judaísmo também mudou considera​


À GUISA DE MEMORIAL

411

velmente.1 Mas agora são os cristãos os perseguidos e massacrados, nas

Molucas, no Paquistão, na índia, no Timor. O discurso identitário está


queimando nos locais que antigamente eram chamados de Terceiro

Mundo. E desde o nascimento do Estado de Israel tornou-se cada vez

mais agressivo no mundo muçulmano.12 Enfim, a intolerância reapareceu na


superfície, no próprio coração da Europa.

Na hora em que estas páginas estão sendo finalizadas, um burburinho malsão


eleva-se a propósito das vulgaridades de linguagem de um homem de Estado
doente e prestes a deixar os antros presidenciais; ele é

mencionado devido ao pretenso malefício do “lobby judeu” na França.13

Dentro do contexto relatado por um cronista que lá se encontrava, foi a

vulgaridade da asserção o que mais chocou. Existe um lobby judeu, com

efeito, mas, na qualidade de cristão, considero-o mínimo. Como pretender que


um povo que foi vítima de 23 séculos de perseguições e difama​

ções abra mão da solidariedade e das redes que lhes permitam defender-

se? O poder dos judeus, alega-se, aliás, não é proporcional a seu número.

A acusação é estranha: são seus próprios perseguidores que a provocaram

ao longo dos séculos, ao constrangê-los a usar todos os seus recursos

intelectuais para sobreviver. Existe, com efeito, uma cultura judia que é a

da vigilância ou, melhor, do aierta. Os judeus provaram os méritos dessa

cultura na ciência assim como nas artes. Einstein, Mahler, Menuhin,

Pasternak, Celan, Gershwin ou Kubrick, para citar apenas alguns, igualmente


provaram sua universalidade.

E Israel? Todos irão perguntar. Se é preciso condenar o nacionalismo

identitário, como considerar um Estado no sentido moderno da palavra,


que só concede automaticamente a cidadania aos que pertencem a uma

religião determinada?

É aí que a História pode deixar de ser um veneno, como disse Paul

Valéry, para oferecer talvez um bálsamo.

A idéia de um Estado judeu tomou forma na segunda metade do

século XIX, no momento em que o nacionalismo invadia com força a

Europa, determinando o princípio de autonomia húngara em 1848, realizando a


unificação da Itália em 1861 e a da Alemanha em 1871. Já era evidente que ele
excluía os judeus, com ou sem emancipação. Foi em
412

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

1862 que, pela primeira vez, Moses Hess, um socialista alemão, conheceu algum
sucesso entre os judeus ao defender em seu livro Rome et

Jérusalem, a idéia de um Estado judeu. Moses Hess decerto não foi o


inventor, nem mesmo o precursor do sionismo. Já em 1825, Mordecai

Noah, administrador do porto de Nova 'Vòrk, havia comprado Grand

Island, sobre o Niagara, e convidara os judeus do mundo inteiro para

fundar lá um Estado judeu, que eie chamara de Ararat. Diversas personalidades


inglesas, tais como Lord Shaftesbury e o extravagante Sir

Lawrence Oliphant, haviam em seguida tentado convencer os judeus a

criar um Estado judeu na Palestina. Mas, paradoxalmente, os judeus não

estavam nem um pouco entusiasmados com essas idéias; eles estavam

bem onde se encontravam; por que ir criar um Estado no meio de um rio

caudaloso ou no longínquo Oriente? Além disso, eles tinham alguma

razão para desconfiar do projeto, pois percebiam bem que a implantação

de judeus na Palestina se destinava sobretudo a criar uma barreira sob

dominação britânica na rota das índias.

O primeiro a dar uma verdadeira substância ao sionismo foi o jornalista austríaco


Theodor Herzl. Cor espondente de imprensa em Paris na época do caso Dreyfus,
enojado com o anti-semitismo que esse caso fez

explodir, publicou em 1896 o panfleto Der Judenstaat, descrição de uma

solução para as perseguições sem-fim dos judeus, que materializou a

aspiração a um refúgio. No ano seguinte, o primeiro congresso sionista

na Basiléia deveria desencadear a história que se conhece e que não é

objeto destas páginas: a declaração de intenção do secretário de Negócios

Estrangeiros Arthur Balfour em 1917, depois a aprovação da imigração


de judeus para a Palestina pela Sociedade das Nações em 1922. E a cria​

ção de um Estado judeu apreendido pelo mundo árabe, em cujo coração

foi encravado, como o baluarte de um colonialismo hostil ao Islã.

Retrospectivamente, como contestar a aspiração dos judeus a uma

terra na qual finalmente seriam seres humanos completos e cidadãos

livres? Pela ótica da época, quem entre os judeus teria podido adivinhar

que a criação de um Estado judeu exporia o judaísmo aos mesmos erros

de seus perseguidores? Mais de 50 anos depois de sua proclamação, o

Estado de Israel sente de maneira atroz as contradições inerentes a todo


À GUISA DE MEMORIAL

413

Estado-nação, tomadas visíveis para todos, e em primeiro lugar para os

israelenses: como conciliar a universalidade da transcendência com os


exclusivismos14 e o espírito de conquista ter itorial inerentes ao próprio

conceito de Estado-Nação? Como conciliar a laicidade fundamental do

Estado-Nação com o próprio motivo da fundação desse Estado, que era

o de criar um refúgio para o judaísmo? Finalmente, como ser judeu, ou

seja, universal, e israelense, ou seja, circunscrito dentro das fronteiras?

Provavelmente seria preciso um novo Spinoza para indicar aos

judeus israelenses “laicos” e a seus concidadãos integristas a maneira de

sair de dilemas que só podem agravar o anti-semitismo em uma região já

bastante inclinada a ele. Somos obrigados a lembrar-lhes que o nacionalismo


identitário foi a causa de seus sofrimentos infinitos e que ele é certamente o
veneno mais violento da história.

Talvez seja este o objetivo último destas páginas: lembrar que o anti-

semitismo interessa a muitos outros além dos judeus e seus perseguidores. É


insuportável para qualquer consciência humana que a Shoah permaneça como
uma máscara de Medusa enigmática e inútil, destinada a congelar a imagem de
fascínio pelo hor or, sem mais recurso, abandonada somente aos demónios da
tragédia.

A questão que se delineia então, em meio à fumaça desse incêndio

ininterrupto que é a história das religiões, e ainda mais da história do

anti-semitismo, é esta: pode-se mudar o ser humano? Pode-se ensiná-lo

a se desfazer do medo do Outro e de seu apego primitivo ao solo? Mudar

a civilização já era o sonho utópico de Charles Fourier no século XDC

Perigoso sonho: foi ele que engendrou todos os totalitarismos, o comunismo, o


nazismo e os khmers vermelhos. E foi ele que, já no passado, inspirara a
Inquisição, essa organização que pretendeu expulsar a heresia até do coração dos
humanos. Cada vez que se quis mudar para purificar,

asfixiou-se. Todas as ideologias utopistas, no final das contas, são câmaras

de gás virtuais.

Mas podemos mostrar a todas as pessoas, mesmo às que não se interessam pela
História, mesmo àquelas para quem a Shoah foi um acidente da história que não
compromete seu futuro, a todas essas pessoas podemos mostrar o seguinte: as
perseguições anti-semitas sempre foram
414

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

próprias de regimes totalitários, tirânicos, regimes em que o Estado-

nação pretendeu esmagar o indivíduo em nome do interesse da tribo.15


Uma ligação perversa, orgânica, inelutável, une o anti-semitismo à nega​

ção da liberdade e da democracia. Ela une, aliás, todos os ostracismos a

essa negação: todos os massacres da história desde a Inquisição — dos

cátaros, dos arménios, dos ibos, dos cambojanos, dos kosôvares e,


evidentemente, dos judeus — foram perpetrados por regimes tirânicos.

A partir dessa base, toma-se ao menos possível orientar as consciências: existem


diversas indicações. Uma delas, a despeito de sua fragilidade, parece-me
significativa: as páginas que acabamos de ler não poderiam ter sido escritas no
tempo de Hitler, nem mesmo na França, sem correr

riscos consideráveis. Outra, bem mais importante, é a intolerância —

es a, sim, reconfortante — da maior parte das opiniões públicas a respeito de


qualquer fanatismo. Assim, Salman Rushdie talvez não seja o escritor mais
luminoso deste século, mas a fetwa dos aiatolás contra ele foi reprovada pela
opinião pública mundial. Os monges tibetanos decerto

não foram arautos da democracia, mas a repressão do govemo chinês

dirigida a eles tem sido igualmente condenada pela opinião pública mundial. E
apenas as pessoas sem consciência, no sentido quase neurológico dessa palavra,
suportam sem uma profunda dor as imagens da Shoah.

São esses os sinais de esperança. Parece-me, enfim.


À GUISA DE MEMORIAL

415

Bibliografia e notas críticas

1. The Rhetoric o/Reaction: Perversity, Futility,Jeopardy, op. cit.


2. É provável que se tenha que ver na ausência de nacionalismo identitário
uma das

chaves da tolerância em relação aos judeus durante os séculos de expansão


islâmica: hoje

aqui, amanhã ali, os muçulmanos não possuíam um senso agudo de


fronteiras. Eles compartilhavam o nomadismo com os judeus, com a única
diferença que o deles era militar.

3. O historiador americano Georges L. Mosse, falecido em 1999, analisou


longamente o estreito conluio entre a “virilidade”, conceito inteiramente
fabricado pelas sociedades do século XIX— e ainda difundido por padres
fundamentalistas que levam adolescentes ao mar mesmo que suas vidas
corram perigo — e um sistema de pensamento reacionário que conduz
inelutavelmente ao totalitarismo antidemocrático.

3* Bougnoule: termo injurioso e racista, “norte-africano, trabalhador


imigrante

norte-africano”. (N.T.)

4. É muito proveitoso consultar o estudo ricamente documentado de


Kenneth S.

Stern, A Force Upon the Plain — The American Militia Movement and the
Politics of Hate

(Simon & Schuster, New York) sobre a alarmante coleção de neonazistas


“patriotas”,

“cristãos” e sobretudo racistas e anti-semitas furiosos que, armados até os


dentes, se preparam para defender a nação americana cristã contra as
potências do Mal (negros, judeus e democratas) em um grande Armagedon.
Foi um de seus desatinados que, em 1999,

abriu fogo contra crianças de uma escola judia.

Em The Vanishing American Jew (Touchstone, New York, 1997), o célebre


advogado
e jornalista americano Alan M. Dershowitz contou que recebia umas 50
ligações telefónicas e cerca de 35 cartas anti-semitas por semana. .

5. Daniel Bourgeois, Business helvétique et III Reich (ed. Page Deux,


Lausanne, 1998).

6. Uma discussão indigna tanto quanto ridícula manifestou-se na Polónia no


final

do verâo de 1998. Ela não merece ser relatada a não ser pelo fato de refletir
a incompreensão da Shoah em certos meios no século XX e de perpetuar
uma forma de insensibilidade em relação a ela. Um carmelo vizinho
mandou instalar sobre o local de Auschwitz cerca de 230 cruzes — 80
medindo quatro metros de altura e perto de 150 menores, além de uma
outra de sete metros de altura, dita a “cruz do papa”, plantada em 1988 e
assim chamada porque fora colocada, em 1979, na ocasião da visita de João
Paulo II a seu país, em Birkenau, um dos campos de Auschwitz. Sensível aos
protestos dos judeus, ofendidos

com aquela floresta de cruzes, o episcopado polonês julgou que ela “se
afigurava, com

efeito, uma provocação” e que violava “o clima de recolhimento necessário a


esse local

particular”, enfim, que era “prejudicial à memória das vítimas


assassinadas, à Igreja e à

nação, e que fer[ia] dolorosamente a sensibilidade de nossos irmãos judeus”.


(Cf. Henri

Tincq, “L’épiscopat polonais dénonce la ‘provocation’ des croix


d’Auschwitz”, Le Monde,

27 de agosto de 1998.)
416

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEMITISMO

Palavras razoáveis. Contudo, o episcopado recomendava a manutenção da


grande

cruz plantada em uma saibreira onde tinham sido fuzilados 152 patriotas
poloneses no

começo da guerra. Ora, esses patriotas não foram fuzilados por sua fé, mas
por razões

políticas, e a presença de uma cruz comemorativa, ainda por cima um


emblema utilizado

pelo chefe dos cristãos, em um lugar tão carregado de significado quanto


Auschwitz era

sem dúvida inoportuno. E era, por sinal, como pensava também o governo
polonês.

Auschwitz não é um local cristão, mas um memorial que deve permanecer


imaterial e

lembrar que as diferenças religiosas causaram o massacre atroz de seres


humanos.

No dia seguinte, 25 de outubro de 1998, o cardeal Josef Glemp, primado da


Polónia

e “porta-voz da corrente mais intransigente da Igreja polonesa”, lamentou


que “a nação

judia, que no passado vivera próspera na Polónia e conseguira progredir


melhor do que

as outras, após ter sofrido um massacre terrível, não soubesse hoje em dia
encontrar palavras que denotassem compreensão e compromisso”. Ou seja,
em bom português: “A lição não lhes foi suficiente?” Com uma casuística
singularmente inconveniente, monsenhor Glemp era também da opinião
que Auschwitz fora criado na Polónia, mas na Polónia ocupada. (AFP, “O
primado da Polónia envenena o debate sobre as cruzes de

Auschwitz”, Le Monde, 28 de agosto de 1998). Estranho discurso: o


massacre sofrido

pelos judeus deveria, pois, incitá-los ao compromisso? O fato de Auschwitz


ter sido criado na Polónia ocupada retirava das vítimas sua qualidade de
judeus? Pretendia-se içar uma bandeira nacional sobre o horror? Qual
seria, no caso, o compromisso demandado?

Que se dividissem por dois as 230 cruzes? Ou então que se reduzisse à


metade a “cruz do

papa”? Não sem bom senso, o grande rabino da Polónia, Menachem


Joskovitch, exigiu a

supressão de todas as cruzes, argumentando que “uma ou mil cruzes, era a


mesma coisa”.

Um incidente como esse justificaria por si só as páginas que acabamos de


ler. É

característico do anti-semitismo mais clássico.

7. Arrependimento declarado ao longo dos três dias do Simpósio


Internacional de

Historiadores e Teólogos Dedicado à Inquisição, em 29,30 e 31 de outubro


de 1998, em

Roma. Cf. Henri Tincq, “L’Église se repent des buchers de PInquisition”, Le


Monde, 30

de outubro de 1998. Arrependimento bastante tardio, como os outros, pois


já faz muito

tempo que a pré-Gestapo-pré-KGB cristã que foi a Inquisição foi


unanimemente classificada entre as grandes ignomínias da história.

8. Inúmeras conversas com etnologistas convenceram-me com o passar dos


anos de

que o termo científico “etnia”, noção essencialmente cultural e


tradicionalmente oposta

à de “raça”, que se define por características anatómicas, é, de fato, o mais


das vezes, distorcido de seu sentido com finalidade racista.

9. Assim, em 25 de janeiro de 1999, Le Monde publicou as seguintes


palavras de M.

Jean-Yves Le Gallou, delegado-geral do FN-MN: “A batalha européia (será


travada)

sobre a identidade, ou seja, o direito dos franceses e de outros povos


europeus de permanecerem eles mesmos, sem serem invadidos, sem serem
colonizados por uma imigração incessante que muda a substância do povo
(imigração que é) a principal ameaça à identidade e à própria substância da
França e da Europa.” E M. Le Gallou propõe uma civiliza​

ção européia fundada na noção de “civilização” e numa “cultura


enraizada”, a das

“regiões, das províncias e dos territórios” (Christiane Chombeau, “Bruno


Mégret lança
À GUISA DE MEMORIAL

417

seu Front National no campo europeu”). Sobre pensamentos antigos,


façamos versos

novos. Confrontados à inelutável realidade da Europa, os representantes do


FN-MN e

seus simpatizantes adaptam para o gosto do dia o antigo ou, mais


precisamente, o arcaico

discurso maurrassiano. Mas discursos desse jaez dão vontade de perguntar


ao orador se,

por exemplo, no tempo em que a Argélia se compunha de três


“departamentos” franceses duramente defendidos pelos partidários da
“integridade territorial”, ela era em sua opinião considerada um
“território”, fazendo parte da identidade francesa, junto com o

cuscuz e a Aid el-Kébir (festa religiosa). E, como o mesmo orador propõe


restabelecer as

fronteiras nacionais “para os estrangeiros à União Européia”, possivelmente


por sua falta

de “cultura” e de “civilização”, convém se perguntar se a civilização e a


cultura são privilégios da União Européia.

No dia 6 de julho de 1999, o mesmo jornal noticiou o suicídio do autor


presumido

de uma série de crimes racistas nos Estados Unidos, Benjamin Daniel


Smith, de 21 anos,

membro da “Igreja Mundial do Criador” (uma dessas seitas que os mesmos


Estados

Unidos defendem com ardor contra a “intolerância” européia). De uma vez


só ele matara o antigo treinador negro da equipe universitária de basquete
de Chicago, abrira fogo contra um grupo de judeus ortodoxos ferindo seis
deles e atirara em um casal de origem

asiática assim como nos fiéis de uma igreja coreana, matando um deles.
Parece-me indecente consignar uma série de crimes hediondos como esses à
rubrica das notícias sem importância: eles são extremamente reveladores do
racismo ambiente. E tão numerosos,
que encheriam todos os anos um grosso volume.

10. Em 1993, era um bilhão e 870 milhões sobre cinco bilhões e 800 milhões
de terráqueos. Os católicos nominais representam um pouco menos da
quarta parte do total, com um bilhão e 300 milhões de almas. Cf. Britannica
Book of the Year, 1994.

11. Em The VanishingAmericanJewt op. cit., Alan Dershowitz menciona uma


desjudei-

zação do judeu americano no final do século: “Essa geração de judeus


nunca se defrontou com o tipo de ‘vitimização’ que caracterizou nosso povo
no passado (...) O mundo judeu mudou de maneira tão radical desde o final
da Segunda Guerra Mundial (...) que

nossos filhos não reconhecem seus avós.”

É uma constatação similar que Samuel C. Heilman faz em Portraitof the


American Jew

(University of Washington Press, Washington, 1995): “Os judeus não


sentem dificuldade em construir sinagogas, mas em lotá-las.” Heillman
menciona um sinal da desjudei-zação do judeu americano no constante
declínio, a partir dos anos 70, das contribuições

para obras comunitárias como as yeshiva. Contudo, escreve Heillman, e a


despeito de sua

proporção decrescente na população americana, “os judeus americanos têm


constantemente aumentado sua influência política”.

12. O sionismo, nacionalismo identitário judeu, foi naturalmente apenas


mencionado nestas páginas. Não diz respeito, de fato, à história do anti-
semitismo. A idéia de fato só alcançou a maturação em 1904, com Theodor
Herzl, portanto sete anos após o primeiro

congresso sionista. Suas repercussões permaneceram durante muito tempo


fracas: em

1930, por exemplo, a Organização Sionista Americana não tinha mais do


que 8.000 membros; sua atuação sobre o anti-semitismo foi, em minha
avaliação, igualmente fraca. As
418

HISTÓRIA GERAL DO ANTI-SEM ITISM O

reações de hostilidade no mundo árabe, após a formação do Estado de Israel


e sua declarar

ção em 1948 devem ser consideradas principalmente em um contexto


político.

13. Muita tinta se gastou com esse “tropeço” no sentido literal da palavra,
para que

ainda o aumentemos. Pessoalmente, não pude me impedir, ao ler o relato


das reações frequentemente desordenadas ou “francamente hipócritas” (se
podemos dizer assim) que se seguiram, de lembrar da recepção e dos
discursos realizados no Eliseu em 1992, pois

assisti a eles, na ocasião da entrega de títulos de doutor honoris causa da


cadeira de filosofia

da Universidade de Tel-Aviv ao homem de Estado em questão. Essa honra,


razoavelmente generosa, uma vez que, ao que se saiba, o recebedor não é
um grande filósofo, não foi uma iniciativa do lobby judeu?

14. Em seu ensaio materialmente pequeno e intelectualmente considerável,


Quelques

réjlexions sur la philosophie de le hitléristne, publicado sob a forma de artigo


em Esprit em 1934

e reeditado por Payot-Rivages em 1997, Emmanuel Levinas destacou um


paradoxo “de

tirar o fôlego” sustentado por Martin Heidegger: que a sujeição da


universidade alemã ao

hitlerismo era a garantia de sua liberdade. Esse artigo foi, com efeito, uma
réplica ao

deplorável Discours du rectorat do não menos deplorável Heidegger.


Sessenta e cinco anos

mais tarde sua leitura continua rica de ensinamentos não só sobre o desvio
intelectual de

Heidegger como também sobre o elo essencial entre o nazismo e o anti-


semitismo.
15. Esses exclusivismos manifestaram-se entre judeus, antes mesmo da
proclamação

do Estado. Assim, Ruth Gay lembra em TheJews of Germany (op. cit.) a


segregação e o desprezo que sofreram nos anos 30 os imigrantes alemães,
qualificados de Yekkes, ou seja,

“gemas de ovo”, devido à cor de seus cabelos. Mais tarde, a situação


inverteu-se e foram

esses judens, asquenazes. que demonstraram a mesma condescendência em


relação aos
sefardis.

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