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In: FISHER, Mark.

Realismo capitalista: é mais fácil


imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?
São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 92-103.
“S e p u d é s s e m o s o b s e rv a r
a s o b re p o s iç ã o d e re a lid a d e s
d is tin ta s ”: o re a lis m o c a p ita lis ta
c o m o tra b a lh o o n íric o e
d is tú rb io d e m e m ó ria .
“ Ser realist a” j á sign ifi cou fazer as pazes com um a realidade
experim ent ada com o sólida e im óvel. N o reali sm o capit alist a,
ent ret ant o, im pli ca que nos subordin em os a um a reali dade i n ­
finit am ent e plást ica, capaz de se recon fi gu rar a t odo inst ant e.
Som os con fron t ados com o que Jam eson cham a, em seu ensaio
“A s ant inom i as da pós-m oder n id ad e”, um “present e puram ent e
f u n g ív el , no qual o espaço e as psi ques possam igualm ent e ser
pr ocessados e refeit os à vont ade”.52 A qui , “ realidade” assem e­
lha-se às m ult iplicidades de opções dispon íveis em um d ocu ­
m ent o digit al, n o qual nen h um a decisão é defi nit iva, h á sem ­
pre a possi bi lidade de revisão, e a qualquer inst ant e pode-se
ret or nar a um m om ent o ant erior. U m di ret or do inst it ut o de
educação cont inuada, a quem m e refer i ant eriorm ent e, fez da
adapt ação a essa real idade f u n g í v e l um a arte. Con t ava-n os em
um dia, com t ot al confiança, um a hi st óri a replet a de ot im ism o
sobre a inst it uição e seu fut uro - quais seri am as im pli cações da
inspeção, o que as inst âncias superior es est avam achando... - e,
l i t er a l m en t e n o d i a seg u i n t e, sem nen hum t raço de t im idez, apa­
recia com um a n ova narr at i va que con t radi zi a com plet am ent e
suas alegações ant eriores. N ão era sequer um a quest ão de se
ret rat ar acerca do que dissera: ele não par ecia sequer lem brar
que um a out ra ver são havia exist ido. I sso, suponho, é o que se
cham a de “gest ão com pet ent e”. E é t am bém , m uit o pr ovavel­
ment e, a ú n i ca m an ei r a de perm an ecer são e em boa saúde em

52 Jameson, Fredric. “As antinomias da pós-modernidade”. Em As


sem en t es do t em po. São Paulo: Ática, 1997.
m ei o a inst abilidade perpét ua do capit alism o. Por fora, esse d i ­
ret or é um m od elo de saúde m ent al perfeit a, t ran spirand o um a
cordial idade frat erna de quem cum pr im en t a afet uosam ent e os
colegas no corredor. M as t ais níveis de can du r a só podem ser
m an t idos m ediant e um a ausência quase t ot al de reflexão cr ít i ­
ca e um a capaci dade, com o ele bem t inha, par a ci nicam en t e se
con form ar com quaisquer di ret rizes vin das da aut oridade bu r o­
crát ica. O c i n i sm o da con form idade é ingredient e fundam ent al:
dele depende a m anut enção de sua aut o-im agem , a do “jovem
senh or ” de ideais progressist as diret am ent e t razi dos dos anos
1960, que “ não acredit a realm ent e” no pr ocesso de audi t oria
que faz cu m pr i r com absolut a diligên cia. Essa denegação, esse
deslocam ent o, se sust ent a na dist inção ent re atit ude subjet iva
int er na e com port am ent o ext erior, di scut id a ant eriorm ent e:
por dentro é ant ipát ico, até cont est ador, frente àqueles pr oce­
dim ent os burocr át icos que supervision a; p or fora, con form a-se
a esses pr ocedim ent os perfeit am ent e. É pr ecisam en t e esse de­
sinvest im ent o subjet ivo nas t arefas cot idi anas que perm it e aos
t rabalh adores con t inuarem a r eal izar u m t rabalho sem sent ido
e desm oralizant e.
A capacidade do di ret or de t ran sit ar li vrem ent e p or r eal id a­
des t ão dist int as m e faz lem brar de A c u r v a d o so n h o , de U rsu la
Le Guin . O r om ance cont a a hi st óri a de Geor ge O rr, um h o ­
m em cujos son h os se t ran sform am , lit eralm ent e, em r ealidade.
A o m elh or est ilo dos cont os de fadas, no ent ant o, as r eali za­
ções dos desejos rapidam ent e vão se t or n and o t raum át icas e
cat ast róficas. Com o quando O r r é induzi do p or Dr. H aber, seu
t erapeut a, a sonh ar com um a respost a par a o pr obl em a da su ­
perpopulação e o pr ot agonist a despert a em um m undo no qual
bilhões de vid as for am di zi m adas p or um a praga; essa cat ás­
t rofe, com o Jam eson pr opõe em sua discussão da obra, é “ um
acont ecim ent o que, em bora inexist ent e, rapidam ent e encont ra
lugar na n ossa m em ór i a cr on ológi ca de um passado recent e”.
r

M uit o da força do r om ance d er i va da con st r ução e do m anejo


ret r ospect ivo dessas fabu lações, em um a di n âm ica ao m esm o
t em po t ão fam il iar (t odos nós sonh am os ao dorm ir ) e est ranha.
Com o poder íam os acr edi t ar em relat os sucessivos, ou coe­
xist ent es, que se con t radizem de m odo t ão óbvio? E, no ent ant o,
Kant , N iet zsche e a psi canáli se j á nos ensin ar am que d esp er t a r ,
t ant o quant o sonhar, depend e de sem elhant e anál ise de n ar r a­
t ivas. Se o Real é insupor t ável , q u a l q u er real idade que form os
capazes de con st r uir t erá que ser um t ecido de inconsist ências.
O que di feren ci a Kant , N iet zsche e Freud do clichê bat ido de
que “a vi d a é um sonho” é o sent ido de que as fabulações nas
quais vivem os são consensuais. A ideia de que o m undo que ex­
peri m ent am os é um a il usão solipsist a projet ada no in t er ior da
nossa m ent e m ais con sola do que pert u rba, um a vez que est á de
acor do com nossas fant asias infant i s de onipot ência. Já o p en ­
sam ent o de que a nossa, assim cham ada, i nt eri or idade deve sua
exist ência a um consenso ficci on ali zad o t raz con sigo um a car ga
inquiet ant e. Esse nível ext ra de inquiet ação est á regist rado em
A c u r v a d o so n h o quando os sonhos de O r r que dist orcem a
real idade são observados por out ros - pela advogada H eat her
Lelach e e pelo t erapeuta Dr. H aber, que pr ocu ra m an ipular e
cont r olar a habilidade de Orr. Com o é viver um sonh o - d e
ou t r o - que se t orn a realidade?

[ H a b e r ] n ã o p o d i a m a i s c o n t i n u a r f a l a n d o . Se n t i u : a m u d a n ç a , a

ch e g a d a , o p o r v i r .

A m u lh er tam bém se n t i u . P a r e c i a a ssu st a d a . A p e r t a n d o , c o m o

u m t a l i sm ã , o c o l a r d e b r o n z e c o n t r a a su a g a r g a n t a , f i t a v a a p a i ­

sa g e m d a j a n e l a e m t o n t u r a , c h o q u e , h o r r o r .

95
[ ...] E a e l a , o q u e f e z d i sso t u d o ? E l a e n t e n d e u , e n l o u q u e c e u , o

q u e se r i a d e l a ? F o r a c a p a z d e m a n t e r a s d u a s l i n h a s d e m e m o r i a ,

a ssi m c o m o e l e ?; a r e a l e a n o v a , a v e l h a e a v e r d a d e i r a ?53

Ela “enlouqueceu” ? N ão, de for m a algum a: depois de um m o­


m ent o de negação e assom bro, H eat her Lelache aceit a o “novo”
m un do com o o m undo “ver dadei ro”, apagando as cicat rizes.
Essa est rat égia - de aceit ar sem quest ionam ent os o i n com en su­
rável, o sem sent ido - sem pre foi um a t écn ica de sani dade por
excelência, m as t em um papel essencial no capit alism o t ardio,
essa “pi nt ur a m ult iform e de t udo aquil o que j á exist i u”, cuja
conjuração e descart e das ficções sociais ocor r e quase t ão r a­
pidam ent e quant o a pr odução e di st ribui ção das m er cadorias.
Em t ais condi ções de pr ecari edade on t ológica, esquecer
conver t e-se em est rat égia de adapt ação. Tom em os por exem plo
o pr im eir o m in ist r o bri t ân ico Gor don Br ow n , cuja opor t un a
rein ven ção de i dent idade polít ica envolveu a t ent at iva de i n du­
zir um a espécie de esquecim ent o colet ivo. Em um art i go pu bli ­
cado na I n t er n a t i o n a l So c i a l i sm , Joh n N ew si n ger lem bra com o

B r o w n a fi r m o u , e m u m a co n fe r ê n ci a d a C o n f e d e r a çã o B r i t â n i ca

d a I n d ú st r i a , q u e “o m u n d o d o s n e g ó c i o s e st á e m m e u sa n g u e ”.

Q u e su a m ã e h a v i a si d o d i r e t o r a d e u m a e m p r e sa e e l e h a v i a c r e s­

c i d o “e m u m a a t m o sf e r a o n d e e u sa b i a d e t u d o o q u e e st a v a a c o n ­

t e c e n d o n o m e i o e m p r e sa r i a l ”. B r o w n e r a , e d e f a t o se m p r e h a v i a

si d o , u m d e l e s. O ú n i c o p r o b l e m a é q u e n a d a d i sso e r a v e r d a d e .

C o n f o r m e su a m ã e a d m i t i u d e p o i s, e l a n u n c a se c o n si d e r o u “u m a

m u l h e r d e n e g ó c i o s” : a p e n a s h a v i a r e a l i z a d o “ l i g e i r a s t a r e f a s a d ­

m i n i st r a t i v a s” e m u m a “p e q u e n a e m p r e sa f a m i l i a r ” e a b a n d o n o u

o e m p r e g o a p ó s o c a sa m e n t o , t r ê s a n o s a n t e s d o p e q u e n o G o r d o n

53 L e G u i n , U r su l a K . A c u r v a d o s o n h o , 19 7 1.
n a sce r . Se j á t i v e m o s l i d e r a n ç a s n o P a r t i d o T r a b a l h i st a q u e t e n t a ­

r a m in ven t a r u m a o r ige m o p e r á r i a , B r o w n fo i o p r im e ir o t en t ar

i n v e n t a r u m a o r i g e m b u r g u e sa . 54

N ew sin ger con t rast a Br ow n com seu rival, e predecessor, Tony


Bl air - um caso bast ant e diferent e. Blair, que encarn ava o es­
t ranh o espet áculo de um m essiani sm o pós-m oder n o, jam ai s
precisou renegar suas convicções porque n ão acr edi t ou em
coisa algum a; j á a t ransição de Gor d on Br ow n, a peregri nação
de sociali st a presbit eriano a chefão do N ovo Trabalhism o, foi
um longo, árduo e dolor oso pr ocesso de aut onegação e r epú­
dio. “ Par a Blair, abraçar o neol iber ali sm o não envolveu n en h u­
m a gran de bat alha int erna, um a vez que não t in ha convicções
ant eriores par a aban don ar ”, escreve N ewsi nger, “j á n o caso de
Br ow n, envolveu um a decisão deli ber ada de t rocar de lad o - o
esforço, pode-se suspeit ar, dan ifi cou sua person ali dade no p r o­
cesso”. Bl air era o Ü lt i m o H om em 55 por nat ureza e inclinação.
Br ow n t or n ou -se o Ú lt i m o H om em , o anão no Fim da H i st ória,
por for ça de sua pr ópri a vont ade.
Bl air era o hom em sem peit o,55 o o u t si d er - de for a da p olít i ­
ca - que o par t ido precisava par a volt ar ao poder, um ven dedor

54 N e w si n g e r , Jo h n . “ B r o w n ’sj o u r n e y f r o m r e f o r m i sm t o n e o l i b e r a l i sm ”.

E m I n t e r n a t i o n a l So c i a l i s m , j u l h o d e 2 0 17 , e d i ç ã o 115 .

55 n . d a e .: r e f e r ê n ci a a o p e r so n a g e m L i o n e l V e r n e y , d o r o m a n c e O

ú l t i m o h o m em ( 18 2 6 ) d e M a r y Sh e l l e y .

55 n . d a t .: o a u t o r u t i l i z a a e x p r e ssã o m a n w i t h o u t a c h est , q u e f a z

r e f e r ê n ci a a o e n sa i o d e C . S. L e w i s d e 19 4 3 , A a b o l i ç ã o d o h o m em :

“E m u m a e sp é c i e d e i n g e n u i d a d e m a c a b r a , r e m o v e m o s o ó r g ã o e

d e m a n d a m o s su a f u n ç ã o . C r i a m o s o s h o m e n s se m p e i t o e e sp e r a m o s

d e l es a v i r t u d e e a i n i ci a t i v a . Z o m b a m o s d a h o n r a e f i ca m o s ch o ca d o s

a o e n c o n t r a r t r a i d o r e s e m n o sso m e i o . N ó s o s c a st r a m o s e e x i g i m o s

d o s c a st r a d o s q u e se j a m f r u t í f e r o s”. ( A a b o l i ç ã o d o h o m em . R i o d e
m alan dr o com seu rost o hi st érico de Cor i n ga. Já o im plausível
ato de reinvenção de Br ow n era pr ecisam en t e aquilo pelo qual
o própr io par t i do pr ecisou passar ; seu sofr id o sor ri so falso, o
correlat o objet ivo do estado real do part i do, que h avi a capit u­
lad o int eiram ent e ao capit alism o realist a: vazi o, e covarde, suas
ent ranhas subst it uídas por si m ulacros que um a vez j á par ece­
r am reluzent es, m as que agora eram t ão at raent es quant o um a
t ecnologia com put acional dez anos depois de seu lançam ent o.
Em con di ções nas quais se at ualizam reali dades e i den t i­
dades com o soft wares, não é surpreendent e que os dist úrbios
de m em ór i a ocupem at ualm ent e o foco da angúst ia cult ural -
pensem os em exem plos do cinem a, com o A m n és i a , B r i l h o et er ­
n o d e u m a m en t e sem l em b r a n ç a s ou a série B o u r n e. N a saga
ci nem at ográfica dedicada a Jason Bour n e, a busca desesperada
do prot agonist a para reconquist ar sua i dent i dade corr e lad o a
lado com um a con t ínua fu ga de qualquer sent ido do “eu” fixo.
“ Tente m e ent ender...”, afi rm a Bour n e, em u m a passagem do r o­
m an ce origin al de Robert Ludlum ,

T e n h o q u e sa b e r a l g u m a s c o i sa s.., o su f i c i e n t e p a r a t o m a r u m a

d e c i sã o ... m a s t a l v e z n ã o t u d o . U m a p a r t e d e m i m t e m q u e se r c a ­

p a z d e i r e m b o r a , d e sa p a r e ce r . T e n h o q u e se r c a p a z d e d i z e r p a r a

m i m m e sm o , o q u e f o i n ã o é m a i s e h á u m a p o ssi b i l i d a d e d e n u n ­

c a t e r si d o , p o r q u e n ã o t e n h o n e n h u m a l e m b r a n ç a d i sso . O q u e

u m a p e sso a n ã o p o d e se l e m b r a r n ã o e x i st e .., a o m e n o s p a r a e l e .*57

N os film es, o n om adi sm o t ran sn acional de Bour n e é exibido


em um a edi ção de cort es ult rar rápidos, que fu n ci on a com o um a
espécie de an t i m em ória, projet an do o espect ador n um ver t igi-

Ja n e i r o : V i d a m e l h o r E d i t o r a S .A ., 20 17 . )
57 L u d l u m , R o b e r t . A i d en t i d a d e B o u r n e. R i o d e Ja n e i r o : E d i t o r a

R o cco , 20 0 0 .
n oso “present e cont ínuo”, que, segun do Fred eri c Jam eson, ca­
ract eriza a t em por ali dade pós-m oder n a. A t ram a com pl exa dos
r om ances de Ludlum é t r an sfor m ada em um a série de event os
ci fr ados e fr agm en t os de ações evanescent es de coerência pr e­
cár ia que m al chega a for m ar um a n arr at iva int eligível. Pr i vado
de um a hi st óri a pessoal, Bour n e carece de m em ór i a n a r r a t i v a ,
m as con serva aquilo que se pode ch am ar de m em ór i a f o r m a l :
um a m em ór i a (de t écnicas, prát icas, ações) lit eralm ent e en car ­
n ad a em um conjunt o de t iques físicos e reflexos con di ci on a­
dos. A m em ór i a dani ficada de Bour n e ecoa a m od ali dade pós-
-m odern a de nost al gia descrit a por Fredri c Jam eson, na qual
refer ências con t em porâneas ou m esm o fut ur íst icas no nível do
cont eúdo obscu recem a dependência em relação a m odelos es­
t abelecidos, ou ant iquados, no nível da for m a. Por um lado, é
um a cult ura que pr ivil egia apenas o present e e o im ediat o - a
ext ir pação do “ lon go prazo” se estende no t em po t ant o par a
frente quant o par a t rás (por exem plo, um t em a m on opol iza a
at enção por pouco m ais de um a sem an a no not i ci ári o, e ent ão
inst ant aneam ent e cai no esquecim ent o); por out ro, é um a cu l ­
t u r a excessi vam ent e nost álgica, pr open sa à ret rospect iva, i n ca­
paz de gerar novi dades aut ênt icas. A ident ificação e anál ise des­
t a an t i nom ia t em por al de Jam eson é provavelm ent e sua m ai or
cont r ibuição par a nossa com preen são da cult ura pós-m oder -
na/ pós-for dist a. “ O par ad oxo do qual devem os par t i r ”, Jam eson
ar gum en t a em “A s ant inom ias da pós-m oder n id ade”,

é o d a e q u i v a l ê n c i a e n t r e u m a t a x a d e m u d a n ç a s se m p r e c e d e n t e s

e m t o d o s o s n í v e i s d a v i d a so ci a l e u m a p a d r o n i z a ç ã o d e t u d o

se m p r e ce d e n t e s - se n t i m e n t o s, b e n s d e c o n su m o , l i n g u a g e m ,

e sp a ç o e a r q u i t e t u r a - q u e p o d e r i a se r j u l g a d a i n c o m p a t í v e l c o m

t a l m u t a b i l i d a d e . .. A p a r t i r d i sso , n o s d a m o s co n t a d e q u e n e ­

n h u m a so c i e d a d e j a m a i s se p a d r o n i z o u t a n t o q u a n t o a n o ssa , e

99
q u e a c o r r e n t e d e t e m p o r a l i d a d e h u m a n a , so ci a l e h i st ó r i c a n u n c a

se g u i u se u c u r so d e f o r m a t ã o h o m o g ê n e a . ( ...) P o r t a n t o , o q u e

a g o r a c o n se g u i m o s p e r c e b e r - e q u e c o m e ç a a e m e r g i r c o m o u m a

c o n st i t u i ç ã o p r o f u n d a e m a i s f u n d a m e n t a l d a p r ó p r i a p ó s - m o -

d e r n i d a d e , a o m e n o s e m su a d i m e n sã o t e m p o r a l - é qu e, d aq u i

e m d i a n t e , e n q u a n t o t u d o su b m e t e - se a o p e r p é t u o c o n t í n u o d e

m u d a n ç a d a m o d a e d a s r e p r e se n t a ç õ e s m i d i á t i c a s, n e n h u m a

m u d a n ç a é p o ssí v e l .“

Sem dúvida, t rat a-se de um out ro exem plo da bat alh a ent re
as forças de dest errit orialização e ret erri t oriali zação que, par a
D eleuze e Guat t ar i, é const it ut iva do capit alism o enquant o tal.
N ão seria surpreendent e se a pr ofu n da inst abilidade soci al e
econ ôm ica result asse em um pr ofu n do desejo por form at os
cult urais j á con hecidos, para os quais ret or nam os com o Bour n e
r et orna a seus reflexos. O di st úrbio de m em ór i a que é correlat o
a essa sit uação é a condição que aflige Leon ard no film e A m ­
n ési a , em t ese u m t ipo de am n ésia ant erógrada. N est e t ipo de
am n ési a as m em ór ias ant eriores ao i n ício da condição per m a­
necem int act as, m as os i nd ivíduos são incapazes de t ran sferi r
novas m em ór ias par a a m em ór ia de lon go prazo. Por isso, t udo
o que for n ovo aparece com o host il, fugaz, im possível de nave­
gar, e o pacient e r efugia-se na segurança daquil o que j á é velho
e conhecido. I n c a p a c i d a d e d e f o r m a r n o v a s m em ó r i a s : um a de­
fi nição con ci sa do im passe pós-m od er n o.
Se os os dist úrbios de m em ór ia oferecem um a convincent e
analogia par a as falhas do realism o capit alist a, o m odelo par a
seu funcion am en t o cont ínuo, sem brechas, seria o t rabalho
on írico. Q uan do sonham os, esquecem os - m as im edi at am en ­
te esquecem os que esquecem os. Com o as falhas e lacun as em

“ Ja m e so n , F r e d r i c . “ T h e a n t i n o m i e s o f P o st m o d e r n i t y ”. E m The

seed s o f t i m e , 19 9 4 .
nossa m em ór i a for am “ Phot osh opadas”, não nos pert ur bam ou
at orm ent am . O que o t rabalh o on ír ico faz é pr oduzir um a con ­
sist ência confabulada, fant asiosa, que encobre an om ali as e con ­
t radições. É precisam ent e isso a que se r efer ia W endy Br ow n
quando argum ent a que o t rabalho on ír ico é pr ecisam en t e o
m elh or m od elo par a com preender as for m as con t em porân eas
de poder. Em seu ensaio A m er i c a n n i g h t m a r e: n eo c o n ser v a t i sm ,
n eo l i b er a l i sm , a n d d e- d em o c r a t i z a t i o n [O pesadelo am er ica­
no: n eocon ser vador ism o, neoli berali sm o e des-dem ocr at i za-
ção] , Br ow n dest rin cha a ali ança ent re n eocon ser vadori sm o e
o neoli berali sm o que const it uiu a ver são nort e-am er ican a do
reali sm o capit alist a até 2008. Br ow n m ost r a que n eoli ber ali s­
m o e neocon ser vadori sm o operavam a par t i r de prem issas não
apenas inconsist ent es, m as diret am ent e con t radit órias. “ Com o”,
pergunt a Br ow n,

u m a r a c i o n a l i d a d e q u e é e x p r e ssa m e n t e a m o r a l e m f i n s e m e i o s

( n e o l i b e r a l i sm o ) se c r u z a c o m u m a q u e é e x p r e ssa m e n t e m o r a l e

r e g u l a d o r a ( n e o c o n se r v a d o r i sm o ) ? C o m o u m p r o j e t o q u e e sv a ­

z i a o m u n d o d e si g n i f i c a d o , q u e d e p r e c i a e d e sv a l o r i z a a v i d a e

e x p l o r a a b e r t a m e n t e o d e se j o , i n t e r a g e c o m u m q u e f i x a e r e f o r ç a

si g n i f i c a d o s, c o n se r v a c e r t o s m o d o s d e v i d a e r e p r i m e e r e g u l a o

d e se j o ? C o m o o a p o i o à u m a g o v e r n a n ç a m o d e l a d a n a e m p r e sa

e à u m t e c i d o so ci a l n o r m a t i v o b a se a d o n o i n t e r e sse p r i v a d o se

cr u z a co m o a p o i o à u m a go v e r n a n ça m o d e l a d a n a a u t o r i d a d e

d a i g r e j a e à u m t e c i d o so ci a l n o r m a t i v o d e a u t o ssa cr i f í c i o e d e

l e a l d a d e c o n sa n g u í n e a d u r a d o u r a , h á m u i t o d e sa f i a d a s p e l o a t u a l

c a p i t a l i sm o d e se n f r e a d o ?59

59 B r o w n , W e n d y . A m e r i c a n n i g h t m a r e: n eo l i b er a l i s m , n eo c o n s er v a ­

t i sm , a n d d e- d em o c r a t i z a t i o n , 2 0 0 6 .
M as a i n coer ên ci a daquilo que Br ow n ch am a de “ r aci on ali da­
de polít ica” n ad a faz par a i m pedi r a sim bi ose na subjet ividade
polít ica. Em bor a procedam de pr err ogat i vas m uit o diferent es,
Br ow n ar gum en t a que o n eoli ber ali sm o e o n eocon ser vador is-
m o t rabalh aram em parceri a para m i n ar a esfera públ ica e a
dem ocraci a, ao produzir um ci dadão gover nado que busca so­
luções par a seus problem as em m ercadorias, não em pr ocessos
polít icos. Com o Br ow n afirm a,

o c i d a d ã o q u e e sco l h e e o c i d a d ã o g o v e r n a d o e st ã o l o n g e d e se ­

r e m o p o st o s. .. O s i n t e l e ct u a i s d a e sco l a d e F r a n k f u r t ( e , a n t e s d e ­

l e s, P l a t ã o ) t e o r i z a r a m a co m p a t i b i l i d a d e a b e r t a e n t r e a e sc o l h a

i n d i v i d u a l e a d o m i n a ç ã o p o l í t i ca , e d e sc r e v e r a m su j e i t o s d e m o ­

c r á t i c o s q u e e st ã o d i sp o st o s a se su b m e t e r à t i r a n i a p o l í t i c a o u

a o a u t o r i t a r i sm o j u st a m e n t e p o r q u e e st ã o a b so r v i d o s e m u m d o ­

m í n i o d e e sc o l h a e sa t i sf a çã o d e n e c e ssi d a d e s q u e e r r o n e a m e n t e

c o n f u n d e m c o m l i b e r d a d e .60

Ext rapolan do um pouco os ar gum en t os de Br ow n, podem os


lan çar a hi pót ese de que o que m ant eve ju n t a a sínt ese bizarra
do n eocon ser vadori sm o com o neol iber ali sm o foi seu in im igo
em com um , objet o com par t ilh ado de abom inação: o assim ch a­
m ado “ Est ado babá” 61 e seus dependent es. Apesar de ost ent ar

60 I d e m .

61 n . d a t .: “N a n n y St a t e ”, u m t e r m o d e o r i g e m b r i t â n i c a q u e e x p r e ssa

a c r í t i c a c o n se r v a d o r a a o e st a d o d e b e m - e st a r so ci a l , t r a n sm i t i n d o a

i m a g e m d e u m g o v e r n o p a t e r n a l i st a , c o n d e sc e n d e n t e e su p e r p r o t e t o r ,

q u e i n f a n t i l i z a o s c i d a d ã o s e i n t e r f e r e n a s e sc o l h a s p e sso a i s. A i n v e n çã o

d o t e r m o é co m u m e n t e a t r i b u í d a a o p a r l a m e n t a r I a i n M a cl e o d ( q u e o

u t i l i z o u e m u m a r t i g o d e 19 6 5 ) , m a s f o i p o p u l a r i z a d o p o r e m p r e sa s d e

c i g a r r o s, e m r e a ç ã o à s c a m p a n h a s p ú b l i c a s a n t i t a b a g i st a s, e so b r e t u d o

p o r M a r g a r e t T h a ch t e r .
r

um a r et órica ant iestat ist a, o neol iber al ism o n a pr át ica não se


opõe ao Est ado p e r se - com o dem on st rar am os esforços est a­
t ais m assivos par a salvar os ban cos e resgat ar o sist em a fi n an ­
ceiro em 2008 m as sim , a cert os usos específicos dos fund os
est at ais. O Est ado fort e do n eocon ser vad ori sm o est ava rest rit o
a funções m ilit ares e policiais, e se defini a con t ra um Est ado de
bem -est ar social t ido com o responsável p or m i n ar a r espon sa­
bili dade m or al in dividual.

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