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SíNJTESE NOVA FASE

V. 2 0 N. 63 (1993):639.662

SUBJETIVIDADE^ EXISTÊNCIA E
AUTO-REALIZAÇÀO
Luiz Bicca
UFRJ — UERJ

reflexão metafísica m o d e r n a assenta sobre o princípio da s u b j e t i v i d a d e . Seu

f u n d a m e n t o é o s u j e i t o , na r e l a ç ã o q u e estabelece c o n s i g o m e s m o e na c o m -
p r e e n s ã o q u e p o s s u i d e si. O s u j e i t o q u e reflete n ã o p a r t e das coisas q u e o
c e r c a m o u dos fatos p a r a c o m p r e e n d e r - s e a si m e s m o , mas ao c o n t r á r i o , c o m o é típico
nos i d e a l i s m o s racionalistas o u e m p i r i s t a s , ele se v o l t a , no f u n d o o u na base d e sua
a t i v i d a d e i n t e l e c t u a l e m g e r a l , p a r a sua s u b j e t i v i d a d e c o m o h o r i z o n t e d e c i s i v o d e a u t o -
compreensão — subjetividade que é considerada, então, como o que forma o u constitui
o m u n d o . O f u n d a m e n t a l d e todas as p o s s i b i l i d a d e s d o p r ó p r i o sujeito é assim a l g o
" i n t e r i o r " . Isto q u e r d i z e r apenas q u e o e l e m e n t o p r i v i l e g i a d o d a m o d e r n a f i l o s o f l a d o
sujeito é o p u r o p e n s a m e n t o e q u e a r e f l e x ã o , o u m e l h o r , a a u t o - r e f l e x ã o — q u e
c o r r e s p o n d e a d e q u a d a m e n t e à e s t r u t u r a d a s u b j e t i v i d a d e , na m e d i d a e m q u e esta n ã o
é n e n h u m existente e n c o n t r á v e ! — é o ú n i c o c a m i n h o o u v i a d e acesso a essa n ã o -
- o b j e h v i d a d e . P o r t a n t o , nessa a u t o - r e f e r ê n c i a d o sujeito seu ser-sujeito é a l g o q u e n ã o
p o d e ser a p r e e n d i d o c o m o u m c o m p o r t a m e n t o visível, n ã o é descritível à m a n e i r a d e
u m estado de coisas e m p í r i c o .

Esse estilo o u m o d e l o d e p e n s a m e n t o é c o m u m e n t e d e s i g n a d o p o r " m o d e l o r e f l e x i v o "

o u " f i l o s o f i a representacionista da c o n s c i ê n c i a " . E m poucas p a l a v r a s , q u e s i g n i f l c a m
tais e x p r e s s õ e s ? Elas r e s u m e m a c r e n ç a d e q u e a c o n s c i ê n c i a é s e m p r e r e p r e s e n t a ç ã o
d e a l g u m objeto, o q u a l , recorrendo-se a u m a i m a g e m , é p o s t o d i a n t e dos o l h o s d o
sujeito da c o n s c i ê n c i a , e m c o n t r a p o s i ç ã o a ele. O sujeito da c o n s c i ê n c i a é i d e n t i f i c a d o
c o m o a q u e l e " E u " , q u e é a v i s t a d o tão l o g o o sujeito da r e p r e s e n t a ç ã o representa-se a
si m e s m o e m vez d e a l g u m a o u t r a coisa. A c o n s c i ê n c i a q u e p o s s u í m o s d e nós m e s m o s
é descrita d e m a n e i r a c o n d e n s a d a na m e t á f o r a d a reflexão: c o m o u m r e t o r n o sobre si
m e s m o d o f u n d a m e n t o o u s u p o r t e d o s atos d e representar, o q u a l , desse m o d o , faria
d e si m e s m o seu p r ó p r i o objeto. N o m o d e l o r e f l e x i v o o u representacionista, o s u j e i t o
pode sempre ser impelido para a posição de objeto, de forma a poder conhecer a si mesmo.

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, u. 20, n. 63, 1993 639

M u i t o já se i n s i s t i u , na história recente, sobre as a p o r i a s e as d i f i c u l d a d e s q u e se
o f e r e c i a m ao m o d e l o representacionista. A m a i s e n f a t i z a d a , t a l v e z , é a d e q u e a c o n -
c e p ç ã o r e f l e x i v a da a u t o c o n s c i ê n c i a , p r e d o m i n a n t e d e Descartes ao c h a m a d o Idealis-
m o A l e m ã o , mostrar-se-ia s e m p r e e n r e d a d a e m u m c í r c u l o : ela precisa s e m p r e pressu-
p o r a q u i l o q u e ela se p r o p õ e esclarecer o u e x p l i c a r : o E u . D e m o d o a ser capaz d e
c o n s i d e r a r a si m e s m o c o m o o q u e é r e f l e t i d o , aquele q u e reflete t e m , f o r ç o s a m e n t e ,
q u e já ter a l g u m saber d e si, já sabe d e seu p r ó p r i o ser. Fichte, q u e já se d a v a conta
d e d i f i c u l d a d e s c o m o essa, t e n t o u f u g i r a essa c i r c u l a r i d a d e a t r a v é s d e u m a c o n c e p ç ã o
d a a u t o c o n s c i ê n c i a d o sujeito c o m o e m e s p é c i e d e i m e d i a t a f a m i l i a r i d a d e consigo
m e s m o : o E u p u r o seria u m a intuição i n t e l e c t u a l . Segue-se d a í q u e a consciência de si
n ã o seria p r o p r i a m e n t e u m c o n h e c i m e n t o , já q u e t o d o c o n h e c i m e n t o , e m s e n t i d o e s t r i -
to, e n v o l v e necessariamente conceitos, q u e se r e l a c i o n a m s e m p r e m e d i a t a m e n t e c o m
objetos. O p r ó p r i o Fichte mostra-se, m a i s t a r d e , i n s a t i s f e i t o c o m a e x p r e s s ã o 'intuição
i n t e l e c t u a l ' , pelas a m b i g ü i d a d e s nela e n v o l v i d a s , s o b r e t u d o os aspectos de i m e d i a t i d a d e
e m e d i a ç ã o , p a s s í v e i s s e m p r e d e s e r e m l e v a n t a d o s q u a n d o se a f i r m a q u e a
a u t o c o n s c i ê n c i a f u n d a m e n t a l é u m a i n t u i ç ã o d e n a t u r e z a não-sensível.

D e t o d o m o d o , já se a f i g u r a v a , na p r ó p r i a é p o c a d o i d e a l i s m o a l e m ã o , a c o n v i c ç ã o de
q u e u m a teoria representacionista o u r e f l e x i v a da c o n s c i ê n c i a n ã o seria capaz d e e x p l i -
car s a t i s f a t o r i a m e n t e aquele fato d e ter-se s e m p r e a si m e s m o , aquele p r é v i o ser pró-
p r i o . A relação r e f l e x i v a c o n s i g o m e s m o não p o d e ser p e n s a d a sem se p r e s s u p o r i m -
p l i c i t a m e n t e u m a i d e n t i d a d e s i m p l e s autoconsciente ( d o c o n t r á r i o u m dos pólos dessa
relação não p o d e r i a n u n c a ser certeza d e estar a p r e e n d e n d o a si m e s m o no o u t r o pólo,
e n ã o a l g u m a o u t r a coisa). Por o u t r o l a d o , n ã o se p o d e i g n o r a r q u e tal i d e n t i d a d e , q u e
d e v e r i a ser i m e d i a t a , t e m u m aspecto i n e g á v e l de m e d i a ç ã o : ela só se c o n f i g u r a p e r a n -
te o o u t r o p ó l o d a relação o u p o r m e i o dele. A s s i m , d e n u n c i a n d o toda intenção o u
interesse e m d i s t a n c i a r - s e d o m o d e l o r e f l e x i v o da m o d e r n a f i l o s o f i a d o sujeito, a pos-
teridade filosófica do idealismo alemão mostrar-se-á pródiga em cunhar e
o p e r a c i o n a l i z a r u m a t e r m o l o g i a q u e sugere p r é - r e f l e x i v i d a d e o u até a n t i - r e f l e x i v i d a d e
n o q u e d i z respeito à f u n d a m e n t a l auto-relação q u e se e n c o n t r a n o cerne d o p e n s a m e n t o
d a s u b j e t i v i d a d e . D o " s e n t i m e n t o {Gefühl) d e s i " d o r o m a n t i s m o , à " c o n s c i ê n c i a i m e -
d i a t a d e s i " d o s f e n o m e n ó l o g o s o u à " f a m i l i a r i d a d e c o n s i g o m e s m o " das filosofias da
e x i s t ê n c i a , u m r e s í d u o d e insatisfação parece p e r m a n e c e r , na m e d i d a e m q u e t r a d u z
a i n a d e q u a ç ã o desse v o c a b u l á r i o à q u i l o a q u e se p r e t e n d e fazer referência: trata-se de
u m estado d e coisas d e u m d e t e r m i n a d o t i p o , q u e n ã o p o d e ser descrito p o r s e n t e n ç a s
o u a f i r m a ç õ e s baseadas n u m a s i m p l e s a n a l o g i a c o m os e n u n c i a d o s q u e f o r m a m o s , de
m a n e i r a a p r o p r i a d a , acerca d e coisas o u objetos "stricto sensu", isto é, objetos d a per-
cepção sensível.

A p e s a r d a i n t e n ç ã o q u e se t r a d u z nos e s c r ú p u l o s t e r m i n o l ó g i c o s , é u m fato, já a p o n -
t a d o na p r o d u ç ã o filosófica recente', a s o b r e v i v ê n c i a d o m o d e l o r e f l e x i v o a i n d a na
f i l o s o f i a d o s é c u l o X X . H u s s e r l aparece c o m o típico r e p r e s e n t a n t e d e u m a teoria refle-
x i v a , e m b o r a n ã o - e g o l ó g i c a , da c o n s c i ê n c i a d a si. Esta seria, e m seu p e n s a m e n t o , u m a
e s p é c i e d e c o n s c i ê n c i a d a c o n s c i ê n c i a , u m a " p e r c e p ç ã o i n t e r n a " q u e a c o m p a n h a as
v i v ê n c i a s , q u e s e r i a m , p o r t a n t o , os " o b j e t o s " d a q u e l a . Nesses t e r m o s , a s u b j e t i v i d a d e
p o d e r i a ser assim descrita: u m a v i v ê n c i a , q u e é i n t e n c i o n a l , d o b r a r - s e sobre si m e s m a ,
t o r n a n d o - s e o b j e t o d e o u p a r a a c o n s c i ê n c i a . A c o n s c i ê n c i a d e si é u m caso p a r t i c u l a r

640 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993

de " c o n s c i ê n c i a d e ..." — t o d a c o n s c i ê n c i a sendo necessariamente c o n s c i ê n c i a d e a l g o ,
só q u e , neste caso, " a l g o " é a p r ó p r i a c o n s c i ê n c i a , posta n u m a relação d i t a o b j e t i v a -
mente. H u s s e r l ter-se-ia e n r e d a d o e m d i f i c u l d a d e s s e m e l h a n t e s à s q u e se apresenta-
v a m à filosofia t r a n s c e n d e n t a l d o i d e a l i s m o a l e m ã o : t e m e m m e n t e u m a " p e r c e p ç ã o "
d e si q u e seria, p o r o u t r o l a d o , d i s t i n t a das referências o u relações i n t e n c i o n a i s c o m
objetos. Por o u t r o l a d o , H u s s e r l n ã o p o d e conceber u m a c o n s c i ê n c i a na q u a l o p ó l o -
-sujeito e o p ó l o - o b j e t o s i m p l e s m e n t e c o i n c i d a m , p o i s t o d a c o n s c i ê n c i a é c o n s c i ê n c i a d e
algo q u e lhe é transcendente. U m a c o n s c i ê n c i a s e m a l g o transcendente seria u m a cons-
ciência d e nada, o u seja, u m a c o n s c i ê n c i a . A existência d e a l g o p r é v i o , q u e é e n c o n t r a -
d o pela reflexão q u a n d o a c o n s c i ê n c i a se d o b r a o u se v o l t a ( " r e f l e t e " ) sobre si m e s m a
é u m pressuposto q u e parece c o n t i n u a r a se i m p o r c o m t o d a a força.

Ele se faz presente t a m b é m , a i n d a q u e d e f o r m a d i s t i n t a e c o m t o d a u m a o u t r a f u n ç ã o ,

nos casos e m q u e a relação p r i m á r i a o u f u n d a m e n t a l d o sujeito c o n s i g o m e s m o é
concebida c o m o " f a m i l i a r i d a d e " . E m l i n h a s gerais, o q u e seria c a r a c t e r í s t i c o d e tal
f a m i l i a r i d a d e ? U m a i m e d i a t i d a d e d e saber implícito d o s u j e i t o , d e n a t u r e z a pré-refle-
x i v a , não p r o p o r c i o n a d o p o r n e n h u m a e s p é c i e d e r e p r e s e n t a ç ã o . E s t a n d o f a m i l i a r i z a -
d o c o m a l g o , e u n ã o r e f l i t o sobre a q u i l o q u e m e é f a m i l i a r o u h a b i t u a l , q u e ; é m u i t o
conhecido, e m e n o s a i n d a sobre o fato m e s m o da f a m i l i a r i d a d e . Nesses t e r m o s , u m a
consciência d e estados p s í q u i c o s o u m e n t a i s n ã o precisaria, n e m d e v e r i a , ser c o m p r e -
e n d i d a c o m o saber d e a l g u m a coisa dela d i s t i n t a , mas descrita c o m o u m a i m e d i a t a
f a m i l i a r i d a d e d o ( o u c o m o) fato p s í q u i c o e m q u e s t ã o . C o m isso afasta-se t a m b é m ,
p r o n t a m e n t e , a p o s s i b i l i d a d e d e se pensar s e m e l h a n t e saber d e si c o m o c o n s c i ê n c i a se
u m ente a ser c h a m a d o , na m a i o r p a r t e das vezes, de " o E u " . S e m e l h a n t e saber n ã o se
e n q u a d r a c o m o p e r c e p ç ã o , n e m c o m o o b s e r v a ç ã o — a m b a s as e x p r e s s õ e s a p r o p r i a d a s
para caracterizar u m a relação c o m a l g u m a coisa o u u m ente da r e a l i d a d e e m p í r i c a
exterior. A o c o n t r á r i o , o ser consciente, c o n s i d e r a d o s e g u n d o a f a m i l i a r i d a d e o u o
hábito q u e t i v e r d e si m e s m o , seja sob q u e aspecto f o r , n ã o necessita ser t r a n s f o r m a d o
e m seu " o b j e t o " , o u seja, e m objeto d e u m a e n i g m á t i c a " p e r c e p ç ã o i n t e i r o r " . S e m e l h a n -
te c o n s c i ê n c i a , m u i t a s vezes c h a m a d a t a m b é m d e p r é - c o n s c i ê n c i a , caracteriza-se antes
p o r u m a n ã o - o b j e t i v i d a d e , u m a i m p o s s i b i l i d a d e d e p ô r a l g o c o m o objeto e m s e n t i d o
estrito, isto é, d e c o n h e c i m e n t o . E s p e c i f i c a m e n t e na r e l a ç ã o c o n s i g o m e s m o , tal (pré-)
consciência i r r e f l e x i v a , n ã o - r e p r e s e n t a n t e , c o n f i g u r a u m a c i r c u n s t â n c i a d e c o i n c i d ê n c i a
primária d e saber e ser. N ã o o c o r r e r i a nesse m'vel a s e p a r a ç ã o o u o p o s i ç ã o típica entre
consciência e ser o u sujeito e objeto.

Recuando p o r u m m o m e n t o a t é os clássicos d e metafísica m o d e r n a , m a i s p r e c i s a m e n t e

e m seu p e n s a m e n t o f u n d a m e n t a l , a s u b j e t i v i d a d e , sobressai a í u m a d e t e r m i n a ç ã o cen-
t r a l , quase o n i p r e s e n t e , q u e r se trate d a t r a d i ç ã o racionalista idealista, q u e r se tenha e m
vista d i v e r s a s vertentes n a t u r a l i s t a s o u materialistas: a a u t o c o n s e r v a ç ã o d o sujeito. Por
a u t o c o n s e r v a ç ã o entendeu-se, no m a i s das vezes, o e s f o r ç o p a r a a f i r m a r - s e o u m a n t e r -
-se na e x i s t ê n c i a , p a r a conservar seu p r ó p r i o ser. Nessa g e n e r a l i d a d e d e s i g n i f i c a d o
essa d e t e r m i n a ç ã o encontra-se v i n c u l a d a a c o n s i d e r a ç õ e s t a n t o sobre o s u j e i t o i n d i v i -
d u a l , q u a n t o acerca d e a l g u m a s u b j e t i v i d a d e u n i v e r s a l . A a u t o c o n s e r v a ç ã o f u n c i o n a ,
pelo m e n o s d e s d e H o b b e s , c o m o u m p r i n c í p i o d e c o n s t r u ç ã o teórica, t a n t o n o q u e d i z
respeito à v i d a i n d i v i d u a l , q u a n t o à v i d a c o l e t i v a o u e m sociedade. V i s t a agora d e u m
o u t r o â n g u l o , o da o p o s i ç ã o d a q u e l a s t r a d i ç õ e s a c i m a m e n c i o n a d a s , s e m p r e t e n d e r

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63. 1993 641

ressuscitar a q u i p o l ê m i c a q u e as c o n f r o n t a v a — s o b r e q u e m teria o p r i m a d o ontológico:
o ser d i t o " m a t e r i a l " o u a esfera d a c o n s c i ê n c i a — fato é q u e o p e n s a m e n t o d a
a u t o c o n s e r v a ç ã o faz-se presente e m a m b o s os p ó l o s c o n f l i t a n t e s : e n q u a n t o n u m a l i n h a
d e a r g u m e n t a ç ã o enfatiza-se a c o n s e r v a ç ã o c o m o p e r m a n ê n c i a d o ser m a t e r i a l , isto é,
s o b r e v i v ê n c i a e c o n ô m i c a d o s sujeitos m e d i a n t e o p r e e n c h i m e n t o d e d e t e r m i n a d a s
c a r ê n c i a s o u "necessidades" suas d i t a s v i t a i s , na o u t r a l i n h a g e m a a u t o c o n s e r v a ç ã o da
s u b j e t i v i d a d e apresenta-se c o m o d u r a ç ã o d o s u b s t r a t o i n t e l e c t u a l ( o u noético) consci-
ente — a r e f l e x ã o e m t o r n o d a i d e n t i d a d e d a c o n s c i ê n c i a d e s i , p o r e x e m p l o , n ã o é
c o n d u z i d a e m t e r m o s d e u m a c o n t i n u i d a d e desta? Para a l é m d o s embates d o s s é c u l o s
X V I I I e X I X , u m a c o n v i c ç ã o parece f i r m a r - s e nos d i a s de hoje, e n v o l v e n d o aquelas
d u a s d e t e r m i n a ç õ e s e s t r u t u r a i s d a s u b j e t i v i d a d e . Esta última tornar-se, na I d a d e M o -
d e r n a , p a r a d i g m a filósofo e princípio de u m n o v o m o d o d e pensar, s o m e n t e na m e d i d a
e m q u e a a u t o c o n s e r v a ç ã o d o sujeito articula-se c o m a d i m e n s ã o d e a u t o c o n s c i ê n c i a
( m e s m o c o n c e b i d a c o m o " f a m i l i a r i d a d e c o n s i g o m e s m o " ) para c o m p o r a t o t a l i d a d e
d i a l e t i c a m e n t e m e d i a d a de u m a p r o b l e m á t i c a . E o q u e se d e p r e e n d e , e m r e s u m o , da
tese d e i n t e r p r e t a ç ã o d e H e n r i c h : " U n i c a m e n t e isto já fica claro: q u e n ã o há p o s s i b i -
l i d a d e d e se e x p l i c a r as e x p e r i ê n c i a s m o d e r n a s c o m o u m t o d o s o m e n t e p o r m e i o de
u m dos dois — familiaridade consigo mesmo o u autoconservação. A autoconservação
i m p l i c a e c o m isso p r e s s u p õ e a estruhara d o Si (Selbst) — a f a m i l i a r i d a d e consigo
m e s m o está l i g a d a à e x p e r i ê n c i a d e q u e é n e c e s s á r i o c o n t i n u a r a existência p r ó p r i a " ^

N o â m b i t o d a tese sobre a i n t e r d e p e n d ê n c i a e n t r e a u t o c o n s e r v a ç ã o e a u t o c o n s c i ê n c i a
d o s u j e i t o , o n d e se c o n s t i t u i u m a dialética d e ser e saber, observa-se, p o r u m l a d o , q u e
a a u t o c o n s e r v a ç ã o t e m u m p r e s s u p o s t o d e saber, s u p õ e u m saber m í n i m o e i n d i s p e n -
sável: u m saber q u e é, nas p a l a v r a s d e H e n r i c h , u m a " a u t o - r e f e r ê n c i a v a z i a " — a de
u m p u r o e s i m p l e s ser e m relação a s i , vazia t a m b é m n o s e n t i d o d e q u e se trata d e u m
m e r o saber d e c a r ê n c i a s e p o s s i b i l i d a d e s . Nestes t e r m o s , o u seja, c o m o essa f a m i l i a r i -
d a d e c o m seu p r ó p r i o ser, a a u t o c o n s c i ê n c i a n ã o d e i x a d e ser c o n d i ç ã o d e p o s s i b i l i d a -
de d a c o n s e r v a ç ã o o u c o n t i n u a ç ã o da existência d e cada u m . " O ato d e a u t o c o n s e r v a ç ã o
é d i r e t a m e n t e r e l a c i o n a d o à c o n d i ç ã o d o saber d a p a r t i c u l a r i d a d e d a q u e l e ser q u e
necessita d e c o n s e r v a ç ã o ; n ã o só esta p a r t i c u l a r i d a d e , mas i g u a l m e n t e a circunstância
d e q u e este ser p a r t i c u l a r está r e f e r i d o a ele m e s m o e m u m saber p r i m o r d i a l d e s i ,
c o n s t i t u e m c o n j u n t a m e n t e a u n i d a d e d o ser q u e é objeto d o e s f o r ç o d e c o n s e r v a ç ã o " \
C o m isso, a a u t o c o n s e r v a ç ã o afasta-se d e q u a l q u e r p l a n o d e p e n s a m e n t o e m q u e é
concebida à m a n e i r a d e u m a r e p r o d u ç ã o i n s t i n t i v a d e e s p é c i e s , r e g u l a d a p o r i m p u l s o s
inconscientes o u m e c a n i s m o s b i o l ó g i c o s . E, d e o u t r a p a r t e , o p r ó p r i o conceito d e razão
a d q u i r e c o n d i ç õ e s para ser r e d e f i n i d o , d e i x a n d o d e ser u m a d e t e r m i n a ç ã o constante
o u u m a p r o p r i e d a d e fixa, u m a f a c u l d a d e da e s p é c i e h u m a n a , p a r a ser p e n s a d o c o m o
u m m o d o d e ser o u d e se c o m p o r t a r .

A história d a filosofia recente registra u m a o p o s i ç ã o cada vez m a i s a c i r r a d a entre

autores q u e a i n d a aceitam falar d e " c o n s c i ê n c i a " e o u t r o s q u e recusam p u r a e s i m p l e s -
m e n t e esse conceito. Os q u e a c e i t a m , u t i l i z a m - s e , na m a i o r i a d o s casos, d e u m a l i n g u a -
g e m assentada n u m a a n a l o g i a c o m a l i n g u a g e m d a o b s e r v a ç ã o d e fatos o u relações d o
m u n d o e x t e r i o r — p r o c e d i m e n t o bastante criticável. M a s os f e r r e n h o s a d v e r s á r i o s da
filosofia d a c o n s c i ê n c i a arriscam-se a p r o m o v e r u m a p e r d a a i n d a m a i o r d o q u e aquela
p o r v e n h j r a e n v o l v i d a na s i m p l e s referência a n a l ó g i c a : r e n u n c i a m , e m c o n s e q ü ê n c i a

642 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993

disso, a falar d e q u a l q u e r esfera d e i n t e r i o r i d a d e , a q u a l , d e a l g u m a f o r m a a i n d a
possuiria relevância filosófica — p o r e x e m p l o , n o â m b i t o d e d i s c u s s õ e s sobre c o m o
orientar-se n o m u n d o . Sem p e r d e r d e v i s t a , c o m o já se o b s e r v o u nos ú l t i m o s anos, q u e
o c h a m a d o " d o m í n i o i n t e r i o r " é u m d o m í n i o d e notória i m p r e c i s ã o lingüística e d e
pobreza d e l i n g u a g e m , é u m fato o u u m p r e s s u p o s t o da v i d a c o t i d i a n a e m nossa
época a a d m i s s ã o d e q u e existe a l g o c o m o u m a esfera i n t e r i o r , q u e d e t e r m i n a o u
i n f l u e n c i a d e m a n e i r a d e c i s i v a o nosso agir*. A i n t e r i o r i d a d e , e n t r e t a n t o , n ã o é a l g u m a
q u i m e r a , p o r não ser atingível p o r o b s e r v a ç ã o o u p e r c e p ç ã o d e objetos. Pothast p r o p õ e
c o m o d e n o m i n a ç ã o p a r a esse acesso ao q u e faz p a r t e d a i n t e r i o r i d a d e u m a e x p r e s s ã o
da l i n g u a g e m c o r r i q u e i r a : "spüren" — q u e se p o d e r i a t r a d u z i r p o r ter s e n t i m e n t o s , q u e
f u n c i o n a m c o m o u m farejar, s e g u i r a pista d e a l g o . M a s c o m isso a q u e l e caráter de
imprecisão que estigmatiza o domínio referido não é ainda superado. O próprio autor
a d m i t e q u e é i n e r e n t e ao uso c o m u m desse t e r m o u m d u a l i s m o d e p e n s a m e n t o , isto
é, a distinção, nessa fala, e n t r e a l g o q u e sente e a l g o q u e é s e n t i d o . Para n ã o recorrer
à t e r m i n o l o g i a clássica da r e l a ç ã o sujeito-objeto, s u g e r e q u e se fale, g e n e r i c a m e n t e , d e
u m a " c o n f r o n t a ç ã o " o u " c o n t r a p o s i ç ã o " , o n d e u m a p a r t e o u setor d o q u e é assim
sensibilizado é t r a t a d o c o m o se fosse u m " o u t r o " — p o r exemplo, as d o r e s em geral.
M a s n e m t u d o q u e é " i n t e r n a m e n t e s e n t i d o " encaixa-se, e m sua d e s c r i ç ã o , no esquema
da c o n t r a p o s i ç ã o . O e x e m p l o d a a n g ú s t i a é l o g o m e n c i o n a d o . O critério s u g e r i d o para
d i f e r e n c i a r a m b o s os t i p o s , o c o n f r o n t á v e l e o n ã o - c o n f r o n t á v e l i n t e r i o r e s , é a p o s s i b i -
l i d a d e d e localizar, d e t e r m i n a r l u g a r : " O c o n f r o n t á v e l é d e c i d i d a m e n t e m a i s nítido e
captável d o q u e o n ã o - c o n f r o n t á v e l . A o falar d e a n g ú s t i a , desejo, a l e g r i a , d e p r e s s ã o ,
mal-estar, f a c i l m e n t e entra e m d e s c o n f o r t o , se preciso d i z e r m a i s m i n u c i o s a m e n t e c o m o
está c o n s t i t u í d o o q u e é d e s i g n a d o p o r essas p a l a v r a s " ^ O n ã o - c o n f r o n t á v e l é o t i p i -
camente " i n t e r i o r " , o u seja, o q u e é difícil e só v a g a m e n t e a p r e e n d i d o . A i n t e r i o r i d a d e
permanece como infixável, apesar de ser o que, provavelmente, há de mais próximo de nós.

A c o m p l e m e n t a r i d a d e d e ser e c o n s c i ê n c i a , q u e já f o r a t e m a d e d i v e r s o s estudos d e D .
H e n r i c h na d é c a d a d e setenta, é r e t o m a d a p o r Reiner W i e h l e m u m ensaio n o q u a l
s u b l i n h a aspectos d e p i o n e i r i s m o das c h a m a d a s filosofias da e x i s t ê n c i a na crítica d a
m o d e r n a filosofia d o s u j e i t o , a s s i m c o m o na r e e s t r u t u r a ç ã o d o p e n s a m e n t o da subje-
tividade e m geral. Seu p o n t o d e p a r t i d a é o fato histórico d e q u e na t r a d i ç ã o filosófica
tem-se c o m o aceito q u e o i n d i v i d u a l é i n e f á v e l , q u e n ã o há c o n h e c i m e n t o r a c i o n a l d o
s i n g u l a r : c o n h e c i m e n t o é s e m p r e e necessariamente c o n h e c i m e n t o d o u n i v e r s a l , reza o
pressuposto, t o r n a d o l u g a r - c o m u m , d a p o s t u r a científica — e t a m b é m d a filosofia
c o m p r e e n d i d a c o m o sistema. Fica assim estab)elecida a i n t e r d e p e n d ê n c i a , m a i s , o co-
- p e r t e n c i m e n t o entre a u n i v e r s a l i d a d e d o conceito e a r a c i o n a l i d a d e d e conhecer. A
filosofia d o s é c u l o X X é , s o b d i v e r s o s aspectos, u m a i n v e s t i d a c o n t r a a t r a d i ç ã o
metafísica, d e Platão a H e g e l . E m especial as r e f l e x õ e s existenciais, d e K i e r k e g a a r d a
Jaspers e H e i d e g g e r , caracterizaram-se c o m o u m e m p r e e n d i m e n t o q u e p õ e e m q u e s t ã o
a idéia d a r a c i o n a l i d a d e científica o u d a r a z ã o r e d u z i d a a esta ú l t i m a . E m l u g a r d a q u e -
le l u g a r - c o m u m e p i s t e m o l ó g i c o , e r g u e m e n t ã o : individuum effahile est, o i n d i v i d u a l é
dizível e c o g n o s c í v e K Esta i n v e r s ã o da tradição n ã o precisa ser i n t e r p r e t a d a c o m o u m a
renúncia à ciência u n i v e r s a l , m a s c o m o u m a i n i c i a t i v a d e e n c o n t r a r a r a c i o n a l i d a d e e
a l i n g u a g e m específicas d o s i n g u l a r . A v i d a e a existência h u m a n a e x i g i r i a m u m a
l i n g u a g e m q u e concedesse f o r o d e c i d a d a n i a à i n d i v i d u a l i d a d e e á i n c o n s c i ê n c i a . T a l

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 643

l i n g u a g e m d a existência seria, decerto, ela m e s m a u n i v e r s a l — apenas n ã o diluível e m
n e n h u m a l i n g u a g e m s e t o r i a l o u especial, c o m o a l i n g u a g e m das diversas d i s c i p l i n a s
científicas. S e g u i n d o a t r i l h a i n a u g u r a d a c o m as i n t e r v e n ç õ e s existencialistas, p r o p õ e
estender o p e n s a m e n t o da c o m p l e m e n t a r i d a d e e n t r e ser-próprio (Sclbstsein) e consci-
ência a t r a v é s d e jogos d e l i n g u a g e m q u e v a l o r i z e m a m b o s os m o m e n t o s d e u m a d i f e -
r e n ç a : o r a c i o n a l e o i r r a c i o n a l , a p o n t a n d o p a r a a necessidade d e q u e a crítica da razão
seja c o m p l e m e n t a d a p o r u m a crítica da d e s r a z ã o iUfwemuiift), c o n f o r m e s u g e r e m suas
p r ó p r i a s p a l a v r a s : " A p ó s ter t e n t a d o e m v ã o , p o r u m p e r í o d o s u f i c i e n t e m e n t e l o n g o ,
fazer progressos e m m a t é r i a d e c o n h e c i m e n t o r a c i o n a l u n i v e r s a l , na m e d i d a e m q u e se
s u p u n h a q u e o não-racional s i n g u l a r d e v e r i a orientar-se s e g u n d o a r a z ã o h u m a n a
u n i v e r s a l , a metafísica f i n a l m e n t e i n v e s t i g a se u m progresso da razão teórica e prática
n ã o seria antes possível, se i n v e r s a m e n t e se deixasse a razão i n d i v i d u a l orientar-se
p e l a n ã o - r a z ã o u n i v e r s a l , t e n d o ela sua p o s s i b i l i d a d e d e t e r m i n a d a a p a r t i r desta"^.

O u t r o s aspectos m e r e c e m ser t a m b é m ressaltados. N a filosofia existencial, o p r o b l e m a

da s u b j e t i v i d a d e é r e t o m a d o , mas s o b r e t u d o a t r a v é s d e u m a redefinição crítica em
r e l a ç ã o aos t e r m o s e os pressupostos d e a c o r d o c o m os q u a i s ele é posto no contexto
da m o d e r n a filosofia representacionista o u r e f l e x i v a d a c o n s c i ê n c i a . N a m u l t i p l i c i d a d e
t e m á t i c a p o r q u e se d e s d o b r a o p e n s a m e n t o da s u b j e t i v i d a d e , passam a ser p r i v i l e g i a -
d o s os aspectos d e indhnáualidade e d e auto-referência d o sujeito ( o u d e seu ser f u n d a -
m e n t a l m e n t e e m relação a si m e s m o ) . Dessa f o r m a p r o d u z - s e u m d i s t a n c i a m e n t o d o
c o n t e x t o d e t e m a t i z a ç ã o e da p e r s p e c t i v a d e a b o r d a g e m p r e d o m i n a n t e s a p a r t i r d o
s é c u l o X V I I : a a u t o - r e f e r ê n c i a d o s u j e i t o n ã o é m a i s pensada c o m u m p r i v i l e g i a m e n t o
d a ótica c o g n i t i v a , teórica, p r o m o v e n d o - s e e n t ã o , p a r a l e l a m e n t e , u m a g r a d u a l d i m i -
n u i ç ã o d a relevância d o conceito d e c o n s c i ê n c i a c o m o d i m e n s ã o prioritária na q u e s t ã o
da a u t o - r e f e r ê n c i a . T a m p o u c o se p o d e r i a d e i x a r d e m e n c i o n a r o propósito a n t i i d e a l i s t a
das f i l o s o f i a s da existência, q u e se p o d e r i a r e s u m i r nos seguintes termos: t e m a t i z a ç ã o
d a f i n i l u d e d a s u b j e t i v i d a d e , e m c o n t r a p o s i ç ã o a q u a l q u e r teoria d o sujeito u n i v e r s a l
e absoluto.

O s aspectos e n u m e r a d o s são c o n s t a t á v e i s já n o p e n s a m e n t o d e K i e r k e g a a r d , c o n q u a n -
t o a i n t e n ç ã o d e r u p t u r a f i q u e , e m seu caso, f o r t e m e n t e l i m i t a d a pela l i n g u a g e m q u e
e m p r e g a , h e r d a d a d a q u e l e s c o n t r a os q u a i s p r e t e n d e voltar-se, os filósofos d o i d e a l i s -
m o a l e m ã o . E n t r e os escritos d e K i e r k e g a a r d — p o r ele m e s m o d e s i g n a d o s c o m o sendo
e m geral "edificantes", marcados mais p o r u m caráter de exortação d o que por u m
e s t i l o analítico e d e m o n s t r a t i v o e m suas e x p o s i ç õ e s — aquele q u e se d e v e p r i v i l e g i a r
c o m o r e l e v a n t e para o presente e s t u d o é o "Tratado do Desespero"^, l u g a r quase q u e
e x c l u s i v o d e t e m a t i z a ç ã o da a u t o - r e f e r ê n c i a d o s u j e i t o e d e sua relação c o m a consci-
ê n c i a . A q u i , l o g o d e início, encontra-se u m a a s s e r ç ã o , q u e a p r o x i m a n d o as noções d e
h o m e m , espírito e si o u o m e s m o {Selbst, soi), i n t r o d u z b r u s c a m e n t e a q u e s t ã o d o q u e
é esse 'Selbst' o u s i - m e s m o . A resposta f o r n e c i d a p o r K i e r k e g a a r d , a l t a m e n t e especu-
l a t i v a , diga-se d e passagem, t e m sua d i f i c u l d a d e i n t e n s i f i c a d a pela f u n d a m e n t a l a m -
b i g ü i d a d e q u e e n v o l v e o t e r m o - c h a v e dessa d e f i n i ç ã o : a p a l a v r a ' r e l a ç ã o ' {Verhaltnis).
N a e n i g m á t i c a passagem está d i t o q u e : " O m e s m o (Selbst) é u m a relação q u e se rela-
c i o n a c o n s i g o m e s m a , o u é, na relação, i s t o : q u e a relação se relaciona consigo m e s m a ;
o m e s m o n ã o é a r e l a ç ã o , mas o fato d e q u e a r e l a ç ã o se relacione consigo m e s m a . O
h o m e m é u m a síntese d e i n f i n i d a d e e f i n i t u d e , d o t e m p o r a l e d o e t e r n o , d e l i b e r d a d e

644 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20. n. 63, 1993

e necessidade, e m s u m a , u m a s í n t e s e . U m a síntese é u m a r e l a ç ã o e n t r e d o i s . C o n s i d e -
r a d o dessa m a n e i r a o h o m e m n ã o é a i n d a u m m e s m o .

N a relação entre d o i s , a r e l a ç ã o é o terceiro c o m o u n i d a d e n e g a t i v a , e os d o i s relacio-

nam-se c o m a r e l a ç ã o e na relação c o m a r e l a ç ã o ; a s s i m , s o b o aspecto d a a l m a a
relação entre a l m a e c o r p o é u m a r e l a ç ã o . Sc, c o n t r a r i a m e n t e , a r e l a ç ã o relaciona-se a
si m e s m a , e n t ã o esta r e l a ç ã o é u m terceiro p o s i t i v o , e isto é o m e s m o (Selbst)".

Do q u e f o i d i t o , d e p r e e n d e - s e q u e o h o m e m p o s s u i d u a s p o s s i b i l i d a d e s p r i m á r i a s d e
ser, q u e s ã o a l t e r n a t i v a s : o u b e m ele é u m a síntese ou relação (entre d u a s coisas o u d u a s
d e t e r m i n a ç õ e s ) , e e n q u a n t o t a l n ã o é u m m e s m o ; o u b e m ele é u m mesmo, e c o m o t a l
não é u m a relação d e d i f e r e n t e s d e t e r m i n a ç õ e s . Essas d u a s m a n e i r a s básicas d e ser d o
indivíduo h u m a n o — ser u m m e s m o (ser si o u ele m e s m o ) o u ser c o m o relação (ser
de m o d o r e l a t i v o ) — n ã o s ã o p o r t a n t o i n d i f e r e n t e s . A q u i está e m q u e s t ã o , s e m p r e ,
u m a escolha. D a í a m á x i m a d a reflexão existencial, o p r i n c í p i o d e a a u t e n t i c i d a d e ,
i n d i c a r u m ethos, a p o n t a r u m m o d o f u n d a m e n t a l d e ser, e n u n c i a n d o - s e c o m o tarefa a
ser c u m p r i d a na s i n g u l a r i d a d e d e cada ente h u m a n o : tornar-se ( u m ) m e s m o , ser s i
m e s m o . A s s i m , o Selbst n ã o é a l g o r e l a t i v o , p o i s subentende-se q u e na r e l a t i v i d a d e haja
d u p l i c i d a d e o u p o l a r i d a d e , já q u e t o d a r e l a ç ã o s u p õ e ( p e l o m e n o s ) d o i s t e r m o s d i f e -
rentes, q u e ela p õ e e m r e l a ç ã o . Poder-se-ia tentar c l a r i f i c a r u m p o u c o m a i s a e x p r e s s ã o
" u m a relação q u e se relaciona c o n s i g o m e s m a " , d i s t i n g u i n d o a relação, p o r u m l a d o ,
c o m o s i g n i f i c a n d o os p ó l o s o u m o m e n t o s q u e a i n t e g r a m , os " r e l a t a " ; p o r o u t r o l a d o ,
a relação c o m p r e e n d i d a c o m o aquele " e n t r e " os d o i s , o q u e está " n o m e i o " deles — o
q u e t a n t o os u n e , q u a n t o os separa. O q u e i m p o r t a t o d a v i a acentuar e m toda essa
reflexão é q u e a q u i l o e m r e l a ç ã o a q u e se é o u se está é u m m e s m o , si p r ó p r i o . O ' S i '
é n o m á x i m o u m a a u t o - r e l a ç ã o . A í está i m p l í c i t o , e n t ã o , q u e se trata d e u m m e s m o q u e
é capaz d e d i f e r e n c i a r - s e d e si p r ó p r i o . Por ú l t i m o , 'Si' é u m fato o u u m estado d e
coisas: u m a relação q u e se relaciona c o m u m a relação é u m a t o o u e v e n t o d e v o l t a r -
-se sobre o u para seu p r ó p r i o ser; m a s isto é p r e c i s a m e n t e o q u e os clássicos d o
i d e a l i s m o e n t e n d e m p o r " r e f l e x ã o " . O 'Si' o u " o m e s m o " d e K i e r k e g a a r d n ã o d e i x a d e
ser u m a a u t o c o n s c i ê n c i a r e f l e x i v a .

U m a o b s e r v a ç ã o c o m p l e m e n t a r d e v e a i n d a ser feita: a r e l a ç ã o c o m o aquele " e n t r e " os

pólos, n ã o é r e l a t i v a . A p e n a s os p ó l o s , e n q u a n t o tais, na sua f i n i t u d e , o s e r i a m . Desse
m o d o , a relação d e a m b o s n ã o seria capaz d e caracterizar a i d e n t i d a d e absoluta d o s
pólos. A i d e n t i d a d e a b s o l u t a é o f u n d a m e n t o d a r e l a ç ã o . P o r isso K i e r k e g a a r d acres-
centa, l o g o à frente, q u e o 'Si' é t a m b é m c o m o relação a seu f u n d a m e n t o . O f u n d a m e n -
to é u m " o u t r o " , a l é m d o s m o m e n t o s c o n s t i t u t i v o s d o h o m e m . Este relaciona-se assim
precisamente c o n s i g o , à m e d i d a q u e se r e l a c i o n a c o m u m o u t r o . Pois s ó esse o u t r o é
q u e p e r m i t e q u e o sujeito, q u e é i n f i n i t o , exista c o m o a u t o - r e l a ç ã o , e n ã o c o m o u m a
ligação externa e n t r e coisas o u entes d i v e r s o s . E esse o u t r o , o f u n d a m e n t o d a r e l a ç ã o
consigo m e s m o , é D e u s .

Certa c i r c u l a r i d a d e s u b - r e p t í c i a , ligada à r e f l e x i v i d a d e q u e d e t e r m i n a a i n d a a concep-

ção k i e r k e g a a r d i a n a d a relação f u n d a m e n t a l c o n s i g o m e s m o e n q u a n t o consciente, p a -
rece i m p o r - s e à f i l o s o f i a existencial nos seus c o m e ç o s , à r e v e l i a das i n t e n ç õ e s a n t i -
idealistas d e seu i n a u g u r a d o r . M a s n e m t o d o s e n t i d o d e c i r c u l a r i d a d e revela-se u m

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 645

e m p e c i l h o n o c a m i n h o das i n i c i a t i v a s existencial-filosóficas d e críticas à m o d e r n a c o n -
cepção de subjetividade. N a figura d a c i r c u l a r i d a d e h e r m e n ê u t i c a ela se apresenta
como componente indispensável d o e m p r e e n d i m e n t o radical de renovação d o pen-
s a m e n t o da s u b j e t i v i d a d e , q u e t e m l u g a r e m H e i d e g g e r .

A q u i a o b r a a ser p r i v i l e g i a d a é "Ser e Tempo", q u e t e m seu m é r i t o , nesse s e n t i d o ,

a p o n t a d o nas úlHmas d é c a d a s p o r i n t é r p r e t e s d e f o r m a ç ã o teórico-filosófica bastante
diversificada'*.

A p e l localiza e m "Ser e Tempo" u m n o v o estilo d e r e f l e x ã o t r a n s c e n d e n t a l , q u e v a i

m u i t o a l é m d o s atos s u b j e t i v o s d e c o n s t i t u i ç ã o t r a n s c e n d e n t a l q u e r e m e t e m a u m a
c o n s c i ê n c i a p u r a , na tradição d a filosofia d a reflexão. A a n á l i s e d o "Dasein" i n a u g u r a
a p o s s i b i l i d a d e d e se pensar e s t r u t u r a s h u m a n a s f u n d a m e n t a i s — c o m o , p o r e x e m p l o ,
a c o r p o r e i d a d e , o t r a b a l h o , a l i n g u a g e m etc. — e m sua f u n ç ã o " q u a s e - t r a n s c e n d e n t a l " .
A p e l i n c o r p o r a e m sua própria e s t r a t é g i a d e t r a n s f o r m a ç ã o d a f i l o s o f i a t r a n s c e n d e n t a l
as e s t r u t u r a s existenciais o n t o l ó g i c a s c o m o e l e m e n t o s d e c i s i v o s d e f u n d a m e n t a ç ã o . A
reflexão o n t o l ó g i c a existencial é ressaltada e m sua face d e críticas às d i v e r s a s tentativas
históricas d e t r a t a m e n t o o b j e H v a n t e d o ser. A o trazer e n f a t i c a m e n t e para o p r i m e i r o
p l a n o a d i f e r e n ç a ontológica e n t r e ser e ente, H e i d e g g e r p r o m o v e u m a d i f e r e n c i a ç ã o
decisiva entre d o i s níveis de c o m p r e e n s ã o : u m nível e l e m e n t a r , pré-reflexivo, d e cap-
tação d o ser q u e se revela ( o u d e c o m p r e e n s ã o da r e v e l a ç ã o d o ser) e u m nível d e r i -
v a d o , o b j e t i v a n t e , c h a m a d o d e " ô n t i c o " . O o u t r o nível, o " o n t o l ó g i c o " , é o n d e t e m
l u g a r a c o m p r e e n s ã o d o ser d e d e t e r m i n a d o ente, o n d e este é p r o p r i a m e n t e p e r c e b i d o ,
isto é, a p r e e n d i d o "como algo", c o m o s e n d o tal coisa e n ã o u m a o u t r a . A figura d o
círculo h e r m e n ê u t i c o v e m e x p l i c i t a r a r e l a ç ã o d e i n t e r d e p e n d ê n c i a entre esses níveis:
" N e n h u m ente p o d e ser c o n f r o n t a d o c o m o u m fato, q u e n ã o tenha s i d o c o m p r e e n d i d o
antes ' c o m o a l g o ' , isto é, e m r e l a ç ã o a seu ser; i n v e r s a m e n t e o ser... só se d e i x a c l a r i f i c a r
p o r o c a s i ã o d e a l g u m a c o n f r o n t a ç ã o f a c t u a l na m a n e i r a d o ser-assim d e u m e n t e " . É
d e n t r o desse e n t e n d i m e n t o d a c i r c u l a r i d a d e q u e é possível fazer, e n t ã o , a s e g u i n t e
o b s e r v a ç ã o g e r a l sobre a l i n g u a g e m , a q u a l já se faria presente no nível o n t o l ó g i c o d e
c o n s i d e r a ç ã o : " A r i g o r , no uso c o t i d i a n o d a l i n g u a g e m , há p o u c o para se n o t a r e m
t e r m o s d e clarificação d o ser, mas n ã o p e l o fato d e q u e a l i n g u a g e m , e m sua e s s ê n c i a ,
fosse apenas u m utensílio, u m m e i o d e se p ô r d e a c o r d o , e s i m p o r q u e a q u i a essência
l i n g ü i s t i c a m e n t e c l a r i f i c a d a das coisas já está s e m p r e p r e s s u p o s t a , p o r q u e a l i n g u a g e m
c o n s c i e n t e m e n t e s ó interessa c o m o u m m e i o , d o m e s m o m o d o q u e o ente a q u i n ã o
interessa e m seu ser, mas apenas e m suas r e l a ç õ e s causais factuais, isto é, c o m o u m
m e i o o u c i r c u n s t â n c i a na l u t a pela e x i s t ê n c i a " ' ° .

M a s e m face d a c o n f u s ã o t r a d i c i o n a l m e n t e o p e r a d a e n t r e ser e ente nos discursos

o n t o l ó g i c o s d a história d a metafísica — cujos e l e m e n t o s categoriais, a d e q u a d o s q u a n -
d o a p l i c a d o s aos entes, i m p r ó p r i o s , p o r é m , q u a n d o d e s t i n a d o s e m sua a p l i c a ç ã o i g u a l -
m e n t e ao ser — , H e i d e g g e r busca fazer recuar a r e f l e x ã o existencial a u m p l a n o a i n d a
m a i s p r i m á r i o o u e l e m e n t a r d e f u n d a m e n t a ç ã o , p l a n o q u e , e m suas p r ó p r i a s palavras,
p o d e r i a a t é ser d e s i g n a d o c o m o " p r é - o n t o l ó g i c o " , se p o r ' o n t o l o g i a ' entender-se aque-
le d i s c u r s o c a t e g o r i a l a p r o p ó s i t o d e entes. E m Ser e Tempo, H e i d e g g e r c h a m a a aten-
ç ã o , l o g o no início, para a i m p o r t â n c i a f u n d a m e n t a l d a c o m p r e e n s ã o pré-ontológica d e
ser — c o m p r e e n s ã o i n d i r e t a o u i m p l í c i t a d e ser, q u e se faz presente s e m p r e nas

[646 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993

explicitações e nos e n u n c i a d o s sobre as coisas e os entes e m geral. Essa c o m p r e e n s ã o
implícita d e ser não é u m a c o m p r e e n s ã o e m p í r i c a d e a l g o e n q u a n t o a l g o , e s i m c o n -
dição de p o s s i b i l i d a d e desta ú l t i m a . M a i s a i n d a : ao ser ao m e s m o t e m p o u m a p r é -
- c o m p r e e n s ã o , l i n g ü i s t i c a m e n t e a r t i c u l a d a , da e s t r u t u r a d e u m m u n d o , ela é c o n d i ç ã o
a p r i o r i d e t o d a o b j e t i v a ç ã o , d e t o d a a f i r m a ç ã o s o b r e objetos d e c o n h e c i m e n t o . E m
H e i d e g g e r , m u n d o é, p o r c o n s e g u i n t e , a l g o já s e m p r e c o n s t i t u í d o , e n ã o c o n s t i t u í d o ,
e m cada caso, p o r u m a c o n s c i ê n c i a . M u n d o antecede o n t o l o g i c a m e n t e q u a i s q u e r atos
dos sujeitos d o c o n h e c i m e n t o .

E n t e n d i d a c o m o h e r m e n ê u t i c a t r a n s c e n d e n t a l , a A n a l í t i c a Existencial d o "Dasein" e v o -
l u i e m d i r e ç ã o à a f i r m a ç ã o d e u m a i n t e r d e p e n d ê n c i a b á s i c a , p r i m á r i a e n t r e awfo-refe-
rência e referência ao mundo. D a q u e l a p r é - c o m p r e e n s ã o c o n d i c i o n a n t e faz p a r t e i m p l i -
citamente u m a relação c o n s i g o m e s m o t a m b é m , a q u a l se p o d e r i a c h a m a r d e p r é -
-consciente, no s e n t i d o d e q u e seria a n t e r i o r a t o d a cisão o u o p o s i ç ã o d e u m sujeito a
u m objeto. Essa a u t o c o m p r e e n s ã o i m p l í c i t a , c o m o c o m p r e e n s ã o d e m i n h a existência,
é i g u a l m e n t e c o n d i ç ã o , u m aspecto c o n s t i t u t i v o d a c o m p r e e n s ã o d e a l g o como a l g o .
Nesse p l a n o p r i m á r i o é q u e se d á a a t r i b u i ç ã o d e s e n t i d o e significação. A s s i m , antes
de ser objeto i n v e s t i g a d o , e m p í r i c o e t e o r i c a m e n t e c o n h e c i d o , a l g o já se apresenta
possuindo u m sentido — sentido que varia, decerto, conforme o " s e r - n o - m u n d o " de
cada i n d i v í d u o . A p e l r e s u m e essa d i s c u s s ã o a t r a v é s d e u m p a r a l e l o c o m a reflexão
transcendental k a n t i a n a : "... a u n i d a d e d a c o n s c i ê n c i a d e objeto e da c o n s c i ê n c i a d e s i ,
q u e s e g u n d o K a n t d e v e ser pressuposta c o m o c o n d i ç ã o d e p o s s i b i l i d a d e da e x p e r i ê n -
cia: esta u n i d a d e se encontra na base d a p o s s i b i l i d a d e d e c o m p r e e n s ã o lingüística d e
m u n d o (...) N a descoberta d e a l g o como a l g o expressa-se o " s e r - n o - m u n d o " d o s h o -
mens c o m o c o m p r e e n s ã o d o mundo e d e s i . " .

O s e r - a í {Dasein) d o h o m e m é a a l t e r n a t i v a o f e r e c i d a p o r H e i d e g g e r ao s u j e i t o
autoconsciente d o s clássicos da m o d e r n i d a d e . A reflexão ontológica e m t o r n o d o 'Dasein'
funciona c o m o u m f i l t r o filosófico, ao q u a l d i v e r s a s d i s c u s s õ e s e f e n ô m e n o s s ã o refe-
ridos o u r e m e t i d o s para efeito d e t e m a t i z a ç ã o . A ela é i n e r e n t e u m e n t e n d i m e n t o q u e
se o p õ e a q u a i s q u e r t e n t a t i v a s d e s u b s t a n c i a l i z a r a existência h u m a n a , p e l o p r e ç o , e m
temos d e reificação, q u e se acaba p o r p a g a r c o m isso: o ser d o , h o m e m acaba s e n d o
a b o r d a d o e t r a t a d o c o m o o ser d e u m a coisa, c o m p r o p r i e d a d e s o u q u a l i d a d e s fixas,
d e t e r m i n a d a s d e u m a vez p o r todas, às custas, p o r t a n t o , d o interesse p o r aspectos d e
especificidade e d i f e r e n c i a ç ã o . 'Dasein' não é a l g o q u e possua u m l u g a r , n e m se e n c o n -
tra d a d o , p r o n t o e acabado para efeito d e sua d e t e r m i n a ç ã o . 'Dasein' é antes d e t u d o
u m a referência a u t o c o m p r e e n s i v a a si m e s m o .

A t e r m i n o l o g i a c u n h a d a p o r H e i d e g g e r para c a r a t e r i z a r o ser-aí d o h o m e m inspira-se

a m p l a m e n t e na e x p e r i ê n c i a e na l i n g u a g e m c o r r i q u e i r a s , c o t i d i a n a s , q u a n d o n ã o é
delas d i r e t a m e n t e r e t i r a d a . A o n t o l o g i a existencial t e m na v i d a c o t i d i a n a seu p o n t o d e
p a r t i d a . N e s t e p o n t o v a l e r i a a pena a b r i r e s p a ç o na presente e x p o s i ç ã o para a l g u m a s
interpretações i n s t i g a n t e s p r o v e n i e n t e s d o m u n d o filosófico analítico, e m especial d o
m e i o universitário n o r t e - a m e r i c a n o . R o r t y , p o r e x e m p l o , i n t e r p r e t a H e i d e g g e r d o p o n -
to d e vista d e sua f i l o s o f i a analítica pós-posi ti v i s t a , d e c o r t e essencialmente p r a g m á t i -
co. Nesse s e n t i d o , p õ e e m d e s t a q u e H e i d e g g e r c o m o crítico d e c i d i d o da a u t o - i m a g e m
t r a d i c i o n a l d a f i l o s o f i a c o m o c i ê n c i a . E c o m r a z ã o , na m e d i d a e m q u e Ser e Tempo

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 647

trata a ciência o u o c o n h e c i m e n t o o b j e t i v o c o m o m o d o d e r i v a d o d e ser n o m u n d o ,
s e c u n d á r i o e m relação ao u s o d e i n s t r u m e n t o s o u ao t r a t o c o m utensílios na esfera d o
c o t i d i a n o . " A d i s s o l u ç ã o h e i d e g g e r i a n a d o s p s e u d o p r o b l e m a s filosóficos através da
t o m a d a d a prática social c o m o u m d a d o p r i m á r i o e i n q u e s t i o n a d o , e m vez d e tratá-la
c o m o u m explamndum, e x e m p l i f i c a u m p r i m a d o o n t o l ó g i c o d o s o c i a l " ' ^ H e i d e g g e r
d i s p o r i a assim d e m e i o s p a r a e v i t a r c o n s t i t u i r - s e e m apenas m a i s u m a o u u m a nova
v a r i a n t e para a clássica c o n d u t a d e p r o c u r a r a t i n g i r a l g u m e s q u e m a d e p e n s a m e n t o
c o m c a r á t e r f o r m a l o u a-histórico.

R o r t y vê H e i d e g g e r m o t i v a d o p o r u m a c u r i o s i d a d e básica: c o m o s e r í a m o s nós ( o u
nosso p e n s a m e n t o ) antes d e nos t o r n a r obcecados pela necessidade d e a b s o l u t i d a d e ,
d e e x a t i d ã o , e m s u m a , antes d e pensar nossa r e l a ç ã o c o m o ser e m t e r m o s d e p o d e r .
O u p o r o u t r a s p a l a v r a s , H e i d e g g e r p r e t e n d e r i a "resgatar u m s e n t i d o d e contingência,
d e f r a g i l i d a d e e risco e m t o d o p r o j e t o h u m a n o — o q u e a t r a d i ç ã o metafísica teria
quase s e m p r e n e g l i g e n c i a d o , p r e f e r i n d o dedicar-se ao q u e seria, s u p o s t a m e n t e , sólido,
p e r m a n e n t e : a " r e a l i d a d e " e m si m e s m a , a l é m d e q u a l q u e r a p a r ê n c i a , a l é m das "meras
p a l a v r a s " . Por isso R o r t y julga-se n o d i r e i t o d e sustentar q u e H e i d e g g e r , no f u n d o ,
p o d e r i a c o n c o r d a r c o m u m a a f i r m a ç ã o tal c o m o " n ó s s o m o s as p a l a v r a s q u e e m p r e -
gamos".

A i n t e r p r e t a ç ã o d e R o r t y c o n v e r g e d e m a n e i r a bastante interessante c o m a de A p e l ,
q u e já ressaltava a " t o l e r â n c i a " d e H e i d e g g e r e m relação às m e t á f o r a s presentes na
tradição, p o r e n x e r g a r nelas f u n ç õ e s heurísticas, nas q u a i s a a m b i v a l ê n c i a ontológica
primária e n t r e " d e s c o b r i m e n t o " e " e n c o b r i m e n t o " b e m se faria s e n t i r ' \ R o r t y , p o r sua
vez, d e f e n d e o e m p r e g o d e m e t á f o r a s , na m e d i d a e m q u e a c a r e i a m u m a e x p a n s ã o o u
a m p l i a ç ã o da própria l i n g u a g e m . A m e t á f o r a , a seu ver, é c o n v i t e à i n v e n ç ã o : "Senten-
ças m e t a f ó r i c a s são p r e c u r s o r a s d e n o v o s usos d e l i n g u a g e m " . Esse entusiasta das
m e t á f o r a s a u d i t i v a s d e H e i d e g g e r inscreve-se entre os q u e c r ê e m q u e n ã o há acesso
não-lingüístico ao ser. A o l o n g o d a história d a f i l o s o f i a , ser é r e f e r i d o a t r a v é s d e d i v e r -
sas e x p r e s s õ e s elementares o u v o c a b u l á r i o s b á s i c o s d e cada é p o c a , q u e d e l e f a l a m —
e x p r e s s õ e s c o m o physis, subjcctum, Witle zur Mach e m u i t a s o u t r a s . A q u i emerge u m a
d i f i c u l d a d e para a i n t e r p r e t a ç ã o : à é p o c a d e Ser e Tempo H e i d e g g e r parece oscilar entre
o p r i v i l e g i a m e n t o da relação pré-socrática c o m o Ser e u m a e s p é c i e d e r e l a t i v i s m o
histórico: " Ü leitor d e Ser e Tempo é l e v a d o a crer q u e os gregos u s u f r u í a m u m a relação
especial c o m o ser q u e os m o d e r n o s p e r d e r a m , q u e eles t i n h a m m e n o s d i f i c u l d a d e d e
ser o n t o l ó g i c o s d o q u e nós (...). O l e i t o r das ú l t i m a s obras, e n t r e t a n t o , é f r e q ü e n t e m e n t e
i n f o r m a d o d e q u e Descartes e N i e t z s c h e e r a m e x p r e s s õ e s tão adequadas do que o ser
era e m suas épocas quanto Parmênides o era d o que o ser era e m sua é p o c a " " .

A tese d e q u e o saber o n t o l ó g i c o , n o f u n d o , é saber d e u m a s i t u a ç ã o histórica p a r t i c u l a r

m o t i v a q u e se p e r g u n t e se a própria c o m p r e e n s ã o s i m p l e s , p r i m á r i a , d e ser não é
t a m b é m u m f e n ô m e n o h i s t ó r i c o . J u n t a m e n t e c o m esta ú l t i m a , u m a o u t r a q u e s t ã o d e
i n t e r p r e t a ç ã o , a i n d a m a i s g e r a l e d e c i s i v a , apresentar-se-ia ao l e i t o r d e Ser e Tempo:
p r e t e n d e r i a a Analítica d o 'Dasein' e x p o r , a i n d a q u e d e m o d o o r i g i n a l e a t r a v é s d e u m a
l i n g u a g e m i n d i s c u t i v e l m e n t e n o v a , a l g o semelhante a u m a natureza h u m a n a , ela mesma
a-histórica, o u a c o n t r á r i o , antes se pensaria a í q u e o h o m e m p o s s u i apenas u m a
existência histórica, a q u a l a A n a l í t i c a apenas descreve? R o r t y inclina-se para a última

648 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993

a l t e r n a t i v a , c o m o se d e p r e e n d e d o trecho: "... e u sustentaria q u e a Analítica d o 'Dasein'
e m Ser e Tempo é apenas m a i s generosa e f a c i l m e n t e i n t e r p r e t a d a c o m o Analítica d o
Dasein ocidental, e m vez d e à m a n e i r a d e u m a d e s c r i ç ã o d e c o n d i ç õ e s h i s t ó r i c a s . . . " ,
a p o i a n d o - s e n u m a passagem n o f i n a l d e Ser e Tempo, o n d e H e i d e g g e r cita o C o n d e
Y o r c k : "... m e t o d o l o g i c a m e n t e , parece-me u m r e s í d u o d e metafísica n ã o se h i s t o r i c i z a r
seu próprio f i l o s o f a r " {Sein und Zeit, p . 4 0 2 ) ' \ M a s o u t r a s passagens p o d e r i a m a q u i ser
fornecidas, n o s e n t i d o d e reforçar a i n c l i n a ç ã o h e r m e n ê u t i c a a c i m a a p o n t a d a . N u m
trecho, p o r e x e m p l o , e m q u e se refere à q u e l a instância q u e é a referência obrigatória
da Analítica, a esfera da v i d a c o t i d i a n a , l o g o n o § 11 d e Ser e Tempo, H e i d e g g e r a f i r m a :
" C o t i d i a n i d a d e é antes u m m o d o d e ser d o Dasein, justamente e sobretudo quando o
Dasein se move numa cultura altamente desenvolvida e diferenciada"^^'. T a l d e c l a r a ç ã o d e
princípio parece-me u m o b s t á c u l o c o n s i d e r á v e l a q u a l q u e r p r e t e n s ã o d e se c o n s i d e r a r
a Analítica c o m o aplicável i n d i s c r i m i n a d a m e n t e às m a i s d i v e r s a s f o r m a ç õ e s sociais
h u m a n a s no d e c o r r e r da história.

Fica c l a r o a t é a q u i o p r o p ó s i t o das f i l o s o f i a s d a existência d e c o n t o r n a r o u e v i t a r as

a p o r i a s d o r e p r e s e n t a c i o n i s m o e das teorias r e f l e x i v a s . Busca-se d e d i v e r s o s m o d o s
conceber u m saber d e si q u e seja i n o b j e t i v á v e l s i g n i f i c a n d o ao m e s m o t e m p o u m
acesso a si m e s m o . H e i d e g g e r , ao d e f i n i r n o § 4 d e Ser e Tempo o ser-aí {Dasein) d o
h o m e m , t o r n a m a n i f e s t o o p o s s u i r tal ente u m a e s t r u t u r a de a u t o - r e l a t i v i d a d e , o c a r á -
ter d e u m a relação consigo m e s m o . O 'Dasein' é acessível a si m e s m o e a m a n e i r a
e l e m e n t a r e m q u e se d á essa a u t o t r a n s p a r ê n c i a c o n f i g u r a - s e pela via da f a m i l i a r i d a d e ,
s e m p r e j u n t o ao q u e lhe é m a i s f a m i l i a r , m a i s p r ó x i m o . Nesses t e r m o s , as f o r m a s
primárias pelas q u a i s se d á o saber d e si s ã o o o p o s t o d o c a m i n h o solipsista p e l o q u a l
as m o d e r n a s filosofias d o sujeito a u t o c o n s c i e n t e c o n c e b e m o acesso d a s u b j e t i v i d a d e ,
e m estado d e p u r e z a i n t e l e c t u a l o u r e f l e x i v a , a si m e s m a . N a p e r s p e c t i v a da analítica
existencial, o 'Selbst' q u e cada u m d e n ó s é n ã o estaria r e v e l a d o , a b e r t o {erschlossen) a
si m e s m o e x c l u s i v a m e n t e a p a r t i r d e si m e s m o e m a i s a i n d a . A l g o c o m o u m a consci-
ência d e si se obteria s o m e n t e a p a r t i r d e u m c o n t e x t o total i n t e g r a d o , o m u n d o , ao q u a l
cada u m d e nós está, e m p r i n c í p i o , i n t e i r a m e n t e e n t r e g u e : "... o Dasein t e m a t e n d ê n c i a
de c o m p r e e n d e r seu p r ó p r i o ser a p a r t i r d a q u e l e ente c o m q u e ele se relaciona d e
m o d o essencial, p r i m e i r a e c o n t i n u a m e n t e , a p a r t i r d o " m u n d o " ' ' . A s s i m , o 'Selbst' q u e
cada u m é não seria o r i g i n a l o u p r o p r i a m e n t e c a r a c t e r i z a d o p o r u m a c o n s c i ê n c i a d e s i .
A a u t o c o n s c i ê n c i a seria m u i t o m a i s u m m o d o d e ser s e c u n d á r i o e c o m p l e x o , d e r i v a d o
de u m a e s t r u t u r a primária d e c o m p r e e n s ã o d e ser. Por isso faz p a r t e da e s t r u t u r a d a
s u b j e t i v i d a d e o i n t e r p r e t a r a si m e s m a s e m p r e consoante u m a certa c o m p r e e n s ã o d e
ser. A i n d a assim q u e s t õ e s decisivas p o d e r i a m c o m o q u e s u b - r e p t i c i a m e n t e ser l e v a n -
tadas: c o m o é possível u m a c o m p r e e n s ã o , p o r m a i s s i m p l e s q u e seja, q u e não e n v o l v a
a l g u m a m o d a l i d a d e o u e s p é c i e d e c o n s c i ê n c i a ? D a d a a i m p l a u s i b i l i d a d e de u m a c o m -
p r e e n s ã o inconsciente, c o m o conceber e n t ã o u m a ( a u t o ) c o m p r e e n s ã o q u e n ã o seja ao
m e s m o t e m p o consciente d e q u e está c o m p r e e n d e n d o a l g o , consciente d e q u e a l g o
estaria sendo o u acontecendo?

N o início d e Ser e Tempo, a c o m p r e e n s ã o d e ser é apresentada como compreensão

f u n d a m e n t a l para todas as d e m a i s c o m p r e e n s õ e s p o s s í v e i s , a c o n d i ç ã o p o r excelência
para t o d a e q u a l q u e r c o m p r e e n s ã o h u m a n a . M a s a q u e s t ã o p r i m o r d i a l p e l o s e n t i d o d e
ser l o g o cede l u g a r à q u e s t ã o d a a u t o c o m p r e e n s ã o d o h o m e m , na m e d i d a e m q u e o

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 649

 'Dasein' é t o m a d o e j u s t i f i c a d o c o m o o ente a q u e se d e v e c o n c e d e r t o d a u m a p r i m a z i a
no e m p r e e n d i m e n t o d e c o n s t r u ç ã o d e u m a ( n o v a ) o n t o l o g i a f u n d a m e n t a l . Sem p e r d e r
d e vista a c i r c u l a r i d a d e essencial e n v o l v i d a n o p r o j e t o e x i s t e n c i a l - o n t o l ó g i c o , desdo-
b r a d o c o m o h e r m e n ê u t i c a d o ser-aí d o h o m e m , enfatiza-se agora o l a d o de q u e o
h o m e m p o s s u i u m a c o m p r e e n s ã o d e ser na m e d i d a e m q u e possui u m a c o m p r e e n s ã o
d e seu p r ó p r i o ser, o u seja, p o r q u e ele se relaciona a t r a v é s da c o m p r e e n s ã o c o m seu
p r ó p r i o ser. Nesse senHdo t o d a c o m p r e e n s ã o d e ser f u n d a - s e n u m a c o m p r e e n s ã o d e
seu p r ó p r i o ser.

D e n t r o dessa p r o b l e m á t i c a , T u g e n d h a t v ê no n e o l o g i s m o 'Erschlossenheit' ('abertura')

u m t e r m o c r i a d o p o r H e i d e g g e r para s u b s t i t u i r ' c o n s c i ê n c i a ' e c o m isso retirar-se da
p r o b l e m á t i c a g e r a l d e q u e esta última e x p r e s s ã o faz-se a c o m p a n h a r . H e i d e g g e r gosta-
ria d e d e i x a r c l a r o q u e essa " a b e r t u r a " p r i m á r i a , o r i g i n á r i a , n ã o se c o n s t i t u i r i a c o m o
u m a relação s u j e i t o - o b j e t o , não seria u m a referência o b j e t i v a o u o b j e t i v a n t e . A c o m p r e -
e n s ã o seria u m m o d o d e a b e r t u r a , b e m c o m o as 'Stimmungen". M a i s i n t r i n c a d o , p o r é m ,
é o u t r o aspecto q u e se d á a percet)er na o n t o l o g i a existencial, e q u e p o d e c o n t r i b u i r
p a r a r e l a t i v i z a r o u arrefecer o â n i m o a n t i m o d e r n o da a l t e r n a t i v a heideggeriana ao
m o d e r n o p e n s a m e n t o d a s u b j e t i v i d a d e : o 'Dasein'. T u g e n d h a t localiza na reflexão exis-
t e n c i a l e m t o r n o d o 'Dasein' u m n o v o tipo d e e g o c e n t r i s m o , l i v r e decerto d e t o d o
s o l i p s i s m o m e t o d o l ó g i c o , mas q u e se n u t r e d e u m a m a n e i r a decisiva d o p e n s a m e n t o
d e a u t o c o n s e r v a ç ã o . O " s e r - a í " d o h o m e m encerra u m p r i v i l e g i a m e n t o da d i m e n s ã o
d a s i n g u l a r i d a d e , q u e se e v i d e n c i a já na clarificação d e o u t r o n e o l o g i s m o c o m função
e s t r u t u r a l , básica, a "jemeinigkeit", o u seja, o caráter d e ser antes d e t u d o tneu d o ser
q u e está e m j o g o o u e m q u e s t ã o naquela f u n d a m e n t a l r e l a ç ã o c o n s i g o m e s m o ( o u c o m
seu p r ó p r i o ser), q u e é c h a m a d a d e " e x i s t ê n c i a " — conceito este q u e assume assim u m
s i g n i f i c a d o e u m a f u n ç ã o i n t e i r a m e n t e d i s t i n t o s e m c o m p a r a ç ã o c o m a categoria d e
existência nas o n t o l o g i a s da tradição m e t a f í s i c a , o q u e sobressai aliás na passagem: " A
v i d a é p o r t a n t o u m caso p a r t i c u l a r d o e x i s t i r , a q u e l e no q u a l n u m certo ente é neces-
s á r i o u m p r o c e s s o p a r a se c o n s e r v a r na e x i s t ê n c i a , p o r t a n t o u m p r o c e s s o d e
a u t o c o n s e r v a ç ã o , e c o m o , p o r isso m e s m o , u m tal ente só existe e n q u a n t o esse processo
estiver decorrendo, é possível pôr esse processo — a vida — e m equivalência com seu existir"'^

A s i n g u l a r i z a ç ã o h e i d e g g e r i a n a d a existência i n o v a , s e m d ú v i d a , e m relação à tradição

m e t a f í s i c a , na m e d i d a e m q u e nela é c o n c e d i d a t o d a u m a p r i m a z i a à orientação para
o f u t u r o no pensar. A q u e l a relação c o m seu p r ó p r i o ser ( o u c o m a existência c o m o
m i n h a ) p o s s u i u m c a r á t e r essencialmente prático, e n c e r r a d o já na s e m â n t i c a das f o r m u -
lações d e Ser e Tempo: a relação c o m seu ser é r e l a ç ã o c o m o ser q u e o 'Dasein' t e m - d e -
-ser (zM sein hat), isto é, c o m a existência, n ã o t a n t o c o m o já d e c o r r i d a , passada, mas
v i n d o u r a , a i n d a p o r se fazer. Isso não q u e r d i z e r q u e e u n ã o possa m e relacionar d e
u m m o d o t e ó r i c o - c o g n i t i v o c o m o m e u f u t u r o ser — p o r e x e m p l o , a n t e c i p a n d o - o h i -
p o t e t i c a m e n t e — m a s é n o p l a n o da d e c i s ã o ( o u seja: prático) q u e minhas p o s s i b i l i d a -
des d e ser se e f e t i v a r ã o , o q u e n i n g u é m p o d e r á fazer p o r m i m o u e m m e u l u g a r ( o u t r a
m a n e i r a , aliás, d e se trazer à p a l a v r a a q u e l e s e n t i d o d e s i n g u l a r i d a d e , e x c l u s i v i d a d e ,
d a e x i s t ê n c i a , a s s i m repensada c o m o p r o j e t o , e m p r e e n d i m e n t o ) . T a m b é m nessa m e d i -
d a c o n f i g u r a - s e u m aspecto s e g u n d o o q u a l o i n d i v í d u o relaciona-se consigo m e s m o
d i f e r e n t e m e n t e d o s m o l d e s d a relação r e f l e x i v a e n t r e u m s u j e i t o e u m objeto: " Q u e eu
m e relacione p r a t i c a m e n t e c o m a m i n h a e x i s t ê n c i a f u n d a - s e e m q u e a p r o p o s i ç ã o , c o m

650 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20. n. 63, 1993

a q u a l e u a í m e r e l a c i o n o , n ã o é o factum d e q u e eu existo, mas a existência q u e está
a d i a n t e d e m i m , e isto q u e r d i z e r , a necessidade (prática) d e q u e e u tenho-de-ser ao
m e s m o t e m p o e m q u e a possibilidade (prática) d e ser o u n ã o - s e r , o u seja, d e ser o u n ã o
ser tal o u q u a l coisa"'**.

A relação consigo m e s m o concebida f u n d a m e n t a l m e n t e e m t e r m o s p r á t i c o s é, p>or

conseguinte, não s o m e n t e c o m p a t í v e l c o m o p e n s a m e n t o d a a u t o c o n s e r v a ç ã o , c o m o
parece não p o d e r p r e s c i n d i r deste ú l t i m o . H e i d e g g e r s u b s t i t u i o sujeito d a f i l o s o f i a
m o d e r n a pelo 'Dasein'. M a s ao c o n t r á r i o d o q u e isso à p r i m e i r a vista possa s i g n i f i c a r ,
no 'Dasein' a s u b j e t i v i d a d e n ã o estaria e l i m i n a d a e m t o d o e q u a l q u e r s e n t i d o , mas
m a n t i d a n u m s e n t i d o b e m preciso e d e t e r m i n a d o — apenas r e d u z i d a a g o r a a c o n d i -
ç õ e s f i n i t a s , c o m o sujeito da a u t o c o n s e r v a ç ã o , cujo interesse p r i n c i p a l é p e r m a n e c e r
na existência. N a o n t o l o g i a existencial, a s u b j e t i v i d a d e s o b r e v i v e d e t e r m i n a d a p o r u m a
orientação p r a g m á t i c o - e x i s t e n c i a l p a r a a c o n s e r v a ç ã o d e seu p r ó p r i o ser. A f i n i t u d e ,
p o r é m , desse " s u j e i t o " d a existência é c o m u m , é própria a o u t r o s sujeitos i g u a l m e n t e
finitos. C o m isso c o m e ç a m a d e l i n e a r - s e aspectos relevantes d e c o - s u b j e t i v i d a d e o u d e
i n t e r s u b j e t i v i d a d e . A s f i l o s o f i a s da e x i s t ê n c i a t ê m a caracterizá-las u m a face p r o f u n d a -
m e n t e n ã o - c o m u n i c a t i v a o u n ã o - i n t e r a c i o n a l . E u m a tarefa d e p r i m e i r a o r d e m s u p r i r
essas deficiências c o m u n i c a t i v a s , l a n ç a n d o - s e u m a p o n t e m e d i a d o r a entre a q u e l a re-
d u z i d a s u b j e t i v i d a d e d a existência e a i n t e r s u b j e t i v i d a d e e n f a t i z a d a nas f i l o s o f i a s d a
l i n g u a g e m — o q u e p o d e r i a ser f e i t o a p a r t i r d a d i m e n s ã o p r a g m á t i c a da h e r m e n ê u t i c a
existencial, d e s e n v o l v e n d o - s e assim esta última p o r m e i o da e s t r u t u r a básica d e u m a
pragmática transcendental.

A s filosofias d a existência são u m p e n s a m e n t o d e p r o v o c a ç ã o , discursos q u e l a n ç a m

desafios. Desconfiadas das g r a n d e s instituições da v i d a h u m a n a histórica e social,
elegem a s u b j e t i v i d a d e i n d i v i d u a l c o m o instância referencial s u p e r i o r d e v e r d a d e e
r e a l i d a d e . Sujeito, a g o r a , é p r i n c i p a l m e n t e s i n ô n i m o d o existente h u m a n o capaz d e i r
a l é m das a r t i f i c i a l i d a d e s sociais. Sua estratégia é, p o r t a n t o , p r o v o c á - l o e m sua i n d i f e -
rença c o t i d i a n a , d e m o d o a incitá-lo a encarar seu i n t e r i o r . Sem essa busca, t o d o c o n h e -
c i m e n t o parece c o n d e n a d o a esvair-se n u m a r a c i o n a l i d a d e i n s t r u m e n t a l u t i l i t a r i s t a e
m a n i p u l a d o r a o u e n t ã o na m e r a e r u d i ç ã o estéril. C o n t r a isso a reflexão existencial
d e s v a l o r i z a as certezas o b j e t i v a s e a s e g u r a n ç a i n t e l e c t u a l , i n v e s t i n d o c o n t r a os prejuí-
zos de isenção e o b j e t i v i d a d e , d e a p r o p r i a ç ã o d o ser no conhecer. A existência h u m a n a
n ã o seria passível d e o b j e t i v a ç ã o . O interesse pela e x a t i d ã o dá l u g a r ao interesse pela
i n t e n s i d a d e , ao t o m a r - s e c o m o referencial o v i v i d o , a e x p e r i ê n c i a , e pela a u t e n t i c i d a d e ,
q u a n d o se p r i v i l e g i a o r e f l e t i r na e x i s t ê n c i a . E o q u e é p e d i d o e m troca dessa recusa
de u m a v i d a f u n c i o n a l i z a d a não parece m u i t o : a a c e i t a ç ã o d e q u e o r e c o l h i m e n t o e o
silêncio d e s e m p e n h a m u m p a p e l i m p o r t a n t e n o e x i s t i r . M a s a defesa a p a i x o n a d a d a
p r i m a z i a d o existente h u m a n o s i n g u l a r d e i x a t o d o e x i s t e n c i a l i s m o exposto, d e s a í d a ,
a u m risco. A s i m p l e s rejeição d o s o l i p s i s m o i d e a l i s t a n ã o o i m p e d e d e cair n o u t r o t i p o
de fechamento: encerrar-se na s u b j e t i v i d a d e h e r m é t i c a d a existência.

Filosofias a m a n t e s d e p a r a d o x o s , as r e f l e x õ e s existenciais p o s s u e m u m p e n d o r e m
c o m u m para a c o n c e p ç ã o d r a m á t i c a da existência h u m a n a . N ã o se trata necessaria-
m e n t e d e a l g u m p e s s i m i s m o . A q u e l a i m p r e s s ã o g e r a l é m o t i v a d a p o r u m aspecto tão
central q u a n t o r e i t e r a d o na l i t e r a t u r a existencialista, q u a l seja, a c h a m a d a c o n s c i ê n c i a

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 651

da c o n t i n g ê n c i a d o e x i s t i r , i n s t a u r a d a a p a r t i r d o s e n t i m e n t o f u n d a m e n t a l d e nosso ser
e m s i t u a ç ã o , o u na l i n g u a g e m d e H e i d e g g e r , d e nossa f a c t i c i d a d e . P r o d u z - s e nesses
t e r m o s antes u m p e n s a m e n t o d a f r a g i l i d a d e d o ser h u m a n o , d o d e s a m p a r o e d a p r e -
cariedade f r e q ü e n t e d e nossa e x i s t ê n c i a , o n d e n ã o há a q u i s i ç õ e s d e f i n i t i v a s e é preciso
s e m p r e fazer d e n o v o e refazer, p o i s t u d o p o d e s e m p r e ser posto e m q u e s t ã o , está
s e m p r e e m j o g o e é assim a m e a ç á v e l . Nesse c o n t e x t o filosófico, a existência h u m a n a
assemelha-se a u m a tarefa incerta, c o m o a l g o a ser c o n q u i s t a d o e m u m m o v i m e n t o
incessante d e fracassos e t r i u n f o s . A n g ú s t i a é o n o m e d o afeto o u d o s e n t i m e n t o d a -
quela c o n d i ç ã o d e p r e c a r i e d a d e . E esta ú l t i m a , l o n g e d e s i g n i f i c a r fraqueza é o preço
q u e p a g a m o s p o r u m aspecto d e l i b e r d a d e , bastante e s p e c í f i c o e indissociável d e cada
u m d e n ó s : o d e ter d e escolher o u d e c i d i r , a t o d o m o m e n t o , acerca d e sua própria
existência. O e s t i l o d e reflexão i n a u g u r a d o p o r K i e r k e g a a r d sofre u m i n c r e m e n t o nessa
sua d i m e n s ã o d e d r a m a t i c i d a d e e m nosso s é c u l o , ao e n c o n t r a r no espírito da A l e m a -
nha d e W e i m a r u m solo fértil, p r o p í c i o a seu d e s e n v o l v i m e n t o . A r t i c u l a n d o - s e s o l i d a -
m e n t e c o m a "Kulturkritic" típica dessa é p o c a , p r o d u z i n d o u m p e n s a m e n t o q u e expres-
sa o q u e é v i v i d o e i n t e r p r e t a d o crescentemente c o m o u m g r a n d e fracasso histórico-
-político, e m c u j o â m b i t o p r o l i f e r a m v i s õ e s c o m o esta: " S o m o s a c o m e t i d o s d e u m
m e d o sério p o r q u e n ã o s o m e n t e este o u a q u e l e p a í s , mas a t o t a l i d a d e d o m u n d o
c i v i l i z a d o está e m g r a v e p e r i g o d e a f o g a r lenta e q u a s e i n a u d i v e l m e n t e nas s o m b r a s
cinzentas e i n f o r m e s da falta d e l i b e r d a d e e da a p a t i a , q u e a u m e n t a m d i a a p ó s d i a " - " .

O tema d a r e l a ç ã o c o m os o u t r o s , d o q u a l d e p e n d e d i r e t a m e n t e toda a d i s c u s s ã o acerca

d a a u t e n t i c i d a d e e da i n a u t e n t i c i d a d e da existência h u m a n a , t e m sua relevância reco-
nhecida nas f i l o s o f i a s existenciais, o n d e o c u p a p o s i ç ã o d e destaque. De e m e r g ê n c i a
recorrente nos escritos d e K i e r k e g a a r d , é e m H e i d e g g e r — m a i s precisamente e m Ser
e Tempo — q u e ele recebe u m t r a t a m e n t o m a i s s i s t e m á t i c o . D a d o o p o n t o d e vista a
p a r t i r d o q u a l a reflexão ontológico-existencial se d e s d o b r a , a v i d a c o t i d i a n a , I leidegger
levanta a q u e s t ã o sobre o sujeito d o c o t i d i a n o . Sua resposta, elaborada ao l o n g o dos § §
25 a 27, r o m p e c o m o e n f o q u e d o s m o d e r n o s i d e a l i s m o s da consciência ao m o s t r a r q u e
tal s u b j e t i v i d a d e , antes d e ser a a u t o d e t e r m i n a d a a u t o c o n s c i ê n c i a , é s o b r e t u d o u m a
f u n d a m e n t a l i m p e s s o a l i d a d e , à q u a l c o r r e s p o n d e u m a existência o u u m m o d o de ser
e m g e r a l q u e s ó p o d e ser i n a u t ê n t i c o .

L o g o d e s a í d a , H e i d e g g e r investe c o n t r a as t r a d i c i o n a i s s u p o s i ç õ e s d e s u b s t a n c i a l i d a d e ,
p e r m a n ê n c i a e i d e n t i d a d e d o sujeito consciente, isto é, d a q u e l e s q u e a t o d o instante
e m p r e g a m a expressão 'eu'. C o m o o termo 'eu' é ontologizado e convertido n u m a
categoria m e t a f í s i c a ? A o se s u p o r q u e q u e m d e l e se u t i l i z a é s e m p r e " o m e s m o " o u ao
se p r i v i l e g i a r a m e s m i d a d e e m d e t r i m e n t o das v á r i a s a l t e r a ç õ e s o u d i f e r e n ç a s . A s
restrições à c a t e g o r i a d o sujeito s ã o i n t r o d u z i d a s m e d i a n t e u m a c o n s i d e r a ç ã o e l e m e n -
tar: " P o d e ser q u e o q u e m d o 'Dasein' c o t i d i a n o p r e c i s a m e n t e não seja s e m p r e e u
m e s m o " ^ ' . O q u e H e i d e g g e r q u e r d i z e r c o m essa a f i r m a ç ã o à p r i m e i r a vista s u r p r e e n -
d e n t e e e n i g m á t i c a ? Q u e p o d e m u i t o b e m acontecer q u e ' e u ' não a p o n t e para u m a
" p r o p r i e d a d e " , isto é, a a u t e n t i c i d a d e d e ser. A o c o n t r á r i o , o ' e u ' , o n t i c a m e n t e ó b v i o ,
p o d e estar d e fato ocultando u m a i m p r o p r i e d a d e o n t o l ó g i c a . O m e r o fato d e q u e o
Dasein é s e m p r e meu Dasein não d á , p o r si só, n e n h u m a g a r a n t i a d e q u e e u seja s e m p r e
d e u m m o d o p r ó p r i o . A s m a i s t r i v i a i s a u t o c o m p r e e n s õ e s ô n t i c a s c o m u m e n t e masca-
r a m a i n a p r o p r i a ç ã o d e si m e s m o o u d e seu p r ó p r i o ser. E as restrições s ã o assim

652 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20. n. 63, 1993

c o m p l e m e n t a d a s : " O ' e u ' s ó p o d e ser e n t e n d i d o no s e n t i d o d e u m a indicação formal,
n ã o - c o n s t r i n g e n t e , d e a l g o q u e e m cada c o n t e x t o o n t o l ó g i c o f e n o m e n a l t a l v e z se revele
c o m o o seu c o n t r á r i o . Nesse caso, o " n ã o - e u " não d i z d e f o r m a a l g u m a u m ente e m
sua essência d e s p r o v i d o d e " e u " , mas i n d i c a u m d e t e r m i n a d o m o d o d e ser d o p r ó p r i o
eu, c o m o p o r e x e m p l o , a p e r d a d e si próprio"'^. O s trechos citados já nos p e r m i t e m
entrever e m q u e m e d i d a a v i d a c o t i d i a n a é m u i t o m a i s m a r c a d a p o r h e t e r o n o m i a d o
q u e pelo contrário disso, o u seja, c o m o cada u m , n a q u i l o q u e pensa, d i z e faz, é antes
determinado pelo que os outros têm na conta de b o m o u válido. Mas q u e m são "os outros"?

O d e s d o b r a m e n t o d a r e f l e x ã o o n t o l ó g i c a e m Ser e Tempo, na q u a l a i n d i v i d u a l i d a d e da
existência h u m a n a é a n g u l a r , n ã o leva a n e n h u m a m o n a d o l o g i a . O s e r - s e m p r e - m e u d o
ser-aí não s i g n i f i c a n e m e n v o l v e a l g u m a e s p é c i e d e i s o l a m e n t o na v i d a c o t i d i a n a .
E x i s t e n c i a l m e n t c não há n e n h u m a p r e c e d ê n c i a o u a n t e r i o r i d a d e ontológica m i n h a sobre
os d e m a i s entes h u m a n o s q u e m e v ê m ao e n c o n t r o e m m e u m u n d o . " ' O s o u t r o s ' não
s i g n i f i c a m t o d o o resto d o s d e m a i s fora d e m i m , d o q u a l o eu se destacaria, os o u t r o s
são antes aqueles dos q u a i s , na m a i o r parte das vezes, n i n g u é m se d i f e r e n c i a p r o p r i a -
mente, entre os q u a i s se está t a m b é m . (...) Ser-em é ser com os o u t r o s . O ser-em-si
i n t r a m u n d a n o desses o u t r o s é co-presença"-^. A insatisfação no q u e d i z respeito à i n s u -
ficiente t e m a t i z a ç ã o d o p r o b l e m a d a a l t e r i d a d e , da relação c o m os o u t r o s , na metafísica
da consciência — o n d e tal p r o b l e m a é e q u a c i o n a d o t e n d o p o r c o n d i ç ã o u m a s u b j e t i -
v i d a d e p u r a — faz c o m q u e H e i d e g g e r arranje a reflexão n ã o s o m e n t e e m t e r m o s d e
u m a a n a l o g i a , " e u s o u como os o u t r o s " , o n d e o(s) o u t r o ( s ) já é a r e f e r ê n c i a b á s i c a ,
p r i n c i p a l ( a t i t u d e , aliás, q u e é p r e d o m i n a n t e , n o r m a l m e n t e , na esfera p r i m á r i a , ele-
m e n t a r , da v i d a c o t i d i a n a , e n ã o a a u t o - r e f l e x ã o ) ; m a i s q u e isso, H e i d e g g e r o p e r a e m
toda essa d i s c u s s ã o c o m u m p e n s a m e n t o a i n d a m a i s f o r t e , d e c u n h o t i p i c a m e n t e
e s p e c u l a t i v o : eu s o u os o u t r o s , o o u t r o sou eu t a m b é m - ^

O e n c o n t r o c o m os o u t r o s é o r i g i n a r i a m e n t e s i t u a d o , c o n t e x t u a l i z a d o . Ele é p e n s a d o a
partir do mundo e m q u e o i n d i v í d u o h u m a n o se m a n t é m o c u p a d o : cada Dasein acha-se
tão e n r e d a d o e m seu m u n d o c i r c u n d a n d e d e o c u p a ç ã o , j u n t o aos entes q u e lhe s ã o
familiares, q u e ele n e m se v ê o u se percebe i s o l a d a m e n t e o u e m s e p a r a d o d o s entes-
-utensílio e d o s d e m a i s seres h u m a n o s a í emergentes. A s s i m , o e n c o n t r o e l e m e n t a r
c o m o u t r o s Dasein sobre os efeitos da m e s m a f a m i l i a r i d a d e . C a d a q u a l " v ê " o u t r o s ,
não à m a n e i r a d a visão teórica, q u e isola e fixa a l g u m " n ã o - e u " o u a l g u m o u t r o , e s i m
e v i t a n d o o o l h a r típico dessa p o s s i b i l i d a d e d e a p r e e n s ã o d e entes q u a i s q u e r . Os o u t r o s ,
no p l a n o e m q u e s t ã o , n ã o s ã o ( a i n d a ) n e m objetos (de c o n h e c i m e n t o e i n v e s t i g a ç ã o ) ,
n e m sujeitos e m s e n t i d o e s t r i t o . É p o r q u e o ser-aí d o h o m e m é a priori u m " s e r - c o m "
q u e há c o - p r e s e n ç a d e o u t r o s . O Dasein n ã o está o r i g i n a l m e n t e r e l a c i o n a d o e m ne-
n h u m o u t r o e m p a r t i c u l a r , ele é , ao c o n t r á r i o , a possibilidade d e relacionar-se c o m
o u t r o s q u a i s q u e r , e m g e r a l . Se, aliás, o c a r á t e r d e " s e r - c o m " fosse u m a c o n s t a t a ç ã o
empírica, não p o d e r i a jamais a l m e j a r o nível d e u m a e s t r u t u r a c o n s t i t u t i v a d o ser d o
h o m e m ; tratar-se-ia d e u m a s i m p l e s c o n t i n g ê n c i a : estar ( o u não) e m p i r i c a m c n t e d a d o
ao lado d e o u t r o s entes semelhantes, i g u a l m e n t e d a d o s e m e x p e r i ê n c i a s : " O ser-com
d e t e r m i n a e x i s t e n c i a l m e n t e o Dasein m e s m o q u a n d o u m o u t r o não e s t á , d e f a t o , d a d o
o u p e r c e b i d o . M e s m o o estar s ó d o Dasein é s e r - c o m n o m u n d o . S o m e n t e em u m ser-
- c o m e para u m ser-com é q u e o o u t r o p o d e faltar. O estar só é u m m o d o d e f i c i e n t e de
ser-com e sua p o s s i b i l i d a d e é a p r o v a disso. Por o u t r o l a d o , o f a c t u a l estar só n ã o é

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 \ 653

e l i m i n a d o p o r q u e " j u n t o " d e m i m há u m s e g u n d o e x e m p l a r d e h o m e m o u talvez d e z
desses. M e s m o q u a n d o esses e a i n d a o u t r o s tantos estão dados p o d e o Dasein estar s ó " " .

N o § 27 H e i d e g g e r e x p l i c i t a m a i s a i n d a a d i f e r e n ç a entre o p e n s a m e n t o d o sujeito e o
p e n s a m e n t o d o Dasein. A p r i m e i r a e a ú l t i m a frases desse p a r á g r a f o d e i x a m claro q u e
ser s u j e i t o é a l g o q u e não só n ã o se é s e m p r e , n e m na m a i o r p a r t e das vezes, mas
t a m b é m q u e ser sujeito não é a l g o originário, p r i m á r i o , e s i m d e r i v a d o , o n t o l o g i c a m e n t e
p o s t e r i o r . Ser sujeito é a l g o q u e se f u n d a r i a na existência d e cada u m : "... o caráter d e
sujeito... d e t e r m i n a - s e e x i s t e n c i a l m e n t e , o u seja, a p a r t i r d e d e t e r m i n a d o s m o d o s d e
s e r " ( p . 126). U m d e t a l h e d e c i s i v o a q u i : ' m o d o d e ser' n ã o d e v e ser e n t e n d i d o c o m o
a l g o d a d o , presente, u m a q u a l i d a d e q u a l q u e r , mas c o m o a l g o n ã o - d a d o , logo a ser o u
p o r ser. Enfatiza-se c o m isso o aspecto d e o r i e n t a ç ã o para o f u t u r o no pensar. A
existência é concebida c o m o e m p r e e n d i m e n t o , tarefa d e cada u m . O indivíduo leva
a d i a n t e u m a empresa s i n g u l a r , q u e consiste antes d e t u d o e m q u e s t õ e s práticas, ques-
tões q u e e n v o l v e m d e c i s ã o , escolha, e m t o r n o d e suas p o s s i b i l i d a d e s d e ser. E x i s t i r ,
l o n g e d e ser u m a q u e s t ã o teórica, s i g n i f i c a fazer-se. A s u b j e t i v i d a d e é u m a p o s s i b i l i -
d a d e n o i n t e r i o r dessa tarefa, aliás, p o u c o l e v a d a e m conta na v i d a c o t i d i a n a , c o m o ser
v e r á . O Dasein torna-se sujeito, p o d e fazer-se m e r e c e d o r desse título, e m função d a
m a n e i r a d e l e se c o m p o r t a r s o b r e t u d o e m r e l a ç ã o a si mesmo^*'.

H e i d e g g e r l e m b r a q u e , na m a i o r p a r t e das vezes, o ente q u e d i z ' e u ' não é ele m e s m o .

" O s o u t r o s " s u b t r a e m - l h e o ser, e m certo s e n t i d o , ao estabelecerem u m a tutela sobre
ele. S u b t r a e m - l h e , n ã o o e x i s t i r e m g e r a l , a v i d a , mas o e x i s t i r e m u m m o d o p r ó p r i o
o u a u t ê n t i c o . O s o u t r o s exercem u m a d o m i n a ç ã o sobre m i m , n o r m a l m e n t e sem q u e e u
m e d ê conta disso. A c o n v i v ê n c i a c o t i d i a n a é u m exercício s u t i l d e p o d e r d e t o d o s
sobre t o d o s . Ela p o s s u i o aspecto d e u m t i r a n i a invisível, u m a " d i t a d u r a " ( t e r m o d o
p r ó p r i o H e i d e g g e r ) (do) impessoal {man). Pois os o u t r o s são "a g e n t e " , " t o d o m u n d o " ,
e m s u m a , u m a i m p e s s o a l i d a d e . Fica c l a r o a s s i m q u e o " s u j e i t o " da v i d a c o t i d i a n a não
é u m a pessoa, n e m u m i n d i v í d u o . O "man" caracteriza-se c o m o o contrário d o ser-
-sujeito: ele é t i r a n i a , e n ã o l i b e r d a d e , é d e p e n d ê n c i a , e n ã o a u t o n o m i a . A convivência
c o t i d i a n a é a s s i m descrita: "... cada u m é c o m o o o u t r o . Este c o n v i v e r d i s s o l v e i n t e i -
r a m e n t e o Dasein d e cada u m na m a n e i r a d e ser d o s ' o u t r o s ' e isso d e tal m o d o q u e
os o u t r o s desaparecem a i n d a m a i s e m sua p o s s i b i l i d a d e d e d i f e r e n ç a e expressão"^^. A
i m p e s s o a l i d a d e i m p l i c a s e m p r e u m a a t i t u d e e s q u i v a , d e esgueirar-se da r e s p o n s a b i l i -
d a d e nos m o m e n t o s d e d e c i s ã o .

O r a , se n i n g u é m se r e s p o n s a b i l i z a p o r s u a e s c o l h a p e s s o a l , n i n g u é m é , na
i n a u t e n t i c i d a d e , v e r d a d e i r a m e n t e sujeito d e suas d e c i s õ e s . A a u s ê n c i a d e a u t o n o m i a
na e x i s t ê n c i a s i n g u l a r c o n f i g u r a a a u s ê n c i a d e s u b j e t i v i d a d e e m s e n t i d o estrito e r i g o -
roso. O q u e a passagem s e g u i n t e v e m c o r r o b o r a r : " P o r q u e prescreve t o d o j u l g a m e n t o
e d e c i s ã o , o i m p e s s o a l retira a r e s p o n s a b i l i d a d e d e cada u m (...) Pode a s s u m i r t u d o
c o m a m a i o r f a c i l i d a d e e r e s p o n d e r p o r t u d o , já q u e n ã o há n i n g u é m q u e precise
r e s p o n s a b i l i z a r - s e p o r coisa a l g u m a (...) N a c o t i d i a n i d a d e d o Dasein, a m a i o r i a das
coisas é feita p o r a l g u é m d e q u e m d e d e v e d i z e r q u e n ã o é n i n g u é m " ^ .

I m e r s o s na i m p e s s o a l i d a d e , os entes h u m a n o s n ã o se a p r o p r i a m d e si m e s m o s , n ã o
d e t ê m as r é d e a s d e c o n d u ç ã o d e sua e x i s t ê n c i a . O "man" a l i v i a , p o r u m l a d o , a exis-

|654 I Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63. 1993

tência d e cada u m , ao r e t i r a r d e nossos o m b r o s o f a r d o q u e parece ser o estabelecer
u m a relação autêntica c o m seu p r ó p r i o ser, o ser si m e s m o (Selbstsein). O preço pago
p o r tanto c o m o d i s m o e " f a c i l i d a d e " é e l e v a d o : a c o n s o l i d a ç ã o em sua p r ó p r i a existên-
cia, e através d e l a , da t i r a n i a d o i m p e s s o a l .

A obra d e H e i d e g g e r é a e x p r e s s ã o m a i s s u b l i m e d o espírito d a " R e p ú b l i c a d e W e i m a r " .

M e i o s é c u l o a p ó s a p u b l i c a ç ã o d e Ser e Tempo, a v i d a nas sociedades capitalistas m a i s
a v a n ç a d a s c o n t i n u a a e x i b i r os aspectos expostos na f e n o m e n o l o g i a d o c o t i d i a n o d a
analítica existencial, t a l v e z a t é c o m m a i s i n t e n s i d a d e . Já a f i l o s o f i a d a existência parece
não ter t i d o m e l h o r sorte, ao converter-se, nos anos c i n q ü e n t a e sessenta, n a q u i l o
m e s m o q u e elas t a n t o d e s p r e z a v a m : m e d i o c r i d a d e e m e s q u i n h a r i a e s p i r i t u a l — trans-
f o r m a n d o - s e n u m a m o d a , o e x i s t e n c i a l i s m o e sua l i n g u a g e m : o " j a r g ã o d a a u t e n t i c i d a -
d e " , c o m o a b a t i z o u A d o r n o . C u m p r i r - s e - i a dessa m a n e i r a o d e s t i n o histórico p a r a d o -
xal d e m a i s u m a f i g u r a d a dialética d o esclarecimento? E o q u e s u g e r e m as p a l a v r a s :
" H e i d e g g e r estabeleceu a a u t e n t i c i d a d e contra o impessoal (Mau) e o falatório {Gerede)...
Ele n ã o p r e v i u , p o r é m , q u e a q u i l o q u e f o i p o r ele c h a m a d o d e a u t e n t i c i d a d e , u m a vez
t o r n a d o p a l a v r a , é a c o m e t i d o da m e s m a a n o n i m i d a d e c o n t r a a q u a l se i n s u r g i u Ser e
Tempo"^. Os e s t e r e ó t i p o s q u e p r o l i f e r a m n o l i n g u a j a r existencialista m e r e c i a m , d e c e r t o ,
u m l u g a r d e destaque na f e n o m e n o l o g i a h e i d e g g e r i a n a d o " f a l a t ó r i o " . O j a r g ã o afeta
p r o f u n d i d a d e , cria t o d a u m a ilusão d e s i m p l i c i d a d e e p r o x i m i d a d e . C o m isso g r a n j e o u
sucesso na sociedade massificada. T o r n o u - s e , p o r é m , m a i s u m a r o t i n a na m e s m a , a
q u a l alardeava recusar. A d o r n o observa q u e a i d e o l o g i a d o " c o n t a t o " , da a p r o x i m a ç ã o
das i n d i v i d u a l i d a d e s , veste u m a r o u p a g e m d e metafísica d a c o m u n i c a ç ã o h u m a n a :
q u e os h o m e n s f a l e m u n s aos o u t r o s , aí já r e s i d i r i a u m s i n a l d a v e r d a d e . Seus a d e p t o s
representam-se c o m o d o t a d o s d e u m a s e n s i b i l i d a d e r e f i n a d a e s u t i l , v i v e n d o na f a n -
tasia nostálgica d e u m a c o t i d i a n i d a d e q u e não m a i s existe. O falatório existencialista
da i n t e l e c t u a l i d a d e a n t i i n t e l e c t u a l i s t a i d e o l o g i z a o silêncio, m i s t i f i c a a i n c o m u n i c a ç ã o ,
q u e é histórica e s o c i a l m e n t e p r o d u z i d a , c o m o u m a e s p é c i e d e f a t a l i d a d e s u p r a -
t e m p o r a l m e n t e e s t r u t u r a d a . N o c u l t o d a i n t e r i o r i d a d e , u m a f u l g a r i z a ç ã o d e temas
k i e r k e g a a r d i a n o s , a u n i l a t e r a l i d a d e da reificação dá o t o m d a d e c a d ê n c i a d a q u i l o q u e
s u p o s t a m e n t e d e v e ser c u l t u a d o : " A q u i l o q u e p r e t e n d e p e r m a n e c e r a b s o l u t a m e n t e
p u r i f i c a d o da m á c u l a d a reificação t r a n s f o r m a - s e , ao ser p r e g a d o no s u j e i t o c o m o u m a
p r o p r i e d a d e f i x a , n u m a coisa d e s e g u n d o g r a u , e, p o r ú l t i m o , n u m a r t i g o d e c o n s u m o
d e massas..."^. N a a u s ê n c i a d e realização r e a l , n o v a z i o d e s e n t i d o , cria-se u m a r r e m e -
d o : a realização transfere-se para o i n t e r i o r , c o m o realização d e si i n d i f e r e n t e ao exte-
r i o r , sendo m e r a m e n t e p a r a si.

O silêncio, nas sociedades m o d e r n a s , é o calar-se d o s i n d i v í d u o s silenciados, já o

" f a l a t ó r i o " , l o n g e d e ser u m a i n v a r i a n t e m e t a f í s i c a , é a l g o típico d e u m a v i d a social d e
i n d i v í d u o s esvaziados d e s u b j e t i v i d a d e . N o m u n d o da v i d a cada vez m a i s calculada
e a d m i n i s t r a d a , o n d e a a n g ú s t i a p o d e m u i t o b e m ser a l ç a d a à c o n d i ç ã o d e categoria
existencial, os i n d i v í d u o s agarram-se desesperada m e n t e a si m e s m o s , e m sua e x t r e m a
a b s t r a ç ã o . C a d a q u a l parece pressentir, n o f u n d o , q u e é s u p é r f l u o e d i s p e n s á v e l , e m
a l g u m a m e d i d a . Nesse a m b i e n t e os h o m e n s s ã o e s t r u t u r a l m e n t e adestrados p a r a a
r e p r o d u ç ã o d e si m e s m o s . E a í a a u t o c o n s e r v a ç ã o só p o d e m e s m o i n f l a r na f o r m a d o
"Si" (Selbst) c o m o e x c l u s i v i d a d e teleológica, n o e g o í s m o a b s o l u H z a d o . O juízo sobre a
f i g u r a d o i n d i v i d u a l i s m o existencial é severo: " O p e n s a m e n t o b u r g u ê s t a r d i o f o r m a -

Sintese Noua Fase, Belo Horizonte, v. 20. n. 63, 1993 655

-se regressiva m e n t e n o s e n t i d o d a m e r a a u t o c o n s e r v a ç ã o . . . Obstinar-se, p o r é m , n o p u r o
e s i m p l e s ser-assim é fetichizá-Io. E u m a i p s e i d a d e solta, f i x a d a , aí m e s m o é q u e se
c o n v e r t e n u m a e x t e r i o r i d a d e , o sujeito c o n v e r t e n d o - s e e m seu próprio objeto, o q u a l
conserva e c u i d a . Essa é a resposta i d e o l ó g i c a ao fato de q u e a s i t u a ç ã o a t u a l p r o d u z
v i s i v e l m e n t e p o r t o d a p a r t e a q u e l e e n f r a q u e c i m e n t o d o E u {Ich-Schwachc), q u e apaga
o conceito de sujeito c o m o i n d i v i d u a l i d a d e " ^ ' .

T o m a n d o - s e c o m o p a n o - d e - f u n d o o q u a d r o social e c u l t u r a l q u e acaba d e ser e s b o ç a -

d o , fica reforçada a i n c l i n a ç ã o para c o n s i d e r a r c o m o l i m i t a d a s as p o s s i b i l i d a d e s d e
f i l o s o f i a da existência n o s e n t i d o d e c o n t r i b u i r na t e m a t i z a ç ã o d o f e n ô m e n o d a c o m u -
n i c a ç ã o h u m a n a . N u m a é p o c a e m q u e a i n t e r a ç ã o dialógica parece c o n d e n a d a a d i l u i r -
-se e m falatório e n c o b r i d o r , o n d e a c o n v e r s a ç ã o , d e m e i o para c l a r i f i c a r pensamentos
e a t i n g i r v e r d a d e s , converte-se e m u m f i m e m si — falar p o r falar — a a t i t u d e intelec-
t u a l existencialista d e t e r m i n a - s e a p e r m a n e c e r , e m certo s e n t i d o , n u m a p o s t u r a de
r e t i r a d a o u d e inflexível n e g a t i v i d a d e : recusa-se a t o m a r p a r t e na m e d i o c r i d a d e gene-
r a l i z a d a : p o r o u t r o l a d o , p r i v a - s e c o m isso d e fornecer u m m í n i m o d e c o n t r i b u i ç ã o
r e f l e x i v a para o a p e r f e i ç o a m e n t o da v i d a pública. N ã o s u r p r e e n d e , p o r conseguinte,
que alguns cheguem até a considerar a comunicação h u m a n a como u m problema
i n s o l ú v e l , n o â m b i t o da filosofia existenciaP'. V o l t e m o s e n t ã o à o r i g e m desse estilo d e
r e f l e x ã o , q u e é o n d e se e n c o n t r a , aliás, a m e l h o r p o s s i b i l i d a d e d e a p r o v e i t a m e n t o .

E m K i e r k e g a a r d , a r e f l e x ã o existencial p r e s s u p õ e q u e cada i n d i v í d u o d i s p õ e d e u m
saber i m e d i a t o sobre si m e s m o , saber q u e é pessoal, concreto, e, nessa m e d i d a , i n c o m -
p a r á v e l c o m o q u e q u a i s q u e r o b s e r v a d o r e s externos p o s s a m p r o d u z i r sobre ele. A
c o n c r e t u d e desse saber a d v é m , p o r t a n t o , d a e x c l u s i v i d a d e o u da i r r e d u t i b i l i d a d e da
e x p e r i ê n c i a de si p r ó p r i o . O fato d e q u e esta ú l t i m a , na sua d i m e n s ã o de i n t e r i o r i d a d e ,
n ã o possa ser objeto d a o b s e r v a ç ã o d e terceiros, não s i g n i f i c a , d e m o d o a l g u m , q u e ela
seja a l g o i r r e a l . Nesse c o n t e x t o d e p e n s a m e n t o , a n o ç ã o d e s u b j e t i v i d a d e , q u e d e t o d o
m o d o é s i n ô n i m o d e existência i n d i v i d u a l o u s i n g u l a r , n ã o i m p o r t a tanto c o m o u m
d a d o o u q u a l i d a d e fixa d o s seres h u m a n o s , mas c o m o u m a m e t a , algo a ser a l c a n ç a d o
a t r a v é s d a a t i t u d e i n t e l e c t u a l o u r e f l e x i v a existencial. Sobre esse i n d i v í d u o c o n s a g r a d o
c o m o s u j e i t o , p a r e c e m - m e p e r t i n e n t e s a l g u m a s o b s e r v a ç õ e s d e K a r l Lõwith: " A cate-
g o r i a d e i n d i v í d u o (Einzclnes) é e m p r e g a d a p o r K i e r k e g a a r d n u m d u p l o s e n t i d o : i n d i -
v í d u o s i g n i f i c a cada um, mas enquanto indivíduo. (...) Ser i n d i v í d u o é u m a p o s s i b i l i d a d e
u n i v e r s a l , acessível a q u a l q u e r u m . . . N i n g u é m é p o r n a t u r e z a i n d i v í d u o , mas q u a l q u e r
u m p o d e tornar-se u m (...) A i n d i v i d u a l i d a d e {Einzelheit) possui u m a relação m u i t o
precisa, a i n d a q u e sobrecarregada p o r n e g a ç ã o , c o m a u n i v e r s a l i d a d e pública d e u m
m u n d o n i v e l a d o . . . A f u n ç ã o d a ê n f a s e na i n d i v i d u a l i d a d e é l e v a r ao e x t r e m o a já
i n i c i a d a d i s s o l u ç ã o das o b r i g a t o r i e d a d e s d a v i d a p ú b l i c a , d e m o d o a q u e se chegue,
t e n d o p o r base a n ã o - o b r i g a t o r i e d a d e d e todas as c i r c u n s t â n c i a s d o m u n d o , ao reen-
c o n t r o d o h o m e m c o n s i g o mesmo^\ E m K i e r k e g a a r d , a t e n d ê n c i a d o ser h u m a n o para
a i n a u t e n t i c i d a d e é tão a c e n t u a d a , q u e para se chegar à existência autêntica só m e s m o
m e d i a n t e u m a certa p o s t u r a d e e x c l u s ã o o u d e r e c o l h i m e n t o . H á , sem d ú v i d a , e m seu
p e n s a m e n t o , u m a boa dose d e i n c i t a ç ã o â existência solitária. N o c o n t e x t o ético-religio-
so e m q u e se localiza o p r o b l e m a da c o m u n i c a ç ã o h u m a n a , a i n c a p a c i d a d e da subje-
t i v i d a d e i n d i v i d u a l p a r a e x p r i m i r - s e d i r e t a m e n t e é concebida c o m o u m s o f r i m e n t o . A
existência a u t ê n t i c a , na i n t e r i o r i d a d e d a fé, t e m u m aspecto d e i n a c e s s i b i l i d a d e aos

656 Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v. 20, n. 63. 1993

 o u t r o s sujeitos íinitos, c r i a n d o u m a d i m e n s ã o d e s e g r e d o , d e mistério. A s o l i d ã o é
p o r t a n t o o m e i o excelente para o a p r o f u n d a m e n t o na i n t e r i o r i d a d e . I n d i v í d u o , nesse
sentido e s t r i t o , é a l g o q u e não se é s e m p r e o u a t o d o i n s t a n t e , m a s s o m e n t e na m e d i d a
e m q u e se vivência i n t e n s a m e n t e u m a r e l a ç ã o consigo m e s m o , d e busca d e t r a n s p a r ê n -
cia i n t e r i o r , e m c u j o e x t r e m o s u p e r i o r encontra-se a r e l a ç ã o c o m Deus. A s s i m , a r e l a ç ã o
c o m o o u t r o , c o m o relação q u e r e ú n e e x i s t ê n c i a s , depara-se c o m fortes restrições e m
sua t e m a t i z a ç ã o . U m aspecto n e g a t i v o parece i m p o r - s e c o m o a d v e r t ê n c i a : a p r o x i m i -
d a d e s u p e r f i c i a l , f a l a s t r o n a , é a l g o d e q u e seria c o n v e n i e n t e defender-se, d e m o d o a
preservar-se, e m p r i m e i r o l u g a r , a si p r ó p r i o .

C o n t r a a s e p a r a ç ã o d o p e n s a m e n t o e d a e x i s t ê n c i a , a r e f l e x ã o k i e r k e g a a r d i a n a prega
o v i v e r seu p r ó p r i o p e n s a m e n t o . O saber d e v e d e i x a r d e ser m e r a m e n t e c u m u l a t i v o ,
para tornar-se v i d a , a ç ã o . O p e n s a m e n t o d e v e i r a l é m da a t i t u d e c o n t e m p l a t i v a e
c o n f i g u r a r - s e c o m o a reflexão prática d e a p r o p r i a r - s e d e si m e s m o . D e v e i r a l é m ,
portanto, d a q u i l o que Kierkegaard chama de "pensamento o b j e t i v o " , inadequado para
d a r conta da i n t e r i o r i d a d e o u da s u b j e t i v i d a d e i n d i v i d u a l ^ . Esta n ã o se d e i x a r i a a p r e -
ender e m d i s c u r s o s d e s c r i t i v o s , i n f o r m a t i v o s , n e m a r g u m e n t a t i v o s , q u e v i s a m ao c o n -
v e n c i m e n t o o u à p e r s u a s ã o , p o i s na c o m u n i c a ç ã o da s u b j e t i v i d a d e o u d o i n t e r i o r o q u e
i m p o r t a não é o e l u c i d a r o u c o m e n t a r p e n s a m e n t o s , n e m d e m o n s t r a r o u p r o v a r u m a
asserção. A q u i se o p e r a c o m u m a d u p l a c o r r e s p o n d ê n c i a : entre p e n s a m e n t o objeto e
comunicação direta, por u m lado, pensamento subjetivo e comunicação indireta, por
o u t r o . U m p r e s s u p o s t o básico d e t o d a essa c o n s i d e r a ç ã o , e q u e parece ser a c o l h i d o sem
m a i o r q u e s t i o n a m e n t o pelas filosofias da existência d e u m m o d o g e r a l , é d e q u e o
c h a m a d o p e n s a m e n t o o b j e t i v o é n ã o s o m e n t e i m p r ó p r i o no s e n t i d o acima m e n c i o n a -
d o , mas é p o r p r i n c í p i o o u essencialmente i n d i f e r e n t e à s u b j e t i v i d a d e i n d i v i d u a l , o u
seja, n ã o é seu interesse o â m b i t o da e x i s t ê n c i a , d o s i n g u l a r , d o pessoal. E, e n f i m , o t i p o
d e p e n s a m e n t o q u e se a d a p t a à t r a d i c i o n a l c o n c e p ç ã o d e c o n h e c i m e n t o c o m o u n i v e r -
sal, c o m o t e o r i a , ciência. É d e se i m a g i n a r q u e para o p e n s a d o r existencial o p e n s a m e n -
to d i t o o b j e t i v o seja a l g o a ser a r r o l a d o o u p e l o m e n o s a p r o x i m a d o d o s m o d o s d e ser
inautênlicos d o h o m e m .

Já o p e n s a m e n t o s u b j e t i v o , a " r e f l e x ã o d a i n t e r i o r i d a d e " , é u m a reflexão d u p l a , isto é,

p r o p o s i t a l m e n t e m a r c a d a pela f u n d a m e n t a l a m b i g ü i d a d e d e ser ao m e s m o t e m p o
u n i v e r s a l , c o m o t o d o p e n s a m e n t o , e s i n g u l a r , na m e d i d a e m q u e v a l o r i z a a d i m e n s ã o
subjetiva o u p r i v a d a dos atos d e r e f l e x ã o , o aspecto d o p e n s a m e n t o ser meu p e n s a m e n -
to. Isso d e t e r m i n a , para K i e r k e g a a r d , o caráter c o n t r a d i t ó r i o , dialético, da f o r m a d e
c o m u n i c a ç ã o q u e lhe é c o r r e s p o n d e n t e , a " c o m u n i c a ç ã o i n d i r e t a " . Esta n o ç ã o , q u e
enfeixa a c o n t r i b u i ç ã o p o s i t i v a da reflexão existencial p a r a a t e m a t i z a ç ã o da c o m u n i -
cação das s u b j e t i v i d a d e s autoconscientes, é m a n t i d a v a g a e i m p r e c i s a ao l o n g o d o Post-
-Scriptum, p o i s seu a u t o r parece zeloso q u a n t o ao p a r a d o x o e m q u e i n c o r r e r i a se t e n -
tasse fornecer u m a d e f i n i ç ã o rigorosa d e seu s i g n i f i c a d o . Poder-se-ia d i z e r q u e ela
consiste n u m e x e r c í c i o d e f o r n e c i m e n t o d e e x e m p l o s o u d e a p r e s e n t a ç ã o d e i n d i c a ç õ e s
o u alusões, o q u e n ã o acrescentaria m u i t o . M a i s i m p o r t a n t e é ressaltar as c o n d i ç õ e s e
as circunstâncias e m q u e ela se faz válida: q u a n d o se trata d e despertar, p r o v o c a r u m a
pessoa para a i n t e r i o r i d a d e ; o u a i n d a q u a n d o a l g u é m p o s s u i u m a c o m p r e e n s ã o , cor-
reta no essencial, da v i d a ética, mas não v i v e , d e m a n e i r a coerente, e m c o n f o r m i d a d e
c o m sua c o m p r e e n s ã o , n ã o r e f l e t i n d o sobre a c o n t r a d i ç ã o e n t r e o q u e se passa no p l a n o

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 657

d o saber e o q u e o c o r r e e m sua e x i s t ê n c i a . K i e r k e g a a r d revela e m d i v e r s a s o c a s i õ e s sua
a d m i r a ç ã o p e l o p r o c e d i m e n t o m a i ê u t i c o s o c r á t i c o . C o m o tal mostra-se p r e o c u p a d o
c o m a q u e s t ã o d a e f e t i v a ç ã o d a l i b e r d a d e nos atos o u e x p e r i ê n c i a s d e c o m u n i c a ç ã o —
e isso n ã o s o m e n t e n o s e n t i d o , caro ao p e n s a m e n t o ético-político m o d e r n o , d a liber-
d a d e d e e x p r e s s ã o , l i b e r d a d e d o f a l a n t e , m a i s a i n d a da l i b e r d a d e outro, d o ouvinte,
l i b e r d a d e d o r e c e p t o r d e fazer suas p r ó p r i a s descobertas, d e levar a cabo e m si e p o r
si m e s m o m o v i m e n t o s d e c o m p r e e n s ã o . A c o m u n i c a ç ã o i n d i r e t a d á m a i s v a l o r ao
processamento i n t e r n o , pessoal, d o o u t r o , d o q u e aos efeitos o u r e s u l t a d o s i m e d i a t o s
decorrentes, e v e n t u a l m e n t e , d e a l g u m a c o m u n i c a ç ã o : " O b j e t i v a m e n t e o q u e se acen-
t u a é o que é d i t o ; s u b j e t i v a m e n t e , como é d i t o " ^ \ A ética dessa f o r m a d e c o m u n i c a ç ã o
é a d e respeitar a a u t o n o m i a d o i n t e r l o c u t o r . A r e a l i z a ç ã o , na prática, d e u m pensa-
m e n t o não d e v e acontecer a q u a l q u e r p r e ç o . Ela e x i g e , e m r e s u m o , q u e haja coerência
o u c o n t i n u i d a d e e n t r e a f o r m a d e c o m u n i c a ç ã o e a p r ó p r i a existência d o sujeito q u e
p r e t e n d e c o m u n i c a r a l g o . E c o n t r a t o d o o b j e t i v i s m o , d e f e n d e q u e o sujeito não se
o c u l t e o u b u s q u e retirar-se d e a l g u m m o d o nos seus atos d e e x t e r i o r i z a ç ã o d o q u e traz
d e n t r o de si. U m pensador subjeHvo n ã o é a l g u é m q u e ensina, mas a l g u é m q u e aprende^.

E m q u e pese t e r e m p e r m a n e c i d o necessitadas d e a p r o f u n d a m e n t o , as c o n s i d e r a ç õ e s
esparsas sobre a c o m u n i c a ç ã o inseridas n o Post-Scriptum e n c e r r a m s u g e s t õ e s instigantes
p a r a o estabelecimento d e u m ethos consensual d e i n t e r a ç ã o d i a l ó g i c a . N ã o deixa d e
ser s u r p r e e n d e n t e q u e u m estilo d e r e f l e x ã o filosófica q u e se t o r n o u h i s t o r i c a m e n t e
m a i s c o n h e c i d o p o r i n c e n t i v a r a a u t o - i m e r s ã o da s u b j e t i v i d a d e i n d i v i d u a l revele u m a
tal p r e o c u p a ç ã o c o m o o u t r o , c o n f i g u r a d a expressamente no p e n s a m e n t o d a a u t o -
-realização d a c o m p r e e n s ã o . S e m e l h a n t e interesse p o d e mostrar-se p a r t i c u l a r m e n t e
frutífero c o m o fator d e c o m p e n s a ç ã o n u m a época q u e se revela m a r c a d a pela d e c a d ê n -
cia da v i d a pública e o n d e o i n d i v í d u o , a l ç a d o à c o n d i ç ã o d e s u s t e n t á c u l o referencial
d e u m a resistência ilusória e desesperada, faz d e si o e i x o d i r e t o r d e u m a exigência
tirânica d e a u t e n t i c i d a d e e p r o x i m i d a d e , c o n f u n d i d o s , agora, c o m realização pessoal.
É aquela " t i r a n i a da i n t i m i d a d e " , d e q u e fala Sennett, m o s t r a n d o c o m o nos dias de
hoje " b u s c a m o s nas esfera p r i v a d a n ã o a l g u m o u t r o p r i n c í p i o , mas u m a i m a g e m re-
f l e t i d a , a l g o q u e é a u t ê n t i c o e m nossa m e n t e , e m nossos s e n t i m e n t o s . T e n t a m o s fazer
da p r i v a c i d a d e , d o estar a sós conosco m e s m o s , c o m a família, c o m os a m i g o s , u m f i m
e m si m e s m o . (...) I*ara cada u m seu p r ó p r i o 'Self t o r n o u - s e o encargo p r i n c i p a l .
Conhecer-se t o r n o u - s e u m f i m . . . E p r e c i s a m e n t e p o r q u e estamos tão imersos e m nós
m e s m o s , nos é tão difícil fazer u m a idéia clara d a q u i l o e m q u e consiste nossa perso-
n a l i d a d e . A r a z ã o p a r a isso é: q u a n t o m a i s a p s y c h é é p r i v a t i z a d a , isto é, i m p e l i d a para
o p r i v a d o , . . . tão m a i s difícil nos é s e n t i r o u expressar s e n t i m e n t o s " . Desenvolve-se
toda u m a crença de que " c o m u n i d a d e é p r o d u t o de u m autodesnudamento mútuo.
(...) C o m o n u n c a antes as pessoas o c u p a m - s e hoje c o m sua história pessoal e c o m suas
e m o ç õ e s p a r t i c u l a r e s . M a s c o m o se v e r i f i c o u , esse interesse era u m a a r m a d i l h a ; à
l i b e r d a d e é q u e ele n ã o c o n d u z i u " - ^ ^

C o m o a t r o f i a m e n t o crescente d a esfera pública c o m o e s p a ç o d e r e a l i z a ç ã o h u m a n a ,

os i n d i v í d u o s b u s c a m n o â m b i t o da i n t i m i d a d e a l g o q u e lhes seria recusado na estra-
nheza da v i d a pública-*^. Fortalece-se c o m isso u m a v i d a social na q u a l a experiência
í n t i m a torna-se u m a e s p é c i e d e p a d r ã o o u critério g e n e r a l i z a d o para o j u l g a m e n t o da
r e a l i d a d e e a s e g u r a n ç a e m t o r n o d o aspecto d e se as pessoas l i d a m d e m a n e i r a

658 Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v. 20, n. 63. 1993

" a b e r t a " u m a s c o m as o u t r a s , o f a t o r d e c i s i v o n o m e r c a d o das relações i n d i v i d u a i s . A s
c o n s e q ü ê n c i a s desse c o m é r c i o estéril no c o t i d i a n o s ã o m a i s b a n a l i d a d e , tédio, f r u s t r a -
ção. Descrevendo a a g o n i a d e t o d a u m a c u l t u r a p ú b l i c a , Sennett acentua c o m o i d e o -
logia d a i n t i m i d a d e t r a n s f o r m a categorias p o l í t i c a s e m psicológicas: " c a l o r h u m a n o " ,
" p r o x i m i d a d e " , fatores e m g e r a l d e resposta a c a r ê n c i a s p s í q u i c a s s u b j e t i v a s passam a
f u n c i o n a r c o m o p a d r ã o d e m e d i d a para o q u e é o u n ã o v á l i d o . Evidencia-se e n t ã o , p o r
t u d o isso, u m p a r a d o x o típico d o modus vivendi das sociedades c o n t e m p o r â n e a s : " Q u a n t o
m a i s u m a pessoa se concentra na a u t e n t i c i d a d e d e seu s e n t i r e m vez d e concentrar-se
no c o n t e ú d o o b j e t i v o d a q u i l o q u e ela sente, q u a n t o m a i s a s u b j e t i v i d a d e se t o r n a u m
f i m e m si m e s m o , t a n t o m e n o s ela é capaz d e ser e x p r e s s i v a " ^ . A i n t i m i d a d e p a r a d o -
x a l m e n t e não v e m beneficiar a s o c i a b i l i d a d e . A c o m u n h ã o d o s i n d i v í d u o s a f e t i v a e
e m o c i o n a l m e n t e d e s n u d a d o s torna-se u m a a r m a c o n t r a o espírito e c o n t r a a Polis, na
m e d i d a e m q u e os traços d e p r o v i n c i a n a estreiteza, a n t i c o s m o p o l i s m o e p a r t i c u l a r i s m o ,
q u e essa c u l t u r a d a i n t i m i d a d e desperta, são alheios à força civilizatória historicamente
c o m b i n a d a c o m a cidade.

Já f o i o b s e r v a d o , e c o m bastante a r g ú c i a , d i g a - s e d e passagem, q u e o interesse pela

r e a l i z a ç ã o pessoal é u m a d i m e n s ã o i d e o l ó g i c a q u e se e n c o n t r a no cerne m e s m o d o
espírito d e m o d e r n i d a d e ' " ' . Ser m o d e r n o , n ã o s ó p o r u m a m e r a c o n t i n g ê n c i a histórico-
-epocal, m a s e m t e r m o s d e c o n s c i ê n c i a e d e v a l o r e s , é ser p r e o c u p a d o c o m sua própria
realização. A o m e n o s c o m o m o d e r n i d a d e a p a r t i r d o f i n a l d o século X I X cada vez m a i s
a c o m p r e e n d e , a a u t o - r e a l i z a ç ã o consiste e m u m " d e s e n v o l v i m e n t o d a i n d i v i d u a l i d a d e
de cada u m " , l o g o n u m processo de i n d i v i d u a l i z a ç ã o , q u e se c o m p r e e n d e u , nos p r i -
m e i r o s t e m p o s , d e m a n e i r a teoelógica, c o m o u m d e s e n v o l v i m e n t o e m d i r e ç ã o a u m
f i m p r e v i a m e n t e d a d o o u d e t e r m i n a d o , e n u m a fase p o s t e r i o r , c o m o u m a e s p é c i e d e
" e x p e r i m e n t a ç ã o consigo m e s m o " . Decisiva, nessas circunstâncias m a i s recentes, é aquela
compreensão que a emergente filosofia existencial (Kierkegaard) a j u d o u a formular,
dela e x t r a p o l a n d o para tornar-se o p i n i ã o c o r r e n t e : d e q u e o h o m e m só é capaz d e
d e s e n v o l v e r sua i n d i v i d u a l i d a d e na m e d i d a e m q u e consegue desligar-se das relações
sociais. Este seria e n t ã o o s i g n i f i c a d o d e f u n d o d a e x p r e s s ã o " t o r n a r - s e si m e s m o "
{Selbst) d e cada u m : a i n d i v i d u a ç ã o o u s i n g u l a r i z a ç ã o q u e é p r e t e n d i d a p o s s u i u m
caráter indisfarçável d e u m e s f o r ç o p a r a l i v r a r - s e d o s " o u t r o s " . Cria-se c o m isso u m a
m e n t a l i d a d e c u r i o s a , q u e ressuscita aspectos d a a n t r o p o l o g i a d e H o b b e s e d e Rousseau
t a m b é m . Os h o m e n s assemelham-se a lobos, c o m os q u a i s c o n v é m ter m u i t o c u i d a d o .
Os o u t r o s d e v e m ser objeto d e m e d o e d e s c o n f i a n ç a , s e n d o vistos p r i m e i r a m e n t e c o m o
o b s t á c u l o s à m i n h a i n d i v i d u a l i z a ç ã o e, dessa f o r m a , à m i n h a a u t o - r e a l i z a ç ã o . N ã o há
a q u i u m a certa atmosfera d e p e n s a m e n t o c o n s p i r a t ó r i o acerca da v i d a social e c u l t u r a l ?
Pois os o u t r o s p a r e c e m estar a í p r i n c i p a l m e n t e p a r a q u e e u seja m e n o s , para i m p e d i r
m e u d e s e n v o l v i m e n t o pessoal. L o g o , para ser a u t e n t i c a m e n t e , ser si m e s m o , parece
restar apenas, c o m o c o n d i ç ã o sine qua non — d a d o q u e a n e n h u m p e n s a d o r existencial
ocorre r e c o m e n d a r u m a existência e m c l a u s t r o — u m p r i v i l e g i a m e n t o d o ser para si.

T h e u n i s s e n clarifica nos seguintes t e r m o s a e x p r e s s ã o 'ser si m e s m o ' : " Q u e e u q u e i r a

ser eu m e s m o s i g n i f i c a t a m b é m e não e m ú l t i m o l u g a r : q u e r o ser m a i s e o u t r a coisa
q u e a q u i l o q u e sou e m m i n h a f u n ç ã o social. E u s o u e u m e s m o na m e d i d a e m q u e n ã o
m e esgoto nos p a p é i s q u e d e s e m p e n h o " ^ ' . P r e t e n d e n d o d i s t i n g u i r a s s i m u m a i d e n t i d a -
d e pessoal d e u m a i d e n t i d a d e social, o q u e u m esclarecimento dessa n a t u r e z a não

Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 659

d e i x a d e s u g e r i r é q u e haja a l g o c o m o u m excedente o u r e s í d u o d e ser, a l é m ( o u
a q u é m ) das m ú l t i p l a s e d i s t i n t a s funções sociais d e s e m p e n h a d a s p o r cada indivíduo.
Para os p r o p ó s i t o s d a presente d i s c u s s ã o , m a i s i m p o r t a n t e d o q u e os resquícios d e
metafísica substancialista residentes e m tal c o m p r e e n s ã o é o aspecto d e d i l e m a típico
das sociedades c i v i s m o d e r n a s , q u e a q u i se d e l i n e i a : o i n d i v í d u o aspira a ser mais e
para t a n t o volta-se c o n t r a as c^struturas d o q u a d r o t r a n s c e n d e n t a l social e político q u e
c i r c u n s c r e v e e realiza e f e t i v a m e n t e sua l i b e r d a d e , p r o m o v e n d o - s e , dessa f o r m a , u m a
c o n f u s ã o e n t r e r e a l i z a ç ã o pessoal e ser à p a r t e d o s d e m a i s .

O q u e T h e u n i s s e n o b s e r v a a i n d a a respeito d a f i l o s o f i a d a e x i s t ê n c i a , d e q u e "ela
p r e t e n d e g a r a n t i r para o i n d i v í d u o u m e s p a ç o l i v r e n o q u a l ele n ã o seja j u l g a d o segun-
d o os critérios d e eficiência das esferas técnica e e c o n ô m i c a d a s o c i e d a d e " , é algo q u e ,
e m p r i n c í p i o , c e r t a m e n t e se a f i g u r a m u i t o m a i s c o m o l o u v á v e l d o q u e c o m o r e p r o v á -
v e l . Resta saber se a defesa da esfera p r i v a d a c o n t r a a i n v a s ã o t o t a l i z a n t e da técnica
a t i n g e e f e t i v a m e n t e os o b j e t i v o s a q u e se p r o p õ e o u se, e m caso c o n t r á r i o , não c o n t r i -
b u i apenas para m i n a r m a i s a i n d a o já d e b i l i t a d o — entre o u t r o s fatores, p e l o i n d i v i -
d u a l i s m o m o d e r n o — e s p í r i t o d e Polis, d e c i d a d a n i a , a c o n s c i ê n c i a d e c u i d a d o c o m a
coisa p ú b l i c a . A c o n c e p ç ã o e x i s t e n c i a l - i n d i v i d u a l i s t a d e n o t a u m a c o n s c i ê n c i a d e p e r d a :
p e r d a d e u m s e n t i d o d e u n i v e r s a l i d a d e , d e u m a u n i v e r s a l i d a d e realizada subjetiva-
m e n t e , tal c o m o a pensava H e g e l e m sua f i l o s o f i a d o espírito. Esse aspecto de p e r d a
a d q u i r e u m a c o n f i g u r a ç ã o prioritária, a c h a m a d a p e r d a d o " s e n t i d o da v i d a " , c o m o
a l g o ú n i c o , u n i v e r s a l , c o m u m . M a s p r e c i s a m e n t e cdeste p o n t o d e v i s t a , aquela p e r d a
p o d e ser encarada, p o r o u t r o l a d o , c o m o p o s s i b i l i t a n d o g a n h o s : u m p l u r a l i s m o d e
projetos d e v i d a — os p r o j e t o s i n d i v i d u a i s n ã o se d e f i n i n d o m a i s p r e v i a m e n t e a p a r t i r
de u m a visão de m u n d o s u p r a - i n d i v i d u a l . Daí contrapor-se correntemente uma con-
c e p ç ã o " e x p e r i m e n t a l " d e a u t o - r e a l i z a ç ã o à r e a l i z a ç ã o pessoal c o m o efetivação d e a l g o
p r é - d e t e r m i n a d o . Por sua v e z , a u n i v e r s a l i d a d e q u e se estaria p e r d e n d o talvez não seja
o u t r a s e n ã o a u n i v e r s a l i d a d e burguesa — e n t r a d a e m d e s c r é d i t o d o u n i v e r s a l corres-
p o n d e n t e ao fato histórico da sociedade b u r g u e s a - c a p i t a l i s t a , o q u e , p o r si só, não
i n v a l i d a r i a a idéia d e s o c i e d a d e c i v i l : " F o r ç a n o r m a t i v a n ã o é a p r ó p r i a sociedade c i v i l
b u r g u e s a q u e p o s s u i , m a s a idéia q u e lhe é subjacente. E é possível q u e essa idéia
a p o n t e para a l é m da s o c i e d a d e c i v i l b u r g u e s a e s o m e n t e consiga e n c o n t r a r sua expres-
s ã o a d e q u a d a n u m a o u t r a f o r m a d e sociedade"''^ A a u t o - r e a l i z a ç ã o não se encontra
d i s p e n s a d a d e r e a l i z a r o u n i v e r s a l e m u m s e n t i d o ético.

NOTAS

1. Ver, por exemplo, TLX;KNUHAT, Ernst: Sf/ÍNí/nciíSS/sciii und St'U>>hf^tiiiiitiun;^, Suhrk<imp, 1979; 1 h M í i t M, Dieter: SfHnivríidílni^ra;
Recl.im, 1982; l-utUNt;, llnns: Subjektivilol und SeUj^U-rhaltiin^. Suhrk.imp, 1976; V K W K . M.infred: kVfls /s/ Niwtrukturahátntn?.
Suhrkamp, 1984.
2. HFNRICH, D., Dii' Cruiid-ilruktur der Moderncit /'/ÍI/IKH;I/I/C, in líbeling, op. cit., p. 1 0 8 .
3. Ibid., p. 305.
4. Apóio-me, neste ponlo, no inten^ss.inte eas.iio de Ulrich Pothast, LIUHI-^ iV/vr /í('H'»S';/-;í'ifj, publicado na coletânea editada
por K. Cramer, Hí-, Tulda e outros, intitulada "Theorie der Subiektivitat", I-rank/urt, 1990.
5. PoTiMST, Op. cit, p. 22.

660 Sinfese Noua Fase. Belo Horizonte, v. 20, n. 63. 1993

6. Cf. W i E H i , R. i n : CRAMJ.K, K . (Hrí^.), ThtHirie der Subjc-klivit.il, p . 46.

7. Ibid., p . 63.
8. As referências que se s e j ; u e m a o Tratado do ÜCSÍ-S/XTO, bem como as citações, lôm por base as seguintes edições: "Die
Kraiikhal zim h^e". in: Wcrke, D I V . 19, e ainda Trailc dti D^^ivir, Paris, Gallimard, 1990.
9. línumerando api'nas alguns, cuj.is obras servem de .I{.'KMO a grande parte das mnsiderações e obscr\'ações que se seguem:
A m , K-O.: Tran^foniiatioii der Philo-it^fhu; Suhrkamp, Frankfurt, 1976; T u c E N D H A r , I:.: SÍ'/ÍJSÍ('H'HSS/SÍ'ÍH und Si-lh-itiv^lininuiit}^.
Suhrkamp, 1970; ROKIY, R.: {'hilo-ktphy attd thv Mirror of thc Nalure, Princeton university Press, 1980; RORTY, K . : £SÍ(JI/S on
/íi'/J»X's'''' "'"^ Ü//n'rs, Cambridge Uruversity Press, 1991.
10. APEL, o p . cit., p . 96 - 98.

11. Ibid., p . 323,

12 RORTY, £ s s a y s , p . I I .

13. Cf. ArtL, o p - cit., p 327. Considerantio a expressío "o Ser" na maior parte das vezes como uma metiffora ísinLitica), Apel
comenta ainda: " T ( X Í o s o s arguementos que reduzem o universal (,.. o Ser "transcendental" do ente) a fatores de natureza
meramente lingüística conlradizem-se a s i mesmos; eles recusam a o ust) de linguagem precisamente aquela funç<lo d e pré-
<ompreeas,'io do mundo que eles mesmos supõem em sua reduçflo do ser linguagem". "Qualquer r e d u ç í o do ser d e um
ente a ruída mais que convcçõi-s hngüísticas"... busca furtar-se à função transcendental da linguagem: linguagem como fator
de constituiç.ío d e algo couio algo. Ibid., p. 328.
14. RORTY, p . 39.

l.S. Ibid-, p. 41.

16. HEIDEGGER, Scin und Zeil, p . .SO.
17. Ibid-, p. lf>,
18. T t C E N D H A T , O p Cit., p . 173.

19. Ibid., p . 189.

20. ScMELER, Max, Visão lüosófica de Mundo. SAo Paulo, Perspectiva, 1986, p . 20. Trechos como esse, nada raros no período
em questío, pixlem ser encontrados sem dificuldades em Spengler ou Jaspers.
21. S. u. Z-, p . U.S.
22. Ibid., p , 116,
23. Ibid., p . 118.
24. C o m o se ptxle ler também, mais íi frente: *"Os outros', assim chamados para encobrir que se pertence essencialmente
a eles. " ( p . 126). A o chamar alenç.lü para o car.iter encobridor dessa expressão, Heidegger acaba por promover uma v e r s í o
ou apresentar um exemplo de unidade do idêntico e do diferente, no sentido da "l-rtgica" de Hegel.
25. Ibid., p 120
26. CÀ>mo o p e r a ' b e u muito b e m lugendhat na análise que faz do "ntan" heidcggeriano, sublinhando a c o n e x í o intima que
h.i entre a qui-st.lo de existir p r o p r i . i m e n t o (ou autenticamente) e a quest.lo prática ("Que fazer?"): "Na mwlida em que nós,
existindo, estamos em um espaço de p(»ssibilidades, possuímos a possibilidade de, ou bem p r t K u r a r compreender i-sse
espaço de ptwsíbílidades, ou encobri-lo a n o s s t w próprios olhos; ou bem perguntar e escolher, [eu) m e s m o , quem quero s e r ,
ou bem evitar ess.i questão Ü que v "impesstial" Unan) aponta ê o mcxlo pelo qual ess.i quest.lo é e v i t a d a : n,i mt.\lida em
que se faz e se vive o que e como "se" Uiiii>j) ach.i o que é certo. Aqui h,1 uma indicação de que ii-ío se existe simplesmente
numa única possibilidade: evidentemente, tixlo existir apóia-se necess.iriamente, de alguma forma, em algo que é tomado
como certo — seja n a q u i l o que se acha que é certo ou naquilo que eu mesmo penso s.iber como sendo certo". Q p . cit., p -
231. Oaí a conclusiSo, a m e u ver válida, a que chega Tugendhat: "I''xistir autenticamente é existir iv\ maneira da auttxleter-
minaç.lo", "... temtw a p K w s i b i l i d a d e de escolher pí>ssibilidade, ou como i s s o é tamlx'm expressado, s o m o s livres para sermos
livres ou n<lo" Ibid , p . 232.
27. S.U.Z., p . 126.
28. Ibid., p . 127,
29. ADORNO, T . , largon der Eigentíichkeit, Suhrkamp, 1964, p . 18.
.30. Ibid., p . 63.
31. Ibid,, p , lt)2.
32. Por exemplo, HvroLLfTE, ],, Figures de Ia Pensa' PhilosofJÍiique, Paris, P.U.F., p . 201.
33. IxíwiTH, K,, lener Linzeine: Kierkegaard. in: Tm U N t s . s t N (1 Irg.), Materialien zur Philosophie Sóren Kierkegaards, Suhrkamp, 1979,
p. f>43. Compare-se, a propiSsito do m e s m o assunto, a passagem acima c o m as afirmações muito ment»s benevolentes d e
Adorno, na mesma colelf^lnea: " A o mesmo tempo, aliás, que Kierkegaard se considera um dialético e prtxieiie aparentemente
de maneira dialética, negligencia o méttxlo a o qual ele próprio se devotou, na metlida em que o opera sem mediaçáo. Seu
indivíduo é retirado da dialética, reconduzido á pura imediatidade, Kierkegaard r\Ao vê que o indivíduo, tanto quanto
qualquer outra categoria tomada por s i , n<lo é algo absoluto, mas encerra, como u m momento que lhe é necessário, seu
contrário: aquele t t K l o ( .) p e l o fatt) d e q u e o indivíduo permanece para s i em ve/ d e transladar-se até seu outro, porque
ele próprio já ó um outro — pt>r isst>, tanto é falsificado 1 l e g e l , quanto o sujeito, q u e se obstina na ilusSo de seu scr-parn-
-si enquanto permanece ao mesmo tempo sempre u m ser social. )á se constatou, acerladamenle, a interioridade

Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v. 20, n. 63, 1993 661

Kierkcgíi<irdianii éã "coasciôncw infeliz", da Fenimwtwlogia hegeliana, arrancada da dialética c fixada". Ibid., p. 565. E mais
adiante: "Contra o absoluto ser-para-um-outro do mundo da mercadoria está intentado o absoluto ser-para-si do indivíduo
kierkegaardiano. E m sua figura invertida é este a cópia {Ahdruck) da figura invertida do todo" (p, 572). Ver ainda Ibid., p.
562, A tese crítica geral de Adorno é que a absolutizaçüo do indivíduo, a fetichizaçáo da interioridade e o conseqüente
desprezo pelo mundo sáo componentes que se encaixam de forma primorosa nos contextos obscurantistas dos ambientes
totalitários,
34. KiERKEG.AARD, S-, PostScriptuiti aux Mieltes Philosophiques, Gallimard, p. 47 ss,
35. Ibid,, p. 134.
36. Ibid., p. 56.
37. SENNETT, R „ Vcrfall und Ende des üffentlichen ielvn^. Fischer Verlag, 1986, p, 16 s.
38. " A problemática stxrial das grandes cidades da mtxiernidade consiste, no momento, nSo tanto no falo de que a vida nelas
esteja demasiado urbana, mas no fato de que a vida perdeu características essenciais de vida urbaai, O intercâmbio entre
esfera pública e privada está perturbado. Não porque o homem da cidade grande seja per se homem da massa e por isso
náo tenha mais nenhum sentido para o cultivo da esfera privada, e sim porque ruio lhe é mais possível avistar (überblickcn)
a cada vez mais complicada vida da cidade inteira de uma maneira tal que essa vida seja para ele pública. Quanto mais
a cidade como um todo se transforma numa selva de difícil trasnparência, tanto m.iis ele se retira para sua esfera de
privacidade, que é alargada cada vez mais,,,"— citado por HABERMAS, ],, em Struktunvandel der OffentUchkeil, l.uchterhand,
1962, p, 192.
39. SENNETT, op. cil,, p. 49 — e como r e v e l a m a i í K l a s u a s afirmações: " A intimidade COÍKIUZ a uma localização da experiência
humana, à limitação desta á circunvizinha mais próxima, de tal modo que as circuastâncias imediatas da vida adquirem
uma significação excessiva. Quanto mais progride essa kKalização, tanto mais os homens pressionam uas a t « outrt>s no
sentido de afastar as barreiras dos costumes, regras e gestos, que se contrapõem à franqueza e à abertura, ííles alimentam
a expectativa de que proximidade também prtxiuz calor, Eles aspiram a uma inteasa cam-uadagem, entretanto sua expec-
tativa é decepcionada. Quanto mais íntimos os homens se fazem uas dos outros, tanto mais ias<x:iáveis, dolorosas e
destrutivas tornam-se suas relações mútuas". Ibid,, p, 425,

40. THEUNISSEN, M , , Selh-itvenfirklichuns und Allgemeinheit, Herlm, W , de Gruyler, 1982,

41. Ibid,, p. 3.

Endereço do autor:
R. Diamantina, 20/102
22461-050 — Rio de Janeiro — RJ

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