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índice
A g r a d e c i m e n t o s — N . G. C. 9
Pontos de partida 11

DO PRIMITIVO A O POPULAR:
TEORIAS SOBRE A DESIGUALDADE
ENTRE AS CULTURAS

O e l o g i o d o s " p r i m i t i v o s " c o m o negação d a História 18


R e l a t i v i s m o c u l t u r a l o u crítica d a d e s i g u a l d a d e ? 22
A transnacionalização d a c u l t u r a 25
E m direção a u m a t e o r i a d a p r o d u ç ã o c u l t u r a l 28
[ C u l t u r a , reprodução s o c i a l e p o d e r j (T4
A organização c o t i d i a n a d a d o m i n a ç ã o ] (Yh
T a r e f a s d a investigação n a América L a t i n a (39)

INTRODUÇÃO A O E S T U D O
DAS CULTURAS POPULARES
Definições d o p o p u l a r : o r o m a n t i s m o , o p o s i t i v i s m o e a t e n -
dência g r a m s c i a n a 42
í^or q u e o a r t e s a n a t o e a s f e s t a s ^ 50
\ A s c u l t u r a s p o p u l a r e s e m transformação: o c a s o t a r a s c o ^ 57

A PRODUÇÃO A R T E S A N A L
COMO U M ANECESSIDADE
DO CAPITALISMO

"Resolver" o problema d o desemprego rural @ )


A s n e c e s s i d a d e s contraditórias d o c o n s u m o ^ 65
( ) i u r i s m o o u a reconciliação d o a t r a s o c o m a b e l e z a ^ . 66
X N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I

A ação político-ideológica d o E s t a d o 69
ÍA p r o d u ç ã o a r t e s a n a l c o m o u m a n e c e s s i d a d e d o c a p i t a l i s m o ? ? ] 7 1
r—-

A SOCIEDADE FRAGMENTADA

R u p t u r a s e n t r e o económico e o simbólico 76
A fragmentação d o p r o c e s s o s o c i a l 82
] O s indivíduos s e p a r a d o s d a c o m u n i d a d e j 83
A unificação m e r c a n t i l : d o étnico a o típico 86

DO MERCADO À BOUTIQUE:
Q U A N D O A S PEÇAS D E A R T E S A N A T O E M I G R A M

O a r t e s a n a t o n a m o r a d i a indígena 92 Agradecimentos
F e i r a s e m e r c a d o s , v i t r i n a s d a "modernização" c a m p o n e s a . . . 9 4
O a r t e s a n a t o n a c i d a d e : instruções p a r a o s e u " d e s u s o " 98
A loja de artesanato 101
E n t r e a boutique e o m u s e u 104 E s t a investigação f o i r e a l i z a d a , e n t r e o s a n o s d e 1 9 7 7 e 1 9 8 0 ,
N a habitação u r b a n a : a estética d o souvenir 106 n a E s c o l a N a c i o n a l d e A n t r o p o l o g i a e História d o México, q u e
t í i m direção a u m a política p o p u l a r n a utilização d o espaço p a t r o c i n o u o t r a b a l h o e f i n a n c i o u o s seus gastos. C o l a b o r a r a m e m
L. urbano 108 períodos d i s t i n t o s o s s e g u i n t e s a l u n o s : Tânia C a r r a s c o , A n a M a r i a
C o f i f i o , S u s a n a F e r r u c c i , G r a c i a l m b e r t o n , Mónica M a l d o n a d o ,
F E S T A E HISTÓRIA: E l i a N o r a M o r e t t i S a n c h e z , Letícia R i v e r m a r P e r e z , M a r i a R o c i o
CELEBRAR, RECORDAR, VENDER S u a r e z R e y e s , J a v i e r T e l l e z , Sónia T o l e d o T e l l o e Patrícia V a r a
Orozco.
F e s t a s r u r a i s e espetáculos u r b a n o s 1 L2
Festa camponesa tradicional 113 Q u e r o e x p r i m i r o m e u a g r a d e c i m e n t o às p e s s o a s q u e a j u d a -
tFesta urbana., 113 r a m n a reflexão a r e s p e i t o d o s t e m a s q u e compõem e s t e l i v r o , e q u e
P o r q u e n ã o c h o v e o s s a n t o s serão c a r r e g a d o s d e c o s t a s 114 s u g e r i r a m modificações n o m a n u s c r i t o : M a r t a D u j o v n e , C l a r i s a
A f e s t a e m P a t a m b a n : peças d e a r t e s a n a t o efémeras, n e c e s - H a r d y , M a r i a E u g e n i a Módena, V i c t o r i a N o v e l o , M e r c e d e s O l i -
s i d a d e s crónicas 118 v e r a , D a n i e l P r i e t o e Mariángela R o d r i g u e z .
^ 7 0 0 0 0 t u r i s t a s c r i a r a m e m J a n i t z i o u m a c u l t u r a fotogênicaJ,... 1 2 2 L e m b r a r o s artesãos, dançarinos, funcionários, v e n d e d o r e s e
Deixar de perguntar sobre a m o r t e 125 o s t u r i s t a s q u e m e o f e r e c e r a m informações o c u p a r i a várias páginas
i A f e s t a c o m o subversão r e s t r i t a . J 128 d e s t e l i v r o . T e n h o v o n t a d e d e m e n c i o n a r a l g u n s artesãos q u e m e
t r a t a r a m d e m a n e i r a g e n e r o s a e até m e a l o j a r a m e m s u a s c a s a s , m a s
CONCLUSÃO: s e r i a i n j u s t o s e l e c i o n a r a p e n a s a l g u n s n o m e s . Além d o m a i s , d e v i d o
P O R U M A C U L T U R A P O P U L A R C O M MINÚSCULA à indiferença c o m q u e o s artesãos t r a t a m a q u e l e s q u e o s o b r i g a m a
c o l o c a r a s s u a s a s s i n a t u r a s n a s peças ( o q u e será m o s t r a d o n o capí-
A interpenetração d a s c u l t u r a s e a definição d o p o p u l a r 133 t u l o I V ) , sei q u e eles e s p e r a m m e n o s este r e c o n h e c i m e n t o i n d i v i -
A r t e p o p u l a r , a r t e kitsch o u c u l t u r a p o p u l a r ? 135 d u a l d o q u e a difusão d o s e u p e n s a m e n t o e a compreensão e d e f e s a
Políticas c u l t u r a i s e autogestão: f u n d a m e n t o s e c o n t r a d i ç õ e s . . 1 3 8 do seu trabalho.

Bibliografia 145 N. G.C .


Pontos de p a r t i d a

O q u e é a c u l t u r a p o p u l a r : criação espontânea d o p o v o , a s u a
memória c o n v e r t i d a e m m e r c a d o r i a o u o espetáculo exótico d e u m a
situação d e a t r a s o q u e a indústria v e m r e d u z i n d o a u m a c u r i o s i d a d e
turística?
A solução romântica: i s o l a r o c r i a t i v o e o a r t e s a n a l , a b e l e z a e
a sabedoria d o povo, imaginar de m o d o sentimental comunidades
p u r a s , s e m c o n t a t o c o m o d e s e n v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a , c o m o se a s
c u l t u r a s p o p u l a r e s não f o s s e m o r e s u l t a d o d a absorção d a s i d e o -
l o g i a s d o m i n a n t e s e d a s contradições e n t r e a s próprias c l a s s e s o p r i -
midas.
A estratégia d o m e r c a d o : e n x e r g a r o s p r o d u t o s d o p o v o m a s
não a s p e s s o a s q u e o s p r o d u z e m , valorizá-los a p e n a s p e l o l u c r o q u e
g e r a m , p e n s a r q u e o a r t e s a n a t o , a s f e s t a s e crenças " t r a d i c i o n a i s "
são resíduos d e f o r m a s d e p r o d u ç ã o pré-capitalistas. O p o p u l a r é o
o u t r o n o m e d o p r i m i t i v o : u m obstáculo a s e r s u p r i m i d o o u u m
n o v o -rótulo p e r t e n c e n t e a m e r c a d o r i a s c a p a z e s d e a m p l i a r a s v e n d a s
a c o n s u m i d o r e s d e s c o n t e n t e s c o m a p r o d u ç ã o e m série.
O q u e vê o t u r i s t a : e n f e i t e s p a r a c o m p r a r e d e c o r a r s e u a p a r -
t a m e n t o , cerimónias " s e l v a g e n s " , evidências d e q u e a s u a s o c i e -
d a d e é s u p e r i o r , símbolos d e v i a g e n s exóticas a l u g a r e s r e m o t o s ,
portanto, d o seu poder aquisitivo. A cultura é tratada de m o d o
s e m e l h a n t e à n a t u r e z a : u m espetáculo. A s p r a i a s e n s o l a r a d a s e a s
danças indígenas são v i s t a s d e m a n e i r a i g u a l . O p a s s a d o s e m i s t u r a
c o m o presente, as pessoas s i g n i f i c a m o m e s m o que as pedras: u m a
cerimónia d o d i a d o s m o r t o s e u m a pirâmide m a i a são cenários a
serem fotografados.
12 NESTOR GARCIA CANCL1NI
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 13

E s t e l i v r o p r e t e n d e u m a compreensão g l o b a l d a s d i v e r s a s l a r e s ; a o contrário, e l e i n c l u s i v e s e a p r o p r i a d e l a s , r e e s t r u -
manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r . U m a v e z q u e e s t a é d i s p e r s a , t u r a - a s , r e o r g a n i z a n d o o s i g n i f i c a d o e a função d o s s e u s
c o m p r e e n d e n d o o q u e o p o v o f a z , o q u e se v e n d e n o s m e r c a d o s e o b j e t o s e d a s s u a s crenças e práticas. S e u s r e c u r s o s p r e f e r i -
boutiques e o s espetáculos através d o s q u a i s o s m e i o s d e c o m u n i c a - d o s , c o m o será v i s t o n o capítulo I I I , são o r e o r d e n a m e n t o
ção d e m a s s a t r a n s f i g u r a m a n o s s a v i d a c o t i d i a n a . E m v e z d e n o s d a produção e d o c o n s u m o n o c a m p o e n a c i d a d e , a e x p a n -
a p e g a r m o s , c o m o n a f u g a romântica, a u m a a u t e n t i c i d a d e ilusória, são d o t u r i s m o e a presença d e políticas e s t a t a i s d e r e f u n -
t r a t a r e m o s d e e x p l i c a r p o r q u e o s índios p r o d u z e m c a d a v e z m a i s cionalização ideológica.
suas festas e a r t e s a n a t o p a r a o u t r o s , p a r a q u e s e j a m c o m p r a d o s e 2. C o m a f i n a l i d a d e d e i n t e g r a r as classes p o p u l a r e s a o desen-
a d m i r a d o s . A f i m d e não r e d u z i r m o s a questão — c e n t r a l — d a v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a , as classes d o m i n a n t e s desestru-
mercantilização d a c u l t u r a , i n t e r r o g a m o s o s a s p e c t o s económicos e t u r a m — m e d i a n t e p r o c e d i m e n t o s d i s t i n t o s , m a s q u e são
simbólicos d o s p r o d u t o s p o p u l a r e s , v e r i f i c a n d o o q u e s e v e n d e e o s u b o r d i n a d o s a u m a lógica c o m u m — a s c u l t u r a s étnicas,
q u e se d e s e j a . Também p r o c u r a m o s s a b e r c o m o se c o m p l e m e n t a m n a c i o n a i s e d e classe, r e o r g a n i z a n d o - a s n u m s i s t e m a u n i f i -
o significado d o que o povo cria n u m a oficina artesanal c o m o que c a d o d e produção simbólica. É c o m e s t e i n t u i t o q u e s e p a -
u m a o u t r a p a r t e d o p o v o u s a n u m a habitação u r b a n a o u vê n u m r a m a b a s e económica d a s representações c u l t u r a i s , r o m -
t e l e v i s o r : u m a v e z q u e t o d a s a s manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r p e m a u n i d a d e e n t r e a p r o d u ç ã o , a circulação e o c o n s u -
o c o r r e m n o interior d o sistema capitalista, deve-se encontrar u m a m o , b e m c o m o e n t r e o s indivíduos e a s u a c o m u n i d a d e .
m a n e i r a d e compreendê-los j u n t o s . E n q u a n t o q u e , n u m s e g u n d o m o m e n t o , recompõem o s
A redefinição d o q u e é h o j e a c u l t u r a p o p u l a r r e q u e r u m a pedaços, s u b o r d i n a n d o - o s a u m a organização t r a n s n a c i o -
estratégia d e investigação q u e s e j a c a p a z d e a b r a n g e r t a n t o a p r o - n a l d a c u l t u r a q u e é c o r r e l a t a à multinacionalização d o
dução q u a n t o a circulação e o c o n s u m o . A compreensão d o porquê c a p i t a l . A n a l i s a r e m o s e s t e p r o c e s s o p o r intermédio d e u m a
d a permanência e , i n c l u s i v e , d o a u m e n t o d a p r o d u ç ã o d e o b j e t o s d a s s u a s p r i n c i p a i s operações: a redução d o étnico a o típico
a r t e s a n a i s e x i g e u m a indagação a r e s p e i t o d o s m o t i v o s q u e o s i s t e - (capítulo I V ) .
m a s o c i a l p o s s u i p a r a incentivá-la. A visão q u e r e d u z o a r t e s a n a t o a
u m a coleção d e o b j e t o s e a c u l t u r a p o p u l a r a u m c o n j u n t o d e t r a d i -
M a s c o m o também t r a t a r e m o s d a s r e s p o s t a s q u e a s c o m u n i -
ções d e v e s e r a b a n d o n a d a , b e m c o m o o i d e a l i s m o folclórico q u e
d a d e s t r a d i c i o n a i s e o s p o v o s mestiços o f e r e c e m d i a n t e d a situação
p e n s a q u e é possível e x p l i c a r o s p r o d u t o s d o p o v o c o m o " e x p r e s -
d e dominação, o u s e j a , a s s u a s m a n e i r a s d e se a d a p t a r e m , r e s i s t i -
são" a u t ó n o m a d o s e u t e m p e r a m e n t o . O e n f o q u e m a i s f e c u n d o é
r e m o u e n c o n t r a r e m u m l u g a r p a r a s o b r e v i v e r , o o b j e t i v o último
aquele que entende a cultura c o m o u m instrumento voltado para a
d o l i v r o é p r o p o r u m a interpretação d o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s n o
compreensão, reprodução e transformação d o s i s t e m a s o c i a l , a t r a -
capitalismo.
vés d o q u a l é e l a b o r a d a e construída a h e g e m o n i a d e c a d a c l a s s e .
E s t a interpretação f o i s u r g i n d o a p a r t i r d e u m a p e s q u i s a a
De a c o r d o c o m esta perspectiva, t r a t a r e m o s d e ver as culturas das
r e s p e i t o d a s mudanças n o a r t e s a n a t o e n a s f e s t a s p o p u l a r e s q u e r e a -
c l a s s e s p o p u l a r e s c o m o r e s u l t a d o d e u m a apropriação d e s i g u a l d o
l i z a m o s n o c e n t r o d o México, e n t r e 1 9 7 7 e 1 9 8 0 , e m p o v o a d o s d a
c a p i t a l c u l t u r a l , a elaboração específica d a s s u a s condições d e v i d a
z o n a t a r a s c a d o e s t a d o d e Michoacán. P e s q u i s a m o s d u a s áreas q u e
e a interação c o n f l i t u o s a c o m o s s e t o r e s hegemónicos.
p o s s u e m u m a m e s m a o r i g e m étnica, m a s q u e a p r e s e n t a m u m d e s e n -
E s t e e n f o q u e teórico e metodológico, q u e será d e s e n v o l v i d o v o l v i m e n t o económico e c u l t u r a l d i f e r e n t e : 1 ) a área q u e m a r g e i a o
n o s d o i s p r i m e i r o s capítulos, a r t i c u l a - s e e m t o r n o d a s s e g u i n t e s l a g o d e P á t z c u a r o , região f o r t e m e n t e i n t e g r a d a a o d e s e n v o l v i -
teses: m e n t o c a p i t a l i s t a , a o t u r i s m o , às comunicações e à ação d o s o r g a -
nismos oficiais; 2 )P a t a m b a n e O c u m i c h o , pequenas vilas de oleiros
1. O c a p i t a l i s m o , s o b r e t u d o o c a p i t a l i s m o dependente pos- e a g r i c u l t o r e s d a s e r r a , q u e se o r g a n i z a m e m t o r n o d e u n i d a d e s
s u i d o r d e f o r t e s raízes indígenas, e m s e u p r o c e s s o d e d e s e n - domésticas d e p r o d u ç ã o , às q u a i s s e c h e g a p o r t r i l h a s , e q u e c o n -
v o l v i m e n t o não p r e c i s a s e m p r e e l i m i n a r a s c u l t u r a s p o p u - t i n u a m f a l a n d o p a r c i a l m e n t e o t a r a s c o e mantêm f e s t a s e f e i r a s q u e
12 N E S T O R GARCÍ A C A N C L I N I
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 13

E s t e l i v r o p r e t e n d e u m a compreensão g l o b a l d a s d i v e r s a s l a r e s ; a o contrário, e l e i n c l u s i v e s e a p r o p r i a d e l a s , r e e s t r u -
manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r . U m a v e z q u e e s t a é d i s p e r s a , t u r a - a s , r e o r g a n i z a n d o o s i g n i f i c a d o e a função d o s s e u s
c o m p r e e n d e n d o o q u e o p o v o f a z , o q u e se v e n d e n o s m e r c a d o s e o b j e t o s e d a s s u a s crenças e práticas. S e u s r e c u r s o s p r e f e r i -
boutiques e o s espetáculos através d o s q u a i s o s m e i o s d e c o m u n i c a - d o s , c o m o será v i s t o n o capítulo I I I , são o r e o r d e n a m e n t o
ção d e m a s s a t r a n s f i g u r a m a n o s s a v i d a c o t i d i a n a . E m v e z d e n o s d a produção e d o c o n s u m o n o c a m p o e n a c i d a d e , a e x p a n -
a p e g a r m o s , c o m o n a f u g a romântica, a u m a a u t e n t i c i d a d e ilusória, são d o t u r i s m o e a presença d e políticas e s t a t a i s d e r e f u n -
t r a t a r e m o s d e e x p l i c a r p o r q u e o s índios p r o d u z e m c a d a v e z m a i s cionalização ideológica.
suas festas e a r t e s a n a t o p a r a o u t r o s , p a r a q u e s e j a m c o m p r a d o s e 2. C o m a f i n a l i d a d e d e i n t e g r a r as classes p o p u l a r e s a o desen-
a d m i r a d o s . A f i m d e n ã o r e d u z i r m o s a questão — c e n t r a l — d a v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a , as classes d o m i n a n t e s desestru-
mercantilização d a c u l t u r a , i n t e r r o g a m o s o s a s p e c t o s económicos e t u r a m — m e d i a n t e p r o c e d i m e n t o s d i s t i n t o s , m a s q u e são
simbólicos d o s p r o d u t o s p o p u l a r e s , v e r i f i c a n d o o q u e s e v e n d e e o s u b o r d i n a d o s a u m a lógica c o m u m — a s c u l t u r a s étnicas,
q u e se d e s e j a . Também p r o c u r a m o s s a b e r c o m o se c o m p l e m e n t a m n a c i o n a i s e d e classe, r e o r g a n i z a n d o - a s n u m s i s t e m a u n i f i -
o significado d o que o p o v o cria n u m a oficina artesanal c o m oq u e c a d o d e produção simbólica. É c o m e s t e i n t u i t o q u e s e p a -
u m a o u t r a p a r t e d o p o v o u s a n u m a habitação u r b a n a o u vê n u m r a m a b a s e económica d a s representações c u l t u r a i s , r o m -
t e l e v i s o r : u m a v e z q u e t o d a s a s manifestações d a c u l t u r a p o p u l a r p e m a u n i d a d e e n t r e a p r o d u ç ã o , a circulação e o c o n s u -
o c o r r e m n o interior d o sistema capitalista, deve-se encontrar u m a m o , b e m c o m o e n t r e o s indivíduos e a s u a c o m u n i d a d e .
m a n e i r a d e compreendê-los j u n t o s . E n q u a n t o q u e , n u m s e g u n d o m o m e n t o , recompõem o s
A redefinição d o q u e é h o j e a c u l t u r a p o p u l a r r e q u e r u m a pedaços, s u b o r d i n a n d o - o s a u m a organização t r a n s n a c i o -
estratégia d e investigação q u e s e j a c a p a z d e a b r a n g e r t a n t o a p r o - n a l d a c u l t u r a q u e é c o r r e l a t a à multinacionalização d o
dução q u a n t o a circulação e o c o n s u m o . A compreensão d o porquê c a p i t a l . A n a l i s a r e m o s e s t e p r o c e s s o p o r intermédio d e u m a
d a permanência e , i n c l u s i v e , d o a u m e n t o d a p r o d u ç ã o d e o b j e t o s d a s s u a s p r i n c i p a i s operações: a redução d o étnico a o típico
a r t e s a n a i s e x i g e u m a indagação a r e s p e i t o d o s m o t i v o s q u e o s i s t e - (capítulo I V ) .
m a s o c i a l p o s s u i p a r a incentivá-la. A visão q u e r e d u z o a r t e s a n a t o a
u m a coleção d e o b j e t o s e a c u l t u r a p o p u l a r a u m c o n j u n t o d e t r a d i -
M a s c o m o também t r a t a r e m o s d a s r e s p o s t a s q u e a s c o m u n i -
ções d e v e s e r a b a n d o n a d a , b e m c o m o o i d e a l i s m o folclórico q u e
d a d e s t r a d i c i o n a i s e o s p o v o s mestiços o f e r e c e m d i a n t e d a situação
p e n s a q u e é possível e x p l i c a r o s p r o d u t o s d o p o v o c o m o " e x p r e s -
d e dominação, o u s e j a , a s s u a s m a n e i r a s d e se a d a p t a r e m , r e s i s t i -
são" a u t ó n o m a d o s e u t e m p e r a m e n t o . O e n f o q u e m a i s f e c u n d o é
r e m o u e n c o n t r a r e m u m l u g a r p a r a s o b r e v i v e r , o o b j e t i v o último
aquele que entende a cultura c o m o u m instrumento voltado para a
d o l i v r o é p r o p o r u m a interpretação d o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s n o
compreensão, reprodução e transformação d o s i s t e m a s o c i a l , a t r a -
capitalismo.
vés d o q u a l é e l a b o r a d a e construída a h e g e m o n i a d e c a d a c l a s s e .
E s t a interpretação f o i s u r g i n d o a p a r t i r d e u m a p e s q u i s a a
D e a c o r d o c o m esta perspectiva, t r a t a r e m o s d e ver as culturas das
r e s p e i t o d a s mudanças n o a r t e s a n a t o e n a s f e s t a s p o p u l a r e s q u e r e a -
c l a s s e s p o p u l a r e s c o m o r e s u l t a d o d e u m a apropriação d e s i g u a l d o
l i z a m o s n o c e n t r o d o México, e n t r e 1 9 7 7 e 1 9 8 0 , e m p o v o a d o s d a
c a p i t a l c u l t u r a l , a elaboração específica d a s s u a s condições d e v i d a
z o n a t a r a s c a d o e s t a d o d e Michoacán. P e s q u i s a m o s d u a s áreas q u e
e a interação c o n f l i t u o s a c o m o s s e t o r e s hegemónicos.
p o s s u e m u m a m e s m a o r i g e m étnica, m a s q u e a p r e s e n t a m u m d e s e n -
E s t e e n f o q u e teórico e metodológico, q u e será d e s e n v o l v i d o v o l v i m e n t o económico e c u l t u r a l d i f e r e n t e : 1 ) a área q u e m a r g e i a o
n o s d o i s p r i m e i r o s capítulos, a r t i c u l a - s e e m t o r n o d a s s e g u i n t e s l a g o d e P á t z c u a r o , região f o r t e m e n t e i n t e g r a d a a o d e s e n v o l v i -
teses: m e n t o c a p i t a l i s t a , a o t u r i s m o , às comunicações e à ação d o s o r g a -
nismos oficiais; 2) P a t a m b a n e O c u m i c h o , pequenas vilas de oleiros
1. O c a p i t a l i s m o , s o b r e t u d o o c a p i t a l i s m o dependente pos- e a g r i c u l t o r e s d a s e r r a , q u e se o r g a n i z a m e m t o r n o d e u n i d a d e s
s u i d o r d e f o r t e s raízes indígenas, e m s e u p r o c e s s o d e d e s e n - domésticas d e p r o d u ç ã o , às q u a i s s e c h e g a p o r t r i l h a s , e q u e c o n -
v o l v i m e n t o não p r e c i s a s e m p r e e l i m i n a r a s c u l t u r a s p o p u - t i n u a m f a l a n d o p a r c i a l m e n t e o t a r a s c o e mantêm f e s t a s e f e i r a s q u e
14 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 15
N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N 1

a p e n a s n o s últimos a n o s começaram a r e c e b e r t u r i s t a s e p r o d u t o s p e r m i t i r a m q u e pudéssemos c o n c e n t r a r e m a l g u n s capítulos m i n u -


industrializados. c i o s a s transcrições etnográficas. D a d o q u e e s t a caracterização g e r a l
P a r a r e a l i z a r m o s u m a análise c o m p a r a t i v a d a influência d o s e p o r m e n o r i z a d a já s e e n c o n t r a f e i t a , r e s e r v a m o s u m espaço m a i o r
a g e n t e s e x t e r n o s e d a evolução d a s r e s p e c t i v a s populações, l e v a m o s p a r a a apresentação empírica d e p r o c e s s o s i n t e r c u l t u r a i s r e c e n t e s e
e m consideração a s mudanças q u e " t e m o s o b s e r v a d o a n o após a n o a i n d a i n e x p l o r a d o s e p a r a a elaboração c o n c e i t u a i necessária p a r a a
e m nossas visitas, assim c o m o a e s t r u t u r a a n t e r i o r d e cada socie- s u a compreensão: a s descrições e d a d o s estatísticos f o r a m s e l e c i o -
d a d e , s u a produção a r t e s a n a l e s u a s f e s t a s , d e a c o r d o c o m a s des- n a d o s e m função d e s t e t r a b a l h o , a i n d a q u e também t e n h a m o s
crições f e i t a s p o r antropólogos m e x i c a n o s e n o r t e - a m e r i c a n o s a incluído a l g u m a informação básica a r e s p e i t o d a região e d a s u a
p a r t i r d a década d e 4 0 . ' história p a r a q u e m e s m o o l e i t o r q u e desconheça Michoacán p o s s a
situar-se. Aqueles q u e desejarem u m p a n o r a m a mais detalhado
D i a n t e d o s estudos precedentes p o d e m o s a p o n t a r u m a dife-
d a região o encontrarão n a b i b l i o g r a f i a q u e a c a b a m o s d e c i t a r ,
rença: i n t e r e s s a m o - n o s t a n t o p e l a v i d a i n t e r n a d a s v i l a s q u a n t o e m
especialmente n o s livros de Carrasco, D i n e r m a n , N o v e l o ev a n
a c o m p a n h a r o s artesãos e s e u s p r o d u t o s n a s f e s t a s e m e r c a d o s —
Zantwijk.
e m Pátzcuaro, e m M o r e l i a e n o D i s t r i t o F e d e r a l — c o m a f i n a l i -
d a d e d e c o n h e c e r a s u a interação c o m p e s s o a s e instituições q u e são Se b e m q u eo c o n f r o n t o entre a c u l t u r a antiga e a s u a refun-
alheias a o s seus lugares de o r i g e m , a f i m d e s a b e r m o s c o m o o c o n - cionalização a t u a l p e r p a s s e t o d o o l i v r o , poderá s e r e n c o n t r a d o d e
s u m o u r b a n o a l t e r a o s i g n i f i c a d o d a produção m a t e r i a l e simbólica m o d o m a i s p a r t i c u l a r n o s capítulos V e V I . N o capítulo V p e r c o r -
das c u l t u r a s t r a d i c i o n a i s . r e m o s o p r o c e s s o d e descontextualização e refuncionalização p o r
A s p r o l i x a s descrições já e x i s t e n t e s d a região t a r a s c a s e r v i r a m q u e p a s s a o a r t e s a n a t o e m d i f e r e n t e s espaços e c l a s s e s s o c i a i s : a
de base para aquela q u e realizamos n o nosso t r a b a l h o de c a m p o , e habitação indígena, o s m e r c a d o s e f e i r a s c a m p o n e s e s , a s l o j a s e
boutiques, o m u s e u e a habitação u r b a n a . N o s e x t o capítulo, t r a t a -
m o s d o a r t e s a n a t o efémero q u e a c o m p a n h a a s f e s t a s indígenas e d o
' Michoacán é u m a d a s regiões q u e m a i s c e d o e d e m o d o m a i s p e r s i s t e n t e s u s c i t o u
o i n t e r e s s e d o s antropólogos m e x i c a n o s e e s t r a n g e i r o s . E m b o r a e x i s t a u m a l i t e r a - p r o c e s s o q u e c o n v e r t e a celebração e m espetáculo, a participação
t u r a a n t i g a , já r e s e n h a d a ( L u c i o M e n d i e t a y Núnez, Los Tarascos. Monografia c o l e t i v a e m c o n s u m o p l a n i f i c a d o e a o r d e m r i t u a l agrícola-religiosa
histórica, etnográfica y económica, México, 1940), o s e s t u d o s p r o p r i a m e n t e c i e n - n u m a organização m e r c a n t i l d o ócio turístico.
tíficos começaram c o m o p r o g r a m a d e investigações antropológicas p a t r o c i n a d o
O t r a t a m e n t o d a d o a estes t e m a s b e m c o m o a m e t o d o l o g i a
p o r instituições n o r t e - a m e r i c a n a s e m e x i c a n a s n a década d e 4 0 ( D . F . R u b i n d e l a
Borbolla e R a l p h L . Beals, T h e Tarascan project: A cooperative enterprise o fthe
e m p r e g a d a s i t u a m este l i v r o e n t r e a A n t r o p o l o g i a e a S o c i o l o g i a .
National Polytechnical Institute, Mexican Bureau o f Indian Affairs a n d the U n i - M a s também serão e n c o n t r a d a s reflexões políticas e filosóficas
v e r s i t y o f Califórnia, A m e r i c a n Antropologie, M e n a s h a , 1940, 4 2 , 7 0 8 - 7 1 2 ) . E s t e s o b r e a c u l t u r a . N o e x a m e d a i d e n t i d a d e e m transformação d a s c u l -
p r o j e t o g e r o u u m a investigação geográfica ( R o b e r t C . W e s t , Culturalgeography t u r a s p o p u l a r e s , t e m o s d e l i n e a d o c r i t i c a m e n t e o s f u n d a m e n t o s e as
o f the modem T a r a s c a n a r e a , W a s h i n g t o n , S m i t h s o n i a n I n s t i t u t e , 1948) e o u t r a s
e n c r u z i l h a d a s d a s instituições q u e a s p r o m o v e m , e i n d a g a d o c o m o
s o b r e p o v o a d o s específicos ( R a l p h L . B e a l s , Cherán: A S i e r r a T a r a s c a n vil/age,
W a s h i n g t o n , S m i t h s o n i a n I n s t i t u t e , 1944; G e o r g e M . F o s t e r , T z i n t z u n t z a n ,
se d e v e e n c a r a r a s políticas c u l t u r a i s , r u r a i s e u r b a n a s n u m p r o c e s s o
México, F C E , 1972; D . D o n a l d B r a n d e José C o r r e a Núnez, Q u i r o g a , a M e x i c a n d e mudança s o c i a l .
Município, W a s h i n g t o n , 1 9 5 1 ; P e d r o C a r r a s c o , E l Catolicismo popular de los t a - D o m e s m o m o d o , a investigação a r e s p e i t o d o efémero e d o
rascos, México, S e p s e t e n t a s , 1976, q u e s e r e f e r e e m e s p e c i a l à z o n a d o l a d o d e variável n o s p r o c e s s o s c u l t u r a i s l e v a - n o s a u m a reflexão a c e r c a d o
Pátzcuaro, s o b r e t u d o c o m informações o b t i d a s e m Jarácuaro). O u t r o s e s t u d o s
q u e h á d e frágil e volúvel n a c u l t u r a ; e não a p e n a s n o q u e s e p a s s a
s o b r e a região q u e m e r e c e m d e s t a q u e são o s d e P i e r r e L i s s e , Las artesanías y
pequenas industrias em el estado de Michoacán, Pátzcuaro, C R E F A L , 1964; I n a c o m as culturas tradicionais d e v i d o a o i m p a c t o d o c a p i t a l i s m o , m a s
R . D i n e r m a n , Los Tarascos, campesinos y artesanos de Michoacán, México, n o q u e o c o r r e c o m t o d a s a s representações através d a s q u a i s nós,
S e p s e t e n t a s , 1974; R . A . M . v a n Z a n t w i j k , Los servidores de los santos, México, seres h u m a n o s , t e n t a m o s d a r c o n t a d a s nossas v i d a s . D a d o q u e o
I N I , 1974; G e o r g e P i e r r e C a s t i l e , Cherán: l a adaptación de u n a comunidad tradi- simbólico n ã o s e r e d u z a o s c o m p o r t a m e n t o s observáveis e a o s s e u s
c i o n a l de Michoacán, México, I N I , 1976; V i c t o r i a N o v e l o , Artesaníasy capitalis-
f i n s práticos i m e d i a t o s , e n t e n d e m o s q u e a investigação a r e s p e i t o
mo en México, S E P - I N A H , 1976; A n n e L i s e e René P i e t r i , Empleo y migración
en l a región de Pátzcuaro, México, I N I , 1976. d a s condições s o c i a i s d e p r o d u ç ã o n e c e s s i t a i n c l u i r o q u e n o i n t e -
16 N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I

r i o r d a c u l t u r a é u t o p i a o u indagação. A interpretação antropoló-


g i c a d a f e s t a d o s m o r t o s , p o r e x e m p l o , é u m a ocasião propícia p a r a
a compreensão d o q u e o s h o m e n s f a z e m , através d a f e s t a , c o m o
q u e n ã o p o d e m f a z e r c o m a m o r t e . A análise d e s t a s cerimónias e
o f e r e n d a s ajudará a e n x e r g a r m o s a c u l t u r a não a p e n a s c o m o a
expressão d o m o d o c o m o s e v i v e s o b o c a p i t a l i s m o , m a s também d e
c o m o se m o r r e e c o m o se r e c o r d a m o s m o r t o s , a j u d a n d o - n o s a per- D o primitivo ao popular:
c e b e r q u e a c u l t u r a não é a p e n a s o m o d o c o m o e s t a a r t e p o b r e r e e l a -
b o r a a s condições m a t e r i a i s , c o n c r e t a s , d a s o c i e d a d e , m a s também teorias sobre a desigualdade
o q u e e l a i m a g i n a c o m o s i t u a d o além d e l a .
A o s i t u a r a s dúvidas a r e s p e i t o d o d e s t i n o d a s c u l t u r a s p o p u - entre as culturas
l a r e s n o i n t e r i o r d o c o n f l i t o q u e a s corrói, d e v e m o s n o s p e r g u n t a r a
r e s p e i t o d o f u t u r o e d o v a l o r d e t o d a c u l t u r a , d a s i m a g e n s , d o s sis-
t e m a s d e p e n s a m e n t o e d a s crenças através d o s q u a i s t e n t a m o s n o s
explicar e justificar. N o transcorrer d o livro p r e d o m i n a o exame C o m a cultura, o objeto tradicional da A n t r o p o l o g i a , acon-
d o s c o n d i c i o n a m e n t o s q u e a g e m s o b r e a c u l t u r a e a consideração t e c e o m e s m o q u e c o m o s o b j e t o s d a s c o m u n i d a d e s q u e e s t a ciência
d a c u l t u r a c o m o i n s t r u m e n t o v o l t a d o p a r a a reprodução d a s r e l a - estuda: a o passarem de u m lado a o u t r o d a m o n t a n h a , os elementos
ções s o c i a i s o b j e t i v a s . M a s d e s t e m o d o não c o n s e g u i m o s e x p r i m i r o m a i s c o t i d i a n o s , a água o u o s o l , m u d a m d e n o m e . T a m b é m o s
q u e e x i s t e e m t o d a a p r o d u ç ã o simbólica d e invenção d e n o v a s r e a - fatos c u l t u r a i s , presentes e m todas as sociedades, t r o c a m de n o m e
l i d a d e s , d e j o g o c o m o r e a l , d e a b e r t u r a a o q u e não e x i s t e o u não a o s a b o r d a d i s c i p l i n a q u e e s t a m o s v i s i t a n d o . O e s t u d a n t e q u e se
p o d e m o s s e r . C o m o p o d e m o s c o m p r e e n d e r e s t a s refutações a o r e a l i n i c i a n o s e u c o n h e c i m e n t o se d e p a r a c o m o f a t o d e q u e o q u e o s
q u e construímos n o s s o n h o s , n o s s i m u l a c r o s d a u t o p i a e d a l i t e r a - " i n d í g e n a s " d e u m a ciência c h a m a m d e s i s t e m a s simbólicos, o s d e
t u r a , n o s g a s t o s s e m r e t o r n o d a s f e s t a s , e e m t o d a s a s estratégias d o o u t r a c h a m a m d e s i g n o s , o u i d e o l o g i a , o u comunicação, o u a i n d a
imaginário e n a s astúcias retóricas d o d e s e j o ? P o r q u e s o b r e v i v e m e d e imaginário.
p r o l i f e r a m e s t e s u n i v e r s o s fictícios n u m m u n d o q u e r e i t e r a d a m e n t e P o r que escolhemos o t e r m o cultura? P o r que qualificar c o m o
se s u b m e t e à r a c i o n a l i d a d e d a eficiência? A n o s s a c a p a c i d a d e e m c u l t u r a p o p u l a r esta f o r m a p a r t i c u l a r d e c u l t u r a q u e o u t r o s cha-
transcender as necessidades materiais e p r o j e t a r - n o s r u m o a u m m a m s u b a l t e r n a , o p r i m i d a e t c ? S e e m q u a l q u e r investigação o
f u t u r o q u e não d e r i v a a u t o m a t i c a m e n t e d o d e s e n v o l v i m e n t o e c o - t r a b a l h o teórico d e v e a c o m p a n h a r o c o n h e c i m e n t o c o n c r e t o , i s t o é
nómico, a i n d a q u e não d e v a s e r e n c a r a d a , à m a n e i r a d o i d e a l i s m o , a i n d a m a i s necessário n e s t e c a m p o polémico, n e s t e b o s q u e d e d e f i -
c o m o o c o m p o n e n t e f u n d a m e n t a l e distintivo d o h o m e m , merece nições (antropológicas, sociológicas, semióticas e d e o u t r a s ciên-
u m l u g a r n u m a interpretação d a c u l t u r a . P r e t e n d o , t a m b é m , s i t u a r c i a s ) q u e e m 1 9 5 2 j á c h e g a v a m a o número d e t r e z e n t a s , d e a c o r d o
e s t e s t e m a s c o m o p a r t e d o e n f o q u e sócio-histórico, p o r q u e e n t e n d o c o m a compilação d e K r o e b e r e K l u c k h o h n . 2

a importância s o c i a l — e também política — d e r e p e n s a r a q u i l o q u e


Começaremos p e l a discussão d a s p r i n c i p a i s definições d e c u l
o i d e a l i s m o , a o i s o l a r s o b o n o m e d e espírito, d e i x o u s e m e x p l i c a -
t u r a d a d a p e l a A n t r o p o l o g i a ; será u m a a b o r d a g e m d a s u a c a r a c t e -
ção, e q u e o m a t e r i a l i s m o m e c a n i c i s t a , a o r e d u z i r a o s s e u s c o n d i -
rização c o m o a q u i l o q u e s e opõe à n a t u r e z a , definição à q u a l f o i
cionamentos, t o r n o u sem especificidade.
atribuída a esperança d e s e r c a p a z d e p o s s u i r v a l i d a d e u n i v e r s a l ,
s e n d o c o n s i d e r a d a l i v r e d e p r e c o n c e i t o s etnocêntricos. E m s e g u i d a ,

2
A . K r o e b e r e C . K l u c k h o h n , C u l t u r e : A c r i t i c a i review o f concepts and defini-
tions, C a m b r i d g e , M a s s a c h u s s e t s , 1952.
18 N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 19

a n a l i s a r e m o s a " s o l u ç ã o " q u e m u i t o s antropólogos o f e r e c e m a o não o c i d e n t a i s c o n s e g u i r a m r e s o l v e r , t a l v e z m e l h o r d e q u e nós, a s


p r o b l e m a d a s diferenças c u l t u r a i s — o r e l a t i v i s m o — e a s i t u a r e - d i f i c u l d a d e s d a organização d a família e d a educação, d a i n t e g r a -
m o s d i a n t e d a organização t r a n s n a c i o n a l q u e o c a p i t a l i s m o impôs ção d o s a d o l e s c e n t e s à v i d a s e x u a l e d a a t i v i d a d e económica ( c o m o ,
às c u l t u r a s , e d a p r o c u r a d e i d e n t i d a d e q u e e x i s t e n o i n t e r i o r d o s p o r e x e m p l o , p e r c e b e u M a r g a r e t M e a d n a Polinésia).
m o v i m e n t o s d e libertação d o s países d e p e n d e n t e s . E s t a crítica a o A partir destas descobertas f o i sendo elaborada n o Ocidente
v a l o r científico e político d a contribuição antropológica n o s levará u m a concepção d i s t i n t a a r e s p e i t o d e s i m e s m o e d o s o u t r o s p o v o s .
a o e s t a b e l e c i m e n t o d e laços e n t r e o c o n c e i t o d e c u l t u r a e o s c o n c e i - A desqualificação d o s p r i m i t i v o s , s e m e l h a n t e e m m u i t o s p o n t o s à
t o s d e produção, s u p e r e s t r u t u r a , i d e o l o g i a , h e g e m o n i a e classes desvalorização d a c u l t u r a p o p u l a r , m o s t r o u - s e i n c o n s i s t e n t e . A
s o c i a i s , c o n f o r m e têm s i d o e l a b o r a d o s p e l o m a r x i s m o . D e s t e m o d o , a m p l i t u d e , q u e d e s d e então o c o n c e i t o d e c u l t u r a p a s s o u a t e r — o
c h e g a r e m o s a u m a caracterização d a c u l t u r a c o m o u m t i p o p a r t i - q u e não é o b r a d a n a t u r e z a , t u d o a q u i l o q u e f o i p r o d u z i d o p o r
cular de atividade produtiva, cuja finalidade é compreender, repro- a l g u m s e r h u m a n o , não i m p o r t a n d o o s e u g r a u d e c o m p l e x i d a d e e
duzir e t r a n s f o r m a r a estrutura social e brigar pela hegemonia. N a d e d e s e n v o l v i m e n t o —, f o i u m a t e n t a t i v a d e r e c o n h e c e r a d i g n i d a d e
t a r e f a d e v i n c u l a r m o s e s t a definição a o e s t u d o empírico, u t i l i z a - d o s a n t e r i o r m e n t e excluídos. F o r a m c o n s i d e r a d a s c o m o p a r t e
remos alguns recursos d a sociologia d a cultura q u e explicitam os integrante d a c u l t u r a todas as atividades h u m a n a s , materiais e
m e c a n i s m o s através d o s q u a i s u m c a p i t a l c u l t u r a l é t r a n s m i t i d o p o r i d e a i s , i n c l u s i v e a q u e l a s práticas o u crenças a n t e r i o r m e n t e q u a l i f i -
m e i o d e a p a r e l h o s e s e i n t e r n a l i z a n o s indivíduos g e r a n d o hábitos e c a d a s c o m o manifestações d e ignorância (superstições e sacrifícios
práticas, o u s e j a , g e r a n d o a e s t r u t u r a d a n o s s a v i d a c o t i d i a n a . h u m a n o s ) , a s n o r m a s s o c i a i s e a s técnicas s i m p l e s d a q u e l e s q u e
C o m o se p o d e p e r c e b e r , e s t a m o s p r o p o n d o u m a mudança e m vivem n u sn a selva, sujeitos a o s r i t m o s e aos perigos d a natureza.
termos d o objeto tradicional de estudo d a A n t r o p o l o g i a . M a i s d o T o d a s a s c u l t u r a s , p o r m a i s r u d i m e n t a r e s q u e s e j a m , são d o t a d a s
q u e u m q u a d r o teórico a d e q u a d o p a r a a análise d a c u l t u r a , i n t e - d e e s t r u t u r a , p o s s u e m n o s e u i n t e r i o r coerência e s e n t i d o . I n c l u s i v e
r e s s a - n o s u m q u a d r o q u e n o s a j u d e n a explicação d a s d e s i g u a l d a - as práticas q u e n o s d e s c o n c e r t a m o u q u e nós r e j e i t a m o s ( a a n t r o p o -
des e d o s c o n f l i t o s e n t r e o s s i s t e m a s c u l t u r a i s . E n t e n d e m o s q u e o f a g i a , a p o l i g a m i a ) p o s s u e m u m a lógica n o i n t e r i o r d a s s o c i e d a d e s
t r a n s c o r r e r d o l i v r o justificará e s t a p e r s p e c t i v a c o m o a m a i s f e c u n - q u e a s a d o t a m , são f u n c i o n a i s p a r a a s u a existência.
d a p a r a a definição e o e s t u d o d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s : a s s i m c o m o Lévi-Strauss t a l v e z s e j a u m d o s antropólogos q u e têm j u s t i f i -
não e x i s t e a c u l t u r a e m g e r a l , t a m p o u c o p o d e - s e c a r a c t e r i z a r a c u l - c a d o d a m a n e i r a m a i s sólida o caráter lógico e e s t r u t u r a d o d a s c u l -
t u r a p o p u l a r p o r u m a essência o u p o r u m g r u p o d e traços intrínse- t u r a s a r c a i c a s , t a l v e z s e j a u m d o s q u e têm d e m o l i d o d e m o d o m a i s
c o s , m a s a p e n a s p e l a oposição d i a n t e d a c u l t u r a d o m i n a n t e , c o m o r i g o r o s o a pretensão o c i d e n t a l d e s e r o ápice d a História, d e t e r r e a -
o resultado d a desigualdade e d o conflito. l i z a d o o m a i o r avanço e m t e r m o s d o a p r o v e i t a m e n t o d a n a t u r e z a ,
da conquista d a racionalidade e d o estabelecimento d o pensamento
3
científico. S u a investigação a r e s p e i t o d o r a c i s m o p a r a a U N E S C O
m o s t r a o e x e m p l o d a América p a r a r e f u t a r a concepção e v o l u c i o -
O e l o g i o d o s " p r i m i t i v o s " c o m o negação d a História
n i s t a d a história h u m a n a , q u e a c o n c e b e c o m o u m único m o v i m e n t o
linear e progressivo, n ointerior d o qual a cultura europeia ocuparia
O c o n c e i t o antropológico d e c u l t u r a ê u m r e s u l t a d o p a r a d o - o c u m e , s e n d o que as demais e q u i v a l e r i a m a m o m e n t o s anteriores
x a l d a expansão i m p e r i a l d o O c i d e n t e . O m e s m o c o n f r o n t o e n t r e d o m e s m o processo. O s habitantes d o c o n t i n e n t e a m e r i c a n o conse-
países c o l o n i z a d o r e s e países c o l o n i z a d o s q u e e s t i m u l o u a s ilusões guiram atingir, antes d a conquista espanhola, u m impressionante
sobre a superioridade europeia p r o d u z i u u m c o n f r o n t o dos cientis- desenvolvimento cultural, de maneira independente d a Europa:
tas ingleses, franceses e n o r t e - a m e r i c a n o s c o m a v i d a c o t i d i a n a dos
p o v o s q u e f o r a m s u b m e t i d o s . O s antropólogos, a o s e d e s c e n t r a r e m 3
C l a u d e Lévi-Strauss, Race et histoire. P a r i s , Éditions G o u t h i e r - U N E S C O 1 9 6 1 .
diante d a s u a cultura, acabaram p o r descobrir outras formas de ( E x i s t e u m a tradução p u b l i c a d a n o B r a s i l e m Antropologia E s t r u t u r a l 2, R i o d e
r a c i o n a l i d a d e e d e v i d a . Também p u d e r a m p e r c e b e r q u e c u l t u r a s J a n e i r o , Edições T e m p o B r a s i l e i r o , 1976.)
20 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 21

d o m e s t i c a r a m espécies a n i m a i s e v e g e t a i s , o b t i v e r a m remédios e u m a m a i o r capacidade de ordenar racionalmente o m u n d o o u u m


b e b i d a s próprios, l e v a r a m indústrias c o m o a t e c e l a g e m , a cerâmica predomínio d a a t i v i d a d e i n t e l e c t u a l d i a n t e d a prática; m u i t o m e -
e o t r a b a l h o c o m m e t a i s p r e c i o s o s a o m a i s a l t o g r a u d e perfeição. É n o s , c o m o p r e t e n d e r a m a l g u n s , r e s i d e n a comprovação d e q u e o
difícil, a r g u m e n t a o antropólogo francês, s u s t e n t a r a i n f e r i o r i d a d e c o n h e c i m e n t o p r i m i t i v o é resultado d edescobertas feitas a o acaso.
d e p o v o s q u e p r o p o r c i o n a r a m a o V e l h o M u n d o u m a contribuição Ninguém m a i s s e a t r e v e a e x p l i c a r a revolução neolítica — q u e
imensa: a batata, o tabaco, o cacau, o t o m a t e e m u i t o s outros ali- e n v o l v e u a t i v i d a d e s tão c o m p l e x a s c o m o a cerâmica, a t e c e l a g e m , a
m e n t o s . O número z e r o , c o n h e c i d o e u t i l i z a d o p e l o s m a i a s p e l o m e - a g r i c u l t u r a e a domesticação d e a n i m a i s — c o m o u m acúmulo f o r -
n o s q u i n h e n t o s a n o s a n t e s d e s e r d e s c o b e r t o p o r sábios h i n d u s , a t u i t o d e d e s c o b e r t a s c a s u a i s . " C a d a u m a d e s s a s técnicas supõe
m a i o r precisão d o s e u calendário, o r e g i m e político avançado d o s séculos d e observação a t i v a e metódica, hipóteses o u s a d a s e c o n t r o -
i n c a s são o u t r o s f a t o s i n v o c a d o s p a r a i n v a l i d a r e m p i r i c a m e n t e o l a d a s , p a r a s e r e m r e j e i t a d a s o u c o m p r o v a d a s p o r m e i o d e experiên-
evolucionismo. cias i n c a n s a v e l m e n t e r e p e t i d a s . " 5

M a s é e m O Pensamento Selvagem o l u g a r o n d e Lévi-Strauss A o invés d e c o l o c a r m o s e m oposição a m a g i a e a ciência, o


d e s e n v o l v e m e l h o r o s e u q u e s t i o n a m e n t o teórico. A l i l e m o s q u e s e p e n s a m e n t o mítico e o p e n s a m e n t o r a c i o n a l , c o m o s e o p r i m e i r o
a s c u l t u r a s n ã o o c i d e n t a i s alcançaram u m s a b e r q u e é e m vários f o s s e a p e n a s u m r a s c u n h o g r o s s e i r o d o s e g u n d o , d e / e m o s colocá-
p o n t o s s u p e r i o r a o e u r o p e u f o i p o r q u e o seu d e s e n v o l v i m e n t o inte- l o s " e m p a r a l e l o , c o m o d u a s f o r m a s d e c o n h e c i m e n t o , q u e são
l e c t u a l a t i n g i u u m r i g o r s e m e l h a n t e a o d a s d i s c i p l i n a s científicas, d e s i g u a i s q u a n t o a o s r e s u l t a d o s teóricos e práticos ( p o i s , s o b e s t e
m e s m o q u e através d e c a m i n h o s d i f e r e n t e s . A p e n a s u m a o b s e r v a - p o n t o d e v i s t a , é c e r t o q u e a ciência s e s a i m e l h o r d o q u e a m a g i a ,
ção metódica e m i n u c i o s a d a r e a l i d a d e p o d e t e r p o s s i b i l i t a d o a o s se b e m q u e a m a g i a s e j a u m a prefiguração d a ciência, n o s e n t i d o
hanunõos a p o s s e d e m a i s d e 1 5 0 t e r m o s p a r a d e s c r e v e r a s p a r t e s d e q u e e l a a l g u m a s v e z e s também t r i u n f a ) m a s não são p e l o género
constitutivas e as propriedades d o svegetais; o spinatubos, entre o s d e operações m e n t a i s q u e a m b a s supõem, e q u e d i f e r e m m e n o s
q u a i s f o r a m e n c o n t r a d a s m a i s d e 6 0 0 p l a n t a s d o t a d a s d e n o m e , são q u a n t o à n a t u r e z a d o q u e q u a n t o a o t i p o d e fenómenos a o s q u a i s s e
p o s s u i d o r e s d e u m c o m p l e x o c o n h e c i m e n t o s o b r e a s u a utilização e aplicam". 6

d e m a i s d e c e m t e r m o s v o l t a d o s p a r a a descrição d a s s u a s p a r t e s o u E m outras palavras: o s dois tipos d e p e n s a m e n t o — o selva-


d e s e u s a s p e c t o s característicos. U m s a b e r d e s e n v o l v i d o d e m o d o g e m e o científico — não c o r r e s p o n d e m a e t a p a s s u p e r i o r e s o u i n f e -
tão sistemático — c o n c l u i Lévi-Strauss — n ã o é possível d e s e o b t e r r i o r e s d o d e s e n v o l v i m e n t o h u m a n o , m a s a d i s t i n t o s "níveis estragé-
a p e n a s e m função d o s e u v a l o r prático. E x i s t e m , i n c l u s i v e , t r i b o s g i c o s através d o s q u a i s a n a t u r e z a s e d e i x a a t a c a r p e l o c o n h e c i m e n t o
q u e e n u m e r a m , n o m e i a m e o r d e n a m répteis q u e n ã o serão c o m i d o s científico: s e n d o q u e u m d e l e s e n c o n t r a - s e a p r o x i m a d a m e n t e a j u s -
n e m p o s s u e m q u a l q u e r f i m utilitário. " A p a r t i r d e t a i s e x e m p l o s , t a d o a o d a percepção e d a imaginação e o o u t r o , d e s l o c a d o " . N o 7

q u e p o d e r i a m s e r e n c o n t r a d o s e m t o d a s a s regiões d o m u n d o , é pensamento selvagem, q u eé mais ligado à sensibilidade, " o s con-


possível i n f e r i r q u e n ã o s e c o n h e c e m a s espécies a n i m a i s e v e g e t a i s c e i t o s estão s u b m e r s o s e m i m a g e n s " ; n o p e n s a m e n t o m o d e r n o , a s
p o r q u e e l a s são úteis, m a s s i m q u e e l a s são c l a s s i f i c a d a s c o m o úteis i m a g e n s , o s d a d o s i m e d i a t o s d a s e n s i b i l i d a d e e a s u a elaboração
4
o u i n t e r e s s a n t e s p o r q u e são, p r i m e i r a m e n t e , c o n h e c i d a s . " T r a t a - imaginária estão s u b o r d i n a d o s a o s c o n c e i t o s .
se d e u m s a b e r q u e ê p r o d u z i d o e m s o c i e d a d e s q u e a t r i b u e m u m
O a n t i e v o l u c i o n i s m o , posição a q u e e s t e s raciocínios c o n d u -
l u g a r f u n d a m e n t a l às a t i v i d a d e s i n t e l e c t u a i s . C o n s e q u e n t e m e n t e , o
z e m , f o i e x a c e r b a d o p o r Lévi-Strauss até o p o n t o d e i m p l i c a r u m a
que diferencia o "pensamento selvagem" d o que o autor chama de
negação d a p o s s i b i l i d a d e d e existência d e q u a l q u e r explicação u n i -
" p e n s a m e n t o d o m e s t i c a d o " o u científico n ã o é q u e e s t e p o s s u a
f i c a d a a c e r c a d a história. D i a n t e d e s t e t e m a , Lévi-Strauss r e t i r a a s
conclusões m a i s r a d i c a i s d o s e u f o r m a l i s m o e s t r u t u r a l i s t a : a s u b o r -
4
C l a u d e Lévi-Strauss, E l Pensamiento Salvaje, México, F o n d o d e C u l t u r a Econó-
m i c a , 1964, p . 2 4 ( t r e c h o q u e p o d e s e r e n c o n t r a d o à p . 2 9 d a t r a d . p u b l i c a d a n o 5
I d e m , p . 3 1 ( p . 34 n a t r a d . p u b l i c a d a n o B r a s i l ) .
B r a s i l , O Pensamento Selvagem, São P a u l o , C i a . E d i t o r a N a c i o n a l , 2? e d . , 6
I d e m , p . 30 ( i d e m , p . 34).
1976). 7
I d e m , p . 33 ( i d e m , p . 3 6 ) .
22 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 23

dinação d a história à e s t r u t u r a , d a e s t r u t u r a a o c o n h e c i m e n t o f o r - M U I dislância teórica e metodológica d i a n t e d o f u n c i o n a l i s m o e d o


m a l q u e d e l a s e p o s s u i e d e s t e c o n h e c i m e n t o à codificação. A i n d a l u l t u r a l i s m o , a p e s a r d o s e u esforço e m n ã o r e p e t i r a i n g e n u i d a d e
q u e c a d a s o c i e d a d e p o s s u a a s s u a s p e c u l i a r i d a d e s , é possível c o m - di i t a s c o r r e n t e s , a c a b e p o r c o i n c i d i r c o m a s s u a s implicações f i l o -
pararmos u m a s c o m as outras porque c o m p a r t i l h a m u m a m e s m a Òficas e políticas. O s antropólogos i n g l e s e s ( M a l i n o w s k i , R a d c l i f f e -
lógica s o c i a l e i n t e l e c t u a l . A f i n a l d e c o n t a s , a m a g i a e a ciência l l t o w n , E v a n s - P r i t c h a r d ) e s t u d a r a m as sociedades arcaicas c o m a
pressupõem operações m e n t a i s s e m e l h a n t e s , o s m i t o s o u o s i s t e m a f i n a l i d a d e d e c o m p r e e n d e r o s s e u s f i n s intrínsecos. E n x e r g a r a m
d e p a r e n t e s c o são construídos a p a r t i r d e e s t r u t u r a s a n á l o g a s . E s t a c n t l a u m a d e l a s c o m o u m s i s t e m a d e instituições e " m e c a n i s m o s d e
coincidência s e r i a u m a coincidência e n t r e lógicas sincrônicas e n ã o Cooperação v o l t a d o p a r a a satisfação d a s n e c e s s i d a d e s s o c i a i s "
9
e n t r e p r o c e s s o s c o n v e r g e n t e s ; e m v i r t u d e d i s s o , Lévi-Strauss a c r e - ( l . u c y M a i r ) , c u j o f u n c i o n a m e n t o , se a n a l i s a d o e m si m e s m o , é
d i t a q u e a o s e e s t a b e l e c e r e m relações e n t r e c u l t u r a s d i s t i n t a s s e j a percebido c o m o coerente, e tendendo a persistir devido à s u a f u n -
m a i s c o r r e t o estendê-las n o espaço d o q u e ordená-las n o t e m p o . O i tonalidade. D e m o d o diferente d o s ingleses, q u e s u s t e n t a v a m a
p r o g r e s s o n ã o é necessário n e m contínuo; o u m e l h o r , o c o r r e a t r a - existência d e u m a p r o f u n d a u n i v e r s a l i d a d e e d e u m a equivalência
vés d e s a l t o s q u e n ã o c a m i n h a m s e m p r e n a m e s m a direção. C o m o d a s instituições, p o r s e r e m r e s p o s t a s a n e c e s s i d a d e s u n i v e r s a i s ( p a r a
a l t e r n a t i v a a o e v o l u c i o n i s m o , q u e a história e a a n t r o p o l o g i a a d o - o d e s e j o s e x u a l a r e s p o s t a s e r i a a família, p a r a a f o m e , a o r g a n i z a -
t a r a m d a b i o l o g i a d o século X I X , Lévi-Strauss p r o p õ e e s q u e m a s ção económica, p a r a a angústia, a religião), a antropóloga n o r t e -
q u e s e b a s e i a m n a s concepções probabilísticas, d o a c a s o e d a n e c e s - a m e r i c a n a R u t h B e n e d i c t a f i r m a v a q u e a s instituições n ã o p a s s a m
s i d a d e , d a física e b i o l o g i a contemporâneas. E l e s u g e r e u m a c o n - de f o r m a s v a z i a s c u j a u n i v e r s a l i d a d e é i n s i g n i f i c a n t e p o r q u e cada
cepção d o d e s e n v o l v i m e n t o histórico q u e é s e m e l h a n t e a o m o v i - s o c i e d a d e a s p r e e n c h e d e m o d o d i f e r e n t e . O antropólogo, então,
mento d o cavalo n o j o g o de xadrez, que possui sempre à sua dispo- d e v e p r e o c u p a r - s e c o m e s t a d i v e r s i d a d e c o n c r e t a , e , a o invés d e
sição m u i t a s p o s s i b i l i d a d e s d e avanço, m a s q u e n u n c a s e e n c a m i - v o l t a r - s e p a r a a comparação e n t r e a s c u l t u r a s , d e v e e x a m i n a r a s
n h a m para o m e s m o sentido. A humanidade, e m seu proceso de suas p a r t i c u l a r i d a d e s . H e r s k o v i t s c o n c l u i q u e esta p l u r a l i d a d e d e
d e s e n v o l v i m e n t o , não se p a r e c e c o m u m p e r s o n a g e m q u e a o s u b i r organizações e experiências s o c i a i s , c a d a u m a d o t a d a d e s e n t i d o
n u m a e s c a d a s o m a , a c a d a m o v i m e n t o , u m n o v o d e g r a u a o s q u e já próprio, i n i b e j u l g a m e n t o s q u e s e j a m b a s e a d o s e m s i s t e m a s d e
h a v i a c o n q u i s t a d o ; a o contrário, a s s e m e l h a - s e a o j o g a d o r c u j a v a l o r e s q u e são a l h e i o s a e s t e s e n t i d o . T o d o e t n o c e n t r i s m o t o r n a -
c h a n c e está r e p a r t i d a e n t r e vários d a d o s e q u e , a c a d a lançamento, se, d e s t e m o d o , d e s q u a l i f i c a n d o , s e n d o q u e s e d e v e a d m i t i r o r e l a t i -
os e s p a r r a m a sobre a mesa, p r o d u z i n d o resultados diferentes. O v i s m o cultural: cada sociedade possui o direito de desenvolver-se de
q u e s e g a n h a p o r u m l a d o s e m p r e s e está a r r i s c a d o a p e r d e r p o r m o d o autónomo, i n e x i s t i n d o u m a t e o r i a acerca d a h u m a n i d a d e
o u t r o ; s e n d o q u e s o m e n t e d e t e m p o s e m t e m p o s a história t o r n a - s e que seja d o t a d a d e u m alcance universal e capaz, p o r t a n t o , d e
a c u m u l a t i v a , o u s e j a , o s r e s u l t a d o s o b t i d o s são s o m a d o s c o m p o n d o impor-se diante d e u m a o u t r a r e i v i n d i c a n d o q u a l q u e r t i p o d e supe-
u m a combinação favorável. 8
rioridade.
R e s t a m d o i s p r o b l e m a s s e m solução. U m d e caráter e p i s t e m o -
lógico: c o m o é possível a construção d e u m s a b e r q u e p o s s u a v a l i -
R e l a t i v i s m o c u l t u r a l o u crítica d a d e s i g u a l d a d e ? d a d e u n i v e r s a l i n d o além d a s p a r t i c u l a r i d a d e s d e c a d a c u l t u r a s e m
s e r e s t e s a b e r a imposição d o s padrões d e u m a c u l t u r a a t o d a s a s
E s t a t e o r i a d a história p e r m i t e u m a explicação d a s diferenças d e m a i s ? O o u t r o p r o b l e m a é d e caráter político: c o m o é possível o
e n t r e as c u l t u r a s ? S o m o s capazes d e e n t e n d e r p o r q u e t a n t a s vezes estabelecimento, n u mm u n d o cada v e z mais (conflituosamente)
as diferenças s e t r a n s f o r m a m e m d e s i g u a l d a d e s o u são p o r e l a s p r o - i n t e r - r e l a c i o n a d o , d e critérios s u p r a c u l t u r a i s d e convivência e d e
d u z i d a s ? É c u r i o s o q u e o e s t r u t u r a l i s m o d e Lévi-Strauss, a p e s a r d a interação?

9
8
C l a u d e Lévi-Strauss, Rateei H i s l o i r e , p p . 3 8 - 3 9 ( p p . 357-358 d a t r a d . p u b l i c a d a L u c y M a i r , Natives Policies, 1937. C i t a d o p o r G e r a r d L e c l e r e . Anlropologie et
no Brasil). colonialisme. P a r i s , F a y a r d , 1972, p . 1 5 1 .
24 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 25

E m 1 9 4 7 a Associação Antropológica N o r t e - A m e r i c a n a , g e n e r a l i z a d a p a r a t o d a s as e p i s t e m o l o g i a s o c i d e n t a i s . P o r f i m , per-


t e n d o e m v i s t a " o g r a n d e número d e s o c i e d a d e s q u e e n t r a r a m e m g u n t a m o s : c o m o s e p o d e e s t a b e l e c e r u m c o n h e c i m e n t o científico
estreito c o n t a t o c o m o m u n d o m o d e r n o e a diversidade d o s seus q u e s u g e r e a s v e r d a d e s p a r c i a i s , etnocêntricas d e c a d a c u l t u r a , c o m
m o d o s d e v i d a " , a p r e s e n t o u às Nações U n i d a s u m p r o j e t o d e D e c l a - b a s e n e s t e c e t i c i s m o r e l a t i v i s t a ? C o m o d e l i n e a r u m a política q u e
ração s o b r e o s D i r e i t o s d o H o m e m q u e a s p i r a v a r e s p o n d e r a e s t a s e j a a d e q u a d a à situação d e interdependência q u e já e x i s t e n o m u n -
p e r g u n t a : " C o m o a declaração p r o p o s t a p o d e s e r aplicável a t o d o s d o e à homogeneização planetária alcançada p e l a s políticas i m p e -
o s s e r e s h u m a n o s e não s e r u m a declaração d e d i r e i t o s c o n c e b i d a r i a l i s t a s , se c o n t a m o s a p e n a s c o m u m p l u r a l i s m o q u e se baseia n u m
u n i c a m e n t e n o s t e r m o s d o s v a l o r e s d o m i n a n t e s n o s países d a E u r o - r e s p e i t o v o l u n t a r i s t a o u verborrágico, i n d i f e r e n t e às c a u s a s c o n c r e -
p a O c i d e n t a l e d a América d o N o r t e ? " A p a r t i r " d o s r e s u l t a d o s tas d a d i v e r s i d a d e e d a desigualdade e n t r e as c u l t u r a s ?
d a s ciências h u m a n a s " f o r a m s u g e r i d o s três p o n t o s d e a c o r d o : Lévi-Strauss c o l o c a a e s t r u t u r a , e não o indivíduo, c o m o
" 1 ? ) O indivíduo c o n c r e t i z a a s u a p e r s o n a l i d a d e através d a c u l t u r a ; p o n t o d e p a r t i d a d a s u a t e o r i a , não s a c r a l i z a a s avaliações e m p i r i s -
o r e s p e i t o às diferenças i n d i v i d u a i s i m p l i c a , p o r t a n t o , o r e s p e i t o às t a s c o m o o s p r o c e d i m e n t o s e x c l u s i v o s d e u m a demonstração n e m
diferenças c u l t u r a i s ; 2 ? ) O r e s p e i t o p o r e s t a diferença c u l t u r a é váli- e n c a r a o s m i t o s c o m a i n s e n s i b i l i d a d e d e t a n t o s antropólogos p o s i -
d o c o m o consequência d o f a t o científico d e q u e não s e c o n s e g u i u t i v i s t a s . E n t r e t a n t o , a s u a b u s c a p o r u m a concepção m u l t i c e n t r a d a
d e s c o b r i r n e n h u m a técnica d e avaliação q u a l i t a t i v a d a s c u l t u r a s " d a história — c o r r e t a s e l e v a r e m consideração a s inter-relações e o s
( . . . ) " O s f i n s q u e o r i e n t a m a v i d a d e u m p o v o são e v i d e n t e s p o r s i c o n f l i t o s — " p e r c e b e " a s diferenças c o m o p r o d u t o d o a c a s o , c o m
m e s m o s e m s e u s i g n i f i c a d o p a r a e s t e p o v o , não p o d e n d o s e r s u p e - a trivialidade de q u e m esparrama os dados sobre u m amesa de
rados por n e n h u m p o n t o de vista, incluindo o das pseudoverdades j o g o . T a l v e z a s u a o u t r a metáfora, a d o " c a v a l o d e x a d r e z q u e t e m
e t e r n a s " ; 3 ? ) " O s padrões e v a l o r e s são r e l a t i v o s à c u l t u r a d a q u a l à s u a disposição m u i t a s p o s s i b i l i d a d e s d e avanço, m a s q u e n u n c a se
d e r i v a m , d e m o d o q u e t o d a s a s t e n t a t i v a s d e formulação d e p o s t u - e n c a m i n h a m p a r a o m e s m o s e n t i d o " , d e v i d o às implicações políti-
l a d o s q u e d e r i v e m d e crenças o u códigos m o r a i s d e u m a c u l t u r a c a s d e s t e j o g o , p u d e s s e tê-lo f e i t o p e r g u n t a r - s e a s i m e s m o s e a
d e v e m s e r , d e s t e m o d o , r e t i r a d o s d a aplicação d e t o d a Declaração e s c o l h a d e u m a direção o u d e o u t r a n o p r o c e s s o d e d e s e n v o l v i m e n t o
1 0
dos Direitos d o H o m e m à h u m a n i d a d e c o m o u m t o d o . " s o c i a l n ã o d e p e n d e r i a d e q u e m m o v e o s c a v a l o s e o s peões. M a s a
É b a s t a n t e d i v e r t i d o r e g i s t r a r q u a n t a s vezes este p r o j e t o , q u e teoria estruturalista d a sociedade neste p o n t o assemelha-se e m
t e m p o r o b j e t i v o evitar o e t n o c e n t r i s m o , recorre a ele; quantas d e m a s i a às t e o r i a s d o c u l t u r a l i s m o e d o f u n c i o n a l i s m o ; a o m n i d e -
v e z e s s u a a l e g a d a fundamentação científica não p a s s a d e t e n d e n - terminação sinerônica d a e s t r u t u r a não está m u i t o l o n g e d a t e o r i a
c i o s a argumentação ideológica. O s e u p o n t o d e p a r t i d a é o i n d i - d o c o n s e n s o e d a interdependência harmónica d a s funções n a s
víduo — c o l o c a d o n e s t e l u g a r p e l o l i b e r a l i s m o clássico — e não a o u t r a s d u a s t e o r i a s . A s três, d e s t e m o d o , t o r n a m - s e i n c a p a z e s d e
estrutura social o ua solidariedade o ua igualdade entre os homens, p e n s a r a s transformações e o s c o n f l i t o s . O p e n s a m e n t o l i b e r a l j o g a
c o m o s u s t e n t a r i a m o u t r a s t e o r i a s científicas o u políticas. O r e s - o x a d r e z c o m peças d i s t i n t a s e m e d i a n t e estratégias v a r i a d a s , m a s
p e i t o às diferenças é d e f e n d i d o p o r q u e não se e n c o n t r o u n e n h u m a as o r d e n a e n g e n h o s a m e n t e d e m o d o q u e o f u n c i o n a l i s m o , o c u l t u -
técnica d e avaliação q u a l i t a t i v a d a s c u l t u r a s , o q u e s i g n i f i c a q u e ralismo e o estruturalismo sejam somados a o final, "visando a for-
se t r a t a d e u m raciocínio q u e p e r m a n e c e p r e s o a u m a oposição mação d e u m a combinação favorável".
metodológica ( q u a n t i t a t i v o / q u a l i t a t i v o ) q u e é própria d o s a b e r o c i -
dental.
O a t a q u e d e p r e c i a t i v o a o m i t o e à religião ( " a s p s e u d o v e r d a - A transnacionalização d a c u l t u r a
d e s e t e r n a s " ) , além d e n e g a r o p r o c l a m a d o r e s p e i t o a o q u e c a d a
c u l t u r a c o n s i d e r a c o m o v a l i o s o , r e v e l a e m q u e g r a u e s t a declaração D u r a n t e m u i t o t e m p o acreditou-se que o relativismo cultural
é p r e s a a u m a concepção e m p i r i s t a , q u e n e m a o m e n o s p o d e s e r e r a a consequência m a i s a d e q u a d a d a d e s c o b e r t a d e q u e não e x i s -
t e m c u l t u r a s s u p e r i o r e s e i n f e r i o r e s . V i m o s q u e o r e l a t i v i s m o , se
111
C i l a d a p o r G . L e c l e r e , op. cit,, p p . 161-163. c o l a b o r a n a superação d o e t n o c e n t r i s m o , d e i x a e m a b e r t o p r o b l e -
26 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 27

m a s q u e são f u n d a m e n t a i s n u m a t e o r i a d a c u l t u r a : a construção d e A d i v e r s i d a d e d o s padrões c u l t u r a i s , d o s o b j e t o s e d o s hábitos


u m c o n h e c i m e n t o q u e p o s s u a v a l i d a d e u n i v e r s a l e d e critérios q u e d e c o n s u m o é u m f a t o r d e perturbação intolerável p a r a a s n e c e s -
s i r v a m para pensar e resolver o s conflitos e desigualdades intercul- s i d a d e s d a expansão c o n s t a n t e q u e é intrínseca a o c a p i t a l i s m o . A s
turais. d i f e r e n t e s m o d a l i d a d e s d a produção c u l t u r a l ( d a b u r g u e s i a e d o
D e v o dizer, finalmente, q u e o relativismo cultural naufraga p r o l e t a r i a d o , d o c a m p o e d a c i d a d e ) são r e u n i d a s , e até c e r t o p o n t o
p o r q u e s e a p o i a n u m a concepção a t o m i z a d a e ingénua d o p o d e r : h o m o g e n e i z a d a s , d e v i d o à absorção, n u m único s i s t e m a , d e t o d a s
i m a g i n a que cada c u l t u r a existe sem saber n a d a das demais, c o m o as f o r m a s d e p r o d u ç ã o ( m a n u a l e i n d u s t r i a l , r u r a l e u r b a n a ) . A
se o m u n d o f o s s e u m v a s t o m u s e u h a b i t a d o p o r e c o n o m i a s a u t o - homogeneização d a s aspirações não s i g n i f i c a q u e o s r e c u r s o s sãoí •/
s u f i c i e n t e s , c a d a u m a n a s u a v i t r i n a , imperturbável d i a n t e d a p r o x i - i g u a l a d o s . N ã o são e l i m i n a d a s a s distâncias e n t r e a s c l a s s e s n e m
m i d a d e d a s d e m a i s , e r e p e t i n d o i n v a r i a v e l m e n t e o s s e u s códigos, a s entre as sociedades n o aspecto f u n d a m e n t a l — a propriedade e o
s u a s relações i n t e r n a s . A p o u c a u t i l i d a d e d o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l c o n t r o l e d o s m e i o s d e p r o d u ç ã o —, m a s £e c r i a a ilusão d e q u e
t o r n a - s e e v i d e n t e q u a n d o se percebe q u e ele p r o d u z i u u m a n o v a a t i - todos p o d e m desfrutar, real o u virtualmente, d a superioridade d a
tude diante de culturas remotas, mas que é improdutivo quando os c u l t u r a d o m i n a n t e . Q u a l q u e r d e s e n v o l v i m e n t o autónomo o u a l t e r -
" p r i m i t i v o s " são o s s e t o r e s " a t r a s a d o s " d a s u a própria s o c i e d a d e , nativo p o rparte das culturas subalternas é impedido, tanto o seu
q u a n d o são o s c o s t u m e s e crenças q u e e x i s t e m n a s p e r i f e r i a s d a c o n s u m o e p r o d u ç ã o q u a n t o a s u a e s t r u t u r a s o c i a l e l i n g u a g e m são
nossa cidade q u esentimos c o m o estranhos. r e o r d e n a d o s c o m a f i n a l i d a d e d e se t o r n a r e m a d a p t a d o s a o desen-
A t a r e f a m a i s f r e q u e n t e d o antropólogo, n e s t a época d e e x p a n - v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a . C o m o a n a l i s a r e m o s n o s próximos capítu-
são planetária d o c a p i t a l i s m o , não é a d e e s t a b e l e c e r cordões s a n i - l o s , às v e z e s s e p e r m i t e q u e a l g u m a s f e s t a s t r a d i c i o n a i s s u b s i s t a m ,
tários e n t r e a s c u l t u r a s , m a s a v e r i g u a r o q u e a c o n t e c e q u a n d o o m a s o s e u caráter d e celebração c o m u n a l é diluído n o i n t e r i o r d a
r e l a t i v i s m o c u l t u r a l é negado c o t i d i a n a m e n t e , q u a n d o as pessoas organização m e r c a n t i l d o l a z e r turístico; u m a c e r t a sobrevivência
são o b r i g a d a s a e s c o l h e r e n t r e c o s t u m e s e v a l o r e s antagónicos, d e peças d e a r t e s a n a t o é a d m i t i d a , e i n c l u s i v e p r o m o v i d a , c o m o
q u a n d o u m a c o m u n i d a d e indígena p e r c e b e q u e o c a p i t a l i s m o c o n - o b j e t i v o d e p r o p o r c i o n a r u m a r e n d a c o m p l e m e n t a r p a r a a s famí-
v e r t e e m espetáculo p a r a t u r i s t a s a s s u a s f e s t a s t r a d i c i o n a i s , o u l i a s c a m p o n e s a s e a s s i m r e d u z i r o s e u êxodo p a r a a s c i d a d e s , o u
q u a n d o o s m e i o s d e comunicação d e m a s s a c o n v e n c e m o s operários s e j a , p a r a " s o l u c i o n a r " o d e s e m p r e g o e a injustiça d o c a p i t a l i s m o ,
d e u m a c i d a d e d e q u i n z e milhões d e h a b i t a n t e s q u e o s símbolos a c u j a lógica m e r c a n t i l o s d e s e n h o s e a circulação d o s p r o d u t o s
indígenas, r u r a i s , d o m o d o c o m o e s t e s m e i o s o s i n t e r p r e t a m , r e p r e - a r t e s a n a i s t a m b é m estão s u b m e t i d o s .
sentam a sua identidade. Neste contexto, q u esentido pode terfalarmos de relativismo
A s afirmações a r e s p e i t o d a i g u a l d a d e d o género h u m a n o , d a c u l t u r a l ? A " s u p e r a ç ã o " prática d o e t n o c e n t r i s m o q u e o c a p i t a l i s -
r e l a t i v i d a d e d a s c u l t u r a s e d o d i r e i t o d e cada u m a delas d e desen- m o p r o d u z i u f o i a imposição d e s e u s padrões económicos e c u l t u -
v o l v e r a s u a f o r m a própria, são i n c o n s i s t e n t e s s e nós n ã o a s i t u a - r a i s às s o c i e d a d e s d e p e n d e n t e s e às c l a s s e s p o p u l a r e s . À l u z d e s t a
m o s n o i n t e r i o r d a s condições a t u a i s o n d e v i g o r a m a u n i v e r s a l i z a - situação t o r n a - s e difícil a c r e d i t a r m o s n o s a p e l o s favoráveis a o r e s -
ção e a interdependência. N o m u n d o contemporâneo e s t a i n t e r d e - peito perante as particularidades d e cada c u l t u r a , b e m c o m o n o s
pendência não é u m a relação d e r e c i p r o c i d a d e igualitária, c o m o n a s resignarmos diante das formas de etnocentrismo q u e impedem a
s o c i e d a d e s a r c a i c a s o n d e o intercâmbio d e a l i m e n t o s e r a c o n t r o - coexistência harmónica e n t r e a s c u l t u r a s . D e f a t o , e x i s t e m d o i s
l a d o p o r princípios q u e r e s t a b e l e c i a m o equilíbrio. A m u l t i n a c i o n a - t i p o s d e e t n o c e n t r i s m o q u e s u r g e m c o m o consequência d o p r o c e s s o
lização d o c a p i t a l , q u e é a c o m p a n h a d a p e l a transnacionalização d a c a p i t a l i s t a d e t r o c a d e s i g u a l : o i m p e r i a l i s t a , q u e através d a m u l t i n a -
c u l t u r a , impõe u m a t r o c a d e s i g u a l t a n t o a o s b e n s m a t e r i a i s q u a n t o cionalização d a e c o n o m i a e d a c u l t u r a t e n d e a a n u l a r t o d a o r g a n i -
a o s b e n s simbólicos. M e s m o o s g r u p o s étnicos m a i s r e m o t o s são zação s o c i a l q u e s e t r a n s f o r m e e m d i s f u n c i o n a l ; e o d a s nações,
o b r i g a d o s a s u b o r d i n a r a s u a organização económica e c u l t u r a l a o s c l a s s e s e e t n i a s o p r i m i d a s , q u e só p o d e m l i b e r t a r - s e p o r intermédio
m e r c a d o s n a c i o n a i s , e e s t e s t r a n s f o r m a m - s e e m satélites d a metró- d e u m a enérgica auto-afirmação d a s u a s o b e r a n i a económica e d a
p o l e , d e a c o r d o c o m u m a lógica monopolística. s u a i d e n t i d a d e c u l t u r a l . P a r a e s t a s últimas o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l ,
N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 29
28

n o q u e p o s s a t e r d e p o s i t i v o , não é a p e n a s a consequência filosófica q u e l e v e e m consideração o p e s o d e c a d a u m a . C o m o o b s e r v o u


d o c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o p e l a s ciências s o c i a i s , m a s u m a exigên- R o g e r E s t a b l e t , a noção d e c u l t u r a s e t r a n s f o r m a a s s i m n o sinóni-
1 2

c i a política indispensável p a r a q u e c o n s i g a m o a u t o - r e c o n h e c i m e n t o m o i d e a l i s t a d o c o n c e i t o d e formação s o c i a l . Antropólogos c o m o


e o c r e s c i m e n t o c o m a u t o n o m i a . D e v i d o a i s t o , a superestimação R u t h Benedict e n q u a d r a m - s e neste e n f o q u e ; para ela a c u l t u r a é a
d a própria c u l t u r a — c o m o a c o n t e c e n o s m o v i m e n t o s n a c i o n a l i s - f o r m a de u m a sociedade unificada pelos valores d o m i n a n t e s .
t a s , étnicos e d e c l a s s e s e m l u t a p e l a libertação — não é o c o m e t i - P o r e s t a s razões, p r e f e r i m o s r e s t r i n g i r o u s o d o t e r m o cultura
m e n t o d e u m e r r o o u d e u m a p a r c i a l i d a d e a ser l a m e n t a d o , m a s u m p a r a a produção de fenómenos que contribuem, mediante a repre-
m o m e n t o necessário d o p r o c e s s o d e negação d a c u l t u r a d o m i n a n t e sentação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a
e d e auto-afirmaçâo c u l t u r a l . compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou
Os componentes irracionais que c o s t u m a m aparecer e m pro- seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedica-
c e s s o s d e s t e t i p o — a tentação c h a u v i n i s t a — p o d e m s e r c o n t r o l a - das à administração, renovação e reestruturação do sentido.
d o s p o r intermédio d e d o i s r e c u r s o s : u m a autocrítica n o i n t e r i o r d a E s t a restrição a s s e m e l h a - s e à q u e L i n t o n e o u t r o s antropólo-
própria c u l t u r a e o e s t a b e l e c i m e n t o d e u m a interação solidária c o m gos r e a l i z a r a m a o o p o r e m c u l t u r a a sociedade: e m p r e g a r a m a pala-
o s d e m a i s g r u p o s e nações o p r i m i d o s . U m a m a i o r universalização v r a c u l t u r a a p e n a s p a r a o c a m p o d a s crenças, d o s v a l o r e s e i d e i a s ,
d o c o n h e c i m e n t o , l i b e r t o d e t o d o e t n o c e n t r i s m o , só será possível d e i x a n d o d e f o r a a tecnologia, a e c o n o m i a e as condutas e m p i r i c a -
c o m o a d v e n t o d a superação d a s contradições e d a s d e s i g u a l d a d e s . m e n t e observáveis. M a s a definição q u e e s t a m o s p r o p o n d o não
C o m o argumentava Gramsci, terminar c o m o que o etnocentrismo o p e r a u m a identificação d o c u l t u r a l c o m o i d e a l e d o s o c i a l c o m o
possui de distorcivo, "libertar-se das ideologias parciais e falazes", m a t e r i a l , m u i t o m e n o s supõe q u e s e j a possível a n a l i s a r m o s e s t e s
" n ã o é u m p o n t o d e p a r t i d a , m a s d e c h e g a d a " ; a l u t a necessária níveis d e m a n e i r a s e p a r a d a . A o contrário, o s p r o c e s s o s i d e a i s ( d e
p e l a o b j e t i v i d a d e " é a própria l u t a p e l a unificação d o género h u - representação o u reelaboração simbólica) r e m e t e m a e s t r u t u r a s
m a n o " . " M a s i n c l u s i v e n e s t a situação utópica, n a q u a l s e t e r i a m m e n t a i s , a operações d e reprodução o u transformação s o c i a l , a
e x t i n g u i d o a s d e s i g u a l d a d e s , subsistirá u m a d i v e r s i d a d e não c o n - práticas e instituições q u e , p o r m a i s q u e s e o c u p e m d a c u l t u r a ,
traditória d e línguas, c o s t u m e s , c u l t u r a s . i m p l i c a m u m a c e r t a m a t e r i a l i d a d e . E não é só i s t o : não e x i s t e p r o -
dução d e s e n t i d o q u e não e s t e j a i n s e r i d a e m e s t r u t u r a s m a t e r i a i s .
P o d e r i a s e r a s s i n a l a d a , t a m b é m , a equivalência e n t r e a n o s s a
E m direção a u m a t e o r i a d a produção c u l t u r a l definição d e c u l t u r a e o c o n c e i t o m a r x i s t a d e i d e o l o g i a . E f e t i v a -
mente, a teoria d a cultura coincide e mparte c o m a teoria d a ideo-
O conceito mais abrangente de cultura, o q u e a define e m l o g i a , e precisa d e l a p a r a r e l a c i o n a r o s processos c u l t u r a i s c o m as
oposição à n a t u r e z a , a p r e s e n t a d o i s i n c o v e n i e n t e s , q u e f a z e m c o m s u a s condições s o c i a i s d e p r o d u ç ã o . E n t r e t a n t o , n e m t u d o é ideoló-
q u e n o s d e c i d a m o s a descartá-lo. Já m e n c i o n a m o s q u e o s e u e n f o - g i c o n o s fenómenos c u l t u r a i s s e e n t e n d e r m o s q u e a i d e o l o g i a p o s s u i
q u e r e s u l t o u n u m a equiparação d e t o d a s a s c u l t u r a s , m a s não p r o - c o m o traço d i s t i n t i v o , d e a c o r d o c o m a m a i o r i a d o s a u t o r e s m a r x i s -
d u z i u elementos capazes de pensar as desigualdades existentes entre t a s , u m a deformação d o r e a l m o t i v a d a p e l o s i n t e r e s s e s d e c l a s s e .
elas. P o r o u t r o l a d o , este e n f o q u e e n g l o b a , s o bo n o m e d e c u l t u r a , M a n t e m o s o t e r m o cultura, s e m o substituirmos p o r ideologia, pre-
t o d a s a s instâncias e m o d e l o s d e c o m p o r t a m e n t o d e u m a formação c i s a m e n t e p a r a alcançarmos o s f a t o s n u m s e n t i d o m a i s a m p l o .
s o c i a l — a organização económica, a s relações s o c i a i s , a s e s t r u t u r a s T o d a p r o d u ç ã o d e s i g n i f i c a d o ( f i l o s o f i a , a r t e , a própria ciência) é
m e n t a i s , a s práticas artísticas e t c . — s e m c o n s t r u i r u m a h i e r a r q u i a passível d e s e r e x p l i c a d a e m t e r m o s d e relação c o m a s s u a s d e t e r m i -
nações s o c i a i s . M a s e s s a explicação não e s g o t a o fenómeno. A c u l -
t u r a não a p e n a s r e p r e s e n t a a s o c i e d a d e ; c u m p r e t a m b é m , d e n t r o
" A n t o n i o G r a m s c i , E l M a t e r i a l i s m o histórico y l a f i l o s o f i a de Benedetto Croce,
B u e n o s A i r e s , N u e v a V i s i o n , 1973, p p . 1 5 0 - 1 5 1 . ( p . 170 d a t r a d . b r a s i l e i r a , A 1 2 s
R o g e r E s t a b l e t , " C u l t u r e e t idéologie", Cahiers marxistes leninistes, Paris, n?
Concepção Dialética da História, R i o d e J a n e i r o , E d . Civilização B r a s i l e i r a ,
12-13, j u l . - o u t . 1 9 6 6 , p p . 7 - 2 6 .
1978, 2? e d . ) .
30 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 31

d a s n e c e s s i d a d e s d e produção d o s e n t i d o , a função d e r e e l a b o r a r a s p e l a conferência, a o i r m o s a o c o n c e r t o c o m p r a m o s i n g r e s s o s q u e


e s t r u t u r a s s o c i a i s e i m a g i n a r o u t r a s n o v a s . Além d e representar a s f i n a n c i a m o espetáculo, e além d o m a i s , e s s e s f a t o s n o s r e l a c i o n a m
relações d e p r o d u ç ã o , c o n t r i b u i p a r a a s u a reprodução, transfor- com as pessoas c o m q u e m t r a b a l h a m o s d e m o d o diferente d o q u e
mação e p a r a a criação d e o u t r a s relações. se disséssemos t e r i d o a u m a apresentação d e rock o u a s s i s t i r a
A l g u n s a u t o r e s , c u j a a b o r d a g e m será u t i l i z a d a n a s páginas danças indígenas.
s e g u i n t e s , incluíram c o m o p a r t e d a t e o r i a m a r x i s t a d a i d e o l o g i a As dificuldades a respeito de c o m o vincular a infra-estrutura
e s t a função d e i n s t r u m e n t o p a r a a reprodução e transformação e a s u p e r e s t r u t u r a s u r g i r a m e m consequência d e u m a interpretação
s o c i a l . N ã o o b s t a n t e , p r e f e r i m o s i n s i s t i r n a existência d e u m a d i f e - d a diferença c o m o c o r r e s p o n d e n d o a u m a divisão. N a r e a l i d a d e a
rença e n t r e a c u l t u r a e a i d e o l o g i a , d e v i d o a o f a t o d e q u e c o n t i n u a economia e a cultura c a m i n h a m imbricadas u m a n aoutra. Podem
p r e v a l e c e n d o n a b i b l i o g r a f i a a interpretação d a i d e o l o g i a c o m o s e r d i s t i n g u i d a s e n q u a n t o instâncias teórico-metodológicas, s e p a r a -
u m a representação d i s t o r c i d a d o r e a l . d a s n o nível d a representação científica, m a s e s t a diferenciação,
Q u a i s são a s consequências metodológicas d a análise d a c u l - q u e é necessária n o m o m e n t o analítico d o c o n h e c i m e n t o — c o m
t u r a c o m o u m s i s t e m a d e produção? O d e s e n v o l v i m e n t o ( e m b o r a c e r t o a p o i o n a s aparências —, d e v e s e r s u p e r a d a n u m a síntese q u e
a i n d a i n s u f i c i e n t e ) d e u m a t e o r i a d a produção simbólica o u c u l t u r a l dê c o n t a d a s u a integração. E x i s t e a n e c e s s i d a d e d e s e d a r c o n t a
é o q u e está p e r m i t i n d o a concretização n e s t e c a m p o d a r u p t u r a t a n t o d a unidade q u a n t o d a distinção e n t r e o s níveis q u e compõem
c o m o i d e a l i s m o q u e j á f o i r e a l i z a d a p e l a s ciências s o c i a i s e m a t o t a l i d a d e s o c i a l . U m c o n h e c i m e n t o científico d a s s u p e r e s t r u -
o u t r o s níveis. R e s u m i r e m o s e m a l g u m a s páginas o t r i p l o m o v i - t u r a s n ã o é possível s e n ã o a s d i s t i n g u i m o s d a b a s e económica e não
m e n t o i m p l i c a d o n e s t a reorganização d a t e o r i a d a c u l t u r a . a n a l i s a m o s a s f o r m a s através d a s q u a i s e s t a b a s e a s d e t e r m i n a :
A f i r m a r q u e a c u l t u r a é u m p r o c e s s o s o c i a l d e produção s i g n i - a g i n d o s o b r e a s i d e o l o g i a s políticas, a m o r a l f a m i l i a r o u a l i t e r a t u r a
f i c a , a n t e s d e t u d o , o p o r - s e às concepções q u e e n t e n d e m a c u l t u r a c o m r a p i d e z e eficiência d i s t i n t a s . M a s t e n d o e m v i s t a q u e convém
c o m o u m a t o e s p i r i t u a l (expressão, criação) o u c o m o u m a m a n i f e s - q u e d i s c r i m i n e m o s a e s p e c i f i c i d a d e d e c a d a instância c o m a f i n a l i -
tação a l h e i a , e x t e r i o r e p o s t e r i o r às relações d e p r o d u ç ã o ( s e n d o d a d e d e p e r c e b e r m o s o s e u m o d o próprio d e a g i r , não s e d e v e e s q u e -
u m a s i m p l e s representação d e l a s ) . H o j e p o d e m o s e n t e n d e r p o r q u e c e r a s u a situação d e dependência recíproca p a r a n ã o p e r d e r m o s o
a c u l t u r a c o n s t i t u i u m nível específico d o s i s t e m a s o c i a l e p o r s u a s i g n i f i c a d o q u e l h e s é atribuído p e l a t o t a l i d a d e à q u a l p e r t e n c e m .
v e z p o r q u e não p o d e s e r e s t u d a d a i s o l a d a m e n t e . Não a p e n a s p o r - O estudo das sociedades arcaicas, b e m c o m o o das sociedades
q u e está determinada p e l o s o c i a l , e n t e n d i d o c o m o a l g o d i s t i n t o d a c a p i t a l i s t a s , d e m o n s t r o u q u e o económico e o c u l t u r a l compõem
c u l t u r a , q u e é i n c o r p o r a d o a p a r t i r d o s e u e x t e r i o r , m a s p o r q u e está u m a t o t a l i d a d e indissolúvel. Q u a l q u e r p r o c e s s o d e p r o d u ç ã o m a t e -
inserida e m t o d o f a t o sócio-econômico. Q u a l q u e r prática é s i m u l t a - r i a l i n c l u i d e s d e o s e u n a s c i m e n t o i n g r e d i e n t e s i d e a i s a t i v o s , q u e são
n e a m e n t e económica e simbólica, u m a v e z q u e a g i m o s através d e l a , necessários p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o d a i n f r a - e s t r u t u r a . O p e n s a -
construímos u m a representação q u e l h e a t r i b u i u m s i g n i f i c a d o . m e n t o n ã o é u m m e r o r e f l e x o d a s forças p r o d u t i v a s : e x i s t i n d o n e l a s
C o m p r a r u m v e s t i d o o u t r a n s p o r t a r - s e p a r a o t r a b a l h o , d u a s práti- d e s d e o s e u começo, c o n f i g u r a - s e c o m o u m a condição i n t e r n a d a
c a s sócio-econômicas h a b i t u a i s , estão c a r r e g a d a s d e s e n t i d o simbó- s u a manifestação. P a r a q u e e x i s t a m u m t r a t o r o u u m c o m p u t a d o r ,
l i c o : o v e s t i d o o u o m e i o d e t r a n s p o r t e — além d o s e u v a l o r d e u s o : f a t o s m a t e r i a i s q u e o r i g i n a r a m mudanças i m p o r t a n t e s n o d e s e n v o l -
cobrir-nos, trasportar-nos — significam, de acordo c o m o tecido e v i m e n t o d a s forças p r o d u t i v a s e d a s relações s o c i a i s d e produção,
o d e s e n h o d o v e s t i d o , o u t e n d o e m v i s t a s e u t i l i z a m o s u m ônibus o u foi preciso q u e o trator o u o c o m p u t a d o r , antes d e t o m a r u m a
u m c a r r o , e s u a m a r c a , q u e p e r t e n c e m o s a u m a d e t e r m i n a d a classe f o r m a material, tivessem sido concebidos p o r engenheiros; oq u e
s o c i a l . A s características d a r o u p a o u d o c a r r o c o m u n i c a m a l g o d a não s i g n i f i c a q u e t e n h a m b r o t a d o e x c l u s i v a m e n t e a p a r t i r d e c o n s -
n o s s a inserção s o c i a l , o u d o l u g a r a o q u a l a s p i r a m o s , d o q u e q u e r e - truções i n t e l e c t u a i s , q u e o i d e a l p r o d u z a o m a t e r i a l , p o r q u e , p o r
m o s t r a n s m i t i r a o s o u t r o s a o usá-los. D e m o d o i n v e r s o , q u a l q u e r o u t r o l a d o , f o i necessário u m c e r t o d e s e n v o l v i m e n t o d a b a s e m a t e -
f a t o c u l t u r a l — a s s i s t i r a u m c o n c e r t o , p r e p a r a r u m a conferência r i a l , d a s forças s o c i a i s , p a r a q u e e s t a s máquinas p u d e s s e m s e r p e n -
— p o s s u i s e m p r e u m nível sócio-econômico implícito: p a g a r a m - m e s a d a s . D e m o d o s e m e l h a n t e , a s relações d e p a r e n t e s c o o u d e p r o d u -
0Jjfo.oo£-J [ B i b l i o t e c a Universitária
N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I
UFSC
32 A S C U L T U R A S P O > U L i ' i R C 0 M O O)'iPIT)'iLI0HIO J3

ção não p o d e m s e r m o d i f i c a d a s s e m q u e s i m u l t a n e a m e n t e s e j a m teatral n u m caso, e n o o u t r o , pela estrutura d o s grupos o u institui-


d e f i n i d a s n o v a s r e g r a s d e filiação, d e aliança e d e p r o p r i e d a d e , q u e ções q u e o r g a n i z a m a s danças.
não são representações a posteriori d a s m u d a n ç a s , m a s c o m p o - P o r t a n t o , a análise d e v e m o v e r - s e e m d o i s níveis: p o r u m l a d o
n e n t e s d o p r o c e s s o q u e d e v e m e x i s t i r d e s d e o s e u começo. E s t a examinará o s p r o d u t o s c u l t u r a i s c o m o representações: verificando
p a r t e i d e a l , p r e s e n t e e m t o d o d e s e n v o l v i m e n t o m a t e r i a l , não é, c o m o o s c o n f l i t o s sociais aparecem d r a m a t i z a d o s n u m a o b r a teatral
então, a p e n a s u m conteúdo d a consciência; e x i s t e a o m e s m o t e m p o o u n u m a dança, q u a i s a s c l a s s e s q u e s e e n c o n t r a m r e p r e s e n t a d a s ,
n a s relações s o c i a i s , q u e são, p o r t a n t o , também relações s i g n i f i - c o m o são e m p r e g a d o s o s p r o c e d i m e n t o s f o r m a i s d e c a d a l i n g u a -
cativas. 1 1
g e m p a r a s u g e r i r a s u a p e r s p e c t i v a específica; n e s t e c a s o , e s t a b e -
E m s e g u n d o l u g a r , f a l a r d a c u l t u r a c o m o produção supõe q u e l e c e - s e u m a relação e n t r e a realidade s o c i a l e a s u a representação
se l e v e e m consideração o s p r o c e s s o s p r o d u t i v o s , m a t e r i a i s , q u e são i d e a l . P o r o u t r o l a d o , relacionar-se-á a estrutura social c o m a estru-
necessários p a r a a invenção, o c o n h e c i m e n t o o u a representação d e tura do campo teatral e c o m a estrutura do campo da dança, s e n d o
a l g u m a c o i s a . N u m s e n t i d o g e r a l , a produção d e c u l t u r a s u r g e d a s q u e c o n s i d e r a m o s c o m o a e s t r u t u r a d e c a d a c a m p o a s relações
n e c e s s i d a d e s g l o b a i s d e u m s i s t e m a s o c i a l e está d e t e r m i n a d a p o r s o c i a i s q u e o s a r t i s t a s d e t e a t r o e o s dançarinos mantêm c o m o s
e l e . M a i s e s p e c i f i c a m e n t e , e x i s t e u m a organização m a t e r i a l própria d e m a i s c o m p o n e n t e s d o s s e u s p r o c e s s o s estéticos: o s m e i o s d e p r o -
p a r a c a d a produção c u l t u r a l e q u e t o r n a possível a s u a existência dução ( m a t e r i a i s , p r o c e d i m e n t o s ) e a s relações s o c i a i s d e produção
(as u n i v e r s i d a d e s p a r a a produção d o c o n h e c i m e n t o , a s e d i t o r a s ( c o m o público, c o m a q u e l e s q u e o s f i n a n c i a m , c o m o s o r g a n i s m o s
1 4
p a r a a produção d o s l i v r o s e t c ) . A análise d e s t a s instituições, d a s estatais e t c . ) .
condições s o c i a i s q u e e l a s e s t a b e l e c e m p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o d o s E m t e r c e i r o l u g a r , o e s t i l o d a c u l t u r a c o m o produção supõe
p r o d u t o s c u l t u r a i s , é d e c i s i v a p a r a a interpretação d e s t e s p r o d u t o s . a consideração não a p e n a s d o a t o d e p r o d u z i r , m a s d e t o d o s o s
O r e c o n h e c i m e n t o d a importância d e s t a s e s t r u t u r a s intermediárias p a s s o s d e u m p r o c e s s o p r o d u t i v o : a produção, a circulação e a
p o d e e v i t a r d u a s deformações metodológicas: e s t u d a r m o s o s p r o - recepção. T r a t a - s e d e u m o u t r o m o d o d e d i z e r q u e a análise d e u m a
d u t o s c u l t u r a i s , p o r e x e m p l o , u m a peça d e t e a t r o o u u m a dança c u l t u r a não p o d e c o n c e n t r a r - s e n o s o b j e t o s o u n o s b e n s c u l t u r a i s ;
popular, atendendo somente a o sentido interno d a obra, c o m o o d e v e o c u p a r - s e d o p r o c e s s o d e produção e circulação s o c i a l d o s
f a z a crítica i d e a l i s t a , o u s i m p l e s m e n t e r e l a c i o n a r m o s a e s t r u t u r a objetos e d o s significados q u e receptores diferentes lhes a t r i b u e m .
d a o b r a c o m a s o c i e d a d e e m s e u c o n j u n t o . E n t r e a s determinações U m a dança d e m o u r o s e cristãos a p r e s e n t a d a n o i n t e r i o r d e u m a
s o c i a i s g e r a i s e c a d a p r o d u t o c u l t u r a l e x i s t e u m c a m p o intermediá- c o m u n i d a d e indígena p o r e l e s e p a r a e l e s não é a m e s m a dança
r i o , o d a p r o d u ç ã o t e a t r a l , n u m c a s o , o d a dança, n o o u t r o . A i n d a q u a n d o a p r e s e n t a d a n u m t e a t r o u r b a n o p a r a u m público q u e é
q u e s e t r a t e d a m e s m a s o c i e d a d e , a organização s o c i a l a p a r t i r d a a l h e i o a e s s a tradição, e m b o r a a s s u a s e s t r u t u r a s f o r m a i s s e j a m
q u a l são g e r a d a s a s o b r a s t e a t r a i s é d i f e r e n t e d a q u e p r o m o v e a s idênticas. I s t o será v i s t o d e m o d o a i n d a m a i s c l a r o n o capítulo I V ,
danças p o p u l a r e s . A s determinações g e r a i s q u e o c a p i t a l i s m o e x e r - a respeito d o artesanato: as vasilhas produzidas p o r comunidades
c e s o b r e a p r o d u ç ã o artística são m e d i a d a s p e l a e s t r u t u r a d o c a m p o indígenas, d e a c o r d o c o m a s r e g r a s d e produção m a n u a l e o p r e d o -
mínio d o v a l o r d e u s o n u m a e c o n o m i a q u a s e d e auto-subsistência,
c m s e g u i d a são v e n d i d a s n u m m e r c a d o u r b a n o d e a c o r d o c o m o s e u
3
Maurice Godclicr justificou o papel estrutural d eelementos tradicionalmente jul-
valor de troca e finalmente compradas p o r turistas estrangeiros
g a d o s c o m o ideológicos, u t i l i z a n d o m a t e r i a i s clássicos d a e t n o l o g i a ( " I n f r a e s - p e l o s e u v a l o r estético. S o m e n t e u m a visão g l o b a l d o p r o c e s s o p o d e
t r u c t u r a , s o c i e d a d e s e h i s t o r i a " , e m C u i c u i l c o , México, 1980, n " 1). e x p l i c a r o s e n t i d o d e s t a produção d e s l o c a d a n a s u a trajetória s o c i a l .
M . D i s k i n e S . C o o k (Mercados de O a x a c u , México, I N I , 1975) e G i l b e r t o G i m e -
n e z ( C u l t u r a p o p u l a r y religión en cl A n a h u a c , México, C e n t r o d e Estúdios E c u -
ménicos, 1978), e n t r e o u t r o s , o f i z e r a m c o m c a s o s l a t i n o - a m e r i c a n o s , d e m o n s - 14
E s t e p o n t o está d e s e n v o l v i d o c o m m a i o r a m p l i t u d e n o n o s s o l i v r o L u Producción
t r a n d o q u e n a s relações d e produção p o d e m e s t a r a m a l g a m a d a s a s relações d e simbólica. T e o r i a y método en sociologia dei arte, México, S i g l o X X I , 1979, c a p .
p a r e n t e s c o e c o m p a d r i o , e l e m e n t o s jurídicos e políticos c o m o u m p r o g r a m a d e 3 (A Produção Simbólica: teoria e metodologia em sociologia da arte. R i o elc
r e f o r m a aerária, a organização c e r i m o n i a l e simbólica d e u m a f e s t a . J a n e i r o , E d . Civilização B r a s i l e i r a , 1979.)
34 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N 1 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 35

C u l t u r a , reprodução s o c i a l e p o d e r n a n t e e m função d a s modificações d o s i s t e m a p r o d u t i v o e d o s c o n -


f l i t o s s o c i a i s . ( E s t e c o m p l e m e n t o n o s p a r e c e indispensável p a r a r e a -
O s e g u n d o a c o n t e c i m e n t o teórico q u e , j u n t a m e n t e c o m a aná- l i z a r m o s u m a superação d o caráter estático d a concepção a l t h u s s e -
l i s e d o p r o c e s s o p r o d u t i v o , está c o n t r i b u i n d o p a r a s i t u a r a c u l t u r a r i a n a d a i d e o l o g i a , s o b r e t u d o c o m o f o i f o r m u l a d a e m seus p r i m e i -
n o p r o c e s s o d e d e s e n v o l v i m e n t o sócio-econômico é o q u e a i n t e r - ros textos.)
p r e t a c o m o u m i n s t r u m e n t o p a r a a reprodução s o c i a l e d a l u t a p e l a
Através d a reprodução d a a d a p t a ç ã o , a c l a s s e d o m i n a n t e p r o -
h e g e m o n i a . A p a t e r n i d a d e desta corrente p o d e ser rastreada a par-
c u r a c o n s t r u i r e r e n o v a r o c o n s e n s o d a s m a s s a s p a r a a política q u e
tir de M a r x , m a s f o i G r a m s c i q u e m a t r i b u i u a tais conceitos u m
f a v o r e c e o s s e u s privilégios económicos. U m a política hegemónica
l u g a r c e n t r a l n a reflexão s o b r e a c u l t u r a . O d e s e n v o l v i m e n t o d e
integral requer:
s u a s intuições p o r a u t o r e s r e c e n t e s ( A n g e l o B r o c c o l i , C h r i s t i n e
Buci-Glucksmann), simultaneamente c o m os trabalhos de Althus- a ) a p r o p r i e d a d e d o s m e i o s d e produção e a c a p a c i d a d e d e
ser, B a u d e l o t e E s t a b l e t , d e m o n s t r o u a f e c u n d i d a d e d e s t a l i n h a apropriar-se da mais-valia;
p a r a a realização d e análises m a r x i s t a s , s o b r e t u d o a r e s p e i t o d o b ) o c o n t r o l e d o s m e c a n i s m o s necessários p a r a a reprodução
p r o c e s s o e d u c a c i o n a l . C o m u m a f o r t e influência m a r x i s t a , c r i a t i v a - m a t e r i a l e simbólica d a força d e t r a b a l h o e d a s relações d e
m e n t e v i n c u l a d a a o u t r a s tendências sociológicas ( e s p e c i a l m e n t e produção (salário, e s c o l a , m e i o s d e comunicação e o u t r a s
W e b e r ) , P i e r r e B o u r d i e u l e v o u este m o d e l o à sua m a i s a l t a sistema- instituições c a p a z e s d e q u a l i f i c a r o s t r a b a l h a d o r e s e p r o v o -
tização e d e m o n s t r o u o s e u p o d e r e x p l i c a t i v o e m d o i s l i v r o s f u n d a - car o s e u consenso);
m e n t a i s q u e f o r a m d e d i c a d o s a o s i s t e m a d e e n s i n o e à produção, c ) o c o n t r o l e d o s m e c a n i - m o s c o e r c i t i v o s (exército, polícia e
15
circulação e c o n s u m o d o s b e n s artísticos. d e m a i s a p a r e l h o s r e p r e s s i v o s ) c o m o s q u a i s s e j a possível
O s sistemas sociais, para subsistirem, d e v e m reproduzir e a s s e g u r a r a p r o p r i e d a d e d o s m e i o s d e produção e a c o n t i -
r e f o r m u l a r a s s u a s condições d e p r o d u ç ã o . T o d a formação s o c i a l n u i d a d e d a apropriação d a m a i s - v a l i a q u a n d o o c o n s e n s o
r e p r o d u z a força d e t r a b a l h o através d o salário, a qualificação d e s t a se d e b i l i t a o u se p e r d e .
força d e t r a b a l h o através d a educação e , p o r último, r e p r o d u z
c o n s t a n t e m e n t e a a d a p t a ç ã o d o t r a b a l h a d o r à o r d e m s o c i a l através A p r o p r i e d a d e d o s m e i o s d e produção e a c a p a c i d a d e d e a p r o -
d e u m a política cultural-ideológica q u e o r i e n t a t o d a a s u a v i d a , n o priar-se d o excedente é a base d e t o d a h e g e m o n i a . E n t r e t a n t o , e m
t r a b a l h o , n a família, n o l a z e r , d e m o d o q u e t o d a s a s s u a s c o n d u t a s sociedade a l g u m a a h e g e m o n i a d e u m a classe p o d e sustentar-se u n i -
e relações m a n t e n h a m u m s e n t i d o q u e s e j a compatível c o m a o r g a - c a m e n t e m e d i a n t e o p o d e r económico. N o o u t r o e x t r e m o , e n c o n -
nização s o c i a l d o m i n a n t e . A reprodução d a a d a p t a ç ã o a e s t a o r d e m t r a m o s o s m e c a n i s m o s r e p r e s s i v o s q u e , m e d i a n t e a vigilância, a
r e q u e r " p a r a o s operários u m a reprodução d a s u a submissão à intimidação o u o c a s t i g o g a r a n t e m — c o m o último r e c u r s o — a
i d e o l o g i a d o m i n a n t e e p a r a o s a g e n t e s d a exploração u m a r e p r o d u - subordinação d a s c l a s s e s s u b a l t e r n a s . M a s s e t r a t a d e u m último
ção d a c a p a c i d a d e d e m a n i p u l a r a i d e o l o g i a c o r r e t a m e n t e " . 1 6 recurso. N ã o e x i s t e c l a s s e hegemónica q u e p o s s a a s s e g u r a r d u r a n t e
A c r e s c e n t a r e m o s q u e r e q u e r também u m a readaptação d o s t r a b a - m u i t o t e m p o o s e u poder económico a p e n a s c o m o poder repres-
l h a d o r e s às mudanças d a i d e o l o g i a d o m i n a n t e e d o s i s t e m a s o c i a l , e sivo. E n t r e a m b o s d e s e m p e n h a u m p a p e l c h a v e o poder cultural:
u m a renovação — e não s o m e n t e reprodução — d a i d e o l o g i a d o m i -
a ) impõe a s n o r m a s c u l t u r a i s e ideológicas q u e a d a p t a m o s
m e m b r o s d a s o c i e d a d e a u m a e s t r u t u r a económica e polí-
15
P i e r r e B o u r d i e u , L a Reproducción, Elementos p a r u u n a teoria dei sistema de t i c a arbitrária ( c h a m a m o - l a arbitrária n o s e n t i d o d e q u e
ensenanza, B a r c e l o n a , L a i a , 1977.
não e x i s t e m razões biológicas, s o c i a i s o u " e s p i r i t u a i s " ,
P i e r r e B o u r d i e u , L a D i s t i n c t i o n . C r i t i q u e social du jugement. Paris, Minuit,
1979. derivadas de u m a suposta "natureza h u m a n a " o ud a " n a -
1 6
L o u i s A l t h u s s e r , I d e o l o g i a y aparatos ideológicos dei Estado, México, E N A H , t u r e z a d a s c o i s a s " , q u e t o r n e m necessária u m a e s t r u t u r a
p . 15 ( p . 52 d a t r a d . b r a s i l e i r a " A p a r e l h o s d e E s t a d o e I d e o l o g i a " , i h Posições, social determinada);
v o l . 2 , R i o d e J a n e i r o , E d . G r a a l , 1980). b) l e g i t i m a a e s t r u t u r a d o m i n a n t e , faz c o m q u e ela seja perce-
36 NESTOR GARCIA CANCLINl v,< UlT U R A S P O P U L A R E S NO C A P I T A L I S M O 37

b i d a c o m o a f o r m a " n a t u r a l " d a organização s o c i a l , e n c o - i i d i f i c u l d a d e e m p e r c e b e r a s u a própria c u l t u r a c o m o r e l a -


brindo portanto a sua arbitrariedade; > • ' -i i i ndência p a r a u m a absolutização d o u n i v e r s o semântico n o
c ) t o r n a , t a m b é m , o c u l t a a violência q u e e n v o l v e o p r o c e s s o q u t l l v \ \ c m o s p o s s u i u m a importância e n o r m e p a r a u m a ação polí-
d e a d a p t a ç ã o d o indivíduo a u m a e s t r u t u r a e m c u j a c o n s - I runs f o r m a d o r a . C o m o suscitar, a respeito d o m o d o d e vida
trução não i n t e r v e i o e f a z c o m q u e a imposição d e s t a e s t r u - ''. l o i i m p o s t o m a s q u e a s s i m i l a m o s c o m o próprios, o d i s t a n -
t u r a s e j a s e n t i d a c o m o a socialização o u a adequação n e c e s - 1
necessário p a r a q u e s u r j a a visão crítica? E e m s e g u n d o
sária a c a d a u m p a r a a v i d a e m s o c i e d a d e ( e não e m uma n o c r i a r u m a d i s c i p l i n a crítica c o n s t a n t e , c o m o i m p e d i r
sociedade predeterminada). Deste m o d o , o poder cultural, i" i i d e o l o g i a a l t e r n a t i v a através d a q u a l i m p u l s i o n a m o s a m u -
a o m e s m o t e m p o q u e r e p r o d u z a a r b i t r a r i e d a d e sócio- • i m . , , i — o c a t o l i c i s m o p r o g r e s s i s t a , u m n a c i o n a l i s m o etnocêntrico
c u l t u r a l , impõe c o m o necessária e n a t u r a l e s t a a r b i t r a r i e - ' são d o m a r x i s m o e l a b o r a d a d e a c o r d o c o m a s exigências d a
d a d e , o c u l t a e s t e p o d e r económico, f a v o r e c e o s e u e x e r - l u r a — se t r a n s f o r m e n u m s i s t e m a a u t o - s u f i c i e n t e , f e c h a d o
cício e a s u a perpetuação. O b r e si m e s m o , e p o r t a n t o r e s i s t e n t e à renovação? E s t e é u m d o s
p r o b l e m a s m a i s difíceis n o q u e d i z r e s p e i t o a o p a p e l político d a s
A eficácia d e s t a imposição-dissimulação b a s e i a - s e , e m p a r t e , • u l l u r a s p o p u l a r e s , m a s n o s enganaríamos se o reduzíssemos a o s
n o p o d e r g l o b a l d a c l a s s e d o m i n a n t e e n a p o s s i b i l i d a d e d e colocá-lo i l o r e s m e n o s i n s t r u í d o s " . É óbvio q u e o d e s e n v o l v i m e n t o d a
e m prática através d o E s t a d o , s i s t e m a d e a p a r e l h o s q u e r e p r e s e n t a i p u i i d a d e crítica d a s m a s s a s e d a s u a participação n a p r a x i s são
p a r c i a l m e n t e ( u m a classe social) o c o n j u n t o d a sociedade, e m b o r a I pet l o s d e c i s i v o s p a r a a s u a solução; m a s a história n o s d i z q u e
s i m u l e representá-lo p l e n a m e n t e . A importância d o E s t a d o r e s i d e , N I C é u m r i s c o q u e o s i n t e l e c t u a i s e o s líderes políticos revolucioná-
t a m b é m , n o f a t o d e q u e e l e e s t e n d e c a d a v e z m a i s s u a organização e i Ion l a m b e m c o r r e m , p o r q u e o m a i o r t r e i n a m e n t o e d i s p o n i b i l i d a d e
c o n t r o l e p a r a t o d a a v i d a s o c i a l : a e c o n o m i a , a política, a c u l t u r a , a I n t e l e c t u a l p a r a a crítica não p r o d u z a u t o m a t i c a m e n t e u m a l i b e r t a -
existência c o t i d i a n a . M a s e s t a eficácia s e a p o i a , a o m e s m o t e m p o , l o d a tendência centrípeta e a u t o j u s t i f i c a d o r a d e t o d o s i s t e m a c u l -
n a n e c e s s i d a d e d e t o d o indivíduo d e s e r s o c i a l i z a d o , d e a d a p t a r - s e a iinal.
a l g u m t i p o de estrutura social q u epermita o seu desenvolvimento
p e s s o a l e p r o p o r c i o n e segurança a f e t i v a . P o r i s t o , se a d e s c o b e r t a
d a a r b i t r a r i e d a d e e d a r e l a t i v i d a d e d a organização s o c i a l e m q u e se
está i n s e r i d o , e d o s hábitos q u e s e a d q u i r i u c o m e l a , é s e m p r e u m a A organização c o t i d i a n a d a dominação
percepção secundária, t a r d i a , q u a n t o m a i s não é a crítica a e s t a
organização e a e s t e s hábitos. C o n c o r d a m o s c o m P i e r r e B o u r d i e u : U m a o r d e m despótica s e s u s t e n t a q u a n d o constrói o s e u e s p e -
" U m a c o i s a é o e n s i n o d o r e l a t i v i s m o c u l t u r a l , o u s e j a , d o caráter lho n a subjetividade. D e F r e u d a Deleuze, de Nietzsche a F o u c a u l t ,
arbitrário d e t o d a c u l t u r a , a indivíduos q u e já f o r a m e d u c a d o s d e i ' n i s i d o e x p l i c a d o q u e a opressão não c o n s e g u e e x i s t i r s e b a s e a d a
a c o r d o c o m o princípio d a a r b i t r a r i e d a d e c u l t u r a l d e u m g r u p o o u apenas n o a n o n i m a t o das estruturas coletivas: alimenta-se d o eco
c l a s s e ; o u t r a c o i s a s e r i a a intenção d e o f e r e c e r u m a educação r e l a t i - q u e o s o c i a l g e r a n o s indivíduos. A psicanálise e s e u s d i s s i d e n t e s
v i s t a , o u s e j a , a produção d e f a t o d e u m h o m e m c u l t i v a d o q u e f o s s e e l a b o r a r a m a l g u n s c o n c e i t o s v i s a n d o a compreensão d e s t a i n t e r n a - -
o indígena d e t o d a s a s c u l t u r a s . O s p r o b l e m a s c o l o c a d o s p e l a s s i t u a - lização d a o r d e m , m a s t r a t a - s e d e c o n c e i t o s q u e q u a s e s e m p r e estão
ções d e b i l i n g u i s m o o u b i c u l t u r a l i s m o p r e c o c e s o f e r e c e m a p e n a s s i t u a d o s a p a r t i r d o observatório d o s u j e i t o ( a i n d a q u e s e t r a t e d e
u m a pálida i d e i a d a contradição insolúvel c o m q u e se d e f r o n t a r i a m u sujeito descentrado, questionado, atravessado pelas estruturas
u m a ação pedagógica q u e p r e t e n d e s s e t o m a r c o m o princípio prá- o b j e t i v a s ) . C o m o entender s o c i o l o g i c a m e n t e este processo? O q u e
t i c o d a a p r e n d i z a g e m a afirmação teórica d a a r b i t r a r i e d a d e d o s p o d e o m a r x i s m o d i z e r a s e u r e s p e i t o ? B o u r d i e u propôs u m m o d e l o
d e análise q u e c o m b i n a c o n c e i t o s económicos, sociológicos e p s i c o - I
1 7
códigos linguísticos o u c u l t u r a i s . "
lógicos, q u e são a r t i c u l a d o s m e d i a n t e u m a m p l o t r a b a l h o t a n t o
1 7
P i e r r e B o u r d i e u , L a Reproc/ucción, op. e/7., p p . 52-53. teórico q u a n t o empírico, e l e t e n t a v e r c o m o é q u e u m c a p i t a l c u l t u - /
38 N E S T O R GARCÍ A C A N C L I N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 39

r a l s e t r a n s m i t e p o r m e i o d e a p a r e l h o s e e n g e n d r a hábitos e práticas e s t r u t u r a n t e s ( g e r a d o r e s d e práticas e e s q u e m a s d e percepção e


culturais. apreciação): a união d e s t a s d u a s c a p a c i d a d e s d o hábito c o n s t i t u i o
A s t e o r i a s l i b e r a i s d a educação c o n c e b e m - n a c o m o o c o n j u n t o que B o u r d i e u d e n o m i n a " o estilo de v i d a " . E m outras palavras, os
d o s m e c a n i s m o s i n s t i t u c i o n a i s através d o s q u a i s s e a s s e g u r a a t r a n s - a p a r e l h o s c u l t u r a i s n o s q u a i s c a d a classe p a r t i c i p a — p o r e x e m p l o ,
missão d a herança c u l t u r a l d e u m a geração a o u t r a . O p o s t u l a d o a e s c o l a — p r o d u z e m hábitos estéticos, e s t r u t u r a s d o g o s t o d i f e r e n -
tácito d e s t a s t e o r i a s é q u e a s d i f e r e n t e s ações pedagógicas q u e s e tes q u e levarão u n s à a r t e c u l t a e o u t r o s a o a r t e s a n a t o .
e x e r c e m n u m a formação s o c i a l c o l a b o r a m h a r m o n i o s a m e n t e p a r a F i n a l m e n t e , d o s hábitos s u r g e m práticas, n a m e d i d a e m q u e
a reprodução d e u m capital cultural q u e s e i m a g i n a c o m o p r o p r i e - os sujeitos q u e o s i n t e r n a l i z a r a m e n c o n t r a m - s e s i t u a d o s n o i n t e r i o r
dade c o m u m . E n t r e t a n t o , objeta B o u r d i e u , o s bens culturais acu- d a e s t r u t u r a d e c l a s s e s e m posições favoráveis p a r a q u e t a i s hábitos
m u l a d o s n a história d e c a d a s o c i e d a d e não p e r t e n c e m realmente a se a t u a l i z e m . E x i s t e , p o r t a n t o , u m a correspondência e n t r e a s p o s -
t o d o s ( a i n d a q u e formalmente s e j a m o f e r e c i d o s a t o d o s ) , m a s s i b i l i d a d e s d e apropriação d o c a p i t a l económico e d o c a p i t a l c u l t u -
àqueles q u e dispõem d o s m e i o s p a r a a p r o p r i a r - s e d e l e s . P a r a c o m - r a l . Condições sócio-econômicas s e m e l h a n t e s p r o p i c i a m o a c e s s o a
p r e e n d e r u m t e x t o científico o u d e s f r u t a r u m a o b r a m u s i c a l são níveis e d u c a c i o n a i s e a instituições c u l t u r a i s p a r e c i d o s , e n e l e s são
necessários a p o s s e d o s códigos, o t r e i n a m e n t o i n t e l e c t u a l e sensível adquiridos estilos de pensamento e d e sensibilidade que p o r sua vez
c a p a z e s d e p e r m i t i r a s u a decifração. C o m o o s i s t e m a e d u c a c i o n a l e n g e n d r a m práticas c u l t u r a i s p a r t i c u l a r e s .
e n t r e g a a a l g u n s e n e g a a o u t r o s — d e a c o r d o c o m a posição s o c i o -
económica — o s r e c u r s o s p a r a a apropriação d o c a p i t a l c u l t u r a l , a
e s t r u t u r a d o e n s i n o r e p r o d u z a e s t r u t u r a prévia d a distribuição T a r e f a s d a investigação n a América L a t i n a
deste c a p i t a l p o r e n t r e as classes.
O s aparelhos culturais são a s instituições q u e a d m i n i s t r a m , P e r c o r r e m o s d e m o d o sumário a l g u n s p o n t o s d e intersecção
t r a n s m i t e m e r e n o v a m o c a p i t a l c u l t u r a l . N o c a p i t a l i s m o , são p r i n - entre o m a r x i s m o , a a n t r o p o l o g i a e a sociologia, m a s o u t r o s aspec-
c i p a l m e n t e a família e a e s c o l a , m a s também o s m e i o s d e c o m u n i c a - t o s c e n t r a i s p a r a u m a t e o r i a d a c u l t u r a a i n d a não f o r a m a b o r d a -
ção, a s f o r m a s d e organização d o espaço e d o t e m p o , t o d a s a s i n s t i - d o s . D e n t r e e l e s , p o s s u e m g r a n d e importância o s a s p e c t o s q u e
tuições e e s t r u t u r a s m a t e r i a i s através d a s q u a i s c i r c u l a o s e n t i d o ( n o r e s u l t a m d a a b o r d a g e m d a semiótica v i s a n d o a produção d e u m a
capítulo I I I e s t u d a r e m o s a importância q u e o s a p a r e l h o s c u l t u r a i s explicação p a r a o s p r o c e s s o s d e significação e d a psicanálise e m
d o E s t a d o p o s s u e m e m t e r m o s d a s mudanças n o a r t e s a n a t o , e n o t o r n o d o s p r o c e s s o s i n c o n s c i e n t e s d e simbolização e sublimação
capítulo V e s t u d a r e m o s o s d i v e r s o s espaços p o r o n d e e l e c i r c u l a : a q u e estão n a b a s e d a produção c u l t u r a l . N ã o o b s t a n t e , a g o r a a p e -
habitação indígena, o m e r c a d o , a l o j a u r b a n a e t c ) . A c r e s c e n t e m o s n a s a c r e s c e n t a r e m o s a l g u m a s consequências q u e e s t a l i n h a d e t r a -
a g o r a q u e n a s s o c i e d a d e s não c a p i t a l i s t a s — o u o n d e são c o n s e r v a - b a l h o p o d e t e r p a r a a investigação s o c i a l n a América L a t i n a .
d o s e n c l a v e s c o m f o r m a s d e v i d a não c a p i t a l i s t a — e s t a s funções
c o s t u m a m e s t a r m i s t u r a d a s c o m o u t r a s d e índole económica e s o c i a l ; 1 . A construção d e u m a t e o r i a científica d a c u l t u r a é d e c i s i v a
q u a s e n u n c a e x i s t e m instituições específicas p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o p a r a o c r e s c i m e n t o d a s ciências s o c i a i s , e n ã o u n i c a m e n t e
c u l t u r a l , e e s t e s e r e a l i z a n o próprio p r o c e s s o d e p r o d u ç ã o o u a t r a - c o m o u m c o m p l e m e n t o d a análise económica c o m a f i n a l i -
vés d e instituições q u e c o m b i n a m o económico e o c u l t u r a l ( p o r dade de evitar o economicismo, m a ssim para entender a
exemplo, os sistemas de parentesco, de cargos o u a d m i n i s t r a t i v o ) . própria e s t r u t u r a económica, d a q u a l o s fenómenos s i m -
M a s a ação d o s a p a r e l h o s c u l t u r a i s d e v e s e r i n t e r n a l i z a d a bólicos são p a r t e . E s t a u n i d a d e e interdependência e n t r e o
p e l o s m e m b r o s d a s o c i e d a d e , a organização o b j e t i v a d a c u l t u r a estrutural e o superestrutural, q u e é justificada — c o m o
n e c e s s i t a i n f o r m a r c a d a s u b j e t i v i d a d e . E s t a interiorização d a s e s t r u - f o i v i s t o — d o p o n t o d e v i s t a teórico, a p r e s e n t a - s e c o m
t u r a s s i g n i f i c a t i v a s g e r a hábitos, o u s e j a , s i s t e m a s d e disposições, p a r t i c u l a r importância n o n o s s o c o n t i n e n t e d e v i d o a o
e s q u e m a s básicos d e percepção, compreensão e ação. O s hábitos p a p e l d o s c o n f l i t o s étnicos e c u l t u r a i s n a l u t a d e c l a s s e s .
são e s t r u t u r a d o s ( p e l a s condições s o c i a i s e p e l a posição d e c l a s s e ) e C o m o p o d e m o s e n t e n d e r a n o s s a história a t u a l , s e p e n s a -
N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 41

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m o s questões c h a v e s , c o m o a incorporação d a s f o r m a s t r a - c ) a presença n e g r a n o B r a s i l , Colômbia e A n t i l h a s . P r e c i -
d i c i o n a i s d e produção c a m p o n e s a (indígena) a o c a p i t a l i s - s a m o s s a b e r d e q u e m a n e i r a a combinação e a i n t e r p r e t a -
m o , d e a c o r d o c o m a p e r g u n t a e x c l u s i v a m e n t e económica ção d e s t e s c a p i t a i s c u l t u r a i s f o i f o r m a n d o a n o s s a i d e n t i -
s o b r e s e s e t r a t a d e u m a articulação o u u m a subsunção, s e d a d e e q u a i s f o r a m a s estratégias d e acumulação e d e r e n o -
não incluímos c o m o p a r t e d o c o n f l i t o a l u t a p e l a h e g e m o - vação d e c a d a u m . N e s t e l i v r o t e n t a m o s d e s c o b r i r c o m o
n i a simbólica o u a r e l e g a m o s d e p r e c i a t i v a m e n t e às polémi- estes c a p i t a i s c u l t u r a i s se r e l a c i o n a m c o m o s a t u a i s c o n f l i -
c a s c u l t u r a l i s t a s e n t r e o i n d i g e n i s m o e o s s e u s adversários? t o s d e classe: c o m o o s setores d o m i n a n t e s e o s s u b a l t e r n o s
T a l v e z n a América L a t i n a t e n h a m o s razões s u p l e m e n t a r e s a p r o p r i a m - s e d a herança indígena e d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s
para revalorizar o papel d o sfatores culturais n a diferen- camponesas e u r b a n a s , c o m o as r e c o n t e x t u a l i z a m e lhes
ciação e n o c o n f l i t o e n t r e a s c l a s s e s , q u e j á h a v i a s i d o r e c o - a t r i b u e m u m n o v o s i g n i f i c a d o e m função d o s s e u s i n t e r e s -
n h e c i d o p o r M a r x e L e n i n , e que, s e m esquecer o lugar ses. O q u e s i g n i f i c a s a b e r a m a n e i r a p e l a q u a l a lógica
d e t e r m i n a n t e d a s relações d e p r o d u ç ã o , t e m s i d o a m p l i a d o t r a n s n a c i o n a l d a c u l t u r a n o c a p i t a l i s m o m o d e l a o s hábitos
n o s últimos a n o s p o r a l g u n s m a r x i s t a s e u r o p e u s ( E d w a r d e a s práticas, a s f o r m a s d e consciência e d e v i d a e o q u e o s
P. T h o m p s o n , Nicos Poulantzas etc). Apesar d o muito n o s s o s p o v o s p o d e m f a z e r p a r a se a p r o p r i a r d o c a p i t a l c u l -
q u e f a l t a s e r i n v e s t i g a d o a r e s p e i t o d a s interações econô- t u r a l p e r d i d o o u e x p r o p r i a d o , c o m o p o d e m renová-lo d e
m i c o - c u l t u r a i s n a nossa realidade, é e v i d e n t e q u e as m u - a c o r d o c o m as tarefas atuais.
danças d e i d e n t i d a d e d o s operários m i g r a n t e s , d o s indíge-
n a s e mestiços a c u l t u r a d o s , s u a reutilização p e l o d e s e n v o l - P a r e c e e v i d e n t e a necessidade d e q u e estes e s t u d o s se m u l t i p l i -
v i m e n t o c a p i t a l i s t a não p o d e m a p e n a s s e r e x p l i c a d a s p e l a q u e m para q u e possamos conhecer as necessidades d o s povos lati-
extração d a m a i s - v a l i a : a s u a exploração o r g a n i z a - s e e s e n o - a m e r i c a n o s ( q u a l é h o j e a nossa a r t e , a nossa m e d i c i n a , a nossa
s u s t e n t a c o m b a s e e m m e c a n i s m o s múltiplos, q u e às v e z e s educação?). P a r a q u e p o s s a m o s s a b e r e m q u a i s a p a r e l h o s c u l t u r a i s
não são tão c l a r o s s e o s b u s c a m o s n a p r o d u ç ã o e não n o devemos l u t a r o u o n d e existe a necessidade d e c r i a r m o s o u t r o s q u e
c o n s u m o , s e p r e s t a m o s atenção à p e r d a d o s m e i o s d e p r o - l e j a m a l t e r n a t i v o s , b e m c o m o d e q u e m a n e i r a d e v e m o s t r a v a r este
dução e não n a s u a relação c o m a l i n g u a g e m , c o m a saúde combate n o c a m p o d a subjetividade para q u epossamos suscitar
o u c o m o s i s t e m a d e crenças. hábitos n o v o s e práticas t r a n s f o r m a d o r a s .
2 . D i s t o s e d e d u z a importância d e s e a c r e s c e n t a r , às p e s q u i -
s a s d e s t i n a d a s a o c o n h e c i m e n t o d a s f o r m a s d e circulação e
d e apropriação d o c a p i t a l c u l t u r a l n a América L a t i n a , o
s e u p a p e l n a reprodução e n a transformação d o s i s t e m a
s o c i a l . Além d o f a t o d e q u e o m o d e l o d e B o u r d i e u p r e c i s a
s e r h i s t o r i c i z a d o ( o q u e obrigará o r e c o n h e c i m e n t o d e q u e
a c u l t u r a b u r g u e s a n ã o é i n t e i r a m e n t e arbitrária, m a s c o n -
sequência d e u m d e s e n v o l v i m e n t o específico d a s forças
p r o d u t i v a s e d a s relações s o c i a i s ) , d e v e m o s especificá-lo d e
a c o r d o c o m a s e t a p a s através d a s q u a i s f o i s e n d o construí-
\
d o e m n o s s o c o n t i n e n t e u m c a p i t a l c u l t u r a l heterogéneo
c o m o r e s u l t a d o d a confluência d e v a r i a d a s influências:
a ) a herança d a s g r a n d e s c u l t u r a s pré-colombianas, c u j o s
hábitos, línguas e s i s t e m a s d e p e n s a m e n t o p e r s i s t e m n o " A r e s p e i t o d e s t e a s p e c t o , D a r c y R i b e i r o , Las Américas y l a civilización, t. I ,
México, n a América C e n t r a l e n o p l a n a l t o a n d i n o ; b ) a H u e n o s A i r e s , C e n t r o E d i t o r d e América L a t i n a , 1969. ( O o r i g i n a l b r a s i l e i r o
p o d e s e r e n c o n t r a d o e m As Américas e a Civilização, E d . V o z e s , Petrópolis,
importação e u r o p e i a , s o b r e t u d o e s p a n h o l a e p o r t u g u e s a ;
1979, 3? e d . )
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 43

A s relações e n t r e o c a p i t a l económico e o c a p i t a l c u l t u r a l já
f o r a m explicadas, b e m c o m o o fato de que a propriedade o u a exclu-
são d o c a p i t a l económico e n g e n d r a u m a participação d e s i g u a l n o
c a p i t a l e s c o l a r e , p o r t a n t o , n a apropriação d o s b e n s c u l t u r a i s d e
q u e dispõe u m a s o c i e d a d e . M a s a e s p e c i f i c i d a d e d a s c u l t u r a s p o p u -
l a r e s não d e r i v a a p e n a s d o f a t o d e q u e a s u a apropriação d a q u i l o
q u e a s o c i e d a d e p o s s u i s e j a m e n o r e d i f e r e n t e ; d e r i v a também d o
f a t o d e q u e o p o v o p r o d u z n o t r a b a l h o e n a v i d a f o r m a s específicas

Introdução ao estudo d e representação, reprodução e reelaboração simbólica d a s s u a s


relações s o c i a i s . D e s e n v o l v e m o s n o capítulo a n t e r i o r e m q u e s e n t i -
d o a c u l t u r a é representação, p r o d u ç ã o , reprodução e reelaboração
das culturas populares simbólica. A g o r a d e v e m o s a c r e s c e n t a r q u e o p o v o r e a l i z a e s t e s p r o -
c e s s o s c o m p a r t i l h a n d o a s condições g e r a i s d e p r o d u ç ã o , circulação
e c o n s u m o d o s i s t e m a e m q u e v i v e ( u m a formação s o c i a l d e p e n d e n -
t e , p o r e x e m p l o ) e p o r s u a v e z c r i a n d o a s s u a s próprias e s t r u t u r a s .
Definições d o p o p u l a r : o r o m a n t i s m o , P o r t a n t o , a s c u l t u r a s p o p u l a r e s são construídas e m d o i s espaços:
o p o s i t i v i s m o e a tendência g r a m s c i a n a a ) a s práticas p r o f i s s i o n a i s , f a m i l i a r e s , c o m u n i c a c i o n a i s e d e t o d o
t i p o através d a s q u a i s o s i s t e m a c a p i t a l i s t a o r g a n i z a a v i d a d e t o d o s
C o m o e l a b o r a r , a p a r t i r d a discussão a n t e r i o r , u m c o n c e i t o o s s e u s m e m b r o s ; b ) a s práticas e f o r m a s d e p e n s a m e n t o q u e o s
d e c u l t u r a p o p u l a r ? A c i m a d e t u d o , a c u l t u r a p o p u l a r não p o d e s e r s e t o r e s p o p u l a r e s c r i a m p a r a s i próprios, m e d i a n t e a s q u a i s c o n c e -
e n t e n d i d a c o m o a "expressão" d a p e r s o n a l i d a d e d e u m p o v o , à b e m e expressam a s u a realidade, o seu lugar s u b o r d i n a d o n a pro-
m a n e i r a d o i d e a l i s m o , p o r q u e t a l p e r s o n a l i d a d e não e x i s t e c o m o dução, n a circulação e n o c o n s u m o . N u m c e r t o s e n t i d o , p o d e m o s
u m a e n t i d a d e a priori, metafísica, e s i m c o m o u m p r o d u t o d a i n t e - d i z e r q u e o patrão e o operário p o s s u e m e m c o m u m a participação
ração d a s relações s o c i a i s . T a m p o u c o a c u l t u r a p o p u l a r é u m c o n - n o m e s m o t r a b a l h o n a m e s m a fábrica, a audiência d o s m e s m o s
j u n t o d e tradições o u d e essências i d e a i s , p r e s e r v a d a s d e m o d o eté- c a n a i s d e televisão ( a i n d a q u e c e r t a m e n t e a p a r t i r d e posições d i f e -
r e o : s e t o d a produção c u l t u r a l s u r g e , c o m o v i m o s , a p a r t i r d a s c o n - r e n t e s q u e p r o d u z e m decodificações d i s t i n t a s ) ; m a s , p o r o u t r o
dições m a t e r i a i s d e v i d a e n e l a s está a r r a i g a d a , t o r n a - s e a i n d a m a i s l a d o , e x i s t e m opções económicas e c u l t u r a i s q u e o s d i f e r e n c i a m ,
fácil c o m p r o v a r m o s e s t a afirmação n a s c l a s s e s p o p u l a r e s , o n d e a s jargões p r ó p r i o s , c a n a i s d e comunicação específicos a c a d a c l a s s e .
canções, a s crenças e a s f e s t a s estão l i g a d a s d e m o d o m a i s e s t r e i t o e A m b o s o s espaços, o d a c u l t u r a hegemónica e o d a c u l t u r a p o p u l a r ,
c o t i d i a n o a o t r a b a l h o m a t e r i a l a o q u a l se e n t r e g a m q u a s e t o d o o são i n t e r p e n e t r a d o s , d e m o d o q u e a l i n g u a g e m p a r t i c u l a r d o s o p e -
t e m p o . P e l o m e s m o m o t i v o , não n o s p a r e c e útil p a r a e x p l i c a r m o s rários o u d o s c a m p o n e s e s é e m p a r t e u m a construção própria e e m
o s p r o c e s s o s c u l t u r a i s d o p o v o pensá-los, a o e s t i l o f u n c i o n a l i s t a , p a r t e u m a ressemantização d a l i n g u a g e m d o s veículos d e c o m u n i -
c o m o f o r m a s v a z i a s d o t a d a s d e u m caráter u n i v e r s a l , o u d e a c o r d o cação d e m a s s a e d o p o d e r político, o u u m m o d o específico d e a l u -
c o m o e s t r u t u r a l i s m o , c o m o lógicas m e n t a i s , q u e a d o t a m m o d a l i - são às condições s o c i a i s c o m u m a t o d o s ( p o r e x e m p l o , a s p i a d a s
dades particulares e m diferentes contextos. s o b r e a inflação). Interação q u e o c o r r e , t a m b é m , e m s e n t i d o c o n -
trário: a l i n g u a g e m hegemónica d o s m e i o s d e comunicação d e m a s s a
As culturas populares (termo que achamos mais adequado do o u d o s políticos, n a m e d i d a e m q u e p r e t e n d e alcançar o c o n j u n t o
que a cultura popular) se constituem por um processo de apropria- d a população, levará f m consideração a s f o r m a s d e expressão p o p u -
ção desigual dos bens económicos e culturais de uma nação ou etnia lares.
por parte dos seus setores subalternos, e pela compreensão, repro-
dução e transformação, real e simbólica, das condições gerais e S i n t e t i z a n d o : a s c u l t u r a s p o p u l a r e s são o r e s u l t a d o d e u m a
específicas do trabalho e da vida. apropriação desigual d o c a p i t a l c u l t u r a l , r e a l i z a m u m a elaboração
44 N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 45

específica d a s s u a s condições d e v i d a através d e u m a interação con- p r o c e s s o histórico através d o q u a l f o r a m s e n d o construídos o c o n -


flitua c o m o s s e t o r e s hegemónicos. E s t e m o d o d e e n t e n d e r a s c u l - c e i t o e o s e n t i m e n t o d e nação é n e u t r a l i z a d o e diluído p e l a " t r a d i -
t u r a s p o p u l a r e s n o s a f a s t a d a s posições q u e p r e d o m i n a r a m n o s e u ção". A p a r t i r deste c o n c e i t o d e f o l c l o r e c o m o u m a r q u i v o fossili-
e s t u d o : a s interpretações i m a n e n t e s , f o r m u l a d a s n a E u r o p a p e l o z a d o e apolítico, p r o m o v e - s e u m a política p o p u l i s t a q u e , r e c o r r e n -
p o p u l i s m o romântico e n a América L a t i n a p e l o n a c i o n a l i s m o e d o a o p r e t e x t o d e " d a r a o p o v o a q u i l o d e q u e e l e g o s t a " , e v i t a pôr
i n d i g e n i s m o c o n s e r v a d o r e s , e, p o r o u t r o l a d o d o p o s i t i v i s m o q u e , e m questão s e s e f o r m a u m a c u l t u r a p o p u l a r e n t r e g a n d o a o p o v o
p r e o c u p a d o c o m o r i g o r científico, e s q u e c e u o s e n t i d o político d a p r o d u t o s e n l a t a d o s o u l h e p e r m i t i n d o a e s c o l h a e a criação. T a m -
produção simbólica d o p o v o . pouco p e r g u n t a m a respeito d o q u e é oferecido a o p o v o , n e m sobre
O s românticos c o n c e b e r a m o p o v o c o m o u m a t o t a l i d a d e q u e m , d u r a n t e séculos d e d o m i n a ç ã o , t e m m o d e l a d o o s e u g o s t o .
homogénea e a u t ó n o m a , c u j a c r i a t i v i d a d e espontânea s e r i a a m a i s M u i t o s e s p e c i a l i s t a s universitários c o n s i d e r a m o e m p i r i s m o ,
a l t a expressão d o s v a l o r e s h u m a n o s e o m o d e l o d e v i d a a o q u a l q u e p o d e s e r m a i s o u m e n o s p o s i t i v i s t a , c o m o a a l t e r n a t i v a cientí-
deveríamos r e g r e s s a r . A crença n a c u l t u r a p o p u l a r c o m o s e d e autên- f i c a a e s t a idealização. R e c o m e n d a m o c o n t a t o d i r e t o c o m a r e a l i -
t i c a d o h u m a n o e essência p u r a d o n a c i o n a l , i s o l a d a d o s e n t i d o a r t i - d a d e , o e x a m e m i n u c i o s o d o s o b j e t o s e d o s c o s t u m e s e a s u a clas-
f i c i a l d e u m a "civilização" q u e a n e g a v a , t e v e c e r t a u t i l i d a d e , sificação d e a c o r d o c o m a o r i g e m étnica e a s diferenças i m e d i a t a -
e n q u a n t o reivindicação d o p e n s a m e n t o e d o s c o s t u m e s p o p u l a r e s , m e n t e observáveis. E s t a o u t r a f o r m a d e paixão, q u e é c o n t r o l a d a
s u s c i t a n d o o s e u e s t u d o e a s u a d e f e s a após t e r s i d o a m p l a m e n t e p e l o r i g o r científico m a s q u e s e m o s t r a f a s c i n a d a p e l o v a l o r — até
excluído d o s a b e r académico. M a s e s t a exaltação s e b a s e o u n u m então d e s c o n s i d e r a d o — d a s e t n i a s o p r i m i d a s , t e n d o c h e g a d o a o
e n t u s i a s m o s e n t i m e n t a l , q u e não c o n s e g u i u s u s t e n t a r - s e q u a n d o a p o n t o d e p e s q u i s a d o r e s p a s s a r e m vários a n o s e m p e q u e n a s a l d e i a s
filologia positivista d e m o n s t r o u q u e os produtos d o p o v o — sendo c o m a f i n a l i d a d e d e r e g i s t r a r o s s e u s d e t a l h e s m a i s ínfimos, p r o d u -
q u e a ênfase e r a atribuída à p o e s i a — o r i g i n a m - s e t a n t o d a e x p e - ziu livros e monografias de grande utilidade para o conhecimento
riência d i r e t a d a s c l a s s e s p o p u l a r e s c o m o d o s e u c o n t a t o c o m o d o s m i t o s , l e n d a s * f e s t a s , a r t e s a n a t o , hábitos e instituições. Não
s a b e r e a a r t e " c u l t o s " , s e n d o a s u a existência, e m b o a p a r t e , u m obstante, d e v e m o s p e r g u n t a r p o r q u e a m a i o r i a destes t r a b a l h o s
1 9
r e s u l t a d o d e u m a "absorção d e g r a d a d a " d a c u l t u r a d o m i n a n t e . a p r e s e n t a u m a desproporção e n t r e o s d a d o s c o l e t a d o s e a s e x p l i c a -
A t u a l m e n t e , q u a s e m a i s n e n h u m c i e n t i s t a se a t r e v e a i n c o r r e r ções p r o d u z i d a s . P a r e c e - n o s q u e e s t e f a t o d e c o r r e d a opção p o r u m
n o e r r o d a idealização romântica. E n t r e t a n t o , e s t a m a n t e v e o s e u r e c o r t e d e m a s i a d a m e n t e e s t r e i t o d o o b j e t o d e e s t u d o — são o b s e r -
p o d e r d e atração d i a n t e d e m u i t o s f o l c l o r i s t a s e i n d i g e n i s t a s d a vados apenas o artesanato o u a comunidade local — e d a maneira
América L a t i n a , e c o n t i n u a a s e r u t i l i z a d a p e l o d i s c u r s o político errónea c o m q u e e s t e f o i v i n c u l a d o a o d e s e n v o l v i m e n t o c a p i t a l i s t a .
n a c i o n a l i s t a . A i n d a q u e n e m s e m p r e se i n s p i r e m n o r o m a n t i s m o A s deficiências d e s t e e n f o q u e não d e s a p a r e c e r a m c o m a v o n -
e u r o p e u , r e i n c i d e m e m m u i t a s d e s u a s t e s e s . E s t a visão metafísica t a d e d e d a r c o n t a d a s mudanças n a i d e n t i d a d e d o s p o v o s t r a d i c i o -
do p o v o o i m a g i n a c o m o o lugar onde estariam conservadas intac- n a i s através d e u m a t e o r i a d o s " c o n t a t o s c u l t u r a i s " . T a i s e s t u d o s ,
t a s v i r t u d e s biológicas ( d a raça) e i r r a c i o n a i s ( o a m o r à t e r r a , a r e l i - i n i c i a d o s n a década d e t r i n t a c o m o s p r i m e i r o s t r a b a l h o s s o b r e
gião e a s crenças a n c e s t r a i s ) . A supervalorização d o s c o m p o n e n t e s aculturação d o S o c i a l S c i e n c e R e s e a r c h C o u n c i l , d o s E s t a d o s U n i -
biológicos e telúricos, típica d o p e n s a m e n t o d e d i r e i t a , é u t i l i z a d a 2 0
d o s , e c o m a publicação n o R e i n o U n i d o d o l i v r o Methods of
p e l o p o p u l i s m o nacionalista-burguês p a r a a realização d e u m a 21
study ofculture contact in Africa in 1938, não c o n s e g u i r a m s u p e -
identificação d o s s e u s i n t e r e s s e s c o m o o s i n t e r e s s e s d a nação, e r a r o caráter n e u t r o d o s c o n c e i t o s d e aculturação e d e c o n t a t o c u l -
p a r a e n c o b r i r a s u a dependência d i a n t e d o i m p e r i a l i s m o , e n o nível tural, n e m a incapacidade para explicar os conflitos e os processos
i n t e r n o , o s c o n f l i t o s d e c l a s s e q u e ameaçam o s s e u s privilégios. O
2 0
E d w a r d H . S p i c e r , " A j c u l t u r a t i o n " , I n t e r n a t i o n a l Encyclopedia o f social Scien-
1 9
A l b e r t o M . C i r e s e , Ensayo sobre las culturas subalternas, México, C e n t r o d e ces, v o l . 1 , p p . 2 1 - 2 7 , N o v a I o r q u e , M a c m i l l a n C o m p a n y , 1968.
2 1
I n v e s t i g a c i o n e s S u p e r i o r e s d e i 1 N A H , C u a d e r n o s d e l a C a s a C h a t a , n? 2 4 , 1979, M e m o r a n d u m X V , International Institute o f African L a n g u a g e s a n d Culiiitr
p p . 55-56 e 68-70. C i t a d o p o r G e o r g e P i e r r e C a s t i l e , op. cit., p . 14.
46 N E S T O R GARCÍA C A N C L 1 N I AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 47

d e dominação q u e a adoção d e s t e s c o n c e i t o s n o r m a l m e n t e i m p l i c a . l i s m o , d e v i d o à n e c e s s i d a d e d e ampliação d o m e r c a d o m u n d i a l , a o


C o m u m a cândida benevolência, c h a m a r a m o s e x p l o r a d o r e s d e f i n a l d o século X I X e n o início d o século X X . P o r o u t r o l a d o , a
" g r u p o d o a d o r " d e v a l o r e s e à reação d o s o p r i m i d o s d e " a d a p t a - aceleração d o p r o c e s s o d e industrialização e d e urbanização a p a r t i r
ção". L i n t o n i n t r o d u z i u u m a v a r i a n t e s i g n i f i c a t i v a q u a n d o se r e f e - d a década d e q u a r e n t a , q u e t e v e c o m o consequência u m a m a s s i v a
r i u a u m a "mudança d i r i g i d a " p a r a e x p l i c a r o s casos " o n d e u m migração e a formação d e v i l a s miseráveis, b a i r r o s periféricos e
d o s g r u p o s e m c o n t a t o intervém a t i v a e i n t e n c i o n a l m e n t e n a c u l - f a v e l a s n o s g r a n d e s c e n t r o s u r b a n o s , b e m c o m o a reorganização
2 2
t u r a d o o u t r o " . M a s , t a m p o u c o , s i t u o u a d e q u a d a m e n t e estas capitalista d a e c o n o m i a e d a cultura camponesas t o r n a r a m mais
intervenções e m relação c o m a s s u a s c a u s a s sócio-econômicas. a g u d a s a s contradições n o c a m p o , n a c i d a d e e e n t r e a m b o s : d e s t e
A s interpretações p s i c o l o g i s t a s e c u l t u r a l i s t a s através d a s processo nasceu o interesse e m entender os c o n f l i t o s interculturais
q u a i s o s antropólogos d a s metrópoles p r e t e n d e r a m e x p l i c a r a s m u - dentro de cada sociedade, e n t r e a s s u a s d i f e r e n t e s c l a s s e s e g r u p o s
danças c u l t u r a i s e a s resistências indígenas e n c o n t r a r a m u m a dócil étnicos.
aceitação p o r p a r t e d o s antropólogos l a t i n o - a m e r i c a n o s , s o b r e t u d o M a s a insuficiência n a explicação d e s t e s p r o c e s s o s não é
d a q u e l e s q u e t i v e r a m R e d f i e l d , B e a l s e o s d e m a i s ideólogos d a e n c o n t r a d a a p e n a s n a s c o r r e n t e s antropológicas. T a m b é m o m a r -
"modernização d o s p o v o s p r i m i t i v o s " c o m o p r o f e s s o r e s . T a l v e z xismo, q u e possui a teoria d e m a i o r poder explicativo a respeito
seja A g u i r r e B e l t r a n a f i g u r a m a i s d e s t a c a d a nesta l i n h a d e v i d o à destes c o n f l i t o s n o c a p i t a l i s m o , p r o d u z i u p o u c o s estudos sobre o
s u a reconceptualização u m t a n t o o r i g i n a l d o s fenómenos d e a c u l t u - t e m a : p r i v i l e g i o u a análise d o s s e u s a s p e c t o s económicos e , q u a n t o
ração e à s u a influência n a s políticas i n d i g e n i s t a s . A p e s a r d e o s s e u s à cultura, ocupou-se quase q u eexclusivamente d a ideologia das
e s t u d o s l e v a r e m e m consideração a s f o r m a s d e d o m i n a ç ã o e a s classes d o m i n a n t e s . A p a r t i r d e G r a m s c i o p o p u l a r c o n q u i s t o u u m
bases p r o d u t i v a s d o s c o n t a t o s i n t e r c u l t u r a i s , não a t r i b u e m p e s o n o v o l u g a r científico e político, m a s só e m a n o s r e c e n t e s a l g u n s
s u f i c i e n t e às determinações m a t e r i a i s , s u p e r v a l o r i z a n d o o étnico, antropólogos, s o b r e t u d o i t a l i a n o s , d e s e n v o l v e r a m a q u e l a s lacóni-
q u e é e n t e n d i d o d e m a n e i r a i s o l a d a , e a d a p t a n d o a s u a problemá- cas intuições d o cárcere através d e investigações c o n c r e t a s . U m a
t i c a teórica e empírica a o s f i n s i n t e r j - a d o r e s e conciliatórios d o s e u p r i m e i r a conclusão q u e r e t i r a m o s d e s t a s reflexões é q u e o m a r c o
p r o j e t o político: c o n s t r u i r u m a " d o u t r i n a q u e g u i e e esclareça o s m a i s fértil p a r a o e s t u d o d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s p a r e c e r e s i d i r n a
2 3
p r o c e d i m e n t o s e a s m e t a s q u e a ação i n d i g e n i s t a d e v e s e g u i r " . intersecção e n t r e a explicação m a r x i s t a a r e s p e i t o d o f u n c i o n a m e n t o
E n t e n d e m o s q u e a investigação d o s c o n f l i t o s i n t e r c u l t u r a i s d o c a p i t a l i s m o e a s a b o r d a g e n s empíricas, e e m p a r t e metodológi-
não p o d e e s t a r o r i e n t a d a p e l a preocupação e m e x a l t a r a c u l t u r a cas, d a a n t r o p o l o g i a e d a s o c i o l o g i a .
p o p u l a r , n e m p e l a intenção d e s e a p e g a r d e m o d o c o n s e r v a d o r a o F a z - s e necessário, p a r a m e l h o r p r e c i s a r m o s a concepção q u e
a s p e c t o i m e d i a t o e a o s e n t i d o q u e a própria c o m u n i d a d e a t r i b u i a o s empregamos, enumerar, d e m o d o breve, o q u en o sparece mais
f a t o s e n e m p e l o i n t e r e s s e e m adaptá-la à modernização. A questão valioso n o st e x t o s d e G r a m s c i e d o s seus c o n t i n u a d o r e s (Cirese,
d e c i s i v a c o n s i s t e n a compreensão d a s c u l t u r a s p o p u l a r e s através d a L o m b a r d i Satriani), b e mc o m o indicar algumas dificuldades q u e
s u a conexão c o m o s c o n f l i t o s d e c l a s s e e c o m a s condições d e e x p l o - n e l e s e n c o n t r a m o s . J á u t i l i z a m o s n o capítulo a n t e r i o r o q u e n o s
ração s o b a s q u a i s e s t e s s e t o r e s p r o d u z e m e c o n s o m e m . p a r e c e m a i s f e c u n d o d a contribuição g r a m s c i a n a , a s u a conexão d a
D e f a t o , s e s i t u a r m o s o s t i p o s d e e n f o q u e d a d o s às relações cultura c o m a hegemonia. A l b e r t o M . Cirese organizou e desenvol-
i n t e r c u l t u r a i s n a s s u a s condições histórico-políticas, p e r c e b e r e m o s v e u a q u e l a s n o t a s n u m a o b r a q u e t a l v e z s e j a a d e m a i o r v a l o r teó-
d e m o d o m a i s c l a r o o s e u caráter c o n f l i t u o s o . A preocupação c o m r i c o a r e s p e i t o d e s t e t e m a e x i s t e n t e n o s países e u r o p e u s . C i r e s e
o q u e s e c h a m o u d e c o n t a t o c u l t u r a l o u d e aculturação e n t r e socie- refuta aqueles q u e d e f i n e m a c u l t u r a p o p u l a r c o m base e m proprie-
dades diferentes s u r g i u d u r a n t e a expansão i m p e r i a l i s t a d o c a p i t a - d a d e s intrínsecas, a p a r t i r d e u m a série d e traços q u e l h e s e r i a m
próprios, e , e m t r o c a , a c a r a c t e r i z a r e l a s u a relação c o m a s c u l t u r a s
2 2
q u e a e l a s e o p õ e m . O caráter p c p u l a r d e q u a l q u e r fenómeno d e v e
R a l p h L i n t o n , A c c u l l u r a t i o n i n seven a m e r i c a n i n d i a n I r i b e s , N o v a I o r q u e , D
A p p l e t o n - C e n t u r y C o m p a n y , 1 9 4 1 . C i t a d o p o r G . P . C a s t i l e , op. c / 7 . , p . 16.
s e r e s t a b e l e c i d o c o m b a s e n o s e u u s o e n ã o p o r intermédio d a s u a
2 3
G o n z a l o A g u i r r e B e l t r a n , E l Proceso de Aculluración, México, U N A M , 1 9 5 7 . o r i g e m , d e v e s e r e n c a r a d o " c o m o u m f a t o e n ã o c o m o u m a essên-
NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 49
48

c i a , c o m o posição r e l a c i o n a l e n ã o c o m o s u b s t â n c i a " . O q u e c o n s - f a c i l i d a d e p r o p r i e d a d e s " n a r c o t i z a n t e s " o u "contestatórias" a


t i t u i o caráter p o p u l a r d e u m f a t o c u l t u r a l , a c r e s c e n t a , " é a relação fenómenos c u l t u r a i s q u e n ã o são n e m u m a c o i s a n e m o u t r a , m a s
histórica, d e diferença o u d e c o n t r a s t e , d i a n t e d e o u t r o s f a t o s c u l t u - u m a c o m b i n a ç ã o d e vivências e d e representações c u j a a m b i g u i -
2 4
r a i s " . E n t r e t a n t o , e s t a concepção dialética d a s relações s o c i a i s d a d e c o r r e s p o n d e a o caráter n ã o r e s o l v i d o d a s contradições n o
e n t r a e m contradição c o m a s u a teorização c o m p l e m e n t a r s o b r e o s i n t e r i o r d o s s e t o r e s p o p u l a r e s . S e m p r e j u d i c a r a apreciação d a s
" d e s n í v e i s " e n t r e a s c u l t u r a s . E l e d i s t i n g u e d o i s t i p o s d e desníveis: s u g e s t i v a s análises d e L o m b a r d i S a t r i a n i s o b r e a e s t r u t u r a d a s c u l -
"desníveis e x t e r n o s " , o s q u e e x i s t e m e n t r e a s s o c i e d a d e s e u r o p e i a s t u r a s p o p u l a r e s ( p o r e x e m p l o , o capítulo s o b r e o folkmarket e m
lh

e a s "etnológicas o u p r i m i t i v a s " , e o s "desníveis i n t e r n o s " n o i n t e - Apropiación y destrucción de la cultura de las clases subalternas),
rior dassociedades ocidentais, entre os estratos d o m i n a n t e s e subal- n e l e p r e v a l e c e u m a oposição t a x a t i v a e n t r e o hegemónico e o s u b a l -
t e r n o s d e u m a m e s m a formação s o c i a l . F a l a r d e níveis q u e e s t a r i a m t e r n o , c o n s i d e r a d o s c o m o p r o p r i e d a d e s intrínsecas d e c e r t a s m e n -
e m d i f e r e n t e s a l t u r a s n o s p a r e c e d e m a s i a d o estático, t r a t a n d o - s e d e s a g e n s m a i s d o q u e c o m o m o d a l i d a d e s — ambíguas e transitórias
u m c o n c e i t o p o u c o p e r t i n e n t e p a r a d a r c o n t a d a s desigualdades e — dos conflitos que as v i n c u l a m .
conflitos q u e i n t e r - r e l a c i o n a m p e r m a n e n t e m e n t e a s c u l t u r a s p o p u - E m S a t r i a n i a oposição e n t r e dominação e resistência c u l t u r a l
l a r e s c o m a s c u l t u r a s hegemónicas. E s t e vocabulário l e v a - o a d e s i g - p o s s u i u m caráter f u n d a n t e , c o m o s e s e t r a t a s s e d e d o i s fenómenos
nar c o m o "processos de descida" e d e " s u b i d a " o q u eas mensa- e x t e r i o r e s e n t r e s i , a n t e r i o r e s a o p e r t e n c i m e n t o d e a m b a s as c u l t u -
g e n s e p r o d u t o s r e a l i z a m a o p a s s a r d e u m nível a o u t r o , o q u e — r a s a u m único s i s t e m a s o c i a l . E s t e m o d e l o p o d e r i a s e r a d e q u a d o
p o r m a i s advertências q u e s e façam — c o n o t a u m a hierarquização p a r a o s p r o c e s s o s i n i c i a i s d a colonização, q u a n d o a expansão c a p i -
inaceitável. t a l i s t a i m p l a n t a v a o s s e u s padrões d e v i d a a p a r t i r d o e x t e r i o r e a s
S e c o n s i d e r a r m o s s e r i a m e n t e o s " i n t e r c â m b i o s , emprésti- c o m u n i d a d e s indígenas r e a g i a m e m b l o c o a e s t a imposição. T r a t a -
m o s e c o n d i c i o n a m e n t o s recíprocos" q u e s e p r o d u z e m e n t r e a s c u l - se d e u m m o d e l o útil p a r a a explicação d a c o n q u i s t a d a América
2 5
t u r a s p o p u l a r e s e a s o u t r a s , a q u e o próprio C i r e s e a l u d e , o c o n - p e l o s espanhóis e p o r t u g u e s e s , e m e s m o d e e t a p a s p o s t e r i o r e s ,
c e i t o d e desnível não p a r e c e s e r o m a i s a d e q u a d o p a r a registrá-los. quando os enfrentamentos f o r a m apaziguados, permitindo u m a
r e l a t i v a a u t o n o m i a às c u l t u r a s s u b m e t i d a s e à c u l t u r a d o m i n a n t e .
P e l o contrário, c o m p a r t i m e n t a l i z a r a c u l t u r a e m p r o c e s s o s p a r a l e -
M a s q u e se t o r n a i n a d e q u a d o d i a n t e d o a t u a l d e s e n v o l v i m e n t o d o
l o s , n u m a espécie d e estratificação geológica, i m p l i c a c e d e r às c l a s -
c a p i t a l i s m o m o n o p o l i s t a q u e i n t e g r a s o b o s e u c o n t r o l e as socie-
sificações estáticas d o f o l c l o r e c o n t r a a s q u a i s G r a m s c i , e C i r e s e
dades que d o m i n a , c o m p o n d o u m sistema c o m p a c t o n oqual o con-
n o s s e u s t e x t o s m a i s g r a m s c i a n o s , opõem u m a estratégia d e e s t u d o
f l i t o sócio-econômico e c u l t u r a l precede a s políticas d e dominação
dinâmica e crítica. O o b j e t o d e investigação não p o d e s e r o desní-
e d e resistência, combinando o s u s o s n a r c o t i z a n t e s , contestatórios
v e l , m a s a s d e s i g u a l d a d e s e o s c o n f l i t o s e n t r e a s manifestações s i m -
o u d e o u t r o t i p o a o q u a l o s p r o d u t o s culturais p o s s a m estar subme-
bólicas d a s c l a s s e s , c u j a participação c o n j u n t a n u m m e s m o s i s t e m a
tidos.
não p e r m i t e u m a existência a u t ó n o m a .
U m p r o b l e m a c o m u m a t o d a orientação g r a m s c i a n a é q u e , Situação q u e c o r r e s p o n d e a u m a n e c e s s i d a d e d e c o n c e n t r a r -
p o r i n s i s t i r m u i t o n a contraposição e n t r e a c u l t u r a s u b a l t e r n a e a m o s a investigação não n o s fenómenos d e " q u e s t i o n a m e n t o " e d e
hegemónica e n a n e c e s s i d a d e política d e d e f e n d e r a independência " n a r c o t i z a ç ã o " , m a s n a própria e s t r u t u r a d o c o n f l i t o , q u e p o r
da p r i m e i r a , acaba por conceber a ambas c o m o sistemas exteriores c e r t o i n c l u i e s t e s fenómenos, m a s q u e também a b r a n g e o u t r o s
e n t r e s i . I s t o se t o r n a a i n d a m a i s c l a r o e m L o m b a r d i S a t r i a n i e, c o m o a integração, a interpenetração, o e n c o b r i m e n t o , a d i s s i m u l a -
ção e o a m o r t e c i m e n t o d a s contradições s o c i a i s . A i n d a e s t a m o s
s o b r e t u d o , n a utilização q u e f o i f e i t a d o s s e u s t e x t o s n a América
n e c e s s i t a d o s d e u m a t i p o l o g i a d a s interações e n t r e a s c u l t u r a s p o p u -
L a t i n a . C h e g a - s e a o p o r d e m o d o tão maniqueísta a s c u l t u r a s h e g e -
l a r e s e a s d o m i n a n t e s , q u e só será f o ' m a d a através d e investigações
mónicas e a s c u l t u r a s s u b a l t e r n a s , q u e s e a t r i b u i c o m d e m a s i a d a
2 6
2 4
A . M . C i r e s e , op. cil., p . 5 1 . L . M . L o m b a r d i S a t r i a n i , Apropiación y destrucción de l a c u l t u r a de las clases
2 5 subalternas, México, N u e v a I m a g e n , 1978, p p . 7 7 - 1 1 9 .
I d e m , p . 54.
N E S T O R GARCÍA C A N C L I N I
50 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 51

a respeito d e processos diversos, desde q u e sejam investigações


,,. orporação a o c a p i t a l i s m o . N a produção, circulação e c o n s u m o
a b e r t a s à c o m p r e e n s ã o d a v a r i e d a d e d e vínculos e x i s t e n t e s e n t r e a s d o " t e s a n a t o , n a s transformações d a s f e s t a s , p o d e m o s e x a m i n a r a
c u l t u r a s e q u e n ã o s e a p r e s s e m a etiquetá-las c o m o p o r t a d o r a s d e I I I I I Ç A O económica d o s f a t o s c u l t u r a i s : s e r e m i n s t r u m e n t o s p a r a a
efeitos positivos o u negativos. l>l produção s o c i a l ; a função política: l u t a r p e l a h e g e m o n i a ; a s f u n -
Por f i m , por que falar de culturas populares? P r e f e r i m o s e s t a . . ti s />sicossociais: c o n s t r u i r o c o n s e n s o e a i d e n t i d a d e , n e u t r a l i z a r
designação a o u t r a s e m p r e g a d a s p e l a a n t r o p o l o g i a , p e l a s o c i o l o g i a OU ' l a b o r a r s i m b o l i c a m e n t e a s contradições. A c o m p l e x a compósi-
e pelo folclore — cultura oral, tradicional o u subalterna — q u e t o d o a r t e s a n a t o e d a s f e s t a s , a v a r i e d a d e d e fenómenos s o c i a i s
pressupõem u m a c e r t a p o s s i b i l i d a d e d e redução d o p o p u l a r a u m , | i i c a b r a n g e m f a v o r e c e m o e s t u d o , d e m o d o simultâneo, d a c u l t u r a
traço e s s e n c i a l . A i n d a q u e u t i l i z e m o s o c a s i o n a l m e n t e a e x p r e s s ã o n< i i i r e s p r i n c i p a i s c a m p o s e m q u e s e m a n i f e s t a : os textos, aspráti-
" t r a d i c i o n a l " p a r a d a r c o n t a d e um aspecto ou tipo d e c u l t u r a , g& <>u relações sociais, a organização espacial. F a l a r s o b r e o a r t e s a -
p o p u l a r q u e s e c o n s t i t u i p o r oposição à " m o d e r n i d a d e " , d e v e - s e nal*» r e q u e r m u i t o m a i s d o q u e descrições d o d e s e n h o e d a s técnicas
s e m p r e l e r estas p a l a v r a s e n t r e a s p a s ( a i n d a q u e não a s l e v e m p a r a , l c produção; o s e u s e n t i d o só é a t i n g i d o s e o s i t u a m o s e m relação
t o r n a r o t e x t o m a i s l e v e ) , c o m o fórmulas u t i l i z a d a s d e v i d o a o s e u Com o s textos q u e o p r e d i z e m e o p r o m o v e m ( m i t o s e decretos,
v a l o r o p e r a t ó r i o , p a r a a identificação d e fenómenos, não d e essên- f o l h e t o s turísticos e condições p a r a c o n c u r s o s ) , e m conexão c o m a s
cias, q u ee x i s t e m e necessitam ser n o m e a d o s , apesar d e n ã o s e r e m práticas s o c i a i s d a q u e l e s q u e o p r o d u z e m e o v e n d e m , o b s e r v a m - n o
determinantes. D omesmo m o d o , utilizaremos "cultura subalter- o u o c o m p r a m ( n u m a a l d e i a , n u m m e r c a d o camponês o u u r b a n o ,
n a " q u a n d o q u i s e r m o s s u b l i n h a r a oposição d a c u l t u r a p o p u l a r à u m a boutique o u m u s e u ) , c o m relação a o l u g a r q u e o c u p a j u n t o a
c u l t u r a hegemónica. M a s d e f a t o n ã o e x i s t e a c u l t u r a o r a l , t r a d i - o u t r o s o b j e t o s n a organização s o c i a l d o espaço ( v e r d u r a s o u a n t i -
cional o usubalterna. Concordamos c o m G i o v a n n i Battista B r o n z i - g u i d a d e s , s o b r e u m chão d e t e r r a b a t i d a o u s o b a astúcia s e d u t o r a
ni: " A oralidade, o tradicionalismo, o analfabetismo, a s u b a l t e r n i - das v i t r i n a s ) .
d a d e são fenómenos c o m u n i c a t i v o s e / o u económicos e s o c i a i s , i n e -
O q u e é q u e d e f i n e o a r t e s a n a t o : s e r p r o d u z i d o p o r indígenas
rentes à e s t r u t u r a d a sociedade e a o sistema d e produção" ( • • • )
o u c a m p o n e s e s , a s u a elaboração m a n u a l e a n ó n i m a , o s e u caráter
" C o m o fenómenos n ã o p r o d u z e m c u l t u r a , n e m d e s i g n a m c o n d i -
r u d i m e n t a r o u a i c o n o g r a f i a tradicional? A dificuldade e m estabe-
ções s u f i c i e n t e s p a r a a s u a p r o d u ç ã o , m a s s e t r a n s f o r m a m e m
l e c e r a s u a i d e n t i d a d e e o s s e u s l i m i t e s s e t e m a g r a v a d o n o s últimos
c a n a i s e m e i o s d e produção c u l t u r a l e m m o m e n t o s e l u g a r e s d a d o s e
anos p o r q u e os p r o d u t o s considerados artesanais m o d i f i c a m - s e a o
e m d e t e r m i n a d a s situações s o c i a i s . A m e s m a s u b a l t e r n i d a d e e s t á
se r e l a c i o n a r e m c o m o m e r c a d o c a p i t a l i s t a , o t u r i s m o , a "indústria
h i s t o r i c a m e n t e d i f e r e n c i a d a : c o m o e s t a d o sócio-econômico s u f o c a
c u l t u r a l " e c o m a s " f o r m a s m o d e r n a s " d e a r t e , comunicação e
a c u l t u r a , c o m o consciência d e c l a s s e a s u s c i t a . O f a t o r c o n s t a n t e
l a z e r . M a s n ã o s e t r a t a s i m p l e s m e n t e d e mudanças n o s e n t i d o e n a
d a produção c u l t u r a l é o t r a b a l h o d a s c l a s s e s p o p u l a r e s e m s u a s
27 função d o a r t e s a n a t o ; e s t a questão f a z p a r t e d e u m a c r i s e g e r a l d e
f a s e s d e opressão e d e l i b e r t a ç ã o . "
i d e n t i d a d e q u e e x i s t e n a s s o c i e d a d e s a t u a i s . A homogeneização d o s
padrões c u l t u r a i s e o p e s o alcançado p e l o s c o n f l i t o s e n t r e s i s t e m a s
simbólicos c o l o c a m e m questão u m a série d e p r e s s u p o s t o s e d e d i f e -
por que o artesanato e a s festas renças q u e até a g o r a n o s t r a n q u i l i z a v a m : d e u m l a d o o s b r a n c o s , d e
o u t r o l a d o o s n e g r o s ; a q u i o s o c i d e n t a i s , lá o s indígenas; n a s g a l e -
E s c o l h e m o s e s t a s d u a s manifestações p a r a a n a l i s a r a s m u d a n - rias e m u s e u s u r b a n o s a a r t e , n o c a m p o o a r t e s a n a t o .
d a c u l t u r a p o p u l a r n o c a p i t a l i s m o p o r q u e o s objetos a r t e s a n a i s
T a m b é m são d e r r u b a d o s estereótipos estéticos c o m o o s q u e
acontecimento d a f e s t a , além d e c e n t r a i s , n o s p o v o s indígenas e
separavam a arte " c u l t a " , a arte " d em a s s a s " e o p o p u l a r . Estes
vários p o v o s mestiços, s i n t e t i z a m o s p r i n c i p a i s c o n f l i t o s d a s u a
três s i s t e m a s d e representação f u n c i o n a v a m c o m b a s t a n t e i n d e p e n -
dência, s e n d o q u e c a d a u m c o r r e s p o n d i a a c l a s s e s s o c i a i s d i s t i n t a s :
27 G j o v a nni B a t l i s t a B r o n z i n i , C u l t u r a popolare-dialecttica e contestuatità, Bari, a arte c u l t a c o r r e s p o n d i a a o s interesses e gostos d a b u r g u e s i a e dos
Dédalo L i b r e , 1980, p . 15. setores c u l t i v a d o s d a p e q u e n a - b u r g u e s i a , a a r t e d e m a s s a s — q u e
NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 53
52

seria m e l h o r c h a m a r p a r a as m a s s a s — aos setores médios e a o p r o - poi e x e m p l o , a s u a produção m a n u a l — q u e s e j a s u f i c i e n t e , n e m


letariado urbano, enquanto q u e o artesanato correspondia aos 0 m e n o s p o d e - s e r e s o l v e r e s t a questão através d o a c ú m u l o d e
c a m p o n e s e s . A distância e n t r e o s padrões estéticos e l i t i s t a s e a c o m - ( elementos.
. I M O S

petência artística d a s c l a s s e s s u b a l t e r n a s e x p r e s s a v a , e r e a s s e g u - E m e s t u d o s r e c e n t e s t e n t o u - s e d e f i n i r o q u e s e r i a específico a o


r a v a , a separação e n t r e a s c l a s s e s s o c i a i s . O s códigos d o b o m g o s t o , a i l e s a n a t o a p a r t i r d e análises económicas q u e só l e v a m e m c o n t a o
c o n s a g r a d o s p o r e l e s próprios, e r a m c o n t r o l a d o s e x c l u s i v a m e n t e p r o c e s s o d e t r a b a l h o ( e não o s i g n i f i c a d o q u e s e f o r m a n o c o n s u -
p e l o s s e t o r e s d o m i n a n t e s , e i s t o l h e s s e r v i a c o m o s i g n o d e distinção m o ) o u o t i p o d e subordinação económica a o c a p i t a l i s m o ( m a s s e m
p e r a n t e a massificação c u l t u r a l . A a r t e p a r a a s m a s s a s e o f o l c l o r e , . o n s i d e r a r o p a p e l d o c u l t u r a l p a r a e s t a caracterização).
u m a v e z q u e t r a n s m i t i a m u m a visão d e m u n d o q u e l e g i t i m a v a T a m p o u c o é possível d e f i n i r m o s a a r t e o u a c u l t u r a p o p u l a r e s
p e r a n t e a s c l a s s e s p o p u l a r e s a s u a situação d e o p r e s s ã o , r e i v i n d i - a p e n a s p e l a s u a oposição à a r t e c u l t a o u d e m a s s a s . Só o p o d e m o s
c a v a m a s s u a s tradições e hábitos n u m espaço d i f e r e n c i a d o , o n d e a f a z e r a p a r t i r d o sistema q u e e n g e n d r a a t o d o s eles, q u e lhes a t r i b u i
ignorância d a " g r a n d e c u l t u r a " , a i n c a p a c i d a d e d e compreendê-la lugares distintos, r e f o r m u l a - o s e os c o m b i n a , para que c u m p r a m as
e d e desfrutá-la r a t i f i c a v a m o d i s t a n c i a m e n t o e n t r e o p o v o e a s e l i - funções económicas, políticas e p s i c o s s o c i a i s necessárias p a r a a s u a
tes. A m b o s se u n i a m f o r m a l m e n t e n o s discursos o f i c i a i s , n a s i n v o - reprodução. N e c e s s i t a m o s , p o r t a n t o , e s t u d a r o a r t e s a n a t o c o m o
2 8
cações p e l a u n i d a d e n a c i o n a l , m a s e r a m c u i d a d o s a m e n t e s e p a r a d o s u m p r o c e s s o e não c o m o u m r e s u l t a d o , c o m o p r o d u t o s i n s e r i d o s
a o s e r atribuída a o r g a n i s m o s d i f e r e n t e s a s u a a d m i n i s t r a ç ã o , a o e m relações s o c i a i s e não c o m o o b j e t o s v o l t a d o s p a r a s i m e s m o s .
s e r e m o u t o r g a d o s prémios o u r e p r e s e n t a r e m o país n o e s t r a n g e i r o Mas, qual o conceito de artesanato q u e empregaremos para
quando os objetos artesanais e r a m encaminhados para o s concur- s e r m o s e n t e n d i d o s ? S e somássemos o s u s o s d e s t e vocábulo — n o s
sos d e a r t e p o p u l a r e as o b r a s d e a r t e , p a r a as b i e n a i s . textos o f i c i a i s e e m cartazes d e lojas, n a l i n g u a g e m c o l o q u i a l en o s
E m p a r t e , t u d o i s t o c o n t i n u a a o c o r r e r . M a s m u i t o s são o s g u i a s turísticos — teríamos d e i n c l u i r q u a s e t u d o q u e é p r o d u z i d o a
f a t o s q u e vêm c o n s p i r a n d o c o n t r a e s t a r i g o r o s a distinção e n t r e o s mão, d e m o d o r u d i m e n t a r , p e l o s indígenas m a s também p o r o u t r o s
s i s t e m a s simbólicos. A l g u m a s fábricas r e c o r r e m a d e s e n h o s autóc- c o m f o r m a s q u e e v o c a m a i c o n o g r a f i a pré-colombiana o u q u e s i m -
t o n e s p a r a a s u a p r o d u ç ã o i n d u s t r i a l , e e x i s t e m artesãos q u e i n c o r - p l e s m e n t e s u g e r e m " a n t i g u i d a d e " o u " p r i m i t i v i s m o " : cestas e
p o r a m a o s s e u s o b j e t o s a i c o n o g r a f i a d a a r t e c u l t a o u d o s veículos c h a p é u s d e t u l e , louça doméstica e peças escultóricas d e b a r r o ,
d e comunicação d e m a s s a , c o m o o s z a p o t e c o s d e T e o t i t l a n d e i V a l l e , o u r i v e s a r i a l u x u o s a e d e a c a b a m e n t o rústico, o b j e t o s t a l h a d o s p o r
em Oaxaca, q u e tecem estampas c o m imagens de Klee e Picasso. j o v e n s hippies u r b a n o s e o u t r o s d e p r o d u ç ã o e c o n s u m o c a m p o n e -
E m negócios u r b a n o s e n o s m e r c a d o s r u r a i s m i s t u r a m - s e o a r t e s a - ses c u j o v a l o r estético não i n t e r e s s a (sandálias, r e d e s e t c ) .
nato e os produtos industriais. A s companhias multinacionais de N e s t a s peças d i f e r e m o s p r o c e s s o s d e t r a b a l h o , o s c a n a i s d e
d i s c o s d i f u n d e m n a s metrópoles música folclórica, e n q u a n t o q u e o s circulação e a valorização n o m e r c a d o , o s c o n s u m i d o r e s , o s u s o s e
bailes e m que pequenos vilarejos camponeses c e l e b r a m u m a a n t i g a o s i g n i f i c a d o q u e d i f e r e n t e s r e c e p t o r e s lhes a t r i b u e m . Não p a r e c e
f e s t a d o p a d r o e i r o são a n i m a d o s p o r c o n j u n t o s d e rock. Podería- c o n v e n i e n t e r e s t r i n g i r m o s o t e r m o a r t e s a n a t o p a r a u m a área d e s t e
m o s c i t a r a a r t e pop, o s v e r s o s políticos f e i t o s c o m músicas c o m e r - u n i v e r s o a n t e s d e p e r c o r r e r m o s o e s t u d o teórico e empírico a q u e
ciais, o uso d e imagens camponesas pela publicidade para sugerir o n o s p r o p u s e m o s . A s s u m i r e m o s p r o v i s o r i a m e n t e e s t a dispersão s i g -
caráter " n a t u r a l " d e u m p r o d u t o recém-inventado, a existência n i f i c a t i v a , i n c l u i r e m o s n a investigação situações b a s t a n t e díspares,
d e a d o r n o s d e plástico e m v i v e n d a s r u r a i s e d e t e a r e s m a n u a i s q u e o n d e o c o n c e i t o p a s s a p o r u s o s q u e não são f a c i l m e n t e compatíveis:
decoram apartamentos modernos, como outros exemplos d o m o d o p e r g u n t a r p e l a s razões d e s t a desagregação semântica e pragmática
p e l o q u a l o s s i s t e m a s estéticos s e c r u z a m , p a r e c e n d o d i s s o l v e r - s e n o s a j u d a r á a e n t e n d e r a extensão e a modificação d a s s u a s funções
e m f o r m a s m i s t a s d e representação e d e organização d o espaço. s o c i a i s . A o c h e g a r m o s a o último capítulo, e s t a r e m o s e m m e l h o r e s
S e não p o d e m o s d e f i n i r , c o n f o r m e d i s s e m o s , a c u l t u r a p o p u -
l a r p o r u m a essência a priori, t a m p o u c o p o d e m o s fazê-lo c o m o
2 8

a r t e s a n a t o o u c o m a s f e s t a s : n ã o e x i s t e u m e l e m e n t o intrínseco — V i c t o r i a N o v e l o , op- Ctt., p . 7 .


54 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 55

condições para sugerir uma utilização mais restrita do conceito de sc e restaurar-se. A causa da distância entre o ordinário e o festivo
artesanato. deve ser buscada na história cotidiana, no que lhes falta ou não
Das festas não falaremos, como o fazem os fenomenólogos compreendem no trabalho, na vida familiar, no relacionamento
da religião (Otto, Eliade) e mesmo certos antropólogos (Duvig- impotente com a morte.
naud), como uma ruptura do cotidiano, uma passagem do profano Esta diferença da festa, seus excessos, o esbanjamento e a sua
ao sagrado, uma busca de um tempo original onde "se reencontra alegre decoração são compreendidos se relacionados com as suas
de modo pleno a dimensão sagrada da vida, onde se experimenta a carências rotineiras. A partir de um enfoque materialista podem ser
santidade da existência humana enquanto criação divina". 29 Pelo interpretados como uma compensação ideal ou simbólica das insa-
contrário, a pesquisa de campo nos fez ver que a festa sintetiza a tisfações económicas. Uma interpretação energética (psicanalítica)
totalidade da vida de cada comunidade, a sua organização econó- revela, por detrás do desenfreio e da sublimação da festa, a explo-
mica e suas estruturas culturais, as suas relações políticas e as pro- são ou realização disfarçada de pulsões reprimidas na vida social.
postas de mudanças. Num sentido fenomênico é verdade que a Em ambos os casos, a descontinuidade é uma forma de se falar do
festa apresenta uma certa descontinuidade e excepcionalidade: os que se abandona, um outro modo de continuá-lo. Não podemos
índios interrompem o trabalho habitual (ainda que para realizar aceitar que a essência da festa seja a fuga da ordem social, a perse-
outros, às vezes mais intensos e prolongados), vestem roupa espe- guição de um lugar "sem estrutura e sem código, o mundo da natu-
cial, preparam comidas e adornos incomuns. Mas não pensamos reza onde só se exercem as forças do 'id\ a grande instância da sub-
que a soma destes fatos seja determinante para situarmos a festa versão". 31 Ao contrário, mediante o ritual da festa o povo impõe
num tempo e.lugar opostos ao cotidiano. uma ordem a poderes que sente como incontroláveis, procura
As festas camponesas, de raízes indígenas, coloniais, e ainda transcender a coerção ou a frustração de estruturas limitativas atra-
as festas religiosas de origem recente são movimentos de unificação vés da sua reorganização cerimonial, imagina outras práticas sociais,
comunitária para celebrar acontecimentos ou crenças surgidos da que às vezes chega a pôr em prática no tempo permissivo da cele-
sua experiência cotidiana com a natureza e com outros homens bração. Nem sempre estas práticas são libertadoras (podem ser eva-
(quando nascem da iniciativa popular) ou impostos (pela Igreja ou sivas ao interpretarem de modo resignado ou culposo a sua misé-
pelo poder cultural) para comandar a representação das suas condi- ria), mas sim, aparecem estruturadas, tanto por sua ordem interna
ções materiais de vida. Associadas com frequência ao ciclo produ- como pelo espaço delimitado que ocupam na vida cotidiana que as
tivo, ao ritmo do plantio e da colheita, são um modo de elaborar precede e as continua e que nelas se inscreve.
simbólica, e às vezes de se apropriar materialmente, do que a natu- A festa continua, a tal ponto, a existência cotidiana que repro-
reza hostil ou a sociedade injusta lhes nega, celebrar este dom, duz no seu desenvolvimento as contradições da sociedade. Ela não
recordar e reviver a maneira como o receberam no passado, buscar pode ser o lugar da subversão e da livre expressão igualitária, ou só
e antecipar sua chegada futura. Quer festejem um fato recente (a consegue sê-Io de maneira fragmentada, porque não é apenas um
abundância de uma colheita) ou comemorem eventos longínquos e movimento de unificação coletiva: as diferenças sociais e económi-
míticos (a crucificação e ressurreição de Cristo), o que motiva a cas nela se repetem. Por isto não compartilhamos a interpretação
festa está vinculado à vida comum do povo. Ao invés de concebê- que faz do gasto recreativo ou suntuário da festa um mecanismo de
la, como Duvignaud, como um momento no qual a "sociedade sai redistribuição ou de nivelação económica: a pressão comunitária
de si mesma, escapa a sua própria definição", 30 enxergamos nela para que os ricos ocupem cargos e postos diretivos seria, para auto-
uma ocasião na qual a sociedade penetra no mais profundo de si res como Castile, um recurso destinado a obrigá-los a reinvestir os
mesma, naquilo que habitualmente lhe escapa, para compreender- seus lucros na celebração e assim reduzir a desigualdade de renda. 32

29 Mircea Eliade, Lo Sagradoy to Profano, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1967, 31 Idem, p. 41.
p. 80. 32 Entre os que sustentam a tese da "redistribuição" podemos citar Eric Wolf;
30 Jean Duvignaud, Feles et civilizations, Genebra, Librairie Weber, 1973, p. 46. Aguirre Beltran critica esta postura e fala de "nivelação". Castile desenvolveu
56 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 57

Encontramos, às vezes, este processo de coerção e entendemos que As culturas populares


é legítimo ver nele uma forma de se fazer com que o excedente seja
reinvestido dentro do povoado para evitar que um grande inter- em transformação: o caso tarasco
câmbio com o exterior destrua a coesão interna. Mas além do fato Os tarascos ou purépechas têm sido e são um dos principais
de que não existe redistribuição porque os ricos não transferem grupos étnicos do México. Durante a chegada dos espanhóis ocupa-
parte do seu lucro para os pobres mas sim, o gastam no festejo, esta vam o atual estado de Michoacán, partes de Guerrero, Guanajuato
"perda" é muitas vezes compensada por outros ganhos: são eles e Querêtaro, num total de 70 000 quilómetros quadrados onde
que vendem a cerveja e as comidas, que administram as diversões. viviam um milhão e meio de habitantes. Esta cifra incluía outras
Ao beneficiar os que já possuem muito e multiplicar o seu etnias, principalmente nahuatls, toltecas e chichimecas, mas os
enriquecimento graças à intensificação do consumo, a festa reafir- tarascos eram o grupo dominante. Os poucos documentos que se
ma as diferenças sociais, propicia uma nova ocasião para que se referem à sua vida pré-colombiana, os Relatórios de Michoacán
exerça a exploração interna e externa sobre o povo. Ao mesmo e Tancítaro, a descrição na qual Sahagún reproduz a admiração
tempo que possui elementos de solidariedade coletiva, a festa exibe azteca para com eles, bastam para termos uma imagem dos seus
as desigualdades e diferenças que nos impedem de idealizar as "co- costumes e do seu poder, da habilidade artesanal e dos seus artigos
munidades" indígenas, obrigando-nos a escrever com reserva esta de luxo, da sua importância nos tempos anteriores à conquista.
palavra quando aplicada a estes povos. (Não podemos falar de Subjugados pelos espanhóis, perderam possessões e a inde-
comunidades como se fossem blocos homogéneos; é um termo útil pendência, foram obrigados a renunciar parcialmente a seus hábi-
para designarmos agrupamentos onde o coletivo possui mais força tos, mas também muitos se refugiaram na serra. Sua obstinada
do que nas sociedades "modernas", com a condição de que mani- resistência, e a ação social de Vasco de Quiroga, que fez parte da
festemos as suas contradições internas.) colonização mas interessou-se em desenvolver algumas instituições
A partir desta compreensão da festa como uma estrutura, indígenas, tornaram possível uma melhor sobrevivência da herança
homóloga ou invertida diante da estrutura social, podemos tornar tarasca em comparação com outras regiões do México. A superex-
inteligível o que nela existe de acontecimento, de transgressão, de ploração da colónia, os combates no período da Independência e
reinvenção do cotidiano, do que transcende o controle social e se da Revolução, as lutas entre agraristas e sinarquistas — que inter-
abre para o florescimento do desejo. Mas a tensão entre aconteci- romperam e modificaram a sua continuidade cultural — não aboli-
mento e estrutura não se dá do mesmo modo em todas as classes e ram totalmente o sentido comunal na exploração da terra e dos
situações. Consequentemente surge a importância de primeiro bosques, as organizações locais de governo, as técnicas artesanais e
conhecer as estruturas sociais e a estrutura da festa, de não especu- alguns rituais e festas. Como estas transformações de séculos pas-
lar sobre a festa em geral, de distinguir entre as festas cívicas, as reli- sados foram amplamente descritas em vários livros, em especial nos
giosas, as familiares, as urbanas e as rurais. Tratarei de justificar escritos por Carrasco e van Zantwijk, já citados, resenharemos
este enfoque teórico através do estudo de três festas religiosas de apenas no capítulo IV os antecedentes mais significativos para o
Michoacán, a de São Pedro e São Paulo em Ocumicho, a de Cristo estudo dos conflitos atuais.
Rei em Patamban e a dos mortos na zona do Lago de Pátzcuaro. Chegar a Patamban de dia: após um ahora e quinze por uma
picada, vemos terrenos semi-secos, alguns rachados, e nos meses
melhores umas poucas plantações de milho, feijão e abóbora.
A escassez de chuva não impede que enormes bosques de pinho
rodeiem o povoado. Os habitantes parecem habituados ao frio dos
3 700 metros de altitude, e saem muito cedo, homens e adolescen-
tes, montados em cavalos e asnos, armados com machados e serras,
ambos os aspectos em relação aos tarascos no seu livro Cherán: la adaplación de para buscar madeira e resina. Em suas casas, a maioria de grandes
una comunidad tradicional de Michoacán, pp. 62-66. troncos, outras de tijolo, as mulheres, as crianças e alguns homens
58 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 59
cuidam dos animais, de uma pequena plantação, e produzem uma Como tantos objetos cerimoniais, são o recurso para se apropria-
cerâmica verde, de complexa decoração, que levam para a praça rem e conservarem os símbolos de sua identidade. É claro que o
nas festas ou que exibem nas portas. Vão também para a praça, por meio utilizado, o lugar de onde ele é trazido e para onde o levam
ruas de terra ou semicalçadas, para buscar água que às vezes é racio- revelam como a identidade se está modificando.
nada e para comprar o que não possuem nas suas plantações. Os A outra região que estudamos, a do lago de Pátzcuaro, sobre-
mais velhos falam o tarasco, os jovens o entendem e as crianças tudo da cidade que leva o seu nome, parece mostrar para onde vai o
aprendem exclusivamente o espanhol na escola. Como a migração é processo que vimos em Patamban e outros povoados da serra. A
equivalente ao crescimento demográfico, faz muitos anos que são região lacustre, devido ao seu papel-chave na economia, na política
umas seis mil pessoas os seus habitantes. e na cultura da região, desde os tempos pré-cortesianos até agora,
Chegar a Patamban no sábado, na noite anterior à festa do foi acrescentando, à sua maior riqueza agrária, pesqueira e em cabe-
Cristo Rei: três quilómetros antes do povoado sabemos que esta- ças de gado, centros arqueológicos e coloniais (igrejas, conventos,
mos perto ao vermos girar a roda-gigante, iluminada por lâmpadas cidades intactas desde quatro séculos atrás), peças de artesanato e
fluorescentes, e tão alta como a torre da igreja. Por ruas irregula- serviços turísticos. Excelentes vias de comunicação facilitam que os
res, desacostumadas aos carros,' caminhões estatais e de interme- 24000 habitantes de Pátzcuaro viajem com frequência e recebam
diários particulares chegam para buscar as peças de artesanato do produtos industrializados, revistas, fotonovelas e jornais. Por estes
concurso. Encostamos às paredes para deixá-los passar e ouvimos motivos concentrou-se também nesta área a atividade de vários
os comentários dos habitantes que transformam as portas das suas organismos oficiais: a Secretaria de Agrupamentos Humanos e de
casas em plateias. Na praça e nas ruas próximas os mais jovens se Obras Públicas, que entre outros edifícios constrói oficinas e lojas
reúnem para observar como são instalados os postos de venda de para a venda de peças de artesanato; o Instituto Nacional Indige-
produtos industriais, os jogos mecânicos e de azar. De modo seme- nista, que cria escolas, albergues e fornece assessoria técnica e
lhante ao que ocorre em outros povoados camponeses, observamos comercial para agricultores e artesãos; a Secretaria de Turismo e
que um modo de se "vestir para a festa" é usar roupas de clubes suas campanhas publicitárias. Existe também um organismo inter-
norte-americanos, ainda que as crianças prefiram as que levam nacional, até pouco tempo dependente da UNESCO, o Centro
imagens da televisão como as panteras e a mulher biônica. No Regional de Educação Fundamental para a América Latina (CRE-
palanque levantado sobre a fonte da praça, um representante da FAL), que se dedica à organização comunitária, à educação cam-
delegação do Turismo anuncia que vai começar o concurso de pire- ponesa e que na década de 60 influiu na produção artesanal através
kuas, as antigas canções tarascas. No momento em que o primeiro de estudos, cursos, assistência técnica e propostas para os organis-
conjunto começa a cantar, alguns homens, apenas homens, uns mos governamentais.
quarenta, aproximam-se com seus gravadores e os levantam, pro- Entretanto, as diferenças existentes entre os povoados que
curando a melhor posição para registrar a música. Ao término de margeiam o lago, como por exemplo Ihuatzio e Tzintzuntzan, que
cada canção ouvem-se aplausos e o barulho das teclas de controle possuem uma importância política e religiosa semelhante, não per-
dos gravadores. Numa pausa do espetáculo, respondem-me que mitem a simplificação evolucionista que conceberia esta zona como
compraram os gravadores em Morelia ou no Distrito Federal, alguns uma antecipação do que ocorrerá na serra. Tzintzuntzan é um
nos Estados Unidos, onde trabalharam como braçais, e que querem povoado mestiço que perdeu o uso da língua indígena e se encontra
guardar a música para continuar a escutá-la quando a festa termi- económica e culturalmente integrado à sociedade nacional. Ao
nar e voltarem a viajar. Terminada a pausa retornam aos seus luga- lado, Ihuatzio — que também está a alguns poucos metros de dis-
res, junto ao palanque, ou agrupados em círculo ao redor de um tância de Janitzio, de frente para esta ilha que é o maior centro de
grande alto-falante: devido à sua atitude concentrada diante dos comercialização da festa dos mortos no México — conserva os hábi-
aparelhos eletrônicos, por seus gestos lentos e cuidadosos com os tos, a língua e as formas de organização social dos tarascos. Este
quais manipulam as fitas, debaixo de amplos ponchos que os prote- processo não pode ser pensado como uma absorção progressiva e
gem do frio, vejo nos gravadores uma parte do ritual da festa. inevitável das culturas tradicionais pelo capitalismo. É mais com-
NESTOR GARCIA CANCLINI
60
plexo, com idas e vindas, coexistências desconcertantes e múltiplas
combinações.
Estas não são todas as bases teórico-metodológicas, nem o
marco histórico-social da região, que podemos considerar como
suficientes para a nossa investigação. Preferimos ir entrelaçando os
dados e as reflexões através do texto, achamos melhor que a descri- A produção artesanal
ção dos fenómenos encontrados na pesquisa de campo se deixe
guiar pela explicação conceituai, que o trabalho teórico seja colo- como uma necessidade
cado em contraste vez por outra com a sua base empírica.
do capitalismo
O artesanato se mantém como um setor específico, possuidor
de técnicas de fabricação e de motivos visuais de origem indígena,
ou se dissolveu nos sistemas de produção e de representação das
sociedades industriais? É comum que as peças de artesanato sejam
encaradas como objetos que se enganaram de século. Afirma-se
que as oficinas artesanais correspondem a um outro modo de pro-
dução, que nas grandes cidades há muito tempo foram substituídas
pelas manufaturas e em seguida pelas fábricas, e que a sua concor-
rência desvantajosa diante das empresas capitalistas relegou os
artesãos à realização de consertos ou outros trabalhos marginais
onde a criatividade manual permanece sendo útil. Pode-se entender
por que nos países latino-americanos, devido à sua "moderniza-
ção" tardia e desigual, persistem formas "atrasadas" de produ-
ção, mas como explicar que no México, que apresenta uma indus-
trialização crescente desde a década de 40, exista o maior número
de artesãos do continente: seis milhões de pessoas? Por quais moti-
vos o Estado multiplica os organismos destinados a incentivar um
tipo de trabalho que, ocupando cerca de 10% da população, repre-
senta apenas 0,1 °7o do produto nacional bruto? 33
Não podemos explicar o auge do artesanato juntamente com
o avanço industrial, se o concebermos como uma sobrevivência
atávica de tradições ou como obstáculo disfuncional para o desen-
volvimento económico. Nossa tese, quanto a este ponto, é que o
artesanato — bem como as festas e outras manifestações populares
33 I Seminário sobre a problemática artesanal (intervenção do dr. Rodolfo Becerril
Straffon), FONART-SEP, 1979, p. 1.
NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 63
62
— subsistem e crescem porque desempenham funções na reprodu- que nunca propicia aos pequenos camponeses rendimentos de
ção social e na divisão do trabalho necessárias para a expansão do importância.
capitalismo. Para explicar a sua persistência deve-se analisar, dentro A partir dos anos 60 agravaram-se problemas crónicos do
do ciclo atual da reprodução do capital económico e cultural nos campo mexicano. Os minifúndios se tornam cada vez menos rentá-
países dependentes, quais as funções que o artesanato desempenha veis, os preços de muitos produtos agrícolas se deterioram em rela-
e que não são contra a lógica capitalista, mas dela fazem parte. ção aos produtos industriais, o acelerado crescimento demográfico
Deve-se enxergar tanto os aspectos materiais quanto os simbólicos torna as terras insuficientes para oferecer trabalho para toda a
na subordinação das comunidades tradicionais ao sistema hegemó- população camponesa. Esta pauperização expulsa um grande núme-
nico, deve-se perceber a complementação e o inter-relacionamento ro de pessoas do campo, incentiva a concentração das propriedades
que se estabelece entre eles. E ao mesmo tempo deve-se superar o abandonadas pelos minifundiários, aumenta a mão-de-obra deso-
estudo das alterações formais dos objetos e as mudanças na produ- cupada e por conseguinte o grau de exploração e o número de mi-
ção, como geralmente se faz, para se considerar o ciclo completo grantes: em 1960, 90% das fazendas do centro do país possuíam
do capital: as mudanças na produção, na circulação e no consumo. menos de 5,1 hectares cada uma; em 1970, muitas delas haviam
Vejamos, antes de tudo, por que se transforma a função tra- desaparecido. 34
dicional do artesanato: proporcionar objetos para o autoconsumo Em Michoacán as terras comunais são minoritárias em rela-
nas comunidades indígenas. No México podemos identificar vários ção às propriedades privadas ou as que são temporariamente arren-
fatores, inerentes ao desenvolvimento capitalista, como responsá- dadas. Os pequenos produtores, ou os que participam em empreen-
veis pelo crescimento do número de artesãos e pela diminuição da dimentos comunais, raramente obtêm muito mais do que o milho,
sua produção para uso interno em comparação com o excedente o feijão e outros poucos alimentos em quantidade apenas suficiente
para a comercialização externa. Sem pretendermos uma enumera- para as suas famílias. A criação de animais, quando existe, é dedi-
ção exaustiva, analisaremos os quatro campos principais onde se cada em sua maioria para o consumo interno; a madeira dos bos-
localizam as causas desta transformação: as deficiências da estru- ques, para a fabricação do artesanato, de moradias e como com-
tura agrária, as necessidades do consumo, o estímulo turístico e a bustível. Tal escassez de recursos obriga uma procura de alternati-
promoção estatal. Como estes fatores ainda não estão suficiente- vas para a subsistência: alguns produzem artesanato, outros traba-
mente estudados nas suas relações com o artesanato e a cultura lham em terras alheias (como diaristas, meeiros ou parceiros), na
popular, proporemos — mais do que uma visão sistemática — uma zona do lago de Pátzcuaro recorrem à pesca e ao comércio com os
reformulação hipotética do problema, uma reunião de dados e uma turistas. Muitos acabam por emigrar para o Sul dos Estados Uni-
maneira de utilizá-los para incitar a realização de futuros trabalhos. dos, alguns não chegam mais do que aos estados do Norte do Méxi-
co ou às grandes cidades do país, outros até Apatzingán, ainda
dentro do estado michoacano, onde existem terras mais férteis que
"Resolver" o problema do desemprego rural permitem o cultivo de melão e de algodão para exportação. Um
grande número dentre as famílias entrevistadas, tanto na região
A principal fonte de recursos nas economias camponesas, o lacustre como na serra, possui membros trabalhando longe de seus
cultivo da terra está organizado em unidades mínimas de produção povoados.
(ejidos — terras comunais — e pequenas propriedades), cujo tama- Devido ao empobrecimento e ao caráter estacionário da pro-
nho não permite o emprego de toda a força de trabalho dos grupos dução agrícola, o artesanato aparece como um recurso complemen-
domésticos durante todo o ciclo agrícola. A tecnologia rudimentar, tar apropriado, e em alguns povoados converteu-se na principal
frequentemente pré-hispânica ou da era colonial, juntamente com a fonte de renda. Sem requerer uma grande inversão em materiais e
má qualidade de muitas das terras contribuem para que grande
parte da produção agrícola sirva unicamente para o autoconsumo. 34 Teresa Rendon, "Utilización de mano de obra en la agricultura mexicana, 1940-
O excedente é entregue ao mercado em tais condições de exploração 1973", Demografiay Economia, vol. X, n? 3, México, 1976.
64 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 65

máquinas, nem a formação de mão-de-obra qualificada, aumenta o As necessidades contraditórias do consumo


ganho das famílias rurais, através da utilização das mulheres, das
crianças e dos homens quando dos períodos de inatividade agrícola. A expansão do mercado capitalista, a sua reorganização
O artesanato permite que os camponeses sem terra encontrem um monopolista e transnacional tende a integrar todos os países, todas
modo alternativo de subsistência. As tradições artesanais herdadas as regiões de cada país num sistema homogéneo. Este processo
de tempos pré-colombianos, o lugar central que ocupam em muitas "estandartiza" o gosto e substitui a louça ou a roupa de cada comu-
culturas indígenas influenciaram para que alguns funcionários ima- nidade por produtos industriais padronizados, os seus hábitos par-
ginassem que este tipo de produção "resolveria" a questão agrária. ticulares por outros de acordo com um sistema centralizado, as
Ainda que o conhecimento mais elementar da problemática rural suas crenças e representações pela iconografia dos meios de comu-
coloque em descrédito este tipo de "emenda", o mais completo nicação de massa: o mercado da praça cede o seu lugar para o super-
estudo feito até agora a respeito das condições de emprego e sobre a mercado, a festa indígena para o espetáculo comercial.
migração em Michoacán — o de Anne Lise e René Pietri — demons- Mas de modo simultâneo as exigências de renovar vez por
tra que o artesanato é ainda hoje a principal maneira para se reter a outra a demanda não permitem que a produção se estanque na
população camponesa nesta região: as mais baixas cifras de mi- repetição monótona de objetos uniformizados. Contra os riscos.de
grantes correspondem aos filhos de artesãos. 35 uma entropia no consumo, recorre-se à introdução de inovações na
Do ponto de vista dos camponeses, a produção artesanal moda e ao processo de ressignificação publicitária dos objetos:
faz com que seja possível manter a família unida e alimentada no todos usamos jeans, mas a cad ano devemos mudar de modelo; na
povoado do qual sempre se sentiram fazendo parte. Do ponto de compra de produtos industriai — um carro, por exemplo — a pro-
vista do Estado, o artesanato é um recurso económico e ideológico paganda nos segreda confidencialmente (a todos) que existem tantas
utilizado para limitar o êxodo camponês e a consequente entrada cores e tais acessórios opcionais para permitir que o nosso se distin-
nos meios urbanos de maneira constante de um volume de força de ga dos outros. O capitalismo engendra os seus próprios mecanis-
trabalho que a indústria não é capaz de absorver, e que agrava as já mos para a produção social da diferença, mas também utiliza ele-
preocupantes deficiências habitacionais, sanitárias e educacionais. mentos alheios. As peças de artesanato podem colaborar nesta revi-
A gravidade desses problemas foi revelada num estudo realizado talização do consumo, já que introduzem na produção em série
pela COPLAMAR (Coordenação Geral do Plano Nacional de industrial e urbana — com um custo baixíssimo — desenhos origi-
Zonas Deterioradas e de Grupos Marginalizados), segundo o qual nais, uma certa variedade e imperfeição, que por sua vez permitem
três milhões de pessoas disfarçam o seu desemprego dedicando-se que se possa diferenciá-las individualmente e estabelecer relações
ao comércio ambulante — engraxar sapatos, vender bugigangas, simbólicas com modos de vida mais simples, com uma natureza
"comer fogo" — nas esquinas da capital. A promoção do artesa- nostálgica ou com os índios artesãos que representam esta proximi-
nato, que propicia no campo trabalho para os seus produtores e, dade perdida.
nas cidades onde é vendido, ocupação para milhares de marginali- Os fatores psicossociais, o valor conotativo do artesanato
zados, transforma "uma situação de subemprego visível (pessoas possuem singular importância entre os consumidores estrangeiros.
que só possuem ocupação durante uma curta temporada por ano)
numa situação de subemprego invisível generalizado durante o ano México, Nueva Imagen, 1980, p. 360. Vários livros têm caracterizado nos últi-
devido à justaposição ou à superposição de atividades económicas mos anos a economia camponesa mexicana e o seu posicionamento no desenvol-
vimento capitalista. Para se conhecer as discussões teóricas e a informação empí-
cujos rendimentos são anormalmente baixos". 36 rica, já bastante difundidas, remetemos apenas a dois textos recentes: Mário
Margulis, Contradicciones en la estructura agraria y transferencias de valor,
México, El Colégio dei México, 1979, e Armando Bartra, La Explotación dei tra-
Anne Lise e René Pietri, Empteo y migración en la región de Pátzcuaro, México, bajo campesino porei capital, México, Editorial Macehual, 1979. Quanto à orga-
INI, 1976, p. 257. . nização específica da produção artesanal michoana e a sua posição no interior da
Anne Lise-Pietri, "La artesanía: un factor de integractón dei médio rural , in economia camponesa, além do que foi dito neste capítulo, este tema será tratado
no capítulo V e na conclusão.
Ivan Restrepo (coord.), Conflicto entre ciudad y campo en América Latina,
66 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 67
Gobi Stromberg, uma antropóloga norte-americana que pesquisou Também aqui existe uma oscilação entre a uniformidade e o incen-
a produção de objetos de prata em Taxco, registrou algum dos livo seletivo das diferenças. De uma certa maneira, os países turísti-
motivos que levaram os turistas a comprar peças de artesanato: cos são um só país, em todos se fala inglês, existe um cardápio inter-
atestar a sua viagem ao estrangeiro (devido ao status sócio-econô- nacional, pode-se alugar carros idênticos, ouvir a música da moda e
mico e ao tempo livre que ela implica), demonstrar a "amplitude" pagar com cartão American Express. Mas para se convencer as pes-
do seu gosto, que não se restringe ao seu próprio contexto e é sufi- soas a fim de que se desloquem até hotéis remotos não basta ofere-
cientemente "cultivado" para abranger "inclusive o que há de mais cer-lhes a reiteração dos seus hábitos, um ambiente padronizado
primitivo", expressar a recusa diante de uma sociedade mecanizada com o qual podem sintonizar-se rapidamente; é útil que se mante-
e a capacidade de dela "escapar" mediante a aquisição de peças nham cerimónias "primitivas", objetos exóticos e povos que os
singulares elaboradas a mão. 37 ofereçam barato.
Existe, deste modo, um duplo movimento do consumo. Por Mais ainda que o autóctone, o que o turismo requer é a sua
um lado, a roupa e os objetos domésticos de origem indígena são mescla com o avanço tecnológico: as pirâmides ornadas com luz e
cada vez menos utilizados nas sociedades camponesas porque são som, a cultura popular transformada em espetáculo. É fácil com-
substituídos por produtos industriais mais baratos ou atraentes prová-lo nos cartazes e folhetos das empresas privadas e dos orga-
devido ao seu desenho e suas conotações modernas. Mas a produ- nismos estatais. Um artigo da revista Caminos dei Aire, editada pela
ção artesanal decaída é reativada graças a uma crescente demanda companhia Mexicana de Aviación e distribuída em suas agências e
de objetos "exóticos" nas próprias cidades do país e do estrangeiro. Boeings, incentiva a compra de artesanato com este duplo argu-
Esta estrutura aparentemente contraditória mostra que também no mento: são feitos com "ferramentas de pedra antiquíssimas" e
espaço do gosto o artesanal e o industrial, a "tradição" e a "mo- laqueados com espinhos e pigmentos vegetais, mas possuem avan-
dernidade" se implicam reciprocamente. ços técnicos que garantem a duração das peças. "Há uns trinta
anos muitos dos artefatos de barro eram encantadoramente decora-
dos, mas se rompiam com facilidade e eram demasiado porosos
para a cozinha moderna. Hoje em dia, os artigos de barro ainda
são pintados a mão de modo muito belo, mas são à prova de
O turismo ou a reconciliação do atraso com a beleza logo".
"Ainda que o lugar conserve um encanto de selvagem virgindade, a popula- A estrutura do raciocínio confessa as suas duas operações
ção não é tão primitiva que não possa oferecer as comodidades básicas às ideológicas: a) mostrar que o antigo e o moderno podem coexistir,
quais o viajante está acostumado." que o primitivo possui um lugar na vida atual; b) organizar esta
relação, enlaçar ambas as partes (ao mesmo tempo que as diferen-
De la Guia Turística de la Asociación Mexicana Automobilística, a propósito de cia, subordina o primitivo diante do atual, como o faz a forma
Isla Mujeres (México, 1980, 10? ed., p. 166). adversativa " m a s " : o seu uso reiterado para vincular o artesanal e
A fascinação nostálgica pelo rústico e pelo natural é uma das 0 industrial significa que o artesanal é fatalmente inferior e defei-
motivações mais invocadas pelo turismo. Ainda que o sistema capi- tuoso, que pode permanecer entre nós se melhorado por aquilo que
talista proponha a homogeneidade urbana e o conforto tecnológico 0 supera).
como modelo de vida, mesmo que o seu projeto básico seja apro- Como que para confirmar que este lugar paradisíaco do qual
priar-se da natureza e subordinar todas as formas de produção à lala a revista merece ser visitado pelo modo como superou o atraso
economia mercantil, esta indústria multinacional que é o turismo conservando a sua beleza, assinala que artesãos "da geração atual
necessita preservar as comunidades arcaicas como museus vivos. estão cursando a universidade ou já estão seguindo qarreira. Entre-
lanto, frequentemente a tradição de hábeis e criativas mãos é tão
forte que estes mesmos jovens regressam às suas casas para nas suas
37 Gobi Stromberg, EIJuego dei coyote: platería y arte en Taxco, inédito, pp. 16-17. horas de folga trabalhar em cerâmica, esculpir em madeira ou para
68 NESTOR GARCÍ A CANCLINI
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 69
desenvolver qualquer outra atividade artística".18 O pitoresco, o cularmente impressionante é a invasão que ocorre no lugar mais
primitivo podem seduzir o turista devido ao contraste com a sua famoso de Michoacán, a ilha de Janitzio, cujos 3 mil habitantes
vida habitual, mas o fazem ainda mais se o discurso folclórico- receberam em 1979 cerca de 70 mil turistas durante a Noite dos
publicitário consegue convencê-lo de que a pobreza não precisa ser Mortos (do dia 1 para o dia 2 de novembro). Os 250 postos de venda
erradicada, que as "ferramentas antiquíssimas" podem sair-se bem de artesanato, que incluíam desde estabelecimentos estáveis até
diante da cozinha moderna, que "os artigos pintados a mão de postos improvisados por indígenas e intermediários das redonde-
modo muito belo", já não são incompatíveis com os testes de resis- zas, não davam conta de atender toda a multidão.
tência. Também as contradições entre o universitário e o artesanal, Em resumo: também no discurso turístico e nos números per-
o profissional e o camponês são conciliáveis numa mesma pessoa, cebemos a importância que possuem o artesanato e as festas popu-
no recinto da subjetividade. Como consegui-lo? Deve-se deixar lares em termos do desenvolvimento atual. Como atração econó-
que as tradições em nós adormecidas venham à tona quando do mica e de lazer, como instrumento ideológico, a cultura popular
regresso às nossas casas e que nos ajudem a nos realizarmos... nas tradicional serve à reprodução do capital e da cultura hegemónica.
"horas de folga". Esta a admite, e dela necessita, como uma adversária que a conso-
Michoacán, um dos estados que apresentam maior desenvol- lida, que evidencia a sua "superioridade", como um lugar onde se
vimento artesanal e afluência de visitantes, permite que apreciemos vai para obter lucro fácil, e também a certeza de qu; o merecemos
claramente o impacto do turismo: na produção do artesanato (mu- porque afinal de contas a história termina conosco.
danças no volume e no desenho), na circulação (crescimento dos
intermediários, das feiras, mercados e lojas) e no consumo (modifi-
cações no gosto da população tarasca). O seu forte desenvolvimento
pré e sobretudo pós-colombiano, um resultado de múltiplos estí-
mulos internos (desde Vasco de Quiroga até Lázaro Cardenas), A ação político-ideológica do Estado
nunca havia antes experimentado um desenvolvimento tão acele- A principal função ideológica do artesanato não se realiza
rado como nas duas últimas décadas. Junto com os demais fatores perante os turistas, mas sim com os habitantes do país que o pro-
mencionados neste capítulo, é evidente o papel chave desempe- duz. Isto já havia sido percebido pelos dirigentes surgidos com a
nhado pela penetração do turismo. As estatísticas, ainda que precá- Revolução de 1910, quando promoveram o desenvolvimento do
rias e incompletas, e as entrevistas que realizamos nos mercados artesanato e do folclore com a finalidade de oferecer um conjunto
revelam que os lugares e as épocas de maior produção e venda coin- de símbolos para a identificação nacional. Um país fraturado por
cidem com os que apresentam o maior número de visitantes: dos divisões étnicas, linguísticas e políticas necessitava, juntamente
2 071 439 turistas que Michoacán recebeu em 1977, mais de 60% com as medidas de unificação económica (reforma agrária, nacio-
(1 264 035) concentraram-se nas cidades que possuem o maior nalização, desenvolvimento coordenado do mercado interno) e
comércio de artesanato (Morelia, Uruapan e Pátzcuaro) nos meses política (criação do partido único, da central dos trabalhadores),
de abril e de dezembro, ou seja, durante as festas e feiras da Semana que se estabelecesse uma homogeneidade ideológica. A castelhani-
Santa e do fim de ano. 39 Faltam-nos dados específicos de Michoa- zação dos índios e a exaltação do seu capital cultural sob a forma
cán quanto ao volume global das vendas, mas uma estimativa nacio- de patrimônio comum de todos os mexicanos foram alguns dos
nal indica que as compras de peças de artesanato alcançam a por- recursos privilegiados. Tanto o novo Estado quanto vários intelec-
centagem de 18% do gasto médio de cada turista. 40 Um fato parti- tuais e artistas de destaque (Manuel Gamio, Othón de Mendizabal,
Alfonso Caso, Diego Rivera, Siqueiros) sustentaram que para
38 Bessie Galbraith, "Artesanía" in Caminos dei Aire, México, Mexicana de Avia- construir "uma Pátria poderosa e uma nacionalidade coerente"
ción, março-abril 1980, pp. 9-12.
39 Dados retirados do Plan de Desarrollo Turístico dei Gobierno de Michoacán, devia ser posta em prática uma política que incluísse a "fusão entre
1974-1980, tomo I. raças, a convergência e a fusão de manifestações culturais, a uni-
40 Cifra do Banco de México mencionada por Victoria Novelo, op. cit., p. 15. ficação linguística e o equilíbrio económico entre os elementos
70 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 71

sociais", 41 conforme escreveu Manuel Gamio. Salvador Novo objetos indígenas com objetos de outra origem; b) o incentivo à
declarava em 1932 que "os bonecos de palha, as xícaras, os brin- exportação dos produtos artesanais, que pretendeu contribuir para
quedos feitos de barro, os chapéus multicoloridos" estavam dando a política de substituição de importações visando a obtenção de um
aos mexicanos "um elevado sentido racial e uma consciência de equilíbrio na balança comercial; c) a promoção do artesanato como
nacionalidade que antes nos faltava". 42 parte da estratégia de criação de empregos e fontes complementares
Em 1921 reconheceu-se oficialmente pela primeira vez a impor- de rendimentos para as famílias rurais com a finalidade de reduzir
tância do que até então era chamado de "arte popular" ou "indús- o seu êxodo em direção aos centros urbanos. 43
trias típicas"; para comemorar o centenário da Consolidação da De um modo ou de outro, por intermédio das políticas esta-
Independência foi organizada uma exposição de artesanato, inau- tais para o artesanato percebemos quais as funções que as culturas
gurada pelo presidente do México, Álvaro Obregon. Na década de populares tradicionais podem cumprir no desenvolvimento econó-
trinta foram realizadas exposições promocionais no estrangeiro. mico e na reelaboração da hegemonia. O avanço do capitalismo
Durante o governo de Lázaro Cardenas, em 1938, foi criado em nem sempre precisa da eliminação das forças produtivas e culturais
Pátzcuaro o Museu Regional de Artes e Indústrias Populares, e em que não servem diretamente ao seu desenvolvimento se estas forças
1940 o primeiro Congresso Indigenista, reunido nesta cidade, apro- proporcionam coesão a um setor numeroso da população, se ainda
vou uma recomendação a respeito da "proteção das artes indígenas satisfazem as suas necessidades ou as necessidades de uma reprodu-
por intermédio de organismos nacionais". A partir de então, o ção equilibrada do sistema.
incentivo aumentou: estudos sócio-econômicos e técnicos procura-
ram conhecer os problemas da produção artesanal e propuseram A produção artesanal como uma necessidade
novas medidas de apoio, foram criados fundos destinados à assis- do capitalismo?
tência creditícia, bem como organismos regionais e nacionais dedi- As peças de artesanato, portanto, são e não são um produto
cados ao incentivo da produção e da sua difusão comercial. A Dire- pré-capitalista. O seu papel como recursos suplementares de rendi-
ção Geral de Culturas Populares e o Fundo Nacional para o Fomento mento no campo, como introdutoras de renovação na esfera do con-
do Artesanato (FONART), criados na década de 70, tentaram coor- sumo e como atração turística e instrumento de coesão ideológica
denar estes esforços que se encontravam disseminados devido à mul- indica a variedade de lugares e funções nos quais o capitalismo delas
tiplicação dos organismos oficiais, mais de cinquenta em todo o país. necessita. Entretanto, não alcançamos inteiramente o que acontece
Victoria Novelo, autora do mais exaustivo estudo a respeito com elas se só pensamos a partir do capitalismo, unidirecionalmente,
das instituições e das políticas para o artesanato, explica que — as suas encruzilhadas atuais. Os produtos artesanais são também,
ainda que tenha sido mantida a exaltação pós-revolucionária dos há séculos, manifestações culturais e económicas dos grupos indí-
símbolos indígenas — o avanço do capitalismo tornou mais com- genas. Esta dupla inscrição: histórica (num processo que vem desde
plexo em etapas posteriores o seu significado e função. Victoria dis- as sociedades pré-colombianas) e estrutural (na lógica atual do
tingue três períodos a partir daquele impulso inicial: a) a explora- capitalismo dependente) é o que produz o seu aspecto híbrido. Ao
ção comercial do artesanato relacionada com o crescimento do analisarmos este aspecto devemos encontrar um caminho entre dois
turismo estrangeiro e com o interesse em incrementar a reserva de obstáculos vertiginosos: a tentação folclorista de enxergar apenas o
divisas, que gerou a sua industrialização parcial e a combinação de aspecto étnico, considerando o artesanato apenas como uma sobre-
vivência crepuscular de culturas em extinção; ou, como uma reação
a isto, o risco de isolar a explicação económica, e estudá-lo como
Manuel Gamio, Forjando Patria, México, Editorial Porrúa, 1960, p. 183. qualquer outro objeto regido pela lógica mercantil.
Salvador Novo, "Nuestras artes populares", in Nuestro México, T. I., n? 5, Nem as culturas indígenas podem existir com a autonomia
México, julho 1932, p. 56. Citado por Victoria Novelo, op. cit., p. 35. Veja-se
também, de Maria Luisa Zaldivar Guerra, Consideraciones sobre el arte popular
en México, Sociedad Mexicana de Antropologia, XIII, Mesa redonda, Jalapa,
set. 1973. Victoria Novelo, op. cit., pp. 14-16.
72 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 73

pretendida por certos antropólogos ou folcloristas, nem são tam- tos. Existe muito mais do que a submissão e o mimetismo passivo
pouco meros apêndices atípicos de um capitalismo que a tudo devo- que costuma ser atribuído a eles. Teremos ocasião de apreciá-lo
ra. Às vezes os economistas mais atentos ao desenvolvimento mate- quando descrevermos o significado do artesanato na vida cotidiana
rial das formações sociais possuem uma concepção teológica do de economias de quase auto-subsistência, na casa indígena e no
capitalismo (pensam-no como igual a Deus: onipotente, onisciente, mercado camponês, e o confrontarmos com o significado que ele
onipresente) e exageram a sua hegemonia até enxergarem tudo que adquire no museu, no supermercado e nas moradias urbanas. Se
acontece como um efeito mecânico das suas determinações macroes- antepomos a esta descrição de fatos, que cronologicamente foram
truturais. 44 Em sociedades tão complexas como as que se situam no prévios, a explicação da sua função presente, isto se deve a razões
interior do capitalismo periférico e que possuem um forte compo- metodológicas: a explicação deve orientar a descrição. Não esque-
nente indígena, os processos sócio-oulturais são o resultado do con- cemos que toda explicação se constrói no processo de observação e
flito entre várias forças que possuem origem diversa. Uma delas é a descrição e que, após a construção de uma primeira explicação,
persistência de formas de organização comunitária da economia e novas observações podem vir a retificá-la, mas é certo também que
da cultura, ou sobras da que existiu anteriormente, cuja interação a observação que não possui um marco teórico é uma observação
com o sistema dominante é muito mais complexa do que supõem os cega ou ilusória.
que falam unicamente da penetração e da destruição das culturas Não apreenderíamos o significado atual do artesanato no
autóctones. capitalismo se o observássemos apenas a partir da sua raiz indíge-
Muitos estudos a respeito das culturas populares surgiram a na. Aqueles que partem da sua origem étnica são levados por este
partir desta pergunta apocalíptica: o que se pode fazer para evitar método a enxergá-lo como uma sobrevivência que não possui lugar
que o capitalismo acabe com o artesanato e com outras manifesta- nas sociedades industriais. Em troca, uma explicação preocupada,
ções tradicionais? Antes de procurar a resposta, deve-se perguntar acima de tudo, em situar o artesanato na lógica da reprodução capi-
se a pergunta está bem formulada. Ela deve ser repensada com base talista, onde o histórico esteja presente mas se encontre subordi-
numa visão mais complexa de como o modo de produção vigente nado ao estrutural, é capaz de compreender as oscilações atuais, o
reproduz e renova a sua hegemonia. Os quatro fatores expostos auge e o declínio que ocorre em diferentes regiões e períodos, bem
neste capítulo demonstram que nem o Estado nem a classe domi- como pode entender através da divisão do trabalho e das suas varia-
nante estão interessados em abolir a produção artesanal. Nenhuma ções a subordinação de formas não-capitalistas de produção ao
classe hegemónica pode exercer o seu poder e a sua ideologia atra- regime dominante.
vés de uma arbitrariedade total, unicamente de cima para baixo; ela É óbvio que a existência deste processo de deslocamento faz
necessita, especialmente nas suas etapas históricas progressistas, do com que os produtos artesanais já não sejam o que eram na época
avanço do conjunto da sociedade. Quer seja através de um desen- das oficinas pré-capitalistas, nem o que foram em séculos passados
volvimento tecnológico e económico que integre a todos os setores como objetos representativos de grupos étnicos, nem ao menos
sociais, incluindo as suas formas peculiares de produção material e sejam os símbolos da identidade nacional como nas primeiras déca-
cultural, quer seja porque precisa melhorar o nível educativo e de das deste século. Continuam a desempenhar parcialmente estas
consumo das classes subalternas para expandir a produção e o mer- funções, mas a existência de novos projetos para o país e a conse-
cado, o projeto dominante inclui muito mais do que a classe que o quente mudança do seu papel económico e cultural foram alterando
formula. o seu lugar nas relações sociais, na definição da identidade mexi-
Do mesmo modo, devemos levar em consideração o papel cana e a sua própria identidade como objetos. Devemos averiguar,
específico que os índios atribuem aos seus próprios produtos e então, que modificações estão acontecendo na estrutura interna
como ressignificam e refuncionalizam os papéis que lhes são impos- dos povos indígenas e mestiços, na significação social do artesa-
nato, e perceber de que modo as estratégias de reprodução e de
44 Esta critica nos foi sugerida, na discussão deste capítulo, pelo sociólogo Alfredo transformação do capitalismo influem na produção, na circulação
Pucciarelli. e no consumo do artesanato.
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 75

nal. Em muitos povoados os bosques continuam a ser de proprie-


dade coletiva e a exploração da terra ainda é decidida coletivamente,
sendo que a produção para auto-subsistência conserva em alguns
deles uma importância maior do que a destinada ao mercado. Certas
comunidades, sobretudo na serra, permanecem falando o tarasco,
celebrando suas festas antigas e mantendo formas de organização
social e de poder — governo dos anciãos, sistemas de reciprocidade
— paralelas ao regime nacional.
O que aconteceu com o artesanato neste processo? Antes da
A sociedade fragmentada conquista ele já possuía um papel importante na economia de mui-
tos povos do México e, portanto, na sua identidade. Sabemos pelo
Relatório de Michoacán que o Império Tarasco havia organizado
uma complexa divisão técnica do trabalho artesanal (muito antes
da chegada de Vasco de Quiroga, a quem ela costuma ser atribuí-
A história da dominação dos indígenas é a história da desa- da): o couro era trabalhado em Nahuatzen, nos povoados da serra
gregação e da dispersão. Como cada sociedade é uma totalidade o algodão, na região do lago faziam-se esteiras de junquilho e em
estruturada, cada uma de suas partes possui sentido em relação Tzintzuntzan havia a olaria. O intercâmbio comercial, no qual o
com as outras, e se reforçam mutuamente. Por isso, a dominação artesanato era trocado juntamente com frutas e verduras, foi muito
externa para realizar a sua hegemonia diante dos grupos étnicos intenso, os mercados impressionaram bastante os espanhóis pelo
tem procurado quebrar a sua unidade e coesão, destruindo o signi- seu tamanho e atividade: o mercado de Tzintzuntzan, de noite, à
ficado que os objetos e as práticas possuem para cada comunidade. luz de tochas, foi comparado por um dos viajantes europeus ao
A primeira penetração capitalista na América, na conquista e espetáculo de Tróia em chamas. 45 Os colonizadores aumentaram a
na colónia, desarticulou o universo indígena mediante a reorgani- variedade e o volume da produção, sobretudo nos tempos de dom
zação dos sistemas económico e cultural pré-colombianos. A pro- Vasco, que introduziu técnicas europeias e ensinou os ofícios a
priedade comunal da terra foi desaparecendo em muitas regiões populações que os desconheciam. Não obstante, os desenhos indí-
devido à apropriação privada pelos colonizadores, especialmente genas, a iconografia surgida da visão pré-cortesiana do mundo
dos vinculados à Igreja; ainda que na região tarasca a imposição do foram mantidos nos tecidos e nos produtos de barro, e subsistem
sistema de fazehdas tenha sido mais lenta pelo fato de os terrenos em grande parte até hoje. Parece que, de modo diferente da arqui-
serem menos aptos para a criação do gado e o cultivo em larga esca- tetura, da música,46 do poder político e da ordem familiar, reorga-
la, no século XIX a progressiva privatização já havia conseguido nizados devido à influência católica e colonial, o artesanato teria
romper a solidariedade comunitária, acentuar a desigualdade socio- podido resguardar melhor a identidade arcaica que se evaporava no
económica e transferir para proprietários de terra não indígenas restante da vida social. Mas o impacto que quatro séculos de colo-
grande parte das terras e do poder. Um novo sistema ideológico — nização não haviam conseguido exercer sobre ele chegou com o
a religião cristã — se sobrepôs ao purépecha, substituiu-o naquilo desenvolvimento contemporâneo do capitalismo. A industrializa-
que pôde ou o absorveu através de uma ressemantização: as igrejas
foram construídas sobre as pirâmides, os lugares sagrados foram
ressignificados num outro sistema cultural, as danças, a música e o 45 Alonso de la Rea, "Crónica de la Orden de N. Seráfico P. S. Francisco, provín-
cia de San Pedro y San Pablo de Michoacán en la Nueva Espana (1643)", Méxi-
teatro pré-hispânicos foram utilizados para transmitir a mensagem co, 1882. Citado por John W. Durston, op. cit., p. 24.
cristã. 46 Para uma análise das mudanças nas danças e festas durante a colónia, veja-SC 0
Não obstante, os tarascos conseguiram conservar parte das livro de Arturo Warman La dama de moros y cristianos, México, Sepsetenl 1
suas terras comunais e de suas formas de trabalho agrícola e artesa- 1972.
76 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 77

ção, o turismo e os meios de comunicação de massa parecem ser áreas confere a cada uma delas uma dinâmica diferente: uma crise
mais eficazes para que os oleiros de Santa Fe de la Laguna produ- ideológica ou a renúncia coletiva de um ministério não afetam a
zam — ao invés das panelas que utilizam há séculos — estojos de produção (ao menos de forma imediata), nem as recessões econó-
barro para cigarros, decorados com reproduções das etiquetas inter- micas acarretam necessariamente reordenamentos políticos ou
nacionais, os de Ocumicho modelem seus diabos pilotando aviões, mudanças na consciência de classe. A rigor nenhuma destas partes
e para que em Capula (o melhor povoado oleiro de Michoacán, um opera com total independência. A atividade industrial pode desen-
dos mais obstinados em seus desenhos) hajam proliferado recente- volver-se através de uma lógica relativamente própria, não se pode
mente girafas, animal que subitamente se transforma assim num desenvolver em qualquer direção, mas sim naquela que é tornada
animal característico do planalto central mexicano. possível pela existência das outras partes do sistema social: a dispo-
As formas recentes de subordinação económica e política dos nibilidade de profissionais e técnicos, o aparato administrativo,
grupos étnicos diante do capital monopolista e multinacional têm as estruturas educacionais, os hábitos de consumo. Mas é verdade
requerido uma reestruturação das sociedades tradicionais e das que o capitalismo atribuiu a cada região da vida social uma maior
suas culturas populares. O processo atual de construção da hege- independência que os outros modos de produção, e que as apresen-
monia capitalista revela de forma mais contundente algo que tam- tam como mais desconectadas do que de fato estão. Tal isolamento
bém podia ser comprovado na colónia: não bastam apenas a sujei- gerou, entre outras consequências, a compartimentalização do
ção militar, nem a concorrência económica desigual, nem mesmo conhecimento científico, estruturas académicas e teóricas que não
— como desde Gramsci se pensa com maior sutileza — que à vio- se comunicam, como se um objeto de estudo único — a sociedade
lência e à exploração se acrescente o consentimento. Estes três — pudesse ser apreendido em fatias económicas por um lado, socio-
meios também foram utilizados na dominação dos indígenas, mas lógicas por outro, linguísticas, psicológicas etc.
só são suficientes para assegurar a reprodução social e o controle A investigação das sociedades arcaicas contribuiu, em troca,
no interior de sociedades constituídas de modo homogéneo. Em para que fosse percebida com maior transparência uma verdade
países multiétnicos a construção da hegemonia, além de basear-se que é também aplicável ao capitalismo: a interdependência entre o
na divisão em classes, assenta-se no manejo da fragmentação cultu- material e o simbólico. Quando se chega à praça central de algum
ral e na produção de outras divisões: entre o económico e o simbó- pequeno povoado camponês de origem indígena e se percebe que
lico, entre a produção, a circulação e o consumo e entre os indiví- estão na mesma casa a chefatura de polícia, o cartório e o armazém
duos e seu marco comunitário imediato. Tais fissuras não estão de suprimentos da CONASUPO (Companhia Nacional de Subsis-
ausentes nas sociedades nacionais homogéneas, mas são muito tências Populares) e quando o delegado nos recebe num escritório
mais notáveis e decisivas nas sociedades, como o México, que pos- rodeado de sacos de trigo e de milho, começamos a compreender a
suem mais de cinquenta grupos étnicos. maneira pela qual estão mesclados o governo político, o poder
administrativo e a atividade económica. A mesma unidade e inter-
penetração de'funções se observa no núcleo familiar, simultanea-
Rupturas entre o económico e o simbólico mente unidade básica da produção agrícola, oficina artesanal e
aparelho educacional e ideológico.
Estamos penetrando num fenómeno que é pouco nítido para Nas sociedades não-capitalistas e em muitas integradas ao
os que moram nas grandes cidades capitalistas, onde a existência de capitalismo mas possuidoras de raízes indígenas, onde persistem
uma expressiva divisão técnica e social do trabalho diferencia de formas tradicionais de vida, a estrutura e a superestrutura são
modo taxativo as funções económicas das culturais. Os grandes menos facilmente distinguíveis do que nas nossas. As relações eco-
centros urbanos acentuam esta separação ao distribuírem em espa- nómicas não se circunscrevem aos espaços previamente fixados
ços distintos as atividades estruturais e superestruturais: existem os para elas — o mercado, os intercâmbios — nem as atividades cultu-
bairros administrativos e os industriais, as cidades universitárias, as rais estão fechadas em instituições especializadas (raramente as
zonas comerciais etc. A relativa autonomia existente entre estas encontramos num isolamento equivalente ao existente nos museus
78 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 79

de arte ou nas cidades universitárias). O económico e o simbólico se produção e o pertencimento a uma classe social são as relações que
mesclam em cada relação social, e se disseminam em toda a vida da determinam o caráter das representações culturais? Veremos que
comunidade. não. O que deve ser esclarecido é que quando as relações de paren-
É por isso que alguns historiadores e antropólogos crêem que tesco e os agrupamentos étnicos funcionam como organizadores
seja possível refutar a distinção entre estrutura e superestrutura, e a das relações de produção, quando o artesanato é produzido com
determinação da primeira sobre a segunda. Radcliffe-Brown sus- base neles, a distinção entre estrutura e superestrutura — como
tenta que entre os aborígenes australianos deve-se buscar no paren- afirma Godelier a respeito dos caçadores — "não é uma distinção
tesco a explicação e a origem dos seus atos. Luis Dumont situa a entre instituições mas uma distinção de funções no interior de uma
índia como um exemplo de que a determinação, em última instân- mesma instituição",48 Apenas nas formas mais complexas de pro-
cia, pode estar na religião e no sistema de castas. Ao contrário, acre- dução (como as do capitalismo industrial), ou quando o artesanato
ditamos, como Godelier, que estes casos servem para confirmar se ajusta às suas regras (substituindo a família como unidade de
que o material e o ideal formam uma totalidade indissolúvel e que produção pela oficina que trabalha com assalariados), esta distin-
nem sempre o material aparece à primeira vista conforme o papel ção de funções recobre ao mesmo tempo uma distinção de institui-
primordial que o capitalismo habituou-nos a reconhecer; entendo ções: a produção material da baixela se realiza na oficina, o dese-
que estes casos não chegam a negar a determinação em última nho num estúdio, a administração em escritórios. Esta divisão
instância do económico, pois em cada um deles a superestrutura técnica do trabalho caminha junto com uma diferenciação social
que domina funciona ao mesmo tempo como relação de produção. muito mais clara entre aqueles que intervêm com a força de traba-
Em todas as sociedades o parentesco regula a filiação e a aliança, lho manual, com a intelectual e com o capital, que são os que se
mas é dominante entre os aborígenes australianos. Sempre é a reli- apropriam do produto.
gião que organiza as relações entre os homens e o sobrenatural, Neste último caso, a proletarização dos artesãos é evidente
mas precisamente na índia ela controla o conjunto da vida social. porque pode ser vista no processo mesmo de trabalho. Mas a situa-
Portanto, não são as funções específicas do parentesco e da religião ção dos artesãos que fazem todo o trabalho dentro da unidade
(ordenar o matrimónio e a filiação, num caso, as forças invisíveis, doméstica deve ser vista também como relativamente semelhante,
no outro) que os convertem em superestruturas dominantes; cum- uma vez que grande parte do seu trabalho, realizado de acordo com
prem este papel em algumas sociedades onde, além da sua função padrões simbólicos e de trabalho pré-colombianos, acaba por desa-
geral ou explícita, o parentesco ou a religião assume a responsabi- guar no mercado capitalista. Não são proletários, estritamente
lidade de ordenar as relações de produção. É isto que confere às falando, porque conservam a propriedade dos seus meios de produ-
suas ideias e instituições, bem como às pessoas que as comandam, o ção, mas a sua dependência do capital comercial os coloca numa
papel dominante no processo social.47 situação muito próxima disto. Se não a levarmos em consideração,
De modo análogo ao que acontece em muitas sociedades de enxergando apenas o processo de produção dentro da comunidade
povos caçadores-coletores, onde são as relações de parentesco que ou isolando o seu aspecto cultural, caímos na distorção que carac-
controlam os territórios e organizam o trabalho, existem povos na teriza os folcloristas conservadores, para os quais a problemática
América Latina em que as relações económicas não parecem ser as do artesanato se limita à preservação das formas, técnicas e organi-
relações que determinam a produção cultural. Uma observação zação social nas quais a identidade étnica está arraigada.
preliminar dos grupos indígenas sugere que os traços específicos do Mas também é difícil perceber-se a peculiariedade da sua con-
artesanato (seu estilo, sua iconografia) dependem das estruturas dição quando se está atento apenas à dimensão económica ou
étnicas ou familiares. Naufragaria aqui a tese de que as relações de quando se reduz o artesanato à sua circulação mercantil. É o que
acontece com duas posições diversas que coincidem em reduzir a
Maurice Godelier, op. cit.; e também no seu livro Economia, fetichismo y reli-
gión en las sociedades primitivas, México-Madrid, Siglo XXI, 1978. Maurice Godelier, Infraestructura, sociedad e história, op. cit.
80 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 81
questão artesanal a um problema técnico-econômico: o tecnocra- (língua, etnia) que não negam a existência das classes sociais mas
tismo e o marxismo vulgar. Os tecnocratas, interessados apenas em que especificam outras condições diante das quais os conflitos de
melhorar a qualidade dos produtos e otimizar o processo de traba- classe adotam formas singulares.
lho, substituem, por exemplo,.o forno de lenha pelo de gás, que Que consequências a unificação mais estreita entre o econó-
logo ninguém quer usar porque para os indígenas o mais impor- mico e o simbólico realizada pelas culturas populares tradicionais
tante nesta mudança não reside no procedimento técnico, mas em apresenta em termos do seu estudo? Quais mudanças devem ser
passar da unidade de produção familiar (cada casa possui seu forno introduzidas na estratégia da investigação, se queremos levar em
de lenha) à oficina cooperativa. A ausência de uma visão global — conta esta unidade mesmo quando ela está sendo erodida pela
económica, social e cultural — é a causa do fracasso das políticas subordinação ao capitalismo? Por um lado, ao estudarmos as
voltadas para o artesanato, que são concebidas apenas como uma transformações das culturas indígenas não podemos apenas nos
modernização técnica. Algo semelhante acontece quando se preten- ocupar das estruturas ideais (desenho, o significado das peças),
de que os indígenas tomem consciência da sua condição de prole- nem considerar a base económica como uma referência ocasional
tários explorados sem considerar a opressão étnica que, por ser ou colocá-la somente como uma peça decorativa num capítulo
mais concreta, aparece-lhes como mais evidente: por mais que ao se introdutório. O estudo conjunto do económico e do cultural, neces-
sublinhar a exploração económica se destaque a forma básica da sário em qualquer investigação, pode ainda menos ser realizado de
opressão, esta denúncia, desprendida das mediações étnicas, do , forma separada se se trata de entender o processo pelo qual se inte-
aspecto particular que a exploração do proletariado assume em gram ao capitalismo comunidades nas quais ambos os aspectos se
termos da condição indígena,.se transforma em algo "abstrato", encontravam entrelaçados de modo muito mais forte.
estranho à vida cotidiana. O discurso político centrado nas condi- Esta reivindicação do estudo unificado da estrutura e da
ções concretas da exploração aparece assim tão exterior quanto o superestrutura possui, também, uma importância política. O capi-
proselitismo religioso que se anuncia apenas como ação espiritual. talismo rompe com a vivência imediata dá unidade entre o material
Entretanto, o espiritualismo dos evangelizadores não impede que e o ideal principalmente porque ele torna mais complexo e diversifi-
muitos dentre eles compreendam que as mensagens que penetram cado o processo de produção, separando as diferentes práticas
nas comunidades indígenas são as que oferecem respostas (ociden- humanas — a cultural, a política, a económica — e especializando
tais) para as suas necessidades económicas e simbólicas (a doutrina- as etapas de um mesmo trabalho. A esta necessidade de uma divi-
ção bíblica proporcionada juntamente com a escola ou o hospital e, são técnica da vida social se superpõe o interesse económico e polí-
acima de tudo, a oferta de uma nova ética que ajude os indígenas a tico de isolar para melhor dominar: um artesão que produz tecidos
agir no interior do quadro de incerteza que caracteriza a passagem para a subsistência de sua própria comunidade compreende facil-
para uma outra forma de submissão ao capital). mente a relação entre o seu trabalho, a venda e o consumo, mas
Os povos camponeses com raízes indígenas, que vêm sendo quando vende seu produto para intermediários (que transportam os
integrados à sociedade nacional desde que esta existe, conservam tecidos para um mercado urbano ou para o estrangeiro, onde final-
uma certa experiência comunitária que é sustentada por estruturas mente o produto é entregue para compradores desconhecidos)
económicas e simbólicas: formas de produzir e modos de vida nos perde, juntamente com uma parte do valor do produto, a com-
quais a família é a unidade chave, um conjunto de crenças e práti- preensão global do processo. Perde ainda mais se a intervenção
cas materiais que são adequadas a esta situação, uma relação espe- externa provoca um fracionamento dentro da própria produção ao
cífica com a natureza e uma língua própria para nomeá-la. Disto fazer do artesão um simples assalariado (numa oficina ou a domicí-
tudo se destaca a necessidade de considerarmos de modo conjunto lio) que se limita a executar desenhos impostos, estilizações da ico-
— encontram-se muito mais imbricados do que nas sociedades nografia indígena tradicional nas quais ele não participou. A sepa-
"modernas" — o material e o ideal, as determinações de classe, ração entre os aspectos materiais e ideais da produção aparece, no
bem como certas formações "transclassistas" (Cirese), que são próprio momento do trabalho, como uma consequência extrema da
estes agrupamentos de origem natural (raça, idade, sexo) ou social usurpação que o capitalismo lhe inflige. A perda da propriedade
82 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 83
económica do objeto caminha junto com a perda da sua proprie- se atribui ao artesanato, como se fossem qualidades intrínsecas das
dade simbólica. A distância que a organização capitalista do traba- peças, a beleza ou o sentido que elas possuem para os indígenas
lho e do mercado cria entre ele e os produtos do artesanato é com- ou para o pesquisador, sem se reconhecer o papel parcial que eles
plementada pela quebra entre o económico e o simbólico, entre o desempenham numa trajetória social dos objetos, que é determi-
sentido material (mercantil) e o sentido cultural (étnico). nada também por outros agentes: os intermediários, os consumi-
dores etc.
Esta consideração dos objetos de modo isolado colabora, em
A fragmentação do processo social geral de modo inconsciente, com a dissociação e o mascaramento
que são postos em prática pelo sistema económico ao separar a pro-
Esta dissociação existente entre o económico e o cultural pode dução da circulação e ambas do consumo. Recolocar o artesanato
ser melhor apreciada se a examinarmos juntamente com o desloca- no conjunto deste processo, examinar as suas mudanças de signifi-
mento que ocorre entre a produção, a circulação e o consumo. O cado na passagem do produtor ao consumidor, perceber a sua inte-
que acontece com vasilhas fabricadas por comunidades indígenas ração com a cultura das "elites" são formas capazes de torná-lo
conforme as regras da produção manual e o predomínio do valor inteligível, de reencontrar um sentido que o poder mercantil nos
de uso numa economia quase de auto-subsistência, que em seguida subtrai, tanto ao artesão ao qual este é arrebatado, como ao com-
são vendidas num mercado urbano e finalmente compradas por prador ao qual se esconde a explicação a respeito da sua origem.
turistas estrangeiros pelo seu valor estético com a finalidade de
decorar o seu apartamento? Continuam a ser artesanato? As polé-
micas a respeito desta pergunta costumam embaralhar-se devido à Os indivíduos separados da comunidade
continuidade material do objeto, que parece permanecer o mesmo
desde que ele não seja considerado juntamente com as condições Quando perguntei ao prefeito de polícia de Capula, um povoa-
sociais que introduzem alterações no seu significado. Ainda que do de oleiros de 2600 habitantes, qual era a sua profissão, ele res-
materialmente se trate do mesmo objeto, social e culturalmente ele pondeu: "Sou artesão". E após uma pausa, esclareceu: "Na reali-
passa por três etapas: na primeira, prevalece o valor de uso para a dade sou bacharel em direito, mas toda a minha família e todo o
comunidade que o fabrica, associado ao valor cultural que o seu meu povo são oleiros. Eu também sei trabalhar o barro, ainda que
desenho e iconografia possuem para ela; na segunda, predomina o há bastante tempo eu não o faça, mas igualmente me considero um
valor de troca do mercado; na terceira o valor cultural (estético) do artesão". De modo diferente de um operário urbano, que enxerga a
turista, que o insere no interior do seu sistema simbólico, que é sua profissão como o resultado de uma escolha individual, de acor-
diferente — e às vezes oposto — daquele do indígena. do com as oportunidades ocupacionais, o membro de uma comuni-
O deslocamento do sentido social do artesanato, quase fatal dade indígena entende que a sua identidade profissional está deter-
toda vez que o desenvolvimento capitalista o subordina à sua lógi- minada pela coletividade, derivando do seu pertencimento global,
ca, confirma a necessidade de se superar o isolamento em que são cultural e económico ao seu grupo, e não da sua inserção pessoal
colocados os objetos nos estudos sobre a cultura popular. A maior nas relações de produção. Esta dependência da comunidade não
parte da bibliografia latino-americana tem oscilado entre a exalta- significa uma diminuição de cada um de seus membros, como o
ção romântica do artesanato pela sua beleza e a classificação positi- poderíamos acreditar baseados nos nossos hábitos individualistas.
vista ou simplesmente folclórica das pessoas de acordo com a sua Pelo contrário, conforme escrevia Mariátegui, o índio nunca é
origem étnica ou a sua estrutura formal. Raramente se transcende a menos livre do que quando está só.
erudição classificatória, a descrição dos objetos, para situá-los no Tanto os intermediários privados como alguns organismos
interior do processo que os produziu. Ignora-se que o seu valor não estatais que promovem o artesanato incentivam com as suas práti-
é definido por uma substância, por propriedades intrínsecas que cas a cisão entre os indivíduos e a comunidade. Nas relações econô-
seriam separadas das relações sociais. De fato, o que acontece é que
84 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 85
micas: selecionam os artesãos que trabalham melhor, dão-lhes um obras do mesmo autor. 49 Pode ser percebida claramente a conse-
tratamento à parte e incentivam a concorrência entre eles. Ao nível quência que isto representa em termos do produtor: segregado de
do político: acentuam os conflitos já existentes entre grupos e líde- sua comunidade, o seu mundo passa a ser o seu estilo. Uma vez que
res através da distribuição de auxílios e a exigência de exclusividade as suas obras deixam de habitar o seu povoado, ele só pode viver no
nos acordos pessoais. Propicia-se também a desconexão entre o universo de estereótipos que o mercado consagrou sob a sua assina-
indivíduo e a sociedade quando se modifica o vínculo entre os arte- tura. Para os poucos que triunfam comercialmente, o passo final
sãos e os seus produtos: as sugestões de desenhos que sejam capazes desse processo de desenraizamento será a migração para a cidade:
de diferenciar as peças de cada produtor e valorizá-las no mercado os seus produtos deixarão de ser peças de artesanato e passarão a
chegam a extremos como o de pedir aos oleiros de Ocumicho que ser considerados como objetos "artísticos", o seu nome será esque-
gravem o seu nome em relevo na base dos diabos que eles confec- cido na sua comunidade e começará a ser conhecido por coleciona-
cionam. Pudemos comprovar até que ponto a apropriação indivi- dores e marchands. Para a maioria dos artesãos, que nunca alcan-
dual das obras é estranha aos padrões culturais indígenas ao exami- çaram estes "privilégios", a perda do enraizamento cultural dos
nar na casa do presidente da cooperativa artesanal uma coleção de seus objetos supõe uma vida dupla: continuar convivendo com a
mais de cem peças que esperava pela chegada do encarregado do comunidade onde nasceram os seus objetos ao mesmo tempo que se
FONART, que iria levá-las para comercialização. Minha atenção vai acompanhar estes objetos nas lojas e mercados urbanos, seguin-
deteve-se nas peças de uma artesã dotada de uma habilidade exce- do ali as peripécias de um sentido que se tornou estranho.
lente porque me atraíam seus desenhos satíricos, certos jogos vio- A assinatura, que para os artistas possui algo de afirmação
lentos e irreverentes com figuras e cores, por exemplo, uma mulher pessoal e de jogo narcisista, é para os artesãos um referendo para-
que pilota uma motocicleta e carrega atrás de si um diabo e uma doxal da sua identidade alienada. O capitalismo os transforma em
serpente, ou um berço para gémeos que abriga os diabos numa ati- indivíduos sem comunidade, perseguidores de um lugar solitário
tude simultaneamente infantil e sarcástica. Logo descobri o seu num sistema que lhes escapa. Além dos espetáculos tão difundidos
estilo, percebi as constantes que davam unidade à sua obra e permi- da miséria e da dor, existem fatos cotidianos, persistentes, cuja dis-
tiam identificar as peças antes de ler a assinatura. Mas depois de creta dramaticidade não é menor. Por exemplo, a eloquência de
doze ou quinze diabos cheguei a um que sem dúvida era da mesma povoados como Capula e Patamban que, estando entre os de melhor
artesã, e que, entretanto, levava outro nome. Indaguei a este res- olaria do México, continuam a parecer o que eram há trezentos
peito ao presidente do grupo e ele me respondeu sem se alterar: anos — casas de tijolo cru e madeira, ruas empoeiradas —,.sendo
"Acontece que quando ela terminou este diabo ela não encontrou a um testemunho marcante de que o seu artesanato, fabricado diaria-
sua firma e pediu emprestada a da vizinha". mente durante séculos, quase não permite a acumulação de capital.
O valor de uso e o sentido comunitário que as peças de artesa- Algo semelhante se sente ao entrevistar artesãos num mercado e
nato possuem para o povo que as produz e consome — valor que é perceber que todo o seu empenho na conversa se destina a desviá-la
predominantemente prático nas vasilhas ou nos tecidos e simbólico para a venda: a tensão do rosto ou o olhar evasivo de que quer
nos diabos ou objetos cerimoniais — é neutralizado pela assina- compreender a lógica "desconcertante" de perguntas a respeito do
tura. A individualização confere à peça um outro valor: torna-a modo como trabalham e vivem para convertê-las em respostas a
única ou diferente, retira-a do sistema dos vestidos que proporcio- respeito das vantagens das suas mercadorias. Mesmo que não haja
nam um abrigo ou dos diabos que evocam mitos tarascos, para compradores diante dos quais estivéssemos tomando-lhes o tempo,
situá-la no sistema de obras de uma artesã. O valor que era produ- mesmo que esclareçamos que não iremos comprar coisa alguma, os
zido pela utilidade do objeto para a comunidade passa a depender mercados sempre são o lugar mais difícil para a realização de entre-
do gesto singular do seu produtor. Graças à assinatura, o signifi- vistas. O artesão não está ali para falar sobre o que sabe nem para
cado das obras artesanais — como observou Baudrillard a respeito
das obras artísticas — deixa de ser legível pelo seu vínculo com a 49 Jean Baudrillard, Crítica de la economia política dei signo, México, Siglo XXI,
natureza ou com a vida social para ser lido em relação com as demais 1974, p. 111.
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mostrar o que ele faz, mas para buscar como o seu trabalho pode mente com os "voadores" de Papantla, com um vaqueiro de Jalis-
"fugir-lhe" mais rápido atrás de uma lógica que é criada por outros. co, um tourinho com fogos de artificio, uma briga de galos e até
com uma manifestação de "folclore" urbano, como são os clava-
A unificação mercantil: do étnico ao típico distas* de Acapulco. De nenhum deles se explica a origem precisa,
são feitas apenas algumas vagas referências a respeito do estado de
Mas o capitalismo não apenas desestrutura e isola; ele tam- onde procedem. Em todos os casos, tanto os dançarinos quanto os
bém reunifica, recompõe os pedaços desintegrados num novo siste- "voadores", o vaqueiro e os tourinhos são apresentados com as
ma: a organização transnacional da cultura. A desintegração — cores da bandeira mexicana nas suas roupas ou na cenografia. A
provisória — visa apenas a criação de brechas por onde a política necessidade de homogeneizar e ao mesmo tempo manter a atração
dominadora possa instalar-se. Recordamos no início deste capítulo que o exótico exerce dilui a especificidade de cada povoado, não no
que cada sociedade necessita, para funcionar, uma estrutura sólida denominador comum do étnico ou do indígena, mas na unidade
que articule todas as suas partes; o pluralismo da sociedade burgue- (política) do estado — Michoacán, Veracruz — sendo que os esta-
sa não pode dissimular que ele é válido somente para uma minoria dos também acabam por diluir-se na unidade política da nação.
e que ele é sustentado por uma estratégia centralizadora, monopo- Dissemos: dissolução do étnico no nacional. Rigorosamente
lista. se trata de uma redução do étnico ao típico. Porque a cultura nacio-
Quando alguém vai aos povoados de artesãos encontra, por nal não pode ser reconhecida por um turista tal como ela é se ela é
exemplo, a olaria de Capula, as madeiras laqueadas de Pátzcuaro, mostrada como um todo compacto, indiferenciado, se não é dito
as esteiras de Ihuatzio. «Nas lojas de Quiroga, cidade comercial como é que vivem os grupos que a compõem nem são narrados os
onde se cruzam as estradas que ligam estes três povoados, a olaria, combates com os colonizadores (e entre as próprias etnias) que
a madeira e as esteiras transformam-se em artesanato. Os povoados estão na base de muitas danças e de muitos desenhos artesanais. A
de origem são apagados e o comércio só fala do "artesanato de unificação sob as cores e símbolos nacionais, que num certo sentido
Michoacán", nunca designando-as como peças tarascas ou purépe- é positiva, como demonstraremos na discussão final, se torna dis-
chas, nomes que — por serem os do grupo indígena ao qual perten- torcida e despolitizadora quando omite as diferenças e contradições
cem estes povoados — manteriam ao reuni-las a origem étnica. Nas que de fato existem. A museugrafia ou o espetáculo que ocultam as
lojas de Acapulco, do Distrito Federal, dos grandes centros turísti- necessidades e a história, os conflitos que geraram um objeto ou
cos, as peças de artesanato de Michoacán reúnem-se numa mesma uma dança promovem juntamente com o resgate a desinformação,
vitrina juntamente com as de Guerrero, Oaxaca e Yucatán, e se junto com a memória o esquecimento. A identificação que exaltam
convertem em "Mexican curious", ou, na melhor das hipóteses, é negada quando dissolvem a sua explicação na sua exibição. A
em "artesanato mexicano". Mesmo nas lojas do FONART, patro- grandeza do povo que elogiam é diminuída ao apresentarem como
cinadas pelo Estado, observa-se esta dissolução do étnico no nacio- manifestações espontâneas, que facilmente são atribuídas ao vir-
nal: os cartazes e o restante da publicidade anunciam "Genuína tuosismo ou ao "génio" populares, peças de artesanato e cerimó-
arte popular mexicana"; no interior da loja, as peças costumam nias cujo mérito reside no esforço realizado para transportar para o
ficar separadas por diferenças de material ou de forma, e mesmo plano simbólico, e às vezes "solucionar" de modo imaginário rela-
quando elas são distribuídas de acordo com a sua procedência não ções dramáticas onde a natureza fez com que se sentissem impoten-
se afixa nenhum cartaz que as identifique nem fichas que informem tes ou os opressores fizeram com que se sentissem humilhados.
sucintamente a origem material e cultural da sua produção e o sen- O típico é o resultado da abolição das diferenças, da subordi-
tido que elas possuem para a comunidade que as criou. nação a um tipo comum dos traços específicos de cada comurrái-
No Acapulco Center, gigantesco conjunto de espetáculos dade. Pode-se argumentar que o turista necessita desta simníada
onde o Estado mexicano construiu um dos maiores centros de exi- cação do real porque ele não viaja como um investigador da/, taií)
bição da cultura nacional para os turistas, as danças de Michoacán ziosos de
são mostradas juntamente com as de Veracruz, bem como junta- * Os que praticam saltos-mortais nos despenhadeiros de Acapulco. A Q eX&tO
86 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 87

mostrar o que ele faz, mas para buscar como o seu trabalho pode MI. nii i om os "voadores" de Papantla, com um vaqueiro de Jalis-
"fugir-lhe" mais rápido atrás de uma lógica que é criada por outros. Hiii lourinho com fogos de artifício, uma briga de galos e até
una manifestação de "folclore" urbano, como são os clava-
A unificação mercantil: do étnico ao típico * de Acapulco. De nenhum deles se explica a origem precisa,
i.' lcilas apenas algumas vagas referências a respeito do estado de
Mas o capitalismo não apenas desestrutura e isola; ele tam- le procedem. Em todos os casos, tanto os dançarinos quanto os
bém reunifica, recompõe os pedaços desintegrados num novo siste- oadores", o vaqueiro e os tourinhos são apresentados com as
ma: a organização transnacional da cultura. A desintegração — ores da bandeira mexicana nas suas roupas ou na cenografia. A
provisória — visa apenas a criação de brechas por onde a política n '.sidade de homogeneizar e ao mesmo tempo manter a atração
dominadora possa instalar-se. Recordamos no início deste capítulo i n r o exótico exerce dilui a especificidade de cada povoado, não no
que cada sociedade necessita, para funcionar, uma estrutura sólida denominador comum do étnico ou do indígena, mas na unidade
que articule todas as suas partes; o pluralismo da sociedade burgue- ii"'liiica) do estado — Michoacán, Veracruz — sendo que os esta-
sa não pode dissimular que ele é válido somente para uma minoria dos lambem acabam por diluir-se na unidade política da nação.
e que ele é sustentado por uma estratégia centralizadora, monopo- Dissemos: dissolução do étnico no nacional. Rigorosamente
lista. M U ala de uma redução do étnico ao típico. Porque a cultura nacio-
Quando alguém vai aos povoados de artesãos encontra, por nal não pode ser reconhecida por um turista tal como ela é se ela é
exemplo, a olaria de Capula, as madeiras laqueadas de Pátzcuaro, mostrada como um todo compacto, indiferenciado, se não é dito
as esteiras de Ihuatzio. 'Nas lojas de Quiroga, cidade comercial COmo é que vivem os grupos que a compõem nem são narrados os
onde se cruzam as estradas que ligam estes três povoados, a olaria, combates com os colonizadores (e entre as próprias etnias) que
a madeira e as esteiras transformam-se em artesanato. Os povoados eitão na base de muitas danças e de muitos desenhos artesanais. A
de origem são apagados e o comércio só fala do "artesanato de unificação sob as cores e símbolos nacionais, que num certo sentido
Michoacán", nunca designando-as como peças tarascas ou purépe- é positiva, como demonstraremos na discussão final, se torna dis-
chas, nomes que — por serem os do grupo indígena ao qual perten- torcida e despolitizadora quando omite as diferenças e contradições
cem estes povoados — manteriam ao reuni-las a origem étnica. Nas que de fato existem. A museugrafia ou o espetáculo que ocultam as
lojas de Acapulco, do Distrito Federal, dos grandes centros turísti- necessidades e a história, os conflitos que geraram um objeto ou
cos, as peças de artesanato de Michoacán reúnem-se numa mesma uma dança promovem juntamente com o resgate a desinformação,
vitrina juntamente com as de Guerrero, Oaxaca e Yucatán, e se junto com a memória o esquecimento. A identificação que exaltam
convertem em "Mexican curious", ou, na melhor das hipóteses, é negada quando dissolvem a sua explicação na sua exibição. A
em "artesanato mexicano". Mesmo nas lojas do FONART, patro- grandeza do povo que elogiam é diminuída ao apresentarem como
cinadas pelo Estado, observa-se esta dissolução do étnico no nacio- manifestações espontâneas, que facilmente são atribuídas ao vir-
nal: os cartazes e o restante da publicidade anunciam "Genuína tuosismo ou ao "génio" populares, peças de artesanato e cerimó-
arte popular mexicana"; no interior da loja, as peças costumam nias cujo mérito reside no esforço realizado para transportar para o
ficar separadas por diferenças de material ou de forma, e mesmo plano simbólico, e às vezes "solucionar" de modo imaginário rela-
quando elas são distribuídas de acordo com a sua procedência não ções dramáticas onde a natureza fez com que se sentissem impoten-
se afixa nenhum cartaz que as identifique nem fichas que informem tes ou os opressores fizeram com que se sentissem humilhados.
sucintamente a origem material e cultural da sua produção e o sen- O típico é o resultado da abolição das diferenças, da subordi-
tido que elas possuem para a comunidade que as criou. nação a um tipo comum dos traços específicos de cada comuni-
No Acapulco Center, gigantesco conjunto de espetáculos dade. Pode-se argumentar que o turista necessita desta simplifi-
onde o Estado mexicano construiu um dos maiores centros de exi- cação do real porque ele não viaja como um investigador da reali-
bição da cultura nacional para os turistas, as danças de Michoacán
são mostradas juntamente com as de Veracruz, bem como junta- * Os que praticam saltos-mortais nos despenhadeiros de Acapulco.
88 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 89

dade. Mas a simplificação mercantil das culturas tradicionais, que supermercados de sempre e nos escondem, debaixo da lacónica eti-
de modo semelhante ao que ocorre na imprensa e na televisão são queta de "curiosidades mexicanas" ou guatemaltecas ou paname-
chamadas de populares, quase sempre supõe que os seus especta- nhas o que verdadeiramente poderia aguçar a nossa curiosidade:
dores estejam abaixo do coeficiente intelectual que eles realmente maneiras distintas de produzir os pratos e de cozinhar, de tecer a
possuem e que o turismo ou o entretenimento são lugares onde nin- roupa e de se vestir, de ficar doente e de se recorrer a plantas que
guém quer pensar. Parece-nos uma hipótese razoável para uma pes- desconhecemos para se curar. Ao desenvolver e sistematizar a nossa
quisa de mercado que a simplificação quanto às suas mensagens ignorância do diferente, a padronização mercantil nos treina para
posta em prática pela indústria turística é maior do que o esperado viver em regimes totalitários, no seu sentido mais literal de oposi-
pela maioria dos consumidores. Sob o pretexto de facilitar o consu- ção aos regimes democráticos, ao suprimir o plural e obrigar que
mo, somos acotumados a enxergar a realidade num espelho enfa- tudo fique submerso numa totalidade uniformizada.
donho, dotado de tão poucos matizes que ao final o real acaba por O típico, ou seja, o que o turismo cerca de cartazes inócuos
ser menos atraente do que poderia ser. Paradoxalmente, as técnicas para adaptá-lo aos nossos preconceitos, é não apenas uma escamo-
de tipificação mostram-se contraproducentes para estimular o con- teação da realidade do lugar que estamos visitando mas também da
sumo que dizem promover. nossa própria realidade, do que poderia ocorrer conosco se em vez
Mas como o nosso principal interesse não é o de incentivar o de passearmos por um cenário que nos reflete adentrássemos os
turismo, preferimos enfatizar as consequências que esta redução do países da diferença.
étnico ao típico apresenta em termos da consciência política e cultu- Um dia estava em Quiroga entrevistando um grupo de turistas
ral. Se entendemos que o turismo, além do seu valor recreativo, é canadenses e estes me perguntaram entre as pilhas de chapéus, brin-
um dos principais meios de que dispomos para fazer-nos compreen- quedos de madeira e de plástico, cerâmica de várias regiões, produ-
der a nossa localização sócio-cultural num mundo cada vez mais tos de pele fabricados industrialmente e mil outras coisas quais
inter-relacionado, é inquietante que exista uma política geral desti- eram as peças de artesanato "típicas" deste lugar. Primeiro ocor-
nada a ignorar a pluralidade de hábitos, crenças e representações. reu-me propor a eles que fossem a Capula ou Ihuatzio, mas pensei
Se pensamos que para entendermos a nós próprios é útil conhecer o que era inútil: os ônibus com ar condicionado e poltronas recliná-
que nos é estranho, perceber que outros seres humanos podem viver veis não alteram o seu percurso. Expliquei-lhes sucintamente que
— às vezes até melhor do que nós — com costumes e modos de pen- Quiroga se assemelhava mais com as cadeias de lojas que iriam
sar diferentes, devemos concluir que esta estratégia de esconder o encontrar em Acapulco ou Cancún que a um povoado tarasco, e
diferente é uma maneira de confirmar cegamente o que somos e o comecei a imaginar um plano para a urbanização do deserto de
que temos. Os tarascos, mazatecos e maias convertidos em indíge- Sonora e que fosse capaz de proporcionar trabalho para muitos
nas, o miserável exibido como pitoresco, as crenças que correspon- desempregados. Tratar-se-ia de um Grande Centro Turístico Inter-
dem a uma outra relação com a natureza, com a doença ou com o nacional, que pouparia aos viajantes a fadiga de se deslocarem por
futuro encaradas como superstições são mecanismos que servem tantos milhares de quilómetros. O viajante que ali viesse teria a
para dissimular a real situação dos camponeses que nos proporcio- possibilidade de subir em navios e aviões que se moveriam com o
nam verduras, frutas e peças de artesanato baratas. Também servem ritmo correspondente e estariam sonorizados com conversas em
para que possamos nos manter instalados em privilégios e precon- vários idiomas para produzir uma verossimilhança com os trajetos
ceitos sem que coisa alguma nos desafie. intercontinentais. Mas sem a necessidade de subir em nenhum veí-
Três condições básicas para a democracia, reconhecidas desde culo poderiam visitar diferentes salas, todas muito próximas, onde
o nascimento do liberalismo — reconhecer a pluralidade de opi- sistemas circulares de cinemascope, com som e aroma quadrifôni-
niões e de modos de vida, aprender a conviver com elas, exercer a cos, reproduziriam as imagens e sensações de cada região e de cada
crítica e a autocrítica — são prescritas se somos convencidos de um dos cinquenta e seis grupos étnicos do México. Haveria, tam-
que o mundo todo é parecido com o nosso ou está em vias de, se bém, uma seleção de ruínas, cidades e monumentos famosos de
quando viajamos a um outro país compramos o artesanato nos todo o mundo, reproduzidos em acrílico no seu tamanho exato.
90 NESTOR GARCIA CANCLINI

Pela manhã se visitaria uma cerimónia de peyotl entre os huicholes


e as cataratas do Niágara, à tarde a visita seria à basílica de São
Pedro, a um mercado da Indonésia e às pirâmides de Teotihuacan,
à noite assistiríamos a um concurso de peças de artesanato e de

Do mercado à boutique:
danças de todos os países latino-americanos. Haveria um serviço de
guias, cujo percurso pelas salas seria parte do espetáculo para os
demais grupos, como em todos os lugares, e com uma taxa suple-
mentar seriam proporcionadas visitas orientadas por antropólogos
ou técnicos bilíngues das respectivas comunidades. Nos corredores quando as peças de
que levariam de uma sala a outra seriam colocadas máquinas nas
quais, depositando-se uma moeda, poderiam ser adquiridos cas-
setes com a gravação das frases que os sacerdotes proferem na ceri-
artesanato emigram
mónia huichol e na missa do Vaticano, com o barulho das cata-
ratas, os pregões dos vendedores do mercado de Oaxaca e outras
recordações sentimentais. Numa segunda etapa, seriam inventados, Podemos investigar as mudanças na identidade cultural regis-
através de computadores, novos países e etnias que atraíssem por trando, como o fizemos, a influência de agentes externos diante das
uma segunda ou terceira vez os que já tivessem estado ali: conhece- comunidades tradicionais. Este tema também tem sido estudado
riam novas religiões, plantas imaginárias para curar doenças desco- com base nos processos de migração e adaptação dos camponeses
nhecidas, bem como peças de artesanato e festas pré-colombianas nos núcleos urbanos. Vamos, agora, explorá-lo na "migração" dos
inexistentes até o momento em que foram programadas. 50 produtos das culturas indígenas.
O artesanato é um lugar privilegiado para se perceber a rapi-
dez e a multiplicidade de modificações que o capitalismo introduz
nas culturas tradicionais. De fato, a estrutura semântica dos obje-
tos é mais maleável que a das pessoas: um manto bordado para a
festa da padroeira de uma aldeia pode mudar em poucas horas o
seu significado e a sua função ao passar a servir de decoração numa
habitação urbana, ainda que a mesma índia que o usava na sua
aldeia, transportada para esta cidade, mantenha por muitos anos as
crenças que a levavam a participar da festa. Mas diante dos outros
produtos do campo retirados do controle da propriedade dos traba-
lhadores, o artesanato conserva uma relação mais complexa em
termos da sua origem e do seu destino, por ser simultaneamente um
fenómeno económico e estético, sendo não capitalista devido à sua
confecção manual e seus desenhos, mas se inserindo no capitalismo
como mercadoria. Mesmo depois de "emigrar" das comunidades
indígenas carregam, na mistura de materiais tradicionais e moder-
nos (cerâmica e plástico, lã e acrílico), de representações campone-
O humorista Carlos de Peral imaginou um delírio parecido no seu texto "Viaje al
sas e urbanas, indígenas e ocidentais e dos seus usos (práticos e
país dei turismo", publicado na revista Crisis, n? 16, Buenos Aires, 1973. Sabe-se decorativos), o conflito e a coexistência entre sistemas sociais e sim-
que a Disneylândia e o Disneyworld concretizaram de fato aproximações imper- bólicos. É por isto que enxergamos na trajetória social do artesa-
feitas dessas fantasias. nato um fenómeno especialmente propício para a compreensão das
92 NESTOR GARCIA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 93

peripécias atuais da cultura popular: as interações económicas e Mas estes homens e mulheres estão quase sempre trajados
ideológicas entre a cidade e o campo, o modo pelo qual o desenvol- com roupas de fabricação industrial. Inclusive nos povoados escon-
vimento capitalista redefine a identidade ao combinar formas didos na serra é cada vez maior o número dos que cozinham em
diversas de produção e de representação. Não obstante, por mais fogões de gás, com utensílios adquiridos nas cidades quando para
que em todo objeto ecoem as relações sociais que o engendram, lá se dirigem a fim de vender a louça que produzem. Os produtos de
para explicarmos o itinerário mutante do artesanato devemos nos barro empilhados para a venda ou para uso próprio coexistem com
ocupar das estruturas sociais e espaciais por onde ele circula. A vários produtos industriais, os vasos com flores e plantas medici-
subordinação das culturas tradicionais ao sistema capitalista pode nais não estão longe das prateleiras onde se misturam latas de comi-
ser resumida, até certo ponto, nas posições que as peças de artesa- da e refrescos com medicamentos preparados quimicamente. A
nato vão ocupando durante o seu percurso. Mas isto só é possível se combinação de objetos revela a existência de um processo de substi-
precisarmos em que sentido a organização do espaço proporciona tuição do artesanal pelo industrial, das técnicas tradicionais empre-
uma visualização das mudanças na produção, no consumo e na gadas para a satisfação das duas necessidades básicas — cozinhar,
circulação, bem como dos conflitos entre as classes, entre as etnias, curar — por técnicas modernas. Em suma, as sociedades organiza-
e das relações do campo com a cidade. Tentaremos demonstrar que das com um regime que até poucas décadas atrás era quase de auto-
a reelaboração do lugar do artesanato em espaços que são díspares subsistência, encontram-se, agora, cada vez mais integradas ao
permite captar a estratégia de descontextualização e ressignificação intercâmbio mercantil. A presença da olaria local e de algumas
que a cultura hegemónica cumpre diante das culturas subalternas. peças do vestuário tecidas artesanalmente mantêm a prática ou a
Não é, portanto, apenas a inserção das peças de artesanato em con- recordação da identidade, bem como de uma história cuja vigência
textos diversos que representa a condição deslocada dos seus pro- depende, sobretudo, da importância que a exploração comunal ou
dutores, mas a perda de contexto, o exílio do seu espaço nativo — a ejidal da terra consiga manter na subsistência do povoado. Em
vida indígena, o mercado rural — e seu deslocamento para uma povoados onde a crise do velho modelo de produção agrícola em-
outra cena: a cultura burguesa, a loja urbana, o museu e a boutique. pobreceu os camponeses, ou onde a escassez de chuva agravou essa
crise, como em Patamban e Ocumicho, o artesanato emerge como
a alternativa económica que permite a um grande número de cam-
O artesanato na moradia indígena poneses a permanência no campo. As peças de artesanato adquirem
assim um papel destacado na vida cotidiana e contribuem de modo
Frequentemente ouvimos os artesãos explicarem como fabri- duplo para reforçar a identidade cultural: por tratarem-se de obje-
cam a louça enquanto comíamos nas suas casas na mesma louça tos, técnicas de produção e de desenhos que estão enraizados na
que foi feita por eles, estando alguns sentados em cadeiras e outros própria história destes povos e porque fazem com que seja possível
em troncos. Junto à parede podem ser encontradas pilhas de vasos a manutenção da união das famílias indígenas em torno da vida
de barro para vender, e, conforme a estação do ano, diferentes comunitária.
quantidades de milho que podem estar ensacadas ou amontoadas O artesanato pertence e não pertence aos índios, possui e não
junto ao fogão de lenha que é alimentado com a madeira dos bos- possui na habitação indígena o seu lugar. É certo que ele continua a
ques que circundam o povoado. Se a casa não possui outros cómo- compor um sistema com a unidade doméstica de produção, e, deste
dos haverá ali umas poucas camas, ou esteiras de tule compradas e modo, sustenta a vida quase póstuma desse sistema. Mas as peças
produzidas em povoados próximos ao lago de Pátzcuaro, que são de artesanato também sofrem um processo de ressignificação e de
enroladas durante o dia para deixar o espaço tão livre quanto seja refuncionalização. Qualquer indígena possui consciência de que
possível. A mesa costuma ficar encostada, de modo que o centro do produz mais objetos de couro para a venda do que para o uso pró-
cómodo fica vazio, sendo ocupado apenas à noite com um traba- prio ou de seus vizinhos, ele vê diariamente que o que ganha com
lhador braçal, em torno do qual reúne-se a família com os vizinhos, eles serve para aumentar a sua precária ocidentalização: o rádio
mais algum visitante ou eventuais antropólogos. portátil e a televisão, a roupa comprada em lojas urbanas, os obje
94 NESTOR GARCÍA CANCLIN1 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 95

tos e hábitos trazidos pelos filhos que viajaram como trabalhadores Tanto os mercados de pequenas aldeias indígenas (Patamban,
braçais para os Estados Unidos vão colocando de lado as peças Ocumicho, Ihuatzio, por exemplo) como os de cidades de tamanho
artesanais. médio que centralizam o comércio camponês (Pátzcuaro, Uruapan)
Todo objeto recebe o seu significado do sistema de objetos mostram objetos industriais e mesmo peças de artesanato de outros
reais entre os quais se situa e também do repertório imaginário de estados: costumam afluir aos mercados de Michoacán comercian-
objetos que não se possui, mas que são vistos, descritos, oferecidos tes de Guadalajara e do Distrito Federal e artesãos de Guerrero,
pela sedução publicitária. A subordinação material e simbólica da Jalisco e Guanajuato. Estes mercados conservam em parte a estru-
vida camponesa diante do regime capitalista, o incentivo do con- tura do antigo mercado rural, onde as peças de artesanato são
sumo burguês e proletário através dos meios de comunicação de expostas sobre esteiras, no chão, junto a verduras, frutas, animais e
massa, o turismo e os relatos dos migrantes reorganizam a vida demais produtos da região, cuja venda e exposição é organizada
cotidiana: tanto o conjunto de objetos reais que povoam há séculos visando a satisfação das necessidades da comunidade local. Mas
as habitações tarascas como o universo simbólico de bens deseja- cada vez mais estes mercados — de modo semelhante às habitações
dos, alheios, em termos dos quais se vai alterando o significado do indígenas — recebem mercadorias próprias do sistema de consumo
artesanato. Mesmo quando os camponeses não podem comprar a e prestígio da sociedade nacional: artigos de plástico, rádios tran-
maior parte do que é exibido nos supermercados ou anunciado na sistores, objetos de decoração produzidos industrialmente. As rela-
mídia, esta floresta de mercadorias e símbolos ingressa no cenário ções comerciais, sociais e recreativas que se caracterizavam por
das suas referências. serem relações diretas entre produtores e consumidores cederam
lugar para outras relações, características do capitalismo avançado,
onde os intermediários e às vezes as grandes empresas desempe-
Feiras e mercados, vitrinas da nham um papel central. Como consequência disso, a organização
"modernização" camponesa visual e económica antiga se mistura com a "moderna": junto a
precários postos de venda de alimentos e ao artesanato produzido
A produção do artesanato, fei'a na unidade doméstica para a domesticamente, junto a diversões e concursos "folclóricos",
auto-subsistência e para o intercâmbio com os povoados próximos, vemos stands de refrescos, jogos mecânicos, caminhões de empre-
e identificada com a economia e a cultura da região, possui o seu sas que possuem a sua sede nas grandes cidades, a publicidade das
primeiro e último recinto na habitação indígena: ali se produz e se maiores firmas nacionais e multinacionais.
consome. Mas entre o seu nascimento e o uso está o mercado. Já Apesar da crescente penetração do grande capital comercial,
quase não existem mais feiras e mercados exclusivamente regionais, da sua concorrência desigual com os produtos locais e das confu-
onde apenas são negociados os bens de uma região pequena entre sões entre bens de origem e fabricação diferentes, estes mercados
os próprios produtores, em postos de venda controlados por eles ainda permitem que se entre em contato com as fontes culturais de
mesmos. Os mercados locais transformam-se em pontos chaves certos objetos. Nos pequenos postos de venda dos camponeses e
para a articulação da economia camponesa com o sistema capita- artesãos o vendedor é quase sempre o produtor, a organização fami-
lista nacional e internacional. Assim o testemunham as suas duas liar que produziu o artesanato pode ser vista no posto: o homem, a
funções principais: extrair o excedente dos produtos da região para mulher e os filhos que fabricaram os objetos são também os que os
distribuí-los na sociedade nacional e incorporar o campesinato ao
mercado interno mediante a distribuição de produtos industriais."
John W. Durston no seu livro Organización Social de los mercados campesinos
en el centro de Michoacán, México, INI, 1976. No que diz respeito às feiras liga-
51 Uma boa descrição da estrutura económica dos mercados pode ser encontrada no das aos eventos religiosos e a sua conexão com os circuitos regionais dos merca-
artigo de Luisa Paré, "Tianguis y economia capitalista", Nueva Antropologia, dos, veja-se o estudo de Guillermo Bonfil "Introducción al ciclo de ferias de
ano 1, n? 2. México, out. 1975, e no livro jã citado de Martin Diskin e Scott Cook Cuaresma en la región de Cuautla, Morelos (México)", Anales de Antropologia,
sobre os mercados de Oaxaca. Os de Michoacán foram fartamente estudados por vol. VII, México, 1971, pp. 167-202.
96 NESTOR GARCÍA CANCLIN1 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 97

vendem e anunciam. Nos mercados não assistimos apenas a um mação que não foi possível ser obtida na embalagem do produto ou
fato comercial, mas presenciamos a vida mesma da família, já que na sua propaganda. As pessoas no supermercado não possuem a
no posto de venda comem, dormem, possuem aparelhos domésti- menor possibilidade de assumir uma voz própria sem quebrar a
cos, mostrando, assim, fragmentos da sua vida habitual. "Dramá- magia do ambiente e a sua funcionalidade. Levante a voz e perce-
tico e efémero museu do cotidiano", foi como Malinowski e de la berá a estranheza e a desaprovação com que será cercado" ... "Na
Fuente chamaram o mercado no estudo que realizaram a respeito praça, ao contrário, vendedor e comprador expõem-se um ao outro
dos mercados de Oaxaca. 52 e a todos os demais. E deste modo a comunicação não poderia
De modo diferente da loja urbana de artesanato, onde este reduzir-se a uma simples, anónima e unidirecional transmissão de
fica apartado da vida e onde se misturam indiscriminadamente informação." 53
peças oriundas de diversas culturas, no mercado os objetos artesa- Entretanto, o mercado popular está progressivamente se
nais adquirem o seu significado através da sua proximidade com tornando semelhante ao supermercado, adotando os seus hábitos,
outros produtos camponeses da mesma região e com os próprios deixando-se infiltrar e remodelar. Assim como Bourdieu diz que o
produtores. Este contraponto é ainda maior quando se trata dos supermercado é a galeria de arte do pobre, 54 é possível ver na reor-
supermercados, estes luxuosos e anónimos galpões onde a abstra- denação turística do mercado camponês a fabricação simultânea de
ção mercantil chega a seu ponto máximo de ostentação, uma vez duas ilusões: para o indígena a "oportunidade" de ter acesso ao
que neles ocorre um ocultamento do proprietário — que é desco- vértigo consumista urbano, para o turista a crença de que o contato
nhecido pelos próprios vendedores —, havendo uma divisão técni- com a cultura tradicional na sua origem pode ser feito com base nos
ca do trabalho e a redução dos trabalhadores ao papel por eles mesmos códigos que regem as relações mercantis na cidade.
desempenhado (vendedor, supervisor, vigilante), existindo também Mas haveria ainda uma ilusão a mais, a do pesquisador ou
uma organização fechada e asséptica do espaço, que é iluminado leitor, que se deixasse levar por esta oposição e identificasse mani-
artificialmente noite e dia. O mercado popular, ao contrário, fun- queistamente o mercado camponês com o bem e o supermercado
ciona em espaços abertos e ruidosos, frequentemente em praças, com o mal. Também nas feiras e mercados rurais encontramos a
favorece as relações interpessoais múltiplas e costuma interromper exploração: intermediários que dobram os preços, funcionários
o trânsito ou misturar-se com ele. Longe de se limitar às relações que especulam com os dois ou três metros de praça que cada posto
formais da operação comerciai!, no mercado popular a comuni- ocupará, artesãos que vendem uma baixela de 72 peças (o trabalho
cação abrange a vida familiar, a política, a saúde (lembremos de de uma família de sete pessoas durante 15 dias) pela metade de um
que os postos onde se vendem ervas medicinais são também centros salário mínimo mensal. Já dissemos, também, que se os artesãos se
de consulta). Mesmo o mero intercâmbio mercantil inclui esta for- submetem a esta exploração é porque sofrem no seu povoado de
ma vivaz e picaresca de diálogo que é a pechincha. Como observou origem, no cultivo da terra, uma exploração ainda maior. As rela-
J. Martin Barbero, enquanto que no supermercado as relações de ções capitalistas que se estabelecem no supermercado, os privilégios
apropriação individual dos objetos se realizam silenciosas e soli- em termos de poder aquisitivo que se manifestam na cidade e no
tárias — pode-se comprar "sem se sair do narcisismo especular turismo são sustentados pela exploração dos camponeses e do pro-
que leva e traz a pessoa de um objeto a outro" — no mercado se letariado urbano.
costuma gritar, nós procuramos uma comunicação expansiva, dei-
xamo-nos interpelar. "No supermercado não existe comunicação,
existe apenas informação. Não existem sequer vendedores, na ple-
na acepção do termo, mas apenas pessoas que transmitem a infor-
J. Martin Barbero, "Prácticas de comunicación en la cultura popular", in Máxi-
Bronislaw Malinowski e Julio de la Fuente, La economia de un sistema de merca- mo Simpson Ginberg, Comunicación alternativa y cambio social, México,
dos en México, Acta Antropológica, 2? época, vol. 1, n? 2, México, Escuela UNAM, 1981, p. 244.
Nacional de Antropologia e Historia, Sociedad de Alumnos, 1957, p. 20. Pierre Bourdieu, La distinction, op. cit., p. 35.
98 NESTOR GARCÍA CANCLINI
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 99
O artesanato na cidade: instruções A quem devem vender? Não serão ludibriados? O dinheiro pago
para o seu "desuso" compensará os dias que deixa de trabalhar, as peças que se que-
bram frequentemente devido à sua fragilidade, os gastos muito aci-
Pegue seis milhões de artesãos, coloque-os a produzir mantos ma dos que possui em sua casa? Devido a tudo isto, muitos são os
e panelas de barro, colares e máscaras, os mesmos que fazem para artesãos que vendem as suas peças para intermediários privados
si próprios mas multiplicando a quantidade por cem ou por mil, (monopolistas locais e comerciantes de fora) ou para organismos
organize mercados e feiras em cidades pequenas, acrescente lojas estatais. Ainda que o lucro destes últimos seja menor, nunca verifi-
de curiosidades em todos os centros turísticos. Em seguida deve-se camos que entre o dinheiro entregue ao produtor e o preço pago
falar com os comerciantes de cada região, especialmente se pos- pelos consumidores houvesse menos de 80% de diferença; geral-
suem caminhões para ir buscar nos povoados as peças dos artesãos mente o preço de venda é o dobro do que foi pago pelo intermediá-
que insistam em não viajar, convença-os de que sendo intermediá- rio. Mas a maioria dos artesãos prefere perder a metade do seu
rios destes produtos lucrarão mais do que com qualquer outro. Por lucro a fim de evitar riscos que sente como incontroláveis.
último organize campanhas de propaganda a respeito das belezas Esta ampliação do mercado é um dos principais fatores que
da região com folhetos que falem do valor espiritual-folclórico- provocaram a transformação da estrutura produtiva, e do lugar
autóctone do artesanato, coloque em todas as metrópoles e aero- social e do significado do artesanato. Na produção ela encerrou a
portos do mundo cartazes para lembrar a importância do contato época onde a maioria dos objetos era feita para a auto-subsistência,
com a natureza e para anunciar que onde se vende o artesanato e modificou o processo de trabalho, os materiais, o desenho e o
existem lagos, fontes naturais, cozinha regional, ruínas de todas as volume das peças para adequá-las para o consumo externo. Retirou
culturas que não são a ocidental, convide milhares de turistas para os objetos de um sistema social onde a produção e a troca eram
trazerem a sua fadiga urbana, suas máquinas fotográficas e seus regulados pela organização comunal, ainda que ritual, e recolocou-
cartões de crédito. os num regime de concorrência intercultural que os artesãos enten-
A produção excedente de objetos artesanais, originada em dem apenas parcialmente, e ao qual servem de fora. Nas relações de
parte pelo aumento da demanda (turismo, novas motivações para o produção, estas mudanças provocam uma concentração e um assa-
consumo, incentivo estatal) gera por sua vez espaços e mecanismos lariamento progressivos. Em casos como a olaria, passa-se da ofici-
que ampliam a sua comercialização rural. Os artesãos também vão na familiar para a pequena indústria ou para a unidade de produ-
aos mercados urbanos, a feiras de outras regiões, a hotéis e lojas. ção baseada no trabalho assalariado; se se trata de tecidos ou de
Mas não é fácil para eles estabelecerem-se durante vários dias numa móveis a tendência é o aumento do tamanho das empresas e a dimi-
cidade devido aos gastos e aos sacrifícios que isto implica. Em nuição do seu número, com a substituição das técnicas manuais
Michoacán existem três feiras que se encontram entre as mais con- pelas mecânicas, conservando-se apenas signos formais do artesa-
corridas do país: a de Uruapan na Semana Santa, as de Pátzcuaro nato original. 55
na primeira semana de novembro, relacionada com o dia dos mor- Grande parte do poder de decisão a respeito do que devem ser
tos, e de 5 a 9 de dezembro (que até três anos atrás se chamava Feira as peças é transferida da esfera da produção para a circulação, ou
Anual Agrícola e Artesanal, e que agora é Turística e Artesanal). para sermos exatos, para os intermediários, este crescente setor de
Nestas três feiras são cobrados de cem a duzentos pesos diários por comerciantes que quase nunca são artesãos mas que controlam a
cada metro quadrado que um artesão ocupa. E é aí, sobre o piso da produção, e que atingem um rápido enriquecimento, o que é fre-
praça, que os artesãos dormem todas as noites: não é uma metáfora quente entre aqueles que contam, ao iniciar um negócio, com peque-
a afirmação de que a cultura popular está sob a intempérie. nos capitais. Se o comerciante possui um caminhão e talvez um
Pior ainda é o que lhes ocorre nas grandes cidades, porque o armazém no povoado, o seu relacionamento com os artesãos pos-
alojamento e a comida superam rapidamente os ganhos que obtêm
com a venda dos seus produtos. Além do que, a maioria dos arte- " Alice Littlefield, "The expansion of capitalist relations of produclion in Mexican
sãos se sente desorientada e insegura neste mundo vasto e diferente. Crafts", in The Journal of peasant Studies, 1980, pp. 471-488.
100 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 101

sui, como observou Victoria Novelo, o caráter de "uma indústria a sistema com a finalidade de reduzir a defasagem entre ambas as
domicílio, onde o empresário — o dono do capital comercial — culturas. A política hegemónica não apenas ressemantiza os obje-
reparte o trabalho entre os oleiros, compra-lhes a produção, e os tos ao mudá-los de meio ambiente e de classe social; ela também
mantém atados através de empréstimos e de vales", 56 não neces- modifica, como vimos, as comunidades tradicionais e os consumi-
sitando investir num local específico para a produção, nem em dores urbanos para colocá-los em sintonia no interior de uma estru-
equipamento (os artesãos usam as suas ferramentas), nem preo- tura global. O ajuste entre a oferta e a procura não é o resultado de
cupar-se com quebras ou perdas, tampouco, é claro, com detalhes uma imposição da produção sobre o consumo nem de uma adapta-
como a previdência social. Os intermediários que são também donos ção dos produtores ao gosto dos consumidores, mas sim uma con-
de oficinas quase nunca reinvestem os seus lucros em melhorias sequência da homologia funcional e estrutural que comanda todas
técnicas, porque o caráter manual e rudimentar do artesanato é as áreas de uma formação social. A explicação deve ser buscada,
precisamente um atrativo para os consumidores. As condições mais do que nas intenções conscientes dos produtores ou no cálculo
gerais do sistema capitalista e as próprias dificuldades de os arte- cínico dos intermediários, na capacidade do sistema de reelaborar
sãos nele se inserirem e se organizarem de modo consistente torna- as relações objetivas e a sua interiorização nos indivíduos, de modo
os cada vez mais dependentes do capital comercial. Este regime que todos os campos da vida social tendam a se organizar de acor-
acarreta a decadência dos mercados locais, ou a sua "urbanização" do com a mesma lógica ou conforme lógicas que sejam convergen-
ou "supermercadização", ou seja, o artesanato deixa de pertencer tes: as oposições entre o artesanato e a arte, entre a cultura rural e a
à cultura camponesa para se colocar como apêndice "folclórico" urbana, entre o gosto dos produtores e o dos consumidores são
do sistema capitalista nacional e multinacional. homólogas entre si, e homólogas às oposições que ordenam os vín-
Sabemos que para que ocorram estas mudanças na produção culos complementares entre as classes sociais. " O acordo que assim
e na circulação devem ter acontecido modificações correlatas na se estabelece objetivamente entre as classes de produtores e as clas-
esfera do consumo. O crescimento da produção artesanal depende ses de consumidores não se realiza no consumo mas através desta
de um novo tipo de demanda motivado pela avidez turística pelo espécie de sentido da homologia que existe entre os bens e os gru-
pitoresco, por um certo nacionalismo que é mais simbólico do que pos", conforme advertiu Bourdieu em sua pesquisa a respeito das
efetivo e pela necessidade de se renovar, oferecendo variação e rus- estruturas do gosto na sociedade francesa.57
ticidade dentro da padronização industrial. Mas o artesanato rara- Acrescentamos que a manutenção de uma classe hegemónica
mente desempenha nos meios urbanos as funções originárias das depende da sua capacidade para renovar esta correlação, esta equi-
culturas indígenas. A sua não utilização é, a rigor, a passagem de valência e complementaridade entre as classes sociais, entre a socie-
um uso prático a outro que é decorativo, simbólico, estético-folcló- dade nacional e as etnias e subculturas que a compõem e entre as
rico. Trata-se de uma modificação do sentido primário, cujas diver- relações sociais e a disponibilidade dos objetos. De modo inverso, o
sificação e complexidade poderiam ser captadas através de um poder transformador dos setores populares dependerá da sua capa-
extenso levantamento a respeito dos espaços urbanos onde as peças cidade de subverter esta ordem, introduzindo — tanto na produção
de artesanato são exibidas e utilizadas. Vamos nos ocupar na próxi- como no consumo — demandas que representem os seus verdadei-
ma discussão de quatro destes espaços, que nos parecem represen- ros interesses e que por isso sejam disfuncionais, tornando as con-
tativos das principais operações de refuncionalização: a loja de tradições do sistema mais agudas e impedindo a sua restauração.
artesanato, a boutique, o museu e a habitação urbana. Mas antes
quero dizer que esta mudança de sentido que o artesanato sofre ao A loja de artesanato
passar do meio rural ao meio urbano, da cultura indígena ou cam-
ponesa para a cultura da burguesia e dos estratos médios, é com- Podemos distinguir quatro tipos de consumo do artesanato:
pensada pela existência de uma tendência para a reordenação do O prático, que ocorre no interior da vida cotidiana (roupas, baixe-
57 Pierre Bourdieu, La distinction, op. cit., pp. 257-258.
Victoria Novelo, op. cit., p. 128.
,102 NESTOR GARCÍ A CANCL1NI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 103
las), o cerimonial, ligado a atividades religiosas ou festivas (másca- As diferenças entre as lojas de artesanato correspondem à
ras, peças de barro com cenas sacras), o suntuário, que serve de dis- necessidade de selecionar e de apresentar os objetos para grupos
tinção social para setores com alto poder aquisitivo (jóias, mobílias diversos de consumidores: o de gosto mais ou menos sofisticado, o
trabalhadas) e o estético ou decorativo, destinado à decoração, dos que "adquirem" signos de distinção ou o dos que apenas dese-
especialmente das moradias (adornos, móbiles). jam levar souvenirs. Esta diversificação das lojas é resultado, tam-
A loja urbana dispõe as peças de artesanato de modo tal que bém, da concorrência, cada vez mais complexa, imposta pela expan-
reduz estes quatro usos a uma combinação dos dois últimos. A uti- são do mercado artesanal e pelo incremento dado ao turismo. Com
lidade prática e cerimonial é ignorada, salvo exceções, ao se retirar a massificação da produção e da comercialização do artesanato,
os objetos do contexto para o qual foram concebidos — a casa ou a algumas lojas dedicam-se à ampliação da sua oferta (misturando
festa — e ao serem exibidos isoladamente, sem explicações que per- objetos de regiões e de valor diferentes), enquanto que outras, que
mitam imaginar o seu sentido original. É por isso que ouvimos fre- se dirigem para consumidores interessados no sentido estético e na
quentemente os turistas perguntarem para que servem as peças ou distinção social, preferem as peças "autênticas", aquelas cujas ino-
de onde elas são. E o que é pior é que com frequência os vendedores vações as transformam em "exclusivas". A ramificação na oferta e
não o sabem. Ao interrogarmos os compradores, percebemos que no consumo provoca mudanças na estrutura e no desenho dos obje-
salvo nas baixelas, roupas ou artigos obviamente práticos, o artesa- tos: num caso, a simplificação ou a cópia em grande quantidade,
nato é adquirido na maioria das vezes pelo seu desenho, pela sua que barateia o custo (por exemplo, as grosseiras e infinitas multipli-
adequação a algum lugar da casa que se quer decorar ou para ser cações de calendários aztecas); em outro, a estilização e a procura
presenteado com fins semelhantes. Sem dúvida, isso corresponde da originalidade, que permita ao comprador dotado de alto poder
a inclinações prévias à entrada dos consumidores na loja. Mas se aquisitivo diferenciar-se do consumidor "vulgar" (tecidos e cerâ-
compararmos esse predomínio do consumo estético com o sentido micas assinados).
prático que prevalece nos mercados, mesmo entre os turistas, deve- A oposição entre as lojas que elevam os seus lucros mediante
mos pensar que existe uma correspondência entre os consumidores o aumento quantitativo dos produtos e as que o fazem através da
suntuários e a disposição dos objetos nas lojas. renovação formal dos objetos corresponde à oposição entre estilos
Existem vários tipos de lojas de artesanato urbanas. Algumas estéticos de classes sociais distintas. De um lado o gosto da peque-
oferecem peças de artesanato e antiguidades, com o que são asso- na-burguesia e dos setores populares, apegado às manifestações
ciadas ao velho, ao que não é mais usado e só se compra para deco- mais imediatas do exótico em suas versões uniformizadas. De outro,
ração. Outras lojas, também de propriedade particular, aglomeram o da burguesia e dos setores cultivados da pequena-burguesia, que
peças de várias regiões dentro da mesma vitrina ou estante, impon- sublinha, através do interesse pela autenticidade, da sua relação
do desde a distribuição visual uma confusão, ou uma simples indi- familiar com a origem e com a valorização das inovações formais,
ferença a respeito da origem e da função de cada uma delas: a unifi- sua capacidade em apreciar as obras de arte independentemente da
cação das peças é realizada sob fórmulas tão vazias de significado sua utilidade, como um modo de expressar o seu distante relaciona-
como a de "curiosidades mexicanas", que já analisamos, e pelo seu mento com as urgências económicas do cotidiano. Esta diversifica-
aspecto mais externo, o qual permite que os bordados de pano ção das funções sócio-culturais do artesanato mostra, também, a
sejam exibidos junto com os de lã, as peças de barro com as de variedade de níveis e estratégias sociais que envolvem a sua utiliza-
louça. Nas lojas estatais (FONART, Casas de Artesanato regio- ção, e em que medida a sua circulação hoje ultrapassa o significado
nais) existem apenas peças de artesanato "genuínas", conforme antigo de objetos indígenas produzidos conforme uma finalidade
afirmam, selecionadas devido às suas qualidades estéticas: a ênfase prática ou cerimonial para comunidades de auto-subsistência.
neste valor formal das peças melhora a sua admiração, mas pouco
acrescenta ao seu conhecimento. Salvo realizações esporádicas de
mesas-redondas ou de audiovisuais, a política destas instituições é
orientada por critérios comerciais, não culturais.
104 NESTOR GARCÍA CANCL1N1 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 105

tirando do produtor a metade do seu valor, a poucas quadras de


Entre a boutique e o museu distância elas são exaltadas e conservadas como se estivessem acima
O museu também retira o artesanato do seu contexto nativo e de todo valor material, como se fossem apenas uma criação eterna
destaca o seu valor estético, mas não lhe coloca preço; mostra-o do espírito. O museu de artesanato é a boa consciência de um siste-
apenas para que seja contemplado. Ao ingressar nesses salões neu- ma que possui o seu eixo no mercado.
tros, aparentemente fora da história, cada objeto artesanal perde as Mas, como um museu poderia ajudar-nos a apreender o signi-
suas referências semânticas e pragmáticas, o seu sentido passa a ser ficado dos objetos, as relações entre uma máscara e uma vasilha,
configurado pelas relações que a sua forma estabelece com as de um manto e uma festa? Tentou-se muitas vezes superar o mero
outros objetos dentro da sintaxe interna do museu. Os vidros que armazenamento ou a exibição estética das peças. O melhor exemplo
os protegem, os solenes pedestais sobre os quais são exibidos refor- que conhecemos em Michoacán é o do Museu de Arte Popular de
çam ainda mais a sua condição isolada de objetos-para-serem-con- Pátzcuaro, onde as peças que correspondem a cada atividade, por
templados. exemplo, a comida, foram ordenadas num ambiente que reproduz
Nas boutiques cuida-se mais do que nas lojas da apresentação ponto por ponto a estrutura de uma cozinha tradicional tarasca.
do artesanato. Ele é disposto para ser visto, como no museu, mas Entretanto, a primeira impressão que se tem ao penetrar neste
— enquanto que este inclui a apropriação privada — as boutiques ambiente não é a da vida da cozinha mas a da ordem passiva, mo-
dispõem e arrumam as peças para incentivar a sua compra. A inter- nótona, intocável dos objetos. Quem está servindo de guia para a
venção não se limita a selecionar peças de qualidade e colocá-las visita enfatiza que a maioria das vasilhas e dos panos foi feita no
junto a tapetes, móveis antigos, edições de luxo; modifica o acaba- século XIX, e com efeito, a sua coloração suavemente desbotada e
mento de alguns objetos, sua pintura ou o seu polimento, a fim de o excessivo cuidado e a rigidez da sua colocação induzem a uma
imprimir-lhes a "dignidade" do luxo ou da antiguidade. observação distante e reverente.
No museu encontramos a herança cultural, a história das Não se trata tampouco de introduzir manequins, fotos ou
lutas dos homens com a natureza e com outros homens, mas esta se audiovisuais, ainda que por vezes eles sejam úteis. Devemos aceitar
encontra fechada em vitrinas; a boutique neutraliza esse passado, que os museus são diferentes da vida. A sua tarefa não é a de copiar
ou acentua o que nele pode ser subordinado à beleza, para que con- o real, mas sim a de reconstruir as suas relações. Portanto, não
viva serenamente com o nosso presente (um produto do qual foram podem permanecer na exibição de objetos solitários nem de ambien-
ocultados os dramas que o engendraram é o mais apropriado para tes minuciosamente ordenados; devem apresentar os vínculos que
nos distrair dos dramas atuais). No museu as peças de artesanato existem entre os objetos e as pessoas, de modo que se entenda o seu
não podem ser tocadas; a boutique oferece algo que tampouco é significado. Por que mostrar apenas vasilhas e tecidos, e nunca um
para ser utilizado mas sim para ser visto, deve ser visto como algo forno ou um tear? E por que não funcionando? E se também docu-
que é de quem o compra, mas encarado com toda a distância que se mentássemos a relação entre as horas de trabalho e os preços? Cire-
deve ter de algo que é decorativo, como se não fosse um objeto a se tem razão quando afirma que o isolamento dos objetos num
ser integrado à vida. museu é muito maior do que é necessário para a conservação das
E se elas não pertencem aos artesãos de quem foram arrebata- peças, porque toda essa instituição está impregnada de uma ideolo-
das tanto económica quanto simbolicamente, nem ao consumidor a gia da passividade. Ainda que para que cada peça continue a existir
quem se impõe um uso alienado e externo à coisa, de quem são as não seja possível que cada visitante a utilize a seu bel-prazer, exis-
peças de artesanato? Dos comerciantes, é claro, mas seria mais exa- tem muitas peças que não apresentam riscos, e poderiam ser feitas
to dizer: dos que administram conjuntamente o nosso dinheiro e os reproduções das mais frágeis para que a museografia ensine não
nossos sonhos, nos quais a nossa realidade é trocada pelos fetiches. somente o seu aspecto mais também a sua utilidade. 58 Na medida
Quase tudo que hoje se faz com o artesanato se resume entre em que os museus nos fazem esquecer que as panelas foram feitas
o que acontece na boutique e no museu, oscila entre a comerciali-
zação e a conservação. Enquanto que alguns vendem as suas peças Alberto M. Cirese, op. c/7., pp. 25-41.
106 NESTOR GARCÍA CANCLIN1 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 107

para cozinhar, as máscaras para festejar e os chapéus para abrigar- i adorias, ou no quase vazio valor simbólico do "indígena", o
nos, eles são lugares de fetichização dos objetos. Como as lojas e as • ipitalismo precisa construir identidades imaginárias, fingir recor-
boutiques. dações, enfatizá-las para gerar significados que ocupem o vazio
daqueles que foram perdidos. Esquecido o uso dos objetos que
ugora só servem para ser vendidos e servir como decoração, para
Na habitação urbana: a estética do souvenir Mi exibidos e proporcionar distinção, ignoradas as relações com a
natureza e com a sociedade que deram origem à iconografia cam-
Penso no interior doméstico da pequena-burguesia, a acumu- ponesa, qual é o sentido que podemos encontrar em formas que
lação e proliferação de objetos mediante os quais ostenta as suas aludem indiretamente a este universo: flores que reclamam chuva,
conquistas e entrincheira a sua privacidade. A casa como um mini- linhas quebradas usadas para evocar relâmpagos?
museu, lugar de conservação e de exibição. O liquidificador, o toca- Como consequência surge a necessidade de que o discurso
discos, o televisor, as porcelanas importadas, tudo possui um tape- publicitário instaure novos significados, reelabore um outro imagi-
te por baixo ou por cima, tudo está resguardado, de modo análogo nário social, no qual a profundidade do passado é convocada para
ao museu. Há uma necessidade de superproteger o que se soube dar profundidade a uma intimidade doméstica que os utensílios
conseguir. Num canto, sobre um móvel ou uma prateleira, como industriais estereotiparam. Como consequência surge a necessidade
sinal de que os que habitam esta zelosa intimidade também viajam, de que o artesanato possua essa mistura de sinal de origem e de
se expandem, são colocados objetos que proclamam os lugares instruções para o seu uso. E que ao se falar dele sejam exagerados
onde estiveram: Acapulco, Las Vegas, Oaxaca. os seus elementos folclóricos: a hipérbole é a figura predileta da
Cada vez que lemos "Lembrança de Michoacán" sabemos retórica mediante a qual o capitalismo se apropria do exótico.
que este objeto não foi feito para ser usado em Michoacán. Esta Quando o "indígena" ou o "natural" são submetidos à cultura
fórmula, supostamente destinada a garantir a autenticidade da urbana são reforçados os seus elementos distintivos: os vestidos fei-
peça, é o signo da sua inautenticidade. Um tarasco jamais precisará tos em Oaxaca devem possuir mais flores e pássaros se são para ser
assinalar a origem nas panelas ou nos jarros que ele produz para exportados, não existem danças tão coloridas nem "voadores" tão
utilizar com os seus iguais. A inscrição é necessária para o turista impetuosos quanto os que se apresentam no Acapulco Center, do
que misturará esta cerâmica com as que foram compradas em outros mesmo modo que — como observa Rubert de Ventos — os jardins
lugares, sendo que o que é mais significativo é a distinção social, o do Hotel Princess são mais tropicais que a selva (existem mais
prestígio de quem esteve em tais lugares para comprá-las, do que os cocos, mais cipós, mais papagaios; há mais de tudo). Adaptada às
próprios objetos. regras da exibição mercantil, a cultura indígena oferece algo "me-
A legenda é desmentida pelo fato de estar escrita. Se foi preci- lhor" que a sua essência: a multiplicação, a colocação em cena de
so gravar a sua origem supõe-se o risco de que se deixe de lembrar forma ampliada da sua beleza. O capitalismo acostumou-nos a
ou saber de onde procede. A maioria dos objetos que carregam esta enxergar a cultura do povo através de um espetacular espelho retro-
fórmula de identificação não é comprada dos produtores, nem visor.
escolhida pela relação afetiva, de interesse e compreensão que o A profundidade do passado ê convocada para dar profundi-
forasteiro estabelece com aqueles que fazem os objetos; é compra- dade a uma intimidade doméstica que os aparelhos industriais este-
da em mercados urbanos ou lojas, frequentemente de regiões dis- reotiparam: se a panela e o chapéu artesanais existem na moradia
tintas daquelas onde eles foram produzidos. O paradoxo mais extre- urbana não é devido à sua utilidade mas por seu valor decorativo,
mado desta perda de contexto encontramos nas peças de artesanato não se espera deles que desempenhem um papel no espaço da prá-
de aeroporto. Dado que o turista não pode saber nada das condi- tica doméstica mas sim no tempo que atribui o seu sentido à vida
ções de vida dos artesãos, necessita que seja inventada uma memó- pessoal e familiar. O artesanato que em sua maior parte nasce nas
ria, a nostalgia de uma identidade que desconhece. culturas indígenas pela sua função é incorporado à vida moderna
Ao dissolver o valor de uso do artesanato no intercâmbio das pelo seu significado. Mas o que ele significa? Justamente o tempo,
108 NESTOR GARCÍA CANCL1NI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 109

a origem. De modo diferente dos objetos funcionais, que só exis- demarcam a sua trajetória social. Aqueles que regem a sua produ-
tem no presente e esgotam-se com o seu uso — o copo serve para ção camponesa e a sua localização no mercado, junto a verduras e
beber, o carro para a locomoção —, os objetos antigos ou artesa- frutas, são muito diferentes dos códigos visuais e semânticos que
nais falam-nos da passagem do tempo, da origem. orientam a percepção do artesanato no museu ou a decoração
O gosto pelo antigo e pelo artesanal, assinala Baudrillard, doméstica urbana, onde ganha autonomia o sentido estético das
costuma caminhar ao lado da paixão pelo ato de colecionar: pos- formas. Nos últimos anos ocorreu um avanço notável da bibliogra-
suir para resistir ao tempo e à morte. Apropriar-se do passado, fia a respeito da questão artesanal ao se reconhecer a influência dos
reuni-lo, ordená-lo, apontá-lo como algo a ser admirado por si organismos estatais e dos intermediários nas mudanças do processo
mesmo e por outros é mantê-lo vivo, é lutar contra o que no pas- de produção e dos desenhos. 60 Mas não conhecemos nenhum texto
sado existe de perecível. Numa época em que os objetos se deterio- que atribua às estruturas espaciais uma função equivalente à dos
ram velozmente e se convertem em detritos, a presença do artesa- aparelhos ideológicos. Entretanto, de modo semelhante ao que
nato proporciona um testemunho de um triunfo contra o desgaste, ocorre com a família ou com a escola, a instalação diferencial de
ostenta a beleza do que sobrevive. Por isso é atribuído ao objeto objetos num meio ambiente ou noutro induz hábitos perceptivos,
artesanal, "o mais formoso dos animais domésticos", "uma espécie esquemas de compreensão e de incompreensão.
de intermediário entre os seres e os objetos", 59 este meio ambiente A organização do espaço, a mudança de contexto e de signifi-
especial, um local privado que evidencia a relação particular que o cado dos objetos populares é um recurso indispensável para que a
seu dono possui com o passado. Daí a importância que assume burguesia construa a sua hegemonia. O seu interesse pelo artesa-
para a burguesia o fato de ela não possuir peças de artesanato nato não é unicamente económico, não se reduz a atenuar a miséria
comuns, iguais às dos outros. A burguesia não apenas se apropria camponesa e as migrações, nem em proporcionar lucros fáceis aos
da natureza e a privatiza através do domínio técnico, não somente intermediários; ela busca também efeitos políticos: reorganizar o
se apropria do excedente económico mediante a exploração social; sentido dos produtos populares, das suas instituições — a casa, o
ela também se apropria do passado, do passado dos grupos sociais mercado, a festa — para subordiná-los à ideologia dominante.
aos quais oprime, e o coloca a serviço da sua necessidade de distin- Uma explicação completa das culturas populares deve anali-
ção. Por isto transforma o tempo histórico num tempo metafísico, sar os diferentes espaços por onde circulam os seus produtos e evi-
dissolve os objetos em signos, os utensílios cotidianos utilizados tar visões compartimentadas como as daqueles que só levam em
por outros em troféus — como os quadros, os vinhos e os móveis consideração o processo de trabalho ou a comercialização. Deve-
antigos — cuja posse crêem que confere ao seu dono o gosto pelo mos perceber as interpenetrações existentes entre um lugar e outro,
antigo e um domínio do tempo e da história. O modo como a bur- entre os seus objetos e as suas lógicas. Por exemplo, o modo pelo
guesia e a pequena-burguesia colecionam em suas casas o artesa- qual o industrial invade a intimidade da moradia indígena, e, no
nato é o reverso da relação que não temos sabido, ou querido, man- sentido contrário, por que no interior da organização mercantil
ter com os artesãos: saber olhar o artesanato é perceber neste con- urbana há um interesse em recuperar o passado, vincular o presente
traste uma acusação. com o passado, como o querem os souvenirs localizados nas mora-
dias urbanas. Também devem ser registradas as causas das "confu-
Em direção a uma política popular sões" existentes entre o rural e o urbano, o indígena e o ocidental e
na utilização do espaço urbano entre as culturas de classes sociais distintas: deve-se procurar ver na
A forma pela qual o artesanato será encarado e os seus códi-
gos de leitura são determinados pelos contextos específicos que 60 Além do livro de Victoria Novelo e o volume que reúne os trabalhos do I Seminá-
rio sobre la problemática artesanal, aos quais já nos referimos, pode ser consul-
tado o livro de Andrés Medina e Noemi Quezada, Panorama de las artesanías
59 Jean Baudrillard, El sistema de los objetos, México, Siglo XXI, 1969, p. 101. otomíesdel Valle dei Mezquital, México, Instituto de Investigaciones Antropoló-
(Ed. bras.: O Sistema dos Objetos, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973.) gicas, UNAM, 1975.
110 NESTOR GARCÍA CANCL1NI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO III

origem de todas estas interpenetrações a organização homogenei- tos. Obviamente isto não significa que eles devem ser reintegrados
zadora e monopolista do capitalismo. ao contexto indígena, ou que se deva "indenizar" as lojas urbanas,
E por isto que rechaçamos a concepção evolucionista, linear, mas sim que deve ser elaborada uma estratégia visando o controle
que imagina a cultura indígena e camponesa como uma etapa pré- progressivo sobre os espaços e mecanismos de circulação.
industrial, cujo destino inexorável seria o de parecer-se cada vez Uma tal estratégia requer o discernimento do que nas culturas
mais com a "modernidade" e finalmente nela dissolver-se. Ainda é mera sobrevivência e o que representa os interesses atuais das
que exista no desenvolvimento capitalista uma tendência para absor- classes subalternas, e, portanto, é capaz de se opor ao sistema hege-
ver e tornar semelhantes as formas de produção material e cultural mónico. Consequentemente, devem ser examinadas as possibili-
que o precederam, a subordinação das comunidades tradicionais dades que os mercados e feiras oferecem para os produtores, que
não deve ser completa devido à impossibilidade do próprio capita- devem reclamar uma participação ativa na sua organização e admi-
lismo industrial de proporcionar trabalho, cultura, assistência mé- nistração, na publicidade turística, no julgamento dos concursos
dica para todos, e, também, pela resistência por parte das etnias etc. Em suma, devem lutar pelo controle económico e cultural da
que defendem a sua identidade. O caráter ambíguo da estratégia sua produção e de todas as instâncias onde ela pode ser refunciona-
que as classes dominantes põem em prática diante das culturas lizada e ressignificada. A respeito das inovações no desenho, na
subalternas é explicado, desse modo, pela existência de um duplo apresentação e na difusão do seu trabalho, devem ser os artesãos,
movimento: pretendem impor aos dominados os seus modelos eco- os dançarinos, os trabalhadores indígenas da cultura os que devem
nómicos e culturais e, ao mesmo tempo, procuram apropriar-se do decidir quais mudanças podem ser aceitas e quais se opõem aos seus
que não conseguem anular ou reduzir, utilizando as formas de pro- interesses. Na medida em que as classes populares rurais e urbanas
dução e de pensamento alheias através da sua refuncionalização desempenhem este papel de protagonista, iremos tendo uma cultura
para que a sua continuidade não seja contraditória com o cresci- popular: uma cultura que surja democraticamente da reconstrução
mento capitalista. crítica da experiência vivida.
Finalmente, isto permite-nos entrever em qual direção deve-
mos agir para construir uma cultura contra-hegemônica. Não basta
"resgatar" a cultura popular, evitando que se percam os mitos, o
artesanato e as festas. Tampouco é suficiente o incentivo à sua pro-
dução através de créditos generosos nem o sequestro dos seus melho-
res resultados em museus honoráveis ou em livros suntuosamente
ilustrados. Os mitos e a medicina tradicional, o artesanato e as festas
podem servir para a libertação dos setores oprimidos desde que
sejam reconhecidos por eles como símbolos de identidade que pro-
piciam a sua coesão, e desde que os indígenas e as classes populares
urbanas consigam converter estes "resíduos" do passado em mani-
festações "emergentes", contestatórias.61 Para que isso ocorra é
fundamental que os setores populares se organizem em cooperati-
vas e sindicatos a partir dos quais possam ir reassumindo a proprie-
dade dos meios de produção e de distribuição. Mas também é vital
que cheguem a se apropriar do sentido simbólico dos seus produ-

Retiramos a distinção entre cultura residual e emergente de Raymond Willians.


Marxism and Literature, Oxford, Oxford University Press, 1977. (Ed. bras.:
Marxismo e Literatura, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.)
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 113

Gilberto Gimenez esquematizou os traços das festas rurais e


urbanas no seguinte modelo: 62

Festa camponesa tradicional


a) Ruptura do tempo normal;
b) Caráter coletivo do fenómeno da festa, sem exclusão de nenhu-
Festa e história: ma classe, como expressão de uma comunidade local;
c) Caráter compreensivo e global, uma vez que a festa abrange os
celebrar, recordar, vender elementos mais heterogéneos e diversos sem disgregação nem
"especialização" (jogos, danças, ritos, música etc. ocorrem no
interior de uma mesma celebração global);
d) Com a consequente necessidade de ser realizada em grandes
espaços abertos e ao ar livre (a praça, o pátio da Igreja...);
Festas rurais e espetáculos urbanos e) Caráter fortemente institucionalizado, ritualizado e sagrado (a
festa tradicional é indissociável da re':gião);
A festa é uma posta das fissuras entre o campo e a cidade, f) Impregnação da festa pela lógica do valor de uso (como conse-
entre o indígena e o ocidental, das suas interações e dos seus confli- quência: festa-participação e não festa-espetáculo);
tos. Isto pode ser comprovado na coexistência das danças antigas g) Forte dependência do calendário agrícola no quadro de uma
com os conjuntos de rock, nas centenárias oferendas mortuárias agricultura sazonal.
indígenas que são fotografadas por centenas de câmaras, no cruza-
mento de ritos arcaicos e modernos nos povoados caponeses, nas
festas híbridas através das quais os migrantes evocam, nas cidades Festa urbana
industriais, um universo simbólico que se centra no milho, na terra,
na chuva. Estas oposições dramáticas também são representadas a) Integração da festa à vida cotidiana como um seu apêndice,
no contraste entre as festas rurais e as urbanas. complementação ou compensação;
Para as populações indígenas e camponesas, as festas são b) Caráter fortemente privado, exclusivo e seletivo da festa;
acontecimentos coletivos enraizados na sua vida produtiva, cele- c) Sua extrema diferenciação, fragmentação e "especialização"
brações fixadas de acordo com o ritmo do ciclo agrícola ou o calen- (são dissociados os elementos que na festa popular coexistiam
dário religioso, onde a unidade doméstica de vida e de trabalho se no interior da unidade de uma mesma celebração global);
reproduz através da participação coletiva da família. d) Com a consequente necessidade de ela ser desenvolvida em espa-
Nas cidades, a existência da divisão entre as classes sociais, de ços íntimos e fechados;
outras relações familiares, o maior desenvolvimento técnico e mer- e) Laicização e secularização da festa, maior espontaneidade e
cantil voltado para o lazer, a organização da comunicação social menor dependência de um calendário estereotipado;
que apresenta um caráter massivo criam uma festividade que é dis- f) Penetração da lógica do valor de troca: festa-espetáculo, conce-
tinta. À maioria das festas as pessoas vão individualmente, são bida em função do consumo e não da participação.
feitas em datas arbitrárias, e, quando se adere ao calendário ecle-
siástico, a estrutura segue uma lógica mercantil que transforma o
motivo religioso num pretexto; ao invés da participação comunitá- Gilberto Gimenez, Cultura popular y religión en el Anáhuac, México, < < i"' •' dl
ria, é proposto um espetáculo para ser admirado. Estúdios Ecuménicos, 1979, pp. 164-165.
114 NESTOR GARCIA CANCL1NI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 115

Este tipo de contraposição gerou — como no caso do artesa- tantes, bem como a semeadura de pequenos terrenos, onde o milho
nato — polémicas bizantinas a respeito do que seria a essência da e o feijão crescem como podem nos escassos meses de chuva. Alguns
festa, a autenticidade exclusiva da festa rural e da sua decadência, criam ovelhas e vendem a lã. Dos 2300 habitantes de Ocumicho,
devido às variações que sofre, nas cidades. 63 Como adverte Gime- 65 famílias produzem objetos de barro e umas tantas mulheres
nez, a polarização é demasiado "abrupta", e de fato é difícil encon- tecem blusas. Vivem de modo semelhante ao que descrevemos a
trar-se festas comunitárias puras, que possuam uma indigenidade respeito de Patamban. A primeira diferença que se nota é que toda
impecável. Perguntamos também até que ponto existem a ruptura a população fala o tarasco o tempo todo; os homens jovens e algu-
do tempo social, o predomínio do valor de uso e as demais caracte- mas mulheres usam o espanhol quando são visitados por estra-
rísticas apontadas. As indagações que nos parecem mais pertinentes nhos. Além da língua, um regime de compadrio e solidariedade
são as que possam nos auxiliar na compreensão de por que existe comunitária estritamente mantido serve-lhes de coesão: em algu-
este contraste, por que cada vez mais as festas rurais vão cedendo mas casas convivem quatro ou cinco famílias, que plantam e colhem
terreno aos modelos mercantis urbanos e são parcialmente substi- juntas.
tuídas por divertimentos e espetáculos. Por que começaram a fazer, no final da década de 60, os dia-
Analisaremos três festas onde se pode perceber, segundo o bos de barro que rapidamente se converteram numa das peças de
vocabulário do funcionalismo evolucionista, uma transição do artesanato mais difundidas e valorizadas do México? " O diabo
tradicional ao moderno: a festa do padroeiro de Ocumicho, reali- percorria Ocumicho e incomodava a todos. Enfiava-se nas árvores
zada ano após ano sem maiores mudanças; a do Cristo Rei de Pa- e as matava. Entrava nos cachorros, e estes não faziam outra coisa
tamban, onde as modificações que percebemos durante três anos senão agitar-se e gritar. Em seguida perseguiu as pessoas, que adoe-
representam uma maior adequação do povoado ao mercado nacio- ciam e enlouqueciam. A alguém ocorreu que se deveria dar-lhes
nal e à cultura urbana; e por último, a festa dos mortos na região lugares onde pudesse viver sem incomodar a ninguém. Por isso
do lago de Pátzcuaro, onde podemos colocar como contrastantes a fizemos diabos de barro, para que ele tivesse onde ficar."
celebração tradicional que ocorre em Ihuatzio e outros povoados Ao juntar a este relato dois fatos, foi surgindo uma interpre-
com a sua radical alteração, a poucas centenas de metros, na ilha de tação. Por um lado, a época em que começou a produção dos dia-
Janitzio, como consequência da reorganização comercial do feste- bos coincidiu com aquela em que começaram a diminuir as chuvas
jo. Não tomaremos, entretanto, estes três casos como pontos esca- e quando alguns hejidatarios (posseiros de terras comunais) de
lonados de uma progressão — a festa de Ocumicho não está conde- Tangancícuaro apropriaram-se de terras muito férteis que até agora
nada a ser igual à de Janitzio — mas como processos que revelam os habitantes de Ocumicho não conseguiram recuperar. Ainda que
as mudanças desencadeadas pela penetração capitalista numa tradi- alguns deles tivessem anteriormente feito objetos de barro, nestes
ção cultural determinada, a tarasca. Além do que, os três exem- anos essa produção se estendeu a muitas famílias como atividade
plos, pelo seu sentido religioso, oferecerão uma ocasião para nos compensatória, a exploração dos bosques se tornou mais intensa, o
interrogarmos a respeito da sobrevivência e da caducidade das que abriu para a comunidade um maior intercâmbio com o merca-
crenças tradicionais, e do seu lugar atual na redefinição das cultu- do nacional. O outro fato que relacionamos com o mito são as
ras populares. constantes que aparecem nos diabos: estão cercados de serpentes e
animais da região, mas costumam estar associados a elementos do
Porque não chove os santos serão carregados de costas mundo "moderno" inexistentes no povoado: policiais, motocicle-
tas, aviões. A cerâmica de maior tamanho que vimos em Ocumi-
Bosques formados por pinheiros cercam o povoado, a madei- cho, de setenta centímetros de largura, é um ônibus com diabos ale-
ra e a resina estão relacionados com a alimentação dos seus habi- gres, jogando os corpos pela janela, e uma inscrição na frente:
Ocumicho-México-Laredo (o nome do povoado compondo uma
63 Uma resenha deste debate pode ser encontrada em Agnes Villadary, Fête et vie série com o de dois lugares onde se viaja em busca de trabalho).
quotidienne, Paris, Les Éditions Ouvries, 1968. Não podemos pensar que os diabos — a falta de chuvas, o roubo
116 NESTOR GARCÍ A CANCL1N1 AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 117

das terras, a necessidade de abrir a comunidade para o exterior, A relação do povoado com o exterior, as suas dificuldades de
enfim, todos os males que começaram a desintegrá-la — precisa- subsistência e a importância da migração podem ser observadas
vam de um lugar onde pudessem ser controlados e contidos? num detalhe: as mulheres encarregadas da festa vestem para esta
As festas são um dos poucos espaços onde a população pode ocasião um traje especial, carregam dinheiro mexicano e dólares
continuar a reafirmar a sua solidariedade comunitária. Os quatro atados às fitas multicoloridas que amarram nos cabelos. São as
bairros que compõem o povoado participam na organização e no contribuições que os membros dos bairros fazem aos encarregados
financiamento das festas principais: as dedicadas a São Sebastião para ajudá-los com os gastos da festa. Os dólares são provenientes
no dia 20 de janeiro, a Quaresma na Semana Santa, a de São Pedro daqueles que foram como trabalhadores braçais para os Estados
e São Paulo nos dias 28 e 29 de junho, a do Santo Cristo nos dias 13 Unidos. Por um lado, a introdução do dinheiro como elemento de
e 14 de setembro, a da Virgem no dia 8 de dezembro, e em seguida decoração e de participação na festa (como relação social já faz
as cantorias (pastoreias) de Natal e a festa de Santo Estêvão e São parte há muito tempo) manifesta as diferenças sociais e culturais
Miguel nos dias de 26 e 27 de dezembro. Para as festas são designa- surgidas no povoado: conforme o valor da doação, se é oferecida
dos encarregados, mas todos colaboram com trabalho e dinheiro. em bens ou moedas de outro país. Por outro lado, revela que mes-
Nada mais longe de um espetáculo do que estas festas. As ativida- mo as pessoas que abandonam Ocumicho e que partilharam de
des de cada festa e a forma como são realizadas são conhecidas por outras formas de vida no exterior regressam e participam da festa.
todo o povo como parte do seu repertório de crenças e da sua tradi- A presença do dinheiro estrangeiro, que poderia ser interpretada
ção. A maioria dos habitantes acompanha passo a passo as cerimó- como uma perda das manifestações culturais tarascas ou nacionais,
nias e desempenha papéis ativos. Tampouco a festa é um espetá- mostra-nos a readaptação cerimonial, a nova situação de uma
culo para os visitantes, já que estes são provenientes dos povoados comunidade desgarrada que encontra na festa um meio para reafir-
próximos (Patamban, San José de Gracia), conhecem os habitantes mar o que na sua identidade possui origem no passado, do mesmo
de Ocumicho e são convidados a participar. É mínima a assistência modo que encontra nas mudanças uma forma de atualizar a repre-
de pessoas estranhas: turistas, funcionários que se ocupam do turis- sentação das suas carências, das suas desigualdades, mas também
mo e do artesanato. da sua coesão histórica.
A festa mais importante é a de São Pedro e São Paulo, uma Qual o significado que apresenta o fato de que o dinheiro,
vez que o primeiro é o padroeiro do povoado. A atividade central é além de ser utilizado para financiar os gastos da festa, tenha a sua
a procissão, mas também são queimados castelos de fogos de artifí- aparição reduzida a esta presença decorativa, eufemística, e que a
cio e pequenos touros de pólvora, são contratadas duas bandas de atividade comercial seja muito baixa, já que apenas é permitida na
música que tocam obras clássicas e concorrem durante toda a noite. praça a presença de dez postos de venda de brinquedos de plástico,
Para a procissão as imagens de São Pedro e São Paulo são vestidas enfeites e jogos de tiro ao alvo? Entendemos que estes limites repre-
com esmero e adornadas com frutas e verduras, de plástico e de sentam na festa o controle relativo que o povoado ainda exerce
cera. São Pedro carrega uma espiga de milho, que é o alimento diante da dependência mercantil que lhe é imposta de fora, e que
cotidiano dos camponeses. Mas a procissão dos santos não é um também possui alguns agentes entre eles. As autoridades indígenas
ato puramente formal, que se repete para dar sequência a uma tra- da comunidade, que estão acima do governo cívico-político na
dição. Na procissão de junho de 1979, as imagens, ao saírem da organização da festa, impedem que a celebração adquira um cará-
igreja, iam de costas como castigo aos santos porque não haviam ter predominantemente mercantil; por isso proíbem também a
feito chover durante dois meses e as plantações estavam ficando entrada de jogos mecânicos. Ao mesmo tempo que pressionam os
secas. Os habitantes trazem oferendas aos santos — pães, frutas e membros do povoado com maiores recursos para que assumam a
doces — dançam diante das imagens para chamar as suas graças, responsabilidade de encarregados, com o que obrigam aqueles que
mas a sua atitude não é a de uma recatada submissão, não se limi- conseguiram acumular algum capital a reinvesti-lo dentro de Ocu-
tam a cumprir o que a Igreja estabelece; eles também intervêm, rea- micho: este gasto, ainda que não elimine a desigualdade porqiií
gem sobre os fatos, modificando o significado dos ritos. não supõe uma redistribuição, evita que o excedente obtido com 0
118 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 119

trabalho dos habitantes do povoado, ao ser investido no exterior, Ocumicho e outros povoados, a festa de Cristo Rei não se encontra
agrave a subordinação ao mercado nacional. na mão dos encarregados mas de toda a população. O sacerdote, as
Talvez este controle da atividade mercantil, a sua redução freiras e os representantes de cada bairro ocupam-se da organiza-
parcial a operações simbólicas, do mesmo modo que a produção do ção, mas todos participam de modo integral nas tarefas: um bairro
artesanato, sejam os últimos recursos para a sua autopreservação. se encarrega da confecção do castelo, outro cuida da música, outro,
Até que ponto os ajudará a fazê-lo a partir dos recursos do imagi- do enfeite da igreja. Todos confeccionam e colocam os enfeites,
nário? Qual será a eficiência do simbólico? Até quando poderão organizados por quadras: para chegar a um acordo a respeito da
continuar a se reconhecer naquilo que fazem? forma, da cor e dos materiais que serão empregados nos arranjos
Perguntei a um artesão por que numa das suas peças havia de papel e nos tapetes todos se reúnem, propõem e discutem dife-
vários diabos amontoados, atropelando-se para olhar num espelho. rentes desenhos. A maioria das figuras é geométrica e outras imi-
Ele me respondeu: " O espelho é a aparência. Alguém se olha e está. tam formas naturais: flores, animais. Numas vinte esquinas são
Alguém retira o espelho e já não se está mais". levantados arcos feitos com armações de madeira e que são decora-
dos com papéis coloridos, pequenos objetos de cerâmica, cascas de
ovo pintadas, flores, frutas e espigas de milho. Podemos dizer,
A festa em Patamban: peças de artesanato efémeras, conforme o vocabulário das vanguardas artísticas, que se trata de
necessidades crónicas uma arte pobre, coletiva, urbana e efémera.
Anteriormente os tapetes eram confeccionados apenas com
São dois os cenários. O espaço concentrado da praça, onde é flores naturais, que existiam em quantidade abundante ao redor do
feito o comércio de artesanato e de produtos industriais, a diversão povoado. Desde que as chuvas diminuíram, muitos passaram a
do consumo, a comida feita na hora, os jogos mecânicos e de azar. empregar a serragem, pois a conseguem gratuitamente ou de modo
Simultaneamente, d espaço itinerante da procissão, seis quilóme- muito barato nas serrarias do próprio povoado que cortam a ma-
tros de caminhada que começam rodeando o centro e em seguida deira dos bosques das redondezas, mas as flores ainda são muito
abandonam o povoado, sobem ao outeiro para a missa principal. utilizadas. Em 1977 houve um movimento por parte dos comer-
Oscilação entre o económico e o religioso: por um lado, o artesa- ciantes para se transferir a data da festa, fixada no último domingo
nato vendido na praça para propiciar a sobrevivência; por outro, o de outubro, para o mês de dezembro, quando a afluência de turis-
artesanato efémero (enfeites de papel pendurados entre as casas, tas seria maior; quase todo o povoado concordou em rechaçar a
veredas cobertas com desenhos compostos com serragem e flores), mudança, argumentando que se a escolha do mês de outubro havia
que se estende pelo caminho da procissão e segue além do povoado sido feita por ser a época do ano em que existe uma maior quanti-
até onde se ergue o outeiro, para se desmanchar na volta sob os dade de flores, não se devendo ao calendário religioso, não deveria
passos daqueles que carregam o santo. ser alterada por razões comerciais.
De acordo com o sacerdote de Patamban, a festa foi criada há Flores, serragem, cerâmica, milho: a festa prolonga a vida
quinze ou vinte anos por um padre anterior com o objetivo de cotidiana e o trabalho do povoado. Algumas atividades agrícolas
atrair visitantes e de promover a venda do artesanato. Por isto ele são interrompidas, mas a artesanal aumenta com vistas às vendas
organizou a decoração das ruas e da igreja com tapetes de flores extraordinárias, e se trabalha mais do que nunca na preparação dos
naturais, com arcos de madeira cobertos com flores e frutas e com arranjos. Podemos afirmar que a produção se modifica, mas não
arranjos de papel (composturas) que ficam dependurados em fios que a festa seja uma fuga do cotidiano ou a passagem do profano
preenchendo o espaço visual das ruas. O resto dos informantes atri- ao sagrado. Do mesmo modo que em outras festas religiosas — por
bui à festa entre vinte e trinta anos de antiguidade e diz que ela foi exemplo, a de Ocumicho, que não possui objetivos comerciais — o
criada por motivos religiosos; de acordo com eles, ela começou a que pode haver de excepcional no tempo, no espaço e nas práticas
possuir aspectos comerciais muitos anos depois da sua criação. sociais sempre está incluído numa profunda continuidade com a
De modo diferente das festas dos padroeiros de Patamban, ordem habitual. Os materiais e os desenhos usados na decoração
120 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 121

etfão arraigados na vida produtiva, nas necessidades e gostos cole- |C constante, crescem a cada ano os postos de cerâmica de Ocumi-
tivos. É significativo, nesta linha de argumentação, perceber quais c h o , bem como alguns postos de San José de Gracia, e o número de
são os materiais "modernos" que são empregados na decoração. Comerciantes que vendem as cerâmicas de Santa Fe de la Laguna e
Muitas coroas são feitas com latas (com as quais criam losangos, de Guanajuato. Tem crescido ainda mais o número dos que trazem
formas complicadas) e copos de plástico esteticamente recortados: louça de cidades (Zamora, Morelia, do Distrito Federal) e mistu-
no momento em que vi toda uma quadra decorada deste modo e ram blusas e ponchos produzidos artesanalmente em outros povoa-
passou um menino com duas tinas de água, compreendi o significa- dos com objetos de fabricação industrial: sapatos, roupa, artigos
do. Assim como — soube depois — em algumas procissões são uti- domésticos, bugigangas de plástico e de madeira (brinquedos, pen-
lizadas garrafas de coca-cola para levar as velas, ou simplesmente tes, pulseiras, colares, brincos, espelhos etc). Completam a festa
são seguradas como ato devoto, o uso das latas e copos representa postos de venda de verduras, frutas, pães, doces, bebidas e comi-
o papel que os refrigerantes comerciais possuem num lugar onde a das, que se somam para fazer desta festa a maior atividade comer-
água precisa ser buscada em dois locais, e em várias épocas do ano cial do povoado.
não é suficiente nem para beber. Ao entrarmos em muitas casas Grande parte da diversão se concentra na praça e nas ruas
temos a sensação de que se trata de pequenas vendas, porque pos- vizinhas. A roda-gigante, os carrosséis, um jogo de loteria que
suem quatro ou cinco caixotes de refrigerantes. A decoração com inunda o espaço com a sua música e a leitura por alto-falantes dos
estes elementos não indica apenas a penetração das empresas multi- bilhetes premiados, jogos de azar e de habilidade, todos trazidos de
nacionais e da sua cultura de plástico: a substituição parcial, no Zamora, aproveitam esta festa, a única festa religiosa em que são
espaço da festa, de elementos naturais e de cerâmicas confecciona- permitidos entrar no povoado. Nas demais, os habitantes de Patam-
das na região por elementos de origem externa, industrial (símbolo ban entendem que o tempo da festa deve ser um tempo de recolhi-
ao mesmo tempo daquilo que substitui a água) representa o lugar mento; nesta festa as alegrias das maiores vendas do ano se conci-
que a população lhes atribui no seu sistema imaginário, ou seja, o liam, de acordo com o sacerdote, com a do triunfo de Cristo, e este
papel que concede a estes objetos importados, semelhante ao das clima prevalece em todas as atividades. A mesma procissão, que
verduras e frutas, na satisfação material das suas necessidades, e a atravessa um caminho formado por arranjos de papel e tapetes
invocação que fazem dos seus poderes enquanto elementos "me- multicoloridos, acompanhada por bandas de música e foguetes
diadores" na resolução simbólica das suas carências. durante todo o percurso, não inclui penitências ou mortificações, e
Na praça instalam-se os postos de venda de artesanato, de nem se carregam as imagens ou oferendas desmesuradamente pesa-
produtos industriais e a maior parte das diversões. A venda do arte- das que vimos em outras procissões.
sanato produzido em Patamban é uma das atividades comerciais Mas a reunião destes elementos — a decoração com flores e
mais importantes: 75% da população trabalham com louça e esta serragem, a música e os foguetes — não possui apenas um caráter
festa proporciona-lhes uma ocasião para vendê-la no povoado sem ornamental e recreativo, como nas secularizadas festas urbanas.
os gastos com o transporte e com o alojamento que enfrentam no Todos os ingredientes das festas camponesas servem, ao mesmo
resto do ano ao se transportarem para feiras ou mercados longín- tempo, a um movimento ritual que invoca poderes sobre-humanos
quos. Por isso, várias semanas antes da festa toda a família se dedi- e pede pelos seus favores. As bandas tocam hinos cristãos, que a
ca a preparar uma quantidade maior de peças do que a habitual. procissão canta conduzida pelas freiras a partir de alto-falantes
Nem todos os oleiros expõem a sua cerâmica na praça, porque se portáteis. Na parte de trás da procissão os fogueteiros lançam aos
requer que as peças sejam finas ou semifinas. Aqueles que fabricam céus as suas mensagens de luz e de ruído para agradar aos deuses da
louça comum reconhecem que o seu lugar não é na praça, e vendem chuva e do trovão e propiciar a atenção destes deuses para a colhei-
nas portas das suas casas ou simplesmente guardam-na. Outros ta. Na mesma marcha até o outeiro misturam-se os deuses pré-
tampouco saem para vender no dia da festa porque trabalham com colombianos e o cristão, os cânticos que aprenderam no período dc
cerâmica fina ou semifina por encomenda. colonização e o alto-falante adquirido há três anos, as flores que
Embora a produção e a venda do artesanato local mantenha- são proporcionadas há séculos pelos seus bosques e a serragem que
122 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 123

tingem agora com anilinas de preparação química. Sincretismo, dedicam-se à venda do artesanato de várias regiões mesclado com
cruzamento de culturas: magia tarasca, religião católica e tecnolo- louça e roupa, e continuam a produzir objetos de decoração com-
gia capitalista, trabalho e reza. Assim caminham os povos quando postos com imagens locais (embarcações e redes de brinquedo,
uma dominação se sobrepõem à outra. algumas máscaras, reproduções em miniatura da estátua de More-
As bandas percorrem as ruas várias vezes ao dia, desde muito los). As raras oficinas que sobrevivem são utilizadas para atrair os
cedo. Aproximam-se das pessoas que estão decorando as casas e o turistas.
chão, e perguntam Qual a música que gostariam de ouvir. Outro A pesca deixou de ser, há muitos anos, uma atividade cole-
acontecimento musical é o concurso de pirekuas (música da região tiva, os proprietários das embarcações médias e grandes impedem
tarasca), que é organizado pela comissão da festa e pelo sacerdote os pescadores de se aproximarem do cais, inclusive com a utilização
com o apoio do Instituto Nacional Indigenista e da Secretaria de de violência. "Entre, coma pescada branca de Pátzcuaro", anun-
Turismo para a atribuição de prémios. O FONART promove um cia-se nas portas dos restaurantes da ilha, mas o que é oferecido é
concurso de artesanato: em 1979 foram dados prémios que iam de em realidade peixe dos lagos de Chapala, situada a 350 quilómetros
500 a 1.500 pesos; quantias que às vezes cobrem o preço das peças e de distância, porque o peixe do lago que circunda Janitzio, mais
que em poucas ocasiões chegam a alcançar o dobro do seu valor. tenro e saboroso, é enviado para restaurantes de quatro estrelas do
As obras que disputavam o concurso estavam em exposição desde Distrito Federal e de Acapulco.
antes, mas imediatamente após o concurso — que é feito na noite Nem o artesanato, nem a pescada, nem o modo de vida são os
de sábado anterior à festa — o FONART retira as obras vencedoras próprios da ilha. Janitzio é uma grande empresa de simulação. O
e todas as demais q u e lhe interesse comprar. Num primeiro mo- lugar onde melhor se mantém a cultura tarasca é no cemitério.
mento o concurso foi anunciado para o domingo, mas foi anteci- Como em Jarácuaro, a maior ilha do lago, e as outras onde vivem
pado porque o F O N A R T queria levar a mercadoria o mais depressa poucos habitantes como em Ihuatzio, Tzurumutaro e quase todos
possível e no dia seguinte os enfeites e os tapetes impediriam a pas- os povoados da região, nas noites de 31 de outubro e de 1 de novem-
sagem dos caminhões. Muitos artesãos que haviam produzido peças bro as pessoas se dirigem para os túmulos carregando velas acesas e
para vender na praça no dia da festa, desfizeram-se delas antes do defumadores queimando incenso. As guares, envolvidas em man-
dia em que começaria a venda. Como no concurso participaram tos azuis, transportam o huatzallari, arco enfeitado com flores
apenas 24 oleiros, c o m o não havia nenhum artesão no júri (com- amarelas, onde se penduram figuras de açúcar, pães e doces. Desde
posto por representantes do FONART, do INI e da Casa de Artesa- antes da conquista colocam sobre as tumbas de terra as trabalhosas
nato de Morelia), a maioria da população apenas observava os kenekuas, oferendas de pães, chayotes (fruto da chayotera) e caba-
fatos. O concurso e m que era julgado e premiado o seu trabalho era ças (espécie de abóbora) ou as comidas prediletas dos mortos. Houve
para quase todo o p o v o a d o um entretenimento para o qual foram um tempo em que se acreditava que os mortos os visitavam na ma-
convocados como espectadores. drugada para agradecer as rezas em sua intenção e para protegê-
los. O cristianismo atenuou esta crença e nela introduziu os seus
princípios; a secularização tem propiciado o seu esquecimento. Se
70000 turistas criaram em Janitzio perguntarmos pelo sentido da cerimónia, quase todos dirão que
uma cultura fotogênica "em outra época isto acontecia". Parece que o rito se sustenta
menos pela crença do que por servir de comunicação e proporcio-
Existe apenas u m a rua na ilha. Ela nasce no cais e sobe, sinuo- nar uma elaboração simbólica em torno de uma relação com o des-
samente, até o m o n u m e n t o dedicado a Morelos: às suas margens conhecido que o desenvolvimento social tem mercantilizado, mas
cada choupana foi transformada em loja de venda de artesanato ou que não pode substituir.
de alimentos. Em o u t r a época, Janitzio produziu esculturas de ma- Em Ihuatzio e em outros povoados é permitido que toda a
deira e cerâmica, além da pesca de charales e da pescada branca, família vele as sepulturas, ainda que algumas mulheres o façam
um dos peixes mais caros do país. Atualmente os seus habitantes sozinhas. Em Janitzio, os homens do povoado não entram no cerni-
124 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 125

tério até o amanhecer, mas os turistas — que em 1979 foram 70000 anos) e cede a rua para os comerciantes de fora, que instalam os
— não respeitam esta vontade. Nunca soubemos que isto tenha seus vendedores, os seus alto-falantes, os parques de diversão. A
provocado conflitos, enquanto que já ouvimos orgulhosos relatos a nova invasão de cor, luz e som que é trazida pela prática mercantil
respeito de quantas vezes a ilha tem sido cantada, fotografada e substitui — por seu caráter de experiência estética total — as festas
filmada. A iluminação das velas é uma parte tão habitual da ceri- religiosas que eram nos povoados a fonte principal de integração
mónia quanto a luz dos flashes, os cantos fúnebres misturam-se o pública da vista, do ouvido, do olfato e do paladar, enfim, de edu-
tempo todo com murmúrios em inglês, francês e alemão. cação sensível das massas.
Num tempo em que a crença se apaga, a cerimónia subsiste A festa se transforma primeiro em feira e depois em espetá-
mudando de função. Perdido o acontecimento restam os signos — culo. Um espetáculo interurbano, nacional e mesmo internacional,
velas, arcos, oferendas — que a necessidade económica justifica de conforme o seu alcance turístico. Foi deixado para trás o tempo das
outra maneira. Os jornais, a televisão e o Departamento de Turis- festas comunitárias, chegaram os empresários que as converteram
mo insistem na "profunda atitude mística" das pessoas, a "quie- em festas para os outros. São separados os espectadores dos atores
tude hierática das suas faces", esta "tristeza de toda uma raça que e é entregue a profissionais a organização dos divertimentos. Em
se volta para dentro de si mesma"; 64 afirmam-nos precisamente nos vez dos encarregados ou administradores, um grupo de técnicos
folhetos que incitam as multidões a atirarem-se sobre estas festas, prepara o cenário, os alto-falantes, a iluminação, a colocação do
suprimir a quietude hierática ou de qualquer outro tipo, levando espetáculo em cena. Os camponeses, os indígenas, os artesãos tor-
aqueles que a celebram a saírem de si mesmos e esforçarem-se em nam-se parte deste espetáculo para turistas, devendo estilizar-se ou
encontrar uma compensação ao que durante o resto do ano lhes é tornar-se um divertimento. Os turistas também são um espetáculo
subtraído. para os habitantes que "vão à praça" pela curiosidade de ver os
Janitzio é um exemplo extremado desta tendência do capita- estranhos, de ver algo estranho. Este jogo de observações do longín-
lismo em secularizar os acontecimentos tradicionais, mas resga- quo pode acabar sendo no seu conjunto um show para espectadores
tando os seus signos se adequados para a ampliação dos seus lucros. ainda mais distantes: as fotos pelas quais os habitantes de Janitzio
E a mesma tendência que anexa feiras a festas antigas ou que cria cobram para posar, o cinema e a televisão que nos últimos anos se
novas festas para que as feiras tenham a sua cenografia. Comer- incorporaram como parte "natural" do dia dos mortos vêm fazen-
ciantes de jogos mecânicos e de azar, grupos de música urbana e do deste acontecimento, que as filosofias ocidentais consideram
bebidas das grandes companhias internacionais, roupas de baixa como o mais solitário do homem, um evento da comunicação de
qualidade e peças de artesanato de imitação vão percorrendo as fes- massa.
tas e ocupando o espaço económico e simbólico, visual e sonoro,
que pertencia àqueles que vivem permanentemente nos povoados.
Os ingredientes da festa tradicional (as danças, a ornamentação do Deixar de perguntar sobre a morte
povoado) passam a ser uma parte, às vezes complementar ou deco- "Uma viúva perguntou a um sacristão se era verdade que os mortos real-
rativa, da festa atual. Tanto nas antigas festas indígenas como nas mente apareciam no dia dos mortos, pois queria esperar o seu marido. O
da colónia a celebração ritual, o acontecimento cultural ou reli- sacristão lhe respondeu que o esperasse e que, enquanto isso, preparasse
gioso eram acompanhados por atividades comerciais, mas que esta- aguardante e outras coisas que ele gostava de comer. À noite, o sacristão diri-
vam integradas à vida e às necessidades da região. giu-se para a casa da viúva fazendo-se passar pelo defunto e pediu-lhe dinhei-
ro e aguardante. Quando foi embora, já estava bêbado e deixou-se cair na
A religião cristã, que deslocou as culturas pré-colombianas, rua. Na manhã seguinte a mulher saiu de casa e encontrou na rua o homem
retira várias das suas procissões para o interior do templo (por que acreditara ser o seu marido. 'És um maldito... Este homem me enganou.'
exemplo, a da Virgen de la Salud em Pátzcuaro, desde há quatro Pegou um pedaço de pau e com ele golpeou o sacristão, que saiu correndo.
Desde esse dia a mulher não faz mais perguntas a respeito dos mortos." '
64 Noite dos Mortos, folheto da Dirección de Turismo dei Gobierno de Michoacán,
Morelia, s.d.
65 Pedro Carrasco, op. cit., p. 148.
126 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 127

Recolhemos vários contos que demonstram desconfiança ou dida, afirma que "desde este dia a mulher não faz mais perguntas a
clara incredulidade diante das crenças tradicionais e das instituições respeito dos mortos". Não se trata apenas da perda de uma crença,
e pessoas que as representam, mas nenhum é tão paradigmático mas sim de uma mudança radical na estrutura do pensamento: des-
quanto este obtido por Pedro Carrasco na sua pesquisa entre os cobre quais são os assuntos sobre os quais não se deve perguntar
tarascos, que ele entretanto não chegou a analisar. para não ser enganado.
Qual é o ponto de partida do conto? "Uma viúva perguntou a Mas quem são os mortos, o que é o morto sobre o qual não se
um sacristão se era verdade que os mortos realmente apareciam no deve perguntar? Se relacionamos este conto com as táticas de sobre-
dia dos mortos, pois queria esperar o seu marido." O relato come- vivência e de especulação económica desenvolvidas na festividade,
ça com uma pergunta que expressa dúvida acerca das crenças tradi- descobrimos que o fato concreto da morte física dos seres queridos
cionais, A dúvida se refere à possibilidade de restaurar uma relação pode ser encarado, como em qualquer cultura, como metáfora de
querida do passado. Ou seja, o conto se inicia com um duplo movi- outras perdas. O morto é o que desapareceu em nós mesmos e ao
mento: desejo de retorno a uma situação perdida e incredulidade nosso redor, na sociedade que habitamos: pessoas, e também cos-
sobre a reparação que o mito anuncia. A tensão entre estes movi- tumes, relações sociais, objetos.
mentos — o passado e o futuro, o perdido e o prometido, a per- Diante da perda da crença no regresso dos mortos, e nas ofe-
gunta crédula e a dúvida — resume as oscilações de um processo de rendas para invocá-los, como consequência do "dinheiro", os
transição com base no qual o relato é pronunciado. tarascos comercializam a sua celebração, "revivem" os ritos para
No segundo momento, a autoridade religiosa garante a res- se aproveitarem da economia monetária que os agride. Obviamente,
tauração desejada e coloca os requisitos para que esta se produza: não se trata de uma decisão originária, já que o começo da mercan-
" O sacristão lhe respondeu que o esperasse e que enquanto isto pre- tilização das festas deve ser atribuída à iniciativa invasora da eco-
parasse aguardante e outras coisas que ele gostava de comer". Os nomia e da cultura capitalistas. Mas existe uma série de atos gera-
requisitos referem-se a duas necessidades gerais (sede e fome) que, dos pelo próprio povo, sobretudo em Janitzio, que contribui para
satisfeitas de um modo comum a qualquer membro da comunidade comercializar a festa: colocação de postos de venda de comida e de
(aguardente e "as coisas que ele gostava de comer"), criam a ambi- bebida em toda a ilha, adaptação do seu artesanato e das cerimó-
guidade necessária para que possam corresponder ao marido ou ao nias, a exigência de que sejam pagos para permitirem que os filmem
sacerdote. e os fotografem.
A terceira frase justifica a dúvida originária, desacredita a A morte da crença na morte, conforme ela era entendida pelos
esperança e revela a causa do engano. " À noite, o sacristão dirigiu- antepassados, é transformada numa estratégia de vida, ou pelo
se para a casa da viúva fazendo-se passar pelo defunto e pediu-lhe menos de sobrevivência. Ainda que estas respostas sofram da ambi-
dinheiro e aguardante." Existem duas mudanças entre as primeiras valência de favorecerem os interesses do povo ao mesmo tempo que
exigências rituais e o requerido no momento de cumpri-las: no o subordinam a um regime económico que o explora. Este regime
segundo caso, o sacristão não pede comida, ou seja, desaparece o não apenas os domina e destrói de fora; mata a vida comunitária
mais indispensável, a parte mais legítima da oferenda; em troca reproduzindo-se no seu interior, promovendo a acumulação de
reclama, junto com a aguardente, dinheiro: a impostura é associa- capital por parte de um pequeno setor privilegiado (comerciantes,
da à exploração e ao alcoolismo. "Quando foi embora, já estava donos de barcos, monopolizadores da pesca e do artesanato). Ao
bêbado e deixou-se cair na rua." deixar de perguntar sobre a morte, não será necessário lançar uma
A mulher o descobre quando "saiu de casa" (alcança o conhe- outra pergunta: averiguar por que não deixam o povo transformar
cimento com a saída do mundo doméstico) e xinga e golpeia o sacris- a morte em vida, por que uma parte do próprio povo se converte
tão, que já não é mais nomeado pelo seu cargo religioso mas sim em destruidora da outra?
como um simples "homem". A conclusão não afirma que a mulher
deixou de acreditar na Igreja, nos sacerdotes ou na mitologia fúne-
bre. Com uma virada muito mais sugestiva, literariamente esplên-
128 NESTOR GARCÍA CANCLINI

A festa como subversão restrita


As festas examinadas sintetizam, simbólica e materialmente,
as mudanças dos povos que as fazem. Representam o estado atual
dos conflitos entre uma produção camponesa tradicional, que há
não muito tempo foi uma economia de subsistência, centrada no
núcleo doméstico, orientada pela lógica do valor de uso e a sua pro-
gressiva inserção no mercado capitalista. O enfraquecimento das
suas estruturas e das suas cerimónias antigas, a substituição, com-
plementação ou refuncionalização através de agentes "modernos"
são dramatizados na hibridez da festa. As mudanças nas danças e
na decoração, a sua convivência com espetáculos e diversões urba-
nos, mostram as imposições dos dominadores, ao mesmo tempo
que também são tentativas de reagir sobre elas, de vincular o pas-
sado às contradições do presente.
Como um fenómeno global, que abrange todos os aspectos da
vida social, a festa mostra o papel do económico, do político, do
religioso e do estético no processo de transformação-continuidade
da cultura popular. Temos visto que os rituais, a sua repetição, desa-
parecimento e inovação podem ser lidos como esforços voltados
para uma intervenção no processo de remodelação das suas estrutu-
ras sociais, com o objetivo de manter uma regulação endógena da
vida no povoado (Ocumicho) ou de reformá-la para que se integre
à ordem externa (o mercado nacional e o turismo em Janitzio).
Existe, portanto, uma continuidade entre a festa e a vida coti-
diana, entre o que nós, ocidentais, costumamos distinguir como o
religioso e o profano. Os atos cerimoniais não devem ser separados
dos cotidianos. Tanto nos povoados da serra (Patamban, Ocumi-
cho) quanto em muitos povoados da região dos lagos (Ihuatzio,
Tzintzuntzan), as imagens dos santos são guardadas com a mesma
devoção nas igrejas e nas casas dos encarregados das festas e dos
líderes dos bairros. " A população trata os deuses — observou R.
A. M. van Zantwijk — quase do mesmo modo com que trata as
pessoas proeminentes e influentes do seu ambiente social. Não exis-
te diferença essencial entre o modo como saúdam um chefe, um
notável ou um ancião e o modo como se dirigem aos santos: quan-
do muito será uma diferença no grau de dignidade." 66
A continuidade que verificamos existir entre o tempo do tra-
balho e o da festa, entre os elementos cotidianos e os cerimoniais, o
R. A. M. van Zantwijk, op. cit., p. 165.
6 - Demónio de Ocumicho. As 7 - Por que os demónios estão se
cenas eróticas podem incluir olhando no espelho? O artesão me
demónios, animais, mulheres e respondeu: "O espelho é a aparência.
policiais. A gente se olha e existe. Tira-se o
espelho e já não se está mais".

9 - Somente os demónios podem pilotar estes aviões, cujo desenho


revela tanto a liberdade imaginativa dos artesãos como a distância entre
um aeroporto e esse povoado agricultor e oleiro escondido na serra
michoacana.

8 - Santa Ceia: os oleiros de Ocumicho começaram a fazê-la


tempos depois dos demónios para atender a exigências de alguns
sacerdotes e a pedidos de compradores.
10 - Entrega de prémios no concurso de Patamban, outubro de
1980.
12 - Loja do FONART na cidade 13 - Artesanatos bilíngues.
do México, colónia de San Angel.

11 - Os caminhões do Fondo Nacional para o Fomento de las


Artesanías (FONART) chegam a Patamban para transportar a cerâmica
que será vendida nas lojas urbanas.
14 e 15 - Vitrinas da loja do FONART. Os artesanatos com os cartões de
crédito, entre a paisagem urbana.
23 - A praça de Ocumicho: levando artesanato para a feira na festa
11
26 - A falta de água.
de São Pedro e São Paulo.

27 - ... explica a importância das latas na decoração.

24 - As bandas percorrem o 2b - Patamban na festa de


povoado várias vezes durante a festa: Cristo-Rei, fotografada da roda
acompanham as cerimónias principais gigante,
e animam a vida cotidiana em cada
bairro.
30 - Cálice e pombas: a iconografia cristã entre os tarascos.
31 - As ruas são decoradas com serragem tingida e flores para que passe a 32 - Nas festas e feira dos povoados indígenas as cerâmicas que são
procissão. vendidas recebem seu significado da interação com os artesanatos efémeros da
decoração, com as mantas, com a vida familiar que é mostrada nos locais: o
homem, a mulher e os filhos que fabricaram os objetos são também quem os
vende e os anuncia.
35 - M e d e i x a t i r a r u m a f o t o ? M e d e i x a t i r a r u m a f o t o ? M e d e i x a
tirar u m a f o t o ?

36 - C o m o s g r a v a d o r e s e s c u t a n d o o c o n c u r s o d e p i r e k u a s e m
Patamban.
AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 129

fato de que a organização da produção (familiar e por bairros) é


mantida na preparação dos festejos, desqualifica toda oposição
absoluta entre a festa e a existência diária. Isso leva-nos a suspeitar
também da astúcia empregada pelas concepções dualistas para ma-
nipular os dados de outras festas a fim de "legitimar" a separação
que realizam entre as cerimónias e as condições materiais, rotinei-
ras, que as engendram. Não encontramos nos casos analisados,
nem em outras festas michoacanas — dos padroeiros, da Semana
Santa, cívicas ou urbanas — a possibilidade de utilizarmos a ideia
da festa como "fuga da temporalidade do cotidiano", ideia que
levamos enquanto hipótese para a pesquisa de campo, impressiona-
dos pela sua esmagadora reiteração na bibliografia.
Do que falam as festas? Não falam do Grande Tempo sagra-
do, nem de mistérios religiosos, mas do plantio, da colheita e das
chuvas, das necessidades comuns da alimentação e da saúde, da
ordem que organiza os seus hábitos e as suas esperanças. Para que
elas são feitas? Para manter esta ordem, restaurá-la ou para res-
situarem-se no interior de uma ordem nova, conforme a descobrem
— primeiramente — em suas práticas económicas: o crescimento
ou o declínio dos produtos da terra, a venda do artesanato, o desem-
prego, a migração. Fazem-nas também para consolidar as relações
afetivas comunitárias, o pertencimento à comunidade dos que par-
tiram e regressam para celebrar. Reinversão interna obrigatória do
excedente económico, catarse controlada daquilo que não pode vir
à tona no trabalho que é realizado em condições de opressão mas
que é também regulado na sua irrupção festiva para que não preju-
dique a coesão permanente: a festa não é a liberação desregrada dos
44 - Indígenas e turistas no panteão de Janitzio. instintos que tantos antropólogos e fenomenólogos imaginaram,
mas um lugar e um tempo delimitados no qual os ricos devem
financiar o prazer de todos e o prazer de todos é moderado pelo
"interesse social". As paródias ao poder, o questionamento irreve-
rente da ordem (mesmo nos carnavais) é consentido em espaços e
momentos que não ameaçam o retorno posterior à "normalidade".
Nota: A maioria das fotos foi tirada por Lourdes Grobet. A descontinuidade e a excepcionalidade remetem ao cotidiano, são
Pertencem a Ana Confino as fotos 6 a 10, 23 e 24, e a Gracia
Imberton as fotos 6, 34 e 44.
o reverso e a compensação do que lhes falta, mas dentro das nor-
mas que estabelecem as autoridades rotineiras (encarregados, admi-
nistradores, sacerdotes). Vimos em Janitzio, Patamban e outros
povoados que o acontecimento extraordinário que esperam da festa
é o volume de venda do artesanato e de comida, uma ocasião para a
compra de produtos industriais e se divertirem com jogos mecâ-
nicos que habitualmente não existem nas suas praças.
130 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 131

Esta explicação social, materialista da festa não faz com que mento para ordenar e diferir: remete as necessidades insatisfeitas a
nos esqueçamos de que as cerimónias de origem indígena conti- lugares e tempos fictícios, regula a sua colocação em cena, a sua
nuam a incluir crenças sobre a relação com a natureza e com enti- irrupção controlada, a sua sublimação disfarçada na dança, na
dades transcendentais que não se deixam diluir nas determinações procissão, nos jogos, mediante obrigações e regras. Entretanto,
económicas atuais. Os ritos e danças pré-colombianos e algumas oferece uma ocasião para que algumas restrições cotidianas sejam
procissões católicas emergem de experiências histórias nas quais se levantadas, para que os corpos tomem consciência do seu poder
construiu a identidade popular, representam — com ambiguidades lúdico e o expressem: o ritual mais rigoroso, sobretudo se é cole-
— esta parte da cultura que não se entrega à espetacularização mer- tivo, serve à sociedade — como escreveu Roberto da Matta refe-
cantil, que não confia nas promessas do mercado capitalista ou do rindo-se ao carnaval brasileiro — para que esta se abra a "uma
turismo. Gilberto Gimenez observou, a propósito da peregrinação visão alternativa de si mesma", para que possa "inventar um mundo
a Chalma, que a persistência de elementos comemorativos não- novo através da dramatização da nossa realidade social". 69 O fato
capitalistas revela um aspecto regressivo e utópico: a aspiração de de que na festa prevaleça a resignação ou a emergência do desejo
revitalizar periodicamente a unidade comunitária perdida e a espe- dependerá das relações entre as forças repressivas e expressivas de
rança de reconquistar uma vida auto-suficiente. 67 Os procedimen- cada sociedade.
tos ambivalentes, contraditórios, através dos quais são combinados Qual é o destino das crenças tradicionais que deram origem às
o presente com o passado e com o futuro permitem que festas dife- festas? A secularização e a mercantilização das cerimónias é inver-
rentes, ou distintos setores sociais dentro de uma mesma festa, atri- samente proporcional ao grau com que uma sociedade se encontre
buam a estas relações com o transcendental significados diversos: integrada equilibradamente e tenha resolvido a problemática da
um ritual pode propiciar uma fuga ou ser libertador. Não existem satisfação das suas necessidades básicas. Por exemplo, os efeitos
danças ou cerimónias que sejam fatalmente narcotizantes ou con- desintegradores do turismo sobre uma celebração indígena, a estru-
testatórias; devemos analisar em cada caso particular o seu signifi- tura familiar ou os hábitos cotidianos serão maiores onde o desem-
cado para os protagonistas e os espectadores, de acordo com o con- prego leve vários habitantes do povoado a buscar trabalho fora ou
texto ou com a conjuntura. E acima de tudo devemos recordar — a adaptar os seus produtos e padrões culturais a códigos externos a
contra a redução do religioso ao meramente ideológico, que apenas fim de obter o indispensável para subsistir.
enxerga o seu aspecto cognitivo, e portanto o seu caráter distorcivo A tendência predominante do capitalismo é a de reduzir ou
— que as festas religiosas também possuem funções políticas e anular a diferença entre festas participativas rurais e espetáculos
psicossociais: de coesão, resignação, catarse, expansão e reforço mercantis urbanos, como uma outra consequência da subordinação
coletivo. do campo à cidade, da vida local ao mercado nacional e transna-
Num certo sentido, é evidente que a ideologia e o ritual reli- cional. Ou melhor dizendo, conforme Michel Freitag e Marianne
giosos separam os indivíduos do real e do presente. Os ritos fingem Mesnil: cada vez se pode distinguir menos o rural do urbano, as
operar sobre a natureza e a sociedade, mas em verdade agem sobre crenças e os hábitos, as formas de organização "auto-orientadas"
as suas representações: a sua operacionalidade ao nível dos sím- tradicionais, das formas dirigidas da cidade industrial, cujo centro
bolos68 pode ser eficaz quando a causa do mal — como em algumas de decisão excede a cada núcleo urbano. Vivemos num "sistema
doenças — reside no psíquico ou no cultural, mas sabemos da sua produtivo supra-urbano", que substitui a oposição entre campo e
inutilidade, do caráter ilusório do seu efeito, quando o que se pre- cidade por um reordenamento económico, político e cultural homo-
tende modificar é algo estritamente material, por exemplo, a falta geneizado. 70
de chuva. Também podemos dizer que o ritual religioso é um instru-
69 Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis — Para uma sociologia do
dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980, 2? ed., pp. 32-33.
67 Gilberto Gimenez, op. cit., p. 161. 70 Michel Freitag, "De la ville-societé a la ville-millieu", Sociologie et Societé, Les
68 Alberto M. Cirese, op. cit., cap. sobre "El ceremonial: celebraciones, operacio- Presses de L'Université de Montreal, vol. Ill, n? 1, maio 1971, pp. 25-27. Marian-
nes, reproducciones".
132 NESTOR GARCÍA CANCLINI

Entretanto, esta expansão capitalista supra-urbana, a sua


necessidade de padronizar a produção e o consumo encontram
limites na configuração específica de cada cultura e no interesse do
próprio sistema em manter formas antigas de organização social e
representação. Também com relação às festas percebemos que, por

Conclusão: por uma


motivos económicos (conservar fontes complementares de empre-
go, como o artesanato), políticas (utilizar o caciquismo ou outros
mecanismos tradicionais do poder autoritário) ou ideológicas (asse-
gurar a identidade nacional, manter "museus vivos" para atrair
turistas), a cultura dominante preserva bolsões arcaicos refuncio- cultura popular
nalizando-os e recontextualizando-os.
O que é necessário para que a festa popular não se dissolva
inteiramente num espetáculo, para que continue a ser centrada na
com minúscula
vida comunitária, oferecendo um tempo e um espaço para a partici-
pação coletiva? Pode ela ainda fortalecer a identidade cultural e
contribuir para a reelaboração da coesão social? Isto é possível se o A interpenetração das culturas e a
povo consegue fazer com que a expansão, o desfrute e os gastos da definição do popular
festa sejam realizados dentro dos marcos internos, ou ao menos
não sejam subordinados aos interesses do grande capital comercial: Afirmamos que quase tudo que é feito com o artesanato osci-
se os membros do povoado conservam um papel destacado na orga- la entre o mercado e o museu, entre a comercialização e a conserva-
nização material e simbólica da festa, se asseguram através do siste- ção. Mas num certo sentido, não existe nada mais diferente da vida
ma de encargos a reinversão do excedente económico no financia- cultural no capitalismo do que o museu. Houve um tempo em que a
mento das festas. Ou, em festas de repercussão nacional, como as ordem das vitrinas, a colocação precisa e serena dos objetos corres-
dos grandes centros cerimoniais, se conquistam um lugar decisivo pondia ao que estava fora do museu. Nascidos na Europa para
nas instituições governamentais, turísticas, artesanais que progra- guardar as presas de guerra, os museus reproduziam nas suas clas-
mam estes eventos, sendo, então, capazes de controlar a penetração sificações a apropriação dos povos e dos seus objetos por parte da
dos agentes externos. É óbvio afirmar que para conseguir tudo isto burguesia, expressavam os lugares que a eles eram destinados. Um
os povoados devem organizar-se, e organizar-se democraticamente. rei ou um presidente podia passear pelas colónias como um turista
De outro modo, as companhias de refrigerantes e de cervejas, os pelas salas dos museus: naquela direção os países que produziam
comerciantes de produtos industriais e de diversões urbanas conti- matérias-primas, nesta os que as manufaturavam. Os primeiros,
nuarão arrebatando dos grupos indígenas — às vezes com a cumpli- fechados num vínculo familiar e cíclico com a natureza, não faziam
cidade dos seus líderes locais — o espaço e o significado das suas mais que repetir mitos, festas e danças monótonas como ela; os oci-
festas, os lugares e os momentos que eles escolheram para a recor- dentais, em troca, seduzidos pela expansão tecnológica e econó-
dação ou para a alegria. mica, haviam feito da invenção o motor de uma cultura em cons-
tante renovação e crescimento. Existiam missões educativas que
procuravam transmitir a alguns poucos colonizados a cultura, os
códigos "superiores" necessá ios para que os povos exóticos
pudessem entender o seu lugar no mundo. Mas, esta maneira de
pensar, simultaneamente benévola e pejorativa, reforçava a dife-
nc Mesnil, Trois essais sur la Fête — Du fotklore a Vethnosemioúque, Bruxelas, rença. O gesto hierárquico do educador garantia que a cultura e a
Cahiers cTÉtude de Sociologie Culturelle, 1974, pp. 12-13. barbárie não se confundiriam. Cada uma na sua vitrina.
134 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 135
O próprio crescimento do mercado pôs fim a esta ordem impe- — bem como a caracterização de algo como folclórico — nasceram
cável. As classes dominantes, que excluíam as subalternas tanto da nas sociedades industriais, fazem parte do eurocentrismo classifica-
produção quanto do consumo de certos bens culturais, tiveram de tório, que quer sempre submeter o real à prolixidade classificatória
modificar parcialmente a sua ideologia e as suas práticas: conti- do museu.
nuam a excluir o povo do controle da produção, mas chegam a Portanto, o popular não deve por nós ser apontado como um
admitir o consumo de vários produtos culturais por parte de vastos conjunto de objetos (peças de artesanato ou danças indígenas) mas
setores da população para propiciar uma expansão das vendas. sim como uma posição e uma prática. Ele não pode ser fixado num
Deste modo substituem em povoados indígenas e mestiços os obje- tipo particular de produtos ou mensagens, porque o sentido de
tos artesanais pelos de fabricação industrial. A ascensão socio- ambos é constantemente alterado pelos conflitos sociais. Nenhum
económica e cultural das classes populares, as suas exigências de objeto tem o seu caráter popular garantido para sempre porque foi
participação no consumo "moderno" convergem, num certo senti- produzido pelo povo ou porque este o consome com avidez; o senti-
do, com esta necessidade de avanço do mercado. Ainda que, como do e o valor populares vão sendo conquistados nas relações sociais.
se sabe, são as lutas políticas e económicas das classes, etnias e É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práti-
nações oprimidas o que mais ameaça a ordem imposta. cas ou representações populares, que confere essa identidade.
A resposta do capitalismo tem sido incontáveis vezes a repres- Do mesmo modo, o artesanato, que numa certa época podia
são. Mas a réplica mais cotidiana e incisiva é a que trata de absor- ser identificado pelo modo como era produzido (antes da Revolu-
ver as culturas populares, integrá-las, ressemantizar as suas mensa- ção Industrial tudo era feito de modo artesanal) hoje precisa incluir
gens e refuncionalizar os seus objetos. Nas lojas urbanas de artesa- na sua caracterização o processo social por onde circula, desde a
nato, nos museus, na publicidade e no turismo, como pudemos ver, sua produção até o consumo. Em parte, o artesanal segue desig-
as representações e práticas subalternas são reestruturadas com a nando um modo de se utilizarem os instrumentos de trabalho, mas
finalidade de se tornarem compatíveis, para que inclusive colabo- o seu sentido também é construído na recepção, por intermédio de
rem para o desenvolvimento do sistema hegemónico. Internaliza-se uma série de traços que são atribuídos aos objetos — antiguidade,
a cultura dominante nos hábitos populares, reduz-se o étnico ao primitivismo etc. — apesar de que tenham sido fabricados com o
típico, uniformizam-se as diversas estratégias de sobrevivência pos- emprego de tecnologia industrial.
tas em prática pelas classes oprimidas com a finalidade de subor-
diná-las à organização transnacional do simbólico. Outras opera-
ções muito sutis colaboram nesse processo: a necessidade de reno- Arte popular, arte kitsch ou cultura popular?
var a demanda fez com que empresas industriais utilizassem dese-
nhos indígenas, enquanto que os setores "nacionalistas" da bur- Alguns autores pretenderam libertar-se destas incertezas,
guesia e os artistas interessados na divulgação ou na temática popu- empregando o termo arte popular. Esta designação, que inclui sem-
lares têm incorporado aos circuitos das elites mensagens das classes pre uma boa dose de romantismo, isola um aspecto da produção de
populares. O resultado é um cruzamento, uma interpenetração de algumas peças — a criatividade — e tenta convertê-lo no critério
objetos e sistemas simbólicos. específico para definir e valorizar o indígena. Quase todos os que
O estudo que realizamos enfocando estes movimentos de efetuam este recorte contrabandeiam para o campo do popular o
importação e de interação entre culturas, de surgimento de forma- conceito de arte surgido no interior das estéticas ocidentais dos últi-
ções culturais mistas, confirmou a dificuldade que foi assinalada mos quatro séculos: um conceito baseado no predomínio da forma
no início deste trabalho de se definir o popular por certas proprie- sobre a função e na autonomia dos objetos. É lógico que para eles
dades que lhe seriam intrínsecas: o artesanato se definiria pela sua muitas peças de artesanato rústicas, mal-acabadas, que circulam no
produção manual, as festas pela sua cerimonialidade, a cultura consumo popular não mereçam o nome de arte. Se conseguíssemos
popular, enfim, pela sua origem camponesa, indígena ou "tradicio- libertar o conceito de arte da sua carga elitista e eurocêntrica, se o
nal". Como observamos por várias vezes, todas estas designações estendêssemos às formas estéticas não-ocidentais, por exemplo, as
136 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 137

indígenas, poderíamos incluir sob o nome de arte manifestações neo-pré-hispânica". Neo e pré: a ironia, mais que um jogo linguís-
que trabalham de outro modo as relações sensíveis e imaginárias tico, emerge das contradições reais que a especulação mercantil
dos homens com os outros homens e com o seu meio. 71 gera na produção artesanal. O kitsch não se localiza precisamente
Enquanto não realizarmos isso, nossas conceptualizações da nos objetos; é o estilo pelo qual o mercado se relaciona com o popu-
arte popular forçarão os objetos a se enquadrarem em classificações lar. A paródia não reside nas peças (os usuários populares e os da
estranhas ao seu sentido, e subestimarão muitos dentre eles, por não pequena-burguesia as colocam em suas casas seriamente convenci-
serem "museificáveis", incluindo-os no confuso reino do kitsch. dos da sua beleza); a paródia ou o grotesco surge como efeito de
Sob essa palavra, sem equivalente entre nós, através da qual somos um tipo particular de recepção, é colocado pelas classes dominantes
nomeados a partir de uma das línguas da dominação, incluem-se para criar uma distância do que elas mesmas engrendraram.
objetos comuns ou "inúteis" revestidos com um banho artístico, A fim de rompermos esta opção entre arte e kitsch, devemos
peças de artesanato de acabamento descuidado ou iconografia e reivindicar a cultura popular, as produções mais diversas e os seus
cores que chocam nossa sensibilidade cultivada, e as muitas utiliza- usos mais heterodoxos. Não proporemos uma reivindicação esté-
ções atípicas ou as cópias que as classes populares fazem dos bens tica indiscriminada, como o populismo, que considera como bom e
da grande Cultura. Esta noção, que não sem motivo nasceu em belo tudo que vem do povo simplesmente porque ele o faz, e esque-
Munique por volta de 1860, simultaneamente com uma certa expan- ce que vários dos seus objetos, práticas e gostos são versões de
são do bem-estar burguês, devido ao surgimento de técnicas mecâ- segunda mão da cultura que o oprime. Estamos falando de uma
nicas de reprodução em larga escala, serve como preservação, como reinvidicação científica e política, de abolir os critérios de classifi-
alfândega do "bom gosto". O sistema hegemónico que necessita cação estabelecidos de modo prepotente pelas histórias da arte,
expandir-se económica e ideologicamente, que precisa responder aos pelas estéticas e pelo folclore, abrir estas disciplinas a um estudo
reclamos do consumo popular com versões acessíveis e comerciais crítico, despojado de preconceitos, dos gostos e dos usos populares
dos bens e símbolos enaltecidos pela burguesia, teve de se defender conforme a sua representatividade e o seu valor social.
afirmando serem falsos os gostos, as maneiras daqueles que preten- Se preferimos falar de cultura e não de arte popular é porque
dem compartilhar dos seus privilégios. "Arte e kitsch são dois ter- as realizações do povo não nos interessam principalmente pela sua
mos necessários e interdependentes no plano económico e concei- beleza, sua criatividade ou sua autenticidade, mas pelo que Cirese
tuai" ... " A inacessibilidade das 'essências' artísticas se mede pela chama de "sua representatividade sócio-cultural", ou seja, pelo
quantidade de imitações que suscitam. Eis aqui por que é necessá- fato de que indicam os modos e formas através dos quais certas
rio o kitsch, a noção de kitsch: quanto mais este seja abundante classes sociais têm vivenciado o processo cultural em relação com
mais brilhará a autenticidade da 'arte'; quanto mais divulgado, as suas condições de existência reais enquanto classes subalternas. 73
mais ressaltará o caráter aristocrático do possuidor da 'arte'." 7 2 Mas para que esta definição científica não seja entendida de modo
Outra das causas da existência, na América Latina, do que é estático, como uma mera referência às "condições (objetivas) de
considerado como kitsch é a exigência comercial de se produzir existência", embora eu saiba que não foi esta a intenção de Cirese,
desenhos pré-colombianos que estejam adaptados aos padrões esté- parece-me útil pedir a Brecht que nos acrescente a sua caracteriza-
ticos modernos, ou, para ser mais preciso, dos setores médios. ção política: "Popular é o que as grandes massas compreendem/o
Assim foi-se expandindo o que Alberto Beltran denominou "arte que documenta e enriquece a sua forma de expressão/é o que incor-
pora e reafirma o seu ponto de vista/é aquilo que é tão representa-
tivo da parte mais progressista do seu povo, que pode se encarregar
Duas valiosas tentativas nesta direção: o artigo de Roberto Diaz Castillo, "Lo da sua direção e tornar-se também compreensível para os demais
esencial en el concepto de arte popular". Cuadernos Universitários, Universidad setores do povo/é o que, partindo da tradição, a leva adiante/o que
de San Carlos de Guatemala, n? 7, março-abril de 1980; e o de Mirko Lauer, "La
mutación andina", em Soeiedady Política, n? 8, Lima, fev. 1930.
Juan Antonio Ramirez, Médios de masas e historia dei arte, Madri, Ediciones
Cátedra, 1976, p. 265. Alberto M. Cirese, op. cit., p. 56.
138 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 139

transmite ao setor do povo que aspira ao poder/as conquistas do transformando-as em espetáculos de massa ou então substituindo-
setor que presentemente o sustenta". 74 as por jogos mecânicos e bailes modernos. Da oficina doméstica à
Para que uma obra ou um objeto sejam populares não impor- fábrica, da venda desvalorizada dos seus produtos no mercado
ta tanto o seu lugar de nascimento (uma comunidade iridígena ou camponês à venda desvalorizada na exportação ou na loja urbana,
uma escola de música) nem a presença ou a ausência de signos fol- a exploração apenas muda de cenário. Há uma esmagadora despro-
clóricos (a rusticidade ou a imagem de um deus pré-colombiano), porção entre os lucros que a modernização pode propiciar aos pro-
mas a utilização que os setores populares fazem deles. Afirmemo-lo dutores e a perda cultural que sofrem em termos da organização
de modo paradoxal: a louça de Tlaquepaque, em Guadalajara, pro- familiar do trabalho, da propriedade comunal da terra e de outros
duzida por artesãos jaliscenses a partir de desenhos arcaicos, mas suportes da sua identidade. A promessa desenvolvimentista de me-
em oficinas de empresários norte-americanos, e se submetendo às lhorar a condição dos artesãos tornando-os assalariados ou ofere-
suas adaptações estilísticas e perdendo na venda para os turistas o cendo-lhes um novo papel subordinado dentro de outro tipo de
controle económico e simbólico do produto, não é arte popular. exploração, é uma variação pouco imaginativa de antigas mano-
Em troca, uma obra de Goya, trabalhada pelos camponeses indíge- bras semelhantes, cujo caráter ilusório permitiria que fosse incluída
nas e mestiços de Aranza, em Michoacán, com o apoio de artistas junto com as que Borges ironizou em sua Historia universal de la
da Oficina de Investigação Plástica de Morelia, para realizar um infâmia: "Em 1517 o Padre Bartolome de las Casas teve muita
mural que coloca os problemas da comunidade desde a sua perspec- pena dos índios que se esgotavam nos laboriosos infernos das minas
tiva, é arte popular. de ouro antilhanas, e, propôs ao imperador Carlos V a importação
de negros, que se esgotaram nos laboriosos infernos das minas de
ouro antilhanas". 73
Políticas culturais e autogestão: Se o quadro de opções parece resumir-se às "soluções" con-
fundamentos e contradições servadoras ou tecnocráticas é porque ambas são faces de um mes-
mo sistema. Esta bifurcação nas políticas culturais corresponde,
Esta maneira de conceber o popular ajuda a tornar mais pre- até certo ponto, a estratégias de diferentes setores da burguesia. A
ciso o sentido que devem ter as políticas culturais que tentam pro- fração industrial que busca o crescimento económico mediante o
movê-lo. Se o popular não se define pela sua beleza ou autentici- desenvolvimento tecnológico considera o artesanato um obstáculo
dade, o que ele precisa — de modo prioritário — não é que se cul- a ser erradicado, um resíduo de formas de produção pré-capita-
tive a sua dignidade artística ou se preserve a sua autenticidade (que listas. A fração agrícola e essa parte da burguesia comercial que
também é valiosa). Já criticamos esta concepção romântica, con- especula com a produção dos camponeses servem de intermediá-
servadora, que enxerga apenas a questão cultural, ou meramente rias para os artesãos ou se beneficiam com o turismo, confiam na
estética, e se consagra a vigiar as tradições, embalsamando os dese- expansão dos recursos tradicionais para acumular capital: desta-
nhos, as técnicas e as relações sociais diante das quais alguma vez cam, por isso, o papel ideológico, folclórico, das culturas popula-
os indígenas se reconheceram. res, insistem em conservar os seus produtos e as suas festas para
Tampouco aceitamos a posição oposta, o tecnocratismo desen- proporcionar aos camponeses uma fonte de renda complementar e
volvimentista: rumando velozmente em direção ao que imagina aos turistas, atrações exóticas.
como um excelente futuro, propõe a modernização da produção e Além das críticas políticas que estas posições merecem, deve-
do desenho do artesanato, ou simplesmente a sua abolição e a incor- mos expressar as suas aberrações conceituais. Tanto os que tentam
poração dos indígenas na produção industrial. Quanto às festas, proteger e conservar a independência das formas autóctones como
procura readaptá-las aos hábitos estéticos e recreativos do turismo, os que apenas buscam a tecnificação da produção e a absorção pelo
74 Bertold Brecht, Escritos sobre teatro, Buenos Aires, Nueva Vision, 1973, tomo 2, 75 Jorge Luis Borges, "Historia universal de la infâmia", in Obras Completas,
p. 63. Buenos Aires, Emecé, 1974, p. 295.
140 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 141
mercado capitalista do artesanato incorrem no erro de separar o nhecimento da importância dos problemas teóricos e de política
económico do simbólico. Nenhuma solução que leve em conta ape- económica e cultural global que viemos discutindo, a resposta à
nas um destes níveis será capaz de resolver os conflitos atuais da indagação do que o artesanato deve ser hoje cabe antes de tudo aos
identidade e a subsistência das classes populares. produtores. O que deve ser resolvido em primeiro lugar não é saber
Não será suficiente para os artesãos uma política que se redu- se é conveniente preservar as formas tradicionais mesmo que isso os
za a preservar a tradição cultural (haja vista o êxodo dos jovens e a mantenha na miséria, sofisticar os procedimentos e melhorar as
persistente miséria daqueles que permanecem em povoados inalte- suas qualidades para competir com a indústria ou transportar os
rados) nem a mera incorporação económica ao mercado e ao con- seus desenhos tradicionais para objetos fabricados com tecnologia
sumo capitalistas (pensemos nos artesãos convertidos em assalaria- recente. A decisão fundamental é permitir uma participação demo-
dos de ernpresários que descaracterizam os seus padrões culturais crática e crítica aos próprios artesãos, criar condições para que
para torná-los competitivos em troca de salários medíocres). Se estes a exerçam. Uma política cultural que pretenda servir às classes
entendemos que na motivação para produzir artesanato reúnem-se populares deve partir de uma resposta insuspeita a esta pergunta: o
a continuidade de uma tradição cultural e a urgência em completar que é que se deve defender: o artesanato ou os artesãos?
os baixos rendimentos obtidos no campo, torna-se claro que a crise Permitir uma participação democrática e criar condições para
artesanal não pode ser solucionada de modo separado do resto da que esta possa ser exercida: destaquemos a importância de se com-
problemática agrária. binar ambos os aspectos. Limitar-se ao mero questionamento do
Por outro lado, ao recordarmos que os materiais e as técnicas sistema económico e político global, da sua dominação hierárquica
rudimentares que muitos consideram como essenciais ao artesanato frequentemente leva ao populismo. Para que exista uma cultura
surgiram da adaptação ao meio ambiente natural e a formas ante- popular não é suficiente desbloquear os canais de participação cole-
riores de organização social, não vemos porque esses materiais e tiva, como se existissem massas não contaminadas às quais só bas-
essas técnicas não podem readaptar-se às novas condições económi- tassem que fossem retiradas grades, externas a elas, para que se
cas e culturais de migrantes que se aglomeram ao redor das capitais manifestassem livremente. O pensamento e a prática do povo tam-
ou que moram em povoados camponeses que se transformaram. bém têm sido modelados pela cultura dominante (não apenas os
Não é consequente com estas mudanças que os materiais, procedi- intelectuais e os burgueses estão "ideologizados"), com o agravante
mentos e desenhos sejam reformulados em função dos recursos e de que o seu secular alheamento da educação e dos centros de poder
estímulos atuais, e também que muitos deixem de produzir artesa- tem privado o povo de instrumentos indispensáveis para a com-
nato para incorporar-se em outras atividades produtivas que lhes preensão do sistema que o oprime e para que ele possa mudá-lo.
permitam viver melhor? Como é possível que os artesãos, na sua grande parte analfa-
Perguntas tais como: o que é hoje em dia o artesanato? o que betos, camponeses com escassa ou nula experiência em questões
é a cultura popular? são inseparáveis de outras: por que continuar a macroeconómicas ou interculturais possam elaborar posições pró-
produzi-las? Para quem? Sem sombra de dúvida, são problemas prias a respeito dos seus problemas sem que conheçam melhor a
que dizem respeito ao Estado, à sociedade em seu todo, e se mistu- situação do seu trabalho no conjunto da produção, e da sua etnia e
ram com os problemas da balança de pagamentos, com o cálculo classe na sociedade nacional? Existe, apesar de tudo, uma renovada
económico necessário numa sociedade planificada, com o sentido tomada de consciência, um pensamento crítico por parte dos indí-
global do desenvolvimento económico. Mas os primeiros que devem genas e de outros setores populares, mas a opressão os obriga a
opinar são os artesãos, os dançarinos, os trabalhadores populares desenvolver-se no isolamento, na atomização e na marginalidade.
da cultura, porque não se trata apenas de uma questão macroeco- A imensa maioria dos produtores que se deslocam até os mercados
nómica. Nela são postas em jogo formas domésticas e cooperativas urbanos busca apenas converter o seu trabalho em dinheiro para
da pequena produção, a identidade cultural, um estilo de vida, que poder adquirir mercadorias que têm um valor de uso para ele e para
ainda não sabemos com clareza em nome de que vantagens exclusi- a sua família; mesmo nos artesãos que se aglutinam em cooperati-
vas da grande indústria devem ser extintos. Sem prejudicar o reco- vas ou que se relacionam com o Estado aparece de modo claro que
142 NESTOR GARCÍA CANCLINI AS CULTURAS POPULARES NO CAPITALISMO 143

o seu pensamento e as suas práticas estão organizados em função de cidade que é estranha, a um tarasco que durante setenta anos
da subsistência, das relações de reciprocidade não-lucrativa e das não saiu das margens do lago de Pátzcuaro? Mas também podemos
"relações de amizade", 76 predominantes no universo indígena. perguntar como é que alguém pode conseguir estruturar uma alter-
Raramente se colocam as tarefas necessárias para combater o siste- nativa consistente às estratégias oficiais, situar criticamente as suas
ma ou simplesmente para acumular capital. Com isto delegam para reivindicações étnicas no interior do desenvolvimento capitalista
os organismos estatais e para os intermediários privados a criação para o qual trabalha, se não se interessa em ver Londres, nem a
do "valor progressivo" e o controle do mercado. Por certo existem Cidade do México, em entender como funcionam os centros de
causas económicas e políticas objetivas que entravam a participa- poder.
ção dos artesãos e dos camponeses, mas também existe uma aceita- Não haverá políticas culturais realmente populares enquanto
ção mais ou menos submissa, o hábito de se pensar apenas nos os produtores não tiverem um papel de protagonista, e este papel
objetivos pragmáticos imediatos da sua produção no interior do não se realizará senão como consequência de uma democratização
horizonte exíguo do seu povoado. radical da sociedade civil. As tarefas necessárias excedem a um sim-
Muitos fatos encontrados na pesquisa de campo podem ilus- ples "resgate" das estruturas coletivas e das tradições indígenas ou
trar de que modo o sistema capitalista reproduz nas etnias que ele a um tíbio respeito à autonomia étnica ou mesmo ao desenvolvi-
subordina as suas formas de concorrência e isola os indígenas num mento de cooperativas ou de lutas locais. Para que estes esforços
lugar marginalizado para reassegurar, dentre outras coisas, a sua não afundem na ineficácia nem sejam absorvidos pelo regime hege-
ignorância das leis que os aprisionam. Escolho dois exemplos. A mónico como uma engrenagem a mais da sua reprodução, devem
única tentativa que conheci de fazer com que um artesão partici- transcender as reivindicações económicas ou étnicas isoladas, que
passe do júri de um concurso foi em outubro de 1980, em um con- devem ser aglutinadas, criando-se uma coordenação das lutas de
curso organizado pelo FONART e o INI em Patamban. A artesã cada grupo através de organismos políticos interétnicos: federações
que foi convidada, líder do seu povoado e uma das que possuíam nacionais, e também internacionais, que sejam capazes de multi-
melhor qualidade, contou-me que havia renunciado antes que o plicar a sua força e atribuir às suas conquistas uma dimensão ade-
júri se reunisse, por não aguentar as pressões dos seus vizinhos. quada aos programas multinacionais do capitalismo. Mas como a
Alguns deixaram de comprimentá-la e outros a agrediram porque opressão sofrida pelos índios é compartilhada, de várias maneiras,
ela não se comprometia a dar-lhes algum prémio. As difíceis condi- pelos demais setores populares, e como o poder étnico isoladamente
ções da concorrência, que mostram até que ponto um povoado não conseguirá transformar o sistema global, as lutas indígenas
escondido na serra reproduz o estilo capitalista de lutar pelo lucro e necessitam ser articuladas com as organizações representativas dos
pelo prestígio, não podem ser resolvidas facilitando uma participa- operários, dos camponeses, e de todos os setores subalternos. Isto
ção ocasional dos produtores nos órgãos de decisão. significa que os grupos étnicos, a partir de uma adequada caracteri-
A outra história ocorreu quando um artesão de tule de Ihuat- zação da sua dominação, devem atribuir um sentido anticapitalista
zio contou-me que havia começado a tecer aviões nesse povoado (e não simplesmente anticolonialista) a suas lutas, e que os parti-
formado por casas de tijolo cru, desde que o levaram a Londres por dos políticos e os movimentos sindicais devem reconhecer na opres-
um mês, para uma exposição organizada pelo governo mexicano. são étnica e nos conflitos culturais o seu caráter de problemas espe-
" O que achaste de Londres?" "Não sei. Não vi nada. Como fazia cíficos, caráter que frequentemente é descuidado.
muito frio, passei todo o mês sentado ao lado do fogo, trabalhan- O fracasso de tantos grupos cooperativos porque os seus
d o " . Até certo ponto é lógico: o que pode lhe interessar numa gran- membros agem com hábitos económicos e ideológicos que são
opostos à sua finalidade, o fato de que muitos dos que trabalham
76 Cf. o livro de Ina R. Dinerman, Los tarascos: campesinos y artesanos de Michoa-
de forma associada não se encontram em melhor situação do que 01
cán, op. cit., cujo sexto capítulo oferece uma informação bem documentada e que o fazem de forma individual, bem como o caráter pequem 1111
elaborada a respeito das incompatibilidades entre as relações sociais indígenas e modificações alcançadas pelos organismos estatais em termoi do
as do capitalismo. conjunto da produção artesanal (mesmo no México, que i 0 pil
é
144 NESTOR GARCÍA CANCLINI

latino-americano de maior iniciativa e de investimentos neste


setor), demonstram o quão difícil é escapar das contradições impos-
tas ao artesanato quando se permanece dentro da lógica capitalista.
Isso não quer dizer que se deve esperar a chegada de outro sistema
para que se possa encarar os conflitos. Pelo contrário, assim como
a produção do artesanato é uma das áreas que exibem com maior
clareza as contradições do processo social e dos próprios setores
populares, também pode ser um campo propício para se ensaiar

Bibliografia
formas de socialização, e para se enfrentar de modo firme o que
deve morrer, o que pode ser recuperado através da sua transforma-
ção e o que deve ser inventado para se edificar uma nova cultura.
A conclusão não pode ser outra: o futuro das culturas popu-
lares depende do conjunto da sociedade. Necessitamos que os arte-
sãos participem, critiquem e se organizem, que redefinam a sua
produção e o seu modo de relacionar-se com o mercado e com os
consumidores; mas também precisamos que se forme um novo Aguirre Beltran, Gonzalo, Elproceso de aculturación, México, U N A M , 1957.
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