Você está na página 1de 18

artigos

SíNTtst N O V A F A S E
V. 19 N. 57 (1992):161-178.

A MODERNIDADE E SUA CRISE*

Marcelo Perine
Fac. Filosofia CES—SJ (BH)

Resumo: A modernidade e sua crhc. O autor parte de uma definição estritamente


filosófica dos conceitos de modernidade e de crise. E m seguida apresenta a
conjunção desses dois conceitos em três figuras históricas da modernidade: a
sociedade, o Estado e as ideologias políticas. Finalmente interpreta a crise da
modernidade como crise moral a partir da sua origem histórica e do projeto
filosófico que a inspirou.

Summani:MiHhrnityand i7s tnsís. The author begins with a strictly philosophical


definition of the concept of modernity and crisis. He then presents the
conjunctíon of these two concepts in three historical figures of modemity:
sociely, the State and political ideologies. He concludes inlerpreting the crisis
of modemity as a moral one from the point of view of its histórica! origin and
lhe philosophical background which inspired i l .

O
ConfiTência proiiunciadíi d e s e n v o l v i m e n t o d a p r e s e n t e e x p o s i ç ã o se d a r á s e g u n -
no Seminário Nacion.ll de
d o a s e g u i n t e o r d e m : dois conceitos, três figuras, uma hi-
Filosofia e Ciência Política
promovido pela Universi- pótese. A o r d e m das r a z õ e s e x i g e q u e e u c o m e c e pelos
dade de Caxias do Sul. no
conceitos d e modernidade e d e crise, p o i s é a sua u n i ã o q u e d e -
dia 7 dc junho de I W l ,
l i m i t a o c a m p o n o i n t e r i o r d o q u a l se d e s e n h a m as f i g u r a s d a
sociedade, d o Estado e das ideologias m o d e r n a s . Essas três f i g u r a s
serão, primeiro, apresentadas como figuras da crise na
m o d e r n i d a d e para, e m seguida, serem compreendidas, não
explicadas, a partir d e u m a h i p ó t e s e g e r a l sobre a crise da

Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992 \ 161


m o d e r n i d a d e . Se a h i p ó t e s e , n o f i n a l , se m o s t r a r consistente, ela
terá s i d o a c o n f i r m a ç ã o d e u m a tese d e f u n d o d e t o d a esta ex-
p o s i ç ã o , a ser e n u n c i a d a o p o r t u n a m e n t e .

Esta o r d e m d e r a z õ e s seria, t a l v e z , d e s n e c e s s á r i a se c o m os
conceitos d e m o d e r n i d a d e e d e crise n ã o se passasse o q u e se
passou c o m o conceito de tabu. Sabemos q u e a i n t r o d u ç ã o desta
p a l a v r a polinésia n o v o c a b u l á r i o inglês, e m f i n s d o s é c u l o X V I I I
e p r i n c í p i o s d o s é c u l o X I X , deve-se às v i a g e n s d o c a p i t ã o C o o k .
Os m a r i n h e i r o s ingleses, e n t ã o a s s o m b r a d o s c o m os c o s t u m e s
sexuais d o s polinéstos, f i c a r a m a i n d a m a i s p e r p l e x o s ao consta-
t a r e m o contraste entre o l a x i s m o sexual e a p r o i b i ç ã o r i g o r o s a
d e h o m e n s e m u l h e r e s t o m a r e m refeições j u n t o s . Q u a n d o p e d i -
r a m e x p l i c a ç õ e s para o f a t o , d i s s e r a m - l h e s q u e esta prática era
tabu. E q u a n d o p e r g u n t a r a m o q u e q u e r i a d i z e r tabu, as e x p l i -
c a ç õ e s d o s p o l i n é s i o s f o r a m m u i t o p o u c o esclarecedoras para os
a t ô n i t o s ingleses. O fato d e q u e a p a r t i r d a í os a n t r o p ó l o g o s
t e n h a m t e n t a d o o b s t i n a d a m e n t e f o r m u l a r a q u i l o q u e os m a r i -
n h e i r o s ingleses n ã o c o n s e g u i r a m d o s i n f o r m a n t e s n a t i v o s , a
saber, u m a resposta inteligível às suas p e r g u n t a s , sugere q u e os
próprios nativos não entendiam a palavra que estavam usando.
Esta h i p ó t e s e , s e g u n d o A l a s d a i r M a c l n t y r e , é c o r r o b o r a d a pela
f a c i l i d a d e c o m q u e , c i n q ü e n t a anos m a i s t a r d e , f o r a m a b o l i d o s
os tabus n o Havaí, assim c o m o pela falta de c o n s e q ü ê n c i a s sociais
da sua a b o l i ç ã o ' . Palavras c o m o m o d e r n i d a d e e crise p o d e m 1. C f . M A C I N T Y R E , A . ,
estar passando p o r a l g o semelhante. T o d o s as u s a m c o m o u m a Afti-r Virlue. A Studi/ in
Moral Tlwoiy. 2nd, cdition,
e s p é c i e de x i b o l e t e , mas o seu s i g n i f i c a d o t o r n o u - s e d e tal m o d o
London, Duckworth, 1985,
indecifrável e m certas d i s c u s s õ e s c o n t e m p o r â n e a s , q u e p o d e - p, 111.
m o s c o n s i d e r á - l a s quase c o m o u m tabu.

Dois conceitos
Ehias o b s e r v a ç õ e s se i m p õ e m l o g o d e início ao t r a t a r m o s d e nos
e n t e n d e r sobre o q u e e n t e n d e m o s p o r m o d e r n i d a d e . E m p r i -
m e i r o l u g a r , apenas para l e m b r a r a l g o q u e , p o r ser tão s a b i d o ,
m u i t a s vezes se esquece, e t i m o l o g i c a m e n t e " m o d e r n i d a d e " v e m
d o a d v é r b i o l a t i n o modo, q u e s i g n i f i c a " h á p o u c o " , "recente-
mente". E m seguida, é preciso dizer que o conceito de
modernidade a partir d o qual refletiremos aqui foi definido,
n u m a p e r s p e c t i v a e s t r i t a m e n t e filosófica, p o r H e n r i q u e d e L i m a
V a z e m u m t e x t o sobre " R e l i g i ã o e M o d e r n i d a d e F i l o s ó f i c a " ,
p u b l i c a d o r e c e n t e m e n t e nesta revista^. A p e r s p e c t i v a da 2 Cf. L I M A V A Z , H . C ,
"Religião e Modernidade
c o n c e i t u a ç ã o é, p o r t a n t o , a n t e r i o r à c a r a c t e r i z a ç ã o d e s c r i t i v a das Filosófica", Sinifse Nova
o u t r a s f o r m a s d e saber q u e se i n t e r e s s a m p e l o conceito o u p o r Fase. V. 18 n. 53 (1991):147-
165.
a q u i l o q u e ele t r a d u z .

162 I Síntese Nova Fase, v. 19. n. 57, 1992


Se a idéia d e m o d e r n i d a d e , pensada filosófica m e n t e , n ã o fosse,
c o m o v e r e m o s q u e é, c o r r e l a t i v a à f o r m a ç ã o d e u m a c o n s c i ê n c i a
histórica q u e concebe o e x e r c í c i o d o f i l o s o f a r c o m o a t o d e o r d e -
nar e j u l g a r o t e m p o , e se, p o r t a n t o , n ã o coincidisse c o m o apa-
r e c i m e n t o d e u m a c o n s c i ê n c i a historiadora, p o d e r í a m o s d i z e r q u e
H e n r i q u e V a z n o s descreve, ao estabelecer u m a e q u i v a l ê n c i a
c o n c e i t u a i entre m o d e r n i d a d e e f i l o s o f i a , a história d a idéia d e
história. C o m efeito, f o i a t r a n s p o s i ç ã o d a lógica d o idêntico
p a r a a dialética d o i d ê n t i c o e d o d i f e r e n t e q u e fez c o m q u e o
agora d o t e m p o se revestisse d e u m a e s t r u t u r a a x i o l ó g i c a capaz
d e c o n f e r i r u m a dignidade ao tempo presente, q u e desloca a p r i -
m a z i a d o antigo e e r i g e o atual e m instância n o r m a t i v a d e u m
passado n a r r a d o s e g u n d o a e s t r u t u r a s i m b ó l i c a r e p e t i t i v a d o
m e s m o , c o n h e c i d a c o m o mito. N e s t e s e n t i d o , pode-se d i z e r q u e
o m i t o , c o m o e s t r u t u r a n a r r a t i v o - r e p r e s e n t a t i v a d o t e m p o , s ó se
revela c o m o tal a u m a o u t r a f o r m a d e representar o t e m p o q u e ,
s i t u a d a n o presente d a reflexão, p o d e c o n f e r i r ao m e s m o "a d i g -
n i d a d e d o novo q u e a d v é m ao t e m p o c o m o d i f e r e n c i a ç ã o q u a -
3. cf, L I M A V A Z , H . c . i t r f . l i t a t i v a na i d e n t i d a d e d o seu m o n ó t o n o f l u i r " ^ . O conceito, n ã o
" ' ' ^•'^ o t e r m o , d e m o d e r n i d a d e , e n t e n d i d o c o m o categoria d e l e i t u r a
d o t e m p o histórico, s u r g i u c o m o n a s c i m e n t o d a f i l o s o f i a nas
c o l ô n i a s jônicas, p o r v o l t a d o s é c u l o V I a . C , q u a n d o passou a
o c u p a r o c e n t r o s i m b ó l i c o d a civilização grega o lógos d e m o n s -
trativo, no qual o tempo não é mais representado de maneira
anacrônica, c o m o n o m i t o , m a s d e m a n e i r a diacrônica, a p a r t i r d o
m i r a n t e p r i v i l e g i a d o d o modo t e m p o r a l , isto é, d o agora. A s s i m ,
ao c i c l o d a nossa m o d e r n i d a d e , c h a m a d o p l e o n a s t i c a m e n t e p o r
H e n r i q u e V a z d e " m o d e r n i d a d e m o d e r n a " , q u e já n ã o é t ã o
m o d e r n a q u a n t o m u i t o s n ã o p e n s a m , p o i s surge c o m os p r i m e i -
ros l u s t r o s d o s é c u l o X V I I , d e v e m o s s o m a r o u t r o s v i n t e e d o i s
s é c u l o s se q u i s e r m o s r e c o n s t r u i r a sua l i n h a g e m c o m p l e t a .

Portanto, segundo a perspectiva filosófica, o conceito de


m o d e r n i d a d e s i g n i f i c a "a r e e s t r u t u r a ç ã o modal na r e p r e s e n t a ç ã o
do t e m p o , e m q u e este passa a ser r e p r e s e n t a d o c o m o u m a
s u c e s s ã o d e modos o u a t u a l i d a d e s , c o n s t i t u i n d o s e g m e n t o s t e m -
p o r a i s p r i v i l e g i a d o s pela f o r m a d e R a z ã o q u e neles se exerce.
Nesse s e n t i d o , o t e m p o é v i v i d o c o m o p r o p r i a m e n t e histórico e
nele a l g u m a coisa acontece q u e p o d e ser c h a m a d a q u a l i t a t i v a -
4, id- ihid.. p, 15L m e n t e moderna"*. P o r m o d e r n i d a d e m o d e r n a , entende-se a q u i
uma nova revolução no centro d o universo simbólico da c i v i l i -
z a ç ã o o c i d e n t a l , desencadeada p o r u m a n o v a relação d o h o -
mem c o m o t e m p o no ato de filosofar, i n a u g u r a n d o u m n o v o
modo o u u m n o v o agora na c a p t a ç ã o d o t e m p o pela f i l o s o f i a . A
data de nascimento da m o d e r n i d a d e m o d e r n a é fixada p o r
H e n r i q u e V a z e m 1629, ano e m q u e Descartes escreveu as Regulae

Síntese Nova Fase, v. 19. n. 57, 1992 \ 163 |


ad directionem ingenii, e m b o r a estas só t e n h a m s i d o p u b h c a d a s
d e p o i s da m o r t e d o filósofo. Esse n o v o modo p o d e ser caracte-
rizado pela s u b s t i t u i ç ã o d a e s t r u t u r a onto-teológica p o r u m a es-
t r u t u r a onto-antropológica na relação da f i l o s o f i a c o m o t e m p o .
Esta s u b s t i t u i ç ã o cria " u m t i p o d e m o d e r n i d a d e até e n t ã o iné-
d i t o na nossa 'civilização filosófica', ao o p e r a r a i m a n e n t i z a ç ã o
n o p r ó p r i o sujeito d o a t o d e f i l o s o f a r , d o f u n d a m e n t o q u e c o n -
fere a esse m e s m o ato seu privilégio n o t e m p o . Desta sorte, a
e s t r u t u r a f u n d a n t e desse ato — o u a e s t r u t u r a d o ' E u p e n s o '
(Co^íff) c o m o p r i n c í p i o d o d i s c u r s o filosófico — avoca para si
o privilégio d e u m começo a b s o l u t o o u da s u p r a s s u n ç ã o d o t e m -
p o — a n u l a ç ã o d o t e m p o p e l o conceito, d i z H e g e l — n o agora
p r i v i l e g i a d o d o saber f i l o s ó f i c o " \ O abalo s í s m i c o p r o v o c a d o
pela i n v e r s ã o cartesiana será p o s t e r i o r m e n t e f o r m u l a d o e m ter-
m o s d e " r e v o l u ç ã o c o p e r n i c a n a " na r e p r e s e n t a ç ã o d o m u n d o ,
por Kant.

0 ciclo da m o d e r n i d a d e m o d e r n a v a i e n c o n t r a r d u a s d e suas
m a i o r e s e x p r e s s õ e s e m d o i s p e n s a d o r e s da v i r a d a d o nosso
s é c u l o , a saber, N i e t z s c h e e W e b e r , os q u a i s , j u n t o s , nos p r o p o r -
c i o n a m a chave teórica das a r t i c u l a ç õ e s da o r d e m social c o n -
t e m p o r â n e a , j u s t a m e n t e p o r t r a ç a r e m c o m clareza e e m g r a n d e
escala a p a i s a g e m s o c i a l m o d e r n a . O m é r i t o h i s t ó r i c o d e
N i e t z s c h e f o i ter expresso, c o m a clareza a n t e c i p a t ó r i a q u e re-
veste o seu i r r a c i o n a l i s m o profético, q u e o s o l i p s i s m o m o r a l
seria a única saída, se é q u e há u m a , para o i n d i v i d u a l i s m o q u e
se t o r n o u u m a e s p é c i e d e l o g o m a r c a d o esquema c o n c e i t u a i da
m o d e r n i d a d e , t a n t o n a s u a v e r s ã o l i b e r a l , c o m o na s u a
maquiagem socializada. Na verdade, o pseudoconceito
n i e t z s c h i a n o d e " s u p e r - h o m e m " representa a última t e n t a t i v a ,
p o r p a r t e d o i n d i v i d u a l i s m o , d e e v i t a r suas p r ó p r i a s conse-
qüências''. A g r a n d e z a d e W e b e r , reconhecida na prática, e m b o -
ra negada na teoria, pelos p r ó p r i o s m a r x i s t a s , consiste e m ter
levado a u m alto grau de maturidade o instrumento privilegia-
d o d e a u t o c o m p r e e n s ã o da sociedade m o d e r n a , a saber, a soci-
o l o g i a , p r o p o r c i o n a n d o a s s i m , m a l g r a d o o seu fracasso e até
m e s m o p o r causa d e l e , u m a chave d e c o m p r e e n s ã o d e boa p a r t e
da é p o c a m o d e r n a .

Q u a n t o ao conceito d e crise. P a u l R i c o e u r teve a l u c i d e z d e


a f i r m a r q u e a resposta à p e r g u n t a pela crise q u e v i v e m o s hoje
d e p e n d e d o s e n t i d o que d a m o s ao conceito d e m o d e r n i d a d e ,
p o i s é a p a r t i r dele q u e p o d e r e m o s r e s p o n d e r a u m a o u t r a
p e r g u n t a sobre se a m o d e r n i d a d e é u m f e n ô m e n o ú n i c o q u e
e x c l u i q u a l q u e r p o s s i b i l i d a d e d e r e t o r n o , o u se estamos d e n t r o
d e u m a crise própria d a m o d e r n i d a d e ^ . A resposta d e R i c o e u r
se e s b o ç a e m u m a r e f l e x ã o a p a r t i r d e a l g u n s conceitos " r e g i o -

1 164 I Síntese Nova Fase, v. 19. n. 57. 1992


n a i s " d e crise, e m busca d e u m critério para u m conceito " m o -
d e r n o " d e crise, passando pela análise d o s critérios para o esta-
b e l e c i m e n t o d e u m c o n c e i t o d e crise " g e n e r a l i z a d a " . N ã o v o u
reconstruir aqui o desenvolvimento metódico da reflexão
r i c o e u r i a n a . I m p o r t a , c o n t u d o , q u e nos e n t e n d a m o s sobre u m
conceito d e crise, d e m o d o a n ã o c o r r e r m o s o risco d e nos refe-
r i r m o s t a m b é m a ele c o m o a u m tabu.

A análise d e a l g u n s conceitos r e g i o n a i s f>èrmite f o r m u l a r a lista


das crises d a m o d e r n i d a d e : crise d o l i b e r a l i s m o e c o n ô m i c o , c r i -
se d o s f u n d a m e n t o s d o saber, crise d e l e g i t i m a ç ã o d o p o d e r ,
crise d a i d e n t i d a d e da h u m a n i d a d e , crise d o equilíbrio e d a
i n t e g r a ç ã o d o c o r p o social, e deve-se acrescentar a i n d a , u m a
vez que o a r t i g o d e R i c o e u r é d e 1987, crise d o socialismo real.
E m b o r a g e n e r a l i z á v e i s , esses conceitos r e g i o n a i s n ã o c o i n c i d e m ,
d e m o d o q u e u m a a p r o x i m a ç ã o holística permanece i n d i r e t a e
i n c o m p l e t a . S e g u n d o Ricoeur, a p o n t e sobre o a b i s m o q u e se
abre e n t r e os d e s p a r a t a d o s conceitos d e crise a n t e r i o r m e n t e
elencados e u m conceito i n d i f e r e n c i a d o q u e vê na crise u m
c a m i n h o humano cujo n ú c l e o está n o c o n f r o n t o entre passado e
f u t u r o , n o processo d o d e v i r da pessoa, d e v e ser b u s c a d o n o
8. O nexo entro tem- n e x o entre t e m p o r a l i d a d e e crise". A a s s o c i a ç ã o e n t r e crise e
poralidade e crise como t e m p o r a l i d a d e , t r a n s f e r i d a para o p l a n o da c o n s c i ê n c i a históri-
i-slruturíi ti-mporal do devir
da pessoa loi olatMirado por ca, revela u m a estrutura u n i v e r s a l e, ao m e s m o t e m p o , d e t e r m i n a -
E r i c W e i l de m a n e i r a d a , apta a fornecer u m conceito de crise que caracterize adequada-
paradigmática na categoria
da "personalidade". Ver mente a m o d e r n i d a d e . T a l e s t r u t u r a , s e g u n d o Ricoeur, é discutida
/,<>i;fifuc l/c Ia Philosopliii-, p o r Koselleck no seu l i v r o Futuro fjasstiilo: uma semântica das épocas
lèmv. éd., Paris, Vrin, W 4 ,
p. 283.317.
históricas'*, ao analisar, à l u z d o s d o i s transcendentais d a c o n s c i ê n -
cia histórica, isto é, a espera e a experiência, os sucessivos topoi
9. Apiid R I C O E U R , P., ari. nos q u a i s ela se e n c a r n o u . O r a , a relação entre espera e e x p e r i -
cii.. p. % .
ê n c i a , e n q u a n t o transcendentais d a c o n s c i ê n c i a histórica, t o r -
n o u - s e crítica no t e m p o da Ilustração, justamente pela
radicalização d o n o v o centro o r d e n a d o r e julgador d o t e m p o
histórico a p a r t i r d o sujeito pensante. A s s i m , o conceito g e r a l d e
crise, e x t r a í d o p o r Ricoeur, dessa n o v a r e l a ç ã o d o h o m e m c o m
o t e m p o , p o d e ser f o r m u l a d o nos seguintes t e r m o s : " Q u a n d o o
e s p a ç o da e x p e r i ê n c i a se r e s t r i n g e p o r u m g e r a l r e p ú d i o da
t r a d i ç ã o e d e toda h e r a n ç a e o h o r i z o n t e d a espera se retira para
u m f u t u r o s e m p r e m a i s v a g o e i n d i s t i n t o q u e , d o r a v a n t e , só é
p o v o a d o pelas u t o p i a s o u , antes, pelas ' u c r o n i a s ' , sem incidên-
cia sobre o c u r s o e f e t i v o da história, e n t ã o a t e n s ã o entre expe-
riência e espera torna-se r u p t u r a , cisma... A crise é a p a t o l o g i a
d o processo d e t e m p o r a l i z a ç ã o da história: ela consiste n u m a
10. Id. ihid.. p. 97. d i s f u n ç ã o da r e l a ç ã o n o r m a l entre espera e e x p e r i ê n c i a " ' " .

A t e n t a t i v a d e f o r m u l a r u m critério p a r a u m conceito " m o d e r -


n o " d e crise esbarra na m u l t i p l i c i d a d e de interpretações

Síntese Nova Fase, u. 19. n. 57, 1992 \ 165


c o n f l i t a n t e s d a m o d e r n i d a d e , i l u s t r a d a pelos n o m e s d e L o u i s
D u m o n t , A d o r n o e H o r k h e i m e r , Nietzsche, Weber e Heidegger.
A r a z ã o d o fracasso e d o c o n f l i t o dessas i n t e r p r e t a ç õ e s está,
m u i t o p r o v a v e l m e n t e , n o f a t o d e a nossa é p o c a n ã o se d e i x a r
d e f i n i r p o r u m a única i d e o l o g i a . Para Ricoeur, " o q u e parece
m e l h o r caracterizar a crise d a nossa é p o c a é, d e u m l a d o , a falta
de u m consenso n u m a sociedade d i v i d i d a entre tradição,
modernidade e pós-modernidade; de outro, e mais gravemente,
o regresso g e r a l das c o n v i c ç õ e s , a s s i m c o m o a d i m i n u i ç ã o da
c a p a c i d a d e d e e m p e n h o q u e esse regresso c o m p o r t a o u , o q u e
é o m e s m o , a r e t i r a d a g e r a l d o s a g r a d o , e n t e n d i d o seja c o m o
s a g r a d o v e r t i c a l ( r e l i g i o s i d a d e e m s e n t i d o lato) seja c o m o sagra-
d o h o r i z o n t a l (política e m s e n t i d o l a t o ) " " . i i . u. iHd., p, loi.

V o l t a r e i , n o f i n a l , às sugestivas p o s i ç õ e s d e H e n r i q u e V a z e d e
Paul Ricoeur sobre os conceitos d e m o d e r n i d a d e e d e crise. Passo
agora a caracterizar, b r e v e m e n t e , três f i g u r a s nas q u a i s esses
conceitos encontram-se não só u n i d o s , mas e m p r o f u n d a
interação.

Três figuras

A sociedade moderna está e m crise. A a f i r m a ç ã o t o m o u - s e t ã o


b a n a l q u e já n ã o nos d a m o s conta d o seu alcance, sequer, t a l v e z ,
d o seu s i g n i f i c a d o . M a i s u m a vez se i m p õ e a necessidade d e
nos e n t e n d e r m o s sobre o q u e e n t e n d e m o s p o r sociedade m o -
derna.

Se c o n c o r d a r m o s q u e t o d a sociedade h u m a n a c o n s t i t u i u m a
c o m u n i d a d e d e t r a b a l h o , e q u e o t r a b a l h o é, f u n d a m e n t a l m e n t e ,
a luta d o g r u p o c o m a natureza, poderemos avançar u m pouco
e a f i r m a r q u e a sociedade m o d e r n a n ã o só é u m a c o m u n i d a d e
d e t r a b a l h o , mas se c o m p r e e n d e e se o r g a n i z a e m vista d e u m a
l u t a p r o g r e s s i v a c o m a n a t u r e z a e x t e r i o r . A passagem d e u m a
luta defensiva a u m a f o r m a progressiva de luta, assim c o m o a
i n t e r p r e t a ç ã o consciente das r e l a ç õ e s d o h o m e m c o m a n a t u r e z a
nos t e r m o s dessa l u t a , e, f i n a l m e n t e , a o r g a n i z a ç ã o técnico-racio-
n a l ( n o s e n t i d o w e b e r i a n o d o t e r m o ) d o t r a b a l h o social c o n s t i -
t u e m os três e l e m e n t o s q u e j u s t i f i c a m a a p l i c a ç ã o d o a d j e t i v o
moderno ao s u b s t a n t i v o sociedade. Seria d e m a s i a d o l o n g o desen-
v o l v e r a q u i a e v i d ê n c i a d e tais a f i r m a ç õ e s . R e m e t o às p e n e t r a n -
12, Cf. W E I L , E., Fihsofia
tes a n á l i s e s d o m e c a n i s m o social feitas p o r Eric W e i l na sua Polilka, trad. de M. Perine,
Filosofia Polüica^^. T o d a v i a , se q u i s e r m o s r e s u m i r as a n á l i s e s C o l e ç ã o Filosofia-Tradu-
ções, São Paulo, Loyola,
w e i l i a n a s sob a f o r m a d e u m e n u n c i a d o tético, p o d e m o s d i z e r 1990, p. 77-122.

I 166 I Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992


q u e u m a sociedade é m o d e r n a q u a n d o as relações i n t e r n a s ao
g r u p o h u m a n o se organizam e se compreendem e x c l u s i v a m e n t e
c o m o r e l a ç õ e s d e indivíduos e m luta progressiva c o m a n a t u r e z a ,
considerada c o m o m e c a n i s m o e fonte d e m a t é r i a - p r i m a , e m vista
d a s a t i s f a ç ã o das suas necessidades e d o s seus desejos, isto é, as
necessidades c r i a d a s pelos p r ó p r i o s i n d i v í d u o s . O d e s e n v o l v i -
m e n t o desta tese m o s t r a r i a e m p r i m e i r o l u g a r q u e o sagrado
para u m a sociedade m o d e r n a é o t r a b a l h o social, cuja regra d e
o u r o é a c o m p e t i ç ã o e c u j o ú n i c o d o g m a é a eficácia. M o s t r a r i a ,
em seguida, que a c o m u n i d a d e m o d e r n a de trabalho constitui
u m a sociedade, e m p r i n c í p i o e p e l o seu p r i n c í p i o , m u n d i a l . E m
terceiro l u g a r , m o s t r a r i a a i n d a q u e , p o r força desse m e s m o p r i n -
cípio, a m o d e r n a c o m u n i d a d e d e t r a b a l h o é calculista, materialis-
ta e mecanicista. O d e s e n v o l v i m e n t o m e t ó d i c o desses três p r i -
m e i r o s passos l e v a r i a a i n d a a três o u t r o s d e s d o b r a m e n t o s . O
p r i m e i r o , q u e o i n d i v í d u o , na sociedade m o d e r n a , está s u b m e -
t i d o a u m sistema d e leis sobre o q u a l , ao m e s m o t e m p o , ele se
apoia para a d q u i r i r u m l u g a r na sociedade. E m s e g u i d a q u e ,
assim c o m o a sociedade m o d e r n a é r a c i o n a l apenas e m princí-
p i o , os i n d i v í d u o s q u e a c o m p õ e m t a m b é m s ã o calculistas só
e m princípio, o que implica que o c o m p o r t a m e n t o racional exi-
g i d o pela l u t a p r o g r e s s i v a c o m a n a t u r e z a deva ser i m p o s t o
pela l e i p o s i t i v a . F i n a l m e n t e , q u e u m a sociedade m o d e r n a p a r -
t i c u l a r , p o r n ã o ser t o t a l m e n t e a q u i l o q u e ela é e m p r i n c í p i o ,
está d i v i d i d a e m g r u p o s e estratos, e q u e dessa d i v i s ã o nasce
nos i n d i v í d u o s o s e n t i m e n t o da injustiça social.

Q u e r o c h a m a r a a t e n ç ã o para u m passo d a reflexão w e i l i a n a ,


i n t e r m e d i á r i o a esses d o i s d e s e n v o l v i m e n t o s a r t i c u l a d o s , expres-
so na tese 23 da sua Filosofia Política, q u e d i z : " A s c i ê n c i a s so-
ciais teóricas d e s c r e v e m a d e q u a d a m e n t e a e s t r u t u r a da socieda-
13. td. ibid.. p. 93, de"'-'. P o r c i ê n c i a s sociais entende-se a q u i a sociologia teórica e a
economia política. Estas c i ê n c i a s d e s c r e v e m a d e q u a d a m e n t e a
sociedade p o r três das suas características b á s i c a s : a p r i m e i r a ,
p o r estarem f u n d a d a s n o m e s m o p r i n c í p i o da sociedade, a se-
g u n d a , p o r c o n s i d e r a r e m a sociedade c o m o u m d a d o a n á l o g o
à n a t u r e z a e x t e r i o r , e, f i n a l m e n t e , p o r s e g u i r e m os m é t o d o s das
c i ê n c i a s n a t u r a i s , e m vista d e u m a análise f u n c i o n a l m e d i a n t e
fatores e p r e v i s õ e s v e r i f i c á v e i s . O q u e nos interessa reter está
expresso n u m p a r á g r a f o q u e , m a l g r a d o a sua e x t e n s ã o , v a l e a
pena ler p o r i n t e i r o : "Essas c i ê n c i a s c o m p r e e n d e m - s e a p a r t i r
d o p r i n c í p i o p a r t i c u l a r d a sociedade m o d e r n a . S ó u m a socieda-
d e racionalista e mecanicista p o d e q u e r e r c o m p r e e n d e r - s e n u m a
ciência, isto é, n u m a análise calculista, n u m a d e s c r i ç ã o q u e n ã o
a d m i t e o u t r o critério a l é m d a calculahilidade, e m v e z d e c o m p r e -
ender-se n u m sistema d e v a l o r e s m ú l t i p l o s c o o r d e n a d o s o u a

Síntese Nova Fase. v. 19, n. 57, 1992 \ 167 |


c o o r d e n a r ( u m a m o r a l , u m summum bonum c o m o os seus bom
i n f e r i o r e s ) . Esta é a r a z ã o pela q u a l as c i ê n c i a s sociais fracassam
quando tentam reconstruir a vida de comunidades de o u t r o
t i p o , p o i s elas p o d e m m o s t r a r q u e , na a u s ê n c i a d e certos meca-
n i s m o s f u n d a m e n t a i s , essas c o m u n i d a d e s n ã o t e r i a m p o d i d o
subsistir, m a s fracassam q u a n d o se c h o c a m c o m o q u e era o
essencial p a r a aquelas c o m u n i d a d e s e q u e , para estas c i ê n c i a s
— a n ã o ser q u e se v o l t e m para a filosofia o u para a história — ,
s ó aparece c o m o i r r a c i o n a l , t r a d i c i o n a l , a b s u r d o , n o u t r o s ter-
m o s , c o m o f a t o r de ineficácia. A s c i ê n c i a s scKiais s ã o a consci-
ência d a sociedade m o d e r n a , p o r q u a n t o esta é p u r a sociedade
e p u r a m e n t e m o d e r n a . É nelas q u e a sociedade t o m a c o n s c i ê n -
cia d e si e é a existência delas q u e dá s e n t i d o a e x p r e s s õ e s c o m o :
a sociedade q u e r , a sociedade se i n t e r p r e t a , etc"'\ 14. Id. íbitt.. p. 94.

Pois b e m , é esta sociedade m o d e r n a q u e n ó s d i z e m o s estar e m


crise. Ela e f e t i v a m e n t e está, n ã o só p o r q u e u m a das crises r e g i o -
nais g e n e r a l i z á v e i s , a n t e r i o r m e n t e citadas, é a d o s f u n d a m e n t o s
d o saber, crise esta q u e se m o s t r a a i n d a mais a g u d a n o q u e se
refere às a s s i m c h a m a d a s c i ê n c i a s h u m a n a s o u históricas, mas,
p r i n c i p a l m e n t e , p o r q u e a a u t o c o m p r e e n s ã o q u e esta sociedade
t e m d e si m e s m a revela, n ã o p a r a ela, mas p a r a n ó s , u m a c o n -
tradição entre a sua o r g a n i z a ç ã o , c o m a c o n s c i ê n c i a q u e l h e
c o r r e s p o n d e , e o conceito de b e m q u e a reflexão p o d e d e s c o b r i r
na sua o r i g e m . C o m efeito, a o r i g e m histórica d a m o d e r n a so-
ciedade tKidental d e v e ser buscada na polis grega e n o conceito
d e bem partilhado q u e lhe serve de f u n d a m e n t o . O conceito d e
bens de excelência o u , o q u e é o m e s m o , o conceito d e virtude,
é a m a t r i z dessa f o r m a d e o r g a n i z a ç ã o das r e l a ç õ e s h u m a n a s
q u e e n c o n t r o u na Ética e na Política d e A r i s t ó t e l e s a sua expres-
s ã o m a d u r a . Essa m a t r i z f o i f o r m u l a d a , p o s t e r i o r m e n t e , p o r
A g o s t i n h o e, a i n d a m a i s c l a r a m e n t e , p o r T o m á s d e A q u i n o , nos
t e r m o s d e u m summum bonum c o m os seus bona s u b a l t e r n o s . O
f u n d a m e n t o da a u t o c o m p r e e n s ã o da c o m u n i d a d e - s o c i e d a d e , na
nossa t r a d i ç ã o , d e v e ser b u s c a d o , p o r t a n t o , na m o r a l . P o r é m ,
u m a o r d e m social q u e recusa c o m p r e e n d e r - s e e m u m a m o r a l e
o p t a p o r se i n t e r p r e t a r e m u m a c i ê n c i a situa-se, c o m o d i z
M a c l n t y r e , " l i t e r a l m e n t e , fora d e n ó s e, d e fato, fora d o c o n t r o l e
d e q u e m q u e r q u e seja. N i n g u é m se encarrega o u p o d e r i a e n -
carregar-se dela"'"".
15. Cf. M A C I N T Y R E , A.,op.
ní.,p. 107. Ver todo o cap. 7
O Estado moderno está e m crise. Eis a s e g u n d a f i g u r a histórica <'Facl', E x p l a n a t í o n and
Expertise) v o cap. 8 (The
q u e r e ú n e os conceitos d e m o d e r n i d a d e e d e crise. Para ser C h a r a c t e r of G e n e r a l i -
b r e v e , basta d i z e r q u e o Estado m o d e r n o está e m crise p o r q u e zalions in Social Science
and their Lack of Predictive
ele é o Estado d e u m a sociedade m o d e r n a q u e está e m crise, e
Power).
p o r q u e d o i s d o s conceitos r e g i o n a i s g e n e r a l i z á v e i s d e crise s ã o
f o r m u l a d o s e m t e r m o s d e crise d o l i b e r a l i s m o e c o n ô m i c o e crise

I 168 I Síntese Nova Fase, u. 19. n. 57, 1992


da l e g i t i m a ç ã o d o p o d e r . P o r é m , m e s m o sem p r e t e n d e r s u b s t i -
t u i r u m conceito d e m a s i a d o b r e v e p o r o u t r o d e m a s i a d o l o n g o ,
c o m o d i r i a K a n t , a necessidade d e ser b r e v e n ã o d e v e o b s t r u i r
a p o s s i b i l i d a d e de ser o p o r t u n a m e n t e l o n g o .

N ã o é o caso d e r e c o n s t r u i r a q u i , sequer e m g r a n d e s l i n h a s , as
etapas da f o r m a ç ã o d o Estado m o d e r n o , o u d i s c u t i r as suas
diferentes c o n c e p ç õ e s o u teorias, n e m m e s m o d e ensaiar u m a
crítica da teoria d o Estado b r a s i l e i r o o u l a t i n o - a m e r i c a n o . Essas
tarefas, e m p a r t e já f o r a m e, e m p a r t e , c o n t i n u a m sendo realiza-
das p o r especialistas c o m p e t e n t e s , o q u e n ã o é o m e u caso. Para
os f i n s desta e x p o s i ç ã o , basta q u e nos e n t e n d a m o s sobre u m
conceito m u i t o s i m p l e s , p o r é m n ã o i n g ê n u o , d e Estado, e n o s
p o n h a m o s d e a c o r d o sobre e m q u e consiste a sua m o d e r n i d a d e .
Esse conceito, n e m m u i t o b r e v e n e m d e m a s i a d o l o n g o , f o i f o r -
m u l a d o p o r Eric W e i l : " O Estado é o c o n j u n t o o r g â n i c o das
instituições d e u m a c o m u n i d a d e histórica. Ele é o r g â n i c o p o r -
q u e cada instituição p r e s s u p õ e e sustenta o f u n c i o n a m e n t o d e
todas as o u t r a s e m v i s t a d o seu p r ó p r i o f u n c i o n a m e n t o , e p o r -
q u e p a r a o seu f u n c i o n a m e n t o cada instituição é pressuposta e
16. Cf. W E I L . E., (./-. i i f . . p sustentada p o r todas as o u t r a s " E e v i d e n t e q u e esta d e f i n i ç ã o
p o d e ser c r i t i c a d a d e d i f e r e n t e s m a n e i r a s e d e d i s t i n t o s p o n t o s
d e v i s t a . P o r é m , é t a m b é m e v i d e n t e q u e só o d e s e n v o l v i m e n t o
s i s t e m á t i c o d o q u e está nela i m p l i c a d o p o d e r i a r e s p o n d e r a
a l g u m a s dessas críticas. O u t r a s , i n f e l i z m e n t e , e x i g i r i a m u m re-
t o r n o aos p r i m e i r o s p r i n c í p i o s da f i l o s o f i a , o q u e , e v i d e n t e m e n -
te, n ã o é p o s s í v e l e, m u i t o p r o v a v e l m e n t e , seria inútil p a r a tais
críticos. M a s esta n ã o é a sede p a r a e m p r e e n d i m e n t o s dessa
e n v e r g a d u r a . É preciso a i n d a d e i x a r claro, para q u e g r a n d e p a r t e
das críticas p e r c a m o seu p o n t o d e A r q u i m e d e s , q u e estou cons-
ciente d e q u e a d e f i n i ç ã o d a d a é f o r m a l , v a l e d i z e r , c o n s i d e r a o
Estado c o m o f o r m a . É inevitável q u e assim seja e, m u i t o p r o v a -
v e l m e n t e , é a falta d e u m a c o m p r e e n s ã o f o r m a l da f i g u r a histó-
rica d o Estado q u e e x p l i c a as i n t e r m i n á v e i s , p o r l e v i a n d a d e , p o r
d o g m a t i s m o o u ainda p o r ceticismo, discussões contemporâ-
neas sobre o Estado. .

V o l t e m o s , p o i s , a o conceito g e r a l . O Estado é, d i t o d e m a n e i r a
m a i s s i m p l e s , a o r g a n i z a ç ã o d e u m a c o m u n i d a d e histórica, na
q u a l esta c o m u n i d a d e t o m a - s e capaz de t o m a r d e c i s õ e s q u e ,
essencialmente, v i s a m à sua s u b s i s t ê n c i a . D i t o a i n d a d e o u t r o
m o d o , é n o Estado q u e u m a c o m u n i d a d e - s o c i e d a d e se t o r n a
autoconsciente e capaz de d e c i d i r e a g i r c o m c o n h e c i m e n t o d e
causa. E m t e r m o s de prática política, o Estado, p e l o menos d e p o i s
d e M a q u i a v e l , p o d e ser d e f i n i d o s i m p l e s m e n t e p o r u m a política
i n t e r n a e u m a política e x t e m a . Q u a n d o nos p e r g u n t a m o s sobre
e m q u e consiste a m o d e r n i d a d e d o Estado, as respostas d o s

Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992 \ 169 |


cientistas políticos o u d o s h i s t o r i a d o r e s d a política t a m b é m s ã o
m ú l t i p l a s e c o n f l i t a n t e s . N u m a perspectiva e s t r i t a m e n t e filosó-
fica, isto é, c o n c e i t u a i , u m Estado é m o d e r n o q u a n d o se realiza
na lei e pela l e i f o r m a l e u n i v e r s a l . N o v a m e n t e as críticas, apenas
c o n t i d a s na definição geral d o Estado, p o d e m reaparecer e, agora,
c o m m a i s e m o ç ã o , i s t o é, c o m m e n o s r a z ã o . R e c o n h e ç o q u e
p o d e r i a c a p t a r m e l h o r a b e n e v o l ê n c i a d o s leitores se partisse d a
c o n h e c i d a d e f i n i ç ã o q u e a f i r m a ser o Estado m o d e r n o o d e t e n -
t o r d o m o n o p ó l i o d o u s o da violência. P o r é m , a a n á l i s e r i g o r o s a
desta d e f i n i ç ã o leva exatamente à q u e f o i d a d a a c i m a . S e n ã o ,
vejamos. Se p o r m o n o p ó l i o d o u s o da violência e n t e n d e m o s ,
p o r e x e m p l o , o fato d e a justiça p e n a l ter d e i x a d o d e ser o
a p a n á g i o d e u m senhor o u d e u m g r u p o , o u a i n d a , o fato d e a
v i n g a n ç a p r i v a d a c o m o m é t o d o d e r e p a r a ç ã o das ofensas ser
p e r s e g u i d o c o m o c r i m e , e n t ã o estamos d e a c o r d o q u e só o Es-
t a d o p o d e coagir, e q u e essa t r a n s f o r m a ç ã o é r e l a f i v a m e n t e re-
cente na v i d a d e certos g r u p o s h u m a n o s . P o r é m , isso n ã o cons-
t i t u i u m a diferença específica d o Estado m o d e r n o , p o i s até m u i t o
m a i s recentemente (para n ã o falar d a i m p u n i d a d e d o m i n a n t e
e m nosso país n o q u e d i z r e s p e i t o , p o r e x e m p l o , à violência n o
c a m p o o u c o n t r a os m e n o r e s ) a v i o l ê n c i a f o i p e r m i t i d a , na
m a i o r i a d o s p a í s e s , a certas pessoas e m d e t e r m i n a d a s s i t u a ç õ e s .
O fato d e o m o n o p ó l i o d a violência s ó ter s i d o r e a l i z a d o n o
m u n d o c o n t e m p o r â n e o é, ao m e s m o t e m p o , m u i t o a m p l o e m u i t o
r e s t r i t o para d e f i n i r o Estado m o d e r n o , u m a vez q u e , p o r u m
l a d o , ele faria p a r e c e r e m m o d e r n a s as f o r m a s m a i s p r i m i t i v a s
da t i r a n i a (sendo o ú n i c o a p o s s u i r d i r e i t o s , o t i r a n o é t a m b é m
o ú n i c o a d i s p o r da violência na r e a l i d a d e ) , e, p o r o u t r o , e x c l u i -
ria d o n ú m e r o d o s Estados m o d e r n o s os q u e c o n s e r v a m traços
do d i r e i t o antigo (duelo, punição d o adultério pela v i n -
gança p r i v a d a , etc.)'^ "^•-''^'«^ "S""

p. I9Ü.
O conceito d e Estado m o d e r n o q u e u t i l i z o a q u i é, p o r t a n t o , o d o
Estado de direito (Recbtsstaat), a q u e l e n o q u a l a a ç ã o d o Estado,
a s s i m c o m o a d o s c i d a d ã o s , é r e g i d a p o r leis f o r m a i s e u n i v e r -
sais. Neste conceito está i n c l u í d o q u e , para a deliberação e para
a execução, o g o v e r n o d o Estado m o d e r n o serve-se da adminis-
tração, e n t e n d i d a n ã o s ó s e g u n d o as f u n ç õ e s executivas q u e ela
p o s s u í a e m c o m u n i d a d e s r e l a t i v a m e n t e antigas, m a s c o m o ó r -
g ã o a u t ô n o m o da r a c i o n a l i d a d e técnica da sociedade p a r t i c u l a r .
Pois b e m , é este Estado q u e d i z e m o s estar e m crise, q u e r ele
subsista na f o r m a autocrática d e g o v e r n o , q u e r na f o r m a consti-
tucional. Está e m crise p o r q u e a sua f o r m a apresenta-se e m nos-
sos dias, ao m e s m o t e m p o , c o m o i n u l t r a p a s s á v e l e e m vias d e
ser u l t r a p a s s a d a , a d e m a i s , p a r a d o x a l m e n t e , as d u a s coisas pela
m e s m a r a z ã o . E n q u a n t o Estado d e u m a c o m u n i d a d e - s o c i e d a d e

[ 170 I Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57. 1992


q u e se t o m o u m o d e m a , isto é, r a c i o n a l , ele é a f o r m a m a i s
acabada dessa r a c i o n a l i d a d e . E n q u a n t o Estado d e u m a c o m u n i -
d a d e - s o c i e d a d e r a c i o n a l , i s t o é, u n i v e r s a l , a sua f i g u r a histórica
é o m a i o r o b s t á c u l o ao a c a b a m e n t o d a q u e l a r a c i o n a l i d a d e da
q u a l a sua f o r m a é p o r t a d o r a . D i t o d e f o r m a p a r a d o x a l : a q u i l o
q u e faz c o m q u e u m Estado seja m o d e m o é, exatamente, a q u i l o
q u e faz c o m q u e o Estado m o d e m o esteja e m crise. O u a i n d a :
a p a r t i c u l a r i d a d e d o Estado m o d e r n o , v a l e d i z e r , a sua u n i v e r -
s a l i d a d e d e p r i n c í p i o , é o q u e t o m a inviável a u n i v e r s a l i d a d e
d o Estado m o d e r n o p a r t i c u l a r .

E c o m o se n ã o bastasse essa c o n t r a d i ç ã o entre o f o r m a l e o


histórico, na q u a l o n e x o e n t r e temp>oralidade e crise m o s t r a
t o d a a sua força, o Estado m o d e m o encontra a i n d a u m a o u t r a
f o n t e d e crise na sua i n c a p a c i d a d e d e resolver o p r o b l e m a f u n -
d a m e n t a l d e t o d o Estado e d e t o d o g o v e r n o m o d e r n o s , o q u a l ,
e m t e r m o s w e i l i a n o s , consiste e m " c o n c i l i a r o justo c o m o eficaz
(a m o r a l v i v a c o m a r a c i o n a l i d a d e ) , e conciliá-los c o m a r a z ã o ,
e n q u a n t o p o s s i b i l i d a d e d e u m a v i d a sensata para t o d o s , q u e
18. w. íbid.. p, 238. seja c o m p r e e n d i d a c o m o tal p o r t o d o s " ' " . D e s e n v o l v e r a q u i o
q u e está i m p l i c a d o nesta f o r m u l a ç ã o t o r n a r i a d e m a s i a d o l o n g o
o c o n c e i t o c o n v e n i e n t e m e n t e b r e v e d e Estado m o d e r n o q u e
a d o t e i . F i q u e , t o d a v i a , claro, t a n t o para os p a l a d i n o s d o s b o n s
e v e l h o s t e m p o s , q u e s ó s ã o bons j u s t a m e n t e p o r q u e n ã o s ã o
m a i s os nossos, c o m o para os profetas exaltados d a sociedade
sem Estado, q u e o p r e s s u p o s t o i r r e n u n c i a v e l d a m i n h a p o s i ç ã o
é q u e n ã o se chega a ser razoável sem ser r a c i o n a l . Daí segue-
-se i m e d i a t a m e n t e q u e a i n c a p a c i d a d e histórica d e m o n s t r a d a
pelos Estados m o d e r n o s d e r e s o l v e r o c o n f l i t o entre justiça e
eficácia o u , o q u e é o m e s m o , entre r a z o a b i l i d a d e e r a c i o n a l i d a d e ,
n ã o p r o v a n e n h u m a m a l d a d e necessária o u i m a n e n t e d o Esta-
d o . P r o v a , s i m , mas isso os saudosistas e os os s e r m o n á r i o s n ã o
v ê e m , q u e o n e x o e n t r e t e m p o r a l i d a d e e crise está na r a i z da
f o r m a m o d e r n a d o Estado, ao m e s m o t e m p o q u e n o f m t o m a -
d u r o da sua f i g u r a histórica.

F i n a l m e n t e , a t e r c e i r a f i g u r a q u e r e ú n e os c o n c e i t o s d e
m o d e r n i d a d e e crise é a da i d e o l o g i a . A s ideologias modernas
e s t ã o e m crise. Para ser a i n d a m a i s b r e v e d o q u e a b r e v i d a d e
c o m q u e apresentei a f i g u r a d o Estado, r e m e t o g r a n d e p a r t e da
c o n c e i t u a ç ã o q u e farei a q u i a u m texto sobre " F i l o s o f i a e crítica
das i d e o l o g i a s " , p u b l i c a d o nesta revista, n o q u a l d e s e n v o l v o
u m a r e f l e x ã o e m três m o m e n t o s . O p r i m e i r o apresenta a o r i g e m
filosófica d o c o n c e i t o d e i d e o l o g i a e a d i r e ç ã o q u e a crítica
m a r x i s t a , e m b o r a q u e s t i o n á v e l , i m p ô s à r e f l e x ã o sobre o tema.
O s e g u n d o reflete a c o m p r e e n s ã o de i d e o l o g i a e m a l g u n s d o s
f u n d a d o r e s da sociologia (Tocqueville, D u r k h e i m , Pareto e

Síntese Nova Fase, v. 19. n. 57, 1992 \ 1711


Weber) e e m dois sociólogos contemporâneos (Boudon e
B o u r r i c a u d ) . F i n a l m e n t e , o terceiro m o m e n t o a r t i c u l a u m a refle-
x ã o filosófica q u e c o m p r e e n d e a i d e o l o g i a c o m o m e d i a ç ã o d o
consenso social e situa a crítica d a s i d e o l o g i a s na p e r s p e c t i v a d a
h e r m e n ê u t i c a d a s tradições'''. 19, Cf. P E R I N E . M,. "Filt>-
sofia tf critica das ideolo-
gias". SiHfcsf NiHu Fase, v.
O q u e i m p o r t a reter a q u i , para q u e n o s e n t e n d a m o s sobre o
18 n. 52 ( l ' « l ) : 1 3 - 3 4 .
conceito, é q u e n ã o é preciso, necessariamente, pensar e m ter-
m o s d e c o n s c i ê n c i a falsa n e m r e m e t ê - l a a u m d e t e r m i n a d o
m o m e n t o d a l u t a d e classes para d a r u m a e x p l i c a ç ã o c o n v i n c e n -
te d a i d e o l o g i a . O ser h u m a n o , n e m m e s m o n a s u a v e r s ã o b u r -
guesa, n ã o é u m animal ideologicum q u e precisa, se preciso pela
força, ser l i b e r t a d o d a sua a l i e n a ç ã o , coisa q u e , se a c e i t a r m o s
aquela c a r i c a t u r a d e h o m e m , s ó p o d e r á ser feita p o r o u t r a i d e o -
l o g i a . A d e m a i s , " o p e n s a m e n t o i d e o l ó g i c o n ã o é necessariamen-
te autista n e m esquizofrênico"^". Basta c o m p r e e n d e r q u e u m 20. C f . B O U R R I C A U D , F.,
dos mecanismos fundamentais d o pensamento ideológico con- " H e u r s et m a l h e u r s de
Tidéologie", KíicytíofWfi/w
siste n u m deslize d e estatuto lógico q u e t o m a p o r explicações as Unii'tTsfl/is, S y m p o s i u m ,
interpretações, isto é, as e x p l i c a ç õ e s fracas, para e n t e n d e r m o s poT Les EnK'ux, 1988, p. 714-
729, aqui p, 719.
q u e , nas c i ê n c i a s sociais, ao c o n t r á r i o d a s c i ê n c i a s d a n a t u r e z a ,
u m a teoria p o d e ser j u l g a d a interessante e eficaz, p r o f u n d a e
g e r a l , e, m e l h o r a i n d a , p o p u l a r e útil, i n d e p e n d e n t e m e n t e d o
seu g r a u d e v a l i d a d e . A i d e o l o g i a é apenas u m d o s e l e m e n t o s
d o consenso social e é p o r relação ao flm q u e a t r i b u í m o s ao
consenso q u e p o d e m o s pôr a ideologia no seu lugar. Aliás, u m a
das r a z õ e s pelas q u a i s as i d e o l o g i a s m o d e r n a s estão e m crise
reside na s u p e r v a l o r i z a ç ã o d a sua f u n c i o n a l i d a d e e na c o m p r e -
e n s ã o d a sociedade c o m o t o t a l i d a d e concreta, esses d o i s p r e s s u -
postos d a a n á l i s e m a r x i s t a q u e n ã o e s t ã o ausentes n o pensa-
mento liberal.

O conceito d e i d e o l o g i a f o i f o r j a d o p o r D e s t u t t d e T r a c y (1754-
1836) c o m p r e t e n s õ e s e s t r i t a m e n t e científicas e e m o p o s i ç ã o à
f i l o s o f i a . P o r é m , r e c é m - n a s c i d o , o conceito t o m o u a d i r e ç ã o q u e ,
e q u i v o c a d a m e n t e , as p r e t e n s õ e s i g u a l m e n t e científicas d e M a r x
e Engels l h e i m p u s e r a m . D a d a a p o p u l a r i d a d e e a b e n e v o l ê n c i a
com que a cartilha marxista foi acolhida, tanto o pensamento
m i l i t a n t e c o m o a "intelligentsia s o c i a l m e n t e d e s v i n c u l a d a " a q u e
se refere M a n n h e i m - ' , c o n t r i b u í r a m para q u e se generalizasse a 21. C f M A N N H E I M , K-,
c r e n ç a sobre a i d e o l o g i a c o m o u m a e s p é c i e d e super-bonder q u e , lí}eoh}(iti e Ulopm, trad. de
S. M. Santeiro, revisáii dt*
espalhada p o r sobre a o r d e m o u a d e s o r d e m social, seria capaz C . Ciuimaràes, Rio de Janei-
d e g a r a n t i r u m consenso social im|x>sto, s u b - r e p t i c i a m e n t e o u ro, Zahar, 1968, espec, p.
178-189.
d e m a n e i r a v i o l e n t a , mas e m q u a l q u e r caso a r b i t r a r i a m e n t e , t a n t o
pelos e p í g o n o s m e n o r e s d a p r i m e i r a I l u s t r a ç ã o c o m o pelos ó r -
fãos d e u m a pretensa s e g u n d a Ilustração, os q u a i s , d e p o i s d e
t e r e m assassinado o p a i , f i z e r a m dele u m Totem m a i s d o q u e
u m tabu. A s e x p r e s s õ e s m a i s acabadas dessa c o n v i c ç ã o s ã o d u a s

172 Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992


h o r r i p i l a n t e s f i g u r a s históricas q u e o nosso s é c u l o teve a des-
g r a ç a d e conhecer, e padecer, nas quais, j u s t a m e n t e , se u n e m d e
m a n e i r a m o n s t r u o s a as d u a s f o r m a s d e n ã o - p e n s a m e n t o a c i m a
22, ViT .IN piTclr.inU-s aná-
caracterizadas. Para os q u e n ã o f i c a r a m cegos pelas p r ó p r i a s
lises di' A R E N D T , H-, Ori-
gens do Totalitarismo, Irad. luzes, está claro q u e m e r e f i r o ao n a z i s m o e ao e s t a l i n i s m o , as
de R. Raposo, São Paulo, d u a s caras desse m o n s t r o b i c é f a l o q u e é o t o t a l i t a r i s m o ^ .
Companhia das Letras,
1989.
Pois b e m , aquela q u e C l a u d e L e f o r t c h a m o u d e "a era d a i d e o -
23. Cf. L E F O R T . C , "L'ère logia"^^ p o d e t a m b é m ser caracterizada c o m o a da sua crise.
de T i d é o l o g i e " , Eiicy-
elopúedia Uniivrsalh, Sym-
M a s a a f i r m a ç ã o d a crise das i d e o l o g i a s n ã o é i g u a l m e n t e
ptisium, Les Enjeux, 1988, p. g e n e r a l i z á v e l e m t o d o o â m b i t o d o f e n ô m e n o i d e o l ó g i c o , tal
761-776.
como o entendo. Compreendidas como códigos interpretativos
m e d i a d o r e s d o consenso social, as f o r m a l i z a ç õ e s i d e o l ó g i c a s
e s t ã o inscritas d e m a n e i r a p o s i t i v a , útil e n e c e s s á r i a , na relação
d o h o m e m c o m a r e a l i d a d e scKial, u m a vez q u e esta relação
c o m p o r t a sempre u m a estrutura simbólica representativa d o
p r ó p r i o v í n c u l o s o c i a l . A s i d e o l o g i a s o u os e s q u e m a s
i n t e r p r e t a t i v o s q u e e s t ã o e m crise s ã o aqueles q u e , nascidos na
história, p r e t e n d e m s u p r i m i r a história. M a i s u m a vez o n e x o
e n t r e t e m p o r a l i d a d e e crise se apresenta na r a i z d a q u e s t ã o . A s
i d e o l o g i a s modernas q u e estão e m crise, s e g u n d o os conceitos d e
m o d e r n i d a d e e d e crise estabelecidos n o início desta r e f l e x ã o ,
s ã o as i d e o l o g i a s políticas q u e a s s u m i r a m , c o m c o n s c i ê n c i a d e
causa, n e m s e m p r e d o s efeitos, a f u n ç ã o q u e para o h o m e m pré-
- m o d e r n o era d e s e m p e n h a d a pela teodicéia, isto é, a justificação
d e Deus. A s i d e o l o g i a s políticas m o d e r n a s p r e t e n d e r a m r e s p o n -
d e r à s q u e s t õ e s f u n d a m e n t a i s d o h o m e m n o q u e d i z respeito à
sua origem, seu destino e ao sentido da sua existência. Daí p o d e r -
m o s estabelecer u m a a n a l o g i a e n t r e o milagre e a utopia: aquele
24. Ver o desenvolvimento está para a teodicéia a s s i m c o m o esta para a sociodicéia-*. A
dessa i d í i a em B O U R - ú n i c a diferença é q u e o m i l a g r e existe, mas aceitar isso d e p e n d e
R I C A U D , F,, art. o/., p. 720-
722.
d e u m p o n t o d e v i s t a q u e n ã o é a s i m p l e s vista d e u m p o n t o .

A s i d e o l o g i a s políticas m o d e r n a s p u d e r a m a s s u m i r o p a p e l d e
s o c i o d i c é i a s e de e s t a t o d i c é i a s c o n t e m p o r â n e a s , n ã o só p o r cau-
sa d a s u p e r v a l o r i z a ç ã o d o seu c a r á t e r f u n c i o n a l , mas, s o b r e t u -
d o , c o m o conseqüência daquela "retirada geral d o sagrado" a
q u e se r e f e r i u Paul Ricoeur, e q u i v a l e n t e exato d o processo de
r a c i o n a l i z a ç ã o , para falar e m t e r m o s w e b e r i a n o s , e d e " d e s e n -
c a n t a m e n t o d o m u n d o " , c o n f o r m e as a g u d a s a n á l i s e s d e M a r e e i
25. Cf, G A U C H E T , M,. h- G a u c h e t " . A q u i está, a m e u ver, u m a das r a z õ e s t a n t o d o , l i t e -
desciicbantement du monde: r a l m e n t e , espetacular fracasso da i d e o l o g i a m a r x i s t a , c o m o da
une histoire [Htlitiqur de Ia
religion. Paris, Gallimard, m e l a n c ó l i c a e, i n f e l i z m e n t e , p r o l o n g a d a a g o n i a d a i d e o l o g i a l i -
1985. beral. N ã o é só u m a q u e s t ã o de i n c o m e n s u r a b i l i d a d e i n s u p e r á -
v e l e n t r e o i n s t r u m e n t o e s c o l h i d o para j u s t i f i c a r e a q u i l o q u e se
p r e t e n d e j u s t i f i c a r . N o m u n d o r a c i o n a l i z a d o e desencantado,
o n d e o i n d i v i d u a l i s m o u t i h t á r i o - e m o t i v i s t a , na sua v e r s ã o o r i g i -

Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992 | 173


n a l o u na sua f a l i d a cópia socialista, t o r n o u - s e sagrado, n ã o há
e n c a n t o q u e possa encantar a tt>dos p o r m u i t o t e m p o , e os ape-
los à r a c i o n a l i d a d e n ã o f a z e m s e n ã o m o n t a r a i n d a mais a p r e a -
m a r d e i r r a c i o n a l i s m o s a q u e assistimos ao v i v o , c o n f o r t a v e l -
26 Sào conhecidas as análi-
m e n t e i n s t a d o s d i a n t e da televisão e q u e , m u i t o p r o v a v e l m e n t e , ses penetrantes de )ean
t e m m e s m o tudo a ver conosco. M a s , para usar u m a l i n g u a g e m Baudríllard. que fizeram
dele um "pensador maldi-
fora d e m o d a , a inépcia d o i n s t r u m e n t o é apenas a causa instru-
to" tanto para a direita
mental d o fracasso das i d e o l o g i a s políticas. A sua causa final é, como para a esquerda. So-
p a r a d o x a l m e n t e , a p e r d a d o f i m o u a sua s u b s t i t u i ç ã o p o r s i m u - bri' Baudriliard ver o exce-
lente i-studo de BRUZ7J D E
lacros d e fins, q u e n ã o s ã o m a i s q u e m e i o s sem f i m , incapazes M E L O , H,, A cultura do si-
d e realizar, s e m c o n t r a d i ç ã o , as promessas d e u m " r e i n o d o s mulacro. Filosofia e mo-
dcrniíiiiiif cm / Baudriliard,
f i n s " e as profecias d e u m " r e i n o da l i b e r d a d e " ' ^ . Esta c o n s i d e - Colei;ilo Filosofia 7, SàO
r a ç ã o abre o ú l t i m o d e s e n v o l v i m e n t o desta e x p o s i ç ã o . Paulo, U y o l a , 1988.

Uma hipótese
C o m o a n u n c i e i n o início, a h i p ó t e s e f i n a l p o d e r á a s s u m i r o
c a r á t e r d e u m a tese d e f u n d o d e toda a expwsição, se v i e r a
m o s t r a r a sua c o n s i s t ê n c i a c o m as etapas anteriores d a reflexão.
P o r t a n t o , antes d e tentar f o r m u l á - l a , c o n v é m r e t o m a r sintetica-
m e n t e o itinerário p e r c o r r i d o . P a r t i d e u m a c o n c e i t u a ç ã o e s t r i -
t a m e n t e filosófica da m o d e r n i d a d e d e f i n i d a c o m o categoria d e
l e i t u r a diacrônica d o t e m p o histórico a p a r t i r d o agora p r i v i l e -
g i a d o d o a t o d e f i l o s o f a r . Essa m o d e r n i d a d e d e v i n t e e seis
séculos tornou-se " m o d e r n a " pela substituição da e s t r u t u r a onto-
teológica p o r u m a e s t r u t u r a onto-antropológica q u e i m a n e n t i z a n o
Cogito o f u n d a m e n t o d o a t o d e f i l o s o f a r . E, p o r t a n t o , p o r u m a
n o v a r e l a ç ã o c o m o t e m p o q u e a m o d e r n i d a d e m t x i e r n a se
d e f i n e . O conceito d e crise própria dessa m o d e r n i d a d e , e n q u a n -
to p a t o l o g i a d o r e l a c i o n a m e n t o n o r m a l entre a espera e a experi-
ência, l e v o u a estabelecer u m n e x o da crise c o m a t e m p o r a l i d a d e ,
u m a v e z q u e o e s p a ç o da e x p e r i ê n c i a f o i r e d u z i d o p e l o r e p ú d i o
da tradição e o h o r i z o n t e da espera f o i t r a n s f o r m a d o e m u t o -
p i a / u c r o n i a . O n e x o entre m c x i e r n i d a d e e crise apareceu, e m
s e g u i d a , d e d u a s m a n e i r a s p r i n c i p a i s , e m cada u m a das três
f i g u r a s históricas b r e v e m e n t e analisadas. N a sociedade m o d e r -
na, pela n o v a f o r m a d e a u t o c o m p r e e n s ã o buscada nas c i ê n c i a s
sociais, q u e r e d u z a m o r a l a p u r o f a t o r d e ineficácia, e, pela
c o n t r a d i ç ã o entre a m o d e m a o r g a n i z a ç ã o da sociedade e o c o n -
ceito d e b e m q u e está na sua o r i g e m . N o Estado m o d e r n o , a
r e l a ç ã o e n t r e crise e t e m p o r a l i d a d e f o i detectada t a n t o n o p a r a -
d o x o d e u m a f o r m a da m a i s alta r a c i o n a l i d a d e q u e é, ao m e s m o
t e m p o , o m a i o r i m p e d i m e n t o à r a c i o n a l i d a d e , c o m o na incapa-
c i d a d e d e s o l u c i o n a r o c o n f l i t o e n t r e u m conceito d e justiça, q u e

I 174 I Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992


está na base dessa m e s m a f o r m a da r a c i o n a l i d a d e , e u m concei-
t o d e eficácia, q u e se c o l o c o u n o c e n t r o da sua f i g u r a histórica.
F i n a l m e n t e , na r a i z d a crise das i d e o l o g i a s políticas m o d e r n a s ,
o n e x o c o m a t e m p o r a l i d a d e apareceu t a n t o na p r e t e n s ã o d e
s u p r i m i r a história c o m o nas s i m u l a ç õ e s de fins sem f i m , sob a
forma de sociodicéias e de estatodicéias contemporâneas.

Posso agora f o r m u l a r a h i p ó t e s e . E ela a f i r m a s i m p l e s m e n t e q u e


a crise da m o d e r n i d a d e na sua f o r m a m o d e r n a é, r a d i c a l m e n t e
e nos seus f r u t o s , u m a crise mora!. A h i p ó t e s e , certamente, é
d e c e p c i o n a n t e , m a s isso n ã o m e p r e o c u p a , p o i s até m e s m o a
d e c e p ç ã o q u e ela p r o v o c a p o d e ser l i d a c o m o u m s i n t o m a da
sua v e r a c i d a d e . C o m efeito, o s i m p l e s fato d e a m o r a l ter s i d o
relegada, e m nosso t e m p o , c o m o d i z Eric W e i l , à q u e l a " r e g i ã o
d e s o m b r a s o n d e s o b r e v i v e m as l e m b r a n ç a s d e a n t i g a s discus-
s õ e s e de p r o b l e m a s fora de m o d a , r e l e m b r a d o s p o r p i e d a d e ,
retomados para serem e n f i m enterrados d e f i n i t i v a m e n t e , o u
c o m e m o r a d o s nessas c e r i m ô n i a s q u e têm o n o m e de cursos d e
história da f i l o s o f i a , das idéias o u da e v o l u ç ã o das sociedades
e que são, n u m a palavra, ocupações para conservadores de
27.Cf. W E I L . E . "Faudra-t- museu"^^, c o n f i r m a , j u s t a m e n t e , a q u i l o q u e a h i p ó t e s e sustenta.
il de nouveau parler de
m o r a l e ? " , Philoíophie et M a s , e m vista da sua v e r i f i c a ç ã o , m a i s u m a vez, é i m p o r t a n t e
Réalitè, Dernicrí essais et q u e nos e n t e n d a m o s sobre o q u e se e n t e n d e a q u i p o r crise m o r a l .
conférences, Paris, Beau-
chesne, 1982, 255-278, aqui N u m s e n t i d o m a i s i m e d i a t o , s i g n i f i c a q u e a m o r a l está e m crise
p, 255. e, c o m efeito, este p r i m e i r o s e n t i d o t e m s e r v i d o d e c o r t i n a d e
f u m a ç a para e n c o b r i r u m s e n t i d o m a i s p r o f u n d o q u e d i z respei-
to à crise m o r a l da m o d e r n i d a d e . C o m efeito, a m o d e r n i d a d e
m o d e r n a nasceu sob o s i g n o da m o r a l posta e m crise, p o i s a u t o r
das Regulae ad directionem ingenii f o i o m e s m o a p r o p o r q u e ,
e n q u a n t o n ã o se p u d e s s e p r o d u z i r o f r u t o m a d u r o da á r v o r e d o
c o n h e c i m e n t o , se adotasse u m a " m o r a l e p a r p r o v i s i o n " , q u e
consistia na a c e i t a ç ã o p r o v i s ó r i a d o s usos e c o s t u m e s d o m i n a n -
tes nas sociedades. P o r é m , a m o r a l posta e m crise p e l o f u n d a -
d o r da m o d e r n i d a d e m o d e r n a t o r n o u - s e a q u e s t ã o c e n t r a l para
a c u l t u r a da E u r o p a a p a r t i r d o c i c l o de p e n s a m e n t o q u e f i c o u
c o n h e c i d o c o m o a Ilustração, da q u a l t o d o s s o m o s h e r d e i r o s ,
q u e i r a m o s o u n ã o . A p o n t a d e d i a m a n t e d o p r o j e t o da I l u s t r a -
ç ã o p o d e ser r e s u m i d o na t e n t a t i v a d e r e f u n d a r a m o r a l e m
bases onto-antropológicas. T a l p r o j e t o , c o m o sabemos, e n c o n t r o u
seu a c a b a m e n t o e m I m m a n u e l K a n t , a m a i o r e x p r e s s ã o da i d a -
d e da crítica. O Sapere audel, a o u s a d i a de usar d o p r ó p r i o e n -
t e n d i m e n t o , v e i o a ser, a p a r t i r d e e n t ã o , a tarefa d e Sísifo d e
t o d o s os p r e t e n d e n t e s à m a t u r i d a d e da r a z ã o absolutamente
a u t ô n o m a e l e g i s l a d o r a . N ã o causa estranheza, p o r t a n t o , q u e o
traço m a i s c a r a c í e r í s t i c o da m o d e r n i d a d e m o d e m a mosfre-se
nas pretensas e i n t e r m i n á v e i s d i s c u s s õ e s m o r a i s da a t u a l i d a d e .

Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992 175


q u e se r e d u z e m , c o m o i n d i c a a c u r a d a m e n t e M a c l n t y r e , ao c o n -
f r o n t o entre premissas m o r a i s i n c o m p a t í v e i s , e i n c o m e n s u r á -
veis, e à e x p r e s s ã o d e p r e f e r ê n c i a s sem critério, incapazes d e
d a r q u a l q u e r justificação r a c i o n a l para u m a escolha e n t r e as
premissas-"*. De fato, pode-se d i z e r , para a p r o v e i t a r a i m a g e m 28. A interpretação da Ilus-
a c i m a s u g e r i d a , q u e os t r a b a l h o s d e H é r c u l e s , antecedente m i - trat;ão que damos aqui ba-
seia-se na tese de fundo do
t o l ó g i c o d e u m a c o n c e p ç ã o teleológica da m o r a l centrada na livro de A M A C I N T Y R E ,
v i r t u d e , t o r n a r a m - s e , na m o d e r n i d a d e m o d e r n a , a insensata AfteT Virlue. anteriormente
citado (ver espec. cap I a 6
tarefa d e Sísifo, i m a g e m p a r a d i g m á t i c a d e u m a m o r a l q u e per- para a caracteríiitaçáo do
d e u o seu f i m ao i m a n e n t i z a r n o sujeito o f u n d a m e n t o da sua projeto da mtxlernidade e
das conseqüências do seu
a u t o c o m p r e e n s ã o e da sua a ç ã o . fracasso) A chave inter-
prelativa de Maclntyre tem
Esse g r a n d e e q u í v o c o o u , p a r a falar a l i n g u a g e m platônica, esse c o n t i n u i d a d e em outra
g r a n d e obra intitulada
prõlon pseudos, essa g r a n d e m e n t i r a f o i posta c o m o p r i n c í p i o e W/íi>sc luítice? Which
fundamento de uma nova compreensão d o m u n d o e do ho- Rsitionaiily?, Nolre Dame,
University of Notre Dame
m e m , das relações d o h o m e m c o m o m u n d o e c o m os h o m e n s ,
Press, 1488 (/iisíi(,y de quem?
p a r a n ã o falar da relação d o s h o m e n s c o m IDeus. O m u n d o Qual racmmlidade?, trad. de
d e i x o u d e ser c o m p r e e n d i d o c o m o c o s m o e c r i a t u r a e passou a Marcelo P. Marques, C o l .
Filosofia 1 7 , S A O Paulo,
ser s i m p l e s m a t e r i a l d e c o n s t r u ç ã o ; o h o m e m n ã o é m a i s zoõn Loyoia, I W l ) . Ver tambím,
politikón e i m a g e m d e IDeus, mas i n d i v í d u o , q u e se constrói c o m do mesmo autor: Tbrec Ri-
iw/ VcrSKitis of Moral Enqui-
os cacos p a r c i a l m e n t e sensatos q u e s o b r a r a m da ruína d o m u n - ry. F.ncyelopaedia. Genealogif,
d o a n t i g o , e se c o m p r e e n d e o l h a n d o - s e n u m esf>elho t a m b é m and Traditum. heing Gifford
Uvturcs deliivred in the Uni-
fragmentado. N ã o é de m o d o a l g u m admirável que, depois de ivrsity of FÀinburgh in J988.
s e m e l h a n t e catástrofe, os f i l h o s d e H o b b e s , q u e r e c o l h e r a m a London, EXickwoth. 1990
h e r a n ç a d e T r a s í m a c o da República de Platão, c o m p r e e n d a m a
sociedade c o m o u m a coleção d e i n d i v i d u a l i d a d e s p o t e n c i a l m e n t e
e m g u e r r a , t e n d o passado ao estado c i v i l i z a d o p o r u m h i p o t é -
t i c o p a c t o d e a s s o c i a ç ã o , o q u a l , por sua vez, precisa d e o u t r o
h i p o t é t i c o p a c t o d e s u b m i s s ã o q u e o g a r a n t a pela força. N ã o
causa n e n h u m espanto q u e os m o d e r n o s realistas da política
n ã o sejam m a i s d o q u e u m a c a r i c a t u r a d e Cálicles, n o Górgias
p l a t ô n i c o , para q u e m a m o r a l n ã o é s e n ã o u m i n s t r u m e n t o nas
m ã o s d o s p o d e r o s o s o u d o s q u e q u e r e m se a p o d e r a r d o p o d e r .
É p e r f e i t a m e n t e c o m p r e e n s í v e l q u e as i d e o l o g i a s políticas d a
m o d e r n i d a d e , todas elas a l i m e n t a n d o - s e d o i n d i v i d u a l i s m o e,
a s s i m , c o n t r i b u i n d o para reforçar o f e n ô m e n o q u e p r e t e n d e m
explicar, precisem metamorfosear-se em sociodicéias e
e s t a t o d i c é i a s , c o m o t e n t a t i v a s desesperadas d e v i n c u l a r os i n d i -
v í d u o s a projetos u t ó p i c o s c o n d e n a d o s a r u i r , c o m o o m u r o d e
B e r l i m , sob o i m p l a c á v e l peso d a história.

A s f i g u r a s históricas da crise ua m o d e r n i d a d e m o d e m a n ã o s ã o
m a i s d o q u e e x p r e s s õ e s da crise m o r a l da m o d e r n i d a d e m o d e r -
na. C r i s e m o r a l q u e se revela na insensata p r e t e n s ã o da socie-
d a d e d e se a u t o c o m p r e e n d e r e m u m a ciência. N ã o q u e a ciência
seja d e s p r e z í v e l , p o i s , c o m o disse a n t e r i o r m e n t e , u m d o s pres-
s u p o s t o s d a m i n h a e x p o s i ç ã o é q u e n ã o se p o d e chegar a ser

176 Síntese Nova Fase. v. 19. n. 57. 1992


r a z o á v e l sem ser r a c i o n a l . Desde os t e m p o s da A c a d e m i a d e
P l a t ã o , na q u a l n ã o se e n t r a v a sem saber g e o m e t r i a , a ciência
o c u p o u o l u g a r p r e e m i n e n t e q u e l h e c o m p e t e na nossa t r a d i ç ã o ,
n ã o p o r q u e ela fosse c o n s i d e r a d a u m b e m e m s i , mas p o r q u e
d a v a ao h o m e m a i n d i s p e n s á v e l a p r e n d i z a g e m p a r a pensar
29. Sobre isso ver W E I L , E„ c o e r e n t e m e n t e ^ . A crise revela-se na c o n t r a d i ç ã o entre u m a o r -
"La science et !a civilisation g a n i z a ç ã o social calculista, mecanicista e m a t e r i a l i s t a , q u e só
tnoderne I U Í le sens de
Tinsenst^", Essais el Con- conta c o m bens c o n t a b i l i z á v e i s , s u b m e t i d o s à " r e g r a d e o u r o "
férences. l, Paris. Plon, 197(1. da c o m p e t i ç ã o e ao d o g m a d a eficácia, e a q u i l o q u e a r e f l e x ã o
p. 268-2%.
m o r a l descobre na o r i g e m d a nossa tradição, a saber, u m c o n -
ceito d e b e m q u e se expressa c o m o v i r t u d e , isto é, c o m o a t u a -
l i z a ç ã o d e u m a e x c e l ê n c i a s e g u n d o u m f i m n ã o redutível ao
i n d i v í d u o - t a l - c o m o - e l e - é , mas q u e o m o l d a , a t r a v é s da m o r a l ,
p a r a ser t a l - c o m o - e l e - d e v e - s e r - s e g u n d o - o - f i m - q u e - é - o - s e u . A
crise revela-se, t a m b é m , na incapacidade d e superar a a t u a l f o r m a
d o Estado, p o r q u e os Estados s ã o c o n s i d e r a d o s c o m o indiví-
d u o s históricos e, até o m o m e n t o , incapazes d e c o m p r e e n d e r
q u e " é d o interesse d o Estado p a r t i c u l a r t r a b a l h a r p a r a a r e a l i -
z a ç ã o d e u m a o r g a n i z a ç ã o m u n d i a l , e m vista d e p r e s e r v a r a
p a r t i c u l a r i d a d e m o r a l ( o u as p a r t i c u l a r i d a d e s m o r a i s ) q u e ele
30. Cf. W E I L , E., Filosofia encarna"™. M a s a crise se revela t a m b é m n o c o n f l i t o entre u m a
Pohlicn, Of. cit., p. 299. Ver
todo o desenvolvimento c o n c e p ç ã o da justiça r e d u z i d a e x c l u s i v a m e n t e às suas f o r m a s
desta tese nas p. 299-320. d i s t r i b u t i v a e c o m u t a t i v a , s u b m e t i d a s ao critério da eficácia, e
u m a c o n c e p ç ã o d a justiça d e m e r e c i m e n t o c u j o critério é a ex-
31. Stibre o conceito de jus- celência^'. A crise m o r a l d a m o d e r n i d a d e m o d e r n a revela-se,
tiça de merecimento ver
f i n a l m e n t e , nas s i m u l a ç õ e s i d e o l ó g i c a s d e u m a n o v a , p o r é m
principalmente os primei-
ros c a p i l u l o s de M A C - p a t o l ó g i c a , relação e n t r e a espera e a e x p e r i ê n c i a , seja pela t e n -
I N T Y R E , A . . íiistiça de tativa intra-histórica d e s u p r i m i r a história, seja pela p r o p o s t a
quem? Qual racionalidade?,
op. cit., pp, 23-160. d e u m a s a t i s f a ç ã o sem f i n s e sem f i m .

M a s , se a crise da m o d e r n i d a d e m o d e r n a é u m a crise m o r a l ,
e n t ã o será preciso falar de novo em moral, n ã o c o m o se fala nas
d i s p u t a s p s e u d o m o r a i s c o n t e m p o r â n e a s , mas c o m o se falava,
p o r e x e m p l o , nos t e m p o s e m q u e S ó c r a t e s fez a f i l o s o f i a descer
d o céu sobre a t e r r a , s i t u a n d o - a nas cidades, i n t r o d u z i n d o - a nas
casas e o b r i g a n d o - a a c o n s i d e r a r a v i d a e a m o r a l , o b e m e o
32. Cí. M, T. CÍCERO. Tusc. m a l " . Será preciso falar d e n o v o e m m o r a l , para q u e se recupere
V. 4. 1». o conceito d e v i r t u d e q u e está na o r i g e m da nossa t r a d i ç ã o d e
m o d e r n i d a d e e q u e f o i t r a n s f o r m a d o e m u m conceito i n t i m i s t a ,
r e l e g a d o ao r e d u z i d o elenco d o s deveres d e estado, a p a r t i r d o
33. Ver maiores desenvol- g r a n d e e q u í v o c o d a m o d e r n i d a d e moderna^\ S e r á preciso falar
vimentos dessa questão em: de n o v o e m m o r a l , para q u e a d i s c u s s ã o sobre a m o r a l seja,
LIMA V A Z , H . C . Escritos
de Filosofia II. F.lica e Cultu- acima de t u d o , u m a discussão m o r a l .
ra, Col. Filosofia 8. São Pau-
lo, Loyola. 1988, c. do mes- Se a m i n h a hipótese m o s t r o u - s e consistente, e n t ã o eu terei a v a n -
mo autor, AntrojHilogia Filo-
sófica l, Col. Filosofia 15, São ç a d o a q u i u m p o u c o m a i s na e x p l i c i t a ç ã o d e u m a tese q u e m e
Paulo, Loyola, 1991. a c o m p a n h a há a l g u n s anos, e q u e expressei n o f i n a l d e u m

Síntese Nova Fase, v. 19, n. 57, 1992 \ 177 |


p e q u e n o t e x t o sobre " A d i m e n s ã o ética d o h o m e m " . C i t a n d o a
sua c o n c l u s ã o , c o n c l u o : " N ó s q u e s o m o s na r e a l i d a d e pós-anti-
gos, se n o s d i s p u s é s s e m o s a r e t o m a r a d i s c u s s ã o m o r a l e m vez
d e s e g u i r a l i m e n t a n d o as d i s p u t a s m o r a i s nas q u a i s cada u m 34, Cf, P E R I N E . M,. " A di-
mensão ética do homem",
presta ao o u t r o a m e t a d e m o u c a d o s seus o u v i d o s , t a l v e z c o n - Síntese N«rw Fase, v, 15 n.
c l u í s s e m o s , s u r p r e e n d e n t e m e n t e , q u e o a b i s m o c a v a d o nesses 43 (1988);23-37, aqui p, 36.
Sobre a "segunda revolução
ú l t i m o s s é c u l o s entre o d i s c u r s o sobre o ser e o d i s c u r s o sobre copernicana do pensamen-
o d e v e r ser n ã o está i n s c r i t o na n a t u r e z a das coisas m o r a i s e n ã o to kantiano" ver o meu h-
vro Filosofia e Vudêiicia. Sen-
é m a i s q u e o p r o d u t o d e u m a c u l t u r a . M a s para isso t e r í a m o s tido e inleni;ilo da filosofia de
d e c o m p l e t a r aquela q u e f o i c h a m a d a d e s e g u n d a r e v o l u ç ã o Eric Weil, C o l Filosofia 6,
São Paulo, Loyola, 1987,
copernicana d o pensamento kantiano"^.

Endere(;o do autor
Av. Cristiano Guimarães, 2127
31720-300 — Belo Horizonte — M G

I 178 I Síntese Nova Fase. v. 19. n. 57. 1992

Você também pode gostar