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International Center for the Arts of the Americas at the Museum of Fine Arts, Houston

Documents of 20th-century
Latin American and Latino Art
A DIGITAL ARCHIVE AND PUBLICATIONS PROJECT AT THE MUSEUM OF FINE ARTS, HOUSTON

ICAA Record ID: 1111037


Access Date: 2016-03-26

Bibliographic Citation:
Anjos, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 78p.

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MOACIR DOS ANJOS

local/global:
arte em trânsito

JORGE zahar EDITOR


RIO DE JANEIRO

1111037 This electronic version © 2015 ICAA | MFAH [2/73]


.,
suma no

Introdução [7]

O local e o global redefinidos [11 1

Exposição de diferenças [30]

Idéias de Nordeste e de Brasil [51]

Referências e fontes [71]

Sugestões de livros e discos [77]

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Introdução

Ao MENOS DESDE a década de 1980, têm sido muitas


as tentativas - elaboradas a partir de campos disci-
plinares os mais diversos - de demarcar a natureza
do que se convencionou chamar de globalização e,
simultaneamente, de apreender suas implicações
econômicas, políticas e culturais para o mundo con-
temporâneo. Parte dessas análises se atém, contudo,
aos sentidos mais imediatos e visíveis da globaliza-
ção, entendendo-a meramente como um sistema de
trocas (físicas e simbólicas) feitas em velocidade
crescente e abarcando lugares cada vez mais distan-
tes, desse modo provocando a interdependência
entre cantos distintos do mundo. Embora acurada e
legítima, essa ênfase descritiva pode levar à apres-
sada identificação da globalização como apenas um

[7]

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estágio recente e acentuado do processo de interna-
cionalização do mundo verificado a partir do final
do século XV, quando as experiências de coloniza-
ção empreendidas por diversos estados europeus
redefiniram radicalmente as relações entre os dife-
rentes espaços nacionais. Como resultado desse mo-
vimento, países antes separados pela geografia e
pela história e que se imaginavam auto-suficientes
foram gradualmente aproximados, confrontados e
enredados, cedendo a uma lógica de acumulação de
riquezas que somente podia operar em escala mun-
dial. Lógica que requeria e estimulava, além da
constituição de um mercado transnacional de bens,
a criação de fluxos migratórios entre nações, in-
cluindo um intenso tráfico de escravos para servir
de mão-de-obra nas economias coloniais.
Se é certo que a dinamização das correntes co-
merciais e migratórias entre espaços diversos edis-
tantes também caracteriza a globalização, há, na
segunda metade do século XX, a convergência de
uma série de transformações produtivas, financei-
ras, demográficas e tecnológicas que, reforçando
umas as outras de modo cumulativo, produzem
uma interdependência do mundo não só maior,
VI mas também distinta da obtida no período da colo-
o
.......
c
1"0
nização européia do Novo Mundo. Dentre essas
VI

"O
o mudanças, destacam-se a complexa transnacionali-
\...
·u1"0 zação da produção de mercadorias; a constituição
o
E de mercados financeiros que crescentemente esca-

[8]

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[9]

pam à regulação de agências normativas nacionais;


a generalização de deslocamentos populacionais de
longa distância (associados seja a processos de inde-
pendência de nações até então sob o jugo colonia-
lista, aos renovados conflitos étnicos que se segui- -ro
.o
ram ao fim da Guerra Fria ou à busca contínua por o
õó
postos de trabalho sempre insuficientes); e, final- -
........
ro
u
mente, a revolução da tecnologia de transmissão de ..9
dados por meios eletrônicos, da qual se destaca a
constituição e popularização da Internet na década
de 1990.
Ao questionarem, por sua generalização e por
seu caráter simultaneamente supranacional e inte-
grado, a centralidade e a suficiência do próprio con-
ceito de nação para pensar o mundo, essas transfor-
mações imprimem a necessidade de uma mudança
inédita nos pressupostos e critérios que norteiam a
formulação de políticas e estratégias nacionais e, por
extensão, locais também. Sugerem, ainda, a inade-
quação da noção usual de pertencimento para a
compreensão da dinâmica de um mundo globali-
zado - baseada que está em uma idéia de territórios
apartados - e o conseqüente rompimento da asso-
ciação imediata e exclusiva entre lugar, cultura e
identidade, forçando, para o entendimento contem-
porâneo desses termos, o surgimento de paradig-
mas explicativos que sejam relacionais e centrados,
como afirma Stuart Hall, em idéias de contato e in.-
terconexão.

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É ria apresentação das características funda-
mentais desses paradigmas- muitos deles origina-
dos de análises da condição pós-colonial de antigas
colônias européias ou da constituição disciplinar
dos Estudos Culturais realizadas desde a década de
1980- e na discussão de alguns de seus (inevitáveis)
impasses que se centra a próxima seção deste ensaio.
Embora o foco central do texto seja o campo das
artes visuais, os argumentos desenvolvidos nessa
seção referem-se a questões pertinentes ao domínio
extenso da produção cultural. A terceira seção, por
sua vez, descreve como a gradual percepção das
transformações que a globalização provoca altera as
formas de representação visual de identidades e cul-
turas, questionando normas discursivas eurocêntri-
cas e permitindo, a despeito dos claros conflitos que
tais mudanças geram, a exposição de diferenças. A
quarta seção, por fim, discute de modo abrangente
o sentido de se pensar, no contexto de um mundo
cada vez mais poroso e interligado, a identidade cul-
tural do Nordeste do. Brasil, região por muito tempo
prezada, por quem nela mora ou não, por sua su-
posta impermeabilidade à produção simbólica de
outros lugares. Destituído da pretensão de enunciar
Vl conclusões ou de propor sínteses definitivas de de-
o
........
c
nJ
bates em evolução, este ensaio busca, contudo, posi-
Vl
o cionar-se frente às questões que elenca e elaborar
'U
~

"Ci
nJ
um roteiro amplo para discussões mais específicas
o
E sobre temas de relevância crescente.
[10]

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[ 11]

.O local e o global redefinidos

Uma das mais freqüentes questões que surgem em E


Q)

análises sobre a globalização é o processo de homo- ....


Q)
\...
10
geneização cultural a ela supostamente associado,
por meio do qual tradições diversas do mundo se-
riam recalcadas ou suprimidas sob a hegemonia, nos
espaços de difusão midiática, das culturas européia e
norte-americana. Esse receio da ''McDonaldização"
do mundo não considera, contudo, a complexidade
I
dos mecanismos de reação e adaptação das culturas
não-hegemônicas ao impulso de anulação das dife-
renças que a globalização engendra, promovendo
formas novas e específicas de pertencimento ao local
e criando, simultaneamente, articulações inéditas
com o fluxo global de informações. Tampouco vis-
lumbra como a reprodução/recriação de diferenças
pode ser funcional à ampliação/ diversificação cons-
tantes de mercados de bens e de símbolos que a glo-
balização demanda. A adequada compreensão dos
movimentos de gradual homogeneização e de
simultânea articulação de diferenças requer, entre-
tanto, a apresentação crítica de uma série de concei-
tos e processos que, embora ainda carecendo de uma
sistematização precisa na literatura pertinente ao
tema, permitem o esclarecimento das principais ten-
sões a que estão submetidos.
Pela centralidade que o termo adquire nas for-
mulações que enfatizam apenas os efeitos desarti-

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culadores qa globalização em relação às culturas
locais, é prudente, inicialmente, proceder ao afasta-
mento de qualquer noção essencialista de identidade,
a qual se contraporia ao movimento de homogenei-
zação em uma estrutura de confronto binário e fixo
entre - para usar termos que claramente expressam
relações assimétricas de poder- periferia e centro. Ao
contrário do que aquela noção sugere, identidades
culturais não são construções atemporais dotadas de
um núcleo imutável de crenças e valores que singu-
lari zariam, desde e para sempre , um local entre
outros quaisquer; são, antes, como propõe Arjun
Appadurai, resultado de processos de expressão
humana (discursiva e performativa) por meio dos
quais são estabelecidas e continuamente reelaboradas
diferenças entre grupos diversos. E a despeito de
desigualdades materiais e estruturas de exploração
que existam no interior de cada um desses grupos, os
seus membros, ainda que não se conheçam todos
uns aos outros, se imaginam, por meio desse legado
simbólico partilhado, como fazendo parte de comu-
nidades horizontais e unas.
A natureza necessariamente limitada dessas
((comunidades imaginadas" é devida, como aponta
VI Benedict Anderson, menos às suas dimensões terri-
o
........
c
co toriais- não importa quão extensas sejam elas- do
VI
o que à mera existência de outros grupos dos quais se
"O
'-
·c; distinguem. A interconexão progressiva entre locali-
co
o
E dades diversas provoca, contudo, a corrosão gradual
[12]

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[13]

das fronteiras simbólicas que as apartam e, conse-


qüentemente, as limitam, forçando cada comuni-
dade a refazer, contínua e criticamente, seus laços
imaginados de pertencimento. O fato de que essas
formações cult~rais sejam usualmente assumidas, -..a
tO
pelos grupos que as produzem e cultivam, como
naturais (ou inseridas em uma tradição) não as faz,
por isso, menos sujeitas a recorrentes reformulações,
--
.9
on
tO
u
.9

sejam causadas por fricções endógenas ou, como nos


processos aqui discutidos, enunciadas como resposta
a fenômenos a elas supostamente estranhos. Antes de
ser uma ontologia, portanto, a identidade cultural é
uma construção fincada em tempo e espaço específi-
cos (todavia moventes) e em permanente estado de
formação.
É justamente por provocar respostas e posicio-
namentos locais às suas tendências homogeneizantes
-induzindo, assim, ao reconhecimento ampliado da
natureza contingente e provisória das construções
identitárias- que a globalização assume, paradoxal-
mente, um caráter desmitificador e crítico. Por meio
da intensificação do fluxo mundial de bens simbóli-
cos por ela gerada, os tempos e os espaços em que se
desenrolam ação e pensamento são comprimidos e as
fronteiras que separam lugares distintos são flexibili-
zadas, promovendo a proposição e a permuta inces-
santes de posições diferentes no mundo. Ainda que
os espaços de vida permaneçam fixos, os locais vivi-
dos, nos quais se articulam e se criam os produtos

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culturais que registram a individualidade de grupos,
sofrem um processo de permanente desterritorializa-
ção e estranhamento, de desmanche da geografia e da
distensão temporal específicas em que se fundam e se
afirmam sistemas de representação.
A idéia de culturas locais deixa de se referir,
portanto, a circunscrições espaciais definidas e fini-
tas onde comunidades se assentam, estendendo suas
bordas para os espaços com os quais distintos gru-
pos mantêm e ampliam contato, quer por meio do
comércio de bens, da migração de seus habitantes (e
pelo acolhimento de imigrantes) ou do fluxo de
informações que enviam e recebem por via eletrôni-
ca. O que distingue uma cultura local de outras
quaisquer não são mais sentimentos de clausura,
afastamento ou origem, mas as formas específicas
pelas quais uma comunidade se posiciona nesse con-
texto de interconexão e estabelece relações com o
outro. Por força dessas mudanças, a noção de identi-
dade cultural é instada a mover-se do âmbito do que
parece ser espontâneo e territorializado para o
campo aberto do que é constante (re)invenção.
É nesse sentido que a cultura global- aquela
difundida a partir das regiões hegemônicas (nota-
V) damente Europa e Estados Unidos) - está absoluta-
o
"I"'""\
c
cu mente implicada na definição de culturas locais. Mas
V)
o
"O
é também pelas conseqüentes e continuadas res-
~

·o postas a esse movimento de agressiva difusão que o


cu
o
E entendimento do que é cultura global deve incluir
[14]

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[15]

as recriações locais (intencionais ou não) que dela


são feitas com ênfases vernaculares diferentes (e,
em menor medida, produções autônomas até então
estranhas àquelas culturas dominantes), as quais
são introduzidas no circuito mundial de informa-
ções. Global e local são termos, portanto, relacio-
nais- assim como o são centro e periferia-, e não ttl
u
descrições de territórios físicos ou simbólicos bem ..9
definidos e isolados. As relações entre essas instân-
cias não são estabelecidas, entretanto, de modo
polarizado, havendo entre elas extensa rede comu-
nicativa destinada à «negociação da diversidade,, da
qual fazem parte a mídia, a academia, os museus e
diversas outras instituições. A intensificação das rela-
ções de troca nessa rede as torna gradualmente
impuras, integrantes de um campo onde, em menor
ou maior medida, formas culturais que antes não
existiam são entretecidas. São esses contatos constan-
tes com o que é diferente que produzem, por fim, o
caráter multicultural das sociedades contemporâneas.
Para compreender como identidades são afir-
madas nesse contexto, é importante, então, qualifi-
car e distinguir os mecanismos pelos quais respostas
locais à globalização são articuladas. Em função do
caráter aplicado da maioria dos estudos sobre o
tema, há, contudo, conceitos concorrentes para seu
entendimento, o que demanda a análise do alcance
cognitivo que detêm. Antes de tudo, é necessário
descartar a idéia de aculturação, por inadequada

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para tratar ·do fenômeno em disputa, posto que o
termo implica a completa assimilação de uma cul-
tura (dominante) por outra (dominada) através de
uma bem definida relação de poder, na qual não há
espaço para permuta alguma e, conseqüentemente,
para a recriação local de sistemas de representação.
Mais adequado para descrever os encontros promo-
vidos pela globalização é o termo transculturação, o
qual invoca a contaminação mútua, em um mesmo
tempo e lugar, de expressões culturais antes aparta-
das por injunções históricas e geográficas. Entre-
tanto, não está implicado, nas aproximações entre
diferentes a que esse conceito remete, o apazigua-
mento dos embates para difundir idéias e bens que
qualquer relação intercultural produz. As formas
culturais surgidas nas ((zonas de contato, onde os
processos de transculturação ocorrem são também
testemunhas, como afirma Mary Louise Pratt, das
desigualdades que presidem tais relações e que são
por elas reproduzidas.
Uma das maneiras freqüentes pelas quais essas
desigualdades se exprimem é, justamente, através da
redução, em graus diversos, de um genuíno inte-
resse pela diferença cultural a uma atração pelo exó-
Vl tico, esvaziando o que de mais profícuo pode haver
o
........
c
co no confronto entre distintas formas de vida: o aban-
Vl
o dono da arrogante prerrogativa, reclamada pelas
-o
I...
.ü regiões hegemônicas, de estabelecer modelos de
co
o
E representação simbólica para aqueles situados à sua
[16]

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[17]

margem. Ao escamotear a natureza conflituosa dos


entrechoques culturais, a diluição da diferença no
exótico reafirma a hierarquização do mundo entre
culturas que se proclamam universais (globais) e
outras que seriam, do ponto de vista daquelas, ine- -~
..0
quivocamente particulares (locais). Expressa, assim,
desequilíbrios nos termos em que se fazem as trocas
simbólicas mundiais, termos que, para Nelly Ri-
-
..9
on
1u6
..9
chards, resultam do controle financeiro, pela Euro-
pa e pelos Estados Unidos, da rede comunicativa
que torna tais intercâmbios possíveis. Formada por
empresas e instituições majoritariamente sediadas
no centro e ancoradas no alcance de seu poder de
consagração, essa rede emprega sua ((autoridade"
para legitimar, quase tão-somente, a produção que
se conforma aos cânones ali construídos. Quanto
mais forte aquele controle e densa essa rede, menor
a capacidade dos enunciados locais frente à globali-
zação de interrogarem, efetivamente, o lugar privi-
legiado do centro como formulador de sentidos
simbólicos globais.
Outra manifestação das estruturas hierarqui-
zadas de poder que presidem os processos de trans-
culturação é encontrada no caráter assimétrico dos
fluxos de informação mundializados, muito mais
volumosos no sentido das regiões centrais para as
periféricas do que na direção oposta, o que faz com
que as formas culturais criadas nas regiões que pos-
suem a hegemonia do processo de globalização

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sejam melhor difundidas e afirmadas mundial-
mente do que as ressignificações que delas são feitas
a partir de culturas locais e, evidentemente, do que
criações somente nestas assentadas. Essas assime-
trias estão também presentes na própria forma de
entrelaçamento da rede de comunicações que torna
possíveis as trocas culturais, baseada mais em rela-
ções radiais a partir dos centros do que transversal-
mente entre espaços da periferia, apondo, sobre as
potenciais «zonas de contato" que a globalização
ativa, vazios de interlocução entre localidades as
mais diversas- sejam fisicamente próximas ou dis-
tantes-, as quais Gerardo Mosquera chama de
«zonas de silêncio,. Por integrar a lógica homoge-
neizante do processo de globalização, essas assime-
trias estão, todavia, firmemente integradas ao seu
funcionamento. A inversão do sentido hegemônico
em que se difundem as produções simbólicas do
mundo e o adensamento da rede de comunicações
entre regiões periféricas dependem, portanto, de
atitudes de resistência e de cooperação transnacio-
nal entre aquelas regiões.
A análise dessa complexa e desigual relação de
negociação e permuta entre sistemas simbólicos dis-
Vl tintos tem sido empreendida por meio do uso de ter-
o
.,...._
c
n:s mos oriundos de diversos campos do conhecimento.
Vl
o
-a Entre esses, encontra-se a mestiçagem, pertencente
\...
·c; ao repertório conceituai da antropologia e formu-
n:s
o
E lado para apreender a dinâmica de mistura entre

[18]

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[19]

raças distintas. A despeito de sua robustez teórica e


do poder explicativo associado ao seu uso original, o
problema da extensão desse conceito à análise de pro- E
Q)

cessos de transculturação é o estar embebido na idéia ...


Q)
l-
tU
de fusão harmônica entre diferentes, ocultando, -
.c
tU

desse modo, as desigualdades e contradições funda- o


ÕÍl
mentais que persistem em toda relação intercultural. -
........
tU
u
..9
A metáfora culinária do ajiaco, proposta por Fer-
nando Ortíz, parece ser aqui apropriada para enten-
der os limites do termo. Nesse prato da cozinha cuba-
na, pedaços de diferentes tipos de carne são cozinhados
juntos e, sob o calor do fogo brando, gradualmente
se desmancham para formar um caldo que sintetiza
as características únicas de cada ingrediente. A iden-
tidade caribenha, seguindo essa sugestiva imagem,
seria, assim, a do amálgama e da integração plena
entre culturas diferentes. O problema, afirma Ge-
rardo Mosquera, é que, a despeito de fornecerem seu
sabor para o caldo, os pedaços duros de carne e os
ossos cozinhados no ajiaco nunca se dissolvem, per-
manecendo como testemunhas da incompletude da
mistura que o preparo da iguaria promove. E é exa-
tamente por não considerar as impurezas que resul-
tam de todo contato e permuta entre formações cul-
turais diversas que o conceito de mestiçagem é
insuficiente para descrever a recriação da idéia de
local sob o impacto das forças homogeneizantes da
globalização. Por motivos opostos, o conceito de

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mestiçagem equivale, na inadequação às questões
aqui tratadas, ao termo aculturação.
A idéia de tradução, tomada por empréstimo
do campo lingüístico, e seu emprego metafórico na
esfera da criação têm sido também recorrentes na
construção de modelos explicativos de processos de
trocas culturais e, em conseqüência, de mecanismos
de construção identitária. Esse deslocamento disci-
plinar sugere que o posicionamento da cultura local
em função do encontro com uma cultura hegemó-
nica (e, portanto, globalizante) implica, tal como
em um processo ordinário de tradução entre duas lín-
guas, um duplo procedimento: primeiro, apreender os
sentidos dos produtos gestados em uma cultura; em
seguida, recriá-los nos termos de uma outra. Ocorre
que não existe correspondência unívoca entre sistemas
culturais diversos, assim como não há entre sistemas
lingüísticos diferentes. Como conseqüência, nunca se
alcança transparência perfeita naquilo que é resultado
de uma tradução, restando sempre algo opaco e, por
conseguinte, intraduzível entre formações culturais ou
línguas que se confrontam. E é justamente essa opaci-
dade do que não se deixa levar docilmente de um a
outro âmbito de significados que afirma a impossibili-
dade de reduzir uma cultura a outra diferente.
O conceito de tradução permite, por isso, apreen-
der a natureza ambígua da dinâmica dos processos
de transculturação, em que ganhos e perdas simbó-
licos se reforçam mutuamente. Limitadas pelo que

[20]

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[21]

Sarat Maharaj definiu como a «intradutibilidade do


outro», as ressignificações locais da cultura global
sempre engendram recriações originais de produtos
alheios, adicionando ao repertório simbólico do
mundo algo que não existia ainda. Essa originali- -(tl
..0
dade não se funda em uma suposta identificação de ..9
01)

culturas vernaculares com ideais de criação castos, -


--...
( tl
u
..9
os quais se contraporiam à impureza da cultura das
regiões hegemônicas. Traduzir códigos culturais
não é, afinal, um procedimento excepcional nos
processos de criação, ou exclusivo da era da globali-
zação, mas um mecanismo ininterrupto e inerente à
sua existência; de fato, a todo tempo materiais ou
signos são conduzidos- de um modo deliberado ou
passivo, com maior ou menor dinamismo - de uma
formação cultural a uma outra distinta. Essa origi-
nalidade se afirma, tão-somente, porque as opera-
ções simbólicas que recriam significantes globais
(reinserindo-os, modificados, nas vias internacio-
nalizadas de informação) são moldadas por especi-
ficidades históricas que localizam e diferenciam
práticas criativas no espaço amplo da produção cul-
tural contemporânea. O fato de haver sempre algo
intraduzível em permutas interculturais- seja o con-
texto histórico do que é tomado como objeto .de tra-
dução, seja a função social dos códigos com que se
busca ler diferenças, ou ainda fragmentos do conteúdo
da informação que se deseja traduzir- implica, entre-

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tanto, uma inevitável perda de significados naquilo
que é transmitido.
Embora as ressignificações da cultura hegemô-
nica feitas a partir de perspectivas locais alarguem e
diversifiquem- consideradas, evidentemente, a for-
ça de autolegitimação do centro e as assimetrias dos
fluxos mundiais de comunicação- um circuito de
difusão cultural de extenso alcance, elas não garan-
tem, portanto, a integridade das culturas postas em
contato. Esquivar-se de uma idéia essencialista de
p ertencimento exige considerar que a negociação
(tradução) de sentidos entre o local e o global pro-
voca inclusões e exclusões simbólicas as quais, ainda
que comumente sublimadas por narrativas de soli-
dariedade, sempre estão presentes nas renovadas afir-
mações de identidade de quaisquer grupos. De fato, o
estabelecimento de identidades requer a declaração
continuada não somente daquilo que uma comuni-
dade é, mas igualmente daquilo que, diante das cir-
cunstâncias de cada lugar e momento (entre as quais
a globalização é uma ubíqua presença contemporâ-
nea), ela não mais comporta.
Outro termo corrente nas discussões de trans-
culturação e de longo emprego em estudos antropo-
Vl lógicos é sincretismo, bastante utilizado na caracteriza-
o
.,_...
c:
cu ção dos processos de adaptação de crenças religiosas
Vl
o
"O
de origem africana ao contexto da colonização euro-
'-

cu
péia nas Américas e no Caribe. Contrariamente aos
o
E conceitos de aculturação e de mestiçagem - e, em
[22]

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[23]

menor medida, ao de tradução-, a idéia de sincre-


tismo considera as inequívocas desigualdades de
poder embutidas e impostas nas relações entre cultu-
ras distintas, as quais mesmo o continuado cantata
não dissolve e que persistem, nas novas formas cultu-
rais criadas, como índices de imiscíveis diferenças. O
conceito de sincretismo considera, ademais, o fato de
que os grupos subjugados nessas relações tomam,
como se fossem seus, elementos da cultura do grupo
hegemônico, ressignificando-os de modo original.
Dessa maneira, o sincretismo é, de fato, uma estraté-
gia de participação ativa, por quem se encontra em
posição subordinada em uma estrutura de poder hie-
rarquizada, na afirmação de identidades.
O termo antropofagia, tal como apropriado
para o âmbito da ç:ultura e operacionalizado pelos
modernistas brasileiros na década de 1920, pode,
assim, ser associado a uma conceituação e a uma
prática sincréticas: em vez de meramente combater
a influência da cultura moderna européia ou se sub-
meter por completo a ela, os modernistas reconhe-
ciam sua força política e simbólica e propunham a
incorporação e a reelaboração, desde uma visada
nacional, de alguns d e se us pressupostos, desse
modo criando uma arte que seria própria do Brasil.
Além de enfatizar a idéia da não-neutralidade do
campo de construção identitária, o conceito de sin-
cretismo destaca, portanto, a agência de grupos su-
bordinados que subvertem os sentidos originais das

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culturas do·minantes a partir de perspectivas locais.
O que lhe confere poder explicativo e originalidade,
contudo, é igualmente uma das insuficiências do
conceito no contexto da globalização, posto que
considera a tradução entre culturas como a conta-
minação unidirecional- não só imposta, mas tam-
bém concedida ou mesmo ativamente buscada - da
cultura local por uma cultura hegemônica e estran-
geira. Privilegiando a transformação daquilo que o
outro sugere como invenção, o termo não contem-
pla o poder de disrupção que a incorporação de
criações sincréticas ao circuito global de informa-
ções possui, acomodando-se a uma relação de
dependência cultural pré-estabelecida.
Um conceito próximo ao de sincretismo (in-
clusive nos seus limites), e também utilizado na
descrição de encontros transculturais, é o de criou-
lização. A sua origem se refere ao processo de
implantação, no início do século XVI, da economia
colonial no Caribe e aos mecanismos de ajusta -
mento, acomodação e negociação de diferenças
entre os colonizadores europeus e os escravos
negros trazidos da África à região, posto que os
habitantes nativos foram, desde o início daquele
VI processo, quase todos extintos. Embora sua formu-
o
•f"""'\
c
ctS
lação primeira se refira especificamente aos aspec-
VI
o tos lingüísticos dessa relação - da qual o crioulo
"''.ü
1...
emerge como sistema misto em que vocabulários e
ctS
o
E sintaxes de línguas diversas são utilizados de modo

[24]

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[25]

inovador e integrado -, o emprego do termo criou-


lização foi gradualmente ampliado para identificar
a emergência de novas formas culturais também E
Q)

em outros âmbitos da sociabilidade colonial. Nesse Q)


~
~
co
sentido expandido, crioulização pode se referir
igualmente a processos de recombinação de ele-
mentos étnicos europeus e africanos nos domínios
da música, da arquitetura, do vestuário, da culiná-
ria ou da religião. O que mais distingue esse con-
ceito dos demais a ele correlates, porém, é a sua lo-
calização histórica precisa, a qual enfaticamente
evoca a natureza violenta das relações entre os
povos diversqs ali e naquele momento postos em
conta to. Afasta da descrição desse processo, por-
tanto, qualquer intenção celebratória ou apazi -
guante, enfatizand?, ao contrário, as relações de
poder que o constituíram.
A partir da década de 1990, o termo criouliza-
ção tem sido destacado de um contexto geográfico e
temporal definido, sendo utilizado na investigação
dos processos contemporâneos de embate criativo
entre diferentes culturas. Para o uso desse conceito
fazer algum sent ido no âmbito da globalização,
entretanto - seja em relação ao Caribe ou a outras
regiões onde se desenvolvam dinâmicas intensas de
troca cultural-, ao menos duas ressalvas devem ser
observadas. Aparentemente contraditórias, uma a
afasta e a outra a aproxima de seu emprego original:
por um lado, é necessário que o termo crioulização

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considere a capacidade de culturas locais não apenas
ressignificarem a cultura difundida desde o centro,
mas também de reinserirem, nos circuitos globais de
informação, o que resulta desse processo; por outro
lado, o conceito deve ser reservado, como sugere
Okwui Enwezor, somente para situações de transcul-
turação que envolvam o exercício explícito da força e
que tenham, nas estratégias de resistência ativa
daqueles em situação subordinada, o pólo dinâmico
das permutas realizadas.
Um outro termo que, deslocado do âmbito que
lhe deu origem, tem aclarado a natureza e a dinâ-
mica das relações de trocas simbólicas que a globali-
zação promove é diáspora. Afastando-se de sua acep-
ção tradicional- dispersão reversível de um povo
que partilha uma formação identitária específica-,
mas mantendo o sentido de ruptura drástica que
invoca, o conceito tem sido usado por historiadores
da cultura justamente para questionar a primazia do
território na construção de narrativas de identidades.
Tomando por paradigma a diáspora africana provo-
cada pela política colonial européia entre os séculos
XVI e XIX, esses estudos assinalam o fato de que,
para os homens e mulheres que viveram as experiên-
Vl cias do deslocamento forçado de suas terras nativas e
o
•r-,
c
1'0
de interação subordinada com outras formações cul-
Vl
o turais, bem como para seus descendentes, cessou de
"'
'-
'G
1'0
existir uma cena primária para onde voltar. Por terem
o
E sido obrigados a negociar, no contexto da vida colo-

[26]

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[27]

nial, novas idéias de pertencimento, o desejo do


retorno- entendido como a vontade de ter nova-
mente acesso a um conjunto de significantes simbó-
licos autênticos e supostamente próprios de um local
de origem- é necessariamente frustrado. São nego-
ciações que, se levam à recriação da idéia de si mes-
mos, também impõem perdas para as quais não é
mais possível consolo ou reparo. Aqueles que fisica-
mente voltaram (alforriados ou após o colapso do
sistema escravista) não conseguiram mais enxergar,
com os olhos formados no exílio, aquilo que tanto
ansiavam ver novamente. Diante da impossibilidade
de reverter os efeitos transformadores da dispersão-
e de retornar, portanto, a um passado mítico - , pas-
saram a traduzir significados que já não reconhe-
ciam plenamente como seus em modos de vida ges-
tados em outros espaços.
É nesse contexto de tradução truncada que
Paul Gilroy aponta o oceano Atlântico como o local
privilegiado onde se teceram, durante mais de três
séculos, conexões entre tradições distintas e lugares
apartados, fazendo dele a unidade básica de análise
para entender os processos transnacionais e indeter-
minados de formação identitária gestados pela
colonização européia. Tão importantes quanto as
raízes dos diversos povos afetados pelo sistema
colonial, diz o historiador, são as tantas rotas que
eles percorreram e que também os formaram. Em
função da compreensão ampliada do que é diás-

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pora, ele relativiza a esquemática associação entre
identidade e território e refere-se aos espaços vivi-
dos por aqueles povos como um ((circuito comuni-
cativo" onde interações foram feitas e identificações
moventes, geradas. É nesse sentido que o termo é
útil para pensar o mundo contemporâneo, no qual
idéias de pertencimento são formuladas por meio
de contatos interculturais, são freqüentemente des-
territorializadas e estão sempre sujeitas a reformula-
ções parciais e periódicas.
Finalmente, o termo hibridismo, tomado em-
prestado do campo da biologia, tem sido largamente
empregado para apreender o que resulta da proximi-
dade entre formações culturais distintas. Ao contrário
dos conceitos de aculturação ou de mestiçagem, hibri-
dismo sugere a impossibilidade da completa fusão
entre componentes diferentes de uma relação> ainda
que em situações de coexistência longa e próxima.
Para empregar uma vez mais uma metáfora culinária,
o hibridismo é associado, por Gerardo Mosquera> ao
prato cubano moros con cristianos, que é feito, de
modo não muito diverso do baião-de-dois encontrá-
vel na cozinha do Nordeste brasileiro, do cozimento
de arroz e feijão numa ·mesma panela. Embora os
VI ingredientes desse prato adiram parcialmente um ao
o
........
c
cu outro sob o calor que os amolece> são> ainda assim>
VI
o reconhecíveis, à visão e ao paladar, como elementos
-o
lo...
·o perfeitamente separados. Há implícita no conceito,
cu
o
E portanto, a idéia de relativa intradutibilidade.

[28]

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[29]

Por não estar inscrito na história social como


o sincretismo, a crioulização e a diáspora, o termo
hibridismo não invoca o reconhecimento imediato
de que processos de transculturação são imersos
em estruturas definidas de poder. Essa «neutrali-
dade,, entretanto, não o incompatibiliza com a
idéia de que as ressignificações locais de códigos ela-
borados nas culturas h~gemônicas, e a partir destas
difundidos, são feitas, no âmbito da globalização,
desde posições subordinadas. Mais ainda, permite-
lhe abranger e destacar, sem ambigüidades- ao con-
trário desses outros termos-, o fato de que tradu-
ções simbólicas feitas a partir de posições periféricas
não só articulam culturas distintas como são incor-
poradas, com graus variados de legitimação, ao cir-
cuito mundial por onde informações trafegam,
diversificando, expandindo e <<reindexando, aquele
circuito, portanto, como um espaço de traduções.
O hibridismo também enfatiza a indecidibili-
dade do resultado daqueles processos de troca,
aproximando-se, por isso, da noção de diáspora.
Como afirma Stuart Hall, uma cultura híbrida é,
por definição, incontrastável quer com uma cultura
vernacular, quer com uma global, posto que não é
síntese ou mero compósito de outras construções
simbólicas. Ela é resultado, ao contrário, de uma
aproximação entre diferentes que não se completa
nunca, abrindo, na expressão de Homi K. Bhabha,
um «terceiro espaço, de negociação entre diferen-

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ças incomensuráveis, ou, como elabora Silviano
Santiago, criando um "entrelugar". O conceito de
hibridismo é apto, assim, a capturar, de maneira
talvez mais flexível (e também por isso talvez mais
acurada) que os outros termos assinalados, a natu-
reza necessariamente inconclusa do processo de
articulação social das diferenças locais no contexto
de interconexão ampliada que a globalização pro-
move. Entre a submissão completa a uma cultura
homogeneizante e a afirmação intransigente de
uma tradição imóvel, instaura-se, portanto, um
intervalo de recriação e reinscrição identitária do
local que é irredutível a um ou a outro desses pólos
extremados.

Exposição de diferenças

A auto-afirmação de culturas locais frente ao processo


de globalização tem gerado o reconhecimento alar-
gado de uma produção simbólica antes escassamente
difundida nos centros hegemônicos de legitimação
artística e de valoração patrimonial. Como resultado,
são muitos os textos críticos e as exposições que, a
11'1 partir de meados da década de 1980, e elaborados nes-
o
........
c
10
ses centros, buscam, de formas variadas, apreender a
11'1
o
-o dinâmica multicultural da produção contemporânea
~

Ti
10
em artes visuais. Com as atenções voltadas, principal-
o
E mente, para a América Latina, África e Ásia, essas for-

[30]

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[31]

mulações tentam lidar com as características de cria-


ções longamente ignoradas e excluídas dos cânones
artísticos, firmados hegemonicamente na Europa e
nos Estados Unidos.
Enunciar um discurso (um texto crítico, a cura-
tO
.CI
doria de uma exposição ) sobre a arte daquelas
--
o
on
regiões implica, contudo, negociar com as expecta- --_g
.......
t tl
u
tivas existentes sobre as fronteiras simbólicas que
singularizariam, nesse campo da criação, aquilo que
é produzido nos muitos países que as formam. Caso
se tome, como índices dessas expectativas, as pri-
meiras narrativas a essa época formuladas sobre tal
produção, seriam apenas dois os principais cami-
nhos utilizados para realizar esse enfrentamento.
Em um deles, afirmar-se-iam as narrativas que bus-
cam inserir as a~tes latino-americana, africana e
asiática nos cânones da história da arte ocidental,
entendendo-as como manifestações idiossincráticas
ou meramente derivativas de uma «linguagem
internacional"- conjunto de códigos criados em
países centrais e afirmados como definidores de
uma arte global-legitimada por essa história. No
outro, agrupar-se-iam narrativas empenhadas em
denotar algo que seria próprio somente do universo
simbólico dessas regiões, seja esse suposto traço
identitário o «fantástico", o <<primitivo" ou o ''má-
gico", designações recorrentes em textos críticos e
nos argumentos curatoriais de algumas dessas expo-
sições na década de 1980. Enfatizando a assimilação

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completa, no primeiro caso, ou a diferença extrema,
no segundo, ambos os caminhos deixam de se repor-
tar aos processos de esgarçamento, alargamento e
redefinição gradual das fronteiras simbólicas dos paí-
ses contidos nesses continentes, causados pelos con-
traditórios movimentos de reação e adaptação cultu-
ral às forças homogeneizantes da globalização.
Embora pioneiras no desejo de representar, para as
nações centrais, a diversidade da produção artística
dessas regiões, essas formulações - pretensamente
multiculturais - se abstêm de enfrentar, com a acui-
dade devida, questões essenciais à apreensão efetiva
do que a caracterizaria na contemporaneidade. Esses
esforços falham e se equivalem, ademais, ao tratar os
muitos países que compõem a América Latina, África
e Ásia como conjuntos homogêneos, desconhecendo
as, por vezes grandes, diferenças entre formações cul-
turais próximas geograficamente.
Se é paradoxal que assim seja- posto que é jus-
tamente o dinamismo dos processos de afirma-
ção/recriação de identidades que dá visibilidade
ampla a essa produção diversa e que estimula, por-
tanto, o interesse de críticos e curadores a seu respeito
-,o não-enfrentamento de tais questões expressa
V') arraigadas visões de mundo que, ancoradas em rela-
.o......_
c
ro
ções de poder simbólico e real, custam a mudar. É
V')

"O
o somente considerando as conseqüências dos proces-
I...
Ti
ro
sos de transculturação em curso nos países que for-
o
E mam aqueles continentes, entretanto, que fica evi-

[32]

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[33]

dente a impropriedade de se pensar a arte ali criada o


+J
·v;
como imitativa da produção feita nas regiões centrais c
<1'0
'-
.4-J
ou, alternativamente, como representação simbólica E
Q)
de territórios isolados. O conteúdo crítico de tais Q)
+J
'-
1'0
mecanismos de troca impõe a elaboração de uma
1'0
outra cartografia dessa produção, em que a rigidez .o
.9
on
das divisões geopolíticas daqueles espaços seja amo- -
.........
1'0
u
lecida, e os novos e provisórios contornos identitá- .9
rios traçados por seus habitantes sejam apontados.
A crítica àquelas narrativas reducionistas vem
sendo tecida, com especial ênfase a partir do início da
década de 1990, na forma de vários outros textos e
exposições. Em termos amplos, essas outras narrati-
vas argumentam que, a despeito da existência de
legados culturais e de processos históricos comuns a
muitos dos países que constituem a América Latina,
África e Asia, as expressões arte latino-americana, arte
africana ou arte asiática foram e são incapazes de
abarcar, sem escamoteamentos ou excessivas simpli-
ficações, a diversa, complexa e dinâmica produção
simbólica de artistas nascidos ou residentes nesses
continentes. Opera-se nessa crítica, de fato, o desvela-
mente de construções identitárias fundadas no euro-
centrismo que hegemoniza o campo disciplinar da
história da arte e que teve, por décadas, larga aceita-
ção não apenas fora, mas também no interior dessas
próprias regiões. E, a essa indevida homogeneização e
compartimentação do que é distinto, opõe-se a cele-
bração da multiplicidade de enunciados artísticos

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oriul).dos de pontos os mais variados e distantes da
América Latina, África e Ásia, continuamente articu-
.Iando referências diversas e reinventando, em termos
simbólicos, esses espaços no mundo contemporâneo.
Apesar da precoce atrofia conceituai do multi-
culturalismo -levando à proposição, como alterna-
tiva possível, do termo «novo internacionalismo"-,
a comparação entre algumas exposições realizadas ao
longo desse período é ilustrativa para apontar como
o reconhecimento do caráter multicultural do mun-
do,' por quem o observa a partir do «centro': tem mu-
dado da mera curiosidade que o diferente invoca
para a gradativa aceitação de visões concorrentes
sobre o que resulta do funcionamento de um espaço
global de trocas simbólicas. Esse cotejamento eviden-
. cia, também, a progressiva mudança do lugar de
enunciação dos discursos críticos e curatoriais sobre
o que restava antes à margem do sistema de artes
((internacional": em vez de firmados a partir apenas
da Europa e dos Estados Unidos, tais discursos têm
sua origem gradualmente deslocada para outros ter-
ritórios, fazendo caber, naquele sistema, formulações
feitas de uma perspectiva efetivamente descentrada.
Embora essas alterações não signifiquem a subversão
Vl
das hierarquias em que se assenta aquele sistema,
o
........
c
113
como tampouco a conciliação dos muitos interesses
Vl
o
"'O
divergentes envolvidos - presentes, inclusive, na dis-
~
·c;
113
puta menos ou mais declarada pelo controle de pla-
o
E taformas expositivas (museus, bienais) com visibili-

[34]

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[35]

dade ampla para a afirmação de discursos particula-


res-, elas têm certamente permitido que o confronto
seja reconhecido pelas partes e institucionalizado.
Por seu pioneirismo e pelo impacto causado
quando de sua realização, é defensável tomar, como -tO
marco primeiro dessa discussão, a mostra «Magiciens
de la Terre", organizada pelo curador francês Jean-
---
.D
o
on
tO
u
Hubert Martin, em 1989, para o Centre Georges _g

Pompidou, em Paris, França. Primeira tentativa deli-


berada de incorporar, a partir de uma instituição com
reconhecido poder de legitimação global do que nela
é exposto, a diversidade cultural do mundo em uma
exposição de arte contemporânea, <<Magiciens de la
Terre" é paradigmática acerca das hesitações e indefi-
nições conceituais próprias de sua época. Por um
lado, a mostra teve o mérito de, por ser formulada
desde e para o centro, ter dado visibilidade «interna-
cional" a uma parcela da produção corrente feita nos
mais distantes cantos do mundo. Por outro lado, con-
tudo, fez isso da perspectiva de quem se considera
capaz de formar juízos (e realizar escolhas, portanto)
sobre as obras de criadores tão dispersos e diferentes,
valendo-se, para tanto, somente de critérios da tradi-
ção artística eurocêntrica.
O principal resultado dessa ambígua estratégia
expositiva foi a supressão das diferenças simbólicas
entre os trabalhos selecionados, exibidos de uma pers-
pectiva dominante, ((burocratizando" o global e decli-
nando - sob a égide da designação vaga dos artistas

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como ''mágicos da terra,- da tentativa de enunciar os
inequívocos conflitos entre as visões de mundo avizi-
nhadas no espaço da exposição. Ao recusar contextua-
lizar os artefatos selecionados nas condições sociais,
políticas ou históricas dos locais onde foram criados,
a mostra subtraiu, ademais, de sua audiência (majori-
tariamente européia) a oportunidade de ter acesso aos
possíveis sentidos de origem daqueles objetos.
Apoiando-se no argumento de estar privilegiando
uma comunicação puramente visual com o público-
buscando implicar, com isso, a suposta universalidade
da mostra - , a curadoria impôs, em verdade, conven-
ções estéticas bem assentadas e incorporadas nos cri-
térios de quem teve o poder de incluir artistas ou
deixá-los fora do evento.
Não assumindo plenamente a questão da recria-
ção identitária- cara ao mundo contemporâneo - ,
refugiou -se, ao contrário, em uma norma retiniana,
cedendo à história hegemônica do modernismo; e,
ainda que de modo involuntário, enquadrou produ-
ções dos mais diversos lugares do mundo em uma
estrutura cognitiva dominante. Por apresentar a
produção de ((arte contemporânea, (definição, em si
mesma, de universalização questionável) de países
Vl periféricos a partir de um discurso totalmente elabo-
o
..........
c
cu rado no centro- e não de perspectivas locais e confli-
Vl
o tantes -,a exposição ((Magiciens de la Terre" não éon-
-o
1...
.ü seguiu fornecer evidências da recriação de formações
cu
o
E culturais tecidas como resistência ou adaptação aos
[36]

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[37]

impulsos globalizantes. Mais do que tornar visível a o


.....
·v;
c
emergência de formas híbridas de representar o <~
.....
'-

mundo, exibiu, contrariando o seu intento declarado, E


Q)

um panorama que anulava diferenças ou, se conside- Q)


.....
'-
~
rada de uma perspectiva não-ocidental, tornava as __,
~
..0
diferenças absolutas, demonstrando o quanto pode _g
on
........
ser largo o campo de intradutibilidade entre culturas. __,
~
u
Logo em seguida a essa mostra, em 1990, Guy _g

Brett - crítico inglês familiarizado, desde a década


de 1960, com a arte produzida na América Latina -
organizou a exposição «Transcontinental", na Ikon
Gallery, em Birmingham, Inglaterra. Nessa mostra,
o curador apresentou trabalhos de nove artistas
contemporâneos do continente latino-americano
que, de seu ponto de vista, encenavam o embate e o
encontro entre culturas de um modo que escapava
às alternativas da homogeneização ou da polariza-
ção de diferenças. Trabalhos que apontavam, por-
tanto, para um ((terceiro caminho" de efetivação de
contato entre o que é diverso, que inclui a possibili-
dade de mal-entendidos mas também recusa essen-
cialismos de identificação. É somente a partir de
1992, contudo, que visões articuladas da arte híbrida
da América Latina são não apenas difundidas para
além das fronteiras geopolíticas do continente, mas
formuladas por curadores da região (ou, ao menos,
com expressiva interlocução entre estes e pares euro-
peus e norte-americanos ), partindo, portanto, de
uma perspectiva local.

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"Ante América"- organizada em 1992 por Ge-
rardo Mosquera (cubano), Rachel Weiss (norte-
americana) e Carolina Ponce de León (colombiana)
para a Biblioteca Luis-Ángel Arango, em Bogotá,
Colômbia, e depois exibidà em diversas cidades dos
Estados Unidos - opunha -se à visão tradicional de
uma América Latina limitada pela geografia, pro-
pondo-a como uma comunidade multicultural,
complexa (a qual inclui tanto imigrantes quanto
aqueles que dela se mudaram para outros continen-
tes) e avessa, portanto, aos estereótipos estabele-
cidos no centro. No ano seguinte, o brasileiro Ivo
Mesquita organizou, para a instituição canadense
Winnipeg Art Gallery, a exposição «Cartographies'~
posteriormente exibida também na Colômbia e na
Venezuela. Para o curador, o objetivo maior da mos-
tra seria examinar se o que se chama comumente de
América Latina forneceria ainda elementos bastantes
para descrever e interpretar a arte então produzida
no continente, concluindo por sua insuficiência.
<<Cartographies" discutia, simultaneamente, o exces-
sivo poder detido por curadores como agentes capa-
zes de institucionalizar o conhecimento, assumindo
postura crítica em relação às representações identitá-
VI
rias rígidas por vezes oferecidas em exposições.
o
.I"""'\
c
ro
Sem pretender fazer um inventário das tantas
VI
o
-o outras mostras organizadas com espírito crítico seme-
·uro'- lhante que se seguiram a essas duas proposições semi-
o
E nais, interessa ainda mencionar, entretanto, «Ultra

[38]

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[39]

Barroque: Aspects of Post Latin American Art", orga-


nizada por Elizabeth Armstrong e Victor Zamudio-
Taylor - ela norte-americana, ele mexicano - para o
Museum of Contemporary Art, em San Diego, Esta-
dos Unidos, cidade que, sintomaticamente, faz divisa
com Tijuana, México, e é foco de tensões entre poten-
ciais imigr:antes clandestinos e a polícia de fronteira
norte-americana. Inaugurada em 2001 (itinerou, em
seguida, por várias outras instituições nos Estados
Unidos e Canadá), a exposição recuperava o Barroco
feito na América Latina entre os séculos XVII e XIX
como atitude criativa fundada na articulação do que é
diferente e, portanto, como modelo adequado para
compreender e analisar os processos de transculturação
provocados pela globalização no continente. Já no sub-
título da mostra- "aspectos da arte pós-latino-ameri-
cana" (ênfase aqui adicionada) - fica explícita a suges-
tão de superar uma designação incapaz de abarcar as
complexas inter-relações simbólicas de que é feita a arte
na América Latina contemporânea.
A partir de meados da década de 1990, também
a representação da arte contemporânea da África
sofreu significativas alterações. Dos lugares-comuns
colonialistas presentes em tantas exposições de
caráter supostamente global - incluindo, em rele-
vante medida, «Magiciens de la Terre" - passou-se,
gradualmente, a destacar não apenas a heterogenei-
dade da produção de cada país do continente, mas
também a complexidade das relações com as cultu-

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ras européias, americanas e asiáticas, enunciadas a
partir de diferentes pontos da África. Entretanto,
talvez por sua importância econômica na região e
também porque, em um contexto pós-apartheid,
ampliou sua capacidade de articulação política no
mundo, a África do Sul teve, durante alguns anos,
sua produção contemporânea exibida fora do conti-
nente mais freqüentemente do que aquela feita em
outros países africanos. Entre várias mostras de per-
fil semelhante, situam-se, por exemplo, "Contempo-
rary Art from South Africa", organizada em 1996
pela Haus der Kulturen der Welt, em Berlim, Ale-
manha, e a mostra homônima organizada, no ano
seguinte, pelo Museu Nacional de Arte Contem-
porânea, em Oslo, Noruega. Em ambas, a ambigüi-
dade da questão multirracial no país e seu novo
lugar na cartografia política internacional eram
componentes importantes e inevitáveis, explicita-
mente ou não, das reflexões artísticas ali reunidas.
Das exibições mais abrangentes- articulando
produções de diversos países do continente e tam-
bém da diáspora africana contemporânea-, duas,
realizadas na década de 2000, destacam-se pela cla-
reza do argumento. A primeira, "Fault Lines: Con-
V'l temporary Art and Shifting Landscapes", parte da
o
·.--.
c
fl:1
50ª edição da Bienal de Veneza (2003), Itália, foi
V'l
o
"C
organizada pela curadora Gilane Tawadros (egípcia
I....

fl:1
residente na Inglaterra). A partir do termo geoló-
o
E gico que a nomeia- o qual remete a fraturas na su-

[40]

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[41]

perfície física da Terra que podem alterar, por vezes


de modo violento, a sua estrutura-, a mostra pro-
curou apontar algumas das rupturas causadas pela E
Q)

globalização, pela situação pós-colonial e pelos con- ..........


Q)

co
seqüentes e renovados fluxos migratórios no campo
co
..0
da produção simbólica do continente. Incluindo o
ÕÍl
variados meios de expressão e articulando questões -co
'-
u
políticas e artísticas, a exposição questionava qual- ..9
quer noção de autenticidade da cultura africana ou
seu reducionismo a mitos ou etnias. Apresentava-a,
ao contrário, como um dinâmico conjunto de locais
em permanente e ativa construção de identidades
cosmopolitas. A segunda mostra, <<Africa Remix:
Contemporary Art of a Contin ent'~ foi organizada,
em 2004, por Simon Njami (camaronense residente
na França) para o Museum Kunst Palast, em Düssel-
dorf, Alemanha, tendo itinerado por outras cidades
da Europa e também pelo Japão. De modo seme-
lhante à anterior, a exposição interrogava a idéia de
uma arte africana na contempo raneidade, afas-
tando-se tanto dos clichês primitivistas quanto de
parâmetros artísticos eurocêntricos. Confrontou
ainda, no espaço expositivo, a produção de artistas
africanos negros e brancos, e aproximou as artes
visuais de literatura, moda e música. Em vez de
oferecer respostas para o que seria a identidade
cultural da África, optou por formular questões
que testemunhavam a reinvenção simbólica de um
continente.

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São igualmente do início da década de 1990 as
primeiras exposições da arte contemporânea pro-
duzida na Ásia que, formuladas por curadores
oriundos da região ou a ela firmemente associados,
questionavam estereótipos familiares ao Ocidente e
a própria identificação rasa do continente como um
território homogêneo. Por sua renovada importân-
cia estratégica em um contexto de flexibilização
política pós-Guerra Fria e conseqüente abertura de
novos mercados para a valorização de capitais euro-
peus e norte-americanos, a China tem concentrado
as atenções dos que tentam entender, desde a pro-
dução contemporânea em artes visuais, as radicais
mudanças em curso na Ásia. Dentre as exposições
organizadas a partir de uma mirada chinesa e que
foram expostas em outros continentes, destacam-se,
por sua ambição, «Out of the Centre: Chinese Con-
temporary Art" e cclnside Out: New Chinese Art". A
primeira- curada por Han Houru (chinês residente
na França), em 1994, para o Pori Art Museum, em
Pori, Finlândia- criticava os discursos eurocêntri-
cos de autoridade e de legitimação simbólica por
meio da afirmação da idéia de um mundo descen-
trado. Para tanto, aproximava dois países - China,
VI de onde provinham os artistas, e Finlândia, que os
o
...._
c
nl
recebia- comumente situados ccfora do centro" ou
VI
o dele exilados. A segunda - curada por Gary Garrels
"''·u
1-

nl
(norte-americano) e por Gao Minglu (chinês resi-
o
E dente na França), em 1998, para o P.S. 1, em Nova
[42]

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[43]

York, Estados Unidos, e itinerante a outras cidades ....o


·v;
desse país e da Ásia- propunha apresentar o caráter c
(~
....
I...

ambivalente de uma produção artística que, ades-


peito da troca intensa com diferentes culturas,
retém ainda algo que a localiza e a identifica frente ~
..
~
..c
àquelas oriundas de outros lugares. O próprio título ..9
01)
........
da mostra - ''de dentro para fora "- já indicava a ~
u
ênfase na relativa intradutibilidade de culturas em ..9

contextos de contatos interculturais e, portanto, a


permanência de traços locais (menos representacio-
nais do que de procedimento) que resistem à homo-
geneização das diferenças.
Das exposições que tentaram apresentar uma
visão mais ampla da arte contemporânea do conti-
nente asiático, a mais emblemática foi certamente
"Cities on the Move"- organizada pelo suíço Hans
Ulrich Obrist e pelo m esm o Han Houru para a
Secession, em Viena, Áustria-, mostra que, nos
seus quatro anos de itinerância na Europa, Estados
Unidos e Ásia, assumiu, a cada nova montagem, uma
configuração diferente e em diálogo com as cidades
que a recebiam. Tomando as radicais transformações
sociais, urbanísticas e arquitetônicas ocorridas nas
metrópoles asiáticas a partir do início da década de
1990 como índices da cultura contemporân ea do
continente, os curadores destacaram a paradoxal
configuração dessa cultura, baseada tanto no desejo
de afirmar identidades nacionais globalmente quanto
no concomitante entusiasmo por aderir a formas de

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vida identificadas com o Ocidente. Essa proposição
foi demonstrada não somente por meio da escolha
dos trabalhos, mas também de intrincadas monta-
gens que enfatizavam as complexas negociações de
sentidos neles implícitos. Não existiria, assim, algo
que se possa nomear ''cidade asiática" (ou, por exten-
são, urna arte típica dessa região), mas tão-somente
estruturas urbanas (ou poéticas artísticas) híbridas,
que, posicionando-se frente às forças a que estão
submetidas em um mundo crescentemente globali-
zado, articulam referências culturais heterogêneas a
partir de locais específicos.
A despeito das críticas que "Magiciens de la
Terre" recebeu- ou talvez em função delas-, foi
também realizada, já a partir da primeira metade da
década de 1990 e vinda dos países centrais, urna série
de exposições que refletiam sobre o surgimento de
urna nova cartografia simbólica do mundo. Urna das
primeiras foi "Espacio dei Tiernpo", curada por San-
dra Antelo-Suarez (boliviana residente nos Estados
Unidos) e Alisa Tager (norte-americana) para o
Arnericas Society, em Nova York, Estados Unidos. A
mostra reunia artistas da América Latina, do Caribe
e da América do Norte cujos trabalhos não afirma-
Vl
vam urna autenticidade étnica ou cultural nem deli-
o
.,.......,
c
co neavam, com clareza, identidades ou origens, dessa
Vl

-o
o forma atenuando as rígidas partições territoriais e
~

co
políticas vigentes nas Américas. Dentre as mostras
o
E que melhor dialogaram com os esforços de posicio-

[44]

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[45]

namento global empreendidos na América Latina, ....o


·v;
c
África e Ásia, duas podem ser destacadas, contudo, <n:l
....
I-

pela amplitude de seus projetes e pela visibilidade E


Q)

que obtiveram em sua execução. A primeira, ....


Q)
1.-
n:s
((Cocido y Crudo", foi organizada pelo curador
n:s
.D
norte-americano Dan Cameron, em 1994, para o _g
00
........
Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em -'
n:s
u
Madri, Espanha, incluindo trabalhos de artistas resi- _g

dentes em regiões as mais distantes para melhor


enfatizar os mecanismos de intercâmbio entre posi-
ções culturais diversas. Servindo-se criticamente,
para o título e como conceito-chave, da conhecida
expressão do antropólogo Claude Lévi-Strauss C<o
cru e o cozido"), a mostra acentuou os processos de
negociação entre percepções distintas da realidade e,
portanto, os mecanismos de transculturação implí-
citos nos processos de formação identitária. A
segunda, «When Latitudes Become Forms': foi orga-
nizada pelos curadores Philippe Vergne (francês
residente nos Estados Unidos), Douglas Fogle
(norte-americano) e Olukemi Ilesanmi (nigeriana
residente nos Estados Unidos), em 2003, para o
Walker Art Center, em Minneapolis, Estados Unidos.
Assumindo o caráter multicultural do mundo globa-
lizado, a exposição buscou explicitar, desde a sua
concepção (desenvolvida pelo conselho internacio-
nal da instituição, formado por representantes dos
vários continentes), as relações de poder que qual-
quer enunciado sobre a produção artística mundial

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(seja um discurso crítico, seja uma mostra) usual-
mente embute. Sugerindo a relativização do cânone
ocidental, de modo que outras histórias e práticas
híbridas da arte fossem igualmente consideradas, a
exposição incluiu trabalhos de artistas provenientes
de países de ((latitudes" diversas (Brasil, Japão, China,
Índia, Turquia, África do Sul e Estados Unidos),
fazendo deles metáforas dos muitos territórios que,
mediados por conflitos de interesses variados, con-
tribuem para a diversidade cultural do mundo.
No campo das bienais de arte- plataforma pri-
vilegiada dos embates contínuos de legitimação
simbólica, sempre resolvidos em convenções tão
amplamente aceitas quanto provisórias - também
houve, no período, mudanças que interrogaram os
cânones consagrados pela história da arte ocidental.
Criada ainda em 1983, a Bienal de Havana deixou
evidente, desde cedo, o desejo de contrapor ao dis-
curso eurocêntrico, então dominante nos principais
eventos do gênero, um discurso descentrado e livre
de hierarquias, feito de temporalidades e locais im-
possíveis de serem sintetizados de uma única pers-
pectiva. Nas suas várias edições desde então, são con-
vidados praticamente apenas artistas da América
~
Latina, do Caribe, da África, da Ásia e do Oriente Médio,
o
.........
c
1'0
instituindo espaços de troca entre produções que pouco
~
o
-o se têm podido confrontar e que, na sua maior parte,
1.-

1'0
quase não interessam ao geralmente restritivo e aco-
o
E modado circuito internacional de exposições. Esse

[46]

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[47]

impulso original foi multiplicado, nos anos seguintes, o


......
·v;
c
pela criação de várias outras bienais, em países tão <lO
I...
......
diferentes e distantes como, entre muitos outros, Egito
(Bienal do Cairo, criada em 1984), Turquia (Bienal de
Istambul, criada em 1987), Senegal (Bienal de Arte --
10
.o
Contemporânea Africana de Dakar, criada em 1992),
África do Sul (Bienal de Johanesburgo, criada em
1995), Coréia do Sul (Bienal de Gwangju, criada
-
_g
on
-u-
10
_g

. em 1995) e Brasil (Bienal do Mercosul, criada em


1997). A despeito de suas ênfases e objetivos distin-
tos, todas essas exposições apontam para a multipli-
cidade de posições cu~turais existentes e, sempre-
tender ocultar disputas, sQgerem a possibilidade de
sua convivência.
Também a Bienal de São Paulo, Brasil, incluiu,
como parte de sua 23ª edição (1996), uma mostra
intitulada «Universalis", a qual buscava refletir, a
pa~tir. de vários cantos do mundo e do tema central
do evento - a desmaterialização da arte no final do
milênio -, a produção artística contemporânea.
Provocados pelo curador geral da exposição - obra-
sileiro Nelson Aguilar -,sete outros curadores de
países diferentes selecionaram artistas de territórios
bem demarcados na cartografia política: Brasil,
África e Oceania, América do Norte, América Lati-
na, Ásia, Europa Ocidental e Europa Oriental. Con-
tudo, já em alguns dos títulos que deram aos agru-
pamentos feitos ('<o estranhamento do outro e a
perversão das influências ocidentais': «notas à mar-

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gem", «ouvindo os outros", «utopia, ironia, desloca-
mento") os organizadores da mostra explicitavam a
crítica a essas divisões geográficas rígidas, favorecendo,
em melhor acordo com o título geral da exposição (e
ampliando o seu sentido original), uma idéia de arte
que frustra identificações estritas com um espaço
físico e negocia formas transitórias de pertencimento.
Na edição seguinte da Bienal de São Paulo, em
1998, um formato semelhante foi adotado. A mostra
<<Roteiros ..." se propunha a exibir, a partir de pontos
de vista diversos, mas integrados pelas orientações do
curador geral do evento, o brasileiro Paulo Herken-
hoff, a criação contemporânea também de sete
regiões, definidas por critérios ora geográficos, ora
culturais, ora políticos, ora econômicos: África,
América Latina, Ásia, Canadá e Estados Unidos,
Europa, Oceania e Oriente Médio. Misturadas as
taxonomias usualmente empregadas para traçar fron-
teiras territoriais, destacou-se a fragilidade das demar-
cações identitárias fixas, intento expresso igualmente
na montagem da mostra, feita de espaços que, abertos
uns para os outros, confrontavam e articulavam tra-
balhos oriundos de regiões diferentes. Também no
seu «núcleo histórico", a 24ª edição da Bienal de São
VI
Paulo opôs-se aos parâmetros excludentes e compar-
o
........
c
10
timentados do circuito hegemônico da arte, ofere-
VI
o
-o cendo, com base no conceito ampliado de antropofa-
I.....
·v gia (tal como enunciado, na década de 1920, pelo
10
o
E modernista brasileiro Oswald de Andrade), uma

[48]

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[49]

estratégia de crítica a essas normas e de simultânea o


.......
·v;
proposição de diálogo entre culturas. Por meio de c
<lO
L.
.......
uma abordagem transdisciplinar, a curadoria da E
Q)

exposição ofereceu, em níveis diversos de complexi- Q)


.......
L.
10
dade e da perspectiva da formação cultural do Brasil,
reinterpretações sincréticas de idéias e valores assenta-
dos nos cânones artísticos globais. Sem pretender afir-
mar posições como alternativas definitivas a estereóti-
pos longamente cultivados, ela buscou tão-somente
(embora, por isso, tenha se afigurado como radical)
rever, sob a lente crítica da antropofagia, enunciados
estéticos e históricos que desconsideram a alteridade
ou a tratam apenas com condescendência.
Embora com periodicidade maior ( qüinqüe-
nal), a ''Documenta': realizada em Kassel, Alemanha,
é largamente considerada a mais influente exposição
mundial de arte contemporânea. Na sua 11a edição
(2002 ), a mostra veiculou, sem ambigüidade al-
guma, os posicionamentos simbólicos criados a par-
tir das respostas locais ao processo de globalização
em curso. Pela complexidade desses discursos - fru-
tos de embates criativos negociados e também d e
respostas a m ecanismos violentos de anulação de
diferen ças - , a mostra abrigou uma diversidade
grande de meios expressivos, os quais incluíam não
apenas trabalhos inequivocamente pertencentes ao
campo artístico, mas também, em decorrência da
necess id ade de expor estratégias ou processos de
transculturação, produtos híbridos ou pouco fre-

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nais que integram esses continentes, ou que estejam
situados em posições subordinadas ao processo de
globalização, encontram-se, com graus diferencia-
dos de con1plexidade, construções identitárias que,
embora por longo tempo tenham buscado afirn1ar-
se como totalizantes e naturais, têm sido instadas a
se reinventar na contemporaneidade. Houve, certa-
mente, uma idéia de Brasil que, formulada a partir
do que é definido como região Sudeste - cuja elite
longamente deteve o poder (político, econômico,
simbólico) de nacionalizar uma fala local-, por
várias décadas informou o reconhecimento, de
quem vive no país ou fora dele, daquilo que seria
especificamente nacional. No campo da visualidade,
contribuíram muito para essa construção identitária
hegemônica o movimento modernista de São Paulo
e, em n1enor medida, o do Rio de Janeiro, notada-
mente por meio das obras que, nas décadas de 191 O,
1920 e 1930, fizeram Anita Malfatti, Tarsila do Ama-
ral- cuja pintura empregava, como modelo de
representação, a noção de antropofagia proposta por
Oswald de Andrade- e Emiliano Di Cavalcanti. Em
uma cronologia esparsa e seletiva, também foram
importantes para a fixação de uma idéia do país no
VI
campo das artes visuais a constituição dos museus
o
..........
c
ro
de arte moderna daquelas duas cidades e do Museu
VI
o
-o
de Arte de São Paulo, nos finais da década de 1940; a
~
·c; criação da Bienal de São Paulo, em 1950; e a legiti-
ro
o
E mação crítica, nos dois decênios seguintes, do Con-

[52]

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[53]

cretismo e do Neoconcretismo. Como resultado, a o


......
·v;
produção artística proveniente da região Sudeste foi, c
.._
<CU
......
por f!1Uito tempo, reconhecida- no Brasil e no exte-
rior - como moderna e brasileira, enquanto as que
provinham de outros lugares do país eram rotuladas
de regionais- pouco mais que descrições etnológicas
do entorno humano e físico- ou assumidas como cu
u
regionalistas- subordinando práticas modernas ao .9
conceito de tradição. Em confronto ou em contraste
com o centro hegemônico do Brasil, essas produções
locais enunciavam e afirmavam idéias das o utras
regiões do país; idéias que eram menos catalogações
do real sensível do que constructos ficcionalizados
daquilo que faria esses espaços distintos dos demais
e a qualquer um outro irredutíveis.
A relativização da centralidade do d iscurso
«nacional" provocada pela globalização dos fluxos de
bens reais e simbólicos tem criado, entretanto, fissu-
ras tanto naquela noção compacta de Brasil - formu -
lada a partir de um território restrito - quanto nas
ficções ensimesmadas que as demais regiões, subor-
dinadas na enunciação da identidade do país, termi-
naram por criar de si. São muitos e descentrados os
canais de afirmação identitária existentes - operando
para dentro e para fora do Brasil - que criticam e
recriam, desde posições e espaços diversos, noções há
muito assentadas de uma suposta brasilidade, e que
desfazem, progressiva e conseqüentemente, as hierar-
quias simbólicas entre as regiões do país. Nesse sen-

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tido, é ilustrativo considerar como foi primeiro cons-
truída a identidade do Nordeste do Brasil- talvez a
mais insistentemente (auto)proclamada como regio-
nalista- e de que maneira, iniciando na década de
1990, a produção cultural ali surgida se legitima
como construtora ativa de outras idéias do país.
Idéias que não ambicionam representar hegemonica-
mente o Brasil, mas justamente afinnar, por sua
natureza híbrida e movente, a impossibilidade de, no
mundo contemporâneo, reconstruir uma tal hege-
monia a partir de um só canto e por muito tempo.
De início, é importante aclarar que, embora
possa, por vezes, parecer eterna ou natural aos bra-
sileiros, a idéia de Nordeste só é formulada no final
do século XIX. Como mostra Durval Muniz de Al-
buquerque Jr., sua origem remonta à reação política
ao desmantelamento das economias do açúcar e do
algodão e à busca de uma solução para a crise
enfrentada conjuntamente pelas províncias do
"Norte" brasileiro que delas dependiam. É somente
nesse momento que começa a ruir a percepção pro-
vincial então vigente e que se elabora um discurso
regionalista e nordestino, o qual se define e se
afirn1a não apenas en1 oposição ao seu outro mais
V\ próximo- o "Sul" cafeeiro-, mas também em rela-
o
"'""'
c ção a um passado de suposto bem-estar e harmonia.
C\1
V\
o É através desse discurso e das ações oficiais dele
-o
I....
·o derivadas que se demarca o espaço físico do que é o
C\1
o
E Nordeste e se conforma uma identidade cultural
[54]

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[55]

nordestina, a qual legitima e representa, simbolica-


mente, aquele espaço.
A cristalização dessa idéia de região se processa E
Q)

na primeira metade do século XX. Por .meio de en- Q)


-4.J
'-

-
10
saístas (Gilberto Freyre, Djacir Menezes), romancis-
10
..c
tas (Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Amé-
rico de Almeida, Rachel de Queiroz), músicos (Luiz
--o
on
......
10
u
Gonzaga, Jackson do Pandeiro) e pintores (Cícero ..9
Dias, Vicente do Rego Monteiro, Lula Cardoso Ayres,
Carybé), os habitantes daquele espaço descobrem e
articulam, a partir de influências portuguesas, afri-
canas, holandesas e indígenas, um legado de mitos,
paisagens, memórias e sentimentos que lhes seria
próprio e específico. Através do resgate seletivo do
que individualizaria aquele espaço- permeado, evi-
dentemente, por conflitos de classe, raça, gênero e
crença, e mediado pela presença da cultura moderna
européia-, essa variada produção inventa os códigos
de compreensão simbólica de uma comunidade e,
simultaneamente, a eles se conforma, adquirindo
um inequívoco caráter regionalista e fazendo com
que o Nordeste se perceba e se apresente como nor-
destino. Ainda que fisicamente dispersos e distintos
em quase tudo, os habitantes dos seus mais distantes
recantos constroem um lugar simbólico comum e
passam, gradualmente, a se imaginar como perten-
centes a uma comunidade única.
Um momento exemplar desse processo de
construção identitária é o Livro do Nordeste, organi-

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zado por Gilberto Freyre em 1925, no qual foram
inventariados, numa abordagem multidisciplinar,
os negócios, as artes plásticas, a arquitetura, a geo-
grafia, a música, o artesanato de rendas e vá rios
outros aspectos da região. Seu objetivo declarado,
contudo, não era o de apenas mapear e demarcar,
em diversas áreas temáticas, o especificamente nor-
destino; era também o de fixar a região como berço
da nacionalidade brasileira. A identidade nordestina
se conformaria, portanto, não apenas por diferen-
ciação ao que seria próprio das demais regiões do
país, mas também como guardiã das raízes culturais
da nação. Outro marco da constituição da idéia de um
espaço simbólico distinto foi a realização, em 1926, no
Recife, também sob a coordenação de Gilberto Freyre,
do 12 Congresso Regionalista do Nordeste, que tinha
como um de seus objetivos desenvolver o ((senti-
mento de unidade" da região em torno de suas tra-
dições. É nesse contexto que se faz inteligível o em-
bate, ainda naquela década, entre o Regionalismo
nordestino e o Modernismo paulista, no qual o se-
gundo- capitaneado por Mário de Andrade- é
acusado por Gilberto Freyre de propor a europeiza-
ção da cultura brasileira, e o primeiro busca fazer-se
Vl
notar como refúgio da «alma" e das <<reminiscên-
.o.......,
c
11:)
cias" do país, ameaçadas, supostamente, por um
Vl
o co nceito «apressado" de modernização. Ambos, de
"'
·u
~

11:)
fato, expressavam visões distintas do que seria edis-
o
E tinguia, então, o Brasil; oferecendo sedutores espe-

[56]

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[57]

lhos aos habitantes do país, disputavam a autoria da


arquitetura simbólica com que aqueles se diferença-
vam do que lhes era estrangeiro. E
Q)

Se os n1odernistas estenderam e emprestaram, Q)


......
'-
ro
apoiados na força real e simbólica da nascente in-
dústria, seu próprio olhar a todo o Brasil, a proposta
regionalista não foi por isso esquecida. Por sua força ro
u
imagética e apelo telúrico, esse ideário informou, .9

por muitas décadas, a maior parte da produção cul-


tural do Nordeste brasileiro, dotando-a de forte sen-
timento de localização no mundo, de identidade
entre pares e de alheamento voluntário a quase tudo
que passasse ao largo de suas referências mais caras
e próximas. E a essa forma identitária regionalista
está intimamente associado o conceito de tradicio-
nalismo, o qual expressa impermeabilidade a infor-
mações que violem ou questionem imagens e idéias
estabelecidas antes do tempo da memória - imagens
e idéias que são confirmadas e con1unicadas de uma a
outra geração.
Essa preocupação em fixar o que seria defini-
dor do caráter nordestino resultou, no campo das
artes plásticas, numa produção centrada na organi-
zação de paisagens, tipos e ícones que sintetizariam,
em termos visuais, o que é próprio à região. A cons-
trução dessa visualidade esteve desde o início, entre-
tanto, eivada de interpretações conflituosas sobre o
repertório de imagens que de fato distinguiriam
simbolicamente o Nordeste: se alguns artistas assú-

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miam, em seus trabalhos, um tom celebratório de
cores, formas e gentes encontráveis naquele espaço,
outros utilizavam imagens e cenas comuns da
região como índices das precárias condições de vida
de seus habitantes. O que aproxima essas visões dis-
tintas é o desejo de representar, através de uma
figuração fortemente apegada ao mundo sensível,
um território perfeitamente definido e avesso a
contaminações.
Embora criado apenas no início da década de
1970, por iniciativa do escritor paraibano Ariano
Suassuna, o Movimento Armorial é, talvez, a formu-
lação mais sofisticada do papel da tradição cultural
nordestina na invenção de uma idéia de Brasil.
Associando essa tradição às expressões simbólicas
populares- notadamente as de procedência serta-
neja, como a xilogravura, a literatura de cordel e a
música de viola, rabeca ou pífano -, o criador do
movimento tomava estas, também, como as mani-
festações mais autênticas da fusão das culturas indí-
genas, africanas e européias que teriam constituído
a identidade do país. Em razão disso, somente a cul-
tura popular, ou a erudita que com esta estivesse
identificada plenamente, seria capaz de afirmar, em
Vl
oposição à produção hegemônica então feita no
.o...._
c
ro
Sudeste- e, ainda com maior ênfase, à disseminada
Vl
o
\j
cultura de massas norte-americana -, uma cultura
~

Ti
ro
efetivamente brasileira. Havia, ademais, na proposta
o
E do Movimento Armorial (a qual abarcava artes vi-

[58]

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[59]

suais, dança, música, teatro, cinema literatura), uma o


.......
·v;
c
declarada associação entre a produção simbólica de <ro
'-
.......
extrato popular e uma representação "positiva)) da E
(!)

cultura do país, rechaçando qualquer articulação (!)


.......
'-
ro
com a cultura de massas como uma <<descaracteriza-
ção)) do que seria próprio do Brasil. Ocupados em
anotar e preservar a suposta essência do caráter ro
u
nacional encontrável em criações populares, era, _g

sobretudo, com a atenção voltada para o passado


que os integrantes do movimento buscavam deli-
near a identidade cultural do país.
Não causa estranheza, portanto, que o pro-
cesso de globalização tenha despertado, no Nor-
deste do Brasil- como etn tantas outras regiões
ciosas do caráter original e íntegro de sua tradição
cultural-, reações conservadoras e protecionistas,
temerosas de que o grande influxo de bens culturais
minasse a idéia, largamente partilhada pelos nor-
destinos, de pertencimento a uma comunidade.
Implícita nesse receio está a identificação desse pro-
cesso com a homogeneização de culturas locais sob
o manto unificador de um outro padrão cultural,
supostamente dominante e internacionalizado; em
termos mais específicos, há a associação daquele
processo à gradual substituição de valores centrais
da identidade nordestina por outros próprios a uma
formação cultural considerada estranha às raízes da
região. Ao evocar os mesmos fantasmas "modernis-
tas)) combatidos no passado, essa interpretação ter-

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mina, contudo, por escorar-se em uma concepção
simplista e "universalizante" do processo de globa-
lização, obscurecendo seu caráter crítico.
Embora o conta to e a colisão entre discursos e
imagens diversos sobre o mundo enfraqueçam a
solidez imaginada dos pactos identitários- abran-
jam esses nações ou espaços subnacionais- e te-
nham feito emergir conflitos longamente sublima-
dos, eles têm também gerado simultâneas respostas
de afirmação ou reconstrução de identidades e
desenvolvido um generalizado fascínio pela dife-
rença. O resultado mais paradoxal da intensificação
dos fluxos mundiais de informação tem sido, de
fato, o de frustrar expectativas de homogeneização
de culturas e de fraturar a noção, implícita no ideá-
rio modernista, de hierarquia rígida entre elas; fa-
miliariza o mundo, ao contrário, com um ambiente
cultural complexo e diversificado, instituidor de
u1na nova, conflituosa e an1pliada cartografia da
produção e circulação simbólicas. E é por ter de-
n1onstrado a insustentabilidade da idéia de univer-
salizar uma determinada formação cultural que se
pode argumentar que esse processo está intima-
Vl
mente associado ao abandono de uma noção mo-
o
......._
c
ctl
nolítica de Modernismo e ao reconhecimento seja
Vl
o
"O
da coexistência de diferentes modernismos, da
I....
"[)
ctl
emergência de contra-modernismos, ou mesmo do
o
E surgimento do Pós-Modernismo, o qual teria na

[60]

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[61]

crescente horizontalização das trocas culturais uma


de suas mais marcantes características.
Pensar a identidade nordestina nesse contexto E
Q)

requer, portanto, considerar as formas específicas de Q)


......
I....
co
reação/integração ao processo de globalização elabo-
radas pelos que produzem bens simbólicos no
Nordeste do Brasil; é deles a responsabilidade de pro-
blematizar e recriar sistemas de representação que
não mais conseguem exprimir os diversos modos de
vida afirmados pela comunidade da qual são parte.
Nesse sentido, é razoável argumentar que a idéia
mais madura do que seria a identidade cultural nor-
destina na contemporaneidade veio da música per-
nambucana feita a partir da década de 1990, princi-
palmente dos artistas ligados ao movimento
Mangue Beat. Foi justamente por sua fertilidade
estar associada à troca incessante de matéria orgâ-
nica entre o doce e o sal das águas do rio e do mar
que os manguezais do Recife foram tomados como
metáfora da necessidade de intensificar trocas cul-
turais entre as mais diversas tradições de vida; o iso-
lamento cultural, assim como o aterro dos estuários
dos rios- afirmavam claramente esses artistas-, só
bloqueia a permuta de diferenças de que se alimen-
tam os que vivem em ruas e mangues.
Com a imagem de "uma ante na parabólica
enfiada na lama", Chico Science & Nação Zumbi,
Mundo Livre S.A. e vários outros grupos ofereceram
sua articulada resposta àqueles que não viam alter-

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nativas el).tre a consagração a-histórica e folclori-
zada dos ritmos nordestinos nos modos em que
foram originalmente formulados e popularizados-
modos que embutiram, mas recalcaram, por muito
tempo, a hibridação de fontes musicais diversas- e a
adoção acrítica de ritmos e formas musicais criados
em outros lugares. Através da injeção de "um pouco
de energia na lama", mostraram ser possível conec-
tar o espaço fértil dos manguezais à rede mundial de
circulação de informações e tornaram visível a di-
versidade cultural da cidade. Em vez de causar a
morte de tradições musicais, o movimento Mangue
tornou-as contemporâneas dos que se ocupam da
criação artística local. De fato, há muito não se toca-
vam e ouviam tanto e tão longe alfaias de maracatu,
toadas de cavalo-marinho, a cadência hipnótica da
ciranda, cantos de embolada ou a batida quebrada
do coco, quer em formas que aludem às suas pri-
meiras manifestações na região, quer através do
hibridismo musical por esse movimento criado em
meados da década de 1990. Também DJ Dolores,
logo no início do decênio seguinte, inventou um
modo de ressignificar os recursos e os códigos da
música eletrônica contemporânea- eles próprios
Vl
baseados em procedimentos de apropriação e tra-
o
....._
c
ro dução e cujas origens transnacionais atam Europa:e
Vl
o
"O
Caribe- a partir de referências pertencentes à histó-
L.
"[j
ro
ria cultural nordestina (ritmos, cantos ou mesmo
o
E uma fala gravada de Gilberto Freyre sobre a natu-

[62]

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[63]

reza contraditória de sua obra e vida) e de referên-


cias claramente alusivas à sonoridade caribenha que
emana das «aparelhagens, usadas para animar bailes E
Q)
populares no Norte do Brasil. Q) ·
.......
'-
ro
A estratégia do movimento Mangue não é, con- -ro
..0
tudo, uma proposta apenas para a música ou desti- _g
on
-...
nada somente à renovação da cultura pernambu- -ro
u
cana, sendo, antes, uma postura ampla de criação. O _g

mangue é qualquer parte - um Local - , um ponto de


vista ou uma posição a partir da qual artistas fazem
e desfazem articulações com outras partes. Articu-
lações que geram os meios para a inserção global de
uma produção marcada pela diferença frente aos
códigos culturais hegemônicos (ressignificando-os
de modo original) e que escapa, por isso, a quais-
quer identificações com o que é derivativo ou exó-
tico. Se esses artistas são eventualmente incluídos
em um sistema de valoração patrimonial que possui
amplitude mundial e é controlado por empresas
(gravadoras, galerias, editoras) de países centrais,
tornam-se também agentes ativos, no Nordeste do
Brasil- no caso aqui tratado-, da reconstrução de
uma idéia de seu país e, ainda que de forma subor-
dinada, da cultura global, ass um indo o papel de
protagonistas do que Silviano Santiago chamou de
"cosmopolitismo do pobre".
A partir de memórias, materiais e procedimen-
tos fincados em suas experiências reais e imaginadas
de Nordeste- mas raramente, ao contrário do que

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ocorria ant~s, a partir de referências iconográficas -,
artistas visuais nordestinos, residentes ou não em
suas terras natais, também têm esboçado maneiras
próprias de lidar com o sombreamento dos limites
arbitrários de sistemas de representação simbólica,
criando discursos que continuamente trafegam
entre os vários espaços e tempos em que são insta-
dos a viver na contemporaneidade. Por n1eio de suas
obras, a cultura regionalista amolece e se redefine
como o conjunto de modos individuais de enunciar
embates e negociações entre lugares simbólicos
diversos que se comunicam e se tocam. A região
deixa gradualmente de ser um território «fechado",
sem que isso implique que seus artistas recusem o
cotidiano habitado em favor de uma afiliação a códi-
gos criados em outros espaços. O «livro" do Nordeste
passa, assim, a ser outro; sem abrir mão de rendas de
bilros e de maracatus, a idéia do que é ser nordes-
tino é agora tecida sobre um delicado e complexo
mapa de influências recíprocas e de negociações
com outras culturas.
Sem a intenção desmesurada de inventariar a
diversidade dessa produção, é possível, entretanto,
mencionar algumas operações exemplares de ressig-
Vl
nificação de uma linguagem «internacional" de artes
o
·...---
c
ro visuais desde o território que se convencionou cha-
Vl
o mar de Nordeste do Brasil. Operações que são, ao
"'·c;
'-
mesmo tempo, metáforas de um progressivo des-
ro
o
E manche de bordas entre campos de significação

[64]

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[65]

diferentes. Natural·de Santo Antônio de Jesus, no o


.......
·v;
recôncavo baiano, Marepe transportou um enorme c
<CO
I-
......
muro de sua cidade (dois metros de altura e seis de E
(])

extensão) para o prédio da Bienal de São Paulo, (])


.......
1-
Ctl
situado a quase dois mil quilômetros de distância.
co
..0
Sobre essa parede feita de tijolos e cimento, se desta- ..9
on
......
cava, em amarelo e azul, a propaganda de um antigo ~

Ctl
u
e conhecido armazém local - Comercial São Luís -, ..9
oferecendo ''tudo no mesmo lu gar pelo menor
preço". Apropriando-se de algo que já existia, o
artista se aproxima, nesse e em outros trabalhos, do
conceito de readymade, subvertendo, contudo, a
estratégia original de quem o criou, o francês Mar-
cel Duchamp: em vez de capturar, para o campo da
arte, objetos que lhe sejam indiferentes, Marepe
escolhe um pelo qual nutre afeto e que possui valor
simbólico em sua terra natal. Sem intenção irônica,
o slogan pintado no muro afirma, ademais, o
quanto o local está embebido de toda parte no
mundo contemporâneo.
A obra de Delson Uchôa, pintor alagoano, se
insere em tradições, se não conflitantes, com freqüên-
cia dispersas. É patente, em seus trabalhos, uma nego-
ciação constante entre as cores que o artista enxerga à
volta (iluminadas pelo sol do litoral do Nordeste) e
áquelas pelas quais é atraído em uma história seletiva
da arte. Essa vontade de mistura se expressa, também,
nas referências simbólicas que seus trabalhos car-
regam. Muitas das imagens que cria são devedoras de

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construçõe.s vernaculares originadas na região onde
mora e, igualmente de invenções visuais de procedên-
cia diversa, tais como o Construtivismo ou a Arte
Óptica. A afeição de Delson Uchôa pelo que é impuro
não estanca, todavia, com o desmonte de separações
rígidas entre produtos culturais. Desmanchando,
combinando e alargando pinturas já realizadas,
acresce novas matérias e gestos ao que resiste ao seu
impulso autofágico, em procedimento destrutivo que,
entretanto, cria novas imagens.
José Patrício, de Pernambuco, se utiliza de mi-
lhares de pedras de dominó para construir, a partir
de regras de encadeamento por ele definidas, exten-
sas estruturas de plástico sobre o chão. Atraído pelas
formas seqüenciais que articulam as pedras e pelos
atributos cromáticos e gráficos das instalações, o
observador deixa -se também encantar pelo fato de
estar diante de trabalhos feitos com objetos conhe-
cidos. A descoberta, após exame cuidadoso dessas
estruturas, de que as pedras de dominó estão soltas
sobre o piso, qualifica e muda, contudo, essa percep-
ção. O risco de um desmanche acidental das com-
plexas formas criadas- causado por um movimento
desatento ou brusco na sala onde estão montadas -
lll
introduz nos trabalhos um elemento de incerteza,
o
........
c
co provocando o receio da proximidade excessiva .
lll

-o
o Torna opaca, por isso, a familiaridade do material
.....
"(j
co
usado, ativando o interesse pelo rigor da unidade
o
E repetida.

[66]

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[67]

Por meio do corte, da dobra e da costura de


tecidos, o artista paraibano Martinho Patrício faz
confluírem, em vários trabalhos, o acetinado colo-
rido das cortinas dos cabarés de vila e as rendas que
enfeitam os altares de santos; os adereços de cores
vibrantes das festas populares de rua e os paramen-
tos usados em missas. Se já são por isso híbridas, as
formas criadas se aproximam ainda da tradiçã'o
construtiva da arte culta; não são, entretanto, formas
fixas ou rijas, cedendo ao vento e mesmo ao movi-
mento próximo de corpos. Deixando-se impregnar
pelo acento das coisas que o cercam em seu lugar de
origem, o artista promove o amolecimento da rigi-
dez conceituai daquela tradição por meio da malea-
bilidade da matéria eleita para uso. Atualiza e
expande, de maneira própria, o projeto neoconcreto
brasileiro, o qual buscava contrapor-se à exacerba-
ção racionalista da arte e torná -la algo perto da expe-
riência vivida.
Efrain Almeida, do Ceará, faz aquarelas e pe-
quenas esculturas que cava na madeira, quase sem-
pre de corpos despidos ou de seus fragmentos. Elas
parecem entregar sempre algo (ou a si mesmas) em
oferenda, assumindo um tom sedutor e confessional
que confunde erotismo e religiosidade e que evoca -
aproximando heresia e contrição- a relação confli-
tuosa entre a disponibilidade sobre o próprio corpo
e as interdições morais a que este é submetido.
Assemelhados, por vezes, aos ex-votos encontráveis

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nas igrejas católicas, os trabalhos de Efrain Almeida
não representam, contudo, a dor da carne. Tomando
a si mesmo como modelo de seus trabalhos, o artista
expressa, ao contrário, o desejo de uma realização
afetiva tão plena quanto improvável que alcance
algum dia. Inserida em uma tradição que negocia e
comenta a presença do corpo em espaços de conví-
vio e conflito (Body Art), sua obra se afirma, parado-
xalmente, por dar notícias do que nele é falta.
As diferenças que por ventura existam entre
esses trabalhos e os feitos em outros locais não se
devem, portanto, a questões ontológicas, mas aos
modos singulares com que seus criadores articulam
criticamente elementos de tradição- os que trazem
as marcas da história e da formação de um lugar- e
elementos de ruptura- os que expõem, o tempo
inteiro, a natureza contingente dos primeiros. São
diferenças que, ao invés de expressarem a naturaliza-
ção de repertórios simbólicos, resultam do contato
destes com outros repertórios distintos, afirmando o
caráter processual das formações identitárias. Os
trabalhos desses artistas- como os de muitos outros
aqui não mencionados- não oferecem, assim, uma
representação perfeitamente delineada do que é
ln
hoje o Nordeste, o que equivaleria a propor uma
o
..........
c
ro
identidade rígida para um espaço múltiplo e em
ln
o
\J
construção permanente. Dão visibilidade, entre-
~
·c;
ro
tanto, a proposições criativas que, embora marcadas
o
E pelo que é presente nos locais de onde se enunciam,

[68]

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[69]

terminam por destes desprender-se e, em trânsito


constante, alcançar ainda outros lugares e momen-
tos. São trabalhos que, cada qual a seu modo, fazem E
Q)

do Nordeste um território movente imerso numa Q)


......
lo...
C'Cl
temporalidade que se contrai e distende. São traba-
lhos críticos que desmontam a idéia de região com o
algo imutável e que reconstroem suas fronteiras como
espaços de trocas. São trabalhos que, ao constante-
mente reinventar formas de expressão e de vida, pare-
cem afirmar que não há son1ente um Nordeste, mas
muitos.
No início da década de 1970, Hélio Oiticica
disse que o Brasil não existia, sugerindo, é provável,
a dissolução de uma idéia hegemônica do país, a
qual iria efetivamente ocorrer, ainda que de forma
gradual e lenta, n as décadas seguintes. Talvez seja
possível dizer que o Nordeste do Brasil, co1no es-
paço de limites simbólicos definidos, tampouco
exista. Permanece, em todo caso, como repositário
d e símbolos, mi tos, técnicas, in1agens e procedi-
mentos que o confirmam como um partícipe da di-
versa, compl exa e impura herança cultural do
mundo. E se é pouco prudente tentar estabelecer os
contornos precisos de uma idéia de Nordeste no
mundo contemporâneo, pode-se afirmar, com
alguma segurança, que as distinções dicotômicas
presentes em debates travados na primeira metade
do século XX (tradição versus europeização, Regio-
nalismo versus Modernismo) não mais fazem sen -

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tido. As produções de seus artistas não buscam afir-
mar a identidade de um território com fronteiras
rígidas nem têm pretensões de nacionalizar o que é
falado de um lugar do país. Somadas, apenas par-
ticipam, de uma posição específica, dos embates
transculturais que a globalização ativa.

[+) [+] [+]

Vl
o
........
c
ro
Vl
o
"O
1....
"\j
ro
o
E

[70]

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referências e fontes

Ver os textos de Stuart Hall reunidos em Da


[p 9]
diáspora (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003 ),
em particular<~ questão multicultural,.
[p1 2]A crítica às visões essencialistas do conceito de
identidade é feita por Arjun Appadurai em Modern-
ity at Large (Minneapolis, University of Minnesota
Press, 1996); sobre o conceito de ((comunidades
imaginadas,, ver o trabalho seminal de Benedict
Anderson, Imagined Communities (Londres, Verso,
1991).
[p15] É Néstor Garcia Canclini quem chama a aten-
ção, em A globalização imaginada (São Paulo, Ilu-
minuras, 2003), para a proliferação de mecanismos
de mediação entre as culturas locais e a cultura
global.
[71]

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[p16] A coriceituaçãodas "zonas de contato" é encon-
trada no livro de Mary Louise Pratt, Imperial Eyes:
Travel Writing and Transculturation (Londres, Rout-
ledge, 1992), enquanto as desigualdades ali expres-
sas são discutidas por Nelly Richards no ensaio
"Postmodern decentrednesses and cultural peri-
phery: The disalignments and realignments of cul-
tural power", publicado em Gerardo Mosquera
( org.), Beyond the Fantastic: Contemporary Art Cri-
ticism from Latin America (Londres, Institute of
International VisualArts, 1995).
[p18]Gerardo Mosquera apresenta a idéia de "zonas
de silêncio" em "Some problems in transcultural
cura ting", texto incluído em Jean Fisher ( org.)
Global Visions Towards a New Internationalism in
the Visual Arts (Londres, Kala Press/Institute of
International Visual Arts, 1994).
(p19]A metáfora do ajiaco é formulada por Fernando
Ortíz em "Los factores humanos de la cubanidad",
publicado em Órbita de Fernando Ortíz (Havana,
Unión de Escritores y Artistas de Cuba, 1973). Já as
reservas que Gerardo Mosquera possui ao uso do con-
ceito de mestiçagem para o entendimento de proces-
sos de transculturação são explicitadas no texto
Vl
"Global islands", incluído em Okwui Enwezor et al.
o
..........
c:
ro
(orgs.), Creolité and Creolization: Documenta ll_Plat-
Vl
o
"O
form 3 (Ostfildern-Ruit, Hatje Cantz Publishers, 2003).
L.
"[j
ro
Sobre os conceitos de tradução e intradutibili-
[p21]
o
E dade, ver o influente ensaio de Sarat Maharaj, «<Per-

[72]

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[73]

fidious fidelity': The untranslatability of the other",


publicado na obra já mencionada de Jean Fisher.
Os diversos sentidos do termo "creoulização" e
[p25] E
Q)

o seu potencial cognitivo no mundo contemporâ- ....


Q)
1-.
ro
neo são apresentados na obra organizada por
ro
.a
Okwui Enwezor et al., já citada. _g
Oll
........
Para uma discussão original da diáspora afri-
[p27-8] ro
u
_g
cana, ver Paul Gilroy, O Atlântico negro (Rio de
Janeiro, Editora 34, 2001).
[p29]O termo "terceiro espaço" é exposto por Homi
K. Bhabha em O local da cultura (Belo Horizonte,
Editora UFMG, 1998), enquanto o conceito de
"entrelugar" é desenvolvido por Silviano Santiago
em Vale quanto pesa: Ensaios sobre questões político-
culturais (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982).
[p33]Como exemplos ·dessas outras narrativas, con-
sultar os textos reunidos nos livros organizados por
Jean Fisher, já indicado; Gerardo Mosquera e Jean
Fisher, Over Here. International Perspectives on Art
and Culture (Londres/Nova York, The MIT Press/
New Museun1 of Contemporary Art, 2004); e por
Gilane Tawadros, Changing States. Contemporary
Art and Ideas in an Era of Globalisation (Londres,
Institute of International Visual Arts, 2004).
Para críticas a "Magiciens de la Terre", ver os
[p36]
ensaios de Clémentine Deliss, "Free fall- Freeze
frame. Africa, exhibitions, artists", publicado em
Reesa Greenberg, Bruce W. Ferguson e Sandy
Nairme (orgs.), Thinking about Exhibitions (Lon-

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dres, Routledge, 1996), e de Yves Michaud, ((Docteur
explorateur, chef curateur", Les Cahiers du Musée
National d'Art Moderne (Paris, verão de 1989).
[p50JAna Letícia Fialho examina, em ((Mercado de
artes: Global e desigual", Trópico (http:/ /p. php. uol.
com.br/tropico/html/textos/255 1, 1.shl), a relativa
impermeabilidade do mercado ((internacional" de
artes para a produção visual brasileira.
[p53] A distinção conceituai entre o ccregional" e o
((regionalista" é observada por Anco Márcio Tenório
Vieira em (( Gilberto Freyre, leitor de Machado de
Assis", texto publicado em Elisalva Madruga Dantas
e Jomard Muniz de Britto (orgs.), Interpenetrações
do Brasil: Encontros & desencontros (João Pessoa,
Editora Universitária da UFPB, 2002).
O estudo de Durval Muniz de Albuquerque ]r.
[p54]
sobre a afirmação identitária do Nordeste brasileiro
se chama A invenção do Nordeste e outras artes
(Recife/São Paulo, Massangana/Cortez, 1999). Tam-
bém importante a esse respeito é o livro de Maura
Penna, O que faz ser nordestino (São Paulo, Cortez,
1992).
Al ém do trabalho organizado por Gilberto
[p56J
Freyre- O livro do Nordeste (Recife, Arquivo Pú-
Vl
o
blico Estadual, edição fac-similar, 1979) -,são escla-
.,_.,
c recedores os textos de Neroaldo Pontes de Azevedo,
1'0
Vl
o Modernismo e Regionalismo: Os anos 20 em Pernam-
"'
I...
·c;
1'0
buco (João Pessoa/Recife, Editora Universitária da
o
E UFPB/Editora Universitária da UFPE, 1996) e Anto-

[74]

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[75]

nio Dimas, "Um manifesto guloso", prefácio ao Ma-


nifesto regionalista de Gilberto Freyre (Recife, Mas-
sangana, 1996).
[p57]Sobre o conceito de "tradicionalismo cultural",
ver verbete correspondente em Teixeira Coelho,
~
..0
Dicionário crítico de política cultural (São Paulo, Ilu-
minuras, 1997). A ambígua construção da vis~ali­
dade "nordestina" é det~lhada por Durval Muniz de
-
..9
01)
~

~
u
..9
Albuquerque Jr. em sua obra mencionada acima.
Os pressupostos e as criações do Movimento
[p58]
Armorial são apresentados e analisados critica-
mente no estudo de Maria Thereza Didier, Emble-
mas da sagração armorial: Ariano Suassuna e o
Movimento Armorial (1970/1976) (Recife, Editora
Universitária da UFPE, 2000).
Sobre os conceitos de "diferentes modernis-
[p60]
mos", (( contra-mo d ern1smos
. " e "P os-
/ M o d ern1smo
. ",
consultar, respectivamente, Peter Nicholls, Mo -
dernisms. A Literary Cuide (Londres, Macmillan,
1995 ); H o mi K. Bhabha, obra já indicada; e Mike
Featherstone, O desmanche da cultura (São Paulo,
Studio Nobel, 1997).
Ver Caranguejos com Cérebro, manifesto do
[p62]
movimento Mangue assinado por Chico Science e
Fred Zero Quatro e reproduzido no encarte do pri-
meiro CD de Chico Science & Nação Zumbi, da
lama ao caos (Rio de Janeiro, Sony, 1995).
O conceito de "cosmopolitismo do pobre" é
[p63]
apresentado por Silviano Santiago em O cosmopoli-

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tismo do pobre: Crítica literária e crítica cultural
(Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004). Em sentido
semelhante, ver o conceito de "cosmopolitismos
periféricos'', desenvolvido por Angela Prysthon em
Cosmopolitismos periféricos: ensaios sobre moderni-
dade, pós-modernidade e Estudos Culturais na
América Latina (Recife, Bagaço, 2002) .
[p64]A diferenciação entre região "aberta" e região
"fechada" é feita por Marta Traba em Duas décadas
vulneráveis nas artes plásticas latino-americanas:
1950-1970 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977). A cons-
trução de un1a linguagem internacional de artes
visuais a partir de diferenças locais é discutida por
Gerardo Mosquera em «Spheres, cities, transitions.
International perspectives on art and culture", Art
Nexus n.54 (out de 2004).
A idéia de múltiplos Nordestes foi apresentada,
[p69]
em 1999, no evento multidisciplinar Nordestes, con-
cebido pelo Instituto de Cultura da Fundação
Joaquim Nabuco, Recife, e realizado no SESC-Pom-
péia, em São Paulo. A declaração de Hélio Oiticica
está contida no texto que ele elaborou para o catálogo
da exposição "Information", realizada no Museu de
Arte Moderna de Nova York (Mon1a), em 1970.

Vl
o
.,......,
c
cu
Vl
o
-o
I-
'[i
cu
o
E

[76]

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sugestões de livros e discos

A BIBLIOGRAF IA SOBRE as questões tratadas neste


livro tem sido ampliada, a partir do início da década
de 1990, em uma progressão que atesta a sua cres-
cente importância para o entendimento do mundo
contemporâneo.
Embora muitos títulos relevantes permaneçam
inéditos em português, alguns textos clássicos já foram
traduzidos, entre os quais os de Homi K. Bhabha, Nés-
tor Garcia Canclini, Paul Gilroy e Stuart Hall, já citados
como referências e que devem ser consultados pelos
interessados em aprofundar a relação entre globaliza-
ção e formação identitária.
Dentre os autores brasileiros que há mais tem-
po têm participado desse debate, destaca-se Silviano
Santiago, de quem foram mencionados dois impor-
[77]

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tantes-textos. Também o trabalho citado de Angela
Prysthon é uma contribuição relevante aos tópicos
discutidos. O estudo de Durval Muniz de Albu-
querque Jr. sobre a ((invenção" do Nordeste é uma
bem tecida e original crítica a visões essencialistas
de identidade. Todas essas obras estão indicadas na
seção anterior. Ainda que de acesso um pouco mais
restrito, é recomendável a pesquisa nos textos e nas
imagens publicados nos catálogos das exposições
comentadas, em particular, pela proximidade c?m o
ambiente cultural brasileiro, das 23ª e 24ª edições da
Bienal de São Paulo (1996 e 1998). Por fim, a audi-
ção dos discos de Chico Science & Nação Zumbi (da
lama ao caos e Afrociberdelia) e DJ Dolores (Contra-
ditório? e Aparelhagem) - além, se a disposição for
maior, dos registros do Mundo Livre S.A., Mestre
Ambrósio, Cordel do Fogo Encantado, entre outros
-é fundamental para o entendimento de como as
idéias de Nordeste e de Brasil estão sendo recons-
truídas por seus artistas.

Vl
o
..........
c
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...
·c;
ro
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E

[78]

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Você também pode gostar