A a u t o r a p e r u a n a , n a s c i d a e m 1979 e gra-

d u a d a e m Sociologia, dedicou-se desde cedo à es-

c r i t a literária.
E m 1 9 9 6 , ficou e m p r i m e i r o l u g a r n o c o n -
Claudia curso " T e r m i n e m o s e l cuento", organizado pela
Ulloa União L a t i n a , o C o n s u l a d o d a E s p a n h a d e L i m a
Donoso e o j o r n a l El Comercio. D o i s a n o s d e p o i s , a o s
dezenove, venceu o concurso "El cuento de las
1 0 0 0 p a l a b r a s " , o r g a n i z a d o p e l a r e v i s t a Caretas
de L i m a .
O p r i m e i r o l i v r o d a a u t o r a , El pez que
aprendia a caminar, f o i p u b l i c a d o e m 2 0 0 6 p e l a
editora E s t r u e n d o m u d o . Pouco depois, Ulloa lan-
çou p e l a m e s m a e d i t o r a o l i v r o Séptima madruga-
da, b a s e a d o e m u m w e b l o g .
Passarinho é o p r i m e i r o d e d i v e r s o s c o n t o s
d a o b r a homónima d a e s c r i t o r a {Pajaritó), e d i t a d a
p e l a L a u r e l e m 2 0 1 4 . O c o n t o já h a v i a a p a r e c i d o
e m seu primeiro livro.
O s t e x t o s d e C l a u d i a também figuram e m
r e v i s t a s i m p r e s s a s e d i g i t a i s n o P e r u , n o México
e n a E s p a n h a , além d e a n t o l o g i a s c o m o a Nuevo
cuento latinoamericano, a Antologia de la noví-
sima narrativa breve hispanoamericana e a Les
bonnes nouvelles de 1'Amérique latine, e n t r e o u -
t r a s . A a u t o r a p a r t i c i p o u d o Fórum d e Novíssimos
Narradores (2009) e m Guadalajara; d o Congresso
L e t r a l ( 2 0 0 9 ) e m G r a n a d a ; e d o 111 C o n g r e s s o d e
Narradores L a t i n o - A m e r i c a n o s (2010) e m M a d r i .
Atualmente, vive n o norte da Noruega na
cidade d e Bodo, e atua c o m o professora d e espa-
n h o l e norueguês p a r a i m i g r a n t e s .

'7
 "He loves t o sit and hear m e sing,
Then, laughing, sports and plays w i t h me;
T h e n stretches out m y golden wing,
A n d m o c k s m y loss o f liberty".
William Blake

A n t e s d e escrever, q u e r i d o leitor, m e p e r g u n t e i m i l vezes

se v a l i a a p e n a c o n t a r o c o n t o d o c o n t o , a história p o r trás d a
história; s e i s s o l h e p a r e c e r i a a t r a e n t e , n o v o (não a c r e d i t o ) - a i n -
d a q u e t a l v e z s e j a vã a m i n h a t e n t a t i v a d e q u e r e r c o n t a r e não
e s c r e v e r e n a d a além d e e s c r e v e r ; f a z e r c o m o u m a v e z alguém
m e d i s s e : " E s c r e v a c o m o s e e s t i v e s s e m o r t a " . Q u a n d o alguém
está m o r t o , não s e q u e s t i o n a n a d a , t u d o v a i s e t r a n s f o r m a n d o .
Não q u e r o m e n t i r p a r a você, p o r q u e a i n d a q u e e u e s c r e v a
c o m o s e e s t i v e s s e m o r t a , você está v i v o ; a c r e d i t a n i s s o e n q u a n t o
lê. P o r t a n t o , d e v o c o n f e s s a r q u e , n e s s e s últimos a n o s , a b u s c a
p e l a ficção, o u s e j a , a q u e l a m a n e i r a c o m o m e d e t e n h o e m o b s e r -
var o m u n d o para, e m seguida, v i r aqui e escrever u m conto, u m a
m e n t i r i n h a , o d e s e n h o q u e s e m o v e n a m i n h a cabeça e n u n c a
p o d e r e i c a p t u r a r ; essa busca que é a m a i o r e m a i s sensata de t o -
d a s a s m i n h a s b u s c a s , não f e z o u t r a c o i s a senão p r o d u z i r o e f e i t o
contrário: c a d a v e z q u e m e p r o p o n h o a s u b m e r g i r n a ficção, n o
f u n d o d e t o d a s a s m e n t i r a s , invenções, c o n t o s , c o r e s e f a n t a s i a s ,
há a l g o q u e m e i m p e d e : m e o p r i m e a l g u m a p a r t e d o c o r p o , m e
dói e às v e z e s m e a n g u s t i a . Então, q u a n d o a s p a l a v r a s m e a b a n -

Claudia Ulloa Donoso ~ d o n a m , inspiro, expiro e respiro realidade.

A r e a l i d a d e é a l g o c o m o a xícara d e café p e l a manhã, e s c o -
v a r o s d e n t e s a n t e s d e d o r m i r , t o m a r u m remédio, s e m a s t u r b a r .
A r e a l i d a d e só p r e c i s a d o s e u c o r p o s i t u a d o e m u m d e t e r m i n a d o
PASSARINHO espaço, e então s e p r o d u z . P o r o u t r o l a d o , a ficção não a p e n a s

2006
c Claudia Ulloa Donoso, 2017.

19
 e x i g e a presença d o m e u c o r p o , m a s p r i m e i r o m e c e g a , e m s e g u i -
d a m e m a t a , d e p o i s m e e s q u a r t e j a e, só então, d e a l g u m m o d o ,
s a i d e m i m e começo a e s c r e v e r . P o r e x e m p l o , a p a r t i r d e a l g u -
m a artéria.
D u r a n t e e s s e s últimos a n o s , p r o c u r e i m o r r e r e m e e s q u a r -
t e j a r , p a r a m e a f a s t a r d a r e a l i d a d e e d e s c a n s a r n a ficção, m a s
não p o s s o . E s t o u i n t e i r a e e s t o u e s c r e v e n d o i s s o d e m a n e i r a tão
real c o m o se fosse colocar e m u m envelope, colar u m selo c o m
a m i n h a s a l i v a ( d e i x a r m e u D N A p a r a você) e f a z e r c h e g a r à s u a
c a s a , p o r q u e a l g u m a c o i s a você a s s i n o u , p o r q u e c o m p r o u o u
p o r q u e alguém l h e d e u s e m q u e você p e d i s s e .
E s p e r o não tê-lo a b o r r e c i d o . Já l h e d i s s e q u e m i n h a i n t e n -
ção e r a , c o m o s e m p r e , n a r r a r a l g o q u e n u n c a , j a m a i s a c o n t e c e u ,
e e m q u e v e n h o p e n s a n d o há vários a n o s , m a s p o r c a u s a d e s s a s
coisas reais que m e aconteceram, doloridas - s i m , doloridas; p o r
c a u s a d e s s a r e a l i d a d e tão b r u t a l , não p u d e m e a f o g a r n a ficção
e e s t i v e r e s p i r a n d o r e a l i d a d e , o u s e j a , o c u p o u m espaço e e s -
tou viva, e é precisamente de t u d o isso que deveria m e afastar
p a r a m o r r e r (só p o r u m t e m p o , não e x a g e r e m o s ) e m a l g u m t e x t o
d e ficção.
De tal f o r m a que, quando escovo o s dentes o u separo a
m e r d a d a caixa de areia d o m e u gato, aparece u m a voz que m e
d i z : " Q u a n d o você v a i e s c r e v e r a história s o b r e o s pássaros?
Quando vai deixar decomer, dormir, se masturbar, t o m a r banho,
c h o r a r e começar a e s c r e v e r e s s a s l i n h a s s o b r e a s q u a i s poderá
c a m i n h a r c o m o u m a equilibrista? E o circo dos livros? E a inter-
n e t , q u e n u n c a s e s a b e s e está f u n c i o n a n d o o u não? V a i , s e j o g a !
Q u a n d o você v a i d a r u m p o u c o d e s e n t i d o p a r a t u d o , a i n d a q u e
t u d o , isso e o r e s t o , seja m e n t i r a ? Q u a n d o ? "
Hoje.
*
20
K o k o r i t o é u m g a t o d e p e l o escuríssimo, a n t i s s o c i a l e c o m
sete quilos de peso. De t e m p o s e m t e m p o s , t r a z n a boca melecada
pássaros e m a g o n i a , o u já m o r t o s , p a r a c a s a . D i z e m q u e o s g a t o s
t r a z e m a n i m a i z i n h o s m o r t o s para as casas d e seus donos c o m o
u m a f o r m a d e p r e s e n t e o u d e troféu. Q u e m s a b e . K o k o r i t o n u n c a
c o m e o s pássaros: o s t o r t u r a , b r i n c a c o m e l e s c o m o s e b r i n c a s -
s e c o m a s u a b o l a d e lã e , a o final, o s d e i x a s e m p r e n a m i n h a
c a m a - l u g a r o n d e , u l t i m a m e n t e , faço t u d o , i n c l u s i v e c o m e r .
K o k o r i t o , c o m s u a s s e t e v i d a s n a América e n o v e n a Penín-
s u l a E s c a n d i n a v a , m e p r e s e n t e i a c o m a m o r t e , e e u já v i s u a c a r a
várias v e z e s , p o r e n q u a n t o m e b a s t a . N o e n t a n t o , às v e z e s a c h o
que m e u gato insiste para que e u veja a m o r t e ainda mais de
p e r t o , p a r a q u e não m e p e s e t a n t o . E l e s a b e , p o r q u e , c o m o e u já
disse, t e m pelo m e n o s sete vidas, e b e m deve t e r p e r d i d o a l g u m a s
q u a n d o passou v i n t e dias desaparecido n o i n v e r n o polar; e u m
dia voltou, a b r i u a janela c o m sua pata direita, c o m o c o s t u m a
f a z e r , b e b e u u m p o u c o d e água e d o r m i u p o r q u a s e d o i s d i a s n a
m i n h a c a m a ; então s e l e v a n t o u , m i o u e começou u m a v i d a n o v a .
I n t u o também q u e K o k o r i t o t e n t a m e d a r u m p r e s e n t e úni-
c o e extraordinário, d e s e j a n d o q u e e u c o n t e m p l e a s a g o n i a s d e s -
s e s a n i m a i s tão p e q u e n o s e frágeis, e q u e t u d o s e j a u m gerúndio
d e b a t i m e n t o s cardíacos, respirações, m o v i m e n t o s q u e s e t o r -
n a m , d e r e p e n t e , pretéritos i n d e f i n i d o s ' p a r a s e m p r e . Q u e m s a b e
se e m p e n h a p a r a q u e e u e n t e n d a e a p r e c i e ( e m t o d o s o s s e n t i d o s
da palavra) que esse segundo preciso e m que a vida desaparece é
único e m t o d o s e r v i v o e não p o d e s e r e p e t i r n u n c a m a i s .
Q u a n d o e n c o n t r o esses animais m o r t o s , que geralmente
são pássaros, o q u e c o s t u m o fazer é buscar u m Kleenex o u
u m guardanapo - e escolho c u i d a d o s a m e n t e a cor, c o m o se
e s c o l h e s s e a s u a m o r t a l h a -, p a r a e m s e g u i d a enterrá-los o u
i ~ O t e r m o "pretérito i n d e f i n i d o " , u t i l i z a d o n o t e x -
t o e m e s p a n h o l , e q u i v a l e , n o português, a o pretérito
perfeito. D a d o o d u p l o sentido criado pela autora, 2 I
decidimos manter o termo original.
 escondê-los e n t r e a s f o l h a s s e c a s e a s bétulas. Q u a n d o estão e m
a g o n i a , o s e n v o l v o n u m p a p e l d e c o z i n h a l i g e i r a m e n t e úmido e o s
d e i x o c o m a cabeça d e s c o b e r t a p a r a q u e r e s p i r e m . O s e s q u e n t o
e n t r e a s m i n h a s mãos, l i m p o s e u s a n g u e , a c a r i c i o s u a cabeça e
trato d e lhes a b r i r o bico.
A l i n h a 2 q u e p a r t e d e 0 v r e H u n s t a d m o e n é a única q u e
m e leva a o centro d e Bodo e passa exatamente a cada v i n t e e
s e t e m i n u t o s , a p a r t i r d a s s e t e d a manhã. S e m p r e m e a c o n t e c e
d e c h e g a r m u i t o c e d o a o s e n c o n t r o s . D o contrário, s e p e r d e s s e o
ônibus, c h e g a r i a s e m p r e t a r d e .
Hoje, saindo r u m o à parada de 0 v r e H u n s t a d m o e n c o m o s
minutos contados para chegar a o ponto n a hora exata, vejo u m
passarinho m o r i b u n d o escondido e m u m canto do corredor, per-
to d o lugar onde p o n h o m i n h a s bolsas e jaquetas quando chego
e m c a s a . Não p o s s o deixá-lo a l i m o r r e n d o e s a i r , t a m p o u c o p o s s o
p e r d e r o ônibus. V o u até a c o z i n h a , umedeço c o m água m o r n a
u m papel toalha, o recolho e o guardo no bolso direito do casaco.
Saio d e casa correndo.
A o e n t r a r n o ônibus, o m o t o r i s t a o b s e r v a q u e só u s o a mão
esquerda, c o m m u i t a dificuldade, para abrir a m i n h a bolsa, pegar
a m i n h a c a r t e i r a e p a g a r a p a s s a g e m . N o t a m i n h a lentidão p a r a
m e v i r a r c o m u m a mão só e r e p a r a q u e m a n t e n h o a d i r e i t a n o
b o l s o . Entenderá q u e l e v o a l g o e s c o n d i d o : u m a n a v a l h a , u m t e l e -
fone, m e u p u n h o congelado o u , q u e m sabe, q u e m sabe perceba
que levo u m passarinho agonizando o u m o r t o .
Os noruegueses c o s t u m a m tirar o casaco i m e d i a t a m e n t e
após e n t r a r e m u m l u g a r f e c h a d o , p o i s t o d o s têm calefação. S e é
u m l u g a r f a m i l i a r , além d o c a s a c o , também t i r a m o s s a p a t o s . Há
22
cabides e m p a n t u r r a d o s d e casacos e jaquetas, c o m o se f o s s e m
h o m e n s i m e n s o s , c o m l u v a s e g o r r o s ; o u t r o s estão fixados na
p a r e d e e m u m a l i n h a , u m a fila d e h o m e n s e m u l h e r e s p e n d u r a -
dos, desolados, m o r t o s c o m o as reses ainda inteiras e escalpela-
das d o m a t a d o u r o .
E m u m a entrevista detrabalho para conseguir o posto de
assessora de projetos para o D e p a r t a m e n t o de Cultura, é m a u
s i n a l não t i r a r o c a s a c o a o e n t r a r n o escritório e c u m p r i m e n t a r
o e n t r e v i s t a d o r , p o i s i s s o d e m o n s t r a q u e você não é u m a p e s s o a
a b e r t a , q u e t e m u m a couraça e q u e , p o r d e b a i x o d e l a , há d e t e r
várias c a m a d a s q u e o e n t r e v i s t a d o r não p o d e v e r , m a s q u e t a l v e z
p o s s a i m a g i n a r . S e você não t i r a o c a s a c o , o e n t r e v i s t a d o r v a i
i m a g i n a r t o d a s a s c a m a d a s d a s u a p e r s o n a l i d a d e , até c h e g a r à
c o r d o sutiã q u e você está u s a n d o , e não n e c e s s a r i a m e n t e v a i
i m a g i n a r a s q u a l i d a d e s e o sutiã a d e q u a d o s p a r a você c o n s e g u i r
o c a r g o . C o m e s s a couraça, você s e a p r e s e n t a c o m o u m t a t u ,
u m a t a r t a r u g a o u u m p o r c o e s p i n h o q u e não s e c o m u n i c a , q u e
e s c o n d e a cabeça e m o s t r a a s g a r r a s , q u e s e m o v e d e v a g a r , e t u d o
i s s o não s e r v e p a r a e s t e c a s o ; m a s e u s o r r i o p a r a e l e : i s s o a j u d a ,
s e g u n d o o s c o n s e l h o s , p a r a c a u s a r u m a b o a impressão e m u m a
entrevista d e trabalho. S o r r i o , m a s s e m exagerar, o u pareceria
n e r v o s a . M i n h a dentição é b r a n c a ; u m a v e z , m e u s o r r i s o g a n h o u
u m concurso organizado pelo m e u dentista. M ep r e m i a r a m c o m
v i n t e t u b o s d e p a s t a d e d e n t e s e t a b l e t e s d e flúor.
O e n t r e v i s t a d o r também s o r r i e a g o r a e s t o u c o n s c i e n t e d e
que tenho que usar outras partes d ocorpo para lhe causar u m a
b o a impressão, m a s s i g o c o m a mão d i r e i t a e n f i a d a n o b o l s o d o
c a s a c o e c h e g o u o m o m e n t o d e a p e r t a r m o s a s mãos. A q u i p o s s o
fazer duas coisas: se c u m p r i m e n t a r o e n t r e v i s t a d o r c o m a m i n h a
mão e s q u e r d a , s e m t i r a r a d i r e i t a d o c a s a c o , e l e v a i p e n s a r q u e
2?
 s o u e s t r a n h a e q u e e s c o n d o a l g o . Também p o d e a c o n t e c e r d e
a c h a r q u e s o u a r r o g a n t e , p o r q u e e s p e r o q u e o o u t r o u s e a mão
esquerda para corresponder a o m e u cumprimento, e apertar as
mãos é u m g e s t o u n i v e r s a l q u e s e f a z c o m a d i r e i t a . A o u t r a c o i -
s a q u e e u p o d e r i a f a z e r s e r i a t i r a r a mão d i r e i t a d o c a s a c o c o m
m u i t o c u i d a d o e oferecê-la m o r n a e úmida, c o m g e r m e s d e u m
pássaro q u e t a l v e z já e s t e j a m o r t o , m e a r r i s c a n d o a d e i x a r e m
s u a s mãos r e s t o s m u i t o finos, m a s visíveis, d e p e n a s a m a r e l a s , e
não s e i c o m o i s s o p o d e r i a s e r m a r c a d o n o m e u p e r f i l d e c a n d i d a -
t a a o c a r g o . A o final, d e c i d o l h e d a r a mão d i r e i t a c o m u m a p e r t o
firme, e aquilo parece contar u m p o n t o a m e u favor, ainda que
t e n h a l h e d e i x a d o a p a l m a d a mão úmida, c o m bactérias e b a b a
d o m e u g a t o , c o m fiapos d e p a p e l d e c o z i n h a , p e l i n h o s e, q u e m
s a b e , s a n g u e d e pássaro.
O e n t r e v i s t a d o r f a l a e n q u a n t o detém a v i s t a n o m e u c u r -
rículo, q u e está d e s f o l h a d o s o b r e a e s c r i v a n i n h a . Q u e m s a b e e l e
não s e i m p o r t e q u e e u e s t e j a c o m o c a s a c o v e s t i d o p o r q u e t a m -
bém t e m u m t i q u e , o u s e i lá, m a s a b r e b e m o s o l h o s e e r g u e a s
sobrancelhas e n q u a n t o fala comigo, e s e g u r a m e n t e pode m e ver
e m c a m a d a s e s a b e r c o m c e r t e z a a c o r d o m e u sutiã.
P a r a q u e não m e o l h e c o m o f e z o m o t o r i s t a p e l a manhã,
p o r e u e s c o n d e r a p e n a s u m a mão n o b o l s o , e s c o n d o a s d u a s . V a i
p e n s a r q u e s o u tímida e q u e e s t o u a s s u s t a d a , m a s s e u s g e s t o s
não m u d a m , s e g u e f a l a n d o e a b r i n d o o s o l h o s e e r g u e n d o a s s o -
brancelhas c o m o se estivesse o b s e r v a n d o t u d o c o m s u r p r e s a e,
às v e z e s , c o m indiferença.
- Faz m u i t o frio hoje - digo.
É v e r d a d e . M e u comentário é s i n c e r o e não d i s p a r a t a d o ,
p o i s o d i g o q u a n d o f a z e m o s u m a p a u s a e e l e m e o f e r e c e u m café.
Q u a n d o v o l t a c o m o café, e s p e r o q u e e l e dê o p r i m e i r o
24
g o l e . F a z ruído a o t r a g a r e então i n s p i r a . I n t u o q u e q u e i m o u s u a
língua, p o r q u e já não a b r e t a n t o o s o l h o s .
- V e j o q u e a s e n h o r a é u m a p e s s o a qualificada e parece es-
tar p r o n t a para assumir a responsabilidade dessa vaga. Acredito
que, sendo a encarregada, conduziria os projetos c o m cuidado e
de u m a m a n e i r a d i f e r e n t e . P r o c u r a m o s u m a pessoa que seja cau-
t e l o s a e e s t e j a c o n s c i e n t e d e q u e o orçamento a u t o r i z a d o p a r a o s
p r o j e t o s c u l t u r a i s f o i r e d u z i d o este a n o .
C o m o que acaba d e dizer, p r e s u m o que o e m p r e g o é m e u .
M e e m o c i o n o e a p e r t o o s p u n h o s d e n t r o d o s b o l s o s . U s o a mão
d i r e i t a p a r a t o m a r o café e s e g u i r o r i t u a l d e um-gole-você-um-
gole-eu.
M i n h a mão s e e s q u e n t a n o c o n t a t o c o m a xícara e r e t o r -
n a a s s i m à i n c u b a d o r a d e pássaros, e é então q u e s i n t o a l g o s e
m o v e r : o pássaro r e v i v e u e p r o v a v e l m e n t e q u e r s a i r v o a n d o , n o
m o m e n t o exato e m que o r e s u l t a d o d a e n t r e v i s t a se m o s t r a a
m e u favor.
- Só t e n h o m a i s u m a p e r g u n t a - d i z . - P o r q u e a s e n h o r a
a c r e d i t a q u e deveríamos contratá-la?
- Porque sou boa para carregar outras vidas comigo.
- O que quer dizer c o m isso?
- B o m , n o âmbito c u l t u r a l , p o r e x e m p l o : s e m e p e d i s s e m
p a r a o r g a n i z a r a S e m a n a Filarmónica, t e r i a d e c a r r e g a r o s clássi-
c o s q u e estão m o r t o s , m a s a o m e s m o t e m p o estão v i v o s . C h o p i n ,
p o r e x e m p l o , está v i v o e o s e n h o r s a b e . Então c h e g a alguém c o -
m o Argerich e Chopin, que estava m o r t o , revive e voa pelo au-
ditório. Além d i s s o , p a r a t r a b a l h a r c o m e s s e s p r o j e t o s é p r e c i s o
carregar as vidas d e cada u m dos integrantes d a orquestra, o s
c o r o s , o s d i r i g e n t e s . . . t o d o s têm u m a v i d a p a r a c a r r e g a r , além d o s
seus i n s t r u m e n t o s .
25
 há vários i n c o m o d a d o s , q u e v o l t a m s e u s o l h o s p a r a a s t e l a s d o s
- Entendo. E poderia m eexplicar como foi que carregou
v i d a s , n o s e n t i d o l a b o r a l , n o s e u último t r a b a l h o ? c o m p u t a d o r e s e p r o t e g e m a cabeça e o r o s t o c o m f o l h a s d e p a p e l
O q u e a c o n t e c e n e s s e i n s t a n t e é q u e já não p o s s o e x p l i c a r sulfite A4.
m a i s n a d a , p o r q u e s i n t o n o t a t o u m f a r f a l h a r firme q u e q u a s e m e O entrevistador e e u entendemos q u eé o m o m e n t o de
a b r e a mão. Então t i r o o p a s s a r i n h o d o b o l s o , d e s e n r o l o o p a p e l a b r i r as janelas d e p a r e m par.
e o c o l o c o s o b r e o m e u currículo e s t e n d i d o n a e s c r i v a n i n h a . O O passarinho sente o ar gelado de fevereiro que entra nos
p a s s a r i n h o está f e r i d o . O p a p e l e m q u e e s t e v e e n v o l t o t e m u m a gabinetes e, a s s i m , e n c o n t r a o c a m i n h o p a r a a liberdade. D a f o -
m a n c h a d e s a n g u e a g u a d o , m a s está v i v o . tocopiadora, levanta voo e saicomo u m a rajada por u m a d a s
C a m i n h a s o b r e m e u currículo, s o b r e o s i d i o m a s q u e d o m i - janelas. O local esfriou, t u d o volta a seguir c o m o antes e eu t a m -
n o , c a g a s o b r e a m i n h a experiência l a b o r a l e v a i m e d e s c o b r i n d o . bém v o l t o à s a l a , p a r a t e r m i n a r o café e e n c e r r a r a e n t r e v i s t a .
P o u s a s o b r e o s m e u s d a d o s p e s s o a i s e fica q u i e t o . O r e c o l h o c o m O entrevistador se despede, desta vez sem apertar a m i n h a
c u i d a d o e v e r i f i c o s u a s a s a s ; a s e s t i c o u m a p o r u m a , são m u i t o mão. I s s o não d e v e r i a s i g n i f i c a r n a d a , p o r q u e é típico d o s n o r u e -
frágeis, m a s estão i n t a c t a s . g u e s e s e v i t a r o c o n t a t o físico a o c u m p r i m e n t a r o u s e d e s p e d i r .
- É u m k j o t m e i s d e p e i t o a m a r e l o . Está v e n d o ? P e g u e i e l e
2
Volta ao seu gesto de abrir os olhos e erguer as sobrancelhas. Diz
e m casa, m o r i b u n d o , logo antes d e v i r aqui, e passei a e n t r e v i s t a q u e m e ligará e e u a c r e d i t o . S o r r i o .
p e n s a n d o n e s s e c a r g o tão i m p o r t a n t e p a r a a m i n h a v i d a l a b o r a l , E n q u a n t o c a m i n h o d e v o l t a p a r a c a s a , v e j o m u i t o s pássa-
n o s clássicos m o r t o s q u e t e r e i q u e c a r r e g a r , n o s v i v o s q u e t e r e i ros d e diferentes tipos, mas procuro aquele que m e a c o m p a n h o u
q u e a c o l h e r e o r g a n i z a r , m a s também p e n s e i n a v i d a d o p a s s a r i - n a e n t r e v i s t a . Q u e r i a l h e d i z e r o b r i g a d a . Às v e z e s , convém a n d a r
n h o . C o m isso, q u e r o lhe dizer que o u t r a s das m i n h a s qualidades
p o r aí l e v a n d o c o n s i g o a n i m a i s m o r i b u n d o s , m a n t e r a s mãos n o s
p a r a o p o s t o são m a n t e r a c a l m a e s a b e r t r a b a l h a r s o b pressão.
b o l s o s e não t i r a r o c a s a c o .
O p a s s a r i n h o s e p e r c e b e v i v o . Dá s a l t o s s o b r e a e s c r i -
v a n i n h a e v o a . V o a p e l o s g a b i n e t e s d a administração pública, s e
c h o c a c o n t r a a s t e l a s d o s c o m p u t a d o r e s , d e f e c a n o s orçamentos
que saem d a impressora, pousa n o alto dos arquivos e parece
q u e o b s e r v a t o d o o d e p a r t a m e n t o d e administração pública, c o m
a p o s t u r a a l t i v a q u e só u m s o b r e v i v e n t e c o l o r i d o t e r i a . E s p e r a
u n s s e g u n d o s e v o l t a a alçar v o o . T o d o s o s b u r o c r a t a s o l h a m
p a r a e l e d e s e u s cubículos, g i r a n d o s u a s c a d e i r a s ergonómicas,
m a s ninguém fica d e pé. A m a i o r i a d e l e s fica q u i e t a e s e g u e o
v o o d o pássaro c o m admiração e u m l i g e i r o s o r r i s o , m a s também

2 - A espécie d e pássaro m a i s c o m u m n a N o r u e g a .
27
26
Conversamos com Claudia
Ulloa Donoso sobre o conto
P a s s a r i n h o e convidamos a
brasileira C a r l a Piazzi para
fazer mais perguntas.
[ P U N A D O ] M u i t o s dos seus
c o n t o s t r a t a m d e situações
e emoções f a m i l i a r e s a t o d o s ,
m a s você a c r e s c e n t a u m a
l e v e z a e u m c e r t o a r insólito
a esse cotidiano. O olhar d a
escritora parece subverter
u m pouco o mundo, para
s o b r e v i v e r a e l e . Passarinho,
e m especial, consegue isso
c o m bastante humor. C o m o
e s s a ficção s a i u d e você?
[ C A R L A J Você v i v e n a
N o r u e g a há a l g u n s a n o s .
I s s o é u m a experiência
radical, sobretudo pela
diferença c u l t u r a l , económica
e geopolítica e n t r e o P e r u e
a Noruega. Se por u m lado
isso pode p r o p o r c i o n a r u m a
vertigem d o deslocamento,
por outro, a busca pelo
equilíbrio p o d e aguçar o o l h a r
para as idiossincrasias. Esse
confronto c o m a alteridade
influencia a sua escrita?
O h u m o r é algo que acontece n o
m e u p r o c e s s o de e s c r i t a de m a n e i r a
espontânea. Não há u m a intenção
p r e m e d i t a d a . M u i t a s v e z e s não m e
d o u c o n t a d e q u e o h u m o r está p r e -
s e n t e n a história até q u e v e j o o
conto terminado. Ainda mais fre-
quentemente, acontece d e o leitor
perceber isso antes de m i m . Talvez
s e j a c o m o q u a n d o alguém t e s o r r i e
você s o r r i d e v o l t a .
S o b r e o insólito, a c h o q u e t u d o o
que nos cerca t e m matizes estra-
n h a s , q u e às v e z e s s e m a n i f e s t a m
d i a n t e d o s n o s s o s o l h o s . Só p r e c i -
s a m o s agarrá-las.
É b e m provável q u e i n f l u e n c i e . C o n -
sidero que tudo o que m e rodeia e
que experimento influencia o q u e
escrevo. Influencia inclusive a pre-
disposição q u e p o s s o t e r o u não
para escrever, p a r a m e a p r o x i m a r
d o t e c l a d o . O c l i m a i n f l u i , a língua
norueguesa q u e m e cerca t a m -
bém..., m a s o e f e i t o d i s s o é a l g o
q u e t a l v e z e u só p o s s a v i r a e n t e n -
der depois de a l g u m tempo, olhan-
d o o q u e já está e s c r i t o e p u b l i c a d o .
2i)
[CARLA] Essa pergunta
deriva da anterior: e m
que m e d i d a esse c o n f r o n t o
te faz p e n s a r s o b r e o
s e u próprio país e a s
s e n s i b i l i d a d e s características
do que é ser peruano?
Há u m a ampliação d e
consciência d a s s u a s
próprias raízes d e r i v a d a
do contraste?
C A R L A PIAZZI
é historiadora,
pesquisadora de filosofia
oriental e escritora.
S i m , a i n d a q u e m i n h a s raízes s e j a m
d i v e r s a s . M i n h a família é d e o r i g e m
chilena e equatoriana. E u nasci n o
Peru. Literalmente, estou n o meio.
M u i t o s m e m b r o s d a m i n h a família,
c o m o eu, e m i g r a r a m . Acredito que
eu t e n h a crescido r o d e a d a p o r esse
contraste, esse estar longe e estar
perto ao m e s m o tempo.
30