Descrição do Caso
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Rafaela tinha 22 anos quando procurou pela terapia. Cursava o terceiro ano de um
curso de graduação e trabalhava com vendas. Morava com sua mãe, mas mantinha mais
contato com a irmã e com o pai, em função da loja desta irmã, onde os três trabalhavam.
Namorava há aproximadamente um ano.
Rafaela relatou ter feito psicoterapia durante dois anos, mas que não gostou, porque,
segundo ela, não contava tudo o que queria à psicoterapeuta, uma vez que sentia vergonha do
que ela iria pensar. Disse ainda que esperava que a psicoterapeuta adivinhasse o que ela
gostaria de falar, mas que ela nunca adivinhava. Diante desta verbalização da cliente, pôde-se
construir a hipótese inicial de que se em dois anos a cliente não formou um bom vínculo com a
psicoterapeuta anterior, ela poderia ter déficits em comportamentos de intimidade. A partir dos
comentários sobre a psicoterapia anterior, a psicoterapeuta “brincou” com a cliente com
objetivo de quebrar algumas regras pré-estabelecidas sobre o processo psicoterapêutico. A
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psicoterapeuta falou à cliente que ela também não tinha uma “bola de cristal” e, portanto,
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Nome fictício.
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A bola de cristal faz referência às adivinhações que eram realizadas por ciganos e bruxas
(aspecto cultural) e pode ser utilizada como analogia ao ato do terapeuta ter que adivinhar os
comportamentos privados do seu cliente.
também não poderia adivinhar o que a cliente gostaria de dizer. Através de um clima
descontraído, a psicoterapeuta procurou explicar que a cliente poderia lhe dizer tudo o que
quisesse e que isso facilitaria muito o processo psicoterapêutico.
História de Contingências
Os pais de Rafaela se separaram quando ela tinha 16 anos. Ela descreveu o episódio
como tendo sido premeditado por sua mãe, que teria surpreendido toda a família. Acreditava
que a mãe havia se preparado para a separação, pois estudou, arrumou um emprego e se
separou quando tinha condições de se manter sozinha. Por este motivo, Rafaela chamava a
mãe de “psicopata”, durante as sessões. Explicou que ela era muito próxima da mãe até a
separação, mas que desde então, elas nunca mais se falaram. O rompimento parecia ter sido
bastante brusco. Quando chegou à terapia, Rafaela morava com a mãe, mas mal se viam,
falavam-se por bilhetes e apenas o necessário (rotina da casa, pagamentos de contas).
Na mesma época da separação dos pais, Rafaela também rompeu bruscamente com
uma melhor amiga e com o namorado. A cliente descreveu ambos os rompimentos como tendo
acontecido de repente, sem que ela percebesse quaisquer sinais de mudança. Com a amiga,
estavam falando pela internet, pois esta havia se mudado para um estado distante, quando a
amiga começou a chamá-la de “sanguessuga” e a dizer que não agüentava mais seu mau-
humor e tantos problemas. Quanto ao ex-namorado, disse que ele havia se envolvido com
outra garota e que todos que freqüentavam o grupo da igreja, do qual eles faziam parte, já
sabiam. Portanto, em pouco tempo, a cliente perdeu vários reforçadores: a mãe, a melhor
amiga, o namorado e o grupo da igreja que freqüentava.
Após esses acontecimentos, Rafaela começou a ir a festas, beber, usar drogas e fazer
sexo ocasionalmente, apresentando comportamentos de risco. Quando entrou na faculdade,
disse não ter gostado das pessoas, pois eram mais velhas ou levavam tudo “muito a sério”.
Acabou trancando o curso, durante um ano, por não saber se era isso mesmo que queria.
Chamava este ano de “o ano da bagunça”. Quando retornou à faculdade, conheceu o atual
namorado. Ambos saíam e faziam “bagunça”, até que começaram a namorar e resolveram
deixar as festas de lado, para ficarem juntos.
Quando iniciou a psicoterapia, o namorado era o único contato mais íntimo de Rafaela.
Ela relatou ter sido ele quem a convenceu a procurar ajuda. Os outros poucos contatos que
tinha eram o pai e a irmã mais velha, com quem trabalhava. Ela descrevia as relações com a
família como extremamente aversivas. Dizia que não conseguia conversar com a irmã quando
não gostava de algo que ela fizesse. Quando percebia já estava gritando. Quanto ao pai, dizia
que ele só conversava com ela para cobrá-la sobre o que ela iria fazer no futuro.
Esta proposta permite entender o caso exposto sob a perspectiva de que a cliente
aprendeu a se comportar em função de uma história passada de reforçamento. Sua história de
contingências foi determinante para a aprendizagem de comportamentos como: dificuldade em
estabelecer metas (em relação ao seu futuro), agressividade verbal nos relacionamentos em
geral, comportamentos de risco (álcool, drogas e sexo promíscuo), sentimentos de tristeza,
abandono e fracasso.
Estes padrões de comportamento não são vistos como adequados do ponto de vista
cultural e, por isso, a cliente poderia ser considerada como apresentando um transtorno de
personalidade (Parker, Bolling, & Kohlenberg, 1998). Os Transtornos de Personalidade podem
ser caracterizados como um conjunto de comportamentos prejudiciais, tanto para o indivíduo
quanto para os que com ele convivem. A utilização de um referencial classificatório, por um
analista do comportamento, deveria ser baseada em aspectos funcionais, em que seriam
analisados os efeitos que eventos ambientais e comportamentais produzem entre si, com a
finalidade de modificar a relação entre as contingências que mantêm positivamente ou
negativamente os comportamentos prejudiciais. No entanto, a comunidade sócio-verbal
procura formas de “padronizar” e “categorizar” tais comportamentos.
Esses relatos estão de acordo com a hipótese inicial de que Rafaela não aprendeu a
estabelecer vínculos ao longo de sua vida, de modo que não apresentava comportamentos de
amizade e de intimidade.
Déficits em seu repertório social eram visíveis durante sua interação com a
psicoterapeuta. Alguns comportamentos de agressividade começaram a ser emitidos ao longo
das primeiras sessões, tendo sido considerados como CRB1s, isto é, comportamentos
clinicamente relevantes, que provavelmente eram emitidos no ambiente natural da cliente, com
outras pessoas. Por exemplo, Rafaela chegava às sessões com os olhos inchados, com a
expressão de raiva e dizia que não estava adiantando nada ir à psicoterapia, pois estava muito
mal. Dizia que não adiantava prestar atenção no que a psicoterapeuta lhe pedia, pois piorava e
não conseguia parar de pensar em seus problemas. Quando a psicoterapeuta lhe descrevia
como seu ambiente estava escasso de amizades, de reforçadores sociais, ela dizia não
precisar de amizades.
A partir dos relatos de Rafaela, parecia que quanto mais análises a psicoterapeuta
fazia, mais a cliente ficava sob controle das verbalizações da psicoterapeuta e não das
contingências naturais. Isto pode ser exemplificado, a partir da seguinte verbalização, em que a
cliente relatou não ter conseguido manter relações sexuais com o namorado, na semana
seguinte à intervenção da psicoterapeuta, quando esta a orientou a ficar sensível aos toques e
carícias do parceiro e às suas próprias sensações:
R- (Gritando e chorando) “Eu não consegui de novo! Desta vez foi pior, porque eu não
só não consegui me concentrar, como também fiquei lembrando o tempo todo de você e do
que você me falou!”
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Benzer é um comportamento religioso, no qual se acredita que a pessoa pode melhorar pela
imposição das mãos de outrem.
para o controle privado (sentimentos, desejos e pensamentos da própria criança). Este
aprendizado é bastante complexo, uma vez que demanda um grau de atenção e
comportamentos de validação dos pais em relação à criança, em detrimento de seus estados
de humor ou problemas pessoais. Quanto mais reforçadores positivos forem dados pelos pais
a respostas do tipo “eu X (sinto, quero, vejo)” maior será a probabilidade da criança construir
uma noção de Self. Estudos de caso de indivíduos borderline, indicam que estes não tiveram
pais que validaram seus comportamentos privados, seja por problemas pessoais, inclusive
transtornos psiquiátricos (Caballo, Gracia, López-Gollonet, & Bautista, 2008), seja por
centrarem-se exclusivamente em problemas conjugais, despendendo pouca atenção à criança
(Sousa, & Vandenberghe, 2005). Este parece ter sido o caso de Rafaela, diante das descrições
do conturbado relacionamento de seus pais.
Supõe-se que Rafaela aprendeu que o que sentia ou desejava estava sob o controle
dos outros e, diante da falta de estímulos públicos, sentia-se perdida e instável. Apresentava
comportamentos de desconfiança, ficava extremamente atenta a qualquer opinião da
psicoterapeuta sobre ela e não descrevia sentimentos, desejos, do que gostava e do que não
gostava, do que queria ou não. Estes comportamentos podem ser vistos como CRB1s e
indicam uma falta de controle privado sobre estímulos internos.
Como sempre esteve privada de relações mais próximas, de afeto e, portanto, de uma
comunidade verbal que questionasse seus comportamentos, provavelmente, Rafaela
desenvolveu um baixo autoconhecimento. Isto explicaria porque as análises feitas pela
psicoterapeuta ganhavam tanta importância e acabavam dificultando o processo, já que a
cliente ficava extremamente sob o controle do que havia ouvido. Por isso, a psicoterapeuta
optou por diminuir as análises pontuais durante as sessões e passou a utilizar procedimentos
de modelagem direta de comportamentos sociais e de afetividade. Este tipo de escolha pela
observação direta do comportamento, em detrimento de discussões de análises funcionais é
indicado por outros autores em intervenções com clientes borderline (Sousa, 2003). Portanto, a
primeira meta da terapia de Rafaela foi desenvolver comportamentos de autoconhecimento,
concomitantemente ao aumento do repertório social, para, posteriormente poderem chegar a
algumas tomadas de decisão em relação a outros aspectos de sua vida como a sua relação
com a família, trabalho, dentre outros.
- Deixar claro que a psicoterapeuta estava ali para ouvir os problemas da cliente, pois
ela só os contava ao namorado, queixando-se em alta freqüência. Diante de sua preocupação
em perdê-lo por queixar-se tanto, a psicoterapeuta começou a dizer que agora a cliente poderia
contar tudo a ela e deixar de apresentar este comportamento com ele.
Este tipo de cuidado com clientes borderline pode ser fundamental, diante do padrão
de comportamentos de insegurança em tornar-se íntimos. Comportamentos de cuidado podem
modelar comportamentos de segurança e também servir de modelo para a emissão de
comportamentos de intimidade.
2. Colocando-se à disposição
Em situações de crise é importante disponibilizar ajuda imediata, uma vez que o cliente
pode estar apresentado sentimentos negativos intensos. Sugere-se resolver o problema para o
cliente, entendendo-se que tal ajuda deve ser focal e relacionada ao momento da crise
(Aguilera, 1990 apud Freeman, & Fusco 2004).
Isto pode implicar em sessões fora dos horários combinados, em vários atendimentos
telefônicos e até mesmo em supervisão ou atendimento domiciliar. Deve-se avaliar a gravidade
da situação da crise, tendo uma idéia do perigo físico imediato para o cliente. Sugere-se que o
psicoterapeuta nunca vá sozinho até o cliente, pois em alguns casos de tentativa de suicídio,
por exemplo, pode implicar em risco de vida para o psicoterapeuta.
Uma vez que pessoas com diagnóstico de Borderline têm seus comportamentos pouco
controlados por estímulos privados, seria importante, promover contingências para que este
controle seja fortalecido. Para isso, Otero (2002) e Sousa (2003) sugerem alguns
procedimentos:
Uma postura do psicoterapeuta para lidar com esse tipo de preocupação seria aceitar
os sentimentos negativos do cliente e validá-los, ensinando-o a também aceitá-los. Um
enfoque que pode ser sugerido neste tipo de intervenção é a Terapia de Aceitação e
Comprometimento (ACT) proposta por Hayes (1987). Um exemplo no caso de Rafaela foi
quando verbalizou sentimentos de inveja e ciúmes, em relação ao casamento de sua cunhada
e ao nascimento do bebê de sua irmã. A psicoterapeuta validou esses sentimentos, dizendo
que diante destas situações era bastante natural que ocorressem. Explicou ainda que outras
pessoas, provavelmente também sentiriam os mesmos sentimentos negativos, mas que a
diferença entre ela e estas pessoas, era que ela os verbalizava, enquanto as outras pessoas os
escondiam para evitar prováveis punições. Este procedimento foi bastante semelhante ao
sugerido por Sousa (2003) ao relatar um caso clínico.
Esta autora também sugere que é preciso separar aquilo que o cliente sente ou pensa
daquilo que ele efetivamente faz. Considerando-se a ACT, o terapeuta poderia inclusive discutir
com o cliente sobre as possibilidades de controlar comportamentos públicos e a
impossibilidade de controlar sentimentos e pensamentos.
6. Validando a fala e verbalizações do tipo “EU X”, mas bloqueando a esquiva
Mesmo que o foco da psicoterapia seja a relação terapêutica, a finalidade última sempre
será que o cliente generalize os comportamentos aprendidos nesta relação para
contingências semelhantes em seu ambiente natural (Kohlenberg, & Tsai, 2001). Para isso, é
fundamental que o psicoterapeuta programe as generalizações dos comportamentos
aprendidos na terapia (Guilhardi, 2006).
REFERÊNCIAS
Beck, A. T., Freeman, A., Davis, D. D. (2005). Terapia Cognitiva dos Transtornos da
Caballo, V. E., Gracia, A., López-Gollonet, C., & Bautista, R. (2008). O transtorno da
Freeman, A., & Fusco, G.(2004). Tratando pacientes altamente reativos: diferenciando o
paciente em crise do paciente propenso a crises. In F.M. Dattilio, & A. Freeman (orgs.).
Estratégias Cognitivo- Comportamentais de Intervenção em Situações de Crise.(pp.38-62).
Porto Alegre: Artmed. (publicação original em 2000)
Guilhardi, H. J. (1999). Com que Contingências o Terapeuta Trabalha em sua Atuação Clínica?
In R. A. Banaco (org.). Sobre Comportamento e Cognição: Aspectos teóricos, metodológicos e
formação em análise do comportamento e terapia cognitivista, 1, 2ªed-R, (pp. 322-337). Santo
André, SP: ARBytes.
Kohlemberg, R. J., & Tsai, M. (2001). Psicoterapia Analítica Funcional. Trad. Org. R. R.
Kerbauy, Santo André, SP: ESETec. (publicação original em 1991)
Parker, C. R., Bolling, M. Y., & Kohlenberg, R. J. (1998). Operant Theory of Personality. D. F.
Barone, M. Hersen & V. B. Van Hasselt (orgs.), Advanced Personality. (pp. 155-171). New
York: Plenum.
Skinner, B.F. (2000). Ciência e Comportamento Humano. (J.C.Todorov, & R.Azzi, trads.). São
Paulo: Martins Fontes. Publicação original em 1953.