Você está na página 1de 62

View metadata, citation and similar papers at core.ac.

uk brought to you by CORE


provided by Repositório Institucional da Universidade de...

Samuel Simon
ORGANIZADOR

Filosofia e conhecimento
Das formas platônicas
ao naturalismo

Com duas co n fe r ên ci a s inéditas de


J o h n Watkins

EDITORA

00
UnB
Capítulo 11
Conhecimento, ciência e natureza:
cartas sobre o naturalismo
P aulo A b r a n t e s *
H i l a n B e n s u s a n '*

H á algum te m p o os autores deste artigo têm divergido sobre o


n a tu r a lis m o e n q u a n t o p o stu ra m e ta - filo s ó fic a , que te m m u ita s im ­
p lic a ç õ e s n a m a n e ira co m o se c o n c e b e a re la ç ã o e n tre a filosofia e a
ciên cia . D e c i d i r a m , e n t ã o , e x p o r as su a s p o s i ç õ e s a d o t a n d o ,
d e l ib e r a d a m e n t e , um estilo ep istola r que p reserva , em g ran de m e ­
dida, o das c a r ta s que foram, e fe tiv a m e n te , tr o c a d a s e n t r e eles. Es-
p e ra -se , c o m esse estilo inform al, n ão so m e n te m a n te r o c a r á te r v í­
vido de um d e b a te que prossegue, mas ta m b é m c o n t r ib u ir para que
os l e i t o r e s se s i n t a m p a r t i c i p a n d o do m e s m o . A s m i s s iv a s sã o
id e n tific a d a s pelas in iciais de cad a autor, seguidas do n ú m e ro in d i­
c a n d o a sua se q u ê n c ia : H l , H 2 e H 3 para H ila n ; P I e P 2 para P a u ­
lo. A s missivas a p a re c e m em laudas n um erad as para fa c ilita r as r e ­
f e r ê n c ia s q u e são fe ita s a d e t e r m in a d a s pa ssag en s. A o fin a l, c a d a
um faz u m a a v a lia ç ã o do d ebate. O s au tores se e s fo rç a ra m para i n ­
cluir, m u itas vezes em no tas, e s c la r e c im e n to s c o m p le m e n ta r e s sobre
os a ssu n to s d isc u tid o s e definir, na m ed id a do p o ssív el, os te rm o s
t é c n i c o s , de m o d o que aqueles que n ã o t e n h a m tido c o n t a t o prévio
co m a t e m á t i c a possam co m p re e n d e r o que está em jo go . T em as mais
gerais em te o ria do c o n h e c i m e n t o são abordados ao lon g o do d e b a ­
te, de m a n e i r a que essa c o r r e s p o n d ê n c ia pode t a m b é m servir para

D outor pela Universidade de Paris, professor adjunto do Departam ento de Filosofia da U nB.
" Doutor pela Universidade de Sussex, professor adjunto do Departam ento de Filosofia da U nB.
Paulo A b ran te s e H ilan B cn su san

i n t r o d u z i -l o s a m u ito s le it o r e s . C a b e r á a ca d a um a v a lia r em que


medida, ao final, as posições dos autores co nvergiram , ou se a d istâ n ­
cia que in ic ia lm e n te as separava a m p lio u -s e .1

Missiva H l

Paulo,

W h y is it t h a t s c ie n t is t s a n d m a t h e m a t i c i a n s c a n b e s o p a t i e n t , a n d

p h il o s o p h e r s s e e m s o im p a t ie n t ? It h a s t a k e n m o r e t h a n 3 t h o u s a n d y e a r s

to u n d e r s t a n d t h e c ir c le a n d th e s p h e r e , a n d th e y a r e still w o r k i n g a t it.

A n d y e t, w e , p h il o s o p h e r s , a r e p r e p a r e d to g iv e u p a t h e o r y a b o u t r e a lit y

a s a w h o l e a t t h e d r o p o f a h a t , b e c a u s e o f s o m e f lim s y a r g u m e n t s a n d

b e c a u s e t h e r e a r e h o le s to b e f i l l e d u p . H o w u n r e a s o n a b l e c a n o n e b e ? 2

Osw aldo Chateaubriand

1. A epígrafe de C hateau briand é uma provocação. Em um d eb a ­


te entre o n aturalista e o não-naturalista, ambos podem dizer que tudo
o que precisam é tempo para preen ch er alguns detalhes e tudo ficará
bem. O adversário sempre pode retrucar: sim, mas eu não acredito que
seja possível p re e n c h e r estes detalhes a c o n t e n to ; nem que trabalhes
mil anos poderás tapar os teus buracos. U m dos lados pode dizer apenas
que perdeu as esp eran ças de que o outro p ro jeto possa ser levado a
term o . U m arg um ento de Q u in e para naturalizar a epistem ologia foi
que devemos aban donar toda a esperança na idéia de uma fundam en-

1 Q uerem os agradecer ao professor Sam uel Sim on pela cuidadosa leitura do tex to e por suas
sugestões. A s in co rreções que tenh am perm anecido são de responsabilidade exclu siva dos
autores.
2 Tradução m inha: “Por que os cientistas e m atem áticos são tão pacientes e os filósofos tão
impacientes? Foram necessários mais de 3 mil anos para que entendessem o círculo c a esfera,
e eles ainda estão trabalhando nesses temas. E nquanto nós, filósofos, estam os prontos para
abandonar uma teoria sobre a realidade com o um todo cm um instante, por causa de alguns
argum entos controversos e porque há brechas a serem preenchidas. Q u ão pouco razoável
pode alguém ser?”

274
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

ta ç ã o do c o n h e c im e n to por meio da redução da ciê n c ia à observação


po r m e io de u m a t r a d u ç ã o de s e n t e n ç a s da c i ê n c i a e m te r m o s
observacionais, lógicos e c o n ju n tístic o s (“W e m ust d e sp a ir o f an y su ch
red u ctio n . C a r n a p h a d d isp a ired o f it by 1 9 3 6 1 9 8 7 a , p. 2 1 ) . Em
seguida, ele o b serv a que “ [t]h e em p iricist m a d e o n e m a jo r c o n c e s s io n
w h en he d esp a ired o f d edu cin g the truths o f n atu re fr o m sen sory e v id e n c e ”3
( 1 9 8 7 a , p. 2 2 ) . A re tó rica parece sugerir que todas as esp eran ças no
p ro jeto que ele co m b a te são infundadas. Q u in e quer fazer seu leitor
desistir de uma f u n d a m e n t a ç ã o da c i ê n c ia qu e seja a c e it a v e l m e n t e
co m p leta sem fazer uso de c iê n c ia ; o empirista, ele m esm o, desistiu.
A d e s is tê n c ia , é cla ro , n ã o é uma d e m o n s t r a ç ã o - os m a t e m á t i c o s
que desistem de provar uma proposição n ão d eixam provado que ela
é inválida - e n em é, ela m esma, um argum ento. E n tã o eu qu ero usar
a p ro v o c a ç ã o da epígrafe co m o uma p ro v o ca ç ã o a m im m esm o n o s e ­
gu inte sen tid o : vou te n ta r e s t a b e le c e r porque, a meu ver, o p ro jeto
n a tu ralista é in c o rre to sem apelar para os buracos que faltam p r e e n ­
ch e r na sua p a v im e n ta ç ã o . E m outras palavras, te n ta r e i n ã o utilizar
apelos do tipo: “m elh o r d esistir!”.

2. Para começar, acho que eu deveria explicar de que ponto d


vista penso que o naturalism o é in correto. O u seja, o que esp ecifica­
m e n t e eu p e n so q u e e stá in c o r r e t o . O s a p elo s de Q u i n e c o n t r a o
f u n d a cio n a lism o m uitas vezes n ão d eixam cla ro que e x is te m muitas
alternativas para quem o rejeita; o naturalismo qu in ea n o é apenas uma
delas. V ocê cita as duas co m p onentes centrais do n aturalism o segundo
K itc h e r (A brantes, 199 8, p. 14) com o sendo a re je ição do a priori e o
psicologismo. Eu n ão posso sim plesm ente a ce ita r essas duas teses do
mesmo modo co m o o naturalista supostamente rejeita-as, uma vez que
elas não p arecem claras o suficiente. Vou apresentar um c o n ju n t o de
teses que os naturalistas defendem e que eu aceito sem problemas:

1 Tradução m inha, antes: “Nós devemos desistir de uma tal redução, C arnap desistiu dela por
volta de 1 9 3 6 ”. E depois: “O empirista fez grandes concessões quando ele desistiu de deduzir
verdades sobre a natureza a partir da evidência sensória”.
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

a) E x tern a lism o : é possível que A c o n h e ç a p sem ser capaz de


apresentar uma ju stificaçã o para p, desde que uma ju stifica-
ção para p possa ser apresentada.
b) S ellars: nossos sistemas de co n h ecim en to (por exemplo, a c iê n ­
cia) são racion ais não porque estão bem fu n d a m en ta d os em
bases sólidas, mas porque cada um dos seus elem entos pode ser
colocad o em cheque, ainda que não todos ao mesmo tempo.
c) B oy d : o papel da epistemologia não é tratar da origem ou do
fu n d am en to das crenças, mas de co m o as cren ças se regulam.
d) D es co b erta : o c o n t e x to de descoberta deve ser levado em c o n ­
sid e ra ç ã o pela ep istem o lo g ia, uma vez que a d e s c o b e r t a se
re lacio n a de muitas maneiras co m a justificação.
e) P r a g m a tism o : as n orm as surgem das prá ticas - mas n ã o são
cap tu ráveis em forma de regularidades.4
f) C iên c ia cogn itiva: nossos instintos cognitivos in fluenciam o modo
co m o argumentamos, as justificações que aceitam os e, de um
modo geral, o que co n cebem os co m o racional.

N ã o são essas teses que disputo; podemos tratá-las c o m o pano


de fund o. M e u pro b lem a c o m o n a tu ra lism o , c o n t u d o , n ão a p are ce
apenas c o m as suas versões mais fo rtes.5 O problem a a p are ce no n a t u ­
ra lism o de G o ld m a n se ele pensa que j u s t if ic a ç ã o e n o rm a tiv id a d e
p o d em ser e n t e n d id a s em term os i n t e i r a m e n t e p sico ló g ic o s. M in h a
c r ít ic a ao n a tu ra lism o o rig in a -se da a c e it a ç ã o de uma im ag e m mais
ou m e no s k a n t ia n a do c o n h e c i m e n to , segundo a qual “j u s t i f i c a ç ã o ”
p e rte n c e a uma família de termos epistêm icos re lacio n ad o s co m res­
p o n sab ilid ad e e c a p a c id a d e de dúvida.

4 Endosso aqui a posição de W ittgenstein acerca das norm as que regem nossos co n ceitos em
co n texto s específicos e de sua irredutibilidade à regras explicitam en te form uladas (ver
W ittg en stein 1948, p. 1 4 3 -1 9 0 ).
5 Susan H aack fala que Q uine defende alternadam ente duas versões de naturalismo, uma mais
moderada e outra mais radical (H aack, 1993). Você uma vez fez uma lista de teses naturalis­
tas (em filosofia da ciência) postas em ordem crescente de força que eu adaptei na m inha tese
de m estrado.

276
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

3. Para dar o primeiro passo no debate, vou te n ta r en fren tar im e


d ia ta m e n te a pro v o cação da epígrafe, analisando a c o n je c tu r a de um
projeto n aturalista com pleto. Imagino assim um projeto natu ralista bem-
sucedido: temos um c o n ju n t o de leis da natureza que substituem , r e ­
duzem ou d issolvem todo discurso e tod a p re o c u p a ç ã o ep istê m ica e
sem ân tica. N ã o im porta se essas leis estão unificadas (se, por exemplo,
o fisicalismo6 vingou). D e todo modo, temos um c o n ju n t o de leis que
to rn am re du n d an te qualquer m e n ç ã o a predicados epistêm icos ou s e ­
m â n tic o s ( ju s tific a ç ã o , verd ad e, re fe r ê n c ia ) . N ã o h á mais n e n h u m a
n ecessid ad e de apelar para esp on tan eid ad e, a u to n o m ia , re sp o n sabili­
dade ou crític a quando falamos do co n h e cim e n to , de sua aquisição e,
em algum sentido, de sua legitimidade. N ão im porta se todo discurso
n o rm a tiv o foi to rnad o red u n d an te (dissolvido, substituído ou reduzi­
do); pode ser até que ainda falemos em livre-arbítrio e em responsabi­
lidade e c r ít ic a q u an d o tratam o s de ações, im agin an d o q u e se possa
ter uma distinção baseada em algum princípio b em -e sta b e lec id o entre
a ju s tific a ç ã o das ações e a ju stific a çã o das c r e n ç a s .7 A p e n a s q u a n to
ao c o n h e c im e n to - e q u an to à ace ita ção ou à fix ação das cre n ça s - há
um d eterm inism o segundo o qual o que co n ta co m o c o n h e c im e n to pode
ser previsto ou explicado por meio de leis físicas, fisiológicas, psicológi­
cas e/ou sociais. Todo discurso acerca das razões para aceitarm os uma
c r e n ç a e, de modo geral, toda a racionalidade te ó rica foram tornados
redundantes dado o arsenal de leis que agora disporíamos.
Penso que, em uma tal situação, meus dois perso nagens da p a ­
lestra que dei nos Se m in ário s In tern o s do D e p a r t a m e n t o de Filosofia
(S IP -F IL ) (B e n su san , 2 0 0 1 ) ficariam sem resposta. To m em o s dois per­
sonagens para ilustrar meu po n to de vista. O primeiro p erso n agem é o
tr a d icio n a l c é tic o . O c é tic o diz assim: duvido d aquilo que vo cês d i­
zem que eu devo acreditar. B em , uma vez que tem os uma c o m p leta

6 D e um modo geral, o fisicalismo procura inserir todos os processos naturais no âm bito da física
(por vezes da física fu tu ra).
7 C ertam en te, eu duvido que uma tal distinção seja possível, mas não posso fazer uso de
argum ento baseado nessa dúvida dado o meu compromisso referente à epígrafe.

277
Paulo A b ran te s e H ilan B en su san

e x p lic ação por meio de leis de todo o m ecanism o de ace ita çã o de c r e n ­


ças, a dúvida do c é tico poderia ser explicada - e mesmo descartada -
por uma e x p lic a çã o que envolvesse uma deficiência, por exem plo, na
ativação de uma fibra, digamos, a fibra C. M as se levarmos a dúvida do
cé tic o a sério e tentarm os respondê-la, teremos de apontar para as leis
que, tam b ém parte da nossa ciência, nos levaram a termos as crenças
que temos. Essas crenças, nós diríamos, são mais adaptadas, mais confiáveis
ou o que fosse. O cético , entretan to , poderia insistir que n ão vê razões
para acred itar n elas, pois ta m b ém não acred ita nas leis às quais nós
fazemos apelo. Para justificar tais leis, é claro, nós apelamos para outras
leis, ou talvez para as mesmas leis, se elas forem leis qu e to rn a m o
discurso epistêm ico tradicional redundante em todos os casos. O c é t i ­
co poderá dizer que nós não estamos mais arg um entand o , mas apenas
re p etin d o o que dissemos a ntes; em todo caso poderá c o n t in u a r d uvi­
d an d o . A q u a lq u e r m o m e n t o , nós po d em o s d e s q u a lif ic a r o c é t i c o ,
dizer que sua fibra C está co m d efeito, ou c h a m á - l o de ir relev a n te.
N o e n t a n t o , ele sem pre p o d erá nos le m b rar qu e, talvez em o u tro s
tempos, teve discussões sem elh an tes co m os astrólogos, discussões nas
quais ele era re b a tid o c o m arg um ento s que ap e lav am para mais a s­
trologia (v ocê n ão a cred ita no zoodíaco porque v o cê n asce u em j u ­
lho, e t c . ) . D e fato, o c é tic o pode dizer que qu alqu er c r e n ç a pode ser
d efen d id a da m e sm a m an eira: apelan d o para o u tras c r e n ç a s d en tro
de um sistem a; e sempre é possível interp retar a dúvida nos term os de
um sistem a de m odo que n u n c a seja admitida q u alqu er po sição que
v e n h a de fora d e le .s Penso que poderíam os sem pre d e s c a rta r ou e s ­
q u e c e r o c é tic o , e poderíamos ter bons in stru m ento s para dissolver ou
d esc o n sid erar suas dúvidas - in stru m en to s r e a lm e n te efetivos e que
nos façam , de fato, não ter n en h u m a p re o cu p açã o c é tic a . M as penso

8 O cético talvez pudesse acusar o naturalista de adotar uma postura que cu com paro com a do
alraiate da fábula da nova roupa do rei. O alfaiate diz: “se alguém não enxergar a roupa do rei,
é estúpido”. O alfaiate en tão garante a aceitação de sua proposição (“o rei não está n u ”) pois
dentro de sua própria teoria (conjunto de postulados) há uma interpretação para a negação da
proposição. O u seja, o cé tico pode fazer ao naturalista uma crítica do tipo da que Popper, por
exem plo, fez à psicanálise.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

que nos e n c o n tra ría m o s em uma posição em que teríam os pou co es­
p aç o para o fe re c e r resp o stas ao cé tico .
N o te que eu com partilho co m o naturalista a tese que eu ch am ei
de S ellars. O u seja, não se trata de pensar que as cre n ça s devam ser
justificadas sem apelo às outras. O naturalista pode acusar o c é tico de
estar pressupondo uma a rq u itetôn ica fun d acionalista para a ju stific a ­
ç ã o e insistir que ele não está disposto a oferecer nada deste gênero,
vima vez que arg um ento s m ostram que isto n ã o é possível. O c é tic o
poderia e n tã o dizer algo assim: eu apenas quero saber o que me impele
a acreditar no que você acredita, dadas algumas cren ças que eu c o m ­
partilho c o m v o cê (por exemplo, nós estamos de acordo a cerca do que
f a la m o s). Eu qu ero apenas, prosseguiria o c é tic o , c o n v e n c e r -m e das
suas cren ças, dadas algumas outras crenças que eu tenh o ; posso pensar
nas m inhas dúvidas inteiram ente em termos de outras crenças e não de
um fu n d a m e n to - e o c é tic o aqui aceitaria a nossa tese B oy d . E n tão
nós poderíamos c o n ta r alguma estória nô m ica a cerca das cren ças que
c o m p a r tilh a m o s c o m o c é tic o , mas o c é t i c o poderia q u e stio n a r esta
estória e n ão re c o n h e c e r as suas crenças dentro da estória nô m ica que
nós co n tam o s. Eu aceito crenças, ele poderia dizer, se elas me parecem
justificadas e o m ecan ism o de aceitação que vocês propõem (adaptabi­
lidade, confiabilidade, etc.) não me parece justificado - a justificação
que v o cê s ap re sen tam para elas não é aceitável. Nós ainda podemos
insistir que ele se re c o n h e ç a na co ntraparte n ô m ica do seu m ecanism o
de a c e it a ç ã o de crenças. O c é tico então poderia afirmar: a cr e n ç a de
qu e uma c r e n ç a é ju stific á v el porque o b ed e ce a ce rtas propriedades
definidas em uma lei é uma cren ça que eu não posso por em dúvida
dentro do sistem a de vocês. E ele continuaria: “está bem, eu desisto de
fund acionalism o e aceito S ellars, e por isso mesmo eu considero que o
sistem a de vocês n ã o é racional, certas coisas não podem ser postas em
c h e q u e ”. T alv ez e n t ã o p o ssam o s te n t a r usar a te se c o m p a r t i lh a d a
E x tern a lism o para d em o ver o c é tic o de sua in sistê n cia em possuir, ele
m e sm o , u m a j u s t if ic a ç ã o que seja para ele a c e it á v e l. E le, o c é ti c o ,
pode saber que estam os certo s sem saber disso, ele pode saber porque
nós ju stific a m o s sua c r e n ç a . Porém ele sempre poderia retru car: “vocês

279
P aulo A b ran te s e H ilan B en su san

re alm ente possuem uma ju stific açã o ?”. Eu penso que em um tal diálogo
nós estaríamos em uma posição em que, de novo, poderíamos descartar
ou d isso lv e r as c r e n ç a s c é t i c a s (por m e io de u m a te ra p ia q u e nos
c o n v e n c e s s e de que nós n u n c a estivemos na posição de não re c o n h e -
c e r q u e ju s t i f i c a ç ã o é a d a p ta b ilid a d e ou c o n f ia b ilid a d e , e t c . ) , mas
n ão poderíam os o fe rec er respostas à dúvida c é tic a .

4. A lgo s e m e lh a n te se passa com o segundo p ersonagem , o des-


cr e n te . O d e sc re n te diz assim: “eu não penso que vocês, c o m todas as
leis qu e vo cês d efen d em , e ste ja m falando sobre o m u n d o ”. E le pensa
que n ão apenas n ão estam os d escreven do o m undo, co m o pensaria o
re a lista c i e n t í f i c o (de c u n h o re alista m e ta fís ic o de P u t n a m , 1 9 7 8 ) ,
mas que n em sequer sofremos qu alqu er in flu ên cia do m u ndo n a c o n s ­
tr u ç ã o de nossas teo rias. So frem o s, ele diz, in flu ê n c ia de um ers a tz
m undo, ou seja, de um arrem edo postulado por nossas teorias (talvez
co m base n aqu ilo que nós p ercebem o s e na nossa cap a cid ad e de p r e ­
ver e c o n tr o la r nossas p e rce p çõ e s). O arrem edo de m u n d o - tal co m o
a ersa tz ju s t if ic a ç ã o que n ão c o n v e n c e r a o c é tic o - n ã o é o m u n d o no
qual o d e s c r e n t e se en x e rg a . Ele n ã o c o m p r e e n d e o sig n ifica d o do
que nós falam os, e qu an d o nós insistimos em falar n o que, n o nosso
sistem a, faz os papéis de r e fe rê n c ia e de verdad e (seja por m e io de
uma re d u ção destes predicados a predicados físicos, seja por uma su bs­
ti tu iç ã o d eles por p re d ic a d o s físico s), o d e s c r e n t e te m um d iálogo
c o n o s c o m u ito parecid o co m aquele que o c é tic o teve - o d e sc ren te
nos acu sa de preparar tam b ém uma ersa tz verdade, uma e rs a tz r e f e ­
rên cia. N ó s podem os insistir em apon tar para partes do m u ndo a fim
de d eixar e x p lícito do que estamos falando. O d e sc ren te e n t ã o insis­
tiria que nós n ã o podemos estar falando daquilo que nós apo ntam o s;
ele in siste qu e u m a g e n u ín a r e la ç ã o de r e fe r ê n c ia n ã o se dá. A q u i
nós podem os en viar o d esc ren te para tr a ta m e n to ou varrer sua a ti tu ­
de por b a ix o do ta p e te do que nós pod em os agora d e s c re v e r co m o
m u ndo co m p a rtilh a d o ou ainda d eixarm os de nos p reo cu par c o m ele
depois de algum tem po de terapia. M as, aqui tam b ém , penso que não
teríam os co m o o fe re c e r respostas.

280
Conhecimento, ciência e natureza.- cartas sobre o naturalismo

N o te que esse argumento não está apenas querendo mostrar que


o n aturalism o não é desejável. N ão se trata apenas do que é desejável,
esto u t e n t a n d o a p o n ta r para pro p ried ad es f u n d a m e n t a is da esfera
epistêmica, tais co m o a dúvida e a capacidade de responder ao o bjeto
de co n h e c im e n to , que n ão podem ser preservadas no projeto natu ralis­
ta. Penso que essas propriedades não podem ser ab and o n ad as9 se a lm e ­
jam o s uma c o n c e p ç ã o racion al do mundo.

Missiva P I

H i la n ,

1. U m a das d ific u ld ad es em d isc u tir o n a tu r a l is m o - m es


se nos re strin girm o s às suas versões mais r e c e n t e s em te o ria do c o ­
n h e c i m e n t o - é a v aried ad e de o r ie n ta ç õ e s e n g lo b ad as sob esta d e ­
n o m i n a ç ã o . 10 C o m o disse em o u tro lugar, “n ã o é ó b v io q u e h a ja um
n ú c le o c o m u m de com p rom isso s a c e ito s por todas as v aried a d es de
n a t u r a l is m o ” ( A b r a n te s , 1 9 9 8 , p. 14).
Isso é um problema para quem queira discutir qu alqu er um dos
“is m os” filosóficos (penso na variedade de racionalism os, empirismos,
realismos, etc.) e não pode ser apontado co m o uma d eficiência parti­
cular do naturalism o co m o p o s tu r a filo s ó fic a . E, p o r t a n t o , crucial que
se faça distinções, que se te n te uma tipologia de posições naturalistas,
que se elen qu e teses naturalistas com variados graus de “força”, co m o
tentei fazer tempos atrás (e você se refere a isso num a n o ta ). Feito esse
esforço preliminar, algumas das teses naturalistas podem mostrar-se mais

9 Sellars, em Philosophy an d the scientific imane o f m an diz: “to com plete the scientific im age we
n eed to enrich it not with w ays o f saying w hat is the case, but with the language o f com m unity and
individual intentions" (Sellars 1963, p. 4 0 ). Tradução m inha: “para com pletar a imagem c ie n ­
tífica [do m undo] ela precisa ser enriquecida não apenas com m odos de dizer o que é o caso,
mas com a linguagem da com unidade e das intenções individuais”.
“ D evem os restringir o debate ao naturalism o em epistem ologia (pois há posturas naturalistas
em outros dom ínios da filosofia, com o a m etafísica, a ética, e t c .) .
Paulo A b ran te s c H ilan B cn su san

fáceis de se defender, mais fáceis de se aceitar, mais c o n s is te n te s e,


sobretudo, mais férteis do que outras. Você mesmo está disposto a acei-
tar diversas teses que você qualifica de “natu ralistas”, mas não outras.
Eu tam bém, co m o ficará claro a seguir.
G ostaria de co m e ça r fazendo um co m e n tário a respeito de cada
uma das seis teses que você acredita que sejam defendidas por natura-
listas e aceitáveis para você, e que são nomeadas de E x tern a lism o, S ellars,
B oy d , D es c o b erta , P ragm atism o, C iên c ia C ogn itiva. C o m elas v o cê pre-
tende tornar mais “clara” a caracterização que propõe K itc h e r do n a ­
turalismo, conform e a apresentação que fiz em A bran tes (1 9 9 8 ).

Externalismo

2. O “e x te rn a lis m o ” em teoria da ju stific ação é, de fato, usual­


m ente considerado uma posição naturalista. O externalism o distingue-
se do “in tern a lism o ” en q u an to teoria da justificação.
Para efeito da discussão que se segue, distinguirei, c o m o é de
praxe, os seguintes tipos de “estados d o xástic o s” em que pode se e n ­
co ntrar um sujeito s:

A s p , J A s p , C sp ,

que se lêem, resp ectivam en te, “s acredita (ou crê) que p", “s acredita
ju stificad am en te que p ”, “s co n h e c e p ”, onde p c uma proposição.
Se g u n d o a tra d icio n a l c o n c e p ç ã o tripartida do c o n h e c i m e n t o ,
um sujeio 5 possui c o n h e c im e n to de que p (Csp) se as seguintes c o n d i­
ções são satisfeitas: i) p; ii) Asp; iii) Jasp.
C ad a uma dessas co n d içõ es é n ecessária e as três são, c o n j u n ­
ta m e n te , su ficien tes para que s c o n h e ç a que p (Csp). Essa análise de
“c o n h e c i m e n t o ”, e m b o ra v e n h a send o c o n t e s t a d a desde os fam osos
argumentos tipo G e ttie r ,11 será aceita no que se segue. O que está, no

11G ettier (1 9 6 3 ) criticou a concep ção clássica dc “co n h ecim en to ” com o “cren ça verdadeira
justificad a”, que rem onta a Platão. Essas três condições, ele m ostra, são necessárias, mas não
suficientes para que haja conhecim ento.

282
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

m o m en to , em jogo na nossa discussão sobre o n aturalism o é a co nd ição


(iii), ou seja, o que co n ta para que s seja ju stifica d o na sua crença.
O in ternalista tipicam ente defende que as co nd içõ es estabelecidas
para a ju stificação de uma cren ça sejam “re co n h e c id a s”, sejam “direta
ou tran sp aren tem e n te acessíveis” ao sujeito (5 ) do c o n h e c im e n to . Em
outros termos, o internalista exige que o sujeito creia (acredite), creia
justifica d a m en te ou c o n h e ç a as condições necessárias para a justifica-
ção de uma c r e n ça particular que ele tenha.
Para facilitar a exposição, cham em os de t à cláusula (iii) da a n á ­
lise tripartid a anterior. O in te rn a lista exige, p o rta n to , que o su je ito
esteja, c o m respeito a t, num dos seguintes estados doxásticos:

A st, JA s t, C st,

que se lêem, respectivam en te: “s acredita que t" (isto é, s acredita na -


ou “r e c o n h e c e ” a - ju stific a çã o da su a cren ça); “s a c r e d i t a
ju stificad am en te que t”; “s co n h e c e que t”.
H á, p o rta n to , vários graus de in tern alism o , c r e s c e n te s em sua
“força” (o primeiro deles é o mais fraco), e cada uma dessas condições
intern alistas co lo c a problemas particulares que n ão p reten d o discutir
aq u i.12 O externalism o é visto co m o uma ten tativ a de responder a algu­
mas dessas o bjeçõ es ao internalismo.
A n t e s de a b o r d a r o e x t e r n a l i s m o , g o s t a r ia de m e n c i o n a r o
internalism o atípico de Pollock (1 9 8 6 ). Ele considera-se um natu ralis­
ta, mas defende que as normas epistêmicas devem in stan cia r-se e x c lu ­
sivam ente em “estados in tern o s” do sujeito (e n ão im plicam qualquer
relação desses estados internos co m estados de coisa no m u n do). Pollock
caracteriza as teorias internalistas com o aquelas que fazem depender a
ju s t if ic a ç ã o u n i c a m e n te de estados in tern o s do su je ito . Tais estados
internos são aqueles aos quais o sujeito tem “acesso d ire to ” (“que são
d iretam en te acessíveis aos mecanism os em nosso sistema nervoso c e n ­

12Alguns desses graus de internalism o (mas não todos) conduzem , com o se pode verificar
facilm ente, a uma regressão ao infinito na análise de “co n h ecim en to”.
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

trai que dirigem o nosso ra c io cín io ”, id. ibid., p. 13 4 ). M as para Pollock


tais estados n ão se restringem a estados epistêmicos (doxásticos) com o
os de c r e n ç a - co m o na caracterização do internalism o por D an cy (1 9 8 5 )
- mas in clu em tam bém estados perceptuais e de mem ória (estados n ão -
doxásticos). O u seja, para que um estado seja “d iretam en te acessível”,
na perspectiva de Pollock, não é necessário que ten h am os cren ça s (muito
menos, cren ças justificadas ou c o n h e cim en to ) a respeito desse estado.
Podemos, portan to, classificar as teorias da ju stificação em duas c a t e ­
gorias, as doxásticas e as n ão-d oxásticas.

a) Nas teorias doxásticas, a justificação de uma c r e n ça depende


ex clu siv am e n te do “estado d o xástico ” do sujeito, ou seja, das
outras cren ça s que ele possui no m om ento. As teorias da justi-
ficação doxásticas incluem o fundacionalismo e o co erentism o.
b) Nas teorias n ão-d oxásticas, a justificação depende de fatores
ex tern o s ou de estados internos do sujeito qu e n ã o sã o cren ça s
(por ex e m p lo , estados perceptu ais e de m e m ó r ia ). A teo ria
i n t e r n a l i s t a da ju s t i f i c a ç ã o q u e P o llo c k a r t ic u la i n c lu i- s e ,
p o rtanto , nesta última categoria.

O in ternalism o de Pollock qualifica-se, no e n ta n to , co m o “n a t u ­


ralista” (ao lado do e x tern alism o , mas n ã o se c o n fu n d in d o c o m ele)
porque a ju stificação de uma cren ça dá-se por um processo ou m e c a ­
nismo que pode, em princípio, ser descrito e explicado pela psicologia:
“N u m sentido im portante, descrever nossas normas epistêmicas reais é
parte da psicologia” (id. ibid., p. 1 73).
C o n tra ria m e n te ao internalista típico (doxástico), o extern alista
exige sim p le sm en te qu e as c o n d iç õ e s n ecessária s para a ju s t if ic a ç ã o
estejam , de fato, o b jetiv a m e n te satisfeitas, ou sejam verdadeiras. N ão
se exige (com o faz o internalista) que o sujeito esteja num estado doxástico
particular (de um dos graus que distingui acim a).
S e g u n d o a c o n c e p ç ã o tripartida do c o n h e c i m e n to , além de sa ­
tisfazer à co n d iç ã o de verdade, nossas cren ças d evem ser justificadas
para h abilitarem -se co m o co n h e cim en to . Para o externalista, é a re la­

284
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

ç ã o co m um estado de coisas n o m u ndo (um estad o “e x t e r n o ”) que


e s t a b e l e c e a ju s t if ic a ç ã o da c r e n ç a (su p o sta m en te v er d a d e ira ). Essa
justificação, para o externalista, é função de fatores aos quais o sujeito
n ão tem acesso direto. Lehrer (um internalista, diga-se de passagem)
apresenta o externalism o de modo especialm ente claro:

A tese cen tral do extern alism o é que algum a re laç ão com o m undo
externo, responsável pela verdade de nossa crença, é su ficien te para
converter uma crença verdadeira em conhecim ento, sem que tenhamos
q u alq u er id éia d aq u ela relação. N ão é a n ossa c o n c e p ç ão de com o
nós estam os relacio n ad os com um fato que gera con h ecim en to, mas
sim plesm ente o fato de estarm os relacionados com ele (Lehrer, 1990,
p. 153).

Nas teorias externalistas, a relação (naturalista) en tre c r e n ç a e


verdade, ou en tre o estado m ental e os “fatos” que fazem a cr e n ç a ser
justificada, pode ser de tipo causal, nomológico, informacional, probabilista,
de d e p e n d ê n c ia c o n t r a fa c tu a l, etc.
O e x te r n a lis m o é uma boa te o ria para o c o n h e c im e n to
p e r c e p t u a l: n ã o te m o s “a c e s s o ” d ir e to aos p ro c e s s o s g e ra d o re s de
nossas c r e n ç a s p e rce p tu ais, o que n ão im pede, por e x e m p lo , qu e eu
t e n h a c o n h e c i m e n t o ( c r e n ç a v erd ad eira ju stific a d a ) de qu e h á uma
te la de c o m p u t a d o r d ia n t e de m im n e s t e m o m e n t o . B a s t a q u e se
e s t a b e l e ç a a r e la ç ã o n a tu ra lista dos meus órgãos dos sen tid o s c o m o
o b j e t o e x t e r n o p ara q u e eu e s t e j a ju s t i f i c a d o n as m i n h a s c r e n ç a s
p e r c e p tu a is . C o m re s p e ito a o u tra s form a s de c o n h e c i m e n t o (por
e x e m p lo , o c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o de p ro c esso s n ã o - o b s e r v á v e i s ,
o c o n h e c i m e n t o m a t e m á tic o , e t c . ) , o e x t e r n a lis m o e n f r e n t a d if ic u l­
dades q u e n ã o c a b e d isc u tir aqui.
E x e m p lo s de teo rias e x t e r n a lis t a s in c lu e m a te o ria c a u sa l do
c o n h e c i m e n t o e o co n fiabilism o , que G o ld m a n d efen d e a tu a lm e n te .
Se g u n d o a te o ria co n fiabilista da ju stific a ção , um su je ito s está ju s t i­
ficado na sua c r e n ç a se a te rce ira c o n d iç ã o da an álise tripartida do
c o n h e c i m e n t o for:
_ Paulo A b ran te s c H ilan B en su san

iii) A c r e n ç a de 5 de que p foi adquirida por meio de um proces-


so/método confiável.

O confiabilismo de Goldman é externalista porque não exige que 5


acredite (creia), recon heça, ou mesmo compreenda que o processo/mé­
todo que gerou a sua crença é confiável; mesmo assim, s tem uma cren ça
justificada de que p se o processo/método utilizado é, de fato, confiável.
D e m od o mais geral, L eh re r ( 1 9 9 0 ) a p re sen ta o e x t e r n a lis m o
confiabilista co m o a tese de que é a “história n a tu r a l” da c r e n ç a , ou
seja, o modo (“n a tu ra l” ou “físico” ou, ainda, “o b je tiv o ”) co m o a cren-
ça se c o n e c t a co m a verdade, que a habilita a ser c o n h e c im e n to , in d e ­
p e n d e n te m en te do sujeito - de qualquer sujeito - ter ou não “acesso ”
a tal h istó ria.13

3. U m a primeira crítica que se faz ao extern alism o distingue pos­


suir in form ação (correta) de algo e ter c o n h e c im e n to de algo (Lehrer,
1 9 9 0 , p. 1 6 4 ) . O u seja, o tipo de re la ç ão n atu ralista e n tre c r e n ç a e
verdade pode ser suficiente para se ter informação, mas não para se ter
c o n h e c im e n to . Para ter c o n h e c im e n to o sujeito precisa possuir infor­
m ação adicional (ou inform ação “de fundo”) a respeito da relação n a ­
turalista (e.g. da história natural da sua cr e n ça ). N ão basta, portanto,
que a re lação n atu ralista o b jetiv a m e n te se dê. O sujeito precisa crer,
crer ju stific ad am en te ou c o n h e c e r isso. Em outros termos, a in fo rm a­
ção que o su jeito possui precisa ser “resultado de p e n s a m e n t o ”, para
h abilitar-se a c o n h e c im e n to .

B Pollock qualifica a teoria de G oldm an de externalista porque, para este últim o, a “co rreção ”
dos processos cognitivos (sua confiabilidade) não seria uma propriedade essencial desses
processos, mas dependeria de com o o mundo real é “estruturado”. O u seja, um processo
cognitivo poderia ser confiável em nosso mundo - e portanto justificar uma cren ça de um
sujeito vivendo neste m undo - mas não ser nada confiável num outro m undo possível (e a
cre n ça resultante desse m esm o processo seria, neste outro mundo, inju stificad a). O u seja, a
confiabilidade de um processo é uma questão contin gente, e não necessária (Pollock, 1986,
p. 2 3 ). O internalismo, ainda segundo Pollock, exigiria que “se uma com binação particular de
entradas [inputs] perceptuais e de raciocínio produzem crença justificada no mundo real, então
produzirá cre n ça justificada em todos os mundos possíveis” (id■íbicl., p. 116).

286
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

U m a outra crític a , re lacio n ad a à anterior, é que o e x tern a lista


c o m e te a “falácia cau sa l” (Lehrer). O ex tern a lism o co n fu n d e a ra z ã o
para termos uma cr e n ç a co m a ca u sa dessa cren ça . O que im porta para
termos c o n h e c im e n to são as razões que temos para justificar nossas cren-
ças, e não a história natural (causal, inform acion al, etc.) dessas últi­
mas. E m suma, devem os distinguir a ex p lic a ç ã o de uma c r e n ç a (com
base na sua história natural) da sua ju stifica çã o (com base nas razões ou
evid ên cias do su jeito).
Em bora você diga que aceita a tese E x tern alism o, parece c o n c o r ­
dar co m essa crítica, tom and o o partido do c é tico “que n ão vê razões”
( H l : 3) para acreditar na história natural que apresenta o naturalista.
M ais ad ian te, v o cê volta a c o lo ca r-se no lugar do c é tic o : “eu aceito
crenças, ele poderia dizer, se elas me parecem justificadas e o m e c a n is­
mo de a c e i t a ç ã o qu e v o cê s [n atu ralistas] propõem (ad ap ta bilid ad e ,
c o n fia b ilid a d e , e t c .) n ã o me p are ce ju stific a d o - a j u s t if ic a ç ã o que
vocês ap resen tam para elas não é a c e it á v e l” ( H l : 3 ) . O c é tic o exige
poder co n tin u ar duvidando das descrições ou explicaçõ es (nomológicas,
causais, e t c .) propostas pelo n atu ralista (que, na a p r e s e n ta ç ã o deste
último que v o cê nos oferece, pretende anular essa possibilidade de dúvida
por interm édio de manobras reducionistas ou eliminativistas, co m o discuto
a seguir). Em outras palavas, o c é tic o não ace ita uma ju stific a çã o de
tipo n ã o -d o x á stica (externalista), pois isso implicaria abdicar de seguir
c o lo ca n d o em dúvida algumas das cren ças do naturalista.
N ão haveria co m o escapar, você afirmaria, de uma teoria doxástica
da justificação. Apelar, co m o faz o naturalista, para, por exemplo, uma
lei, é c o m p ro m ete r-se co m uma cren ça. O c é tic o pode c o n tin u a r d i­
zendo que duvida dessa c r e n ça (duvida que a relação nom ológica, no
caso, seja verdadeira, seja um fato o bjetivo). N ão podemos, diria você,
escapar da esfera doxástica - sair do “espaço de razões” e postular, por
exem plo, uma c o n d iç ã o n ã o -d o x á s tic a , co m o a de co n fiab ilid ad e de
processos psicológicos/métodos de geração de crenças - a qual não t e ­
mos acesso direto, “c o n s c ie n te ”. Ponto para o cético : ele exige razões -
uma genuína justificativa epistêmica - para a ace ita çã o de uma c r e n ­
ça, e n ão leis (causas, etc.).

287
Paulo A b ran te s e H ilan B en su san

4- D e toda forma, tam pouco um apelo a razões satisfaria o cético:


ele pode c o n tin u a r sempre duvidando das nossas razões (justificativas
doxásticas). Por exemplo, se você é um co eren tista em teoria da ju sti­
fic a ç ã o - c o m o me p arece traduzir a sua tese B oy d - , uma c r e n ç a é
ju stificad a se for co eren te c o m todo um c o n ju n t o de cr e n ç a s. O ra , o
c é tic o pode sempre duvidar de uma ou mais dessas “crenças de fun d o ”
para neutralizar a oferta de justificação, de razões. A propósito, eu não
incluiria, co m o você faz, a tese B oy d no “c red o ” naturalista, tend o em
vista o seu ca rá ter internalista e doxástico.
N a su a t e n t a t i v a de a r t ic u l a r um a r g u m e n to t r a n s c e n d e n t a l
a p l i c á v e l ao c é t i c o e ao d e s c r e n t e , na p a l e s t r a d a d a n o S I P - F I L
(B e n su sa n , 2 0 0 1 ) , v o cê defende a au to n o m ia do “esp aço e p is tê m ic o ”,
a sua irred u tib ilid a d e:

Im porta que se o espaço das razões é explicado em termos quaisquer,


mas de natureza não-epistêm ica, estes termos impedem algum a dúvida.
A redução do epistêm ico ao que quer que seja atrela a dúvida a algo
não-epistêm ico (...). O caráter especial do espaço epistêm ico é o que
permite crer e duvidar (id. ibid., p. 6).

J u n t a n d o os argum entos c o n tra o c é tic o e c o n tra o d e sc re n te ,


v o cê arre m a ta mais ad ian te: “O s pressupostos da c o m p re e n s ã o e da
d úvida a p o n ta m para um esp a ço ep istêm ico g en u ín o ( ...) . O esp aço
epistêm ico é o espaço da interp retação das crenças e o espaço da dúvi­
da” (id. ibid. p. 7).
O argum ento fundam ental co n tra o naturalismo parece ser, e n ­
tão, que so m ente um espaço epistêmico irredutível é capaz de garantir
o e x e r c í c i o da dúvida (além do e x e r c í c i o da c o m p r e e n s ã o , que são
interd epend entes, co m o você mostra bem ).
Isso le m b ra um a rg u m e n to c o m u m e n t e a c e it o em é t ic a : se ca d a
um de n ós n ã o é n ad a além de um sistem a físico regido por cau sas
d e te rm in ista s, e n t ã o n ão há “e s p a ç o ” para a liberdad e e a re s p o n s a ­
bilid ad e por n ossos atos. A n a l o g a m e n t e , se não h á um g e n u ín o e s ­
p aço de razões, a u tô n o m o c o m respeito ao esp a ço físico, o n d e vigora

2 88
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

a cau salid ad e, e n t ã o n ão podemos co m p ree n d e r e n ão podem os e x e rc e r


a d ú v id a.
R e s ta saber se a te n ta tiv a de vin cu lar uma teo ria do c o n h e c i-
m e n to a uma ou mais teorias científicas, co m o pretende o naturalista,
elim in a a possibilidade da d úvida.14 Diz você, repetindo um trech o já
cita d o acim a:

A redução do epistêmico ao que quer que seja atrela a dúvida a algo


não-epistêmico. Assim, por exemplo, se “passível de crítica” é entendido
como “evolucionariamente desvantajoso”, atrela-se qualquer juízo sobre
o que é passível de crítica a um critério evolucionário. Note que mesmo
que o que seja considerado evolucionário mude de acordo com as eta-
pas e as modas da história da biologia teórica, haverá certas coisas que,
de fato, não podem ser ditas passíveis de crítica por não serem (na me­
lhor biologia teórica possível) evolucionariamente desvantajosas (Bensusan,
2002, p. 6).

U m a rg u m e n to que se baseia na e q u iv a lê n cia e n tre os predicados


“ser p a s s ív e l de c r í t i c a ” e “ser e v o l u c i o n a r i a m e n t e d e s v a n t a j o s o ”
(au toriz ad a, su p o s ta m e n te , por uma ep istem o lo g ia e v o lu c io n is ta ) n ão
m e p a r e c e p a r t i c u l a r m e n t e e l u c id a t iv o e c o n v i n c e n t e c o m o uma
c r ít i c a a q u a lq u e r e sp éc ie de n a tu ra lism o . E pressup osto, aqui, um
n a t u r a l is m o de tipo m e t a - e p i s t ê m ic o (na c l a s s i f i c a ç ã o q u e propõe
G o ld m a n , 1 9 9 8 ) :

Por analogia com o naturalismo em ética, Goldman caracteriza algu­


mas espécies de naturalismo como posições meta-epistêmicas, a saber,
a respeito do status ontológico das propriedades epistêmicas normativas
(justificação, racionalidade, garantia [voarrant], etc.). Pode-se defender

14D eixo de lado a possibilidade de com preensão e de interpretação de crenças, que rem ete às
questões delicadas (num a perspectiva naturalista) do significado, da intencionalidade e da
verdade. N ão pretendo, portanto, alinhavar aqui uma resposta ao “d escren te” (você pode
defender que não o faço tam pouco com respeito ao cé tico !).
Paulo A b ran te s e Hilan B en su san

q u e e s ta s p r o p rie d a d e s re d u z e m -s e a p ro p rie d a d e s f ís ic a s , o u a in d a q u e

s u p e rv ê m a e s ta s , g e ra n d o d u as o r ie n t a ç õ e s d is tin ta s . U m a t e r c e ir a p o ­

s i ç ã o , m a is r a d i c a l , s e r i a a d e q u e as p r o p r i e d a d e s e p i s t c m i c a s

(n o rm a tiv a s ) d e v e m sim p le sm e n te ser e lim in a d a s, d e m o d o q u e s o m e n te

p r o p r ie d a d e s fís ic a s o u b io ló g ic a s ( d e s c r itiv a s ) p o s s a m t e r lu g a r n u m a

t e o r ia d o c o n h e c im e n t o q u e se p r e te n d a n a tu r a liz a d a ( A b r a n te s , 1 9 9 8 ,

p. 1 6 ).

Por um lado, além de existirem outras espécies de natu ralism o,


um n a t u r a l is m o m e t a - e p i s t ê m i c o n ão te m de ser n e c e s s a r i a m e n t e
re d u cio n ista ou elim in ativista, co m o sugerimos n o tr e c h o a c i m a . 15
Por o u tro lado, é preciso enfatizar que há m uito se a b an d o n ou o
infalibilism o em filosofia da ciên cia. O fato de v inc u lar uma teoria do
c o n h e c i m e n t o a uma te o ria c ie n t ífic a n ã o im ped e q u e e sta últim a
seja c o lo c a d a em dúvida e su bstituída por uma outra teoria que seja
co n sid erad a m e lh o r (co m base em alguma n o rm a m e to d o ló g ica a c e i ­
t á v e l) ,16 co m o v o cê admite na passagem citada a n te rio rm e n te (Bensusan,
op. c it.). A lgu m as espécies de natu ralism o podem, p o rtan to , co n v iv er
p e rfe ita m en te c o m o e x e r c íc io da dúvida e co m a no rm ativ id ad e . Um
ex e m p lo disso seria o n atu ra lism o n o rm ativ o de L aud an , que n ão a d ­
m ite uma re d u ção do discurso m eto d oló gico (bem co m o do axiológico)
ao discurso cie n tífico , mas os vê co m o interd e p en d e n tes.
O status do norm ativo é, c e rta m en te , uma das dificuldades que
enfre n ta m algumas posturas naturalistas mais radicais (com o a que Q u in e
defendeu in icialm e n te ). Mas há espécies de naturalismo que não p re­
tend em eliminar ou reduzir o normativo.

15Da mesma forma que um naturalista não tem de, necessariam ente, defender uma elim inação
da psicologia de senso com um (folkpsychology), com o pretende E Churchland. Ver as minhas
referências à tese da superveníência com o abrindo espaço, talvez, para uma posição ao mesmo
tempo naturalista e não-reducionista.
16Supõe-se que uma m etodologia aceitável rejeitaria meras m odificações ad hoc nas nossas
teorias, com o a sua personagem do cético (H l: p. 3) acusa, com razão (op a!), os astrólogos
com parando-os, sem razão, aos naturalistas.

290
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

Naturalismo e ceticismo

5. T e n t a r re sp o n d e r ao c é t i c o é um p ro b le m a q u e e n f r e n ta m
todas as teorias do c o n h e c i m e n t o e n ão só as de c u n h o natu ralista.
H á q u em d efen d a, inclusive, a tese h istó ric a de qu e a teo ria do c o ­
n h e c im e n t o to rn o u -se uma área c e n tra i da filosofia n a m o d ernidade,
e m f u n ç ã o do d esa fio c é t i c o qu e, por e x e m p lo , D e s c a r t e s resolveu
en fre n tar.
O que talvez distinga o naturalista de outros filósofos é que ele
tende a não levar a sério o cético , não se esforçando em lhe dar uma
resposta. O u então, o naturalista ten ta mostrar que os desafios céticos
são formulados a partir do c o n h e c im e n to cien tífico e, portanto, c o m e ­
tem p e tiç ã o de princípio ao co lo c a re m este ú ltim o em q u estã o . U m
exem plo típico dessa atitude é Q u i n e .17
Pode ter sido simplesmente um erro h istórico da filosofia m oder­
na considerar que responder ao c é tico deva ser o p onto de partida, a
m o tiv ação básica de qualquer teoria do co n h e c im e n to .

Naturalismo e fisicalismo

6. Talvez seja um equívoco considerar que o natu ralista co m p ro ­


m ete-se necessariamente com uma ontologia particular, co m o o fisicalismo,
ou mesmo co m um fisicalismo redutivo. O fisicalista é aquele que r e ­
je ita entidades além das postuladas pela física, c o lo ca n d o , por e x e m ­
plo, sob suspeição o dualismo de substância (mente/corpo). Para o fisicalista
só existe a substância física.
A s so c ia -se f re q ü e n te m e n te ao fisicalismo (e, c o n s e q ü e n te m e n t e ,
ao n a tu r a l is m o , para a q u e le s qu e v in c u la m am b as as d o u t r in a s ) a
proposta de reduzir as c iê n c ia s de “nível a l t o ”, ou “esp ec iais” (co m o
a psicologia, por exemplo) às ciências “fu n d am entais” (co m o a biologia
ou a física).

17U m a atitude sem elhante seria tam bém saudável com respeito à figura do d escrente.

291
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

É preciso, co n tu d o , lembrar que n em todo fisicalismo te m de ser


redu tivo. U m fisicalista pode, por ex em p lo , a c e ita r um dualism o de
propriedades em que propriedades (como as m entais) são supervenientes
às propriedades físicas.18 H á naturalistas, co m o Kornblith (1 9 9 3 , 1 9 9 8 ) ,
por e x e m p lo , qu e d efen d e m a e x is tê n c ia de esp écies n atu ra is genuí-
nas, irredutíveis, nas ciên cias especiais.
H á ainda uma outra espécie de naturalismo, o m etodológico, que
discuto em outro artigo:

H á quem d efen d a (...) que o n atu ralism o é o n to lo g ic am e n te n e u ­


tro, co m p ro m eten d o -se som en te com um a p articu lar m eto d o lo g ia,
a d as ciên cias. O u seja, o naturalism o pressuporia, n essa leitura, um
m onism o m eto d o ló gico e não um m onism o o n to ló g ic o (com o o
fisicalism o). O naturalismo defendido por Quine é de tipo m etodológico,
na c lassificação que propõe G oldm an (1 998 ). M esm o aqui, as d iv e r­
gên cias entre os n atu ralistas são, porém , com uns. E nquan to Q uine é
um m onista m etodológico, Goldm an, apesar do seu professado n atu ra­
lismo, adm ite um dualism o [m etodológico] no qual a filosofia disporia
de m étodos próprios e distintos dos métodos científicos. A epistem ologia
con tin u aria com a tarefa de explicar [explicate] o sign ificado dos ter­
m os ep istêm ico s - o que rem ete ao m étodo de an álise c o n ceitu ai
a id en tificar a con d u ta cognitiva ad eq u ad a, os valores e ob jetivo s da
c o g n iç ão , etc. Á ciên cia cab eria, en tão , verificar se os su je ito s
epistêm icos possuem os m eios (capacidades) para atingir os objetivos
da cognição, fixados previam ente; ou ainda, a ciência procuraria iden­
tificar os m étod os que m elhor prom ovem a c o n d u ta cogn itiv a a d e ­
q u ad a, conform e estip u lad a pela epistem ologia. G o ld m an opõe-se a
Q uine por defender claram ente o status norm ativo da epistem ologia,
o que im p licaria, no seu entender, que esta últim a dispõe de m é to ­

18N ão é claro, en treta n to , depois dos trabalhos de Kim , se essa posição é co n sisten te. A n te ­
riorm ente, apontei a tese (não-redutiva) de que as propriedades epistêm icas supervêem às
propriedades físicas.

292
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

dos próprios, não-científicos. Goldm an distingue, assim, diferentes graus


de en volvim en to das ciên cias no projeto ep istem ológico n orm ativo,
indo de naturalism os brandos até um “naturalism o ilim itado” , no qual
as ciên cias seriam relevan tes m esm o para a id e n tifica çã o dos fins
epistêm icos (Abrantes, 1998, p. 20-21).

7. D e m in h a parte, eu tend o a c o n c o r d a r c o m K o rn b lith e sus


te n t a r q u e o n a tu r a lis t a te m co m p ro m isso s o n to ló g ic o s , d esd e que
sejam co m p atív eis co m as m elhores teorias cien tífica s c o n t e m p o r â n e ­
as ou m esm o d eriv ad o s.19 Eu consid ero, por ex em p lo , qu e é in e scap áv el,
para um h o m e m c o n t e m p o r â n e o ( o c id e n ta l, e d u c a d o , e t c . ) ad m itir
e l e m e n t o s de uma im a g e m de n a tu re z a a p o ia d a n o c o n h e c i m e n t o
c i e n t í f i c o d isp o n ív e l.20 U m deles é que as m e n t e s su rgiram a partir
de processos p u ram en te fís ic o s . C o lo c a n d o em o u tro s term os, as m e ntes
são, na h is tó ria do u niverso, coisas b a s t a n t e tardias (c o m o a vida,
por s i n a l ) . 21
Portan to, se aceitam os uma tal tese ontológica, o “espaço de ra­
zões” deve ser posterior, cr o n o lo g ic a m e n te , ao “esp aço de c a u s a s ” e
inserido neste último de forma, digamos, “orgânica”. Esse compromisso
“fisicalista” m ínim o p a re ce -m e in co n to rn áv el.
H á, p o rta n to , uma história a ser c o n ta d a (algum dia) a respeito
da origem, do surgim ento do espaço de razões (e ta m b é m do signifi­
ca d o , da in t e n c io n a li d a d e , e t c .) e de sua a r t ic u l a ç ã o c o m o esp aço
de leis/causas. Essa h istória, e v id e n te m e n te , n ão poderá pressupor a
e x istê n c ia de um esp aço de razões an tes que este te n h a surgido (e m ­
bo ra q u a lqu er h istó ria que c o n tem o s deverá ser r a c io n a lm e n te legiti­
m ada - afinal, as hipóteses e teorias cien tífica s são expressões de um
c o n ju n t o de c r e n ç a s ju stific a d as e, esp eram os, v e r d a d e ira s).

19N ão seria o m om ento, aqui, de defender, além do mais, a interdependência entre metodologia
e ontologia, o que colocaria em dúvida a possibilidade de um naturalism o m etodológico
neutro com respeito a compromissos ontológicos.
20A dm ito, portanto, que o naturalism o seja, em alguma medida, cientificista.
21 Essa cren ça, por sua vez, pressupõe um robusto realismo.
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

8. A d m itir uma precedência histórica da esfera de leis com res-


peito à esfera racional, contudo, não implica admitir uma redução do
m e n tal ao físico ou algo co m o uma teoria da identidade m e n te -co rp o .
E u, p a r t i c u l a r m e n t e , sou s i m p á t i c o às t e n t a t i v a s de a r t i c u l a r um
fisicalism o n ã o redutivo. M as não vejo co m o abrir mão de um fisicalismo
“m ín im o ”. O externalism o, portanto, deve ter algo de correto, em bora
talvez o in tern a lista - e Pollock é co n v in c e n te nesse sentido - te n h a
co ntribu içõ es a dar a uma teoria do c o n h e c im e n to que seja com patível
co m o estado atual do c o n h e c im e n to científico.
V ocê parece tam bém re co n h e c e r que a questão de co m o o “espa-
ço de razões” interage co m o resto do mundo não pode ser co lo cad a de
lado ou ignorada, co m o defende M cD ow ell, a ce ita n d o -se “um dualismo
co m uma cortina de ferro mais alta do que a que separa corpo e m e n t e ”
(Bensusan, 2 0 0 1 , p. 7).

9. U m a m o d alid ad e e s p e c ia lm e n te a m e n a de n a tu ra lis m o d e ­
fende, sim p lesm en te, que o ep istem ólogo n ão pode ignorar os re su lta ­
dos das ciên c ia s, c o lo c a n d o -s e n u m a pre p o te n te posição de iso lam en to
e de a u t o - s u f ic i ê n c ia . P o d e -se form ular essa m o d alid ad e de n a t u r a ­
lismo de m odo positivo: a) as ciên c ia s podem fo rn ece r subsídios im ­
p o rta n tes para o ep istem ólogo en fre n ta r e dar solu ções para os p r o ­
b le m a s tr a d i c i o n a i s da e p is t e m o lo g ia (e, talv ez , para r e o r i e n t a r a
e p is te m o lo g ia , c o l o c a n d o n o v o s p ro b le m a s ); b) q u a lq u e r te o ria do
c o n h e c i m e n t o pressupõe, e x p lícita ou im p licita m e n te, teses em píricas
(p o rtan to , co n tin g e n te s ) a respeito do m u ndo e de nós próprios e n ­
q u a n to “e n g e n h o s e p is t ê m i c o s ” ( C h u r c h l a n d ) . E m o u tras palavras,
as teses/teorias filosóficas não te riam um c a rá ter a p riori, c o m o ad m i­
te a e p istem o lo g ia n ã o -n a tu r a lis ta .
C o m o afirmei em outro lugar,

a epistemologia perde, assim, o seu status privilegiado dc “filosofia pri­


meira”, de ponto fixo que permitiria alavancar uma crítica, digamos “ex­
terna”, às pretensões (epistêmicas) da ciência. A imagem do barco de

294
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

N e u r a t h é r e p e tid a m e n te in v o c a d a p e lo s n a tu ra lis ta s n e s s e c o n t e x t o (...)

(A b r a n te s , 1 9 9 8 , p. 1 5 ) .22

10. Para finalizar a discussão das teses que v o cê atribui ao n a ­


turalista, e que lhe p arecem aceitáveis, c o n c o r d o que as teses C iê n ­
c ia co g n itiv a e D e s c o b e r ta têm um ca rá ter n atu ralista. A tese C iê n c ia
c o g n it iv a , a m e u ver, i d e n t i f i c a - s e c o m o q u e K i t c h e r c h a m a de
“p sico lo g ism o ”. A re je iç ã o do a priori e o psicologismo, segundo Kitcher,
são os d ois c o m p o n e n t e s c e n t r a i s de u m a p o stu ra n a t u r a l i s t a em
ep istem olog ia. T ra te i rapid am en te, nos últimos parágrafos, do prim ei­
ro c o m p o n e n te .
Q u a n t o à tese P ragm atism o, suponho que v o cê e steja pensando
na po sição de B ran d o m . Em B en su san ( 2 0 0 1 ) , B ra n d o n é apresentado
c o m o um “d e s c r e n t e ”, um “in feren cialista ” que faz abstração do c o n ­
teúd o das cr e n ç a s: cre n ça s conduzem “apenas a outras cr e n ç a s e n u n c a
t o c a m o m u n d o ” (id. ib id ., p. 5 ) . N ã o sei se a lé m de d e s c r e n t e , a
p o sição de B r a n d o m ta m b ém teria, segundo v o cê, “c o lo r a ç õ e s ” n a t u ­
ralistas, ao propor uma redu ção das normas às práticas. Esse assunto
seria, talvez, por demais específico para nos debru çarm os no m o m e n ­
to sobre ele.

Missiva H 2

Paulo,

Pode -se criticar um costume, uma instituição, uma crença, etc., porque tais
coisas podem ser mudadas. Mas não faz sentido criticar fatos da natureza
[...]. [Os naturalistas almejam tornar] os processos epistemológicos imunes
à crítica. M a r c o s B a rb o s a d e O liv e ir a

” A m etáfora é que estam os num barco em alto mar e, eventualm ente, temos de repará-lo sem
poderm os ancorá-lo num porto.
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

1. C o n c e b o o naturalismo, co m o indiquei c o m outras palavras na


primeira missiva, co m o a te ntativa de en ten d er co m o n atu rais os pro-
cessos epistêmicos. A qu i, “n a tu ra l” d eno ta aquilo que p e rte n ce ao es­
paço lógico das leis da natureza. Nesse sentido, “n a tu ra l” se contrapõe
ao espaço das razões. O naturalismo advoga que não há um espaço sui
gen eris das razões.23 C e rta m e n te , se “n a tu ra l” significa algo diferente,
tam bém “n atu ra lism o ” haverá de significar algo diferente. Você diz em
P l : 4 que o naturalism o não está necessariam en te com p rom etid o co m a
redução de estados e processos epistêmicos a processos em última ins­
tâ n c ia descritíveis por leis e nem co m a e lim in a çã o destes estados e
processos. Em seguida v o cê insiste que tudo o que p re cisam o s para
podermos vincular uma teoria do c o n h e c im e n to a uma teoria cien tífica
é de um falibilismo. O problema, contudo, é co m o pode o naturalism o
en ten d er a substituição de uma teoria por o u tra.24

2. V ocê e n tã o aponta para o naturalismo norm ativo (e o modelo


reticulad o) de L au d an ( 1 9 8 4 , 1 9 8 7 , 1 9 9 0 ) . O natu ralism o n o rm ativo
(1 9 8 7 , 1990) apon ta para a ex istên cia de regularidades na história da
c iê n c ia - estas regularidades te riam de ser n ô m ic as para satisfazer o
anseio naturalista.25 N o modelo reticulado (1 9 8 4 ), a articulação de te o ­

2íN ote que a distinção en tre espaço das razões e espaço lógico das leis da natureza não se
com prom ete com a validade do argum ento de Davidson, segundo o qual razões são causas.
Podem ser causas, claro, mas isto não implica que, enquanto razões, elas possam ser expressas
em term os de leis.
24A substituição de teorias, é claro, só é um problem a para o naturalista se ela for entendida
com o um exercício da razão, um processo epistêm ico. Se ela for explicável inteiram ente por
m eio de regularidades nom ológicas (da sociologia ou da psicologia), não haverá problemas.
25Naturalizar normas é uma empresa problemática em todo caso. A possibilidade de tal naturali­
zação tem de enfrentar os argumentos de Wittgenstein, segundo os quais as normas são reguladas
por práticas e há muitas regularidades que podem ser encontradas nas práticas. Um naturalismo
norm ativo teria de justificar com o escolhe as regularidades (nômicas) que usa para descrever
práticas que sustentam normas. Com o diz Brandom (1994, p. 28) "T here simply is n o such thing
as the p attem o r regularity exhibited. To say this is to say that som e regularities raust b e picked out as
ones that ought to be con fom ied to, som e pattem s as the ortes that ought to be continued". (Tradução
minha: “Sim plesm ente não há o padrão de regularidade exibido. Dizer isto é o mesmo que dizer
que certas regularidades devem ser tomadas com o aquelas às quais se deve conformar, regulari­
dades que devem contin uar"). Brandom apóia-se em Wittgenstein para concluir que não parece
haver uma boa m aneira de justificar as regularidades escolhidas.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

rias, m étodos e valores teriam de formar um m ecanism o (seguramente


p sico-sociológico) descrito em termos de leis, mais uma vez se o anseio
n atu ralista tiver de ser satisfeito. N ão quero dizer que isso n ão possa
ser feito - n ã o posso fazê-lo se a ce ita r a p ro v o c a ç ã o da epígrafe de
C h ateau b riand ( H l ) . C ontudo, se isso for de fato feito, e a epistemologia
assentar-se tran qüilam ente com o o departam ento de alguma disciplina
cien tífica ou muitas delas, o reticulado e as leis da história da ciência
estarão eles mesmos sujeitos às leis da história da ciên cia e ao reticulado.
As n o rm as que regem a su bstituição das teorias estariam justificadas
apenas d e n tro do sistem a de leis que trataria da su bstitu ição de t e o ­
rias. U m a c r ít ic a a tais normas poderia ser rebatida assim: não é de
fato por m eio de críticas co m o esta que as teorias são substituídas. Se
isto a c o n te c e s s e , teríam os um sistema fech ad o que n ã o pode ser c r iti­
cad o sen ão in te r n a m e n te - pô-lo em c h e q u e seria re je itá-lo .
M a s v o cê sugere que m étodos, valores e sua in te rd e p e n d ê n cia
c o m as teorias n ã o precisam ser expressos em termos de leis ( P l : 4).
V o cê ta m b é m sugere que o n atu ralism o possa c o n v iv e r c o m norm as
que n ão se reduzam a leis (o naturalismo não precisa se com prom eter
co m reduções ou elim inações). Imagino que você esteja sugerindo uma
espécie de naturalism o emergentista, uma vez que você se com p rom ete
co m o fisicalismo ( P l : 7) e co m a não redução ( P l : 6 ). Isso implicaria
dizer que haveria “uma história a ser con tada (algum dia) a respeito da
origem, do surgim ento, do espaço das razões (...) e de sua a rtic u la çã o
c o m o esp aço das c au sas” ( P l : 7). A epígrafe de C h a te a u b ria n d im ­
p e d e -m e de dizer que isso é impossível. Digo apenas o seguinte: essa
h istória pode n ã o ser suficiente para satisfazer o n a tu ra lista (ou seja,
a possibilidade de e n te n d e r o espaço ep istêm ico em term os de leis).
O ca so m ais in t e r e s s a n te de uma h istó ria (e sp e cu la tiv a ) do esp aço
das razões é o M it o de Jones, de Sellars ( 1 9 6 3 a ) . Sellars pensa que a
nossa visão c ie n t ífic a do m undo deve a co m o d a r tod o o v o cabu lário
c o n c e r n e n t e a pessoas (intencio nalid ad e, ação, co n teú d o s, etc .) para
q u e possa in t e r a g ir c o m o e s p a ç o e p i s t ê m i c o . 26 N o M it o de Jo n e s ,

26Ver tam bém a últim a nota de H 1.


Paulo A b ran te s e H ilan B en su san

en tre os n ossos a n c e stra is in t e ir a m e n t e ryleanos, a p are ce u uma vez


um g ênio (p a le o -)filo só fico ch am ad o Jones, que introduziu o v o ca b u -
Iário de “a p a rê n c ia s ” e de “p e nsam entos” para explicar c o m p o rta m e n ­
tos de discordância. N o esboço de história de Sellars, o espaço epistêmico
surge do d esen vo lvim en to da nossa linguagem. É um esb oço ch e io de
lacunas (que duram milênios), mas é uma história n ão -n a tu ralista.
B em , n ã o -n a t u r a lis t a no sentido de que ela não perm ite que se
e n te n d a o esp aço ep istêm ico em termos de leis. M as v o cê ap o n ta ( P 1:
7) para uma modalidade de naturalismo que você ch a m a de “esp ecial­
m ente a m e n a ”. E claro que eu c o n c o r d o que o ep istem ólogo n ão pode
se isolar e que n ão pode ignorar os resultados da c iê n c ia . E n tr e ta n t o ,
a pergunta sempre é assim: em que sentido esses resultados são r e l e ­
vantes? D e todo modo, uma posição assim seria fraca demais para que
eu a co n sid erasse n atu ralista; ela n ã o se en c a m in h a ria em d ire ção ao
que descrevi co m o um p ro jeto n atu ralista b em -su ce d id o ( H l : 2 ) . Eu
penso que o natu ralism o , tal co m o eu o c o n c e b o , é um po n to de par­
tida para explo rarm o s as relações en tre o esp aço das razões e as leis;
de alguma forma, o espaço das razões está po sicio nad o e n tre ev e n to s
e processos natu rais - nossos instintos cognitivos (cf. B en su sa n , 2 0 0 0 ) ,
n ossas c a p a cid a d e s de p ro c essa m e n to , nossa p e rc e p ç ã o e n ossa m e ­
m ória, e t c . M as o n atu ra lism o , isto é, um p ro je to n a tu r a lis t a bem -
su ced id o, é in c a p a z de o fe re c e r respostas satisfató rias às nossas i n ­
q u ie ta ç õ e s q u a n to a ju s t if ic a ç õ e s (e é por cau sa delas que o c é t i c o
sempre ap arece, de uma forma ou de outra) e q u a n to à o bjetivid ad e
do nosso c o n h e c i m e n to , isto é, a sua c o n e x ã o co m o m undo. O n a t u ­
ralismo, c o m o diz M cD o w e ll, ab and o na (opts o u t) essa área da in v e s­
tigação. Ele diz que o n atu ralism o procura responder a perguntas s o ­
bre te m a s c o m o a r e la ç ã o e n t r e a p e r c e p ç ã o e o m u n d o “in, so to
sp ea k , en g in eerin g term s, w ith a p ersp icu o u s d esc rip tio n o f the req u isite
m a ter ia l con stitu tion , [ an d this is] plainly u n helpfu l; it [is] is like resp on d in g
to Z eno by w alk in g a cross a r o o m ’21 ( 1 9 9 4 , p. x x i).

27Tradução m inha: “em, por assim dizer, termos de engenharia, com uma descrição dos requisi­
tos m ateriais, e isso é claram ente inútil: é com o responder a Zenão andando pela sala".

298
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

3. Q u a n t o às teses que listei em H l , c o m as quais c o n c o r d o ,


e n te n d o -a s co m o pontos em com u m entre a m inh a posição e aquela do
naturalista. U m a delas é a tese que cham ei de E xtern alism o. D e acordo
co m a m inh a definição ali, eu admito a possibilidade de s saber que p
sem ser capaz de apresentar uma justificação para isto, desde que uma
justificação para p possa ser apresentada. Esse é um extern alism o fraco;
em particular, eu co n cord o co m a cham ad a “refutação do ex tern alism o ”
que Pollock ( 1 9 8 6 , p. 1 3 3 - 1 4 9 ) apresenta. Ali, ele está interessado ap en as
em norm as epistêmicas que guiam a razão - e, portanto, não em justifi­
c a ç õ e s para c r e n ç a s . Ele diz que normas ep istêm icas n ã o pod em ser
formuladas em termos externalistas (em termos de probablilidade, de
confiabilidade etc.) pois elas exigem um acesso direto28 do sujeito que
c o n h e c e ; e isto refuta o que cham a de externalismo, que afirma que as
norm as epistêmicas são externas. O u seja, não basta que m inha norma
seja confiável, eu te n h o de saber que ela é confiável. Ele tam bém refu­
ta o ex ternalism o que insiste que as normas epistêmicas têm de respon­
der a co nsid erações externas (probabilidade, confiabilidade, e tc .), pois
tudo o que este externalism o pudesse sugerir pode ser acom od ad o em
termos internalistas. A posição de Pollock, que im plica em naturalizar
normas epistêmicas entendidas de forma internalista, depara-se, é c la ­
ro, rap id am en te co m todos os problemas que o n atu ralism o en fre n ta
c o m respeito a norm as entendidas co m o leis (ver an te rio rm e n te ). D e
todo modo, sua “re fu ta ç ã o ” ajuda a delimitar um pouco m elhor o meu
ex ternalism o ; te n h o em m ente uma posição co m o a de D avidson, s e ­
gundo a qual quando alguém pode fornecer uma ju stificação para n o s­
sas c r e n ç a s , que te m uma p re su n ção de verdad e em seu favor, elas
possuem uma presun ção de c o n h e c im e n to (Davidson, 1 9 9 1 ) . Em o u ­
tras palavras, a c h o que devemos admitir ju stificaçõ es que possam ser
re co n h ecid as por pessoas que não sejam aquelas que têm a c r e n ça (que
c o n h e c e m ). M as a irresponsabilidade cognitiva (acreditar sem ter uma

28 A noção de “acesso direto” é um tanto problemática. Pollock parece assumir um internalismo


tam bém quanto a conteúdos; caso contrário não é claro com o qualquer acesso pode ser mais
direto que qualquer outro.

299
P aulo A b ran te s e H ilan B en su san

ju stifica ção ) só pode ser tolerada até um c e rto p on to - co m o mostra


B ra n d o m ( 2 0 0 0 ) , uma com unidade inteira não pode ser co g n itivam ente
irresponsável, alguém tem de poder oferecer uma ju stificação para, pelo
m enos, uma parte das cr e n ça s.29
A forma mais popular de ex tern alísm o, desde G o ld m a n ( 1 9 7 6 ) ,
é o co nfiabilism o . O confiabilism o consid era que uma c r e n ç a verda-
deira ad quirida por m eio de um m é to d o c o n fiá v e l é c o n h e c i m e n t o .
O co n fiabilism o é g eralm ente en ten d id o co m o algo que c o n trib u i para
o p ro jeto natu ralista . B ra n d o m ( 2 0 0 0 ) discute suas v an ta g en s e des-
v a n ta g e n s e m o s tr a c o m o o co n fia b ilism o i n s e r e - s e m e lh o r em um
quadro n ã o -n a tu ra lis ta . Seu argum ento principal é que q u an d o d ize­
mos que algum p rocesso de aqu isição de cr e n ç a s é co n fiá v e l, temos
de estar supondo uma classe de referên cia. G o ld m a n fala do caso de
alguém que n ão sabe que há um celeiro em frente dele porque ele se
e n c o n tr a em um m unicípio onde há muitas fachadas de ce le iro falsas.
Nesse caso, nosso herói, ainda que diante de um celeiro de verdade,
n ão é confiável para distinguir celeiros, pois se ele estivesse dian te de
uma fachad a de celeiro (há muitas na região), ele se enganaria. O ra,
diz B ran d o m , talvez ele não seja confiável se tormarmos co m o classe de
referência apenas o m unicípio; mas e se tom arm os todo o estado, ou
todo o país, ou todo o mundo? B ran d o m sugere que essa qu estão faz
co m que o confiabilism o de G oldm an, ch e io de passos filosóficos que
fazem época (ep och -m a kin g p h ilosop h ical m oves) (2 0 0 0 , p. 11 5 ), faça mais
sentido fora de um ce n ário naturalista, uma vez que a confiabilidade
requer a r e fe rê n c ia a uma classe que não pode ser e sp e c ific a d a por
meio de leis. Ele sugere uma forma de pragmatismo em que a confiabilidade
é e n t e n d id a d e n tro das práticas sociais de d e m a n d a r e o f e r e c e r r a ­
zões. Fora do c e n á r io n atu ralista, o co nfiabilism o (e o e x tern alism o ) é

29O tem a da irresponsabilidade cognitiva rclaciona-se com um debate, que me interessa a


respeito das relações entre aprendizagem m ecânica e filosofia da ciência. Bons algoritmos de
aprendizagem não oferecem nenhum a hipótese, ou seja, podem ser julgados apenas por seu
sucesso. C ien tistas, por outro lado, parecem sempre querer oferecer hipóteses que confiram
sentido aos resultados que obtêm. A té que ponto podemos utilizar o sucesso de máquinas que
induzem para justificar nossas crenças?
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

e n te n d id o co m o mais um procedim ento que pode ser utilizado no es­


f o r ç o de ju s tific a r c r e n ç a s - a co n fiabilid ad e pode atu ar c o m o uma
razão para que se acred ite em alguma coisa, mas esta razão, inserida
em práticas ep istêm icas,30 não pode ser entendida em termos de leis.

4. Tal co m o a tese E xternalism o, as demais teses em H l c o n stitu ­


em um pano de fundo com u m para a discussão ace rca do naturalismo.
Vou falar alg u m a co isa para e sc la r e c e r ta m b é m a tese B o y d , já que
v o c ê c o n sid e ra que ela n ão deve ser inclu íd a “no c red o natu ralista,
tend o em vista o seu caráter internalista e d o xástico ” ( P 1: 4). E n tend o
B oy d sim plesm ente co m o uma rejeição da dem anda fundacionalista por
bases sólidas e a u to -e v id e n te s para o c o n h e c im e n to . T ra ta -s e de e n ­
te n d e r a ep istem o lo g ia co m o o estudo das c r e n ç a s e das p reten sões
de c o n h e c i m e n t o , ten d o co m o p onto de partida as c r e n ç a s ex iste n tes
e o mundo. Em particular, não vejo B oyd com prom etida co m nenh u m a
forma de co e ren tism o e nem co m o um obstáculo ao externalism o. Para
deixar isso mais claro, reformulo a tese:
B o y d * : o papel da epistemologia não é tratar da origem ou do
fu n d am en to das crenças, mas de com o as crenças se regulam umas as
outras e de com o, assim , elas p odem constituir con h ecim en to sobre o m undo.

5. R e je i t a r o natu ralism o e e n te n d ê -lo co m o um po n to de p a rti­


da na in v e stig a ç ã o sobre a relação entre o espaço ep istêm ico e as leis
da n atu reza é uma posição que pode suscitar alguma ansiedade. V ocê
me c ita fala n d o de “um dualismo co m uma c o rtin a de ferro mais alta
do que a que separa corpo e m e n t e ” ( P l : 8 ). C o n c o r d o c o m M cD o w e ll
( 1 9 9 4 ) - e tam b ém co m Sellars - que precisamos e n c o n tr a r uma im a ­
gem da n a tu r e z a q u e abrigue o esp a ço e p is t ê m ic o . P en so que essa

’“Tais práticas possuem uma estrutura que, de muitas m aneiras, possibilitam , mas ao mesmo
tempo restringem o espaço epistêmico. Essas práticas, assim com o nossos instintos cognitivos,
etc. (ver a cim a ), alojam o espaço das razões. A estrutura dessas práticas parece ser organizada
mais ou m enos com o as A ngeln (hinge propositions ou proposições-dobradiça) de W ittgenstein
(1 9 6 9 , parágrafos 3 4 1 , 3 4 3 ). W ittgenstein nota em muitos trechos com o as hinges orientam a
confiabilidade das nossas crenças (cf. por exem plo, parágrafos 4 6 ,4 4 4 e 4 4 5 ).
Paulo A b ran te s e H ilan B en su san

im agem , para ser e n c o n t r a d a , ex ige uma r e f o r m u la ç ã o n a m a n e ir a


co m o vemos o nosso c o n h e c im e n to e as leis naturais. O espaço epistêmico
talvez te n h a de ser visto co m o envolvendo o o b jeto de todo co n h e ci-
m e n to ; e a natu reza talvez te n h a de ser vista corno in t r in s e c a m e n te
co n cep tu al. Isto nos levaria a uma co n c e p ç ã o de m ente co m o um c o n ­
ju n to de capacidades naturais, e não co m o um órgão (é o que sugere,
por exemplo, P u tnam , 1994) - o que talvez poderia lidar co m a co rtina
de ferro mais baixa. H á muito que dizer sobre estas reformulações, mas
n ão estam os, por en q u a n to , debaten d o Hegel...

Missiva P 2

H i la n ,

1. Para facilitar sigo abaixo, mais ou menos, a ordem dos tema


que você aborda na réplica à m inha missiva ( P l ) .

Naturalismo e ontologia (uma vez mais)

V ocê insiste em associar ao “n aturalism o” uma ontologia que não


distinguiria en tre um “espaço de leis” (da natureza) e um “espaço de
razões”. Em outras palavras, no seu enten d im en to o naturalism o estaria
c o m p ro m etid o c o m uma im agem de natu reza ou c o m um â m b ito do
“n a tu ra l” (abrangeria, ou não, por exemplo, o “m e n t a l”?). A referência
a D avidson, logo no início da sua missiva, revela isso. O fato de você
me ver co m o um “naturalista em ergentista” (?!) - ou seja, co m o c o m ­
prometido co m um fisicalismo não redutivo - tam bém é evid ência disso
(H2: 2).
N o e n t a n to , co m o enfatizei em P l , ce rtas form ulaçõ es do p r o ­
gram a n a tu ra lista n ão se c o m p ro m e te m co m uma o n to lo g ia p a r t ic u ­
lar, in t e r p r e t a n d o - o em termos ex c lu siv am e n te m eto d oló gico s. Aliás,
você não se posicionou a respeito do pretenso caráter a p riori das teses

302
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

filosó ficas (versus a p o sterio ri, das teses c ie n t ífic a s ) , uma tese m e ta -
filosófica que o naturalism o co n testa (tese esta que, ju n ta m e n te co m o
psicologismo, con stitu i o âmago do naturalismo segundo K itc h e r).
M as, na linha do que fiz em P l , gostaria de aceitar esse desafio
de associar o meu compromisso naturalista a determinadas posições em
o n to lo g ia.
A ontologia que distingue entre um “esp aço ” das leis da natu re-
za (ou de causas) e um “esp aço ” de razões é, por si só, problemática e
pode ser co n testad a, co m o indiquei em P l . Por outro lado, com o natu-
ralista, n ã o vejo problemas em advogar algum tipo de fisicalismo não
redutivo. Tendo a concordar com Kornblith (1998) que uma “epistemologia
n a tu ra lista ” deve articular-se co m uma “m etafísica (tam bém ) n a tu r a ­
lista”.31 O que caracteriza uma “metafísica natu ralista” é a sua articu ­
lação a partir das m elhores teorias científicas aceitas h o je. Kornblith,
por ex e m p lo , defend e que uma m e tafísica co n stru íd a nesses moldes
não poderia, ho je, ser reducionista, isto é, não admitiria uma redução
das ciências de “nível alto ” ou “especiais” (como a psicologia, por exemplo)
às c iê n c ia s “f u n d a m e n ta is”.

2. Nesse sentido, o naturalismo (pelo menos do tipo que defend


Kornblith) é, sem dúvida, cientificista. U m naturalista n ão veria sen ti­
do, por exemplo, em se buscar, com o pretende M cD o w e ll ( 1 9 9 4 ) , uma
c o n c e p ç ã o de natureza distinta daquela sustentada pelas teorias c i e n ­
tíficas a ce itas h o je.
M cD o w e ll está, claro, co nscien te do risco de, ao rejeitar a c o n ­
c e p ç ã o “d e s e n c a n ta d a ” de natureza da ciê n c ia m od erna, re tro ce d er a
uma c o n c e p ç ã o te le o ló g ica de natureza co m o a m edieval, em que a
natureza “era co n ceb id a co m o preenchida de significado, co m o se toda
a natureza fosse um livro de lições para nós (...) ” (id . ibid., p. 7 1 ) . Mas,
assim m esm o, M c D o w e ll co n sid era que é uma tarefa ep istem o ló g ica
urgente articular uma nova “c o n c ep ç ã o de natureza”, associada a um

31O u seja, com uma imagem de natureza que se coadune com as m elhores teorias científicas
aceitas.
P aulo A b ran te s e H ilan B e n su san

n o v o “tipo de in te lig ib ilid a d e ” (id . ib id ., p. 7 0 ) , que possibilite uma


a rticu lação entre o espaço de razões e o espaço de leis. Para articular
essa nova c o n c e p ç ã o , ele pretende inspirar-se, não na filosofia da n a tu ­
reza a ris to té lic a (da qual foi tribu tária a referida c o n c e p ç ã o m e d i e ­
val), mas na é tica aristotélica, baseada na n o ção de “segunda n a t u r e ­
za” (id. ibid., p. 8 4 ) .
A c h o esse projeto quim érico, sobretudo do modo co m o é c o n c e ­
bido. Q u e recursos especiais disporia a filosofia, quais as suas c r e d e n ­
ciais para pretender, ainda hoje, articular uma c o n c e p ç ã o de natureza
ignorando ou c o lo ca n d o de lado os métodos e os c o n h e c im e n to s c i e n ­
tíficos aceitos (a respeito da natureza, do hom em e da sociedade)? S e ­
ria voltar a so n h a r c o m um projeto co m o o da N a tu rp h ilo so p h ie (pelo
qu al, talvez, M c D o w e ll te n h a alguma sim p atia n o stá lg ic a , dadas as
suas freqüentes m ençõ es a H egel). Dizer que o espaço de razões é “ili­
m ita d o ”, c o m o sugere M cD o w e ll, p a re ce -m e sim plesm en te u m a p e ti­
ç ã o de p r in c í p i o ou u m a m a n o b r a a d h o c . A c h o essa p o s i ç ã o tão
q u estio n áv el q u a n to a de um n a tu ralista-re d u cio n ista (o “natu ra lista
a v a ro ” - g reed y n atu ra list - a que se refere D e n n e t t ) que d efendesse
que o espaço de leis da física é “ilimitado”, não admitindo que a ex is­
tê n c ia de m e n tes n u m m u ndo físico co lo ca problemas gen uínos, que
d evem ser en frentad os (e não, simplesmente, colocados de lado). Essa
m anobra de M cD o w e ll le m bra-m e a que ten taram alguns new tonian os
no fim do século X V I I , ao incluírem a gravidade na lista das qu alida­
des primárias da m atéria, de m odo a blo q u ear q u a lqu er te n ta tiv a de
explicá-la. A lgo sem elh ante propõe, hoje em dia, C halm ers (e também,
d iga-se de passagem, S e a rle , co m sua “o n to lo g ia su b je tiv a ”), ao d e ­
fen d er a tese da irred utibilidade ú ltim a da “c o n s c i ê n c i a ” e das p r o ­
priedades a ela associadas (os q u a lia ).11 Seria essa a atitude que você,
a co m p an h a n d o M cD o w e ll, defende com o um “quietism o se le tiv o ”?

,2 O s qu alia são as propriedades fenom ênicas associadas, em especial, às nossas sensações, com o
a “verm elhid ão” de uma rosa, o “ad ocicado” do mel, etc. Para muitos filósofos da m ente, os
q u alia são propriedades intrínsecas e, portanto, não passíveis de redução às propriedades
físicas.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

D ig a -s e de passagem, in c o m o d o u -m e , desde a m in h a prim eira


leitura do livro de M cD o w ell, quando da sua publicação, antes de vir a
ser tão celeb rad o em alguns nichos filosóficos, o modo co m o ele ignora
o lim p ic a m e n te os resultados das ciên cias, em particular das ciên c ia s
cognitivas. A c h o instrutivo comparar, desse p onto de vista, as vagas,
g enéricas e, do meu ponto de vista, insatisfatórias elocubrações “filosó­
fic a s” de M c D o w e ll a respeito das relações en tre “e s p o n ta n eid a d e” e
“re c e p tiv id a d e ”, c o m p ree n s ã o e “e x p e riê n cia ”, co m m odelos detalhados
(e fa lse áv eis!) sobre os m e can ism o s envolvidos na a rtic u la ç ã o en tre
processos co g n itiv o s de baixo e de alto nível, elaborados por c ie n t is ­
tas co g n itiv o s co m o , por exem plo, Indurkhya em M e ta p h o r an d C og n ition
(1 9 9 2 ).

O naturalism o de Laudan

3. E m que sen tid o o m od elo (ou teoria) re ticu la r da racio n alid ade
que propõe Laud an é “n atu ralista”? N o sentido de que valores cognitivos,
m étodos/m etodologias e teorias ( c o n h e c im e n to su b stantivo ) são c o n ­
siderad os in t e r d e p e n d e n te s , im p o n d o -se re striçõ es m ú tu as. O n a t u ­
ralism o de L a u d a n é e s p ec ia lm en te p a te n te n o fato de qu e ele ad m i­
te q u e m e to d o lo g ia s (e ta m b é m , d ig a -s e de pa ssag em , a x io lo g ia s ) ,
propostas u su a lm en te por filósofos (mas n ão e x c lu s iv a m e n te ), possam
ser m od ificad as em fu n ç ã o de m u dan ças no c o n h e c i m e n to (su bstan ­
tivo) c ie n tífic o . E m outras palavras - usando a term in olo gia e m p re ­
gada em nossa discussão - segundo esse modelo reticular, norm as podem
ser m o d ific a d a s em fu n ç ã o da d in â m ica do n osso c o n h e c i m e n t o do
m u n d o físico (e de nós mesmos en q u a n to sistemas cogn itivos ou “m á ­
qu inas e p is t ê m ic a s ”) . S e há m u danças nesse c o n h e c i m e n t o su b sta n ­
tivo, e n t ã o isso pode requerer alguma m o d ificação dos m éto d os e m ­
pregados para gerar/justificar o c o n h e c im e n to . H á uma circularidade
im p lícita aqui (já que estes m étodos podem ser os mesm os em p reg a­
dos direta ou in d ire ta m e n te para gerar aquelas teo rias...), mas o n a ­
turalista p re te n d e que ela não seja viciosa. O m od elo h ie rárq u ico de

305
___P a u l o A b r a n t e s e H i l a n B e n s u s a n

r a c io n a lid a d e , por sua vez, n ã o é n a tu r a lis t a p o rqu e n ã o a d m ite a


possibilidade de qu e níveis mais baixos da hierarqu ia im p o n h a m m u ­
d an ças nos níveis mais altos.
A dm itir uma teoria reticular da racionalidade não im plica, c o n ­
tudo, dar um status privilegiado ao c o n h e c im e n to (substantivo) c ie n t í­
fico, em d e trim e n to dos níveis n o rm ativo e axiológico. N e n h u m dos
vértices do reticulado tem prioridade “epistemológica” sobre os demais.
H á, co n tu d o , n atu ralistas mais radicais do que L au d an - co m o , por
exem plo, R osem berg (1 9 8 5 , 1 9 9 0 ) - , que defendem uma pre ce d ê n cia
das teorias cien tíficas (do c o n h e c im e n to substantivo) co m respeito às
metodologias (in vertend o a hierarquia tão cara aos filósofos). Laudan
rejeita, co n tu d o , tais extremos:

Estou inclinado a ver preocupações norm ativas e descritivas com o


entrelaçadas em virtualm ente toda forma de investigação hum ana. N e ­
nhum a delas é eliminável ou redutível à outra; no entanto, am bas com-
portam -se epistem icam ente de m odo bastante similar, de m odo que não
precisam os de epistem ologias [sic.] distintas para lidar com regras e com
teorias (Laudan, 1990, p. 56).

Tampouco, co m o você afirma, o modelo n ão -h ierárqu ico de Laudan


é apresen tado co m o “um m ecan ism o (seguram ente psico -socio lóg ico )
descrito em termos de leis ( . . . ) ” (H 2: 2). R e c o n h e ç o que o status da
teoria da racio n alid ad e de Laudan é ambíguo. S e ria uma teoria “filo ­
s ó fic a ” ou “c i e n t í f i c a ”? E m b o ra , co m o v o cê sabe, para o n a tu ra lis ta
n ã o h a ja f r o n te ir a s n ítid as e n t r e esses d o m ínio s. L a u d a n , em todo
caso, n ã o é e x p lícito a respeito.
T a m b é m n ã o m e p a re ce e v id en te a a r t ic u la ç ã o e n tre a teo ria
reticular da racionalidade e o Naturalismo N orm ativo (N N ) de Laudan.
Eu defenderia que são co n cep çõ es independentes. Você tem razão em
afirmar que o N N estabece uma d ependência pro blem ática a respeito
das "leis da história da c iê n c ia ”, ou de generalizações empíricas (com
base na p rá tica c ie n tífic a passada), obtidas por in d u ção en u m erativ a
(uma m etodologia que, Laudan admite, não pode ser ju stific a d a !). Em

306
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

A b ra n tes ( 1 9 9 5 ) , critiquei esse privilégio que dá Laudan à história da


c iê n c ia co m o base para se justificar/criticar metodologias, mas não se­
ria o caso de en trar nesses detalhes aqui.

Naturalismo ameno

4- C o n c o rd o co m você que o naturalismo ameno, a que me referi


em P l , talvez n ão seja o m elhor “ponto de partida para explorarmos as
relações en tre o espaço de razões e as leis (...) posicionando o espaço
de razões e n tre ev e n to s e processos n a tu ra is”. V o cê, a p a re n te m e n te ,
considera, em alguma medida, desejável ou mesmo promissor o d esen­
v o lv im e n to desse “p ro jeto n atu ralista b e m -s u c e d id o ”, em bora afirme
que tal p ro jeto seria “incapaz de oferecer respostas satisfatórias às nos­
sas in q u ieta çõ es q u an to a justificações (...) e q u an to à objetividade do
nosso c o n h e c im e n to , isto é, a sua co n e x ã o co m o m u n d o ” (H2: 2).
Em outros termos, você defende que esse projeto naturalista, mesmo
se levado a b o m term o, não teria n e n h u m im pacto sobre as questões
filosóficas cen trais (epistemológicas, sem ânticas, e t c .). U m naturalista
“lig h t” ja m a is ace ita ria que o progresso nas várias fren tes cien tíficas
n u n c a terá im pacto sobre o tratam ento de questões (filosóficas?) fu n ­
d am entais, co m o as abordadas num a teoria do c o n h e cim e n to . Essa c o n ­
seq ü ê n cia da sua posição, a meu ver inaceitável, decorre não som ente
do fato de que v o cê c o n c ed e ao “espaço de razões” um status ontológico
sui g e n eris , privilegiado e in d epend ente do “espaço de leis”; v o cê não
parece ace ita r sequer um naturalismo ameno, apesar das suas d eclara­
ções em c o n trá rio . Esse naturalism o pretende derrubar a “c o rtin a de
ferro ”, não mais entre os dois “espaços” ontológicos, mas en tre diferen­
tes atividades cognitivas (no caso a filosófica e a c ie n tífica ), i n c e n t i­
vando uma m útua irrigação de idéias, um co n trap o n to entre esp ecula­
ções mais abstratas - a que associamos em geral o trabalho filosófico,
mas que, c o n v é m lembrar, tam bém caracteriza o trabalho científico em
questões de “p o n ta ” ou de “fundam entos” - e a co n stru ção de teorias/
modelos para fen ô m en o s particulares, o que n o rm a lm en te associamos

307
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

ao trabalho c ie n t ífic o , em bora não se limite a isso. O naturalism o a m e ­


n o n ão é, insisto, inócuo.
Você co lo ca em dúvida a “relev ância” dos resultados das c i ê n c i­
as (H 2: 2). Isso, claro, teria de ser mostrado em problemas particulares,
o que n ão p re te n d o fazer aqui. M as indiquei, an te rio rm e n te , que no
c o n t e x to dos problemas discutidos por M cD o w ell, o modelo cognitivista
proposto por Indurkhya pode ser relevante.

Em que sentido o Mito de Jones não seria “naturalista”?

5. V ocê admite, c itan d o -m e, o interesse que pode ter “uma h is ­


tória a ser co n ta d a (algum dia) a respeito da origem, do surgimento, do
espaço de razões (...) e de sua articulação co m o espaço de c au sas” e
m e n c io n a o M ito de Jones, criado por Sellars, co m o “o caso mais i n t e ­
ressante de uma história (especulativa) do espaço de razões” (H 2: 2)
que, e n tre ta n to , segundo você, não tem um caráter naturalista.
Eu defenderei, a seguir, que esse mito é com patível co m o n a t u ­
ralismo na sua v e r te n te metodológica. Para tanto, relato de forma b r e ­
ve o mito, en fo can d o os objetivos e métodos empregados por Sellars.
O m ito sellarsiano de Jo n e s in sere-se n o c o n t e x to da bu sca de
uma alternativa, tan to ao que Sellars c h am a de “Empirismo R e c e n t e ”
(ER ) q u a n to à “T rad ição C lá ssica ” ( T C ) , co m respeito ao statu s dos
p en sam en tos.
Para os que defendem o E R, os episódios de p en sam en to não são
verdad eiram ente episódios internos, mentais, mas fatos h ip o té tic o - c a -
tegórícos mistos [m o n g rel] a respeito do c o m p o rta m e n to verbal. Eles
te n ta m , por o u tro lado, a rtic u la r uma “c o n c e p ç ã o d isp o sicio n a l de
p e n sa m en to s em term os do co m p o rta m en to in te lig e n te ” (Sellars, 1 9 6 3 a ,
p. 1 7 7 ) , segundo o qual os verbos que se referem ao p e n s a m e n to a b r a n ­
gem todas as modalidades deste último.
J á segundo a T C , os co m p o rta m e n to s verbais (ou as “im agens
v e r b a i s ”) e x p r e s s a m p e n s a m e n t o s , m as e s t e s ú lt i m o s e s t a r i a m ,
o n to lo g ic a m e n te , “a c im a ” daqueles. O s pen sam en tos, de todo modo,

308
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

n ão estariam n ecessariam en te restritos, segundo a T C , ao d om ínio do


que pode ser expresso verbalm ente. Podemos, segundo a T C , ter acesso
privilegiado, im ediato, aos pensam entos, por in tro sp eção , e os p e n sa­
m entos teriam, co m o uma característica fundamental, a intencionalidade,
a propriedade de “serem sobre”, ou “estarem dirigidos a”, coisas (exis­
te ntes ou in e x isten te s). O significado das expressões verbais seria tri­
bu tário da in te n c io n a lid a d e (co m “c ”) “orig in ária” dos pen sam en tos,
segundo a T C . Em outras palavras, a in ten sion alid ad e (com “s” - s e m â n ­
tica) das expressões verbais seria derivada, en q u an to a inten cio n alid ad e
(“so brecid ad e”) dos pensam entos seria primitiva.
Sellars vê problemas em ambas as co n cep çõ es, o que n ão me in ­
teressa aqui discutir - interessa-me o m od o co m o ele articu la uma c o n ­
ce p çã o alternativa, uma T C revista, que seria, en tre ta n to , com patível
co m a c o n c e p ç ã o de que pensam entos são episódios lingüísticos:

M eu problem a im ediato é ver se eu posso conciliar a idéia clássica de


que pensamentos são episódios internos que não são nem comportamento
pú blico [overt] nem im agens verbais e que são referidos propriam ente
em termos do vocabulário da intencionalidade, com a idéia de que as
categorias da intencionalidade são, no fundo, categorias semânticas próprias
às performances verbais públicas [overt] (Sellars, 1963a, p. 180).

O m ito de Sellars supõe que, em dado m o m en to , os hum anos só


teriam uma linguagem ryleana que permitiria u n ic a m e n te falar sobre
propriedades e o bjeto s públicos (a grosso modo, o bserváveis). Alguns
ad m item que essa linguagem, enriquecida co m co n d icio n ais s u b ju n ti­
vos, seria su ficiente para responder por todo o nosso discurso (atual)
sobre p e n sa m e n to s e ex p eriências, in clu in d o as e x p e riê n cia s im e d ia ­
tas. Sellars duvida disso e considera necessário en riqu ecer essa lingua­
gem co m categorias sem ânticas, o que permitiria responder por aquilo
que é c a r a cte rístico do pensam ento: a in te n c io n a lid a d e .33

11Para Sellars, de todo modo, asserções semânticas não são meros “resumos definicionais de asserções
acerca das causas e efeitos das perform ances verbais [nossas e dos outros] ” (1963a, p. 180).

309
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

Essa seria a primeira etapa no en riqu ecim en to da linguagem dos


nossos antepassados míticos. A segunda etapa seria a da introd ução de
uma linguagem teórica. Nesse ponto, Sellars faz em préstim o à discus­
são em filosofia da ciên cia sobre a estrutura das teorias científicas, que
envolve, por um lado, a distinção entre linguagem teórica e observacional
e, por outro, a distinção entre modelo e teoria.

6. Jo n e s foi um “g ên io ” ancestral que fundou, digamos assim, o


behaviorism o (m etodológico): ele propôs um m étodo para produzir n o ­
vos co n c e ito s (teóricos) do discurso m entalístico ordinário “a partir de
um vocabulário básico próprio ao co m p ortam en to público [o v e rt] ” (id .
ib id ., p. 18 4 ).
A linguagem ryleana original era, portanto, uma linguagem “re s­
trita ao vocabulário n ã o -te ó rico da psicologia beh avio rista” (id. ibid., p.
1 8 6 ) . Isso correspond eria, grosso m o d o, ao o p era cio n a lism o em física.
Por q u e im por essa re striçã o - p ergu nta-se Se lla rs - se em c iê n c ia s
co m o a física se é m u ito mais liberal no emprego de uma linguagem
teórica? Por que não fazer o mesmo num a psicologia (behaviorista)? Por
que n ão admitir que alguns co nceito s no behaviorism o te n h a m o status
de c o n c e i t o s te ó ric o s (ou seja, n ão defin íveis a partir de c o n c e i t o s
observacionais que se referem ao co m p ortam en to público)?
Essa foi a genialidade de Jones: introduzir essa linguagem teó ri­
ca no b eh avio rism o .34 Nos termos de Sellars, Jones

desenvolve uma teoria de que as vociferações [utterances] são somen­


te a culminação de um processo que começa com certos episódios in­
ternos. E suponhamos que o seu m odelo para esses episódios que iniciam
os eventos e que culminam em comportamento verbal público [overt]
é o do próprio com portam ento verbal público. Para Jones a causa do
comportamento não habitual de uma pessoa seria o “discurso interno”
(id. ibid., p. 187, grifos do autor).

14Sellars adverte que esses co n ceitos teóricos não têm de ser, necessariam ente, a respeito de
estruturas e processos neurofisiológicos. A psicologia pode m anter um status autônom o (id.
ibid., p. 185).
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

O co m p o rtam en to verbal é, portanto, usado por jo n e s co m o m o ­


delo analógico para os episódios internos.35 U m outro p on to im portante
é que a in te n c io n a lid a d e do m e n ta l é m od elada n a in ten sio n alid ad e
das expressões lingüísticas. Jon e s cham ou essas “entidades discursivas”
de “p e n s a m e n to ”.
O d ese n v o lv im en to da teoria de Jo n e s n ão tem de d ese m bo car
num a ontologia, co m o o dualismo de substância cartesiano. Jon e s pode
ter sido um realista, mas Sellars não se com p rom ete co m uma ontologia
particular: o m ito possui, claram en te, um caráter m etod o ló g ico . A “pu­
reza” dos episódios internos postulados por Jon es “(...) não é uma pu re­
za m etafísica mas, por assim dizer, uma pureza m etod ológ ica" (id. ibid., p.
187, grifos do autor).
Sellars tam bém observa que o M ito de Jon e s é com p atível co m a
h ipótese (histórica) de que “a habilidade para ter p e n sam en to s é ad­
quirida no processo de adquirir um discurso público e so m en te depois
que o discurso público estava bem e stab elec id o , o ‘d iscurso in t e r n o ’
ocorre sem a sua cu lm inação pública" (id. ibid., p. 18 8 ).
Esse seria o sentido em que o M ito de Jon es, na sua in terp reta­
ção, Hilan, seria “n ão -n a tu ra lista ”: “o espaço epistêm ico surge do d e ­
senvo lvim ento da nossa linguagem” (H2: 2). Porém, co m o vimos, Sellars
c o n c e d e so m e n te uma prioridade m eto d o ló g ica à lingu agem n a c o n s ­
tru ç ão de u m a teo ria sobre “episódios in t e r n o s ” ou “p e n s a m e n t o s ” e
n ã o u m a p rio rid ad e o n to ló g ic a (se é qu e isso faria s e n t id o ) . E essa
metodologia, no meu entender, é cla ra m e n te naturalista.

7. O que Sellars pretende, com o M ito de Jon e s, é mostrar que a


in ten sion alidade envolvida no co m p ortam en to verbal público é primitiva
e que a in ten cio n a lid ad e de estados mentais (p en sam ento s) é deriva­
da. Em que sentido? N o sentido de que a linguagem é to m ad a co m o
um m o d elo an alóg ico na co n stru ção de uma teoria do p en sam ento (e de
sua c o n e x ã o co m o co m p orta m en to ), uma T C revisada.

i5E, com o em toda analogia, há uma analogia negativa e uma positiva (Sellars não usa esses
term os de Hesse nem nada que corresponda à idéia de uma analogia neu tra). Em outras
palavras, a teoria e o m odelo não se identificam .
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

Sellars em prega, p o rtan to , em seu mito, o “m é to d o ” de c o n s t r u ­


ç ã o de c o n c e i to s teó rico s co m base em m odelagem an aló g ica, um “m é ­
to d o ” de g era ç ã o de teorias am p lam en te utilizado nas c iê n c ia s. Essa
p e ça de re flex ão filosófica ilustra a tese natu ralista de que os m é t o ­
dos da filoso fia n ã o são, f u n d a m e n t a lm e n te , d istin to s dos m é to d o s
cien tífico s (tra ta -se da m esm a “lógica” discursiva; ver id. ib id ., p. 1 8 9 ),
h a v e n d o uma c o n tin u id a d e (m etod o ló g ica) e n tre as duas atividades
in telectu a is.
C o m o seu m ito , S e lla rs p re te n d e e s c la r e c e r c o m o ( c o m que
método) se pode construir uma teoria científica em psicologia (behaviorista
ou “clássica”, c o g n itiv ista ). Ele expressamente afirma que está p re o cu ­
pado co m o behaviorism o metodológico e não co m o behaviorism o fi­
losófico (seja analítico, seja ontológico; id. ibid., p. 1 8 3 - 1 8 4 ) .
V o lt a n d o a q u e s t õ e s de o n t o lo g ia , e m b o r a S e ll a r s p a r e ç a , à
p rim eira vista, e sta r c o m p ro m e tid o co m uma m e ta fís ic a n a tu r a l iz a ­
da - ao se referir a um “qu ad ro to ta l c ie n t ífic o de h o m e m ” (id. ib id .,
p. 1 8 5 - 1 8 6 ) - v o c ê te m razão e m a le rta r-m e qu e isso seria trair as
i n t e n ç õ e s d ele. N a verd ad e, n o que diz resp eito ao h o m e m , Se llars
é c é t i c o q u a n to à possibilidade de se poder in teg ra r as im a gens m a ­
n ife s ta e c i e n t í f i c a de h o m e m (esta ú ltim a seria b a s e a d a n a b i o l o ­
gia, n a neu ro fisio lo g ia, na física, e t c . ) . V o cê assin ala o t r e c h o p e r ti­
n e n t e : “ ( ...) p a ra c o m p l e t a r a im a g e m c i e n t í f i c a n ó s p r e c i s a m o s
e n r iq u e c ê - la , n ã o c o m mais m odalid ades de se dizer o qu e é o caso,
mas c o m a lin g u a g e m da c o m u n id a d e e das i n t e n ç õ e s in d iv id u ais
( . . . ) ” (id. ib id ., p. 4 0 ) .
N esse tr e c h o , Se lla rs está d e t e n d o -s e , em particular, ao te m a
do livre-a rbítrio , nas dim ensões ética, dos direitos e deveres, etc. Ele,
de fa to , a c r e d it a q u e “ (...) a irred u tib ilid a d e do que é p e sso al é a
irredutibilidade do ‘dever s e r ’ ao ‘s e r ’” (id. ib id ., p. 3 9 ) . Essa o b je ç ã o à
fam igerada “falácia n atu ra lista ” é b a sta n te co m u m , mas te m sido e n ­
fr e n t a d a pelos n a tu r a lis t a s . A n t e s disso, S e lla rs ta m b é m a p re s e n ta
o b je çõ e s a te n ta tiv a s de se id en tificar as sen saçõ es a processos n eu ro -
fisiológicos, a n te cip a n d o a discussão atual em filosofia da m e n te , em
to rn o da irred u tib ilid ad e das propriedades f e n o m ê n ic a s (q u a lia ).

312
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

P ortan to, é pertinen te você ressaltar que Sellars “ (...) pensa que
a nossa visão cien tífica do mundo deve acom odar todo o vocabulário
c o n c e r n e n t e a pessoas (in tencio n alid ad e, ação, co nteú d o s, etc.) para
que possa interagir co m o espaço epistêm ico” (H 2: 2). Isso tam bém se
p a r e c e c o m a p ro p o sta dos n e w to n ia n o s de am pliar a o n to lo g ia da
c iê n c ia m o d ern a! D essa m aneira, Sellars preten de evitar, de um lado,
o d ualism o (de tipo ca r te s ia n o ), de outro, uma postura n ão -realista a
resp eito das en tid ad es postuladas pela im agem c ie n tífica de hom em .

8. A m in h a posição é que ampliar a ontolog ia, co m o pretendem


M c D o w e ll, Se llars e você, deve ser um último recurso. A simplicida-
de o n t o ló g ic a p a r e c e - m e um valor f u n d a m e n ta l e re n d e u frutos no
passado. E n fr e n ta r dificuldades desse modo - e p ro v a v e lm e n te a n a ­
tu raliza ção das propriedades m entais e ep istêm icas será a mais difícil
das tarefas - ou arg u m en tar a p riori sobre o fracasso de um p ro jeto
d esse tip o , c o m o fazem , de d if e r e n te s m a n e i r a s , M c G i n n , S e a r ie ,
C h a lm e r s, M c D o w e ll e, de ce rto modo, Sellars, soa, para mim, sim ­
ples e s s e n c i a li s m o o b s c u r a n tis ta . V o cê e x p r e s s a m e n t e r e je it o u essa
saída “f á c i l” em H l .
E im po rtante, contudo, ressalvar que o natu ralista admite, per­
feitam en te, que possam vir a ocorrer mudanças radicais em nossa im a­
gem de natureza. Temos exemplo disso num passado recen te, por exemplo,
c o m a teo ria da relatividade. E ainda não absorvem os to ta lm e n te as
m u d an ças nessa im agem que são implicadas pela teoria q u ân tica (se a
interp retarm os de modo realista). O que o naturalista defende, de todo
modo, é que tais m udanças devem se apoiar nas m elhores teorias c ie n ­
tíficas disponíveis e não em especulações que ignoram o c o n h e cim e n to
disponível, inclu ind o as evidências empíricas. E há muito a ser ex p lo ­
rado, para abordar as questões que nos interessam aqui, em neurofisiologia,
psicologia cognitiva, biologia evolutiva, teoria dos sistemas complexos,
i n t e lig ê n c ia artificia l, etc.
O s m étodos a serem adotados são os velhos e bons procedim entos
envolvidos na co n stru ç ão de teorias, modelos (com o exemplifica o uso
de analogias por Se llars-Jo nes) e no co n fro n to das suas conseqüências

313
Paulo A b r a n te s e H ilan B en su san

com os dados empíricos disponíveis, o que envolve usualm ente um p e ­


n oso trabalh o ex p e rim e n tal. Q u e c o n t r ib u iç ã o , p o d e -se perguntar, a
filosofia pode dar a esse em p reen d im en to ? B em , os filósofos sem pre se
m o stra ra m e s p e c ia lm e n te hábeis na análise de c o n c e i t o s e de argu­
m e n to s - en v o lv en d o a sua fertilidade, validade, e x p lic ita n d o os seus
pressupostos, ex p lo ran d o as suas co n se q ü ê n cia s, etc. no e x e r c íc io
da im a g in a çã o (em G ed a n k e n ex p er im erite, co m o no m ito de S e lla rs ),
na c o m p a ra ç ã o e ev e n tu al in teg ração de teorias con struíd as em d ife ­
ren tes dom ínios, em bu sca de um quadro amplo e c o n s is te n te de h o ­
m e m e de m u n d o , e t c . C o n v é m lembrar, c o n t u d o , qu e os m é to d o s
en v o lv id o s nessas atividades nada têm de e s p e c if ic a m e n te “filosó fi­
c o s ” , e fazem p arte dos recu rsos in te le c tu a is ta m b é m utilizados, em
m aior ou m e n o r grau, por cie n tista s. E n tr e ta n t o , há ta m b é m d iv e r­
g ên cia s a esse resp eito e n tre os n atu ralistas “m e to d o l ó g i c o s ”, co m o
assinalei na m in h a missiva anterior.

9. D e toda forma, in d e p e n d e n te m e n te da in te rp re ta ç ã o que se


dê ao M ito de Jo n e s, uma história da “em erg ên cia” de um esp aço de
razões só satisfará ao naturalista se ela estabelecer uma gradação c o n ­
tínua - sem introduzir saltos ou apelos supernaturalistas (o que D e n n e t t
c h a m o u de sk y h o o k s) - en tre as propriedades típicas da linguagem e
do espaço de razões (e seu enraizam ento nos processos e propriedades
m entais) e propriedades mais “primitivas” (no sentido ev o lu c io n ista),
cada vez mais próximas das propriedades e processos fundam entais (fí­
sicos, c o m p u ta c io n a is , e t c . ) . H á te n ta tiv a s in te re ssa n te s n essa d ir e ­
ção. Penso, por exem plo, em D e n n e t t ( 1 9 9 1 , 1 9 9 5 ) e em H u m ph rey
( 1 9 9 3 ) . C ito um po sicionalm ento típico nessa direção, por parte de um
filósofo natu ralista que desenvolve uma epistemologia evolucionista:

A m otivação fundam ental [dessa epistem ologia] é o desenvolvim ento


de uma concepção unificada de vida; deseja-se que a cognição rebai­
xe-se [grade off] ao longo da seqüência evolutiva, de m odo que suas
formas atuais possam ser vistas como a m anifestação atual de processos
mais fundamentais. Assim, por exemplo, o juízo cognitivo rebaíxa-se [grade

314
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

offj à resposta condicionada, depois à reação e, em última instância, à


ação física. E as instituições científicas rebaixam -se [grade off] a formas
de estratégia colaborativa baseadas no com partilham ento da inform a­
ção e estão enraizadas, em última instância, em sistem as cooperativos
bioquímicos (e.g.celular) (Hooker, 1995, p. 300).

Externalismo

10. O extern alism o que você aceita, suspeito, é muito diferent


d a q u e le u su a lm e n te d efend ido por te ó rico s do c o n h e c i m e n t o . V ocê
adm ite que s saiba que p mesmo que não seja capaz de apresentar uma
ju stificação , “desde que uma justificação para p possa ser apresentada”
ou que “justificações possam ser reconhecidas por pessoas que não se-
ja m aquelas que têm a c r e n ça (que c o n h e c e m ) ” (H2: 3).
U m e x tern alista, con form e o seu perfil usual, adm ite que s te-
n h a c r e n ç a ju stifica d a de que p mesmo que razões para a c r e n ç a de
que p n ã o possam ser “ap re sen tad as” por nin guém (em dado m o m en to
histó rico , em b ora elas possam, e v e n tu a lm e n te , vir a ser apresentadas
n o futuro, c o m os progressos que se consiga nas c iê n c ia s re lev an tes).
Basta, sim plesm ente, que exista ou se dê (por exemplo) uma co n e x ã o
causal en tre a c r e n ça de s e um estado de coisas no mundo (co n ex ão
e v e n t u a l m e n t e ain d a d e s c o n h e c i d a por t o d o s ) - n u m a das versões
ex ternalistas - ou ainda que os processos de geração de c r e n ça sejam
c o n f i á v e i s ( m e s m o q u e n in g u é m saiba d isso ), n u m a o u t r a v ersã o
ex te rn a lista , para que s te n h a c o n h e c im e n to de que p. Assim, não é
necessário, para que eu te n h a uma cren ça ju stifica d a de que estou n e s­
te m o m e n t o d ian te de uma tela de computador, que eu (ou alguém)
saiba algo a respeito do co m p lexo processo (físico e neurofisiológico)
envolvido na m inha percepção da tela do computador, e que gera essa
m inh a cren ça, desde que esse processo perceptual seja, de fa to , “co nfiável”.
É nesse sen tid o que o ex tern alism o na teoria da ju stific a ç ã o é
“na tu ralista ”: a justificação de uma cren ça pode se dar fora do “espaço
de razões”, simplesmente no “espaço de leis (ou de ca u sa s)”.

315
P aulo A b ran te s e H ilan B en su san

Em seu co m e n tário sobre o internalismo de Pollock (H 2: 3 ), você


reafirma que “não basta que m inha norma seja confiável, eu te n h o que
s a b e r q u e e l a é c o n f i á v e l ” , a t r i b u i n d o a e l e e s t a “ r e f u t a ç ã o do
e x tern alism o ”. A c h o que você está in terp retand o -o in c o rreta m en te: o
fato de a norm a ser interna não implica, na teoria de Pollock, que ela
seja “r e c o n h e c id a ” pelo sujeito em que ela é ativa. Pollock afirma, por
exem plo: “ (...) essas norm as são internalizadas de um m od o que per-
m ite que o nosso sistem a nervoso ce n tra l as siga de uma forma au to -
m á tica , sem qu e te n h a m o s que pensar sobre e la s” ( 1 9 8 6 , p. 1 3 3 ; grifo
m e u ). M ais ad ia n te , ele e s c la r e c e que

(...) o sentido no qual [as normas] devem ser diretamente acessíveis é


que o nosso sistema de processamento automático deve ser capaz de
acessá-las sem que nós primeiramente façamos um juízo sobre se nós
estamos nas circunstâncias daquele tipo. Nós devemos ter acesso não-
epistêmico (id. ibid.).36

Nesse sentido é que Pollock se considera um crítico do externalismo,


mas isso não o faz inserir tais normas num suposto “espaço de razões”,
co m o você defende, na linha do que Pollock critica co m o um “modelo
in telectu a lista”. C o n tra ria m en te a esse “m o d elo ”, as normas de Pollock
são “n ã o -d o x á s tic a s ” (id. ibid., p. 137). Por último, para que não restem
dúvidas a respeito do naturalism o de Pollock, ele afirma: “Q uais p ro ­
priedades são d iretam en te acessíveis é uma questão em pírica a ser re s­
pondida por psicólogos” (id. ibid., p. 135).
S e a m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o do que se c o n v e n c i o n a c h a m a r de
“e x t e r n a lis m o ” em epistem ologia é co rreta, e n tã o v o cê n ão pode ace ita r
essa tese do n atu ralism o, sob pena de en trar em c o n t r a d iç ã o c o m as

^ N o ta r que Pollock está equ acionand o “epistêm ico” ao que eu ch am ei de “doxástico". Isso
poderia ser questionado pelo externalista, na medida em que a cond ição deste últim o para a
justificação de uma crença é “epistêm ica” - a o passo em que é uma condição para que se tenha
conhecim ento - mas não é doxástica. De toda forma, uma teoria naturalista do conhecim ento,
a meu ver, terá de ser mais abrangente do que uma teoria unicam ente a respeito do sujeito do
conhecim ento.

316
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

suas outras c o n v ic ç õ e s. C aso contrário, v o cê se descobrirá mais n a t u ­


ralista do que estava in icia lm e n te disposto a aceitar!
Por fim, n o c o n t e x t o dessa discussão sobre o ex tern alism o , seria
i n t e r e s s a n t e se v o c ê p u d esse e s c l a r e c e r m e lh o r em q u e s e n t id o a
re fo rm u laç ão “prag m atista” que B ran d o m propõe para o confiabilism o
de G o ld m a n (que é, usualm ente, consid erad a uma posição extern a lista)
n ão é “n a tu ra lista ”. N a m in h a última missiva eu sugeri que algumas
posições de B ra n d o m p arecem ser com patíveis co m alguma versão do
n a tu ra lism o , na m edida em que, se o e n ten d i c o r r e ta m e n te , ele p ro ­
põe uma r e d u ç ã o de norm as a práticas epistêmicas, práticas estas que
pod eriam , em princípio, ser descritas (h oje ou algum dia) pelas c i ê n ­
cias sociais (por exemplo). Você afirma que considerar o espaço epistêmico
co m o sui g en eris “im pede que o to m em os co m o um d e p a rta m e n to do
d o m ín io das c au sas ou do d o m ínio das no rm as s o c i a is ” (B e n su sa n ,
2 0 0 1 , p. 7 ). Essas norm as seriam, nesse caso, “e x t e r n a s ” (cf. seu uso
de “no rm as ep istêm icas e x t e r n a s ” em seu co m e n tá rio sobre a posição
de P o llo ck ; H 2 : 3 ). S e in terp reto bem a sua posição e a de B ran d o m ,
elas são d ific ilm e n te com p atíveis.

Boyd

11. Q u a n t o à sua reformulação da tese B oy d , que eu havia in ter


pretado co m o co eren tista na sua primeira formulação, B o y d * incorpora
a relação de nossas cren ças co m um “m u nd o ” objetivo e, portanto, abre
esp aço para o ex tern alism o . D e toda forma, o n atu ralista ce rta m e n te
rejeita o fundacionalismo, se esse é o teor da tese.
A p o n t o , para finalizar, uma te n sã o , qu e n ã o h a v ia p e rce b id o
an tes, en tre a tese B o y d e a tese D es co b erta , j á que a primeira afirma
que a ep istem o lo g ia n ão tem de tratar da “orig em ” das cr e n ç a s, e n ­
q u a n to a últim a dá a devida im p o rtância ao c o n t e x t o de d escoberta
e, p o rta n to , à qu estão da origem das nossas cr e n ç a s (de co m o teorias,
h ip óteses, e t c . são geradas). V ocê p ro va velm ente estava p e n san do na

317
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

origem p sic o ló g ic a das cre n ça s, mas isso pode, le g itim a m e n te , ser in ­


co rp orad o ao “c o n t e x t o de d e s c o b e rta ” c ien tífica .
I n d e p e n d e n t e m e n te dessa tensão , se é que v o cê c o n c o r d a que
ela existe, a tese D esco b erta tem, de fato, um “sabor” n aturalista, pois
vincula descoberta e justificação, o que foi rejeitado por co rren te s não-
naturalistas históricas, co m o o empirismo lógico.

Missiva H 3

Paulo,

What is important is not that there sfioudn’t be more things dreamt up in


your philosophy than there are in reality, but that there shouldn’t be more to
reality than is dreamt up in your philosophy. Start with as broad an ontology
as you reasonably can; develop it and add to it as you see fit; pare it down,
or change it somewhat [...] look at parts o f it in many different ways, but
whenever you feel tempted to reject outright some o f these parts, m ake sure
that you are not simply bigoted - or be clear that you are.11 O sw aldo
Chateaubriand

1. A epígrafe de C h a tea u b ria n d , uma vez mais, é uma p r o v o c a ­


ção. N a m in h a primeira missiva ( H l ) , a epígrafe nos co n v id av a a não
argum entar que o p rojeto que criticam os é impossível. Agora, ela convida
a n ã o supor que o p ro jeto que criticam os faz p o stu laçõ es em demasia:
ela pede por um d e sarm am en to de nossas navalh as de O c k h a m . V ocê
diz que “ [a] sim plicidade o n to ló g ica p a re ce -m e um valor f u n d a m e n ­
tal e re n d e u fru to s n o p a ssa d o ” (P 2: 8 ) . E v o c ê c o m p a r a a m in h a

17Tradução minha: “O que é importante não é que não haja mais coisas sonhadas na sua filosofia
do que há na realidade mas que não haja mais realidade do que que é sonhado pela sua filosofia.
Comece com uma ontologia tão ampla quanto puder, adicione elementos quando parecer
apropriado, corte partes, mude alguns elementos, examine todas as partes de muitos modos
diferentes, mas quando você sentir-se tentado a rejeitar completamente alguma destas partes
esteja certo que você não está sendo intolerante - ou assuma que você está sendo intolerante”.

318
Conhecimento, ciência e natureza.- cartas sobre o naturalismo

in sistê n cia em c o n c e b e r o esp aço das razões c o m o su i g en eris c o m a


inclusão, por parte de alguns new tonian os, da gravidade na lista das
propriedades primárias da m atéria. T e n h o muitas suspeitas q u a n to ao
uso indiscriminado do princípio de simplicidade: a simplicidade é m u i­
tas vezes uma d im en são im p o rta n te de uma m a n e ira de pensar, mas
outras vezes ela faz co m que joguemos fora pedaços relevantes do m u n ­
do, ju n to co m alguma in ó cua água de banho. E m outras palavras, m e ­
lhor afiar a navalha co m Einstein: as sim ple as possihle but n ot sim p ler.38
U m a m aneira cega de aplicar o princípio de O c k h a m é fincar o
pé em uma ontologia e passar a navalha nas acusações de que a ontologia
é in c o m p le ta . Penso qu e o d ebate sobre o n atu ra lism o é em grande
medida um d eb ate sobre a m elho r m an eira de c o n c e b e r c o m o nosso
c o n h e c i m e n t o da natureza pode ser pensado co m o send o parte dela.
Ele envolve, portanto, uma discussão sobre a n o ção de natureza, bem
co m o o tem a de co m o é possível nosso c o n h e c i m e n to dela. Eu argu­
m e n tei ( H l ) que en ten d er processos epistêmicos em termos naturais e
e n te n d e r estes term os, co m o abrang end o apenas leis, d eix a -n o s sem
recursos para en ten d er nossos pensam entos de uma forma que permita
que arg u m e n te m o s que eles podem co n stitu ir c o n h e c i m e n t o sobre o
mundo. O naturalism o convida-nos a pensar na inserção de nossos p e n ­
sam en tos na natureza de um modo que torna im possível que eles t e ­
n h a m qu a lq u er possibilidade de objetivid ad e. O ra , n ã o p arece a p ro ­
priado, e n em mesmo seria possível, defender o naturalism o co m uma
n a v a lh a de O c k h a m na mão, a p o n tad a para propostas, c o m o as de
M cD o w e ll ( 1 9 9 4 ) , segundo as quais devemos adotar uma m an eira di­
fere n te de c o n c e b e r a natureza. N ã o é apropriado porque essa outra
co n c e p ç ã o da natureza n ão pode ser entendida apenas co m o a adição
de ele m e n to s a p a re n te m e n te supérfluos. N ã o é possível porque, se o
argumento que pesa co n tra o naturalismo vale, a n avalh a não b arb e a­
ria nad a, pois n ã o h av eria nad a em dem asia em u m a c o n c e p ç ã o da
natureza que abrisse espaço para um âmbito irred utivelm ente epistêmico.
V ocê en tão classifica co m o quim érico o projeto de uma c o n c e p ç ã o da

“ Tradução m inha: "tã o simples quanto possível, mas não mais sim ples”.

319
P aulo A b ran te s e H ilan B e n su san

natureza desse tipo, projeto o qual eu m e n c io n o no fim de m in h a últi­


ma missiva (H 2: 5 ). N ã o consigo en ten d er co m o essa cla ssificaçã o se
justifica; você parece insinuar que a nossa m aneira atual de en ten d er
a natureza é a única possível. Se esse for de fato o caso, talvez tenhamos
de assumir que o espaço das razões é algo que se situa fora da natureza e
que, e n tão , te n h am o s de nos c o n c e n tr a r em pontes, cerca s, válvulas,
fronteiras e em tudo co m o que os dualistas se ocupam .39 Penso que uma
n o ção diferente de natureza (e de m e n te )40 pode proporcionar não uma
alternativa às teorias científicas, mas uma maneira de superar os proble­
mas epistemológicos que a nossa maneira de enxergá-las provoca.

2. V ocê tam bém diz que M cD o w e ll ignora resultados relevantes


das ciê n c ia s co g n itivas. Eu a c h o que muitos filósofos ig no ram re su l­
tados re le v a n te s das c iê n c ia s cognitivas e ta m b ém a c h o que muitos
c ie n t is t a s da c o g n iç ã o ig n o ram c r ític a s e a rg u m e n to s r e le v a n t e s da
filosofia. O s naturalistas tend em a enfatizar c o rreta m en te que os n o s­
sos instintos cognitivos são compostos de processos que podem ser des­
critos por m eio de leis, e qu e afetam o esp aço das razões. H á nessa
interface um c o n ju n t o de questões muito profícuas, que o naturalismo,
co m p ro m e tid o c o m alguma forma de re b a ix a m e n to (utilizando a e x ­
pressão de H o o k e r que você cita em P2: 9) de tudo o que é epistêm ico
ao d o m ínio das leis, tem poucos recursos para lidar ad eq u ad am en te.
O natu ralism o, n ão tend o esses recursos, lim ita-se a to rc er para que

* C o m o você sabe, eu não ach o que um fisicalism o não redutivo seja possível, mais ou menos
pelas razões que apresenta Kim (1 9 9 8 ). Mas hoje tendo a ter poucas esperanças de que um
projeto exp licitam en te dualista possa tratar adequadam ente as nossas ansiedades sobre as
continuidades na natureza. A ch o que tendo a favorecer uma posição em filosofia da m ente que
repense algumas de nossas suposições centrais sobre a m ente, por exem plo, que não a conceba
com o um órgão.
® U m a no ção de m ente que a entende com o separável das atitudes e disposições do corpo - ou
seja, com o um orgão - nos faz entender, por exem plo, o pensam ento com o desvinculado de
qualquer in ten çã o ou propósito; com o se o pensam ento pairasse no ar d escon ectad o do seu
conteúdo e, os estados m entais em geral, desvinculados de ações e com portam entos. U m a vez
posta a no ção de m ente desta m aneira, cava-se um fosso entre m ente e corpo: o problem a
passa a ser encontrar alguma conexão. N a verdade, devemos procurar uma m aneira de co n ce­
ber os estados m entais que não produza um tal fosso.
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

algumas suposições do senso co m u m sobre a o b jetivid ad e e a ju stifi­


c a ç ã o das teorias cien tíficas não sejam co n testa d a s - n ã o pode, por-
ta n t o , a r t ic u l a r u m a re sp o sta c o n s i s t e n t e ao c é t i c o e ao d e s c r e n t e
(ver H l : 4)- O n atu ralism o, co m o eu disse em H 2 : 2, é um p o n to de
partida para investigar a in terface en tre leis e razões, e n tre regulari-
d ades e regras, e n t r e im p a c to s cau sais e j u s t if ic a ç õ e s . A s c i ê n c ia s
co g n itiv as têm o que co n trib u ir nessa in v e stig aç ã o , mas n ão parece
ser o caso de toda c iê n c ia cognitiva precisar estar co m p rom etid a com
o n atu ralism o . A c h o que ela pode co n tribu ir de muitos modos co m a
tarefa de co m p ree n d e r o c o n h e c im e n to (Bensusan, 1 9 9 9 ) . Porém há
que se m a n te r em m e n te que muitas vezes ela exibe uma ig n o rân cia
de problem as e ansiedades filosóficas. M uitas vezes, ela dá co m o c e r ­
tas te ses q u e foram c r itic a d a s em longas d iscu ssõ es filo só fic a s (do
passado e do p r e s e n t e ) .41 O u tras vezes ela assume posições filosóficas
p ro b lem átic a s, sem d eter-se na a rg u m e n ta ç ã o .42 Penso que a c iê n c ia
co g nitiva, e a co m p ree n são da co g n ição, só te riam a g anh ar se c o n s i­
d erassem m e lh o r os trabalhos dos filósofos.43

41 Um exem plo interessante é a ignorância acerca do problema da indução e de suas conseqüên­


cias exibida pela comunidade de aprendizagem m ecânica - que se dedica a elaborar algoritmos
que são capazes de induzir - até os resultados de Schaffer (1994) e W olpert (1 9 9 6 ). Eu, em
conversas pessoais e em discussões de trabalho, percebo que ainda hoje as conclusões de Hume
aparecem , para a comunidade, muitas vezes, com o surpreendentes e am eaçadoras.
42 C antw ell Sm ith (1 9 9 6 ), por exem plo, não tem grande pudor em assumir que a coisa em si,
para além do que é constituído com o ob jeto do nosso co n h ecim en to por m eio de nossas
capacidades conceptuais e perceptuais, pode ser, ainda que grosso modo, descrita. Na visão
interacionista da cognição apresentada por Indurkhya (1992, p. 1 7 0 -1 8 7 ), há a suposição de
um m undo extern o que tem um papel na acom odação de nossos modelos cognitivos. U m tal
papel desem penhado por um mundo extern o à nossa percepção é o que vem sendo objeto de
crítica em todos os argum entos contra o empirismo (entre os quais alguns, de acordo com
Hegel, se aplicariam tam bém a K a n t). Esse desconhecim ento de discussões e debates filosófi­
cos, contud o, não tira o m érito das contribuições da ciência cognitiva. Indurkhya, que você
com para com M cD ow ell em P2: 2, parece oferecer idéias m uito interessantes sobre nosso
sistem a cognitivo.
4,N ão qu ero dizer que M cD ow ell é apenas mais uma vítim a, do ou tro lado da cerca , dos
infortú nios da divisão de trabalh o acerca da co gn ição hum ana. Insisto que, em grande
medida, o trabalho da ciência cognitiva não é relevante para o esforço de elaborar um modo
de pensar sobre o m undo que en ten d a que ele nem é alheio aos nossos co n ceito s e nem é
uma província deles.
Paulo A b ran te s e H ilan B en su san

3. Essa incursão pelas ciências cognitivas deve ter suscitado em


você mais algumas in q u ietaçõ es sobre co m o eu me posiciono sobre o
caráter a p riori das teses filosóficas, co m o você m e n c io n o u em P2: 1.
Penso que sempre, n o c o n h e c im e n to de senso c o m u m e no c o n h e c i-
m e n to científico, supomos que certos juízos apare n te m en te a p riori são
válidos - sempre endossamos um esboço de posição filosófica. A filoso­
fia, mas não toda ela e não apenas ela,44 ex am in a esses juízos e pode
fazer esse ex am e co m base no pen sam ento que o nosso sistema de c o n ­
ceitos torna possível. N ã o penso que há c o n h e c im e n to a p riori acerca
do mundo, garantido por uma in telectuelle A n sch au u n g im ediata e não-
c o n c e p tu a l.45 In tuiçõ es são inseparáveis de co n c eito s; c o n c e ito s são o
que permite que a intuição veja alguma coisa. D e um modo geral, eu
não vejo porque descartar argumentos filosóficos pela razão de que eles
te n ta m mostrar algo a priori. Porém, uma vez que rejeitam os que certos
juízos são produtos puros de alguma in tu ição , ou pura estip ulação de
significado, a idéia de uma epistemologia especial para os juízos a priori
perde força. Penso que algumas questões da epistem ologia são q u e s ­
tões para as quais juízos a p osteriori da ciên c ia são irrelevantes. M eus
argumentos co n tra o naturalismo, por exemplo, argumentos sobre com o
devem os c o n c e b e r o esp aço das razões, são argum entos d istan tes do
trab alh o cie n tífico . Talvez, em algum sentido, essas qu estões e argu­
m entos sejam a priori.
A s relações da epistemologia co m a c iê n c ia são, em todo caso,
c o m p l e x a s . T r a t a - s e de n o v o da i n t e r f a c e e n t r e ra z õ e s e le is: a
epistemologia não se encarrega da origem de nossas cren ças, mas, por
fim, deve lidar co m ela. É assim que eu v ejo a ten são en tre as teses
D esco b erta e B oy d ou B o y d * em H 2 - de H l , co m o você m e n c io n a em
P2: 11. H á tensão, n ão há incom patibilidade; B o y d * fala do papel da

14 Em term os gerais, quanto à relação entre filosofia e ciência, não tenho problemas em sim pati­
zar com a tese de seu naturalism o am eno segundo o qual a irrigação m útua de idéias é o
cam inho que deve ser seguido (P2: 4) ■Claro que nem toda filosofia é relevante para a ciência
e vice-versa.
45Veja, a esse respeito, o capítulo “Alguns racionalism os e empirismos con tem p orân eos” da
presente coletânea.

322
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

ep istem ologia, e re je ita o fund acionalism o, e D es c o b e rta trata da ne-


cessidade de considerar, n o tratam e n to da ju stificação , a descoberta.

4. Q u a n t o à c o n c e p ç ã o de Laud an da racio n alid ad e e da d in â ­


m ica da c iê n c ia , n ão foi dito em H 2 que o m od elo reticu lad o é n a t u ­
ralista; apenas que ele pode servir aos propósitos naturalistas. O n a ­
turalismo norm ativo serve aos propósitos naturalistas de maneira ainda
mais clara, uma vez que pretende reduzir normas metodológicas a leis
da d in â m ica c ie n t ífic a . A lgo sem elh an te deseja P ollock qu and o p re­
tend e e n te n d e r norm as epistêmicas em termos de leis cognitivas. Em
ambos os casos, as normas são concebidas co m o normas internas, que
não apelam para nada que n ão esteja presente na dinâm ica da ciência
ou da revisão de cren ças. Isso mostra, co m o v o cê sugere em P 1: 2, que
o projeto naturalista não requer externalismo. Também, o internalismo
n ão requer que nós sejamos capazes de re co n h e c e r a norma, co m o você
apontou em P2: 9. D e fato, dei a en ten d er (H2: 3) que o internalismo
de P ollock requer que nós saibamos que a norm a seja confiável, o que
n ão é o caso. V ocê te m razão tam bém em considerar que m inha tese
E x te r n a lis m o e m H l n ão é um e x te rn a lis m o to ta l - tr a ta - s e de um
e x te rn a lism o fraco, co m o eu disse em H 2: 3. O ex tern alism o fraco é
uma tese que eu com partilho com o naturalista. Prefiro, contudo, e n ­
t e n d e r o c o n f ia b i li s m o da m a n e ira q u e B r a n d o m ( 2 0 0 0 ) e n t e n d e :
co nfiabilid ad e é sempre relativa a um m a rco de referência, que deve
ser d eterm in ad o por alguém. Insisto que alguém tem de poder justifi­
car as cren ça s para que elas possam ser confiáveis para alguém e to m a­
das co m o justificadas. Discordo, é claro, da c o n c e p ç ã o de razão e do
inferencialism o de B ran d o m que, me parece (Bensusan 2 0 0 1 ) , termina
por ter de abrir mão do caráter sui generis do espaço epistêmico.
Esse caráter sui generis do espaço epistêm ico parece oferecer um
problem a para que se possa esboçar a sua origem. O naturalism o seduz
m ed ian te a impressão de que co m suas premissas ficará mais fácil im a­
ginar esse espaço. Em H 2: 2 eu m e ncio n o o M ito de Jon es, inventad o
p o r S e l l a r s ( 1 9 6 3 a ) , p ara m o s t r a r c o m o é p o s s ív e l u m a h i s t ó r i a
(e sp e c u la tiv a ) do esp a ço das razões que n ã o se c o m p r o m e ta co m o

323
Paulo A brances e H ilan Ben susan

natu ralism o. D e acordo co m esse mito, termos co m o “p e n s a m e n to ” t e ­


riam sido introduzidos por um gênio (paleo -)filo só fico que procurava
explicar regularidades a c e rc a do co m p o rta m e n to que a linguagem da
ép oca já permitia identificar. Sellars en ten d e a c o n stru ç ã o de um v o ­
ca b u lário te ó ric o co m o parte do m étod o (cie n tífic o e filosófico) que
utilizamos para com p reend er o mundo. Eu en ten d o que Sellars tentou
m ostrar co m isso que, co m o Jon e s instituiu os termos que to rn am possí­
vel o esp aço das razões, torn ou possível que nos d escrevêssem o s em
termos de pensam en tos e de outros episódios internos. Sellars en tend e
a teoria de um modo realista: Jon e s descobriu episódios internos. U m
natu ralista gostaria de ver a teoria de Jones reduzida a alguma teoria
que não envolvesse nada de epistêmico. Sellars ( 1 9 6 3 a , parágrafo 61)
pensa que tal redução não seja possível: o espaço das razões depende
de pessoas (sentient things). D e todo modo, o esboço de história especulativa
de Sellars permite que entend am os de que modo o espaço das razões,
locus da em preitada epistemológica, foi incluído em nossa visão de mundo.

5. Penso, co m o já disse acima, que a discussão sobre o n atu ra lis­


mo deve co lo ca r em questão a nossa imagem da natureza: é preciso que
nossas atividades de p e n sam en to sobre o m undo e de ju s tific a ç ã o de
c r e n ç a s possam ser entend idas co m o naturais. D e fato, a controvérsia
aponta para a necessidade de rever nossa maneira habitual de entender
a interface entre a racionalidade e a natureza. Q uerem os poder pensar
sobre o mundo co m autonomia - garantir a espontaneidade do en tend i­
m ento sem c o m isso sermos excluídos da natureza. N ã o é apenas a
ciência que deve arbitrar o que é racional conceber com o natural.

As últimas missivas

Hilan: o que está em jogo no debate acerca do naturalismo

O n a tu ralism o é uma te n tativ a de inco rpo rar o esp a ço das ra ­


zões na nossa c o n c e p ç ã o de natureza, co m o uma a rtic u la ç ã o de leis.

324
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

As im plicações para a epistemologia, co m o enfatizo desde H l , são dra­


m á tica s . C a so e v e n to s e processos ep istêm icos sejam en ten d id o s em
termos de leis, n ão há, de acordo co m o modo co m o eu vejo, co m o dar
sentido a no çõ es com o con h ecim en to, justificação, interpretação e dúvida;
ou seja, n ão há co m o compreender a idéia de que nossa visão do m u n ­
do, de a lg u m a m a n e i r a , r e s p o n d e ao m u n d o . D e u m a m a n e i r a
esquem ática, te n to fazer uma lista dos temas que surgiram no debate e
que considero co m o os mais importantes.

I) Nossa imagem da natureza: em que sentido podemos evitar


fo r m a s de d u a lis m o e, a in d a a ssim , p r e s e r v a r o c a r á t e r
irredutível do espaço das razões. Isto nos rem eteu, em P2 e
H 3, a uma discussão sobre a navalha de O c k h a m . Penso que
essa nav alh a deve ser afiada com muito cuidado e co m a t e n ­
ção a muitas de nossas ansiedades filosóficas, que não sosse­
gariam c o m a busca da simplicidade a q u a lq u e r preço, ou
seja, co m uma motoserra de O ck h a m .
II) O que significa cada uma das teses que eu com p artilho ( H l )
co m o naturalismo e que conseqüências elas teriam quando
tomadas em con jun to? Em particular, nos c o n c en tra m o s muito
no externalism o. Eu aceito uma forma fraca de naturalismo
e insisto que um externalism o mais forte é m elhor construído
de uma forma não-naturalista. Penso que uma posição com o
a do realismo natural de P utnam ( 1 9 9 4 ) , ou a de M cD o w e ll
( 1 9 9 4 ) , seja a m elhor maneira de construir um extern alism o
em ep istem ologia (e, talvez, tam b ém em s e m â n tic a ). C o n ­
cordo co m a crítica de B ran d om (2 0 0 0 ) a G o ld m an (1 9 7 6 ),
mas e n ten d o que a posição de B ran d o m n ão é satisfatória.
II I) Concordam os que há uma interface entre o espaço das razões
e as leis naturais. Penso que há que investigar essa interface e
que, co m este objetivo, alguns resultados das ciências cognitivas
podem ser relevantes. Analogamente, resultados da epistemologia
d e v e m in f o r m a r a c i ê n c i a c o g n it iv a . E las, c o n t u d o , tê m
tarefas e o b je tiv o s d iferentes. Tudo isso n ão nos e x im e da

325
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

obrig ação , c o m um sistem a de m u n do equilibrad o, de ter o


que dizer co m respeito às in tera ç õ es en tre leis e razões.
I V ) O n a tu ra lis m o p a re ce ter a v a n ta g e m de, a p a r e n te m e n te ,
ter mais recursos para explicar co m o o espaço das razões se
originou de um mundo de leis. O preço dessa van tag em p a ­
rece ser a gradual substituição do espaço das razões por um
in sa tisfa tó rio e r s a t z ■ N esse sen tid o , a c o n t r o v é r s ia do n a ­
tu ralism o a s se m e lh a -se c o m a c o n tr o v é r s ia do fisicalism o.
O fisicalismo, grosso modo, parece poder explicar co m o es­
tados m entais se inserem no mundo, mas tem problemas ao
explicar co m o estados mentais podem ser ace rca do mundo.
V ) H á uma diferença no modo de ver a cog nição favorecido por
naturalistas e não-naturalistas. Os últimos tend em a e n t e n ­
der que precisamos ter uma co n cepção do nosso c o n h e c im e n ­
to que, de alguma forma, garanta que ele te n h a objetividade,
responda ao mundo, e, ao mesmo tempo, seja enten d ido com o
um e x e rcício de nossas capacidades conceptuais, pelas quais
somos responsáveis. O s naturalistas, por outro lado, tend em
a e n ten d er o c o n h e c im e n to co m o um c o n ju n to de m e c a n is­
mos e, assim, ten d em a inserir-se dentro da prática c ie n tífi­
ca, sem ter em m ente o que pode ser capaz de fazer c o m que
a ciê n c ia produza co n h e cim en to . Essa diferença no modo de
ver pode ser entend ida co m o uma riqueza - co m o eu disse
uma vez ( 2 0 0 0 ) , uma imagem geral do nosso c o n h e c im e n to
n ão pode evitar vertigens, cabe investigar o que pro vo ca as
vertig e ns. Porém, m uitas vezes esses dois m odos de v er a
c o g n iç ã o geram m a l-e n te n d id o s e b loq u eio s na c o m u n i c a ­
ção. Talvez alguém queira insistir que se trata de duas c u l­
turas; o relativismo é sempre uma m aneira fácil de deixar as
coisas co m o elas estão. Eu penso que n ão se trata de duas
culturas, pelo menos n ão se trata de duas culturas in c o m u ­
nicáveis. M as talvez a maneira mais in teressan te de mostrar
que é assim seja en co n trar uma fresta de onde se possa c o n ­
templar esses dois modos de ver a cog nição ao mesmo tempo.

326
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

Paulo: balanço do debate (inacabado) sobre o naturalismo

Por insistência sua, H ilan (você teve a “vantag em ” de quem in i­


cia o jogo e, portanto, determina em grande medida em que cam po ele
será travado), o nosso debate sobre o naturalismo foi orientado, talvez
em d em asia, por discussões em to rn o de “im agens de n a tu re z a ”, ou
seja, por discussões a c e r c a do que é c o n c e b id o c o m o “n a t u r a l ” (ou
seja, por qu estões de o n to lo g ia). Eu aceitei, de bom grado, esse viés
ontológico e, em várias oportunidades, tentei caracterizar aquelas imagens
de natureza que, a meu ver, são compatíveis ou incom patíveis com o
programa naturalista. Em particular, tentei defender um fisicalismo do
tipo n ão redutivo, que me parece compatível com o naturalism o e com
o estágio atual do c o n h e c im e n to científico. D e ix e i claro, en tre ta n to ,
co n tra ria m e n te ao que você sugere em sua última missiva (H3: 1), que
poderemos, n o futuro, ser obrigados a modificar de forma radical a n os­
sa im agem de natureza, co m o já fomos obrigados a fazê-lo no passado
(por e x e m p lo , co m a R e v o lu ç ã o C ie n tífic a do século X V I I ou, mais
r e c e n t e m e n t e , c o m o ad vento das teorias da relatividade e da m e c â ­
n ic a q u â n tic a ; re v o lu ç õ es sem elh an tes o co rre ra m a partir de d e s e n ­
v o lv im en to s em outros domínios, com o a biologia). N ão discordamos,
portanto, a respeito da possibilidade de uma dinâmica em nossas im a ­
gens de natu reza. N ossa d isco rd ância é relativa a como isso se dá e
q u em está habilitado a induzi-la: a meu ver é a investigação científica
que nos leva a modificar nossas imagens de natureza, os filósofos tendo
p o u co ou n ad a a co n trib u ir nesse sentido, sobretud o aqu eles que se
m a n tê m isolados do trabalho científico e que acred itam possuir m é t o ­
dos próprios e distintos dos métodos utilizados nas ciên cias, arvorando-
se a ditar algo a priori a respeito do que deve ser a natureza.
Limitar, contudo, a discussão do programa naturalista a questões
de ontologia pode ser um equívoco ou, no mínimo, distorcer as in t e n ­
ções de vários naturalistas (penso em Q uin e, por exem plo ). C om o dei­
xei claro, desde a m inh a primeira missiva, há naturalistas que não se
envo lvem co m temas de ontologia e limitam-se a defender posições em
m e to d o lo g ia (sem falar em outras m odalid ades de n a tu r a lis m o ; ver

327
Paulo A b ran te s e Hilan B e n su san

G o ld m a n , 1 9 9 8 ) . Em b o ra, em nossa discussão, te n h a m o s em alguns


m o m en to s abordado questões de m étodo - ao d eter-m e, por exemplo,
nos detalhes do M ito de Jones, tive essa in ten ç ã o - haveria ainda m u i­
to a desenvolver nessa frente. E isso se c o n e cta , a meu ver, c o m o status
do a priori, algo que tam bém mal resvalamos.
Nesse b a la n ç o - sem dúvida provisório, pois espero que nossas
escaram u ças co n tin u e m para além dessa co rrespond ência - gostaria de
retom ar as teses do naturalismo, que você diz aceitar em sua primeira
missiva.
O seu “e x tern alism o ” que, aprendemos em sua última missiva, é
“fra c o ”, eu diria que n ão é de forma alguma aceitável para um n a tu ra ­
lista, já que c o n stitu i uma simples d eco rrên cia da tese an tinatu ralista
de que há um espaço sui generis de razões. O u seja, o seu “extern alism o
fra co ” revelou-se, na verdade, ser um tipo usual de internalism o (nada
a ver, tam pouco, co m o internalism o naturalista de Pollock)!
A lé m disso, você nada disse de positivo a respeito das (e v e n tu ­
ais) co n e x õ e s desse espaço sui generis de razões co m o “espaço de leis”,
o que seria, segundo você, uma contribu ição que o naturalism o p o d e­
ria dar à sua posição não-naturalista.
A s te s e s S e lla r s e B o y d p a r e c e m , s i m p le s m e n t e , a f ir m a r um
antifu nd acionalism o e, portanto, tam bém nada têm de esp ec ific am en ­
te n a t u r a l i s t a (já q u e há te o ria s do c o n h e c i m e n t o que r e je i t a m o
fundacionalism o, mas que não são naturalistas).
A s teses D e s c o b e r ta e C iê n c ia cogn itiva não esp ecificam de que
m odo a origem de nossas cre n ça s e nossos “in stin to s co g n itiv o s ” são
relevantes para a epistemologia, em especial para a questão ce n tra l da
ju stific ação de nossas cren ças. Em outras palavras, ficamos sem saber
porque, en q u a n to epistem ólogos, “devemos lidar” (H 3: 3) co m a q u es­
tão da origem de nossas crenças.
Q u a n t o à tese P ragm atism o, c o m o disse antes, ela não tem nada
de p r o p r i a m e n t e n a t u r a l i s t a e v o c ê p a r e c e m e s m o d e s c o n f i a r do
pragmatismo de Brandom , justam en te porque tenderia a desbancar, em
c e rto m o m e n to , para posições que se aproxim am das natu ralistas, ao
“abrir mão do caráter sui generis do espaço ep istêm ico ” (H 3: 4)-

328
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

Feito esse b alanç o , avalio que você aceita, de fato, bem pouca
coisa do naturalismo, se é que você aceita algo. Sugiro que você, por
c o e r ê n c ia , re je ite o natu ralism o em bloco, em vez de defend er teses
p se u d o n a tu ralistas.
Enfim, ainda poderíamos tentar outros lances nesse jogo. Mas o
editor desta c o le tâ n e a fez valer a sua autoridade e exigiu que o inter-
rom pêssem os, sem que (ainda) vislumbrássemos um x e q u e - m a te . H á
quem diga que isso não é possível em filosofia, co m o ce rta m e n te é nas
c iê n c ia s , mas um n a tu ra lista , e v id e n te m e n te , n ão pode a c e ita r essa
pretensa diferença no caráter da investigação em cada um desses c a m ­
pos. A c red ito , portanto, que o tempo e a co n tin u a çã o dos nossos em b a­
tes m ostrarão qual abordagem é, afinal, a mais fértil, quem tem razão
(opa!) e qu em está co m a verdade.

Referências bibliográficas

A B R A N T E S , E Naturalizando a epistemologia. In: A B R A N T E S , P au ­


lo (org.) E p istem ologia e cogn ição. Brasília: Editora da U n B , 1 99 5.
____________ . N aturalism o epistemológíco: introd ução. In: É V O R A , F.;
A B R A N T E S , P (eds.). C a d ern o s de H istória e F ilosofia d a C iên c ia (CLE,
U n ica m p ), série 3, v. 8, n. 2, 1998, p. 7-26.

B E N S U S A N , H. A u tom atic bias learning: an inquiry into the inductive B asis


o f Indu ction . Tese de D outorado. Universidade de Sussex: 1999.
____________ . In d u c tio n and reason: cogn itive in stin c ts under the tri­
b u n a l o f e x p e rie n c e . P roceedin gs o f the 2 3 rd In tern a tio n a l W ittgen stein
S ym posium : 2 0 0 0 , p. 7 7 -8 1 .
____________ . V ocê pode duvidar de tudo por algum tempo. V ocê pode
duvidar de algumas coisas todo o tempo. M as pode v o cê duvidar de
tudo todo o tempo?. C o m u n ic a çã o apresentada no S em inário Intern o
dos Professores da Filosofia (SIP -F IL ), U n B , 2 0 0 1 . C itad o a partir do
m a n u scrito distribuído.
Paulo A b ran te s e H ilan B e n su san

B R A N D O M , R. Insights and blindspots o f reliabilism. In: B R A N D O N ,


R. A rticu la tin g R ea so n s. C am brid ge: H arvard U n iversity Press, 2 0 0 0 ,
p. 9 7 - 1 2 2 .
____________ . M a kin g It explicit. Cam bridge: H arvard U niversity Press,
1994.

C A N T W E L L S M I T H , B. O n the origins o f objects. Cambridge: T h e M I T


Press, 1996.

D A N C Y , J. C o n tem p o ra ry epistem ology. Oxford: B lackw ell, 1985.

D A V I D S O N , D. Epistem ology externalized. D ia lec tic a , v. 4 5 , n. 2-3,


1 9 9 1 , p. 1 9 1 - 2 0 2 .

D E N N E T T , D. Consciousness ex p la in e d . B o s t o n : L it t l e , B r o w n and
Company, 1991.
____________ . Darwin’s dangerous idea. Nova York: Sim on & Schuster, 1995.

F R E N C H , E et al. Philosophical naturalism. M idw est Studies in P hilosophy,


vol. X I X . N otre D am e (Indiana): University o f N otre D am e Press, 1994.

G E T T I E R , E. Is Justified True B e lie f Knowledge? A nalysis, v. 23, 1963,


p. 12-13.

G O L D M A N , A . D iscrim in ation and perceptual knowledge. Jo u r n a l o f


P hilosophy, v. 73, n. 20, 1976, p. 7 7 1 - 7 9 1 .
____________ . E p is tem o lo g ia n a tu ra lista e co n fiab ilism o . In: É V O R A ,
F.; A B R A N T E S , P. (eds.). C a d ern o s de H istó ria e F ilo s o fia d a C iê n c ia
(C LE , U n ica m p ), série 3, v. 8, n. 2, 1998. p. 10 9 -4 5 .
____________ • E pistem ology an d C ognition. Cambridge: Harvard University
Press, 1986.

H A A C K , S. E v id en ce an d inquiry. Oxford: Blackwell, 1 995.


____________•T h e two faces of Q u i n e ’s naturalism. Synthèse, v. 9 4 , 1993,
p . 335-356.

H O O K E R , C. R eason , regu lation an d realism . Albany: Suny University


Press, 1995.

33 0
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo _

H U M P H R E Y , N. A history o f the m ind. Londres: Harper Collins, 1993.

I N D U R K H Y A , B. M eta p h or an d cognition. D ordrech t: Kluwer, 1992.

K IM , J. M ind in a p hysical w orld. Cambridge: T h e M I T Press, 1998.

K I T C H E R , R T h e naturalists return. T h e P hilosop h ical Review, v. 101,


n. 1, 1 9 9 2 , p. 5 3 - 1 1 4 . Traduzido para o português em É V O R A , F.;
A B R A N T E S , E (eds.). C a d ern o s de H istória e F ilosofia d a C iên c ia (C L E
- U n ica m p ), série 3, v. 8, n. 2, 1998, p. 2 7 - 1 0 8 .

K O R N B L I T H , H. Inductive in feren ce an d its n atu ral ground. Cambridge:


T h e M I T Press, 1993.
____________ . N atu ra lism o : M e ta físico e ep istem o ló g ico . In: É V O R A ,
F.;' A B R A N T E S , P. (eds.). C a d ern o s de H istó ria e F ilo s o fia d a C iê n c ia
(C L E , U n ica m p ), série 3, v. 8, n. 2, 1 998, p. 1 4 7 -6 9 .
____________ . N atu ralizin g epistem ology. Cambridge: T h e M I T Press, 1987.

LA U D A N , L. N o rm a tiv e naturalism. P hilosophy o f S cien ce, v. 5 7 , 1 9 9 0 ,


p. 4 4 - 5 9 .
_____________. P ro gress or r a tio n a lity ? T h e p r o s p e c ts for n o r m a t iv e
naturalism. A m eric a n P hilosophical Q u arterly, v. 24, n. 1, 1 9 8 7 , p. 19-31.
L E H R E R , K. T h eory o f kn ow ledge. Boulder: Westview Press, 1990.
____________ . S cien ce an d values. Berkeley: University o f C alifornia Press,
1984.

M C D O W E L L , J. Mind an d w orld. Cambridge: Harvard University Press,


1994.

P A P IN E A U , D. P hilosophical naturalism . O xford: Blackw ell, 1993.

P L A N T I N G A , A . W a rra n t: the cu rren t d e b a t e . N o v a York: O x f o r d


University Press, 1993.

P O L L O C K , J. C o n tem p o rary theories o f kn ow ledg e. M aryland: R ow m an


& Littlefield Publishers, Inc., 1986.

331
Paulo A b ran te s e H ilan B en su san

P O P K IN , R .H . L a H istoria d ei escepticism o d esd e E rasm o h a sta S pinoza.


M ex ic o : Fondo de C ultura E co n ó m ica, 1979.

P U T N A M , H. M ean in g an d the m o ra l scien ces. Londres: R outledge, 1978.


____________ . S e n s e , n o n sen se and the senses. Jo u r n a l o f P h ilosop h y , v.
9 1 , n. 9, 1 9 9 4 , p. 4 4 5 - 5 1 7 .
_____________. W h y r e a s o n c a n ’t be n a tu ra liz e d ? In: P U T N A M , H.
P h ilosop h ical P apers, v. 3. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

Q U I N E , W. V. O. E p is te m o l o g y n a tu r a l iz e d , in: K O R N B L I T H , H.
N atu ralizin g E pistem ology. Cambridge: T h e M I T Press, 1987 a.
_____________ . N a t u r a l K in d s . In: K O R N B L IT H , H. N a t u r a liz in g
E p istem ology. Cambridge: T h e M I T Press, 1987b.
____________ . Two dogmas in retrospect. C a n a d ia n Jo u rn a l o f P hilosophy,
v. 21, n.3, 1 9 91, p. 2 6 5 - 2 7 4 .
____________ . Two dogmas o f em piricism . In: Q U I N E , W.V.O. F rom a
logical poin t o f view . N o v a York: Harper and Row, 1963.

R I C K E T T S , T. Rationality, Translation, and epistemology naturalized.


T h e Jo u rn a l o f P hilosophy, v. 79, n. 3, março, 1982.

R O S E N B E R G , A . Methodology, theory and the philosophy o f science.


P acific P h ilosop h ical Q u arterly, v. 66, 1985, p. 3 7 7 - 9 3 .
____________ . N orm ative naturalism and the role o f philosophy. P hilosophy
o f S cien ce, v. 5 7 , 19 90, p. 3 4 - 4 3 .

S C H A F F E R , C. A c o n s e rv a tio n law for g en eralizatio n p e rfo rm an ce.


In: Proceedings o f the E leven th Intern ation al C o n feren ce on M a ch in e L earn in g.
S a n M a te o : M o rgan Kaufm ann, 1994, p. 2 5 9 - 2 6 5 .

S E L L A R S , W. Empiricism and the philosophy o f mind. In: S E L L A R S ,


W. S cien ce, P erception a n d R eality. Londres: R ou tled ge & Kegan Paul,
19 63a, p. 1 2 7 - 9 6 .
____________ • S cien ce, p ercep tion an d reality. Londres: R outledge & Kegan
Paul, 1 963b.

S O B E R , E. Psychologism. J. T h eo ry S oc. B eh av ior, v. 8, n. 2, 1 9 7 8 , p.


165-191.

332
Conhecimento, ciência e natureza: cartas sobre o naturalismo

S O S A , E. N a tu re unm irrored, epistemology naturalized. S y n th ese, v.


5 5 , 1 9 8 3 , p. 4 9 - 7 2 .

S T R O U D , B. E l escepticism o filosó fico y su sign ification . M ex ic o : Fondo


de C ultura E co n ô m ic a , 1991.

W I T T G E N S T E I N , L. O n C ertain ty. Oxford: Blackw ell, 1969 .

W O L P E R T , D. T h e la c k o f a priori d is t in c t i o n s b e t w e e n le a rn in g
algorithms. N eu ra l C om p u tation , v. 8, 1996, p. 1 3 4 1 - 1 3 9 0 .

Você também pode gostar