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ED ITO R A ULTURAL
S erá q u e r e a l m e n t e im p o r t a se te m o s o u n ã o liv re -a rb ítrio ? Será q u e r e a lm e n t e
im p o r ta se o c a lv in i s m o e v e r d a d e ? fi o q u e v o c e p e n s a s o b r e isso, i m p o r ta ? \ ã o e,
talvez, sim . N ão , isso n ã o im p o r ta , p o r q u e D e u s e q u e m Ele é, e ta/, o q u e Ele faz,
i n d e p e n d e n t e m e n t e d o q u e p e n s a m o s s o b r e Ele, a s s i m c o m o o sis te m a so la r
c o n t in u a g i r a n d o e m t o r n o d o Sol m e s m o se e s t i v e r m o s c o n v e n c i d o s d e q u e ele
gira e m t o r n o da T erra. X o s s a s o p in iõ e s so b r e D e u s n ã o irão m u d á - L o , m a s elas
p o d e m m u d a r - n o s . E ntão, sim , faz d ife re n ç a , p o r q u e as d is c u s s õ e s so b r e livre-
a rb ítrio e c a lv in i s m o n o s c o n f r o n t a m c o m a, ta lv e z ú n ic a , q u e s t ã o q u e r e a lm e n t e
im p o r ta : q u e m e D eu s? Este é u m liv r o s o b r e e s s a q u e s t ã o , u m livro s o b r e Bíblia,
b u r a c o s n e g ro s, a m o r, s o b e ra n ia , in ferno, Jò n a ta s E d w a r d s , Jo h n P ip er, C. S. L e n is,
Karl Barth, e u m a m e n in a d e c a sa co v e r m e lh o . Voce já c o n h e c e os a r g u m e n t o s ,
m a s a q u i es tá a h isto ria d e u m a h istória : A u s tin F is c b e r e s u a j o r n a d a p a r a d e n t r o
e fora d o c a lv in is m o , e m u m a v i a g e m r u m o ao c e n t r o d o U niv erso .

jo\ em. I nçunsitv cl. \ iii ■\ ta ;' mudo preenche uma idíiiiui na Iitçi áttii a contemporânea
sobre calvinismo. \ obru aprcsçnia um pastor jovem, dinâmico. e de boa formacâo teológica,
íjuc descobriu pri iblciiHti fútíii s ^ calviiíis lii*\ c relutetniernente abriu mão dclc. I siü c sito história,
hicluifUÍt1süiis bem (iri icuhtdas r\.i~oe\ licici essa í rcinsiormacáir \áo poderiti ser mo is cn/ot ict 1
ao reconieiular este In ro. especialmente para pc.ssocis interessadas no neocuhinismó
e em saber poi ífue um jovem compromei ido na je cristá disse adicit ãtjiiele sistema.
— R oger E.Ülson, Seminário Teológico Ccorgc W. Truclt, Universidade Baylor

, \o civnpariilluir suo pr>ipno jitrnuda para dentn >e /<rrá do eoiwiiisnui hischer fornece aos leitores
uma lí ft ieii honesta, interessante perspicaz e muito ç iíiw iiic c iitc b u ra c o s negros elo calvinismo.
( om um estilo desçontraidi', itschcr coniroi uma serie de argumentos claros c inteligentes,
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Tao imporicilHe t / iic u ilo isso. no entanto, e. i/iie Fisclier ajuda os leitores a descobrirem um oittio Deus.
humilde e (jue Se sacrifica, revelado em Jesus ( .rislo.
— Grcg Bovd. Seminário Teológico de Princeton

hsie hvro conía a hisioriíi de Ausl in hischer. e espero cjiie vecc o leia. assim cónw esper: •Ljiic voçe
consiga vários amidos para acompanhar essa leitura. ( omrrscm sobre ele. e facam a seguinte pergunta:
t>Deus docalvimsino e o Deus c/tic descobrimos ijiiando vemos a face de jesus, a encarnacão de Deus- ’
Aust in conta suds concllísôes sobre essa pergunta, na mesma ídátle em tjiic muitos começam
a precisai' responde la.

H U STIN F IS C H E R - P a s to r e p r o fe s s o r na
U ista C om m u n ity C h u rc h . M o ra co m a e s p o s a ,
Rllisan, em le m p le , T e x a s , EUR.

Ilocê pode s e g u i-lo no l u i t t e r , @ a u s tin fis c h e r,


ou a co m p a n h a r seu site . p u r p le th e o lo g y .c o m .
RUSTIN FISCHER

J 0 U E Hfl,
INCHNSHIiEL

T ra d u ç ã o : W ellington M a ria n o

BURHCDS NEGROS. HIIIOR.


E UMH JORNRDR PRRH DENTRO E FORR
DO CRLI/INISMO

Editora Sal Cultural


Maceiú - 2015
Copyright © 2014 Austin Fischer, of the English original version by Austin Fischer.
This edition licensed by special permission of Wipf ans Stock Publishers. All rights reserved.

Todos os direitos reservados. Copyright ©2015 para a Lingua Portuguesa da Editora Sal
Cultural.
Proibida a reprodução p or quaisquer meios, salvo cm hrevescitaç õcs, com indicação da fonte

Título do original em inglês: Young, Restless, no Longer Reformed


Black Holes, Love, and a Journey In and Out o f Calvinism
Coordenação Editorial: Eduardo Vasconcellos
Tradução: Wellington Mariano
Revisão: Glória Hefzibá
Arte de Capa: Gloria Hefzibá
Imagem de Capa: Black Hole - NASA

Is Edição - Março 2015

Ficha Catalográfica

Fischer, Austin

Jovem, Incansável, não mais Reformado.


Buracos Negros, amor, e uma viagem para
dentro e fora do Calvinismo. Tradução de
Wellington Mariano. Maceió: Editora Sal
Cultural, 2015.

ISBN 978-85-67383-04-0

1. Arminianismo. 2. Calvinismo. Editora Sal Cultural


Av. Aryosvaldo Pereira Cintra, 181
CDD 230 / 234 / 273 Maceió/AL - Tel.: (82) 3033-0834
À Allison —

Uma constante lembrança de que


discussões são boas, mas que o amor é o
que realmente importa. v
Sumário

Prefácio de Scot McKnight 5


Agradecimentos 9
Introdução. Buracos Negros 11
1 Encontro às Cegas com o Calvinismo 16
2 Raizes de Certeza, Sementes de Dúvida 23
3 Um Problema e Tanto (A Menina do Casaco Vermelho)
4 Deus Tornado Impossível 40
5 O Deus Crucificado 49
6 A Glória de Deus (É) a Glória do Amor 64
7 Livre-arbítrio, Kenosis, e um Tipo Estranho de Soberania
8 Monstros no Porão 87
9 Mancando 99
10 Jovem, Incansável, e... 107
11 Domando o Tigre (Também conhecido como Romanos 9)
Epílogo. Luzes Apagadas 121
Prefácio

Se eu fosse calvinista, eu não só iria querer ler este livro — iria querer lê-lo com
meus amigos calvinistas. Ele é bom demais para se ler sozinho — eu iria querer
analisar criticamente o livro, refletindo cada ponto que o Austin Fischer faz. Afinal
de contas, ele foi um dos calvinistas ressurgentes. Além disso, ele tem um arsenal de
excelentes frases.
Como chamamos esta nova onda de calvinistas? Uma vez eu os chamei de
“neorreformados”, mas algumas pessoas (verdadeiramente) reformadas me
informaram que esse renascimento do calvinismo não era realmente reformado.
“Como”, um deles perguntou, “alguém pode ser reformado e não acreditar no
batismo infantil e não fazer uso das clássicas confissões reformadas?”. Então alguém
os chamou de “neocalvinistas”, mas um professor amigo meu, especialista nessa área,
me disse que esse termo não funciona, pois ele descrevia os neokuyperianos. Então
outro estudioso apresentou algumas razões sólidas quando disse que os calvinistas
ressurgentes são, na verdade, “neopuritanos”. Então um amigo meu me disse que isso
era uma calúnia, uma vez que, em sua concepção, “puritano” era um termo
depreciativo. Mas qualquer um que conhecer a história dos EUA — principalmente
os fundadores da Massachusetts Bay Company sob os auspícios de John Winthrop —
se pergunta como esse grupo ressurgente pode ser chamado de puritano. Eles não
têm a força necessária para fazer as coisas que os puritanos fizeram. O que eles
fizeram? Tentaram estabelecer uma nação cristã com cidades cristãs, ainda que
comprometidos com a aceitação daqueles que eram diferentes deles, algo que o
tempo provou ser mais do que um desafio para os puritanos primitivos.
Então, porque chamá-los de calvinistas ressurgentes? Precisamos de um
nome ou um rótulo? Sim — penso que sim — pois os homens não podem deixar de
categorizar, rotular e definir, e porque o bom raciocínio exige discernimento e o
discernimento exige nuança. É por isso que precisamos ver o calvinismo ressurgente
como uma espécie de neopuritanismo. A maioria deles é batista ou de igrejas livres,
embora alguns deles sejam líderes mais famosos e vários de seus seguidores façam
parte de grupos históricos reformados.
Então, de quem estamos falando? Isso é razoavelmente óbvio: John Piper,
que sozinho (sobre a generosa plataforma de seu amigo Louie Giglio) tornou o
neopuritanismo atraente; Tim Keller, cuja liderança graciosa e livros temáticos
cativantes ofereceram uma plataforma completa de teologia pastoral; e D. A. Carson,
cujo raciocínio de grande precisão oferece respostas persuasivas na linha de
pensamento neopuritana. Acrescente-se ainda o número de batistas do sul, cujo
calvinismo foi remoldado sob a liderança de Al Mohler, e temos um poderoso
movimento em progresso. Com liderança carismática e pessoas intelectualmente
dotadas como essas, não é de se surpreender que o neopuritanismo se encaixe tão
bem na cena dos EUA, principalmente porque sua abordagem de livre mercado à
religião permite que pastores independentes misturem e combinem sua teologia e
visão eclesiástica com linhas de pensamento semelhantes à neopuritana.
Foi isso que atraiu Austin, e isso é o que continuará a atrair evangélicos
jovens e teologicamente famintos. Existem outras opções, como a M issio Alliance ou
denominações tradicionais, mas a rede The Gospel Coãlition e a conferência
Together fo r the Gospel estabeleceram suas vozes como o centro do neopuritanismo,
ou, caso prefira, do calvinismo ressurgente.
O calvinismo, talvez precisamos nos lembrar, não é novo. Nem seus
problemas são descobertas recentes. Austin Fischer tanto ouviu essas vozes recentes
como também aprendeu a examiná-las cuidadosamente... E percebeu que o conjunto
de tais vozes deixa muito a desejar. Uma das formas que ele expressou isso foi nestas
palavras, “Mas acredito que é melhor dizermos sim à glória de Deus dizendo não ao
calvinismo”. As pessoas envolvidas sabem que essas palavras afligem o cerne da
visão teológica neopuritana.
Eu passei pela experiência que o Austin passou. Como universitário, eu me
apaixonei pela arquitetura do calvinismo. Li um sermão de Spurgeon por dia por
meses a fio, li John Owen, tim-tim por tim-tim, e John Brown sobre Hebreus, e bebi
do vinho do calvinismo até que me embriaguei no melhor sentido da palavra. Amava
o calvinismo — amava suas excelentes linhas de pensamento e penso que o que mais
gostava é que o calvinismo tanto me colocava no meu lugar, quanto colocava Deus
no seu lugar e eu adorava a idéia de que todas as coisas estavam onde deveriam
estar. Até que encontrei passagens na Bíblia que abalaram essa teologia até o âmago.
Estava fascinado por teólogos calvinistas, mas percebi que a exegese não era
cativante. Passagem após passagem me convenceram de que, enquanto no contexto
geral — a glória de Deus na face de Cristo — era tão boa quanto nossa teologia pode
ser, as nuanças mais tênues simplesmente não funcionavam com as estruturas
bíblicas da liberdade do amor de Deus e a resposta humana. Por alguns anos eu
vaguei entre o calvinismo e outras opções, por fim acabei me estabelecendo com o
que às vezes chamo de “anabatismo com sensibilidades anglicanas”. Ainda leio
Calvino, Piper e Edwards, mas com uma hermenêutica de suspeita. Gosto da
arquitetura do sistema calvinista, mesmo que suas mobílias precisem ser jogadas na
pilha do lixo. Gosto da idéia da glória de Deus, mas o amor de Deus é o fim último
— não a glória de Deus.
O que mais aprecio na história do Austin é sua honestidade, suas lutas, sua
confiança, voz clara, moldada por um profundo tom humilde — ele pensava estar
certo, mas aprendeu que a Bíblia conta uma história ainda mais bonita, uma história
que ele abraçou. Gosto da forma que ele a coloca: “Fé, dúvida, humildade e confiança
— esse é o material e substância da teologia na sua melhor forma. Jactância,
presunção e certeza — esse é o material e substância da ideologia no seu pior
estado”. Encontros francos com realidades difíceis despertaram uma humildade
teológica.
Ninguém, ele aprendeu, pode olhar para Auschwitz de frente e não imaginar
como tal ato colossal de maldade bárbara pode se harmonizar com um Deus que
determina todas as coisas. Ninguém, ele também aprendeu, pode ver os prospectos
do inferno no seu sentido tradicional e não se questionar sobre a bondade de Deus
— ou pelo menos perguntar: “Por quê”? E por que Deus criaria tantas pessoas — os
números são aterradores — sabendo que a maioria delas (mais uma vez no sentido
calvinista tradicional) estará no inferno sofrendo eternamente? Em outras palavras,
ele aprendeu que, para sustentar seu calvinismo, precisava acreditar em coisas
realmente terríveis. Conforme Austin diz. “E foi isso o que aconteceu comigo no
cerne do buraco negro da deidade autoglorificadora: as luzes apagaram e eu fiquei
sentado no escuro em um universo absurdo com uma deidade enigmática de poder
nu”.
E aquele Deus, ele concluiu, não era o Deus da Bíblia. Este livro conta sua
história e eu espero que você o leia, e espero que reúna um grupo de amigos para
que possam ler o livro juntos. Fale do livro e faça-se esta pergunta. “Qual é a melhor
visão de Deus?” Ou “O Deus calvinista é o Deus da Bíblia?” Ou, melhor ainda. “O
Deus calvinista é o Deus que descobrimos quando contemplamos o rosto de Jesus, a
encarnação de Deus?” Austin apresenta suas respostas a essas indagações numa
época em que muitos precisam começar a respondê-las também.

ScotMcKnight
Professor de Novo Testamento
Northern Seminary
Agradecimentos

Muitas pessoas contribuíram em minha formação e, conseqüentemente, na


formação deste livro — é contribuição demais para contar. Mas eis algumas delas...

Allison, Pai, Mãe, Adam Marilyn, Mikey, Da, e Pop — quem quer uma
família perfeita quando se tem uma família que o ama?
Belinda, Austin, e Nanny — a família que eu não sabia que estava sentindo
falta.
Joel — mentor, amigo e parceiro de treinamento teológico na mais saudável
das formas.
Roger Olson — um professor brilhante, mas uma pessoa ainda mais
generosa, e nós dois sabemos que este livro não se concretizaria sem sua ajuda.
Nate Hansen — suas sugestões literárias deixaram este livro muito melhor.
Amigos — desculpem-me por fazer vocês escutarem todas estas coisas
durante os anos, mas obrigado por me escutarem e me encorajarem e, talvez agora,
eu pare de falar sobre isso.
Introdução

Buracos Negros
Gravidade
Quando uma grande estrela morre, algo incrível acontece1. Sua própria
gravidade a esmaga até que ela se torne um pequeno núcleo de densidade
inimaginável — a matéria se comprimiu de uma forma tão intensa que as leis
conhecidas da física deixam de existir. A estrela morta agora possui uma força
gravitacional tão forte que nada, nem mesmo a luz, pode escapar. E é nesse ponto
que a estrela morta se torna um buraco negro e tudo que estiver ao seu alcance é
arrastado até seu centro. Ela pode engolir planetas, estrelas e até mesmo outros
buracos negros. Chegue muito perto e ganhará uma passagem só de ida em uma
jornada ao centro do buraco negro. Sua gravidade é irresistível.
A gravidade é parte integral da vida humana. Não demora muito para que
aprendamos que o que sobe deve descer. E não é como se alguém precisasse pôr em
aplicação a gravidade— ela simplesmente é; uma força física a ser aceita e não
dominada. A gravidade também é uma força espiritual no sentido de que nós,
humanos, nos encontramos atraídos a coisas além de nosso controle. Estamos
constantemente sendo sugados por certas coisas — um trabalho, uma pessoa, um
hobby, um vício. Mas claro, se você realmente colocar a gravidade espiritual sob o
microscópio, verá que a coisa para qual estamos sendo sugados somos nós mesmos.
Somos buracos negros — ambulantes, buracos falantes de narcisismo e
autopiedade, saqueando o mundo ao nosso redor na desesperada tentativa de
preencher o vazio dentro de nós. A menos que algo seja feito, você passará o restante
de sua existência como um buraco negro humano, eternamente se implodindo em
um trágico esforço de preservar seu ser. Isso é má notícia.

‘Para uma boa explicação de como os buracos negros se formam, vide Stephen Hawking, Black Holes and
Baby Universes and Other Essays (Nova Iorque, NY: Bantam, 1993), 103—104.
11
Mas os cristãos acreditam que existe uma boa nova que é melhor que a má
notícia. Acreditamos que algo precisa ser feito — que através da encarnação,
crucificação e ressurreição de Jesus Cristo, Deus fez para nós o que nós mesmos não
poderíamos fazer. Já não mais precisamos viver debaixo da gravidade devastadora
do ser, pois onde o pecado e o egoísmo abundaram, a graça agora superabunda. Isso
certamente é boa nova, mas...

Opções para os Incansáveis


Basta deixar sob nossa responsabilidade, e pegaremos algo tão bonito e centrado no
outro e o transformaremos em algo (você adivinhou) sobre nós.
A mensagem do evangelho, que muda o universo, agora se torna em uma
mensagem sobre mim, Jesus morreu para que eu possa ser feliz e ficar confortável
para todo o sempre. Embora isso possa se passar por evangelho em muitos círculos,
há um crescente aumento oposicionista em muitos outros lugares — um
reconhecimento de que tais expressões diluídas, terapêuticas e egocêntricas do
cristianismo carecem da gravidade para sustentar a vida de um homem, e muito
menos para fazê-la florescer. Uma multidão de vozes nos chama para sair do
consumismo, do moralismo, e do ceticismo para que adentremos o sacrifício, o risco,
e o comprometimento.
E para aqueles que estão desejosos por mais, o neocalvinismo2
freqüentemente aparece como a mais forte — e talvez a única — alternativa para
aqueles que pensam biblicamente. Ele oferece um novo centro de gravidade que
pode finalmente nos afastar de nosso eu. Tal era minha convicção e ainda acredito
que o neocalvinismo é uma forte alternativa ao cristianismo cultural.
Mas acredito que é melhor dizemos sim à glória e soberania de Deus
dizendo não ao calvinismo. Acredito que eu — juntamente com muitos outros, no
passado e presente — encontramos uma opção ainda melhor. Não é algo novo, nem
inédito; na verdade, eu defendo que é simplesmente o consenso histórico da igreja.

Neocalvinismo propriamente dito é uma ala holandesa do calvinismo associada a Abraham Kuyper. Aqui
eu estou utilizando o termo para se referir ao calvinismo rígido federal de Jonathan Edwards, conforme
popularizado por pessoas como John Piper, Mark Driscoll, Al Mohler, etc. O termo foi utilizado dessa
maneira em um artigo da revista Time (12 de março de 2009),e parece que pegou. Como tal, eu o estou
utilizando para delinear o movimento do neocalvinismo relatado na obra de Collin Hansen, Young, Restless,
and Reformed (Wheaton, IL: Crossway, 2008), embora reconheça que algumas pessoas preferem chamá-lo
de outras coisas (por exemplo, neopuritanismo).
Mas entendido corretamente, ela oferece a maior esperança para a igreja incansável.
Diferente do calvinismo, ela não substitui o buraco negro do ser humano pelo
buraco negro da deidade, transformando tanto Deus quanto a Bíblia em algo
impossível (mais informações sobre isso adiante); todavia, ela realmente oferece um
Deus infinitamente glorioso, um Messias crucificado, e um chamado cruciforme
para seguir a Jesus.

Sinceridade Egoísta
Essas são minhas convicções e todos com convicções enfrentam um dilema, você
prefere ser convincente ou honesto? É mais importante buscar que as pessoas
concordem com você ou apresentar honestamente o melhor das opções dignas?
Embora certamente eu tenha tentado ser convincente, penso que a verdade
é melhor servida quando somos honestos, e por isso tentei ser honesto. E a melhor
forma que encontrei de ser honesto foi contando a minha história, uma jornada de
conversão e desconversão do calvinismo. Como Chesterton uma vez disse, às vezes é
preciso ser egoísta caso queira ser sincero3.
Ao me lembrar disso, algo ficou claro, teologia e biografia andam juntas4.
Tentamos entender Deus enquanto tentamos entender nossas próprias histórias,
nossas próprias vidas. Como tal, a teologia é feita para participantes, não para
espectadores. Escrevo como participante e não como espectador no anseio de que
isso o ajudará a se tornar um participante melhor em sua própria jornada teológica,
onde quer que ela o leve. Ditas essas coisas, que a jornada inicie. Mas ela não pode
começar sem dois pequenos desvios de curso.

Desvio #1. A Garota Errada


Certa vez um amigo meu se convenceu de que a garota errada era a garota certa.
Enquanto ele a achava incrivelmente fantástica, eu a achava legal e tudo mais, mas
estava convencido de que havia alguém melhor para ele. O fato de eu estar certo ou
errado não é a questão — a questão é que quando eu conversava com ele sobre isso,
eu não estava tentando sabotar seu atual relacionamento, mas sim estava tentando
encorajá-lo quanto aos prospectos de uma namorada diferente. Sinto a mesma coisa

3G. K. Chesterton, Orthodoxy (N.P.: Simon & Brown, 2012), 3.


4Essa ideia é explorada em Biography as Theology.de James McClendon (Eugene, OR: W ipf and Stock,
2002).
quando converso acerca do calvinismo com as pessoas, pois embora pense que você
poderia se casar com ela e viver feliz para sempre, eu também penso que existe
alguém melhor para você. Além disso, visando a elucidação, eu não estou tentando
fazer com que alguém deixe de ser algo (calvinista), mas sim que seja algo.
Ou para explicar de uma maneira diferente, a silhueta do Deus crucificado
no Gólgota é uma imagem talhada em meu coração. Quando o pecado interior
aumenta, o caos baixa, a confusão ao redor destroi qualquer semblante de
entendimento — quando você não se sente que entende coisa alguma — eu olho
para aquela cena e entendo o bastante para dizer obrigado. Eu entendo o bastante
para chamar isso de amor. E contemplo enquanto aquela imagem lança fagulhas de
luz em meus cantos anteriormente escurecidos.
Então, quando alguém mexe com essa imagem, acrescentando um fundo
oculto que ameaça manchar a coisa toda, eu sou contra o fundo só porque sou a
favor da imagem que penso que o fundo estraga. Não sou contra a imagem
calvinista de Deus na mesma proporção em que entristeço pelo que o fundo dessa
imagem faz com a imagem que amo, tornando a verdade plena do Gólgota em uma
meia-verdade hipócrita. O restante deste livro é uma descrição do que aconteceu
quando meu calvinismo foi submetido ao agonizante escrutínio daquela imagem, na
esperança de que você possa ver o indizivelmente bonito Deus de Jesus Cristo.

Desvio #2. Tudo


A combinação de palavras mais devastadora na língua portuguesa forma uma
afirmação disfarçada de interrogação, quem se importa? Quando essa “pergunta” é
feita, uma afirmação é feita. O indagador está expressando sua apatia e desprezo
pela questão em discussão. Não parece ter importância, então por que se gastar
saliva com isso? Então, para que chutar um vespeiro só para que possamos contar as
vespas? E essa é uma boa “pergunta” a se fazer, pois muitos dos problemas em que
gastamos nossas energias e esforços não nos levam a lugar algum. Também é uma
“pergunta” que me foi feita muitas vezes ao debater sobre calvinismo e suas
alternativas.
Faz diferença se o calvinismo for verdadeiro ou falso? Faz diferença se
tivermos livre-arbítrio? Isso faz alguma diferença? De jeito algum e, no entanto,
mais do que você pode imaginar.
Não, não faz diferença, pois Deus é quem ele é e faz o que ele faz
independente do que pensamos a seu respeito, da mesma forma que o sistema solar
continua girando ao redor do sol mesmo que estejamos convencidos de que ele gira
em torno da terra. Nossas opiniões sobre Deus não mudarão a Deus; entretanto, elas
m uito certam ente podem m udara nós. E então, sim, faz diferença, pois as conversas
sobre calvinismo e livre-arbítrio nos farão adentrar no cerne da pergunta que o
universo faz a cada giro. Quem é Deus?
E essa é uma pergunta que tem tudo a ver com tudo.
Um Encontro às Cegas com o Calvinismo
Por Que Ninguém Começa Como Calvinista
Você tem livre-arbítrio e sabe disso. Pode pedir chá gelado ou Coca, pode utilizar
um taco de golfe wedge ou um taco driver, pode abrir este livro ou fechá-lo. Como
disse, você é livre e sabe disso... Mas a verdade é que você não sabe.
No frigir dos ovos, você nunca pode saber se realmente tem livre-arbítrio
(tente provar isso para você mesmo). Talvez você não pudesse ter pedido uma Coca,
ter usado o taco de golfe driver ou fechado o livro. Talvez tudo esteja determinado.
Talvez tudo — amor e ódio, nascimento e morte, alegrias e tristezas, pecadores e
santos, céu e inferno — se revelem de acordo com um esquema eterno e
predeterminado na mente de Deus. Não há como saber com certeza.
Mas certamente nos sentimos, pelo menos, como livres, e é por isso que
ninguém começa como calvinista. O calvinismo, de início, simplesmente não parece
fazer sentido e para muitos isso é o bastante para que descartem o calvinismo, e
jamais se importem em querer rever o problema Entretanto, para aqueles que têm
coragem de olhar a questão com um pouquinho mais de profundidade, estes
descobrirão que a problemática não poderá ser colocada de lado com tanta
facilidade. Ela tem um magnetismo, uma atração desafiadora. Sua gravidade é
irresistível.

Jovem e Incansável
Conheci o calvinismo em um encontro às cegas com John Piper — acho melhor
explicar isso.
Estava no segundo grau e tinha aquele desejo por “mais", e se estiver lendo
este livro você provavelmente sabe do que estou falando. Queria mais da fé, mais da
vida, mais de Deus e tinha aquele sentimento de que Deus queria mais de mim. Era
jovem e incansável, então o pastor de jovens me recomendou que eu lesse Em Busca
de Deus, do John Piper e se prontificou a discutir o livro comigo.
16
A leitura dó livro me trouxe mais indagações do que epifanias, mas o que eu
realmente entendi despertou algo. ele estava começando a tocar em meu desejo por
“mais”. Deus não se importa se viverei ou não o sonho americano, se terei ascendido
socialmente, se gozarei férias confortáveis em Hamptons ou se terei uma pensão
gorda para poder relaxar quando me aposentar. E embora estejamos ocupados e
imersos nisso tudo, Deus não é meu coach pessoal de autoestima cujo único objetivo
na vida é colocar talquinho em meu bumbum e me dizer o quanto eu sou especial.
Meu conforto e autoestima não são prioridades de Deus. Deus se importa com Deus
e quer que eu ifte iitiporte com Deus.
Tudo isso é resumido por uma curta expressão que é o impulso que dá vida
ao neocalvinismo5. tudo tem a ver com a glória de Deus. Tudo no sentido de todas as
coisas. Conforme diz a máximas A principal meta de Deus é glorificar a Deus e gozar
expor e ihagnificar sua glória para sempre*’6. £ se não gostarmos disto, se acharmos
que isso soa egocêntrico oú autoeentrádo, então fária ntuito bem nos lembrarmos
que quando você é Deus, é certo ser um buraco negro narcisista. Na verdade, não
apenas é certó como também é bom e gracioso, pdis o qúe os humanos mais
precisam é mais de Deus, não mais autoestima oü contemplação do umbigo. Dessa
forma, Piper faz a seguinte pergunta enfática. “Você se sente mais amado por Deus
porque ele faz muito de você ou porque ele o liberta para gozar fazendo muito dele
para sempre? ”7. Isso dói um pouco, mas de uma maneira boa, e fica ainda melhor.
Piper também ensina o “hedonismo cristão”. A humanidade foi criada para
o prazer e o que nos traz prazer supremo é adoração e culto à única coisa em toda
existência que é de infinito valor. Deus. Em outras palavras, a auto exaltação de
Deus e hossa alegria não são buscas opostas, mas estão entrelaçadas em perfeita
simetriá. Deus é mais glorificado em nós quando nós estamos mais satisfeitos nele8.
Viver a vida para a glória de Deus é a coisa mais prazerosa, empolgante e irresistível
que você pode fazer com a passageira existência que recebeu na terra.

5Vide nota de rodapé na introdução para a explicação de meu uso do termo “neocalvinismo”.
6John Piper, “Why God is Not a Megalomaniac in Demanding to Be Worshipped,” acesso dia 30 de julho
de 2012, www.desiringgod.org/resource-library/conference-messages/why-god-is-not-a-megalomaniac-in-
demanding-to-be-worshiped.
7John Piper, The Pleasures o f God: Meditations on G od’s Delight in Being God (Sisters, OR: Multnomah,
2000), 11.
8 Para saber mais sobre o hedonismo cristão, leia a seguinte obra de John Piper, The Dangerous Duty o f
Delight (Sisters, OR: Multnomah, 2001).
E eu mencionei que a Bíblia fala muito sobre a autoglorificação de Deus?9

Deus Morre
Então quando cheguei ao final do meu encontro às cegas com o calvinismo, tudo o
que sabia havia sido questionado — minha fé, minha teologia, meu modo de vida. E,
ao mesmo tempo que tinha odiado isso, eu tinha amado.
Qualquer um que tenha passado por uma desconstrução teológica conhece
a sensação. Suas mais profundas e mais estimadas (ou talvez mais supostas) visões de
Deus e do eu foram cutucadas e espetadas e embora você desesperadamente busque
tapar todos os buracos, há o perturbante senso de que talvez essa visão simplesmente
precisa morrer. Talvez esse deus precise de sete palmos de terra jogado sobre ele, de
maneira que algo mais próximo ao verdadeiro Deus possa sair andando do túmulo.
Sabia que meu deus precisava morrer. Sabia que estava imerso no
cristianismo que tinha pouco a ver com Jesus e com muito a ver comigo — meu
conforto, minha segurança, minhas coisas, minha consciência apaziguada, minha
mansão no céu. Sabia que precisava de um Deus novo e estava confiante que John
Piper estivesse me apresentando esse Deus. Mas também sabia que antes que pudesse
assinar o documento de endosso do calvinismo, eu precisaria aceitar as graves e
duras conseqüências desse sistema.

Aceitando as Conseqüências e Contando Ovelhas


“Então você está me dizendo...”
Se você já tentou explicar o calvinismo para alguém pela primeira vez, essa
será a primeira coisa que ouvirá da boca da pessoa. Trata-se do choque inicial e do
ceticismo que as pessoas sentem quando se sugere que Deus é a realidade toda-
determinante: isto é, que toda e cada coisa que acontece foi tomada certa (ordenada)
por Deus, pois não há coisa alguma que Deus não cause quer direta ou
indiretamente. É uma crença basilar do calvinismo, mas ela traz consigo óbvias
conseqüências.
“Então você está me dizendo que Deus já determinou todas as pessoas que
irão para o céu e para o inferno?" Essa indagação importante e difícil é a que todos
os que lutam com o calvinismo devem preparar-se para responder e lidar, e era uma

t f . 1:5-6, Sl. 19:1, Is. 43:25,48:11,49:3, Jr. 13:11, João 12:27-28, Hb. 2:14, Ap. 21:23.
18
pergunta difícil para mim. Como isso era justo? Como era justo para Deus escolher
salvar alguns e então enviar todas as demais pessoas para o inferno? Eu devia ter
previsto a resposta, você não quer justiça. Justiça significa receber o que merecemos
e o que merecemos é o inferno. Justiça - inferno. Bem, isso parece ser justo, eu acho.
Mas claro, a questão é um pouco mais complexa do que isso. Pois talvez nós
não queiramos o que é justo tanto quanto queremos o amor. Em outras palavras,
talvez nosso problema com a idéia de que Deus tenha incondicionalmente
predeterminado quem salvar e quem condenar seja que ela não parece amorosa, e a
Bíblia certamente nos diz que Deus é amor10. Além disso, se Deus determinou tudo,
Deus também não determinou os pecados pelos quais ele enviará as pessoas para o
inferno? Deus não se certificou de que as pessoas cometerão os pecados pelos quais
depois que ele as julgará? Se é assim, então como isso pode ser justo? E há ainda a
pergunta que une questões de amor e justiça, de que maneira Deus é bom? Se —
antes da criação de um único ser humano — Deus escolheu enviar pessoas para o
inferno pelos pecados que ele ordenou que as pessoas cometeriam, como é que ele é
bom? Se essa pergunta não conseguir fazê-lo contar um enorme rebanho de
cameirinhos em uma noite de insônia, então eu não sei o que mais consegue.

Mistério e Transcendência
Na busca por respostas, tomei conhecimento de dois termos que se tornaram
comuns em meu pensamento e vocabulário, mistério e transcendência. Você
conhece o versículo. “‘Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
nem os vossos caminhos os meus caminhos’, diz o Senhor. ‘Porque assim como os
céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os
vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos
pensamentos’”11.
O problema com a teologia é que são humanos que a estão fazendo.
Criaturas finitas, frágeis e caídas estão tentando entender o Criador. Tal ação está
propensa a resultar em erros e hilaridade. Conforme Frederick Buechner diz.
“Teologia é o estudo de Deus e de seus caminhos. Pelo que sabemos, besouros podem
estudar a nós e nossos caminhos e chamar tal área de humanologia. Se assim fosse.

10João 3:16, 1 João 4:7-8.


“ Is. 55:8-9.
nós provavelmente ficaríamos mais tocados e entretidos do que irritados. Pode-se
esperar que Deus se sinta da mesma forma”12.
Tudo isso para dizer que Deus está acima e além de nós. Em termos
teológicos, Deus é transcendente. Deus não é só o Super-homem sem a capa e a
cueca vermelha — um ser como nós. só que mais forte e mais legal. Não, Deus existe
em um plano completamente diferente, oculto sob o véu do mistério divino. Deus
não é como nós.E isso quer dizer que não podemos simplesmente projetar em Deus
todas as virtudes que, como humanos, achamos desejáveis. Não podemos supor que o
amor e a bondade de Deus se encaixam perfeitamente em nossas noções de amor,
justiça e bondade. Agir assim é cometer um “erro de categoria”, tratando Deus como
uma supercriatura em vez de Criador. Podemos achar difícil entender como é justo
para Deus enviar pessoas para o inferno pelos pecados que ele ordenou que elas
cometessem, mas quem somos nós pára questionar sua justiça? Quem somos nós
para colocarmos Deus em uma caixa, dizendo a ele o que ele pode e não pode fazer,
quem ele pode e quem não pode ser? Ou como Paulo diz, “Mas, ó homem, quem és
tu, que a Deus replicas?"13.

Cerne
Quando você chega ao cerne da questão, este é o mistério que o aguarda. Como
Deus é amoroso, justo ou bom quando ele envia pessoas para o inferno pelos
pecados que ele ordenou que tais pessoás cometessem? Apesar de haver incontáveis
tentativas de explicar esse dilema, as respostas mais responsáveis, por fim, se rendem
ao mistério. Não podemos saber exatamente como Deus é amoroso, justo ou bom à
luz de sua eleição de alguns e não eleição de outros. Mas podemos saber que Deus é
completamente soberano sobre sua criação, é a realidade toda-determinante,
considera-nos responsáveis por nossos pecados e faz tudo para sua própria glória14.
E é nisso que se resume toda a questão, você está disposto a viver com esse
mistério? /
Vai aceitar a idéia de que você e eu e todo mundo que já viveu será enviado
à felicidade eterna ou perdição eterna com base em uma decisão incondicional e

12Frederick Buechner, Wishful Thinking (Nova Iorque: HarpeiCollins, 1993), 112.


13Rm. 9:20.
14 Para uma maravilhosa explicação disso, v/deMark Talbot, “All the Good That Is Ours in Christ,” in
Suffering and the Sovereignty o f God, eds. John Piper e Justin Taylor (Wheaton, IL: Crossway 2006) 3 1 -
77.
inescrutável de Deus? Você vai afirmar que Deus enviará pessoas para o inferno
pelos pecados que ele tornou certo que elas cometeriam? Você adorará um Deus que
pode tê-lo criado a fim de o condenar?
Como muitos outros que já percorreram esse caminho, eu lutei e reclamei e
saí gritando e chutando, mas, no fim, eu aceitei as conseqüências e agi assim pelo
mesmo motivo que a maioria dos calvinistas sérios que eu conheço agiu, eu não
sentia como se a Bíblia me desse qualquer outra opção.

A Bíblia Assim Me Diz


Como cristão — e um evangélico protestante — eu me importo com a Bíblia. Se a
Bíblia ensina isso, eu quero acreditar nisso, porque acredito que Deus fala através da
Escritura. E apesar de a “batalha pela Bíblia” ser uma questão complexa e nuançada,
com o grupo à esquerda acusando os da direita de bibliolattia (tratar a Bíblia como
um quarto membro da Trindade) e os à direita acusando os da esquerda de diminuir
a autoridade bíblica, penso que podemos concordar que se a Bíblia ensina tal coisa,
devemos crer em tal coisa15.
Eu havia me convencido de que a Bíblia ensinava o calvinismo, então eu me
rendi e mergulhei. John Piper fala de um mergulho semelhante em uma franca e
comovente lembrança de sua conversão ao calvinismo:

Entâo quando fui para a faculdade e comecei a ouvir as pessoas


apresentarem uma estrutura disso [calvinismo], eu me revoltei contra a
soberania de Deus (...). Quando cheguei no Fuller Seminary, eu me
inscrevi em uma matéria sobre teologia sistemática com James Morgan
(...) e outra com Dan Fuller sobre hermenêutica. E vindo de ambos os
lados — teologia e exegese — eu estava me sentindo absolutamente
encurralado por todas as evidências da soberania de Deus na Bíblia (...).
No meu quarto, eu apoiava o rosto em minhas mãos e chorava, pois o
meu mundo estava desfazendo-se. Não conseguia chegar a conclusão
alguma (...). Mas no final da aula de teologia de James Morgan eu
escrevi em uma dissertação: “Romanos 9 é como um tigre rodeando e
devorando os defensores do livre-arbítrio libertário como eu”. E o tigre
me devorou16.

Romanos 9 é como um tigre rodeando e devorando defensores do livre-


arbítrio libertário. Se você leu Romanos 9 e não acha ao menos um pouco possível

15Sei que a coisa não é tão simples assim, mas já é um bom ponto de partida.
l6John Piper, “An Interview with John Piper,” eds. Piper e Taylor, O Sofrimento e a Soberania de Deus,
220 - 2 1 .
que a passagem esteja afirmando a eleição incondicional e a predestinação — assim
como defendendo a justiça de Deus em ambas — então você se enganando. E para
mim. não era apenas possível — era provável, talvez até mesmo certo. Eu era jovem,
incansável e agora eu era reformado17.

17 Eu estou utilizando os termos reformado e calvinismo aqui como sinônimos, embora eles não sejam
necessariamente sinônimos. Na verdade, eu sei que tal uso causará grande contusão nessa obra. Eu peço
perdão. E principalmente uma decisão retórica uma vez que os termos passaram a ser vistos como
sinônimos no evangelicalismo estadunidense atual. Como evangélico protestante, eu me considero
reformado em certo sentido, mas reconheço que o termo agora está carregado de pressuposições teológicas
calvinistas.
Raízes de Certeza, Sementes de Dúvida
Sagitário A#
No centro da galáxia Via Láctea há uma agitação de energia e moção. Estrelas
implodindo, ventos solares causticantes. gases rodopiando — um turbilhão de luz e
calor. E, todavia, bem no âmago do centro de nossa galáxia, em uma região chamada
Sagitário A*, as luzes se apagam. Uma entidade escura lá reside. Imune ao caos
circundante, ela faz girar essas estrelas, ventos e gases. Bem no âmago do centro da
galáxia há um buraco negro supermassivo, mantendo a ordem galáctica, enquanto
tenta sugar bilhões de estrelas e planetas para seu núcleo18.
Uma vez que aceitei as conseqüências e disse sim ao calvinismo, coloquei
minha prévia fé caótica em ordem. A glória de Deus era o Sagitário A* e todas as
demais coisas giravam e torno dele. Mas o que, exatamente, isso significa? O que
queremos dizer quando dizemos, “Tudo tem a ver com a glória de Deus?” E o que
acontece com todas as demais coisas quando tudo tem a ver com a glória de Deus? A
curiosidade me tomou e me encontrei avançando cada vez mais para o
supermassivo buraco negro.

Deus Quer Que Todos Sejam Salvos.. .7


Deus quer que todos sejam salvos19. Reflitamos um pouco sobre isso.
Hitler, Osama bin Laden, sua sogra20. Deus quer que todas as pessoas sejam
salvas, e não há, na verdade, muito o que se discutir sobre isso. Mas nem todas as
pessoas serão salvas21. Apesar de alguns bons argumentos contrários22, a Escritura
simplesmente não nos permite afirmar o universalismo. Em outras palavras, apesar
de Deus mais que certamente ter o direito de salvar a todos, ele não nos deu muito
direito de acreditar que todos serão salvos. Meditemos um pouco na questão. Deus

l8Se o interessar, leia a obra de Fulvio Melia The Black Hole at the Center o f Our Galaxy (Princeton, NJ:
Princeton University Press, 2003).
191 Tm. 2:4,2 Pe. 3:9.
20 Só para constar, eu amo a minha sogra.
21 Ap. 20:11-15, Jd. 1:3-13, Mt. 25:31-*6.
22Vide Gregory McDonald, The Evangelical Universalist, 2“ ed. (Eugene, OR: Cascade, 2012).
quer que todos sejam salvos, mas nem todos serão salvos. Deus, em certo sentido, não
conseguirá o que quer.
Estamos acostumados a não conseguir o que queremos. Não conseguir o
que você quer faz parte de ser humano. Mas como Deus pode querer algo e não
conseguir tal coisa? Bem, Deus deve querer algo mais do que quer que todos sejam
salvos. E, mais uma vez, não há muito o que discutir sobre isso. O argumento vem à
tona quando tentamos explicar o que Deus mais quer do que a salvação de todas as
pessoas. Existem, de fato, apenas duas respostas.
Para o teísmo do livre-arbítrio, a resposta é relacionamento amoroso e
recíproco. Em outras palavras, Deus escolhe não salvar porque isso minimizaria
nossa habilidade de livremente aceitar e corresponder o amor de Deus. Portanto, se
Deus nos “forçasse" à salvação a nossa existência seria completamente redundante,
pois se Deus quisesse estar eternamente rodeado por pessoas incapazes de genuína
relacionalidade, pode-se supor que ele teria parado de criar no quinto dia.
Mas qual é a resposta que o calvinismo oferece? Se o amor livremente
aceito e correspondido não importa para Deus e Deus quer que todos sejam salvos,
por que Deus não salva a todos? Para responder isso, precisamos falar sobre a razão
pela qual Deus criou o mundo.

Glória, Glória, Glória


Pessoas com perucas régias, brancas e empoadas parecem ser sérias, e, no caso de
Jônatas Edwards, o visual não enganava. Ele foi um teólogo brilhante, preeminente
expositor do calvinismo, e estava muito confiante de que sabia a razão pela qual
Deus havia criado o mundo.
Glória
Deus criou o mundo para sua glória, ou, mais precisamente, para sua
autoglorificação. Edwards explica o que isso significa.
Desta maneira, parece razoável supor que foi a finalidade última de Deus que
pudesse haver uma emanação gloriosa e abundante de sua infinita plenitude (...) e
que a disposição de comunicar a si mesmo, ou difundir sua própria plenitude, foi o
que o levou a criar o mundo23

23Jonathan Edwards, The End fo r Which God Created the World, citado por John Piper, G od’s Passion fo r
His Glory (Wheaton, IL: Crossway, 2006), 151.
A glória de Deus é a multifacetada grandeza e bondade de quem Deus é.
Amor, justiça, misericórdia, ira, poder, compaixão — junte tudo isso e você chega à
glória. Mas, sem uma criação, algumas dessas coisas jamais seriam expressadas.
Como Deus poderia mostrar misericórdia ou justiça se tudo o que existisse fosse
Deus? O Filho mostrando misericórdia ao Espírito por... ser perfeito?
Assim, Deus cria para exercitar seus músculos de glória, para permitir a
plena manifestação de tudo o que ele é; isto é. a finalidade última para qual Deus
criou o mundo foi para exibir o pleno escopo de sua glória. Então, por que Deus não
salva todas as pessoas? Porque apesar de Deus querer salvar a todos, o que Deus
mais quer é exibir a plenitude de sua glória. Como tal, Deus ordena a eterna
condenação dos humanos que ele também quer salvar, pois ele quer mais exibir sua
ira e justiça, do que salvar a humanidade. No fundo, Deus valoriza sua
autoglorificação acima da salvação dos homens. Tudo tem a ver com a glória de
Deus— ou seja, tudo gira em torno do supermassivo buraco negro do desejo de Deus
de mostrar o que é ser Deus.

Cavalos no Céu e Imaginando Deus


Tenho uma amiga que. por gostar de cavalos, pensa que haverá cavalos no céu. Não
sei se haverá ou não cavalos no céu24, mas eu realmente sei que alegar que haverá
cavalos pelo fato de você gostar de cavalos é uma lógica muito deficiente. Mas além
de ser lógica deficiente também é um exemplo engraçado de um problema não
engraçado, a teologia centrada no homem.
“Você pode, com toda certa, supor que criou Deus à sua própria imagem
quando o resultado é que Deus odeia as mesmas pessoas que você odeia”25. Como
um experiente pastor costumava dizer, “Se não pode dizer amém, pode dizer ai”. É
assustador como de maneira espontânea e intuitiva nós criamos Deus à nossa
própria imagem. Também é brilhante — se você “criar" um “Deus” que ama tudo o
que você ama, e odeia tudo o que você odeia, e pensa tudo o que você pensa, então
você alcançou seu objetivo. Você pode fazer, e ser, e pensar o que quiser, e Deus não
pode dizer, nem fazer coisa alguma contra isso. pois você já decidiu o que Deus pode
e não pode dizer e fazer.

24 Bem, talvez haverá cavalos no céu, mas não porque os queremos lá.
Anne Lamott (citando seu velho amigo Tom), Bird by Bird: Some Instructions on Writing and Life (Nova
Iorque: Anchor, 1995), 21.
Claro, poucos, se é que alguém, conscientemente, fariam tal coisa; antes, nós
fazemos isso de forma subconsciente e instintiva. Como pequenos buracos negros
ambulantes, nosso instinto mais forte é a autopreservação, e qual melhor forma de
preservar o eu do que criar um “Deus” que divinamente autorizará nossos instintos
de preservação? É por isso —se analisarmos bem — que veremos que a maioria de
nós transfere mais nossas características para “Deus”, do que Deus transfere suas
características para nós.
E isso é o que a teologia centrada no homem faz. ela cria Deus à nossa
própria imagem. E ao passo que minhas raízes reformadas estavam se
aprofundando, comecei a suspeitar que aquela teologia era a culpada por trás de
quaisquer e todas as rejeições do calvinismo e de seu Deus que glorifica a si mesmo.
Conforme dito anteriormente, se não parece amável ou justo para Deus o punir
eternamente pelos pecados que ele ordenou que você cometesse, isso é porque você
está tratando Deus como um humano. Você está se esquecendo de que o amor, a
justiça e a bondade de Deus eclipsam seu débil e fraco entendimento de tais coisas.
Você pode desejar que Deus ame da maneira que pensa que ele deveria amar, mas
seu querer não torna isso verdade. Você pode desejar que Deus esteja mais
preocupado com sua glória, e não a dele, mas a Escritura ensina que ele não está.

Dois Bilis
Bill O’Reilly e Bill Maher são a desgraça da existência de muitas pessoas — e
provavelmente um é a desgraça da existência do outro. Ambos apresentam talk
shows políticos populares, o programa do O’Reilly é conservador; o do Maher é
liberal. Ambos também são muito persuasivos e bem ofensivos. Escute um deles por
um tempo e eles dirão algo que você odeia, mas que você não consegue deixar de
concordar, mas ainda assim quer brigar com eles, pois eles o fazem lembrar de um
erro que cometeu.
O calvinismo tende a deixar sua humanidade bem patente. E ele é ofensivo,
e desagradável, e o faz querer entrar no De Lorean26, programar a data para 1750,
ir a toda velocidade, e então arrancar a peruca de Jônatas Edwards, e falar umas
poucas e boas para ele. Mas, na análise final, o calvinismo desmarcara a sua
humanidade porque ele acredita que a Bíblia também a desmascara.

:<’Se você não sabe ou conhece o que é De Lorean, largue o livro e vá assistir ao filme De Volta para o
Futuro.
Fui lembrado de minhas falhas, e as aceitei, eu já não queria mais discutir
com Jônatas Edwards, e o doloroso processo de desconstrução e construção estava
completo. Eu tinha um novo Deus, o Deus bíblico. Eu tinha Deus.

O Abismo da Transcendência
Só que jamais tem os Deus.
E não importa o quanto estejamos certos de termos Deus, nós certamente
não podemos estar certos que, de fato, é Deus que temos. Certamente não é possível
quando o finito está colidindo com o infinito. Não é possível quando uma pessoa está
tentando conhecer outra pessoa. Se quiser tratar Deus como Deus e, nesse sentido,
como um Deus pessoal, você precisa abrir mão da certeza.
Mas por acaso isso não nos deixa na névoa do ceticismo, flutuando no
espaço vazio sem uma âncora? Em uma palavra, não. Existe uma grande distância
entre ceticismo e confiança, e uma distância igualmente grande entre confiança e
certeza. Deus nos ajuda a atravessar a ponte entre o ceticismo e a confiança, mas ele
não parece particularmente preocupado em nos construir uma ponte entre a
confiança e a certeza. Devido à natureza do relacionamento divino/humano, a
distância entre confiança e certeza é um abismo intransponível.E o abismo da
transcendência, e a transcendência é uma ofensa para todos igualmente, todos são
lembrados de suas fraquezas. O abismo da transcendência significa que sempre
haverá sementes de dúvida para minimizar nossas raízes de certeza, e que isso não é
engraçado. Porém, ainda mais importante, significa que Deus sempre terá espaço
para nos surpreender, para ser quem ele é, e não quem ele deve(ria) ser. E quando
Deus tem espaço para ser Deus, você nunca sabe onde pode parar.
Um Problema Infernal
(A Menina do Casaco Vermelho)
Procurando Soluções Milagrosas
A humanidade adora soluções milagrosas, soluções rápidas, diretas e indisputáveis
para problemas complexos. Como cuidamos dos pobres em nosso país? Eleja um
democrata. Como salvamos mais casamentos? Façam com que as mulheres
respeitem seus maridos. Como podemos ter certeza de que Deus existe? Todos os
homens compartilham absolutos morais. O que mais precisa ser dito? Na verdade,
muita coisa.
Todos estão buscando soluções milagrosas porque elas simplificam as
coisas. Diluem questões complicadas em silogismos banais. Retiram-nos a
responsabilidade, oferecendo-nos paz sem luta, segurança sem risco, tranqüilidade
sem caos. Os cristãos são particularmente suscetíveis à febre das soluções
milagrosas. Somos como mercenários das soluções milagrosas, esquadrinhando a
Bíblia em busca delas para que possamos encontrá-las, pegá-las e utilizá-las contra
todas as opiniões e crenças contrárias, resolvendo a questão.
Mas o problema com soluções milagrosas é que elas não existem. São uma
miragem, uma oferta de vitória conquistada muito facilmente. E quando se trata de
debate sobre calvinismo e teísmo de livre-arbítrio não existem soluções milagrosas,
quer sejam bíblicas, teológicas ou filosóficas. Se houvesse, poderia supor-se que o
debate já teria sido resolvido há muito tempo.
Grandes mudanças geralmente têm inícios pouco auspiciosos. Algo
acontece, algo é dito, algo enraíza, e uma pequena, minúscula semente é semeada.
Nessa semente estão os primórdios da conversão, as fundações para uma nova casa,
uma rota diferente de pensamento, ação e ser. Mas essa conversão só acontecerá
vagarosamente, a emergência gradual de um broto verde aparecendo sobre o chão
pedregoso. Eu havia relutado jn me converter ao calvinismo, mas agora estava
fortemente influenciado por sua atração. Qualquer passo para longe do calvinismo
não aconteceria facilmente.
Introdução à Teologia
Quem é Deus?
Como você sabe?
Da perspectiva cristã, essas são as indagações da existência humana. Todas as
outras perguntas feitas e respostas dadas, no fim, retornam a essas duas, pois em
cada resposta, a cada pergunta há uma alegação implícita: “Este é quem Deus é e
desta maneira que eu sei”. Portanto, quem é Deus e como você sabe?
Ainda me recordo de meu primeiro encontro com essas perguntas. Eu era
calouro precoce na faculdade, com ênfase nos estudos de teologia (uma combinação
volátil), e, graças a pessoas como a santa trindade dos “Johns” — Calvin, Edwards e
Piper 'eu cheguei à faculdade bem seguro de que tinha as respostas. Deus era a
realidade toda-determinante e toda-glorificadora que fazia tudo para sua glória, e
eü sabia disso, pois a Bíblia me dizia isso. Já posso pegar meu diploma?
Mas uma das melhores coisas da faculdade (ou de simplesmente ler um livro!)
é que você é forçado a conversar com pessoas qüe são, francamente, mais
inteligentes que voce. Elas leram mais, experimentaram mais, pensaram mais,
refletiram mais, e oraram mais. Você pode. contudo, discordar delas, mas você já não
pode mais viver sob a ilusão de que as posições delas são facilmente descartadas. E
durante meu primeiro ano de faculdade um professor em particular era um espinho
irritante em meu lado calvinista.
Algumas pessoas dizem que os melhores professores não nos dão as respostas
certas tanto qüahto nos ensinam a fazer as perguntas certas, pois até fazermos as
perguntas certas nós certamente não podemos chegar às respostas certas. E após
uma partida de tênis teológico e bíblico de um ano, meu professor, por fim, deu uma
Cortada, e a bola ficou em minha quadra, recusando-se a retomar à quadra do
adversário. Mas não era como se eu jamais tivesse pensado sobre o assunto ou visto
aquilo antes. Era que agora aquilo estava impiedosamente exposto, de sorte que eu
podia ver a coisa pelo o que ela era, e eu precisava admitir...era um problema
infernal.

Auschwitz e o Mal
Freqüentemente se diz que a teologia de uma pessoa não é sustentável a menos que
possa ser pregada nos portões de Auschwitz. Portanto, se não tiver estômago para
compartilhar o que você acredita acerca de Deus aos homens, mulheres e crianças
29
judeus, cujos olhares estão fixos nos canos da arma de extermínio nas mãos de um
mal personificado, então, é melhor você buscar algumas alternativas. Tudo isso para
dizer que o problema apresentado pelos males, tais como o holocausto e incontáveis
outros, é uma repulsiva escuridão rodeando e comumente satirizando nossas mais
valorizadas crenças acerca de Deus. Deus é totalmente bom e totalmente poderoso e,
ainda assim, o mal, o mal horrendo, existe. O que está errado?
Para lidar com o problema, tanto o calvinismo quanto o teísmo do livre-arbítrio
empregam argumentos do bem maior: isto é. Deus permite (teísmo do livre-arbítrio)
ou ordena (calvinismo) o mal para o bem maior. Conforme aludido previamente, no
teísmo do livre-arbítrio Deus permite o mal porque ele é uma possibilidade
inevitável em um mundo constituído por seres livres. Se Deus quiser alcançar o
aparentemente bem maior de relacionamentos recíprocos e amorosos com suas
criaturas, então o mal é algo que Deus deve permitir (mais sobre essa adiante).
Claro, no calvinismo, Deus ordena o mal para a plena manifestação de sua glória.
Mais uma vez fazendo uso de Jonathan Edwards.

Se não fosse certo para Deus decretar, e permitir, e punir o pecado,


então não poderia haver manifestação da santidade de Deus, em ódio ao
pecado, ou na demonstração de qualquer preferência, em sua
providência, da santidade ante o pecado. Não haveria manifestação da
graça de Deus ou a verdadeira bondade se não houvesse pecado a ser
perdoado, nenhum sofrimento do qual ser salvo (...). Então o mal é
necessário para a mais elevada felicidade da criatura e a completude
daquela manifestação de Deus pela qual ele fez o mundo, porque a
felicidade da criatura consiste no conhecimento de Deus e no sentido de
seu amor. E se o conhecimento dele for imperfeito, a felicidade da
criatura deve ser proporcionalmente imperfeita .

De acordo com Edwards, Deus ordena o mal de maneira que possa manifestar
sua santidade ao julgar o mal, e manifestar sua graça ao perdoar o mal, e isso é bom,
pois permite que contemplemos a plenitude da glória de Deus.
E em minha opinião, tanto as explicações do teísmo do livre-arbítrio quanto as
do calvinismo são sustentáveis. Embora eu duvide que eu ficaria confortável em
fazer qualquer tipo de pregação nos portões de Auschwitz, alguém poderia defender
ambas visões como respostas coerentes ao problema do mal. No que diz respeito à

27Jonathan Edwards, citado por John Piper em “Is God Less Glorious Because He Ordained That Evil B e?’,
acesso dia 20 de junho de 2012, www.desiringgod.org/resource-librarv/conference-messages/is-god-less-
elorious-hecause-he-ordained-that-evil-be.
resposta calvinista, muitos encontram muito consolo na crença de que os males que
sofrem lhe foram afligidos por Deus de sorte que pudessem aprender a se apegar a
Deus de forma jamais experimentada antes. A história está repleta de vidas de
pessoas que tiveram ultrajantes males perpetrado contra elas — estupro, mutilação,
tortura, assassinato — e, todavia, elas fielmente acreditaram que era Deus quem, no
final, havia feito tais coisas a elas, e que Deus ainda era bondoso ao agir assim.

Deus Planejou a Morte de Minha Filha


“Deus planejou a morte de minha filha”.
Isso foi o que Stephen Saint disse em sua palestra na Conferência Nacional
D esiring God de 200528. Anos antes, sua filha havia falecido em razão de uma
enorme hemorragia cerebral que o deixou emocionalmente devastado, mas apesar
de tudo, comprometido com um Deus bom. Saint recorda como a morte de sua filha
o capacitou a adentrar numa paixão e num amor pelos perdidos que ele, de outra
maneira, jamais poderia ter experimentado. Deus planejou a morte de sua filha de
maneira que ele e muitos outros pudessem realizar a Grande Comissão. Como Saint
pungentemente afirma. “Por que queremos que todos os capítulos sejam bons,
quando Deus promete apenas que no último capítulo ele fará com que os outros
capítulos façam sentido, e ele não promete que veremos o último capítulo aqui?”29
Embora muito mais pudesse ser dito, isso deve bastar para mostrar que, de
fato, é possível reconciliar as crenças de que Deus ordenou o extermínio de homens,
mulheres e crianças nas câmaras de gás de Auschwitz. com a crença de que Deus é
bom, considerando-se que Deus irá realizar — no capítulo final —um bem tão
grande, que todas as lágrimas serão enxugadas, e Deus será tudo em todos. Assim
sendo, embora Auschwitz e o mal sejam um problema, eles não são o problema. Eu
poderia pregar o calvinismo nos portões de Auschwitz. Mas poderia pregar o
calvinismo nos portões do inferno?

Inferno
Pouquíssimas almas são corajosas o bastante para permitir que suas mentes parem e
pensem nos horrores do lugar que chamamos “inferno”. Ele tem sido considerado,

Stephen Saint, “Sovereignty, Suffering, and the Work o f Missions,” eds. Piper e Taylor, O Sofrimento e a
Soberania de Deus, 118.
29Ibid., 120.
pela maior parte da história cristã, um lugar de tormento eterno, um lugar onde há
incessante ranger de dentes em agonia, um lugar onde o lamento sem fim oprime os
ouvidos, onde o fogo jamais se extingue e o verme jamais morre. É um lugar onde as
linhas entre a existência e a não existência se confundem, como pequenos buracos
negros que se autodestroem.
Alguns pensam ser um lugar complemente ausente da presença de Deus,
enquanto outros pensam ser ele cheio da severa ira de Deus. Com diferentes níveis
de sucesso, alguns chegaram a amenizar essa imagem do inferno. Alguns afirmam o
aniquilacionismo. a crença de que Deus sintplesmente extinguirá a existência de
todos os que estiverem no inferno.
Mas não importa o qUanto seja atenuado, o inferno é o que é, um destino
tão sinistro e medonho que a mente humana não consegue suportar o peso de seu
terror, e nada mais— nem estupro, nem tortura, nem assassinato, nem infanticídio,
nem Auschwitz — é tão alarmante quanto ele. E como calvinista, eu achava que o
inferno me deixava com muitas explicações a dar.

Os Réprobos
Osréprobos.
Esse é o termo técnico utilizado para descrever aqueles humanos que, de
acordo com o calvinismo, foram incondicionalmente predestinados ao inferno.
Dizendo de maneira diferente, os réprobos sãos os humanos que, antes de existirem,
foram escolhidos por Deus para passar a eternidade no inferno. E, para ser claro, os
réprobos passarão a eternidade no inferno pelos pecados que Deus ordenou que eles
cometessem. Em resumo, portanto, os réprobos são os humanos que experimentarão
um destino espantoso além da compreensão (o inferno), ao passo que são punidos
por Deus pelos pecados que ele ordenou, antes mesmo de nascerem, que eles
cometeriam — eles foram criados a fim de serem condenados. Se você não tremer
um pouco com essa idéia, você não é de carne.
Alguns calvinistas acham essa idéia repulsiva, e tentam chamá-la de calvinismo
extremado, mas, embora eu aprecie o sentimento, não acho que ele seja tão extrerrtò
quanto penso ser ele consistente. Isso é o que qualquer calvinista deveria crer se
aderir à noção de que Deus é a realidade toda-determinante (um elemento
fundamental do calvinismo). Você não pode defender duas posições auto
excludentes ao mesmo tempo. Se Deus é a realidade toda-determinante, então “toda
32
significa “toda”, e aqueles no inferno estão lá porque Deus tornou certos que eles
estariam lá30. Eu também observaria que Calvino, Edwards e Piper defendem essa
noção, insistindo que as pessoas que se esquivam disso estão sendo covardes31.
Isso nos traz de volta à pregação do calvinismo nos portões do inferno.

Lágrimas dos Réprobos


Auschwitz é um problema, mas não um problema sem solução, pois sempre
podemos postular que os sofrimentos que Deus inflige serão eclipsados por um bem
ainda maior para aqueles que nele confiam. Como João disse de Patmos, Deus irá
limpar toda lágrima de seus olhos32. O final da história será tão precioso que todos
os sofrimentos irão, por fim, fazer sentido.
E isso vai bem e tranqüilo até que...
M as como Deus lim pa as lágrimas dos réprobos?
Qual bem maior Deus poderia realizar para eles? Como que o capitulo final
explica todo os danos e sofrimentos dos capítulos anteriores, quando a coisa acaba
como uma cena de crueldade infinitamente além de qualquer coisa que já existiu
antes? Como os santos cantarão eternamente a glória de Deus, enquanto os réprobos
choram e lamentam em razão de Deus os ter criado para o inferno?
Conforme observado anteriormente, não foi como se essa fosse a primeira vez
que eu considerava a questão dos réprobos. Há muito tempo, eu havia adotado uma
solução milagrosa, os réprobos estão lá para a glória de Deus. Mas o ponto sobre
questões complexas é que, bem, elas são complexas. Elas exigem consideração e
reflexão contínuas, segundos, terceiros e quartos olhares. E comecei a meditar
novamente sobre essas coisas e não gostei do que vi. Eu vi alguém (eu) colocando o
foco na graça mostrada para ele, para evitar considerar a animosidade demonstrada

30 Existe muito malabarismo lingüístico utilizado para explicar a natureza da ordenação de Deus da
condenação dos réprobos. Alguns calvinistas preferem dizer que Deus simplesmente “ignora” o réprobo —
ele não escolhe ativamente sua condenação. Mas essa é uma distinção sem diferença. Independentemente
de como ela é dita, o calvinismo deve afirmar que toda e cada pessoa no inferno está lá porque Deus tomou
certo que ela estaria ali.
31João Calvino, Institutes o f the Christian Religion, Library o f Christian Classics vols. 20-21, ed. John T.
McNiell, trans. Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1959), 3.24.17 (985). Jônatas Edwards,
“Concerning the Divine Decrees in General and Election in Particular” ’ em ed. Edward Hickman, The
Works o f Jonathan Edwards Volume II, (Carlisle, PN: Banner o f Truth Trust, 1974), 525-43. Piper, The
Pleasures o f God, 313-340. Para uma ótima discussão sobre como o calvinismo necessita, em termos
lógicos, da dupla predestinação, vide Roger Olson, Contra o Calvinismo (São Paulo: Reflexão, 2013), 164-
173.
32 Apocalipse 21.4.
para com os outros. Eu vi alguém cantando a graça de Deus, a despeito dos gritos
dos réprobos. E por mais que eu tentasse, eu já não mais conseguia abafar seus
gemidos.
Quando, no passado, eu era encurralado dessa forma, eu apelava ao mistério, a
transcendência, e a Bíblia, mas quando eu recorri a eles,eles começaram a se revelar.

O Desvelado Mistério e da Transcendência


Presumidamente, Deus está acima e além de nossas expectativas morais, e não
precisa estritamente atende-las. Nossos ideais de amor, justiça e bondade não
correspondem diretamente aos de Deus, pois nossos ideais estão, em certo sentido,
contaminados pela humanidade. Todas essas idéias tinham sido legais e boas, mas
agora estava sendo forçado a apresentar mais explicações.
Tudo bem dizer que a bondade de Deus não corresponde diretam ente às
noções humanas de bondade33, mas o que exatamente eu quero dizer quando digo
que Deus é bom? Em que sentido Deus era bom, se ele tivesse feito algo como criar
pessoas a fim de que ele pudesse condená-las? Perdoem-me o trocadilho, mas se isso
é bom, que diabo é ruim?
E em que sentido Deus é bom se ele fez algo como punir as pessoas
eternamente pelos pecados que ele tomou certo que elas cometeriam? Como que as
pessoas no inferno estão simplesmente recebendo o que merecem quando foi Deus
que ordenou que eles cometessem seus pecados? Como que os humanos podem ser
responsáveis por seus pecados quando Deus é a causa última de seus pecados? Por
acaso consigo criar uma única analogia ou ilustração que faça o m enor sentido?
E como podemos dizer que Deus ama o mundo quando ele criou grande
parte do mundo para mandar para o inferno?

É Como Estar Casado...


Eu me recordo de estar sentado em uma aula de seminário ouvindo um pastor
calvinista tentando corajosamente responder a essa questão. Seguindo John Piper, ele
afirmou que embora Deus ame todas as pessoas, Deus não ama a todas as pessoas de
mesmo jeito34. "É como estar casado”, ele disse. “Eu amo todas as mulheres, mas amo

33Ou em termos filosóficos, a bondade de Deus não deve ser unívoca, mas também não pode ser ambígua.
Ela deve ser análoga.
34Piper, The Pleasures o f God, 336-337.
minha mulher de uma maneira especial que vai muito além de meu amor por todas
as outras mulheres. Assim é o amor de Deus pelos eleitos e os réprobos. Ele ama a
todas as pessoas, mas ele não as ama de maneira igual”.
Eu realmente queria que a analogia funcionasse, mas ao invés de aliviar minha
ansiedade, ela simplesmente dobrou o peso esmagador que estava sentido. O amor
de Deus não era apenas diferente do nosso. Não era simplesmente uma forma “mais
elevada” de amor. Não era somente misterioso e transcendente. Pelo contrário — até
onde podia ver —,ele era exata e completam ente oposto ao nosso conceito de amor.
O que Deus chamava de amor, nós chamávamos de ódio, e não tinha como sair
disso. De volta à analogia do casamento...
Ela parece funcionar porque quando um homem lhe diz que ele ama a esposa
dele de maneira especial, mas ama todas as mulheres de outra maneira, você (no
mínimo) presume que o amor dele por todas as outras mulheres inclui um desejo
genuíno pela sua saúde e bem-estar. Esperamos que ele seja gentil e as ajude. E
certamente esperamos que ele evite algum tipo ou todos os tipos de dor terrível e
sofrimento, caso seja possível. Mas essa é uma maneira excessivamente enganosa de
se falar do “amor” de Deus pelos réprobos, pois longe de ajudá-los a evitar a dor e o
sofrimento, ele traz a mais terrível dor e sofrimento sobre eles (o inferno).
Como tal, seria mais verdadeiro dizer algo mais ou menos nestas linhas. “Eu
amo minha esposa sendo gentil, compassivo e sacrificial para com ela, mas eu amo
todas as outras mulheres infligindo sobre elas algo bem pior que o estupro, a tortura
e o assassinato — eu ordeno a condenação delas ao inferno”. Eu posso entender por
que o pastor não disse exatamente assim, mas gostem ou não, esse parece ser a
estranha forma do “amor” de Deus pelos réprobos.

A Menina do Casaco Vermelho


No filme A Lista de Schindler, há uma cena envolvendo uma garotinha vestindo um
casaco vermelho. Oscar Schindler, escondido sobre uma colina, olha para baixo
enquanto os nazistas expulsam os judeus de seus lares e os matam. E nessa cena
horrível é que entra a menina.
Você imediatamente fixa os olhos nela, pois seu casaco vermelho é a única
cor na cena em preto em branco. Com um crescente nó no estômago, você assiste
enquanto ela caminha pela rua — as balas passam zunindo sobre as cabeças,
vizinhos são executados a centímetros atrás dela. Somos poupados da dor de assistir
35
a sua morte, mas mais tarde no filme nossos olhos se fixam outra vez no casaco
vermelho, enquanto ela jaz sobre uma pilha de cadáveres sendo levados em uma
carroça. Em um filme com tantas cenas que marcam, você simplesmente não
consegue esquecer a menina do casaco vermelho.
Em meu primeiro ano no seminário, nós tivemos o privilégio de conversar,
via conferência telefônica, com um brilhante teólogo calvinista. Alguém lhe
perguntou por que Deus causa terríveis sofrimentos para as pessoas e ele respondeu
que ele realmente não poderia responder aquilo, mas que acreditava que Deus. de
alguma forma, iria recompensar aquelas pessoas. Eu me recordo de ter gostado da
honestidade e generosidade de sua resposta, mas eu não consegui deixar de
perguntar, “Como Deus irá recompensar os réprobos?” Ele fez uma pausa, e então
respondeu. “Sabe, existem certas coisas que eu simplesmente não sei. mas que estou
disposto a conviver com elas. E essa questão é uma delas”.
E uma resposta semelhante àquela que um bom calvinista amigo meu dá
quando ele é encurralado na questão dos réprobos. Ele acredita que algumas pessoas
foram eleitas para a condenação, mas não é como se ele pensasse sobre elas o tempo
todo. Subseqüentemente, ele acha que eu engrandeço por demais a questão. Sim, os
eleitos para condenação fazem parte do sistema calvinista, mas eles não são a única
parte. Por que deixar os réprobos desmantelarem todo o resto do sistema? Por que
ficar pensando neles? E a isso eu só posso responder — porque você não consegue
esquecer a garotinha do casaco vermelho.
O livro de Êxodo começa com um grupo oprimido de escravos que clama
em agonia, e Deus os ouve. Uma sarça ardente, um monte de pragas, o Mar
Vermelho dividido mais tarde. e os israelitas acabam dançando na praia, pois o Deus
dos israelitas é um Deus que vê o sofrimento opressor e escuta os clamores de agonia
— o Deus deles é um Deus que não pode se esquecer da garotinha com o casaco
vermelho.
E à medida que a história de Israel prossegue, esse fato volta a acontecer vez
após vez. após vez. Deus sempre escuta a súplica de sofrimento, e Deus sempre vê a
opressão sofrida pelos fracos, e Deus exige que sejamos um povo que faça o
mesmo35. O ponto aqui é simples. Não existe sofrimento como o dos condenados,
não existe opressão como a dos réprobos, portanto, se você for calvinista, você não

35 Para apenas alguns, dentro de centenas de exemplos, vide Ex. 22:21-27, Zc. 7:8-14, Am. 2:6-8, Is. 58:5-
10, Lc. 16:19-31.
tem permissão para desviar seu olhar da questão. Você não pode tratar os réprobos
como um detalhe da escatologia que não precisa ser lidado, pois Deus nos ensina a
prestar m uita atenção em pessoas como essas. Se você quer ser calvinista. você não
pode se esquecer dos réprobos, e que vergonhoso será da sua parte se você esquecê-
los.
Enfrentei meu desejo de me esquivar dos réprobos, e me forcei a ouvir seus
clamores. Eu me forcei a lembrar da garotinha no casaco vermelho e reconciliar o
fato de como um Deus bom pode criá-la a fim de condená-la.

Apoiando-se em Futilidades
Para aqueles que podem objetar dizendo que isso está indo longe demais, eu só posso
discordar e confessar que me pareceu que o calvinismo me forçou a chamar
algumas coisas de “boas” quando elas só poderiam ser consideradas as atrocidades
morais imagináveis mais repugnantes, perpetradas pelo próprio Criador. Eu estava,
repetidas vezes, me apoiando em futilidades, oferecendo analogias vazias sobre o
que eu queria dizer quando chamava Deus de “bom”, enquanto ele fazia algo tão
(aparentemente) repreensível, que meu vocabulário lutava para descrever tal ação.
E o ponto é este, não existem analogias aqui, nada de “bem, é mais ou menos
assim”, nenhuma estrutura de referência, seja ela qual for. Deus faz coisas como
enviar a garotinha do casaco vermelho para o inferno eterno por pecados que ele a
predestinou que ela cometesse, e nós devemos acreditar que Deus é bom e que ele
até mesmo a ama.

Não se Iluda Mais


Tudo isso é suficiente para fazer com que muitos abandonem toda sua crença em
Deus, mas essa não é uma opção para muitos de nós. Vimos e experimentamos coisas
demais, e isso nos impede de pronunciarmos que Deus está morto — sua gravidade
nos mantém unidos.
Não, em vez de deixar de acreditar em deus, o dilema que m uitos enfrentam
é acreditar coisas terríveis acerca de Deus. Ao refletir sobre a perda de sua esposa. C.
S. Lewis expressa este tão importante sentimento: “Não que eu esteja (suponho)
correndo o risco de deixar de acreditar em Deus. O perigo real é o de vir a acreditar
em coisas tão horríveis sobre Ele. A conclusão a que tenho horror
de chegar não é ‘então, apesar de tudo, não existe Deus nenhum’, mas ‘então, é assim
que Deus é realmente. Não se iluda’.”36
Então é assim que Deus realmente é — não se engane mais. Para mim, esse foi
um momento de transição extremamente importante. As principais crenças cristãs,
amor, justiça e bondade de Deus, já não mais faziam sentido para mim. Eu já não
mais podia me iludir pensando que sabia o queria dizer quando dizia que Deus era
bom.
Percebi que a única coisa que poderia dizer sobre Deus era que ele fazia tudo
para sua glória. Sério — isso e mais nada.
Deus é amor. Deus é justo, Deus é bom — puxe a cortina e tudo o que isso quer
dizer é que Deus faz tudo para sua glória. Ou como o professor Quirino Quirell diz
ao Harry Potter. “Não existe bem e mal, existe apenas o poder...’37. O desejo de Deus
de glorificar a si mesmo não só havia subordinado, mas também consumido todos
seus outros desejos, de sorte que a única coisa que entendia acerca de Deus era que
ele queria glorificar a si mesmo. Amor, justiça e bondade haviam sido retorcidos
além do reconhecimento, à medida que foram engolidos no buraco negro de sua
glória.

Dentro Do Abismo
Eu já disse que ainda era calvinista?
Bem, eu era, e apesar das feridas paralisantes que minha crença havia
sofrido, eu me apegava ao calvinismo porque — você deve imaginar — eu estava
convencido de que a Bíblia o ensinava. Conforme John Piper diz. “Meu objetivo é
deixar a Escritura prevalecer — deixá-la ensinar o que quiser, e não dizer o que ela
não pode dizer (...). A Escritura nos leva precisamente a esta posição paradoxal.
Estou disposto a deixar o paradoxo permanecer ainda que eu não possa explicá-
lo”38
Então, embasado nas Escrituras, eu adentrei o abismo. Quem é Deus? Eu, de
fato, não sabia. Ele glorifica a si mesmo — isso é tudo o que podia dizer. Como eu
sabia? Por causa da Bíblia. Mas conforme adentrava o abismo, o chão desmoronava

36LEWIS, C. S. A anatomia de uma dor. um luto em observação (São Paulo: Vida, 2006), 32.
37ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal (Rio de Janeiro: Rocco, 2000), 248.
38Piper, The Pleasures o f God, 146.
debaixo de mim. O calvinismo havia empurrado Deus tão fundo no vazio do
mistério e da transcendência, que o que me aconteceu a seguir era inevitável.
Deus Tornado Possível
No Horizonte de Eventos
O que aconteceria se a terra ficasse perto demais daquele supermassivo buraco
negro no centro da Via Láctea? O termo técnico para “perto demais" é horizonte-de
eventos, o ponto de não retomo. Se algo atinge o horizonte de eventos, a próxima
parada é o núcleo do buraco negro, pois nesse ponto sua gravidade é tão forte que
fugir é impossível. E nessa jornada ao núcleo, a terra seria esmagada de forma a ficar
irreconhecível, um planeta repleto de uma diversidade incrível, esmagado e
esfacelado.
Neste estágio de minha jornada as bandeiras vermelhas estavam sinalizando, e
meus ouvidos ameaçavam estourar em razão da pressão, mas eu ainda deixava a
Bíblia me trazer ao horizonte de eventos do calvinismo. E em minha descida ao
abismo, as linhas estavam embaçadas, a diversidade havia se tomado
homogeneidade, e tudo escureceu.
Isso é o que acontece com todas as demais coisas quando tudo tem a ver com a
glória de Deus.

Bíblia e Crença
Deus fala através da Bíblia. Podemos andar em círculos discutindo a precisa
natureza dessa fala, e se devemos chamar a Bíblia de infalível, inerrante ou outro
termo, mas a crença de que Deus está, de fato, falando mediante a Bíblia é uma
característica essencial do cristianismo. E. todavia, é uma ironia estranha que a
crença na inspiração e autoridade da Bíblia tenha se tomado tão arraigada e
presumida que muitos se esqueceram que tal crença é apenas isto, uma crença. Vale
a pena repetir, a crença na inspiração e autoridade (e seja lá quais forem as outras
definições que você se sinta compelido a oferecer) da Bíblia é, em última estância,
uma crença. E para ser mais preciso, é a crença de que Deus está verdadeiramente
comunicando sua mensagem e propósitos na Bíblia.
Suponha que pedissem para você provar a inspiração e a autoridade da
Bíblia — como você faria? Você poderia mostrar que descobertas arqueológicas
corroboram vários eventos bíblicos, você poderia ressaltar o cumprimento de várias
profecias bíblicas, poderia argumentar que ela impecavelmente explica o problema
humano. Ou você poderia pegar a rota da transformação pessoal e falar acerca de
como inúmeras pessoas sentem que ouviram Deus falar com eles através da
Escritura. Você poderia destacar que você mesmo experimentou isso.
E embora essas sejam boas razões para acreditar na inspiração e autoridade
da Bíblia, cada uma delas razões pode ser duvidada e, mais importante ainda,
nenhuma deles prova — de qualquer maneira remotamente definitiva — seja a
inspiração, seja a autoridade da Bíblia. Claro, algumas descobertas arqueológicas
afirmam o que a Bíblia diz, e algumas profecias parecem se ter cumprido, e muitas
pessoas sentem que Deus falou com elas mediante a Bíblia.
Mas nenhuma dessas razões — ou qualquer outra coisa que poderia ser
mencionada, ou mesmo o caso cumulativo que elas formam — jamais poderia
oferecer-nos uma certeza objetiva em relação à inspiração e autoridade da Bíblia.
Reflita sobre o caso. como você poderia estar “objetivamente certo’ que Deus fala
através da Bíblia? O que você sequer intenciona dizer com isso? Mas isso não é uma
crítica da Bíblia. É a natureza da crença.

Dando um salto
Em algum lugar próximo ao centro da crença existe um salto.
Por razões bíblicas, racionais e empíricas, somos levados a uma dada
crença. E tais razões podem levar-nos longe, e nos dar grande confiança que nossa
crença esteja certa, mas jamais podemos estar absolutamente certos disso. Não, se
você quiser verdadeiramente acreditar em algo — se quiser agir como se assim o
fosse, se quiser personificar a crença — então você precisará dar um salto. Não é um
salto às cegas (Deus jamais nos pede para que saltemos às cegas), mas, ainda assim, é
um salto. Crer é, afinal de contas, um negócio arriscado.
Tenho bons motivos para acreditar que minha esposa me ama. Ele é gentil
comigo, ela me diz que me ama, ela me respeita e até me prepara refeições
periodicamente. Mas não posso estar certo de que ela me ama. Não posso “provar”
que ela me ama. O altruísmo dela poderia simplesmente encobrir sua abominável
trama para arruinar a minha vida. Digo, ela realmente me disse “isso” uma vez e fez
41
“aquilo" outro dia. E, contudo, apesar da possibilidade de estar errado, eu escolho
acreditar que ela me ama. Claro, de uma maneira bem objetiva, ou minha esposa me
ama ou não me ama — ou é verdade ou não é. O problema é que como ser humano
não me é permitida a certeza objetiva. Ela pertence somente a Deus.
Dessa forma, não deveria ser surpresa que nossa crença na inspiração e
autoridade da Bíblia não é exceção. Apesar da barulhenta defesa em favor da certeza
objetiva da Bíblia, tais reivindicações — embora possam ser verdadeiras — são
sempre crenças. Chame a Bíblia do que quiser, acredite no que quiser, mas não se
engane= você está exercendo a fé (e muita) quando trata a Bíblia como inspirada por
Deus. Conforme Lesslie Newbigin diz.

A Bíblia reivindica ser uma verdadeira interpretação da história


universal. Uma vez que ainda não estamos no fim da história, e uma vez
que a história pode conter muitas surpresas, não podemos ter certeza
indubitável. As únicas respostas possíveis às reivindicações de que a
Bíblia faz são crer ou não crer. Não pode existir provas indubitáveis
(...). Não existe uma maneira científica de testar as reivindicações e
promessas que a Bíblia faz. Não há maneira de estar indubitavelmente
certo de que é isso de que a história trata, e de que isso nos dá a direção
de nossas vidas. Isso deve ser, como a igreja sempre disse, uma questão
de revelação divina aceita em fé .39

Acreditar que Deus fala verdadeiramente sobre si e seus propósitos na Bíblia é, como
toda crença, um risco. Acreditar na Bíblia exige crença em um Deus confiável. E
para mim, esse era o problema. Hora de ligar os pontos.

Ligando os pontos
Quais são algumas coisas (ações, inclinações) que você atribuiria a alguém que você
considera amorosóí
Sua lista pode ser bem longa, mas aposto que ela se resume às noções
básicas acerca do autossacrifício e da preocupação genuína pelo bem dos outros. No
mínimo do mínimo, uma pessoa amorosa não machucaria, de maneira irreparável,
alguém que ela amasse, principalmente quando ela não precisasse machucar. Além
do mais, para uma pessoa amorosa, a questão jamais seria se machucar alguém é

39Leslie Newbigin, Proper Confidence (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995), 54—55.
42
“justo”, mas se isso seria benévolo.Podemos concordar que de nossa perspectiva
(como seres finitos), tais coisas são essenciais ao amor?
Agora, quais coisas você atribuiria a alguém que você considera ju stó i
Nossas listas podem variar, mas — indo direto ao ponto — sua lista muito
provavelmente abarcará a crença de que uma pessoa justa não lhe daria um desejo
pecaminoso, não providenciaria meticulosamente as circunstâncias que o levariam a
agir em decorrência daquele desejo pecaminoso, e então o puniria por fazer algo
que ele tomou certo que você faria. Certo? Principalmente se o resultado de tudo
isso não fosse um bem maior para você, mas só punição sem fim. Podemos
concordar que, de nossa perspectiva humana, alguém que é justo não faz coisas
assim?
Agora, quais são as coisas que você atribuiria a alguém que você considera
bonfí
Mais uma vez. vamos direto ao ponto. Você não acha que uma pessoa boa
jamais faria algo como ignorar as pessoas em terrível sofrimento, quando ela
poderia facilmente ajudá-las. principalmente quando ela é a causa última desse
sofrimento. Podemos concordar que de uma perspectiva humana uma pessoa boa
não age assim?

A Pergunta de Um Milhão de Dólares


Agora a pergunta de um milhão de dólares.
Podemos concordar que. à luz do que Deus faz com os réprobos (criando-os
a fim de condená-los), ele não parece ter qualquer das qualidades em sentido
análogo algum ao que nós (seres humanos) entendemos que elas significam?
Podemos concordar que esse ato viola profundamente nossos entendimentos de
amor. justiça e bondade, que eles parecem significar exatamente o oposto do que
pensamos que eles significam? Podemos concordar que Deus parece nos pedir para
que sejamos mais amorosos, justos e bons do que ele é? Se alguém, exceto Deus,
fizesse tais coisas brutais e maliciosas, você alguma vez conseguiria convencer-se a
chamar tal pessoa de amorosa, justa ou boa? Claro que não. E, mais uma vez nós
devemos ter a coragem de olhar e enfrentar a pergunta, ao invés decantar “glória a
Deus” por cima os gritos dos réprobos.
Mas, para ser justo, o calvinismo sempre foi persistente em sua afirmação
de que tudo isso não deve ser visto como surpresa, pois Deus é Deus e nós somos
43
humanos, portanto, não podemos colocar Deus em nossas caixas morais. Isso é o que
a Bíblia ensina, portanto, precisamos acreditar nisso — mas aqui jaz o problema.
Se acreditar na inspiração e autoridade da Bíblia exige crença em um Deus
confiável que diz a verdade acerca de si mesmo, o calvinism o pode apresentar esse
Deus?Y, foi aqui que tudo escureceu.

A Bíblia Tomada Impossível


Você sabe o que quer dizer ser confiável e verdadeiro. Significa que a pessoa é
confiável no sentido de dizer a verdade, principalmente acerca de si mesma.
Significa que as coisas que essa pessoa diz correspondem à forma que as coisas
realmente são. Significa que tal pessoa não ilude intencionalmente as outras. E como
enfatizei, a Bíblia não tem utilidade a menos que haja um Deus confiável e
verdadeiro falando po r e através da Bíblia. E espero que a próxima pergunta tenha
ficado tão óbvia que eu não precise fazê-la.
Se o calvinismo estiver correto, e nós estivermos, em razão de nossa
humanidade, Mo inacreditavelm ente errados acerca do amor, justiça e bondade de
Deus, por que deveríamos pensar que estamos certos acerca da integridade e
sinceridade de Deus em sua autorrevelação na Bíblia? Na verdade, à luz de quão
errados nós (aparentemente) estamos em relação ao amor, justiça e bondade, não
apenas é possível, mas também provável, que estejamos igualmente errados acerca
da confiabilidade e integridade de Deus? Por que nossa habilidade de entender as
coisas, tais como a integridade e a confiabilidade de Deus, seria uma exceção à nossa
completa depravação racional? Por que deveríamos deixar passar essas coisas?
Claro, a Bíblia diz que Deus é verdadeiro e não pode mentir, mas quem somos nós —
como seres humanos — para presumir o significado de tais coisas? Já não ficou
provado que não temos a menor idéia? Se somos tais imbecis no que diz respeito ao
entendimento da moralidade de Deus, e pensamos que mentiras são ruins, então
Deus provavelmente pensa que mentiras são boas de sorte que ele nos conta um
__monte de mentiras na Bíblia (para sua glória, claro). Conforme David Baggett e Jerry
Walls observam.

Se a Bíblia realmente ensina tal doutrina [eleição incondicional e


reprovação], não seria mais racional acreditar que ela não é moralmente
precisa? Essencial à nossa convicção de que a escritura seja confiável é
a confiança de que Deus, como perfeitamente bom, não nos enganaria.
[Mas] se Deus não for reconhecidamente bom (...) não temos a garantia
dessa confiança (...). Em face dessa realidade, o compromisso com a
verdade da revelação bíblica nos fornece razões poderosas para rejeitar
a teologia calvinista40.

Em uma estranha reviravolta, meu calvinismo havia retirado de mim a


própria Bíblia que uma vez ele havia me dado41. A teologia que havia proclamado a
inspiração e autoridade da Bíblia havia agora desacreditado ambas. E percebi que se
fosse permanecer calvinista eu já não mais saberia o que fazer com a Bíblia42. Pois se
eu fosse continuar a tratá-la como uma revelação de Deus verdadeira e confiável,
seria apenas porque eu não tinha a coragem de viver minhas convicções com
consistência.
João Wesley tem uma declaração conhecida sobre o fato de que a Bíblia não
poderia ensinar a doutrina calvinista da predestinação. De acordo com Wesley “O
que quer que (...) a Escritura prove, ela jamais pode provar isso”43 Anteriormente eu
havia utilizado essa afirmação como mais um exemplo do latente humanismo e
recusa do teísmo do livre-arbítrio em permitir que Bíblia fale por si mesma. Mas
agora eu percebia o significado mais profundo das palavras de Wesley. Para Wesley,

" ,,)avKÍ Baggett e Jerry Walls, Good God: The Theistic Foundations o f Morality (Nova Iorque: Oxford
University Press, 2011), 78.
41 Eis aqui uma formulação formal do problema, encontrado em ibid., 245:
1) Se não temos justificativa para acreditar que a Bíblia foi inspirada por um Deus moralmente perfeito,
então não temos justificativa de pensar que ele seja confiável.
2) Se não temos justificativa para acreditar que Deus é moralmente perfeito, então não temos justificativa
de acreditar que a Bíblia foi inspirada por um Deus moralmente perfeito.
3) Se Deus não for reconhecidamente bom, então não temos justificativa de acreditar que Deus seja
moralmente perfeito.
4) Se for racional acreditar que Deus condena aqueles que ele poderia salvar, sem violar o livre-arbítrio dos
mesmos, então Deus não é reconhecidamente bom.
5) Se for racional acreditar no calvinismo, então é racional acreditar que Deus condena aqueles que ele
poderia ter salvado sem precisar violar o livre-arbítrio dos mesmos.
6) Se for racional acreditar no calvinismo, então Deus não é reconhecidamente bom.
7) Se for racional acreditar no calvinismo, então não temos justificativa para acreditar que Deus é
moralmente perfeito.
8) Se for racional acreditar no calvinismo, então não temos justificativa para acreditar que a Bíblia foi
inspirada por um Deus moralmente bom.
9) Se for racional acreditar no calvinismo, então não temos justificativa para pensar que a Bíblia é
confiável.
10) Temos boas razões para acreditar para acreditar que a Bíblia é confiável.
11) Portanto, não é racional acreditar no calvinismo.
Não estou reivindicando que os calvinistas não sabem o que fàzer com a Bíblia ou não acreditam em sua
inspiração ou autoridade. Estou dizendo que à medida que tentei ser um calvinista consistente, eu já não
podia mais enxergar quaisquer bases para minha crença na inspiração e autoridade da Escritura.
OLSON, Roger E. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Tradutor: Wellington Carvalho Mariano
(São Paulo, Editora Reflexão, 2013) p. 94.
se a Bíblia ensina que Deus incondicionalmente ordena pessoas para a condenação
eterna, perdemos a Bíblia, pois perdemos um Deus confiável — a Bíblia torna-se
impossível. Eu não sabia como discordar.

Obscurecendo Totalmente
A busca de Lutero por um Deus gracioso foi um catalisador importante para a
Reforma Protestante44. Ironicamente, descobri que havia trilhado um caminho
semelhante e agora fui deixado à busca de um Deus confiável e cognoscível. A
ênfase persistente no mistério e na transcendência havia tirado Deus completamente
da esfera da “cognoscibilidade”, a ponto de que eu já não podia relacionar-me com
um Deus cujo branco era o meu preto. Podia temê-lo, mas jamais poderia conhecê-
lo — ele havia decretado que fosse assim.
E isso foi o que aconteceu comigo no núcleo do buraco negro da deidade
que se autoglorifica. as luzes apagaram e m e deixaram sentado no escuro, em um
universo absurdo, com uma deidade enigm ática de puro poder, mas sem interesse no
bem estar das pessoas. C. S. Lewis mais uma vez captura a essência da desorientação
exigida pelo calvinismo honesto e consistente:

Ou se poderia apresentar com seriedade a idéia de um Deus ruim, por


assim dizer, que entrasse pela porta dos fundos, por um tipo de
calvinismo extremo? Poderíamos dizer que somos decaídos e
depravados. Somos tão depravados, que nossas idéias de bondade nada
valem; ou valem menos do que nada — o próprio fato de que achamos
algo bom é a evidência provável de que esse algo é, na verdade, ruim.
Ora, Deus tem, realmente — nossos piores temores são um fato —,
todas as características que consideramos ruins: caráter irracional,
vaidade, índole vingativa, injustiça, crueldade. Mas todos esses aspectos
perversos (do modo como se afiguram a nós) são, na verdade, puros. E
apenas nossa corrupção que os faz parecer cruéis para nós.

E daí? Isso, para todos os propósitos práticos (e especulativos), apaga


Deus da lousa. A palavra bom, aplicada a ele, toma-se sem sentido:
como abracadabra. Não temos nenhum motivo para obedecer a ele.
Nem mesmo temor. É verdade que temos suas ameaças e promessas.
Mas, por que deveríamos acreditar nelas? Se a crueldade, do ponto de
vista dEle, é “boa”, contar mentiras pode ser “bom” também. Mesmo
que sejam verdadeiras, que importa? Se as idéias dEle acerca do bem

44 Vide OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas (São Paulo, Vida,
2001), 379-384.
são tão diversas das nossas, aquilo a que Ele chama “Céu” pode muito
bem ser o que chamaríamos “Inferno”, e vice-versa.
Por fim, se a realidade em sua própria origem for tão sem sentido para
nós — ou exprimindo-o de maneira contrária, se formos esses
rematados imbecis — qual é o valor de tentarmos pensar sobre Deus ou
sobre alguma coisa mais? Esse nó desata-se quando tentamos apertá-
lo.45

Eu havia apertado bem o nó, e agora ele estava sendo desfeito. Pois se Deus
podia predestinar incondicionalmente as pessoas para o inferno — e eu devia
chamar isso e o Deus que fez isso de bons — então meu equipamento racional
estava tão avariado que Deus era completamente incognoscível, e toda a fala
contrária é tratar uma especulação como se fosse fato. Eu podia pensar que conhecia
a Deus, podia sentir que conhecia a Deus, mas eu não conhecia a Deus. Deus e a
Bíblia se tornaram impossíveis, eu fui relegado a uma vida em um universo
incoerente e distorcido. Porque quando tudo tem a ver com a glória de Deus, todas
as demais coisas — amor, justiça, bondade, misericórdia, ira, significado, existência-
— se obscurecem totalmente.

Uma Parede em Auschwitz


Dentro de Auschwitz há uma parede.
É uma parede em uma cela onde as pessoas sentavam no escuro, enquanto
aguardavam a execução. E naquela parede há uma gravura feita sobre a rocha —
um homem se agarrando à cintura de Cristo. À medida que a luz diminuía, as mãos
debilitadas arranhavam a pedra, buscando seu Salvador46.
Embora poucos de nós tenha estado lá, nós já estivemos naquela mesma
situação, arranhando as coisas no escuro, tentando encontrar, às cegas, nosso
Criador. Mas o que acontece quando o Deus que você está buscando é quem apagou
as luzes? O que acontece quando todo o universo se obscurece totalmente?
Sentei no abismo por um tempo — esperando que meus olhos se ajustassem
—,mas quando eles não se ajustaram eu tive uma decisão a tomar: continuar com o
calvinismo e fazer desse buraco negro de enigma e “glória" a minha casa, ou
começar novamente o doloroso processo de desconstrução e reconstrução que havia

^ 45LEWIS, C. S. A anatomia de uma dor. um luto em observação (São Paulo: Vida, 2006), 53-54.
Essa é uma história que encontrei em Daniel Taylor’s The Skeptical Believer: Telling Stories to Your
Inner Atheist (Saint Paul, MN: Bog Walk Press, 2013), 27—28.
inaugurado toda a jornada. Claro, tudo isso foi bastante dramático, no sentido de
que essa é uma narração bastante condensada de um lento processo. Como disse no
início, não existem soluções fáceis aqui. Outros trilharam rotas semelhantes,
confrontaram os mesmos problemas, atravessaram o horizonte de eventos, enão
acham que o buraco negro seja, de fato, tão sombrio. Mas para mim, o ataque
violento havia sido demais. Duas perguntas simples.
Quem é Deus?
Como você sabe?
Eu já não podia mais responder a qualquer delas, e embora eu não soubesse
para onde estava indo, eu sabia que buracos negros não eram lugares apropriados
para moradia. Eu precisava de um novo lar.
O Deus Crucificado
Saindo de Casa
Minhas malas estavam feitas, meu Jeep estava entupido com meus pertences, e
conforme eu saía da garagem, eu sentia que aquele era um dos momentos em que
uma ação aparentemente insignificante era o indicador de uma realidade mais
profunda: eu estava saindo de casa.
Às vezes, sair de casa é fácil, especialmente se a casa tiver sido um local de
abuso ou negligência. Mas, muitas vezes, sair de casa é difícil, principalmente se a
casa tiver sido um bom lugar. Claro, isso é o que uma casa deve ser, um bom lugar,
um local onde somos amados e alimentados, e lembrados de quem somos. É preciso
coragem para deixar um lar, e esse é ainda mais o caso quando você não tem certeza
para onde está indo. E se seu novo lar não for tão bom quanto seu antigo lar? E se
não for bom de jeito algum? E se jamais encontrar um novo lar e ficar vagando...
para sempre? Isso ê o bastante para que você desista da jornada, e dê uma volta
rápida pelo quarteirão.
E embora a teologia represente várias coisas para nós, ela é primeiro e antes
de tudo, um lar47. A teologia é aonde vamos para sermos lembrados de quem Deus é,
quem somos e o que devemos fazer. É o local ao qual podemos retornar no fim de
um longo dia, e meditamos sobre nosso comportamento — onde peneiramos e
separamos as coisas, a fim de discernir onde estávamos, mas que não deveríamos
estar, e onde deveríamos estar, mas que não estávamos. Quando tudo fica
desordenado, a teologia nos alcança em meio à bagunça e encontra beleza por baixo
da superfície.
Deixar o calvinismo foi difícil, pois ele havia sido minha casa. Ele havia me
acolhido quando eu desesperadamente precisava de resgate. Ele havia me ensinado a
valorizar a glória de Deus acima do conforto, a Escritura acima das minhas opiniões,

47E u também observaria que a teologia não é uma opção. Todos nós temos um lar teológico. Conforme C.
S. Lewis diz, “se você não ‘der atenção’ à Teologia, isso não significa que não terá idéia alguma sobre
Deus. Significa que terá, isto sim, uma porção de idéias erradas — idéias más, confusas, obsoletas.”
Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: Martins Fontes, 2005), 55.
e uma abordagem teocêntrica acima de uma abordagem antropocêntrica. E,
previsivelmente, meus primeiros passos atravessando a porta foram um caso cômico
de pernas vacilantes e olhos cegos.
Eu era jovem, eu era incansável e agora eu estava perdido.

Limbo
“Eu não sei no que você acredita, e acho que você também não saiba. É como se você
soubesse apenas no que você não acredita”.
Anos mais tarde, as palavras ainda doem. Lá eu sentei, de frente a um pastor
de jovens que havia sido meu mentor e me apresentado ao calvinismo, e a conversa
não foi engraçada. Passei a maior parte do tempo balbuciando, erguendo a voz de
maneira pouco coerente em frustração e medo, tentando explicar por que eu não
podia mais chamar o calvinismo de meu lar. Tentei dividir o discurso em partes, e
ele escutou pacientemente, fez algumas perguntas e então ofereceu um diagnóstico,
eu estava no limbo. Eu havia desmontado minha casa e agora sentava como um
errante sobre a guia gelada de cimento. Certamente aquilo não parecia muito uma
melhora.
Em uma inteligente avaliação de boa parte dos eruditos críticos da Bíblia,N.
T. Wright conta uma parábola de um homem levando seu velho carro ao mecânico
para um ajuste48. Ele retorna e descobre que o mecânico desmontou seu carro por
completo. As peças estão espalhadas por todos os lugares da oficina, e o mecânico
prossegue falando sobre como tem sido engraçado desmontar o carro, e como certas
peças precisam ser substituídas e outras reformadas. O dono, todavia, olha
fixamente em descrença, e então vai embora pesaroso. Ele não precisa de seu carro
desmontado de sorte que possa criticar e louvar todas as peças. Ele precisa de seu
carro ajustado para que possa usá-lo! Certa desmontagem pode ser exigida, mas
todas as peças precisam ser recolocadas, de maneira que o carro possa ser dirigido. A
única coisa pior que recusar a desconstrução de algo que claramente precisa ser
desconstruído é desconstruir algo e então jamais realizar o árduo trabalho da
reconstrução.

48N. T. Wright, How God Became King: The Forgotten Story o f the Gospels (Nova Iorque: HaiperOne,
2011), 253-254.
1Viva la Deconstrucciónl
Com um martelo em punho, eu observei o entulho ao meu redor e percebi que
embora a demolição de minha casa houvesse sido necessária, eu ainda precisava de
um lugar para morar. As pessoas que jamais tentam encontrar uma nova casa
acabam por ficar vagando pelas caçambas de lixo do cinismo. Cínicos adoram
inspecionar o lixo alheio e mostrar a roupa suja do outro, para que o mundo possa
ver. Se eles não podem ter uma casa. ninguém deve ter uma! / Viva la
D econstrucciónl
E então eu vaguei pelos escuros becos por certo tempo, inspecionei a minha
cota de caçambas de lixo, e vandalizei a casa de terceiros na tentativa de fazer com
que as pessoas se juntassem a mim nas ruas. Buracos negros são lugares ruins para
viver, mas as ruas não são muito melhores, então minha fé ansiava por um lar.
Ao relembrar essa experiência de limbo, apenas uma palavra parece
adequada, depressão. Parker Palmer chama depressão de um mecanismo de
sobrevivência da alma49. É a alma firmando bem os pés, e recusando a prosseguir
por um caminho insustentável. É a alma o advertindo de que a autodestruição o
espera, cáso você não dê meia-volta. E para qualquer um que experimentou a
depressão em alguma medida, isso é mais do que verdade. Pela graça de Deus, eu
entendi o recado e comecei o processo de troca do meu martelo por pregos. Mas por
onde começar?

Deus Se Parece com Jesus


Ao começar algo, é bom começar pelo início. E então qual é o início teológico para a
fé cristã? Pessoas mais inteligentes que eu ofereceram respostas abrangentes a essa
indagação, mas sugiro que a melhor resposta, ainda que profunda, é bastante
simples: Jesus é Deus.
Quando Jesus de Nazaré apareceu na cena, o próprio Deus havia
encarnado. Isto é, claro, o grande escândalo da fé cristã e o tema do prólogo no
evangelho de João:

No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era
Deus (...). Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória, glória como do Unigénito vindo do Pai (...).

4,Parker Palmer, A Hidden Wholeness: The Journey Toward an Undivided Life (S3o Francisco, CA: Jossey-
Bass, 2004), 36-37.
Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigénito, que está junto do
Pai, o tomou conhecido. (João 1:1, 14, 18, NVI)

Tanto de formas implícitas quanto explícitas, essa é a incessante afirmação


da Escritura. O Deus criador, o Deus libertador, o Deus de Israel e do universo, e o
Deus que retomará para julgar os vivos e os mortos, é o Deus revelado na vida,
morte e ressurreição de Jesus, o Messias. Conforme Paulo diz. “Jesus é a imagem do
Deus invisível” (Colossenses. 1.15). Conforme Jesus diz. “Quem me vê a mim, vê o
Pai”(João 14=9). Isso não é negociável, nem está aberto a debate, e se você não gostar,
você precisa pegar sua bola e ir para casa. Deus se parece com Jesus. Não algumas
vezes, não em parte do tempo, não a maioria das vezes, mas Deus sempre pareceu e
sempre se parecerá com Jesus, porque Jesus é Deus.

De Jesus para Deus


Isso significa que a teologia cristã parte de Jesus para Deus, e não do que você acha
que sabe acerca de Deus para Jesus. Ou você encontra Deus nos termos de Jesus, ou
você encontra algo que não é Deus. Como Brennan Manning disse, “...todas as
nossas imagens e os nossos entendimentos predominantes de Deus devem
desmoronar no terremoto da autorrevelação de Jesus (...). Se não permitirmos que
Jesus mude nossa imagem de Deus (...), então não podemos professá-lo como
[Senhor]”50. Tudo o que achamos que sabemos acerca de Deus deve ser submetido ao
que é revelado em Jesus, e quando fracassamos em permitir que Deus defina a si
mesmo em Jesus por acharmos que somos mais espertos, cometemos idolatria.
Esta é então o início da fé e da teologia cristã, uma disposição de deixar
Jesus fazer sua obra de desconstrução e reconstrução em nossos corações e mentes a
fim de que possamos saber o que significa chamá-lo de Messias e Deus. Tudo isso
para dizer que parece que a Escritura não apenas sugere, mas exige que, de maneira
inflexível, sejamos cristocêntricos em nossa teologia.

Cristocêntricos Demais?
Mas podemos ser cristocêntricos demais? Podemos focar exageradamente em Jesus?
Essa é a pergunta que o proeminente teólogo calvinista Bruce Ware busca
responder, e sua conclusão é, uma palavra, sim. “Não há dúvida, então, da

50Brennan Manning, Ruthless Trust: The Ragamuffin’s Path to God (Nova Iorque: HarperCollins, 2000),
88 .
centralidade, supremacia e peremptoriedade da revelação de Jesus Cristo. Mas. por
outro lado, Jesus Cristo não deveria ser visto como a exclusiva revelação de quem
Deus é"51.
O ponto de Ware é que Jesus não é o único local onde Deus se revela. Em
especial. Ware quer preservar a testemunha das Escrituras hebraicas como um lugar
onde Deus é revelado, e um local que nós continuamente revisitemos se quisermos
entender o que Jesus está nos mostrando e dizendo. Ele faz uso de Hebreus 1.1-2
como prova, onde o escritor assevera a supremacia da revelação de Deus em Jesus,
mas também reconhece “a rica história ou revelação que já havia sido dada quando
Jesus encarna"52. E seu argumento é aceito e apreciado.
A teologia que coloca a revelação exclusivamente em Jesus e implicitamente
descarta o Antigo Testamento não é apenas irresponsável, mas extremamente rasa e,
por fim, fracassa em levar a sério o Jesus que ela supostamente venera, pois o Jesus
da Escritura certamente tratou as Escrituras hebraicas como revelatórias. Jesus
jamais ensinou que ele era a revelação exclusiva de Deus. Mas, interessantemente, o
ponto crucial da questão atinge um cume do qual a citação de Ware de Hebreus 1 se
precipita.

Hebreus 1.3
Hebreus 1.3, embora freqüentemente ignorado, é uma das afirmações mais
surpreendentes do cânon bíblico. “O qual (Jesus), sendo o resplendor da sua glória, e
a expressa imagem da sua pessoa...”.
O mistério impenetrável da glória divina resplandece como um bilhão de
estrelas no rosto de Jesus de Nazaré. “Vemos a glória de Deus em Jesus, e a vemos
como ela realmente é’53. E ainda mais importante, Jesus é a precisa representação da
natureza de Deus. Ou, no grego, Jesus é o charaktér (impressão exata) do
hypostaseós (ser/natureza/essência) de Deus.
Essa é uma expressão carregada de significados, gotejando tanto
implicações morais quanto ontológicas, com talvez seu significado mais importante
sendo o mais simples deles, o caráter de Jesus é o caráter de Deus. Deus jam ais faria

5lBruce Ware, G od’s Greater Glory: The Exalted God o f Scripture and the Christian Faith (Wheaton, IL:
Crossway, 2004), 41.
52 Ibid.
53Leon Morris, “Hebrews,” ed. Frank E. Gaebelein, The Expositor’s Bible Commentary, vol. 12 (Grand
Rapids, MI: Zondervan, 1981), 14.
algo que Jesus considerasse moralmente repreensível, então se você não encontra
determinado aspecto em Jesus, então você realmente precisa pensar duas vezes antes
de alegar que o encontrou em Deus. Embora seja verdadeiro que Jesus não é a
exclusiva revelação de Deus, também é verdadeiro que Jesus é a revelação exaustiva
do caráter de Deus, do coração de Deus.

O Deus Oculto
Uma das características menos conhecidas da teologia de Martinho Lutero era a
doutrina do Deus absconditus, ou o Deus oculto54. Indo bem além do óbvio truísmo
de que nem tudo acerca de Deus é compreensível para os humanos, Lutero
acreditava que, em pé atrás do Deus revelado em Jesus, há um Deus oculto, do qual
nós nada sabemos. Resumindo a doutrina de Lutero do Deus oculto, B. A. Gerrish diz,
“A imagem de Deus não plenamente coincide, afinal de contas, com a figura de
Jesus’55.
Claro que a partir daqui basta um mero impulso, uma corrida e um salto
para a doutrina da dupla predestinação, na qual o Deus revelado em Jesus parece
querer que todo o mundo seja salvo, ao passo que o Deus oculto ordena que muitos
pereçam. Embora poucos sejam tão honestos quanto Lutero, o calvinismo consistente
parece forçar que você acredite em um Deus oculto58.
E embora a doutrina do Deus oculto negue os ensinos de Jesus e de Paulo
mencionados acima, é possível apreciar o ímpeto que alimentou o pensamento de
Lutero. Na mente de Lutero, a maioria da teologia a seu redor domesticava Deus ao
inseri-lo em caixas lógicas herméticas. Compreensivelmente, então, Lutero quis
remover os grilhões, e dar espaço a Deus para ser Deus, e o princípio de sola
scriptura (escritura somente) da Reforma e o pensamento protestante subseqüente
seguiram o exemplo. Nós protestantes (supostamente) nos recusamos a colocar Deus
em qualquer çaixa lógica ou experiencial por receio de que ela irá restringir sua
absoluta liberdade e, conseqüentemente, diminuir sua glória. Nós só o colocamos na
caixa da Bíblia.

54Para uma boa discussão sobre isso vide OLSON, Roger E. História da Teologia
Cristã: 2000 anos (Je tradição e reformas (São Paulo, Vida, 2001), 397-399.
55B. A. Gerrish, ‘“ To the Unknown God’: Luther and Calvin on the Hiddenness o f God”, Journal o f
Religion 53 (1973), 276.
56Muitos tentam evitar essa ideia do Deus oculto dizendo, por outro lado, que Deus tem “duas vontades”.
Mas, novamente, uma distinção sem diferença. Deus oculto... duas vontades em Deus... ambas querem
dizer um Deus esquizofrênico.
Mas e se a Bíblia nos ensinar que Deus, todavia, realmente se coloca em
ainda outra caixa?

Deus na Caixa [de Jesus]


E isso é precisamente o que a Bíblia nos ensina acerca de Jesus. Não podemos colocar
Jesus em uma caixa, mas não podemos decidir se Deus escolhe ou não se colocar em
uma, e, em Jesus, isso é exatamente o que Deus fez.
Jesus é a exata representação da natureza de Deus, e não existe Deus oculto
algum espreitando na sombra de Jesus, e sabemos disso pelo fato de a Bíblia nos
revelar assim. Conforme Dallas Willard diz. “O caráter de Deus realmente poderia
ser o de Jesus? A surpreendente resposta é= ‘Sim, de fato’”57. Para mim esse foi um
ponto de partida indisputável, e o local onde se deu o encerramento da
desconstrução e o início da reconstrução.
O que dizer sobre Jesus e o calvinismo?

Jesus em Preto e Branco


Como Jesus era? O que a Escritura nos revela de seu caráter e coração? Deve ser dito
lqgo de início que a questão não é tão simples quanto parece. A então chamada
“busca pelo Jesus histórico” é um caso interessante em termos de pertinência.
Especialistas bíblicos estudaram cuidadosamente os evangelhos, e geralmente
chegaram a opiniões radicalmente diferentes em relação à identidade do Jesus
“verdadeiro”. Jesus foi um cínico igualitário, Jesus foi um elitista gnóstico, Jesus foi
um homem bom que gostava de seus semelhantes e que jamais reivindicou ser Deus.
Por fim, muitos foram levados à conclusão de que a busca pelo Jesus verdadeiro era
como olhar para a água no fundo de um poço e confundir Jesus com seu próprio
reflexo. Quando vamos até Jesus com pressupostos, tendemos a encontrar o que
estamos buscando.
Jesus, por um lado. geralmente é caricaturado como um hippie fumador de
maconha que não repreenderia Hitler por puxar a alavanca da câmera de gás.
Conforme Mark Driscoll observa, muitos querem “remodelar Jesus como um hippie
efeminado, de vestido, e com muito produto em seu cabelo, que bebia café
descafeinado, e fazia comentários zen incisivos acerca da vida, enquanto comprava o

57Dallas Willard, The Divine Conspiracy: Rediscovering Our Hidden Life in God (Nova Iorque:
HarperCollins, 1997), 334.
par perfeito de sapatos"58. Esse Jesus jamais poderia enviar alguém para o inferno,
pois isso violaria o seu principal atributo, agradabilidade.
Anos antes, J. B. Phillips fez uma observação semelhante em sua obra
clássica, Your God is too Sm all (Seu Deus é pequeno demais), satirizando o meigo e
suave Jesus.

Meigo! Que palavra para se usar para uma personalidade cuja


provocação e estranha atratividade, dezenove séculos depois, de forma
alguma, exauriram (...). Ouvimos ou lemos, de alguém que foi um
“verdadeiro santo: ele jamais viu defeito algum nas pessoas, e jamais
proferiu uma palavra contra quaisquer delas em toda a sua vida”. Se
essa realmente for a santidade cristã, então Jesus Cristo não foi santo.59

Jesus, por outro lado, geralmente é caricaturado como um sanguinário


lutador de MMA, indubitavelmente comprometido em uma eterna luta no octógono
com o Espírito Santo. Após uma avaliação espirituosa e perceptiva do Jesus “bem
esquerdista”.Driscoll continua com sua avaliação do Jesus “verdadeiroVNo
Apocalipse Jesus é um lutador do Campeonato Pride. com uma tatuagem em Sua
perna, uma espada em Sua mão e o compromisso de sangrar alguém. Esse é um cara
que posso adorar. Não posso adorar o Cristo hippie, de fralda e auréola, pois não
consigo adorar um cara em quem posso dar uma surra”60.
(Claro, a ironia cômica aqui é que Jesus foi provavelmente um cara de 1.60
metro e que pesava 59 kg — portanto, tenho certeza de que a maioria de nós
poderia dar uma surra nele. Na verdade, ele realmente tomou uma surra e tanto, e
teve a audácia de deixar que ela fosse meticulosamente documentada e
compartilhada com todo o mundo. Apenas confira as narrativas da paixão. Então,
caso não possa adorar um cara em quem você possa dar uma surra, você não pode
adorarJesuá).
Algo entre o Jesus “hippie efeminado” e o Jesus “Rambo” deve ser
apresentado. Então, o que vemos do coração e caráter de Jesus quando lemos os
evangelhos sem (o máximo que podemos) idéias preconcebidas, e como isso deveria

58Mark Driscoll, “7 Big Questions.” Relevant Magazine, Edição 24, agosto de 2007.
http://www.relevantmagazine.eom/i; txl/church/features/l344-from-the-mag-7-big-auestions.
59J. B. Phillips, Your God Is Too Small (Nova Iorque: Touchstone, 2004), 27,29.
“ Driscoll, “7 Big Questions.”
moldar nossas crenças a favor ou contra o calvinismo? A única maneira de formar
uma boa opinião é ler os evangelhos.

Jesus dos Evangelhos


Jamais fui capaz de ler os evangelhos sem me encolher um pouco com medo. As
palavras e ações de Jesus geralmente são um pouco espinhosas. Ele é sucinto com sua
mãe, ignora seus irmãos, não permite que futuros discípulos enterrem seus pais
mortos, conta parábolas sobre pessoas sendo cortadas ao meio, e não faz cerimônia
em relação ao fato de que rejeitá-lo irá tirar você da lista dos convidados de sua festa
pública escatológica61.
Uma análise honesta dos evangelhos deixa claro para mim que Jesus é bem
duro. Ele tem um senso robusto da depravação humana. Ele geralmente fala
claramente acerca da ira sob a qual estamos como resultado de nossa depravação.
Ele permite que o pobre Lázaro passe alguns dias no Sheol para a glória de Deus. E
um dia ele virá com uma espada para julgar “mortos, grandes e pequenos”62. Não há
duas maneiras, nada de “se”, “e”, ou “mas”. Jesus é duro.
Contudo, a pergunta quanto a Jesus e o calvinismo não é “Jesus é duro?”,
mas “o caráter e os ensinos de Jesus são compatíveis com as principais afirmações do
calvinismo?”. A saber, a criação por Deus dos réprobos, de sorte que ele pudesse
condená-los para todo o sempre. Ao olhamos para Jesus, somos atraídos ao
calvinismo ou somos afastados para longe do calvinismo? Ou talvez algo mais direto,
o Deus do calvinism o representa o Deus revelado em Jesus de maneira precisa?

Vinte e Quatro
Jesus estava por volta de seus trinta e três anos quando faleceu. Ele teve um
ministério público de três anos. João nos diz que se alguém tentasse escrever todas as
coisas miraculosas que Jesus fez, o próprio mundo não seria uma biblioteca grande o
bastante para a coleção final. E, todavia, com todo esse de que material se escolher,
todos os quatro evangelhos incessantemente dão atenção ao período de vinte e
quatro horas como o centro e clímax de, não apenas a história de Jesus, mas a
história de Israel e de toda a criação. É o período de vinte e quatro horas que se

61João 2:4, Mateus 12:46-50, 8:21-22, Lucas 12:41-18, 14:16-24.


62 Apocalipse 20:12.
inicia com o beijo de traição e culmina com o grito de abandono. É a crucificação do
Messias, o Filho de Deus.
E se a Escritura nos ensina a olhar primeiro e acima de tudo para Jesus nos
evangelhos, e os evangelhos nos treinam a focar na crucificação, parece claro que a
cruz nos oferece o olhar mais profundo para dentro do próprio coração de Deus.
Conforme Jürgen Moltmann observa, podemos ver as mãos de Deus sobre toda a
criação, mas é só na crucificação que vemos o coração de Deus63.
Isso quer dizer então que o Jesus crucificado é tanto o fundam ento quanto
crítica de toda a teologia cristã. A teologia cristã é cristã porque é construída em
torno da crucificação de Deus, e está continuamente sujeita a avaliação inflexível
sob a sombra da cruz. “Para mim o Cristo crucificado se tomou cada vez mais ‘o
fundamento e crítica da teologia cristã’. E para mim isso quer dizer que tudo o
quepuder ficar de pé ante da face do Cristo crucificado é teologia cristã verdadeira.
O que não conseguir ficar de pé deve desaparecer’64. De um lado a outro no
espectro teológico há uma incrível concordância de que “a cruz é o centro absoluto
da revelação de Deus à humanidade..."65.
E então, de maneira direta, o Deus na cruz se parece com o Deus do
calvinismo?

O Deus na Cruz
Onde você vê Deus quando Jesus é sendo crucificado?66
Você o vê pairando sobre a cruz. virando as costas para Jesus e derramando
sua ira? Você o vê nos soldados romanos crucificando Jesus? Ou você vê Deus
precisamente no Jesus crucificado, no Deus-homem pregado na cruz? Embora
certamente seja correto ver Deus punindo o pecado enquanto Jesus é crucificado
( vide Isaías 53=10), os evangelhos são enfáticos em sua ênfase de que devemos ver
Deus primeiro e acima de tudo no Jesus que está na cruz. Como Moltmann diz.
“Quando o Jesus crucificado é chamado a ‘imagem do Deus invisível’, o significado é

63Jürgen Moltmann, The Crucified God (Mineápolis, MN: Fortress, 1993), 212.
64 Ibid., x.
“ Gregory Boyd, Is God to Blame? Beyond Pat Answers to the Problem o f Suffering (Downers Grove, IL:
InterVarsity, 2003), 35.
66 Certa vez ouvi Brian McLaren fezer essa pergunta.
que esse é Deus, e Deus é assim (...). O núcleo de tudo que a teologia cristã diz acerca
de ‘Deus’ deve ser encontrado nesse evento de Cristo’67.
Isso vale a pena ser repetido — o núcleo de tudo que a teologia cristã diz
acerca de Deus deve ser encontrado no Jesus crucificado. E no Jesus crucificado nós
aprendemos que o Deus que derrama ira é o Deus cujas mãos estão pregadas na
cruz. O Deus que pune o pecado éo Deus que recebe a punição. O Deus que julga é
o Deus que olha para aqueles que o crucificam e diz, “Perdoai-os”68. Achei muito
difícil de conciliar o Deus crucificado com o Deus do calvinismo.
Reflita sobre isso por um momento. Deus poderia ter lidado com o pecado
de qualquer forma que lhe agradasse. Deus poderia ter feito conosco qualquer coisa
que quisesse. Deus poderia nos ter aniquilado ou nos lançado no eterno monte de
lixo. M as Deus escolheu a cruz. O Criador morre nas mãos de sua criação para que
ela (nós) não precise receber o que merece. E, contudo, esse mesmo Deus crucificado
também meticulosamente planejou e levou a cabo a condenação eterna das criaturas
pelas quais ele morreu?69 O Deus que se humilharia a tal ponto de ser crucificado e
sepultado é o mesmo Deus que crucificaria eternamente milhares de almas pelas
coisas que ele tornou certo que elas fizessem? Aquele que corta o ar noite com o
brado de abandono em prol de pecadores ordena o abandono dos réprobos?
Houve uma época em que eu permaneci diante da cruz maravilhado pelo
amor, justiça e bondade de Deus. mas por volta do final de minha jornada de
desconversão do calvinismo, meu fascínio foi substituído por pesar. A cruz já não era
mais um lugar de radiante amor e justiça, mas de brutal parcialidade da parte do
Deus, que supostamente não mostra parcialidade ( vide Deuteronômio 10=17, 2
Crônicas 19=7, Jó 34=19. Atos 10=34, Romanos 2=11, Gálatas 2=6, Efésios 6=9).
A cruz era um lugar onde o contrassenso suprem o e a ausência de
significado do universo atingiram seu auge. o Deus que tanto ama a ponto de
padecer a crucificação ama tão pouco a ponto de glorificar a si mesmo na
condenação de humanos que ele criou para serem condenados. Mas esperava-se que
eu permanecesse diante da cruz e adorasse esse Deus de ambígua moralidade que,
no fim das contas, não podia ser conhecido, como se eu soubesse o significado do

67Moltmann, The Crucified God, 205.


“ Lucas 23:34.
Claro, os calvinistas estão divididos em relação a se Cristo morreu por todo o mundo ou se apenas pelos
eleitos.
amor dele para comigo. E se você já não sabe como adorar o Deus crucificado, já não
sabe como se prostrar diante da cruz e dizer “obrigado”, o que você sabe?

Esquizofrenia Divina
Devemos observar adicionalmente que o Cristo crucificado é o mesmo Cristo que
encontramos em todas as páginas dos evangelhos. O que vemos no Gólgota é de tirar
o fôlego e maravilhoso, mas para os que estiveram prestando atenção, isso não
surpreende. Pois desde o início, Jesus se revela ser uma pessoa que, sem exceção,
envolve-se nos sofrimentos dos outros a fim de curá-los e transformá-los (só em
Mateus vemos 4=23-24; 8.1-4, 5-13, 14-17, 28-32; 9=1-8, 18-35; 12.9-14, 22-
29; 15.21-28, 29-31; 17.14-18; 20.29-34).
Nenhuma única vez sequer temos o menor indício de que Jesus é a fonte
por trás do sofrimento dos outros. Antes, Jesus incessantemente revela que Deus é o
curador do sofrimento e da doença, não o causador. “Sem exceção, quando Jesus
confrontava o aleijado, surdo, mudo, enfermo ou endemoninhado, ele
uniformemente diagnosticava a aflição dos mesmos como algo que Deus não
desejava (...). Jesus consistentemente revelava a vontade de Deus para as pessoas ao
curá-las de suas enfermidades"70.
Isso cria um dilema um tanto quanto bisonho para o calvinismo, onde Deus
Pai está fazendo as pessoas sofrer e o Deus Filho (Jesus) está curando as pessoas do
sofrimento que o Deus Pai está infligindo. Como eu deveria acreditar que Deus
infligiria sofrimento eterno nas pessoas pelos pecados que ele ordenou que elas
cometessem, quando Jesus (a exata representação de Deus) sempre curou as pessoas
de seus sofrimentos? Para mim, isso não era nem mistério e nem paradoxo, mas pura
esquizofrenia divina. Isso abria uma fissura no próprio coração de Deus ao dilacerar
a Trindade, colocando o Pai em oposição ao Filho e vice-versa — o Pai crucifica
pecadores, enquanto o Filho é crucificado pelos pecadores.

João
Mas como já foi devidamente observado durante todo o tempo, existem certas
passagens bíblicas que podem levar alguém ao calvinismo. As mais conhecidas são

™Boyd, Is G odto Blame?, 52-53.


algumas poucas passagens do evangelho de João e, claro, o notório capítulo 9 de
Romanos. John Piper resume bem as passagens,

Podemos resumir esta grande salvação a partir do evangelho de João


com os seguintes passos: todos que o Pai escolheu para serem seus ele
deu ao Filho (17:6); e todos os que ele deu ao Filho, o Filho conhece
(10:14) e chama (10:3); e todos a quem ele chama o conhecem (10:14) e
reconhecem sua voz (10:4-5) e vêm a ele (6:37) e o seguem (10:27); e o
Filho entrega sua vida pelas ovelhas (10:11,15); e a todos pelos quais
ele morre ele concede vida etema( 10:28) e os guarda na palavra do Pai
(17:6), de forma que nenhum se perca (6:39) ou seja arrancado de sua
mão (10:28), mas que seja ressuscitado no último dia (6:39) para
glorificar o Filho para sempre (17:10). É por isso que o Pai se deleita na
eleição. Ela é o indestrutível fundamento para uma salvação infalível
que redunda, no final, para a glória do Pai e do Filho.71

É uma razoável defesa a ser feita. Mas caso esteja procurando o calvinismo
nos evangelhos, você sairá frustrado. Você poderá dar atenção a algumas passagens
de ensinamentos de João e então projetá-las nos demais lugares. Novamente, isso é
possível — só não creio que seja provável. Contudo, o que é provável é que se você
seguir por esse caminho, sua Bíblia se tornará impossível (mas já vimos e já falamos
disso).

Romanos 9
Então, claro, há Romanos 9, o tigre rugindo que devora “defensores do livre-
arbítrio”. Cartas sobre a mesa, eu penso que Romanos ensina o calvinismo? Não (e
trataremos disso no último capítulo). Tenho certeza disso? Não, mas eis aqui do que
tenho certeza.
Durante os prim eiros quatrocentos anos da história da Igreja, as pessoas
leram Romanos 9 e não acharam que a passagem ensinava o que posteriorm ente
veio a ser chamado calvinismo. Falando de Romanos 9 e dos primeiros pais da igreja,
Gerald Bray observa, ‘Apenas Agostinho, e ainda assim apenas em seus escritos mais
tardios, estava preparado a aceitar as plenas implicações da predestinação divina”72.
Isso não significa que de maneira alguma Romanos 9 ensine o calvinismo, mas

71Piper, The Pleasures o f God, 140.


Gerald Bray, Romans, ed. Gerald Bray, Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament vol.
6 (Downer s Grove, IL: InterVarsity, 1998), 244. Semelhantemente, Gregory Boyd observa que ninguém
antes de Agostinho — exceto os maniqueístas deterministas e dualistas — leram Romanos 9 dessa forma.
O que é curioso é que Agostinho, antes de ser cristão, foi maniqueísta. Vide Boyd, Is God to Blame?, 205
61
realmente quer dizer que as pessoas cronologicamente mais próximas do Apostolo
Paulo não interpretavam a passagem dessa maneira. Todos eles [Pais da Igreja]
• • 73
afirmaram que a eleição e predestinação tinham por base a presciencia .
Também estou certo de que nem os ensinos de Jesus,nem suas ações me
deixam muito à vontade para acreditar no calvinismo. Isso não quer dizer que Jesus
não o ensinou. Mas para mim, considero muito difícil acreditar em algo que Jesus
não — em minha opinião — claramente ensinou ou viveu, e, de fato, pareceu
contradizer por completo. Reputo por pretensioso apoiar-se mais no calvinismo do
que Jesus apoiou.
E, conforme observado anteriormente, acreditar em algo que seja difícil de se
reconciliar com o Deus revelado em Jesus não é apenas logicamente inconsistente:
não é bíblico. Pois “Jesus é Deus” é a verdade mais essencial da Bíblia, qualquer coisa
que eu acredite que faça de Jesus não ser de fato a exata representação do caráter de
Deus deve ser condenada como sub-bíblica. Deve-se presumir que a revelação de
Deus em Jesus não é apenas metade da história, onde a Escritura nos ensina que
Jesus é a história toda. E não é possível ter as duas coisas.
Você não pode ter um “Deus crucificado pelos pecadores” e um “Deus que cria
pecadores a fim de crucificá-los”. Se quiser ser bíblico, você não pode ter um Deus
que é apenas m etade comoJesus, pois se Deus fo r apenas m etade comoJesus, ele não
é coisa alguma como Jesus. Portanto, embora Romanos 9 possa ser um tigre
bramando e devorando “defensores do livre-arbítrio”, o Jesus crucificado foi um
cordeiro lacerado que devorou meu calvinismo, o que nos traz a Apocalipse 5 e a
uma jornada ao centro do universo.

Animais, Anjos e um Cordeiro Lacerado


Em Apocalipse 5 João é arrebatado em uma incrível visão do céu. Há trovão e raio e
animais bizarros e anjos — muitos e muitos anjos. O furacão do céu gira ao redor de
João — um bombardeamento de glória e frenesi, louvor ensurdecedor e
movimentação frenética— quando repentinamente tudo cessa. A movimentação
para, os céus se silenciam, e toda a criação se volta para olhar, pois Jesus, o Leão de
Judá, o Filho de Deus, o Rei do universo, está se aproximando.

73lbid., vide em especial as páginas 250-264.


E talvez, como o pequeno Zaqueu, João sobe nas costas de um anjo alto para
ter uma melhor visão, ele vira seu pescoço para ver e lá — no trono do céu, no
centro do universo — está... Um cordeiro lacerado. O Leão de Judá é um cordeiro
lacerado. O Rei do universo, um cordeiro lacerado, manca até seu trono. Certamente
deve ter algo errado. Mas conforme João assiste, todo o céu se prostra ao redor dele,
prostra-se ante o cordeiro lacerado, e eles começam a adorá-lo. No centro do
universo há um cordeiro lacerado.
E não é um erro. Vinte e oito vezes em vinte e dois capítulos, o vitorioso,
conquistador e portador de uma espada, o Rei Jesus, é chamado de cordeiro (e para
os que estiverem contando, ele é chamado de leão uma vez... No lugar em que nos é
dito que o Leão de Judá é, na verdade, um cordeiro morto). E para meu
desapontamento calvinista, essa era uma imagem que eu simplesmente não podia
reconciliar.
No centro do universo não há um buraco negro de deidade,
interm inavelm ente se implodindo, mas um cordeiro lacerado, sofredor, crucificado,
interm inavelm ente se entregando.

Lógica da Crucificação
E embora um pouco de lógica racional tenha me trazido até aqui, foi a lógica bíblica
da crucificação que me levou a ajoelhar. Podemos lançar versículos e lógicas para lá
e para cá até Jesus voltar, mas quando olhamos para aquela imagem, a verdadeira
ação começa. E conforme eu assistia, percebi que a crucificação era por demais
grande e generosa para que o calvinismo a explicasse. Era o tipo de coisa que faz
você parar de argumentar, pois você está por demais ocupado, adorando.
Eu me havia tomado calvinista porque não achava que a Bíblia me deixava
muita escolha. Comecei a me afastar porque o calvinismo havia tomado tanto a
Bíblia quanto Deus impossíveis. Dei meus últimos passos em direção à porta porque
não achava que Jesus me deixava muita opção e, no processo, encontrei o
fundamento para um novo lar — uma casa que girava em tomo da adoração de um
cordeiro lacerado. Porque no centro do universo há e sempre haverá a adoração a
um cordeiro lacerado.
A Glória de Deus (É) a Glória do Amor
Construindo uma Casa
Por que acreditamos no que acreditamos?
Tentar responder essa pergunta é muito parecido com descascar uma
cebola. Tentamos passar por todas as camadas até chegar ao núcleo, mas, no final,
descobrimos que não há um núcleo fixo. nossas crenças têm camadas. Elas são uma
complexa interação de incontáveis fatores, tanto de se prender a coisas que nos
fazem sentido, quanto a ser preso por coisas que jamais fariam sentido caso não
tivéssemos sido presos por elas.
Com a teologia é bem parecido. Fazemos o melhor sentido possível das
opções possíveis. Dizemos sim a isto e não a aquilo. Consultamos as autoridades
necessárias. Tentamos construir uma casa teológica apropriada para nós mesmos. E,
todavia, forças contrárias a nosso controle também estão agindo sobre nós,
explicando-nos, dizendo sim para nós, e construindo em nós uma casa para elas
mesmas. Ou é assim que parece, pois quando nos afastamos, vemos que todas as
peças discrepantes e processos nos construíram uma única casa.
Pelo menos essa foi a minha experiência. Eu havia tanto agarrado, quanto
sido agarrado pela convicção de que o único fundamento para a teologia era a
revelação de Deus em Jesus Cristo. “Porque ninguém pode pôr outro fundamento
além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo” (1 Coríntios 3.11). Não uma teoria
acerca da Bíblia, não um conjunto de pressuposições acerca de como Deus deveria
agir, mas um passo de fé onde eu confiava na revelação de Deus em Jesus, porque o
Deus revelado em Jesus me havia levado até a beira do monte, me empurrado e me
pegado. E sobre esse fundamento eu busquei construir uma nova casa. Visitei outros
lugares buscando idéias, até mesmo morei neles ocasionalmente, pois minha casa
ainda não estava pronta para ser ocupada. Juntei materiais e pensamentos, e fui
juntado por materiais e pensamentos. Trouxe meus materiais e pensamentos de volta
para casa, e comecei a martelá-los. E, no processo, uma coisa estranha aconteceria.
Eu passaria o dia inteiro construindo algo pouco sólido, só para acordar na manhã
seguinte e descobrir que Alguém havia vindo e transformado aquilo tudo em algo
robusto e belo além de minha imaginação.
Outros experimentaram o mesmo. Procuramos e somos procurados,
juntamos e somos juntados, construímos e somos construídos, e prego a prego o
milagre acontece. Deus nos ajuda a construir uma nova casa.

Linhas de Batalha
O que é válido em história parece ser válido em teologia, quanto mais as coisas
mudam, mais elas ficam iguais. Em toda geração há (supostamente) uma batalha
mortal sendo travada entre liberais e conservadores. Os liberais detestam a mente
fechada dos conservadores, e os conservadores detestam a disposição irresoluta dos
liberais. As linhas são traçadas e os lados são escolhidos, e a área intermediária é
terra sem dono. ou melhor ainda, um caminho que inevitavelmente o leva ao terreno
inimigo. E. claro, ambos estão certos de que Deus está do seu lado.
Eu sou, orgulhosamente, um produto da subcultura evangélica
conservadora. E embora haja desvios mal direcionados em razão de minha educação
religiosa, eu não a trocaria por coisa alguma, pois através dela eu aprendi um
profundo senso de reverência, tanto por Deus quanto pela Escritura. E foi essa
reverência que me havia empurrado para os braços do calvinismo. Percebi que
existia realmente uma batalha de naturezas acontecendo, e que no âmago dessa
batalha havia dias maneiras distintas de se fazer teologia.
Começamos a partir do que os humanos dizem acerca de Deus ou do que
Deus diz acerca de Deus? É o homem ou Deus que dá a primeira palavra?
Se dermos a primeira palavra, entramos no caminho que inevitavelmente
apenas dá voltas da teologia antropocêntrica, onde “Deus” é meramente uma cifra
para nossos grandes ideais, e uma noção fraca e fraudulenta de amor e tolerância é o
melhor que podemos ter como ponto central. Se Deus der a primeira palavra,
embarcamos na jornada imprevisível da revelação, onde se permite que Deus fale
sobre si mesmo. E essa jornada sem dúvidas nos conduz ao todo-determinante e
autoglorificadora Deus do calvinismo. Ou será mesmo?
Muitos que são jovens e incansáveis acabam reformados porque não
enxergam outras opções bíblicas persuasivas — se você disser sim à glória, à
soberania e à Bíblia, você deve dizer sim ao calvinismo. Isso é, pelo menos, o que eu
pensava, mas agora que o calvinismo não era uma alternativa viável, para onde eu
65
iria? Onde poderia encontrar uma fé que fosse desafiadora e bíblica, sem tomar
tanto Deus quanto a Bíblia impossíveis? Onde poderia encontrar uma teologia que
teria sentido significativo, tanto para a glória quanto para o amor? Onde poderia
encontrar um Deus transcendente e soberano, que ainda se parecia com Jesus, como
o Deus na cruz? E, como você pode esperar, não se pode encontrar tal Deus, antes, é
esse Deus que encontra você.

Barth
Karl Barth é uma figura enigmática. Ele foi um teólogo reformado suíço que perdeu
seu emprego quando recusou a jurar lealdade a Adolf Hitler, e que mais tarde lhe
enviou uma cópia da declaração que havia escrito criticando veementemente a
ideologia nazista74. Diz-se que seu primeiro livro, um comentário sobre Romanos,
“caiu como uma bomba no playground dos teólogos'75. Sua principal obra,
Dogmática Eclesiástica, é uma das mais extensas obras de teologia sistemática já
produzidas. Em abril de 1962, ele apareceu na capa da revista Time, e é amplamente
reconhecido como o maior teólogo do século XX. Recebeu uma educação liberal
protestante de ponta, e tinha um brilhante futuro pela frente nos hallsâo liberalismo
protestante alemão. Mas com tudo isso lhe esperando, ele fez a coisa mais estranha,
ele queimou e derrubou a casa.
O liberalismo estava no ar, se infiltrando subversivamente na fé e teologia
cristãs. A Bíblia era negligenciada e sua autoridade descartada, em favor de
especulações filosóficas da moda. O otimismo acerca do progresso humano e
bondade estava expulsando toda afirmação da depravação. Apesar de todas as
gerações gostarem de fazer alarme sem motivo, e de dizer que a batalha que ela está
enfrentando é a mais importante até o momento, a batalha que Karl Barth lutou tem
uma forte reivindicação para tal título.
Após completar sua educação teológica, Barth havia assimilado a teologia
de seus professores, e até mesmo trabalhou para um periódico liberal de ponta. Mas
então ele foi pastorear na pequena cidade suíça de Safenwil, e, como geralmente é o
caso, suas experiências fora da torre de marfim da academia o levaram a fazer uma

74 A Declaração Teológica de Barmen, da qual Barth foi o principal autor.


,5Joseph L. Mangina, Karl Barth: Theologian o f Christian Witness (Louisville: Westminster John Knox,
2004), 3, cita essa frase e a atribui a Karl Adam, em um periódico mensal católico chamado Das Hochland,
junho de 1926,276-277.
revisão de suas crenças. Sua ruptura decisiva com o liberalismo protestante se deu
quando as tropas alemãs invadiram a neutra Bélgica, e a Ia Guerra Mundial se
iniciou. Um manifesto foi enviado por intelectuais alemães, apoiando esse ato de
guerra não provocado, e para o horror de Barth, ele descobriu que muitos dos seus
professores de teologia o haviam assinado. Conforme Barth diz, “Eu de repente
percebi que eu já não podia mais seguir quer a ética e a dogmática deles, nem seu
entendimento da Bíblia...”76.
Ele viu o fruto do liberalismo protestante. Viu seus velhos professores
apoiando o crescente espírito militante alemão. Viu Jesus ser desconsiderado, a cruz
ser minimizada, e o juízo ignorado. Ele viu a impotência moral da teologia sub-
bíblica. Barth viu tudo isso, e então ateou fogo em tudo com as mais simples e,
todavia.mais profundas das observações: “O que significa dizer que ‘Deus é’? O que
ou quem ‘é’ Deus? Se quisermos responder a essa pergunta de maneira legítima e
refletida, não podemos, por um momento sequer, voltar nossos pensamentos para
qualquer outro lugar que não seja o próprio ato da revelação de Deus. Não podemos,
por um momento sequer, partir de qualquer outro lugar senão daqui”77.
Em contraste com o liberalismo, Barth ferozmente afirmou a depravação
total e a soberania de Deus, insistindo que a humanidade não pode vir ao verdadeiro
conhecimento de Deus sem a revelação de Deus para nós. Não importa o que
pensamos ou sentimos — o melhor do pensamento religioso humano, sem a ajuda
da revelação, é palha a ser queimada. O que importa é que Deus revela a si mesmo
no ato da revelação, e o ato da revelação é Jesus Cristo. Em Jesus, encontramos Deus
em seus próprios termos, e permitimos que Deus fale por si mesmo. Em outras
palavras, ou encontramos Deus em Jesus, ou não encontramos Deus de forma
alguma.
Então, qual Deus encontramos na revelação de Jesus Cristo?

Ele ÊAquele Que Ama


Anteriormente, eu havia conhecido que o caráter de Deus revelado em Jesus, o Deus
crucificado, não parecia corresponder ao Deus do calvinismo. O que Barth adiante

76Karl Barth, “Evangelical Theology in the 19th Century,” em The Humanity o f God (Richmond, VA: John
Knox, 1960), 14.
77Karl Barth, Church Dogmatics 2.1, ed. G.W. Bromiley 2 T.F. Torrance (Edimburgo: T & T Clark, 1957),
261.
enfatizou foi que no próprio ato de revelação, o ato de falar à humanidade e de se
mostrar a si mesmo, Deus é revelado como sendo aquele que livremente escolhe
partilhar de si com os outros. Deus tem o direito de fazer conosco o que quiser, e
Deus deseja se relacionar conosco. Conforme Barth diz.

Deus é aquele que, sem ter a obrigação, busca e cria comunhão entre
Ele e nós (...). Ele deseja ser nosso e Ele deseja que sejamos dele. Ele
deseja pertencer a nós e deseja que pertençamos a Ele. Ele não deseja
estar sem nós, e Ele não deseja ser Deus para Si mesmo, nem, como
Deus, estar sozinho Consigo mesmo. Ele deseja, como Deus, ser por
nós e conosco que não somos Deus.78

Esse é quem Deus é — Aquele que existe na suficiência e na felicidade


absolutas consigo mesmo, e que não tem necessidade alguma de fazer qualquer
coisa exceto ser ele mesmo por toda a eternidade. Conseqüentemente, Deus não faz
coisa alguma que não queira fazer. E, todavia, nessa completa e absoluta liberdade,
Deus escolhe não existir apenas para si. Deus cria e Deus redime e Deus é
crucificado pelas criaturas que não precisam existir. Deus condescende, perdoa e
ressuscita, e nos encontramos prostrados ante um mistério inefável, que só podemos
identificar porque Deus nos deu o nome disso. amor.
Amor altruísta, sofredor, e crucificado do Criador, derramado sobre sua
criação. “Reconhecemos e apreciamos essa bênção quando descrevemos o ser de
Deus mais especificamente na afirmação que Ele é Aquele que ama”79.

Problemas do Amor
O cristianismo ocidental tem um problema com o amor, a saber, diminuímos por
demais o amor ao fazermos muito caso dele. Amor é tolerância, amor é inclusão,
amor é autoestima, amor é conforto. E, ao transformar o amor nessas coisas, o amor
se tomou em nada. “O termo passou a ser desvalorizado (...), perdeu seu poder de
diferenciação, tendo-se tomado um pretexto para todas as formas de
autoindulgência enfadonha”80. Para fins de simplicidade, vamos chamar isso de o
problema do “amor brando”, ao se tomar tudo. o amor se toma nada.

7874. Ibid., 273-274.


’’Ibid., 275.
““Richard Hays, The Moral Vision o f the New Testament: A Contemporary Introduction to New Testament
Ethics (Nova Iorque: HarperCollins, 1996), 202.
Durante os meus anos de jovem, incansável e reformado, eu pensei que a
solução para o “amor brando” fosse subordinar totalmente o amor de Deus à
autoglorificação de Deus — autoestima e conforto certamente tendem a murchar
em face da eleição incondicional. Mas durante minha jornada de desconversão do
calvinismo, eu vim a acreditar que embora o calvinismo realmente resolvesse o
problema do “amor brando”, ele assim o fazia com uma conseqüência dolorosamente
irônica.
Ao passo que o “amor brando” rouba o significado do amor ao fazer dele
tudo, o amor calvinista rouba o significado do amor ao transformá-lo em nada — ou
pelo menos em algo ininteligível. O “amor de Deus” é uma expressão oca, sem
significado e vazia. E embora possa ser melhor uma glória que coopte o amor do que
tolerância, por que ter de escolher entre um ou outro? Por que não deixar o amor
falar por si, ou melhor ainda, por que não deixar Deus falar pelo amor? Barth
concordava e insistia que havia cinco coisas necessárias que precisávamos conhecer
acerca do amor de Deus.

# 1 - Deus (Não Eu) Define Amor


Você sabia que o Livro de Atos não menciona o amor uma vez sequer? Quer esteja
procurando pelo substantivo ou pelo verbo, faça uma pesquisa pela palavra
“amor/amar” e você irá saltar direto de João para Romanos. Longe de ser uma
casualidade retórica, penso que o escritor está tentando ensinar-nos algo. não somos
nós que devemos definir o que é amor; Deus é quem define. E essa é a primeira coisa
que precisamos saber acerca do amor de Deus. Se quisermos entendê-lo, então
devemos ir ao lugar onde Deus o define, a saber, Jesus Cristo, crucificado. Esta é a
mensagem de 1 João 3.16. “Conhecemos o amor nisto, que ele deu a sua vida por
nós...”
Não deveria ser, portanto, surpresa alguma que, apesar de Atos não falar de
amor, o livro é obcecado em contar a história de como uma comunidade marginal
mudou o mundo através da ação de divulgar e viver a história de um Messias
crucificado. Embora não na mesma medida, isso é, em certo sentido, verdade para
todo o testemunho do Novo Testamento, ele fala m ais acerca da crucificação do que
do amor. E isso se dá porque “O que o Novo Testamento entende por ‘amor’ está
encarnado na cruz (...). O conteúdo da palavra ‘amor’ é plena e exaustivamente dado
na morte de Jesus na cruz; fora dessa imagem narrativa específica, o termo não
possui significado”81.
Não devemos falar de amor de forma abstrata, como algum ideal humano
fofo de boa vontade. Falamos de amor no realismo concreto da divindade
condescendendo com a crucificação no madeiro. Falamos de amor quando olhamos
com terror e surpresa a coroa de espinhos na fronte do Criador. Conforme Barth diz,
“Intencionalmente não começamos com uma definição de amor, mas com a
resolução de deixar o ato de Deus visível em Sua revelação falar por si mesmo —
Deus é, em Seu ato, Aquele que busca e cria comunhão conosco”82. É disso que
falamos quando falamos do amor de Deus, amor crucificado, sofredor, altruísta,
livre, soberano.

# 2 - Deus concede Deus


Segundo, ao nos amar, “Deus não nos concede algo, mas a Si mesmo; e ao doar a Si
mesmo, nos dando Seu único Filho, Ele nos dá tudo”83. A maior coisa que Deus pode
nos dar é a si mesmo. Todas as coisas que achamos tão desejáveis — poder,
influência, conforto, sexo, dinheiro — são desejos sem imaginação de pessoas que
são muito facilmente satisfeitas. Não precisamos de coisas. Precisamos de Deus. Ao
nos amar, Deus nos dá tudo.

# 3 - O Amor de Deus Não Toma


Terceiro, Deus não nos ama por causa de algo que ele vê em nós, mas apesar do que
ele vê em nós.Deus não nos ama porque nós o amamos. Deus nos ama porque ele
quer que nós o amemos apesar do fato de que nós não o amamos. Deus nos ama
para que nós possamos vir a amá-lo,

O objeto do amor de Deus (...) é outro que em si mesmo não é (...)


digno de Sua boa-vontade. O amor de Deus sempre lança uma ponte
sobre o abismo de separação. É sempre a luz brilhando a partir das
trevas (...). Que ele cria uma ponte a partir de Si mesmo para este
abandonado, que Ele é luz nas trevas, é o milagre do amor todo
poderoso de Deus.84

“ Ibid.
l2Barth, Church Dogmatics, 2.1, 276.
13 Ibid.
“Ibid., 278.
É isso o que queremos dizer quando falamos do incondicional e gracioso
amor de Deus.
Quando Deus olha para nós, ele não vê criaturas que ele deveria amar. Ele
vê criaturas que ele deseja e, assim, escolhe amar, apesar do fato de que ele não
deveria. E nisso, o amor de Deus se mostra em contra distinção ao amor humano.
Nós amamos as coisas — Deus, outros, posses — em razão do que elas podem fazer
por nós. Moltmann chama isso de eras um amor pelo bonito, e ele expõe a lógica
mais importante do amor humano, nós amamos o que é bonito na esperança de que
o que é amado irá, em troca, nos tomar bonitos. Amamos como buraco negros.
Amamos a fim de receber.
Mas esse não é o amor de Deus, porque o amor de Deus não toma — ele dá.
Deus não busca objetos bonitos para amar; Deus faz coisas bonitas em razão de seu
amor. Afinal de contas, a boa notícia do evangelho não é que sejamos bons, mas que
somos amados,

Mas na cruz (...) a fé experimenta um amor de Deus bem diferente, que


ama o que é muito distinto de si. Ele ama o que é pecaminoso, mau,
tolo, fraco e odioso, a fim de tomá-lo belo, bom, sábio e reto. Pois os
pecadores são belos porque são amados; eles não são amados porque
são belos.85

# 4 - Amor de Deus - Glória de Deus


Quarto, o amor de Deus é um fim em si mesmo. E aqui eu encontro um afastamento
radical de Jônatas Edwards, John Piper, e o buraco negro autoglorificador do
neocalvinismo. Edwards alegou que o objetivo final de Deus em criar o mundo era a
plena manifestação de sua glória (isto é, sua autqglorificação). O amor é apenas uma
peça no grande maquinário da glória.
Não era assim para Barth, “Certamente, ao nos amar, Deus deseja Sua
própria glória (...). Mas Ele não nos ama porque deseja isso. Ele deseja isso em razão
de Seu amor. Deus ama ao realizar esses propósitos. Mas Deus ama porque Ele ama;
porque esse ato é Seu ser. Sua essência e Sua natureza"86.

85Moltmann, The Crucified God, 214.


“ Barth, Church Dogmatics, 2.1, 279.
Deus não nos ama a fim de receber algo de nós (glória, adoração, louvor) —
isso é o que o amor egoísta e carente humano faz. Deus ama porque ele ama — o
único amorque existe que não precisa de um motivo.
E assim quando Deus abre seu coração para nós, e obtemos um vislumbre
do que o faz bater (Jesus Cristo crucificado), vemos um desejo de amar a todo o
custo, não glorificar a si mesmo a todo custo. Tendo dito isso, seria errado pensar
que você deve escolher entre o amor e a glória de Deus, pois Deus deseja glorificar a
si mesmo como o Deus que, livre e soberanamente, ama a todo custo, ( vide
Deuteronômio 7.8, Jeremias 31:3, Isaías 63.9, João 3.16, Romanos 8:31-39, Tito
2:14, Filipenses 2:5-11, Apocalipse 5:6-10). Conforme Miroslav Volf diz. “Não
precisamos desistir da idéia de que Deus busca a própria glória. Só precisamos dizer
que a glória de Deus, que é o próprio ser de Deus, éo amor de Deus (...). Ao buscar a
própria glória, Deus simplesmente insiste em ser, em relação ao seres humanos, o
Deus que dá”87.
Quando falamos da glória de Deus, falamos do Deus que a si mesmo se
doou por nós, para todos (e cada um de) nós, em Jesus Cristo. O am or não é apenas
uma peça no grande m aquinário da glória. A glória de Deus é a glória do amor.

# 5 - Necessário e Livre
Quinto, o amor de Deus é tanto necessário, quanto completamente livre. E aqui todos
os horizontes do amor de Deus convergem. Desde toda a eternidade Deus é o ser que
sempre existiu em amor perfeito, glorioso e doador entre Pai, Filho e Espírito. Antes
de existirmos, Deus amava. Desde toda a eternidade Deus ama porque amor é quem
Deus é. Deus, infinito e eterno, é o Deus do amor. E como tal,o amor de Deus é
necessário no sentido de que Deus tem que ser ele mesmo.
Mas o amor de Deus é completamente livre no sentido de que ele está
simplesmente sendo o que ele é. Se Deus, em seu âmago, é pessoa(s) de infinito amor
doador, então mesmo embora Deus não possa ser outra coisa (odioso, arbitrário),
isso não é uma limitação. “Ser movido por si mesmo em amor é ser divinamente
livre”88. Na verdade, essa é a liberdade que só Deus tem. “Mas a liberdade em suas

87Miroslav Volf, Free o f Charge: Giving and Forgiving in a Culture Stripped o f Grace (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2005), 39.
88Ibid„ 64.
qualidades positivas e próprias significa estar fundamentada no próprio ser de
alguém, ser determinada e movida por si mesmo”89.
Dessa forma, longe de limitar Deus ou de minimizar sua glória, o amor de
Deus é a expressão última de sua liberdade, soberania e glória. Sua transcendência é
exibida supremamente no fato de que embora Deus seja completamente não
condicionado, ele estende-se para fora de si mesmo para criar e se unir a outros —
uma transcendência caracterizada por externalidade e não por interioridade.
A gravidade da glória de Deus está enraizada em seu ato de dar, não em
receber, e então a glória de Deus brilha mais em sua existência como o único não
buraco negro de interesse próprio (ego) no universo — Aquele que em absoluta
liberdade ama absolutamente.

Reposicionando o Mistério
Eu cheguei ao final desta devastadora visão misericordiosa do amor de Deus e me
dei conta de que o mistério de Deus não havia sido removido; ele havia sido
reposicionado. O mistério já não era mais como um Deus bom, como um Deus
revelado em Jesus, como o Deus crucificado, poderia criar pessoas com o propósito
de condená-las. O mistério não está em um Deus oculto espreitando atrás de Jesus,
mas, antes, o mistério está em Jesus.
O mistério é que Deus é condenado a fim de salvar. O mistério é que, em
sua absoluta liberdade, Deus se reveste de carne, sobe na cruz e desce ao túmulo. O
mistério é que o coração de Deus está repleto de um suprimento infinito de energia
doadora, redentora e reconciliadora, que nós chamamos de amor. O mistério de
Deus é que ele nos ama — a todos nós.

“Deus é” significa “Deus ama” (...). Todas nossas percepções acerca de


quem e o que Deus é devem girar em tomo deste mistério — o mistério
de seu amar (...). A consideração do mistério de Sua liberdade não pode
nos conduzir a qualquer outra direção. Ela não pode nos levar a outro
deus que não Àquele que ama (...). Tudo dependerá de não perdemos a
definição básica que agora encontramos, que Deus é Aquele que ama.90

“Deus é” significa que Deus — em liberdade absoluta e soberana — ama.


Isso é muito forte. Isso é glorioso. É bíblico. Este é o Deus revelado em Jesus, um Deus

89Barth, Church Dogmatics, 2.1, 301.


'“ibid., 283-284.
completamente livre, soberano e transcendente, que escolhe dar a si mesmo em
amor na cruz. O que poderia jamais mover Deus a fazer tal coisa? Ele nos diz para
chamar isso de amor. Esse é o verdadeiro mistério.

Jesus Me Ama, Isso Eu Sei


Tendo permitido que Deus falasse por si mesmo, eu encontrei — ou fui encontrado
por — um Deus infinitamente glorioso, mas não era o Deus do calvinismo. Era o
soberano, doador, sofredor e crucificado Deus de Jesus Cristo. Era o Deus que não
precisa de nós, mas que não quer ficar sem nós — não porque merecemos, mas
simplesmente porque é assim que ele é. E, para mim, esta era uma glória muito além
do Deus autoglorificador do calvinismo.
E isso nos traz de volta a Karl Barth. Próximo ao fim de sua vida, ele fez sua
primeira e única viagem aos E.U.A., palestrando no Seminário Teológico de
Princetone na Universidade de Chicago. Diz a lenda que em determinado ponto
pediram a Barth que resumisse o significado das milhões de palavras que ele havia
escrito. Ele pensou por um instante e então respondeu.
“Jesus me ama, isso eu sei, pois a Bíblia assim me diz”.
Livre-arbítrio, Kcnosis e um Tipo Peculiar de
Soberania
Livre-arbítrio
Talvez você tenha notado que até agora eu não comentei acerca do livre-arbítrio91. E
isso porque ele tem nada e tudo a ver com os motivos pelos quais deixei minha casa
calvinista e passei a procurar uma casa nova.
Conforme aludido no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, a crença no
livre-arbítrio não é um fundamento sobre a qual se deve construir uma casa,
embora esse seja um erro in feliz de muitos. Para começo de história, você jamais
pode estar certo de que você realmente tem livre-arbítrio, pois não existe forma
alguma de saber se você poderia fazer o contrário do que você realmente escolheu
fazer. Em outras palavras, embora nos sintamos como tendo livre-arbítrio, jamais
podemos ter certeza de que realmente o temos. Porém, ainda mais importante,
começar com o livre-arbítrio é fazer teologia de baixo para cima. É começar com o
que você supostamente sabe sobre os humanos e desenvolver o que deve ser verdade
acerca de Deus. Conforme Bruce Ware diz.

Quando o ponto de partida para o entendimento do relacionamento


entre Deus e o mundo é a inconteste realidade do livre-arbítrio
libertário, então Deus deve ser entendido de uma maneira que “se
encaixe” em nossa liberdade (...). Começamos com o que sabemos ser
verdade acerca dos seres humanos. Sabemos que somos livres (...).
Portanto, todo o restante que dizemos sobre Deus e qualquer outro tema
teológico deve ser entendido em uma maneira que esteja de acordo com
e que não contradiga a liberdade libertária.92

E sobre esse ponto, Ware, um calvinista. e qualquer outro teísta do livre-


arbítrio atento concordaria. A teologia não pode começar a partir da razão ou

9lPara uma breve discussão acerca da diferença entre livre-arbítrio libertário e compatibilista, vide capítulo
8.
92Ware, G od’s Greater Glory, 66-67.
experiência humanas, e se ela assim o fizer, descobriremos que nós simplesmente
criamos Deus à nossa própria imagem. Essa é a casa que Barth destruiu.
Então, no que diz respeito ao livre-arbítrio, a pergunta não é “você acha que
tem livre-arbítrio?”, mas “o que Deus diz acerca do livre-arbítrio?"

O Ovo ou a Galinha?
Procurar por livre-arbítrio na Bíblia é como procurar pela gravidade, ela está
presumida em todo lugar e mantém tudo unido, então você provavelmente não vai
percebê-la até que ela falte e você flutue.
É por isso que geralmente é mais fácil recitar vários versículos que parecem
contradizer o livre-arbítrio do que nomear um único que o afirme. Pensamos em
Deus endurecendo o coração de Faraó, porque a passagem se sobressai — ela se
destaca sobre o restante da textura da narrativa bíblica. Não pensamos nas sessenta e
três vezes que Jesus diz às pessoas para que façam ou não façam algo durante seu
Sermão da Montanha, aparentemente presumindo que eles tinham a habilidade de
fazer ou não o que ele disse, pois isso flui perfeitamente no padrão da narrativa
bíblica93. Mas, para ser justo, existem muitos versículos em ambos os lados, então a
questão geralmente se resume ao conhecido dilema em relação à prioridade de
ordem.
Qual veio primeiro, o ovo ou a galinha? Devemos ler os textos de livre-
arbítrio à luz dos textos deterministas e, dessa forma, supor que todas as evidências
de livre-arbítrio na Escritura são uma farsa? Ou devemos ler os textos deterministas
à luz do livre-arbítrio e, assim, supor que todas as aparentes negações do livre-
arbítrio são exceções raras e singulares à forma normal com que Deus faz as coisas?
Parafraseando, o livre-arbítrio ou o determinismo servem como pano de
fundo da narrativa bíblica? Ao buscar a resposta de tal pergunta, seria bom
começarmos onde a história começa.

No Inicio
Barasit. É a primeira palavra na Bíblia e. muito adequadamente, significa “no
princípio”94. E é disto que o livro de Gênesis trata, inícios e origens. Uma longa
história, repleta de surpresas e reviravoltas, lágrimas e triunfos, virá logo após. Mas

93 Sim, sessenta e três é um chute bem grosseiro.


94 Embora alguns eruditos pensem que a palavra tenha um significado temporal: “Quando Deus criou...”.
como a maioria das boas histórias, ela não faz sentido algum caso você não saiba
como a história começa. E eis que ela começa.
A cortina é aberta em uma cena onde Deus está sentado calmamente no escuro.
Ele caminha em direção ao espaço e então a coisa acontece. A fagulha criativa que
em breve irá fazer o universo girar é acendida no coração divino e a criação é
colocada em movimento. “E disse Deus, Haja luz; e houve luz” (Gênesis 1.3). E então
há céus, terras e mares, sol, lua e estrelas, pássaros, peixes e árvores — dia um, dia
dois, dia três, dia quatro, dia cinco — e tudo é bom. Deus reina em completa
soberania sobre um mundo idílico, e isso faz tudo que vem depois ainda mais
enigmático.
Uma nova personagem é apresentada, e a natureza de sua existência é um tanto
esquisita. Deus se abaixa, pega um punhado de pó,sopra nele, e a vida humana se
inicia. E isso é o que os humanos são. pilhas de pó ambulantes animados pelo sopro
de Deus. Então agora há Deus e humanos, e o palco é preparado para a tortuosa
epopéia que segue, mas não até aprendermos sobre o relacionamento divino-
humano. Ao criar os humanos, o que exatamente Deus fez?

ImagoDei
Gênesis 1,26-28 diz.

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa


semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus,
e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move
sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus
o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes
disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e
dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o
animal que se move sobre a terra.

Uma das mais profundas verdades bíblicas é a da imago Dei, os humanos


foram criados à imagem de Deus. Mas o que isso quer dizer? As opiniões variam e
algumas são melhores que outras, mas se quisermos pensar biblicamente acerca da
imago Dei, então precisamos pensar nos termos e imagens que a passagem de
Gênesis 1,26-28 nos fornece, nosso domínio sobre a criação de Deus como criaturas
de Deus.
No antigo Oriente Próximo era comum a crença de que um rei era uma
imagem ou representante de seu(s) deus(es). reinando em seu lugar. Os deuses
concederiam ao rei o poder e autoridade para governar. Conforme Walter Bruegge-
mann diz, “Agora a concordância comum é que a imagem de Deus refletida na
personalidade humana é à maneira de um rei que estabelece estatutos de si mesmo
para declarar seu governo soberano onde o próprio rei não pode estar presente”93.
Mas, diferente de seus vizinhos do Oriente Próximo, os hebreus
acreditavam que não apenas o rei, mas toda a humanidade havia sido criada à
imagem de Deus96. Foi confiada a toda a humanidade a tarefa de governar a criação
de Deus como o próprio Deus a governaria. A implicação é óbvia. Deus nos capacita
a governar como ele governa, e isso é o que significa ser criado à sua imagem. A
imagem que portamos é a de um Deus que compartilha seu poder, e as primeiras
palavras ditas acerca da humanidade são um convite divino para compartilhar seu
poder, autoridade e governo.
Para dizer isso de uma forma totalmente diferente, Deus cria o mundo como
seu reino. Mas em uma estranha mudança de curso, Deus cria os humanos e os
coloca em suas próprias pequenas províncias de seu reino, confiando-lhes com uma
pequena fatia de realidade. Conforme Salmo 115.16 diz, “Os céus são os céus do
Senhor; mas a terra a deu aos filhos dos homens”. Deus ainda é soberano — pois
toda a criação é seu reino — mas ele concede uma quantidade limitada de liberdade
e controle a outros. Então, no próprio ato de criar os humanos, e não outra coisa —
como mais peixes ou pássaros — Deus escolhe compartilhar porção de seu poder e
soberania, “A iniciativa é unicamente de Deus, mas uma vez que o convite foi feito,
Deus estabelece um relacionamento de partilha de poder com os humanos”97. É uma
idéia revolucionária.
Longe de ser outro deus do panteão do Oriente Próximo antigo que seja
ganancioso por poder, inseguro ou movido pela ansiedade, o Deus criador é tão
seguro e livre que tem o poder de conceder poder. Ele não está ansioso acerca de seu
governo, nem inseguro em relação à sua soberania. Ele não toma, nem acumula —
ele dá. E a história continua.

95Walter Brueggemann, Genesis, Interpretation (Atlanta: John Knox, 1982), 32.


96Vide Nahum Sama, Genesis, JPS Torah Commentary (Philadelphia: Jewish Publication Society, 1989),
12'
,7Terence Fretheim, “Genesis,” The New Interpreter’s Bible, vol. 1 (Nashville: Abingdon, 1994), 346.
78
Árvores
Existem muitas árvores no Jardim do Éden, mas duas se destacam: a árvore da vida e
a árvore do conhecimento do bem e do mal98. É dito a Adão que ele pode comer de
toda árvore... Com exceção da árvore do bem e do m al". E, em uma das histórias
atemporais da humanidade, Adão faz exatamente isso, lançando a criação numa
descontrolada queda em espiral, e, como resultado, nós geralmente ficamos tentando
entender a razão disso tudo. Por que Adão comeu da árvore que lhe fora dito para
ficar longe dela? E, contudo, há uma indagação ainda mais profunda, por que Deus
colocou a árvore no jardim? Por que nos dar a oportunidade de estragar sua boa
criação? Por que não criar um jardim seguro? Isso nos traz de volta ao convite
divino que acolheu a humanidade no mundo.
Você quase consegue ver. A árvore da vida e a árvore do conhecimento do
bem e do mal estão lado a lado. Adão existe pela generosidade e graciosidade de
Deus e, apesar de sua existência possuir uma incrível amplitude de liberdade, ela
também possui limites. Adão tem a liberdade de comer da árvore do conhecimento
do bem e do mal, mas se ele assim o fizer, ele morrerá. Então Adão fica diante dessas
duas árvores, ele fica diante do ponto decisivo do relacionamento divino-humano.
Ele é livre para viver dentro ou fora da vontade de Deus, mas se escolher viver fora
da vontade de Deus, ele irá arruinar sua própria existência.
Pois embora ele tenha certa independência, sua existência ainda está
completamente dependente do Criador. É um relacionamento de dependência
independente. Conforme Nahum Sarna diz, “A raça humana não é inerentemente
soberana, mas goza de seu domínio unicamente pela graça de Deus”100. A liberdade
humana foi intencionada para ser exercitada em um relacionamento de completa
dependência da graciosidade de Deus, e quando escolhemos abandonar a graça,
escolhemos a morte. E isso, todavia, lembra-nos de outra árvore.
Deus está suspenso em um madeiro. Milhares de anos se passaram desde a
decisão de Adão de estabelecer seus próprios termos para a existência, e toda a
humanidade subseqüente seguiu o mesmo padrão. A árvore da vida sumiu.
Voltamo-nos para nosso umbigo e não escolheremos Deus (depravação total). Mas

98Gênesis 2:9.
99 Gênesis 2:16.
looSama, Genesis, 13.
em vez de desistir do propósito implementado no Éden, em vez de nos abandonar à
nossa própria depravação, Deus faz o impensável: ele oferece outra árvore, uma
árvore que irá tanto perdoar nossos pecados, quanto curar nossa pecaminosidade,
caso nos rendamos à graça a Deus.
Jesus está na cruz dizendo, “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem” (Lucas 23=34). Anos mais tarde o apóstolo Paulo irá olhar para a cruz e dizer,
“De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse.
Rogamo-vos, pois,da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus” (2 Coríntios
5,20). OCriador preso em um madeiro, humildemente pedindo que nos
reconciliemos com ele, refazendo o convite divino de exercer nossa independência
em completa submissão a nossa completa dependência Dele. E isso, contudo,
lembra-nos de ainda outra árvore.
A história chegou ao seu fim. Todos os reinos teimosos e rebeldes do mundo
foram confrontados e destruídos pelo reino de Deus101. Os que se recusaram a ceder
seus reinos ao Deus crucificado agora recebem a morte e o julgamento que estava
latente desde Gênesis capítulo 3. Mas os que cederam a seu domínio e abraçaram
sua dependência agora recebem sua promessa. Lágrimas são enxugadas, a morte é
morta, e o reino de Deus é tudo em todos102. E no meio de seu reino de ressurreição
há uma árvore,

E mostrou-me o rio puro da água da vida, claro como cristal, que


procedia do trono de Deus e do Cordeiro (...), e de um e de outro lado
do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto
de mês em mês; e as folhas da árvore são para a saúde das nações. E ali
nunca mais haverá maldição contra alguém; e nela estará o trono de
Deus e do Cordeiro, e os seus servos o servirão (...). E ali não haverá
mais noite, e não necessitarão de lâmpada nem de luz do sol, porque o
Senhor Deus os ilumina; e reinarão para todo o sempre. (Apocalipse
22:1-5).

A história termina com o povo de Deus reinando em alegre submissão para


todo o sempre e sempre. Os que aceitaram o convite divino para serem
verdadeiramente humanos, redimidos e livremente se submeteram a seu Criador,
agora comem da árvore da vida. E é tudo graça — um dom do Deus que, em
absoluta liberdade, escolhe amar absolutamente.

101 Apocalipse 19:19-21.


102 Apocalipse 21:1-4..
Iivre-arbítrio Bíblico
Quando nos afastamos para poder ver o quadro completo, percebemos que desde o
início até o fim, e tudo nesse intervalo, a Bíblia é a história de um Deus
graciosamente peculiar que. de maneira adequada, exerce um tipo específico de
soberania sobre sua criação, “a soberania divina na criação é entendida, não em
termos de controle divino absoluto, mas como uma soberania que concede podèr à
criatura, em nome de um relacionamento de integridade"103.
Embora Deus tenha o direito de dar apenas ordens, ele freqüentemente faz
convites. Deus sempre é soberano, mas isso significa que ele — e não nós — é quem
decide a forma que a soberania assume. E, aparentemente, a soberania de Deus dá
espaço para a liberdade humana, de sorte que Deus e os humanos possam ter um
relacionamento pessoal, e não meramente causal. Se Deus quisesse que fosse o
contrário, supõe-se que ele poderia ter apenas descansado no sexto dia, ao invés de
no sétimo. Mas esse é o paradoxo do amor. Conforme N. T. Wright diz.

O amor criativo de Deus, precisamente por ser amor, cria um novo


espaço para aquilo que é genuinamente distinto de Deus (...). Esta é
uma das características do paradoxo do amor: quando o amor é
livremente concedido, ele cria o contexto para ser livremente
correspondido, formando assim um ciclo contínuo, onde a completa
liberdade e perfeita união nãos e anulam, mas se completam e celebram
104
essa união .

E é somente após termo-nos ancorado na Escritura que podemos falar


significativa e biblicamente do livre-arbítrio. Longe de ser uma invenção e dedução
da lógica humana, o livre-arbítrio embasa e permeia a narrativa bíblica.

Comece do Começo
Mas como observado anteriormente, sem dúvidas existem outras maneiras de ler a
história bíblica. Você poderia argumentar que Deus, na verdade, predeterminou os
eventos no Éden, e que Deus jamais delega qualquer parte de seu controle sobre a
criação. Conforme Bruce Ware diz,

l03Fretheim, “Genesis,” 356.


104N. T. Wright, Surpreendido pela Esperança (Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2009), p. 118.
81
O único critério para entender a natureza da soberania divina é
simplesmente este: o que quer que Deus nos disser na Escritura acerca
de seu senhorio e soberano domínio sobre o universo é aquilo em que
devemos acreditar (...). Do início da Bíblia até o final (bem
literalmente), os leitores são constantemente encorajados, relato após
relato, a pensar em Deus como estando no controle do que acontece no
mundo.105

Mas essa é uma leitura que, na minha opinião, falha em fazer precisamente
o que Ware afirma que ela faz, começar do início. É uma leitura que começa em
Romanos 9 ou Efésios 1. e dá prosseguimento ao restante da narrativa bíblica a
partir de um início que não é o início que Deus nos dá. Por exemplo, após fazer essa
reivindicação de que a definição calvinista de soberania é ensinada desde o início da
Bíblia, Ware começa com uma exposição de... Efésios 1,11106. Acredito que podemos
concordar que esse não é o início. Eu achava e ainda acho que uma leitura calvinista
da Escritura que negue que o genuíno livre-arbítrio é possível, mas eu já não a
considero como a melhor leitura da Bíblia107.

A Forma da Soberania
Neste ponto, muitas de nossas noções de soberania podem ter sido invertidas e
deslocadas, e Piper ainda cutuca em nosso desconforto, “Onipotência impotente é
uma contradição’108. Em outras palavras, “Deus não pode utilizar sua soberania para
torná-lo não soberano”109. A idéia é que Deus não pode evitar estar em completo
controle, não pode deter seu poder, e “Deus é soberano" significa “Deus está em
completo controle”. Mas, para afirmar o óbvio, “Deus é soberano” não precisa
significar “Deus está em completo controle”, nem a partir da perspectiva bíblica
(como vimos), nem da perspectiva lógica. Antes, o que Piper — e muitos outros -—
faz é importar ilegitimamente sua definição de soberania para a palavra soberania.
Para Piper, soberania é o uso absoluto de poder absoluto e controle absoluto em
absolutamente todo o tempo. E, de acordo com tal definição, ele está certo, mas sua
definição não é obrigatória nem em termos bíblicos, nem lógicos. E, claro, bem mais

105Ware, God’s Greater Glory, 67.


106Ibid., 68.
107 Estou deixando pendente o feto de que a leitura calvinista da Escritura já se tenha tomado, para mim,
ininteligível e não merecedora de confiança.
108Piper, The Pleasures o f God, 58.
109Ibid„ 55.
importante que isso. ela parece ser inconsistente com a definição bíblica de
soberania. Conforme Greg Boyd afirma.

Por que devemos supor que Deus deseja fazer tudo o que ele tem o
poder de fazer? (...) A Escritura deixa evidente que embora Deus
poderia controlar-nos, ele deseja outorgar-nos poder para que sejamos
agentes autodeterminantes e moralmente responsáveis. “O que quer que
apraz ao Senhor, ele faz”, incluindo criar agentes livres.110

Ou. para colocar de maneira diferente, quem diz que Deus não pode ser
soberano sobre sua soberania? Deus não diz.
Assim sendo, reivindicar que Deus voluntária e temporariamente limita sua
soberania para capacitar agentes morais livres não é desfigurar a soberania de Deus,
numa tentativa humanista de tomá-la mais palatável. Antes, é deixar a soberania de
Deus falar por si mesma, em contraste a nós dizendo o que ela precisa significar. E
quando a soberania fala por si mesma, fica evidente que sua forma é quenótica.

Kenoàs
Não sei se posso afirmar que qualquer outra coisa possa dizer-nos mais acerca de
Jesus do que o grande hino cristológico de Filipenses 2.

De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em


Cristo Jesus, Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser
igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem,
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de
cruz. ui

Deus Filho, criador e sustentador do cosmos, se esvazia. A palavra grega é ekenosen,


e ela traz consigo a noção de entrega, um abrir mão voluntário de algo que é seu por
direito. Jesus, embora plenamente Deus e, conseqüentemente, possuidor de todos os
direitos e privilégios do Criador, escolhe esvaziar-se dessas coisas. Chamamos isso de
kenosis. De acordo com Paulo, conforme Todd Still escreve.

Jesus não via sua condição divina como algo a ser protegido nem
preservado. Em contradistinçâo aos regentes e déspotas egocêntricos,
ele não considerou seu estado de exaltação como uma posição elevada

110Boyd, Is God to Blame?, 178.


111 Filipenses 2:5-8.
para olhar os outros de cima para baixo, com desdém, enquanto
“mandava e desmandava”, e fazia tudo o que indiscriminada e
aleatoriamente bem lhe aprazia (...). Longe de obstinadamente dominar
ou indiscriminadamente exercer suas prerrogativas e privilégios
divinos, Jesus se despojou de sua posição, prestígio e benefícios
divinos.112

Entre as muitas verdades que podemos colher da Encarnação está a verdade


de que Deus com toda certeza pode e realmente restringe sua soberania por amor à
sua criação. E, mais ainda, a verdade do grande hino quenótico é que Jesus não cessa
de ser como Deus nesse ato voluntário de autolimitação. Antes, é nesse ato
voluntário, graciosam ente doador e autolimitador, que Jesus m ais revela como Deus
é, pois isso é o que Deus tem feito desde o início. O Deus que limita sua soberania
para criar humanos em sua imagem é o Deus que limita sai soberania enquanto
deita na manjedoura. O Deus que compartilha sua soberania ao colocar a árvore do
conhecimento do bem e do mal no Éden é o Deus compartilha sua soberania ao ser
pendurado na cruz do Gólgota.
Para ser claro, Deus pode estar no controle da forma que ele quiser, e a
Escritura certamente nos leva a acreditar que Deus pode e freqüentem ente intervém
decisivamente, até mesmo manipulando as circunstâncias para realizar sua vontade.
Mas Deus desejou que ele não irá necessariamente realizar sua vontade113. Deus
desejou que houvesse outras vontades que fossem importantes. Desde a criação,
passando pela cruz, até a nova criação, Deus se limita, não porque ele precisa, mas
porque Ele quer. E, aparentemente, Deus quer mais amar e ser amado, do que estar
em completo controle: “A onipotência pode realmente ser desejada e adorada por
homens desesperados, mas a onipotência nunca é amada; ela só é temida. Que tipo
de ser, então, seria um Deus que fosse apenas ‘todo poderoso’? Ele seria (...) um ser
que não é amado por pessoa alguma”114. Roger Olson resume bem a autolimitação
divina de sua soberania:

Isso não limita o poder e a soberania de Deus? Não, pois Deus


permanece onipotente, ele poderia controlar tudo e todos se assim o
escolhesse. Mas visando ter criaturas reais e pessoas que podem

112Todd D. Still, Philippians & Philemon, Smyth and Helwys Bible Commentary (Macon, GA: Smith &
Helwys, 2011), 68-69.
ll3Na oração do Pai Nosso (Mateus 6:10), Jesus ensina que a vontade de Deus não está sendo feita na terra
como ela é no céu — por isso a necessidade de orar por ela.
ll4Moltmann, The Crucified God, 223.
livremente escolher amá-lo ou não, Deus limita seu controle. Ainda
mais, Deus é soberano no sentido de que nada, de forma nenhuma,
jamais pode acontecer sem que Deus permita. Nada cai fora de sua
supervisão e governo Interventor.115

Resistir é Inútil
Quando confrontados com essa soberania peculiar de Deus, temos algumas opções.
Podemos resisti-la. Podemos dizer que é audacioso pensar que Deus concederia
tanto controle aos humanos. Podemos dizer que é indigno para Deus limitar-se a si
mesmo, e que os que assim acreditam diminuem a glória de Deus. Podemos insistir
que Deus é um buraco negro. E embora entenda tais sentimentos, e eu mesmo já os
tenha compartilhado, eu só conheço uma forma de responder, resolva isso com
Deus. Pois aparentemente Deus não pensa que seja indigno de sua parte
compartilhar sua soberania. Aparentemente, a glória de Deus não necessita que ele
acumule todo o poder no universo.
E aqui encontramos um pouco de ironia. Como calvinista, eu rotulava o
teísmo do livre-arbítrio de humanista. Pensava que o Deus do teísmo do livre-
arbítrio era meramente uma projeção dos ideais e conceitos humanos, e esse é
freqüentemente o caso. Todavia, a mesma acusação pode ser feita ao calvinismo.
Um soberano que absoluta e inequivocamente exerce a total medida de seu
controle em todos os tempos, não deixando espaço para dissensão ou vontades
contrárias? Essa não é a coisa mais divina que já ouvi — parece a projeção de
pequenos buracos negros de ego, formando um buraco negro supermaciço de Ego
nos céus.
Digo isso com ironia, simplesmente ressaltando o fato de que a soberania
calvinista não é mais “gloriosa” do que a soberania quenótica e autolimitadora, nem
está imune a acusações de projeção. O fato é que todos nós fazemos pequenas
projeções. Espera-se que Deus nos perdoe. E isso nos traz à segunda forma com que
podemos responder a essa soberania peculiar de Deus.

Estranha o Bastante para Ser Verdade


C. S Lewis uma vez disse que a excentricidade do cristianismo o ajudou em sua
conversão. Suas histórias e crenças eram tão estranhas, que o atingiram como algo

" 501son, Contra o Calvinismo, 157.


que os humanos não poderiam ter inventado. Elas o atingiram como algo estranho o
bastante para ser verdade.116
Sinto o mesmo acerca da soberania altruísta — nós não poderíamos tê-la
imaginado, não poderíamos tê-la inventado, e isso é bom. Significa que ela é
estranha o bastante para ser verdade. Ela soa como algo que Deus faria. Ela soa como
uma oportunidade de se render aos caminhos de um Deus que, felizmente, não é
como nós.

116 LEWIS C. S. Cristianismo puro e simples (São Paulo: Martins Fontes, 2005), 55-56.
86
Monstros no Porão
Monstros no Porão
Uma dura peregrinação havia chegado ao fim. A crença que tremulava vacilante
agora brilhava. A fé outrora dormente agora renascia. A alma perdida havia sido
encontrada. O processo de desconstrução e reconstrução havia causado dúvida e
desespero, mas também me havia dado um novo lugar para reclinar minha cabeça.
Eu estava cansado e fatigado, mas sabia que estava em casa. Era uma casa construída
sobre a glória de um Deus crucificado de amor altruísta, e ao redor daquele centro
havia florescido muros de graça, livre-arbítrio, kenosis e um tipo peculiar de
soberania. E, na minha opinião, era uma casa por completo.
Mas nenhuma casa é perfeita. Sempre há rachaduras escondidas, uma
torneira com vazamento, um azulejo quebrado. Às vezes há barulhos estranhos que
vêm do porão. Assim, encontrar uma casa não é uma questão de encontrar a casa
perfeita, é mais uma questão de encontrar um lugar que você ama, e então aprende
a viver com suas frustrações. Portanto, não deveria ser surpresa que, uma vez que a
novidade de minha casa nova acabou, eu comecei a observar algumas rachaduras e
alguns vazamentos. Eu até mesmo comecei a ouvir alguns barulhos no porão.
E, então, o que uma pessoa faz com as rachaduras, os vazamentos e os
barulhos? Como lidamos com os monstros em potencial em nossos porões? Nós os
cobrimos e tentamos convencer a nós mesmos e a outros de que eles não estão lá?
Geralmente, essa é a decisão mais comum. Mas tal decisão não promove a verdade,
pois a verdade jamais teme a honestidade. A verdade não está preocupada em vencer
uma discussão, ou criar um grande número de seguidores. A verdade só quer sair e
ser conhecida.
Então foi isso que eu, no melhor de minha capacidade, fiz. Fui até o porão,
procurei e reuni todos os monstros, e então os arrastei até à luz, e aprendi a viver
com eles.
Estacionar Pode Ser um Pesadelo
Minha viagem ao porão do teismo do livre-arbitrio teve início em meu último ano
de faculdade. Um representante de um seminário próximo havia vindo em uma
visita de recrutamento, e então ele fez o que os representantes em visitas de
recrutamento fazem, ele nos disse quão perfeita a instituição dele era. Tinha
excelência acadêmica, excelência em formação espiritual, excelência em vida no
campus, e os professores e alunos geralmente eram vistos se esbarrando pelos
corredores. Você conhece a coisa. A pessoa faz uso de uma argumentação e venda
embaraçosamente persuasiva, na qual todos os pontos fortes são realçados e
nenhuma fraqueza é reconhecida. Os efeitos colaterais estão sempre nas letras
miúdas. E apesar de tal tática ser convincente, ela não exatamente o ajuda a tomar
uma boa decisão.
Então eu levantei minha mão e lhe perguntei, “Qual é a pior coisa sobre seu
seminário?”. Ficou evidente que essa foi uma daquelas perguntas que ele não estava
preparado para responder. Ele queria evitar dizer qualquer coisa negativa sobre a
instituição, mas percebendo que ele não tinha recursos requintados, ele
relutantemente disse, “Bem. jamais me fizeram essa pergunta antes, então eu acho
que se precisasse dizer algo... Estacionar pode ser um pesadelo”. Muito útil.
Essa situação enlouquecedora de semi-transparência é a infeliz realidade da
maioria dos argumentos utilizados em publicidade teológica. Os vendedores
teológicos estão mais preocupados em lhe vender uma casa exatamente como a
deles, do que em ajudá-lo a encontrar o lugar certo para você. Mas falar é mais fácil
do que agir, e embora reclamar seja bom, a reclamação geralmente não produz
muita coisa, portanto, aqueles de nós que querem honestidade teológica devem
liderar o caminho ao abertamente reconhecer os buracos, as brechas e os monstros
em nossas construções teológicas.
Precisamos deixar que os outros vejam os mistérios com os quais estamos
aprendendo a conviver.

Dois Tipos de Livre-arbitrio


Tanto o calvinismo quanto o teísmo do livre-arbitrio afirmam o livre-arbitrio, mas o
definem de maneiras distintas. O livre-arbitrio calvinista é chamado de
compatibilista, e quer dizer que você é livre desde que faça o que quer. Desde que
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aja embasado em sua inclinação mais forte, você é livre, independente de se você
poderia ou não ter feito o contrário. Assim sendo, no calvinismo, Deus pode
unilateralmente determinar suas inclinações de forma que você deve fazer aquilo
que ele lhe ordenou fazer e, contudo, você ainda “livremente” faz tal coisa. Portanto,
se Deus determinar que você irá rejeitar a Jesus, você ainda irá rejeitá-lo livremente
— mesmo que Deus tenha determinado a rejeição e que você não pudesse ter feito o
contrário — pois você estava fazendo o que queria. É assim que os calvinistas
geralmente explicam a queda. Deus preordenou o pecado de Adão e Eva, mas mesmo
assim eles pecaram livremente, pois estavam fazendo o que queriam.
Confuso? Se estiver, você está em boa companhia, pois a confusão é o que
acontece quando se usa um termo de maneira tão contrária à intuição.
O entendimento do teísmo do livre-arbítrio em relação ao livre-arbítrio é
chamado de liberdade libertária, e quer dizer o poder de escolha contrária. Você é
livre se tiver a habilidade de escolher entre duas ou mais coisas. Isso não quer dizer
que a liberdade seja absoluta, pois nossas escolhas são sempre mais condicionadas
do que jamais poderíamos imaginar. Mas ela realmente significa que, a fim de que
tenhamos um livre-arbítrio genuíno, devemos ser capazes de agir embasados em
várias inclinações, e não apenas em nossa inclinação mais forte.

México ou Suécia
E apesar de o compatibilismo (o “livre-arbítrio” calvinista) ser problemático por uma
série de razões já mencionadas (a existência do pecado, o mal, o inferno), também
deve ser admitido que o maior mistério do teísmo do livre-arbítrio é o mistério do
livre-arbítrio libertário. Na verdade muitos filósofos consideram a idéia de livre-
arbítrio incoerente.
Considere isso, você quer viajar de férias e tem suas escolhidas reduzidas a
México e Suécia, e, após muita deliberação, você decide viajar para o México. Agora,
de acordo com o livre-arbítrio libertário, o mesmo conjunto de circunstâncias e
deliberações (mesmos desejos, mesmas inclinações, mesmas crenças, etc.) que o
levaram a escolher o México poderiam também o ter levado a escolher a Suécia. Isso
parece um tanto estranho. Se nada fosse mudado, de onde viria essa decisão de
escolher a Suécia? Ela apareceria como mágica, do nada? Ela se materializaria em
seu córtex pré-frontal? Como se pode, de alguma forma, entender esse tipo de
impulso “livre”?
Essa acusação é bastante justa, mas qualquer cristão atencioso perceberá
que se a criação do mundo por parte de Deus foi um ato de graça, então Deus deve
ter tido a habilidade de não criar o mundo. E se isso for verdadeiro, então, no
mínimo, Deus deve ter liberdade libertária. E se Deus tiver liberdade libertária,
então, ainda que não possamos plenamente (ou remotamente) explicá-la, o fato de
Deus a ter não é uma idéia incoerente ou absurda.

Pecado
Agora, a menos que pensemos que isso seja um jogo de filosofia de alunos do
segundo ano da faculdade, aqui é onde o problema começa. Qual a origem do
primeiro impulso pecaminoso?
Embora os calvinistas consistentes acreditem que Deus tenha ordenado a
queda, eles hesitam em dizer que Deus colocou o primeiro impulso pecaminoso em
Adão. Mas se não veio de Deus, de onde mais poderia ter vindo? Críticos do
calvinismo acusam-no de inconsistência nesse ponto. Já foi afirmado que Deus é a
realidade toda-determinante e ordenou a queda, no entanto, o calvinismo
simplesmente não aceita esse difícil ponto, nem admite que Deus ordenou o
primeiro impulso pecaminoso em Adão. O que os calvinistas têm a dizer como
defesa? Eles apelam ao mistério. “Não sabemos de onde surgiu o primeiro impulso
pecaminoso”. Todavia certamente não parece que eles não sabem de onde veio o
impulso, mas sim que eles não querem dizer de onde ele veio. Ou, melhor ainda,
parece que os calvinistas deliberadamente suspendem a lógica de sua teologia nesse
ponto.
Mas agora devemos fazer a mesma pergunta ao teísmo do livre-arbítrio: de
onde surgiu o primeiro impulso pecaminoso? Deus cria um mundo livre de pecado,
e humanos sem pecado. Como que um humano sem pecado em um mundo livre de
pecado escolhe pecar? De onde vem o impulso? Apelar para Satanás não vai
realmente ajudar, pois então precisaríamos fazer a mesma pergunta acerca de
Satanás, de onde veio seu primeiro impulso maligno? De fato, no fim das contas, a
melhor coisa que podemos dizer é. “É um mistério”. Nós não acreditamos que Deus
tenha ordenado esse primeiro impulso; nós acreditamos que Adão seja responsável
por ele, mas não podemos explicar como uma criatura sem pecado escolhe pecar.
Salvação
Mas agora deixemos de falar sobre pecado, e passemos a falar sobre salvação. De
acordo com o teísmo do livre-arbítrio, por que algumas pessoas aceitam a Cristo, ao
passo que outras o rejeitam? Certamente não é porque os que aceitam a Cristo sejam
— em certo sentido moral — “melhores” dos que os que o rejeitam, pois nós todos
somos totalmente depravados à parte da graça de Deus. Então, como fica? O que os
teístas do livre-arbítrio dizem em sua defesa? É um mistério. Conforme Jerry Walls
observa.

Observe que tanto o calvinista quanto os teólogos do livre-arbítrio, por


fim, chegam a um ponto onde explicações adicionais são impossíveis.
Ambos chegam ao limite da escolha final inexplicável. O teólogo do
livre-arbítrio não pode plenamente explicar a razão porque alguns
escolhem a Cristo e outros não. O calvinista não nos consegue dizer por
que, ou sobre qual base Deus escolhe alguns para a salvação e ignora
outros.117

O teísmo do livre-arbítrio deve aprender a viver com a inexplicável escolha da


salvação. Nós não podemos explicar por que alguns se rendem à graça de Deus e
outros não.
Mas se você for como eu, embora esses mistérios do livre-arbítrio, o
primeiro pecado, e a salvação sejam certamente enigmáticos, eles não me
importunam muito. Na verdade, eles parecem bem apropriados. Eles parecem ser
mistérios bíblicos que não impossibilitam a Bíblia nem Deus, e eu estou disposto a
viver com eles. Mas vamos espremer o mistério da salvação um pouquinho mais,
pois um bom número de calvinistas considera que o entendimento do teísmo do
livre-arbítrio sobre a salvação leva ao pecado imperdoável, usurpar a glória de
Deus.

Vanglória no Céu
Um calvinista e um teísta do livre-arbítrio estão diante dos portões de pérola, e o
Apóstolo Pedro lhes pergunta, “Quem recebe a glória por sua salvação?” O calvinista
rapidamente responde, “Deus recebe toda a glória, pois minha salvação é
inteiramente dele. De acordo com Efésios 1, ele me elegeu antes da fundação do

ll7Jerry Walls, “The Free Will Defense, Calvinism, Wesley, and the Goodness o f God,” Christian Scholar’s
Review 13, no. 1 (1983), 25.
mundo, me justificou na cruz, e ordenou que eu acreditasse e aceitasse a Jesus”.
Satisfeito, Pedro então se volta para o teísta do livre-arbítrio, que diz, “Bem, Deus
recebe 99 por cento da glória, pois ele fez todo o trabalho pesado, mas então eu
escolhi acreditar e aceitar a Jesus, portanto, eu recebo 1 por cento”. Pedro suspira em
horror, bate na testa do teísta do livre-arbítrio com seu cetro dourado, e diz que esse
é apenas mais um exemplo de como o teísmo do livre-arbítrio usurpa Deus de sua
glória. Ela cria pessoas que se vangloriariam no céu.
Essa é a típica acusação feita contra o sinergismo, que é o termo técnico
para o entendimento libertário da salvação, no qual há cooperação divina-humana
na salvação — Deus, em graça, faz tudo, mas os humanos precisam cooperar ao
aceitar essa graça. De acordo com pessoas como James Montgomery Boice, os teístas
do livre-arbítrio não podem dar glória a Deus, “Eles querem glorificar a Deus. Na
verdade, eles podem e dizem ‘a Deus seja a glória’, mas eles não podem dizer
‘som ente a Deus seja a glória’, porque insistem em misturar o poder ou a habilidade
do homem, com a resposta humana ao evangelho da graça”118
Por conseguinte, quando teístas do livre-arbítrio chegam ao céu, nós iremos
inevitavelmente nos vangloriar, “Eu escolhi crer. Eu, pelo meu próprio poder, recebi
Jesus Cristo como meu Salvador”119. Boice conclui sugerindo que caímos nesse erro
porque não entendemos adequadamente o peso de nossa pecaminosidade humana.
Tudo isso para dizer que o teísmo do livre-arbítrio enfrenta as acusações de
depreciar a pecaminosidade humana, minimizar a salvação pela graça, e usurpar a
glória de Deus. As acusações se sustentam? O que podemos dizer em defesa? Após
sentar com esses monstros por um tempo, aqui estão algumas coisas que posso dizer
por mim mesmo.

Minimiza o Pecado?
Todo ser humano fez algo que ele pensou que não fosse capaz de fazer. Às vezes isso
é bom, mas na maioria das vezes é ruim. Você tem um pensamento tão repulsivo que
fica perplexo que ele tenha entrado em sua mente. Você diz algo tão cruel que
imagina como um humano sequer consegue pensar em dizer tal coisa a outro ser
humano. Você faz algo tão egoísta que se acha na frente do espelho pensando,
“Quem sou eu, quem faz esse tipo de coisa?”. Isso é algo diário para mim.

llsBOICE, James Montgomery. O Evangelho da Graça. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, pp. 160, 61.
,,9Ibid.
E todavia eu geralmente não me vejo como uma espécie de criatura
horrendamente repulsiva, cruel e egoísta. Isso me leva a acreditar que eu (e
provavelmente todo ser humano que já existiu) sou inquestionavelmente culpado de
subestimar minha própria pecaminosidade — somos piores do que pensamos que
somos. A verdade é que enquanto estivermos rodeados por humanos tão defeituosos
quanto nós somos, jamais conheceremos as profundidades de nossa depravação —
que somente virá quando estivermos diante do Criador crucificado. Mas tendo dito
tudo isso, eu considero que meu teísmo do livre-arbítrio não deprecia minha própria
pecaminosidade (não mais do que qualquer teologia deprecia),mas sim magnifica a
graça de Deus.
Ele não minimiza pecado — ele só magnífica a graça.

Magnifica a Graça
O calvinismo tenta enfatizar o pecado e magnificar a graça ao enfatizar nossa
depravação, somos tão depravados que Deus precisa realizar toda e cada parte de
nossa salvação. Deus até mesmo determina nossa aceitação do dom de salvação, pois
nós, de outra forma, não poderíamos aceitá-lo.
Mas como já observado, para mim isso minimiza tanto o pecado quanto a
graça, porque Deus é a causa última de nossa pecaminosidade e depravação, e como
tal, a salvação Dele não é um ato de graça — Deus está meramente resolvendo o
problema que Ele mesmo causou. E assim, apesar de eu poder responder a esse gesto
dizendo. “Deus, você fez a coisa certa”, eu certamente não responderia com um
“obrigado”. Ou, no mínimo, eu não saberia a razão de estar dizendo “obrigado”.
Conforme notado anteriormente, se você não pode ficar diante da cruz e entender a
razão de estar dizendo “obrigado", existe aí um grande problema. O pecado deixa de
ser pecado e a graça deixa de ser graça. Não. a fim de que o pecado seja pecado e a
graça seja graça, devemos enfatizar o pecado e magnificar a graça de outra forma. A
outra forma é bastante óbvia, uma vez que eu já a apontei para você.
Conforme copiosamente lembrado do início ao fim. o teísmo clássico do
livre-arbítrio afirma, com toda sinceridade, a depravação total. Os humanos não têm
a habilidade de se voltar para Deus por eles mesmos. Nós somos buracos negros,
desesperadamente voltados para nós mesmos, e somos tanto culpados do pecado,
quanto infectados por ele. Mas o teísmo clássico do livre-arbítrio também afirma
que a graça de Deus é mais do que capaz de superar a depravação. Estou falando
bem sério...
A graça de Deus é capaz de criar o cosmos, sustentar a existência, e
ressuscitar Jesus de entre os mortos, mas ela não pode superar nossa depravação a
ponto de nos conceder a habilidade de aceitar ou rejeitar a oferta divina de
redenção?120 Em vez de depreciar o pecado e a graça, eu acredito que o teísmo do
livre-arbítrio faz exatamente o oposto.

A Contribuição de Fazer Nada


Mas e a nossa habilidade de se vangloriar de nossa salvação? Afinal de contas, nós
somos aqueles que, “em última análise", decidem se vamos para o céu ou o inferno.
Uma ilustração emprestada de Roger Olson pode ser útil aqui.
Um homem caiu em um poço, está inconsciente, e irá, por fim. morrer. Mas
Deus chama o homem e lhe oferece ajuda, despertando-o de sua inconsciência. Deus
começa despejando água no poço e diz ao homem que se ele ficar imóvel, poderá
boiar até ser resgatado. Tudo o que o homem precisa fazer é não lutar, nem tentar
prender-se ao fundo do poço. Tudo o que ele precisa fazer para ser salvo é se
entregar121. Sua “contribuição” para sua salvação é a contribuição de fazer nada.
Ou, através da analogia clássica, a salvação é um presente, mas um presente
ainda precisa ser aceito. E que tipo de idiota recebe um presente e começa a se gabar
sobre como ele fez uso de seus músculos e de suas cordas vocais, língua e boca para
dizer. “Sim, eu aceitarei este presente”? Ele seria, claro, um idiota que não está
qualificado para o céu. mas. novamente, nenhum de nós está.
Mas isso não é o bastante para muitos calvinistas. Afinal de contas, nós não
estamos apenas inconscientes no fundo de um poço, mas estamos literalmente
mortos em nossos pecados (Efésios 2,1-9)! Justo — embora eu não esteja certo do
que literalm ente morto signifique — portanto, vamos levemente ajustar a analogia
de Olson, e dizer que um homem morto está em um poço e Deus o chama de volta à
vida, e então lhe dá a opção de permitir que a água o faça boiar até chegar ao nível
da terra, ou que lute contra a água e com isso garanta sua morte final. Essa analogia

120 Isso se rfim n graça preveniente. A graça preveniente é entendida como sendo a atração poderosa de
Deus, mas resistível, na qual a vontade caída é liberta, e lhe é concedida a oportunidade de aceitar a Deus
ou rejeitá-lo.
12101son, Teologia Arminiana, 206.
funciona para mim. Mas ainda assim não há um pequeno espaço para que nós nos
vangloriemos de nossa salvação, mesmo que seja 0,000000001 por cento? E aqui
chegamos ao impasse. Não, eu não penso que haja espaço para que nós nos
vangloriemos de nossa salvação — mas o calvinista pensa que há. Precisaremos
concordar em discordar.
Conseqüentemente, ao passo que compreendo a preocupação calvinista, ela
simplesmente não parece preocupar a Deus tanto quanto preocupa a eles122. Eu não
penso que um Deus que assume forma humana para ser assassinado por suas
criaturas está muito preocupado com que tirem vantagem dele, então nós
provavelmente também não nos devemos preocupar tanto com isso.

Ninguém precisa se preocupar sobre tirar vantagem de Deus em alguma


barganha com ele (...). Qualquer um que pensa que isso é realmente um
problema está seriamente subestimando a inteligência e a agilidade de
nosso Pai (...). Ele não será enganado, nem trapaceado. Quaisquer
arranjos que Deus estabeleceu serão certos para ele e certos para nós.
Podemos contar com isso123.

E, até onde posso imaginar, se eu ficar diante dos portões de pérola e o


Apóstolo Pedro me perguntar por que eu fui salvo, eu direi, “Por que fui amado”.
Certamente, essa resposta seja o bastante.

Presciência e Mal
Outro monstro — ou pelo menos uma característica desconcertante — do teísmo do
livre-arbítrio diz respeito à presciência de Deus.
De acordo com o teísmo clássico, Deus tem presciência absoluta e exaustiva
do futuro. De acordo com o teísmo aberto, uma recente variação do teísmo clássico,
Deus não tem presciência exaustiva do futuro, mas sendo infinitamente inteligente,
ele certamente tem uma boa ideia do que irá acontecer. De qualquer forma, isso
resulta no seguinte dilema. Se Deus soubesse — ou pelo menos tivesse uma boa ideia
(teísmo aberto) — de que o mundo que ele iria criar resultaria nesta enorme
quantidade de mal e na condenação eterna de um número imensurável de humanos,
por que ele o criaria? Se Deus cria um mundo no qual o pecado, o mal, e o inferno

122 Na verdade, no calvinismo é difícil de se entender por que, se Deus odeia tanto o orgulho, Ele ordenou
tanto orgulho e ordenou que esse orgulho lhe trará glória.
123Willard, The Divine Conspiracy, 38.
são inevitáveis, Deus não é responsável por eles? O teísta do livre-arbítrio não fica
na mesma posição que o calvinista?
No mundo teológico/filosófico, é coisa rara ver muito consenso, mas quando
se trata desse assunto, há incrível concordância de que a defesa do clássico teísmo de
Alvin Plantiga resolveu a questão.

Um mundo com criaturas que são significativamente livres (e que


livremente executam mais ações boas do que más) é mais valioso, em
iguais condições, do que um mundo sem quaisquer criaturas livres. Ora,
Deus pode criar criaturas livres, mas Ele não pode causar ou
determinar que façam apenas o que é correto. Pois se Ele assim fizer,
então elas não são significativamente livres, no fim das contas; elas não
fazem livremente o que é correto. Para criar criaturas com capacidade
para o bem moral, portanto, Ele deve criar criaturas com capacidade
para o mal moral; e Ele não pode dar a essas criaturas a liberdade de
executar o mal, e, ao mesmo tempo, impedi-las de executá-lo. E
aconteceu, infelizmente, que algumas criaturas livres que Deus criou
erraram no exercício de sua liberdade; essa é a fonte do mal moral. O
fato de algumas criaturas livres errarem, contudo, não depõe contra a
onipotência de Deus, nem contra Sua bondade; pois Ele poderia ter
prevenido a ocorrência do mal moral apenas se removesse a
possibilidade do bem moral.124

Observe que Plantiga não afirmou que suas conclusões são à prova de bala.
Ele está meramente enfatizando que é certamente possível que Deus escolheu criar
este mundo — sabendo que ele resultaria nesta quantidade de pecado e sofrimento
— pois não lhe era possível criar um mundo em que o bem moral e os
relacionamentos divino-humano genuínos fossem possíveis e o mal não fosse. Você
não precisa concordar com a argumentação, mas é difícil discordar de que essa é
uma possibilidade.
E, além de ouvir uma possibilidade, aqueles de nós embasados na história da
Escritura ouvem ecos do Éden — Deus colocando duas arvores diante de Adão,
dando-lhe a opção de viver dentro ou fora do projeto divino para a criação. Dessa
forma, apesar de Deus realmente ter criado um mundo no qual ele sabia (ou estava
bem certo) de que algumas de suas criaturas acabariam no inferno, ele não tinha
opções melhores caso suas criaturas devessem ser verdadeiramente livres e capazes
de gozar de relacionamentos genuínos com ele.

I24PLANTINGA, Alvin. Deus, a Liberdade e o Mal (São Paulo: Vida Nova, 2012), p.47
96
Ao passo que essa explicação é possível e — parece-me — bíblica, deve se
admitir que ela ainda deixa espaço para que alguém se sinta desconfortável. Sim, as
pessoas no inferno estão lá como conseqüência de seus próprios pensamentos, ações
e inclinações pecaminosas. Elas merecem o inferno assim tanto quanto nós o
merecemos. Mas Deus trouxe esses homens à existência sabendo que eles
iriam/poderiam acabar dessa forma, sabendo que eles iriam/poderiam passar a
eternidade no inferno125. Isso pode ser um elevado preço a se pagar, e somos
deixados entregues ao mistério, confiando que Deus sabia o que estava fazendo
quando criou este mundo e não outro.

Bliks
Já viu o coelho-pato?
É uma imagem de um pato... Ou de um coelho. Dependendo de como você olhar
para a imagem, você ou vê um pato ou um coelho126. Ambos estão lá para serem
vistos, e é difícil dizer por que algumas pessoas inicialmente veem o pato e outras
veem o coelho. Esse é um exemplo não refinado do que os filósofos chamam de blik
Um b lik t uma lente interpretativa através da qual vemos todas as demais coisas. Um
b lik explica porque alguns olham para o sofrimento e veem ausência de Deus ao
passo que outros olham para o sofrimento e vêem a presença de Deus. Vemos a
mesma coisa através de olhos diferentes e, conseqüentemente, vemos coisas distintas.
E, de muitas maneiras, bliks são os motivos pelos quais algumas pessoas
optam pelo calvinismo enquanto outras optam pelo teísmo do livre-arbítrio127. Os
calvinistas lêem a Bíblia e o que lhe salta aos olhos é a soberania de Deus toda-
determinante e o comprometimento de glorificar a si mesmo a todos os custos — o
b lik deles é a glória do poder. Os teístas do livre-arbítrio leem a Bíblia e o que lhes
salta aos olhos é a soberania altruísta de Jesus, na qual o amor é mais importante do
que o controle — o b lik deles é a glória do amor.

125 No teísmo aberto, Deus não sabe exatamente quais humanos acabarão no inferno, mas ele deve ter uma
boa ideia de que muitos humanos realmente acabarão lá, então eu considero o dilema o mesmo.
126 Apenas pesquise no Google por “duck rabbif’.
l27Devo esse pensamento ao Roger Olson, e ele elabora essa ideia em Teologia Arminiana, 90-94.
Vivendo Mistérios
E, no fim das contas, eu não tenho idéia de por que um b likvem mais naturalmente
do que o outro. Mas eu realmente penso que tenho uma ideia de por que, tendo visto
as opções, escolhemos ficar com nosso b lik ou conseguir outro. Mas, no frigir dos
ovos, penso que ficamos com uma casa teológica porque preferimos os monstros em
seu porão aos monstros nos outros porões. As pessoas não escolhem o calvinismo ou
o teísmo do livre-arbítrio porque um lado provou claramente ser o certo, mas
porque eles “consideram o conjunto de mistérios de um mais fácil de se viver do que
o conjunto de mistérios do outro”128.
Então, com quais mistérios você está disposto a conviver? Melhor ainda,
com quais mistérios você pensa que a Bíblia o ensina a conviver? Talvez o apóstolo
Paulo seja o que mais se aproxima do cerne do mistério supremo.

Quero que vocês saibam quanto estou lutando por vocês (...) e por todos
os que ainda não me conhecem pessoalmente. Esforço-me para que eles
sejam fortalecidos em seus corações, estejam unidos em amor e
alcancem toda a riqueza do pleno entendimento, a fim de conhecerem
plenamente o mistério de Deus, a saber, Cristo. Nele estão escondidos
todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento. (Colossenses 2:1-3)

O mistério é Jesus, Deus encarnado e Deus crucificado por todo o mundo.


Conforme Máximo, o Confessor, disse há muito tempo, “É o mistério do amor e o
mistério da liberdade que é o mistério de Deus, três em um”129.
Como tal, não importa com quais monstros devo aprender a conviver,
viverei em umacasa que faz o que a Bíblia faz, que gire em tomo do mistério de
Cristo, o mistério do amor.

128Ibid., 92-93.
129George C. Berthold, “The Cappadocian Roots o f Maximus the Confessor,” em eds. F. Heinzer e d C. von
Schonbom, Maximus Confessor, Actes du Symposium sure Maxime le Confesseur (Fribourg: Editions
Universitaires, 1982), 56.
Mancando
Atravessando o Jaboque
Jacó quer ir para casa. Ele está fora há muito tempo, em uma longa jornada. “Volte
para a terra de seus pais”, Deus diz; e Jacó concorda130. Então ele desmonta o
acampamento, faz as malas e vai em direção á sua casa, mas há receio em seus
passos. Jacó não havia saído de lá exatamente nos melhores termos. Ele havia
enganado seu pai, roubado uma bênção de seu irmão, e foi enviado para longe para
viver com seus parentes. Que tipo de recepção ele receberá? Esaú ainda está bravo o
bastante a ponto de matá-lo? É difícil dizer.
Então Jacó faz o que ele sempre havia feito, ele planeja e manipula. Ele
envia sua família e todos os seus servos na frente para se encontrarem com Esaú
primeiro, para lisonjearem-no e darem a ele várias cabras, camelos, vacas e burros.
E agora ele está sozinho no centro do vau do Jaboque. O crepúsculo dá lugar à noite,
ao passo que o sol desaparece sob o horizonte. De manhã ele irá atravessar o vau de
Jaboque e estará em casa — se ele conseguir superar a noite.
De repente — um farfalhar nos arbustos.
Jacó senta-se com a coluna ereta, seus olhos se esforçam para conseguir o
foco, mas antes que consiga ver direito, acontece. Um estranho salta do escuro e Jacó
está lutando por sua vida. Quem é? Esaú? Um espírito mau protegendo a travessia
do rio? Eles selvagemente se agarram, chutando pó e grama, e enquanto isso os olhos
de Jacó ainda se esforçam para focar no rosto do agressor, mas sem sucesso. O
estranho permanece um mistério.
Os músculos ardem e a adrenalina diminui gradualmente, mas nenhuma
das partes irá se render. O estranho é forte, mas Jacó está determinado. De fato,
parece que Jacó irá vencer! Mas então tudo se desenrola com um simples toque. O
estranho toca o quadril de Jacó, deslocando-o, e instantaneamente Jacó grita de
agonia enquanto cai no chão. Lá ele fica paralisado e machucado, todavia, ele não
largou seu agressor — Jacó o puxou para o chão.

I30126. Gênesis 31:3.


Coberto de pó e suor, Jacó segura firme no estranho até que vê os primeiros
raios da luz do sol expulsando a noite. O estranho também vê os raios e seu tom é de
urgência, quando diz. “Solte-me, pois o dia está amanhecendo!” Então os olhos de
Jacó se arregalam, pois ele finalmente consegue ver um pouco do rosto do agressor.

O que ele vê é algo mais terrível do que a face da morte — a face do


amor. É vasta e forte, em parte avariada pelo sofrimento, e firmemente
alegre, a face que um homem que emerge de toda a escuridão de seus
dias até que, por fim, ele brada: “Eu não te soltarei, a menos que me
abençoe”.131

Israel
O estranho então quebra o silêncio com uma indagação curiosa, qual é o seu nome?
“Jacó”, ele responde, recusando soltar o estranho, apesar de suspeitar que o intruso a
quem segura seja algo completamente Outro. Mas a suspeita de Jacó, excessiva como
é, não consegue antecipar o que vem em seguida — ele recebe um novo nome. “Seu
nome não será mais Jacó, mas sim Israel, pois você lutou com Deus e com homens, e
venceu”132. Perplexo, Jacó solta o estranho e considera o impossível.
Ele está lutando com Deus.
Suas mãos agarraram o divino.
E agora ele recebeu um nome que marca aquele arbusto com deidade. Jacó
agora é Israel, e a nação que descenderá dele é a nação nascida desse ataque de
Deus. Israel é a nação nascida no momento em que Jacó derrotou a Deus. Mas ele
derrotou mesmo?
A história termina com o sol se nascendo, enquanto ele manca até sua casa,
“Ao nascer do sol, atravessou Peniel, mancando por causa da coxa...”133

Mancos e Migalhas
Isso é o que acontece quando humanos se encontram com Deus.
Quer chamemos isso de derrota magnífica ou de derrota incapacitante, quando
damos de cara com o Mistério dos mistérios, recebemos uma bênção, mas também

13lFrederick Buechner, The Magnificent Defeat (Nova Iorque: Seabury Press, 1966), 18. Devo muito à
forma magistral de como Buechner narra essa história em minha narrativa menos hábil.
'“ Gênesis 32:28 (NVI).
133 Gênesis 32:31.
saímos do encontro com uma fraqueza134. Quando lidamos com o EU SOU, somos
todos mancos procurando migalhas. E talvez o sinal mais certo de que nossa teologia
na verdade apenas toca Deus de leve é a presença de uma fraqueza. É o cultivo da
humildade, candor e generosidade. É um certo temor, modéstia e limitação. A
teologia que não manca não é teologia cristã.
Quando alguém pesquisa a cena teológica hodierna, existe muita vanglória,
mas pouca deficiência. É um fenômeno enigmático. Estamos reivindicando falar de e
até mesmo por Deus, pelo Criador e Mantenedor do cosmo. Estamos reivindicando
falar pela voz que, através da fala, chamou o mundo à existência. Estamos
reivindicando descrever o Mistério por trás de todos os outros mistérios. E, todavia,
nos vangloriamos? De onde vem esse orgulho? As sementes do orgulho teológico
geralmente germinam no mesmo lugar, a certeza.

O Comichão da Certeza
Desde o momento em que Adão e Eva morderam aquele mal fadado pedaço de fruta,
os humanos têm tentado transcender a transcendência. Rejeitamos nossa
humanidade e tentamos entender a divindade. Tais tentativas de compreensão
assumem diferentes formas, mas freqüentemente ela se mostra em nossas audaciosas
tentativas de alcançar a certeza em nosso conhecimento de Deus. Nem a fé e nem a
probabilidades são o bastante. Queremos conhecimento que não possa ser duvidado.
Esse é especialmente o caso no presente meio filosófico e teológico, no qual
muitos de nós sentem que estamos afogando-nos em um mar de relativismo,
ceticismo e niilismo. Tudo é duvidado, ninguém possui convicção, e estamos
desesperados por uma viagem segura em terra seca. Isso torna a certeza e a
presunção teológica ainda mais atraente, “Nosso apetite por certeza só tem crescido
em nosso problemático século. Quanto mais distante ele está, mais desejável
parece”135. Enxameamo-nos como insetos à luz de teólogos, instituições e
movimentos presunçosos, buscando ser salvos do bicho-papão do pós-modernismo
(ou pós-pós-modernismo ou metamodernismo ou... Seja lá o que for).

l34Buechner cunhou o termo “Derrota Magnífica,” enquanto Brueggemann sugeriu o termo “Vitória
Incapacitante”.
l35Daniel Taylor, The Myth o f Certainty (Downers Grove, IL: InterVarsity), 79.
Descartes
Mas a grande ironia e tragédia em tudo isso é que muito do ceticismo que agora
suportamos foi acelerado por uma tentativa semelhante de alcançar certeza em
nosso conhecimento de Deus.
Era a Europa do século XVII, e o ateísmo estava já se inclinando à porta.
Preocupado que ele, em breve, arrombaria as portas da igreja, o cardeal Pierre de
Berulle empregou a ajuda de um jovem e promissor filósofo, René Descartes.
Descartes deveria provar, para além da dúvida, a existência de Deus. Para tal, ele
precisava limpar o terreno de qualquer coisa que não fosse certa, isto é. ele
descartou como inconfiável qualquer tipo de conhecimento de que ele pudesse
duvidar136.
As repercussões desse método sobre a cultura e o pensamento humano
subseqüentes não podem ser exageradas, mas para nossos propósitos a mais
importante é esta. Indubitavelmente, a certeza objetiva tornou-se o único
conhecimento que realmente contava como conhecimento: “A era moderna começou
com o ousado programa de Descartes, um programa encorajado pelo cardeal da
igreja e voltado para banir o ceticismo de uma vez por todas, ao estabelecer o
método pelo qual a certeza indubitável poderia ser obtida”137. Parecia bem
promissora, mas no fim ficou claro que a certeza é uma sedutora, uma provocação e,
por fim, uma ilusão.
As gerações seguintes enfatizaram que se o conhecimento objetivo é o único
tipo que realmente vale, então nenhum conhecimento humano significativo é
possível, pois não existe tal coisa como conhecimento objetivo. Todo mundo “sabe” a
partir de uma perspectiva. Tudo pode ser duvidado. A verdade objetiva só pode ser
conhecida subjetivam ente. E se tudo pode ser duvidado e o único conhecimento que
conta é o conhecimento que não pode ser duvidado, então estamos em um sério
dilema. Metemo-nos em um beco sem saída. Não é de se surpreender que as coisas
tenham caminhado para esse lamaçal de ceticismo e dúvida.
Lamente se quiser, mas a saída para nosso dilema é simplesmente não tocar
a bateria da certeza cada vez mais alto. Também não é agir presunçosamente,

136 E, sabidamente, a única coisa que ele descobriu que não poderia ser duvidado era sua dúvida. Ou,
colocando de outra forma, a única coisa de que ele estava “certo” era sua existência como um sujeito
(pensante) que duvida.
137Newbigin, Proper Confidence, 27.
esperando que nossa pompa compense a ignorância e a dúvida que nós
inevitavelmente nutrimos, como pequenas pilhas de pó no vasto cosmo de nosso
Criador. Não, a certeza e a presunção não nos irão livrar do ceticismo.
Mas o andar manco irá.

Deus é uma Pessoa


Essencial para a fé cristã está a convicção de que Deus é, em certo sentido, uma
pessoa138. Deus não é um objeto para ser examinado ou uma equação a ser
resolvida. Deus é uma pessoa a ser conhecida, e a realidade, em sua essência, é
pessoal. E se Deus é realmente uma pessoa — e, mais que isso, uma comunidade de
pessoas infinitamente transcendente —, então, no que diz respeito ao nosso
conhecimento de Deus, a certeza é impossível139.
Seres humanos finitos estão tentando conhecer uma Pessoa(s) enquanto
olhamos para o universo através de um buraco de agulha. Como poderíamos
possivelmente estar certos ou sermos objetivos? O que isso sequer significa? Mas
antes que nossa ansiedade se avolume, deve ser observado que apesar de o nosso
conhecimento de Deus não ser e não poder jamais ser objetivo, ele também não é
inteiramente subjetivo. Ele é pessoal.
Quem você mais “conhece”? Talvez seja o cônjuge, o pai ou o irmão. Agora,
quais são as coisas que você conhece sobre aquela pessoa com certeza absoluta,
coisas que não podem ser duvidadas? Talvez você esteja certo de que essa pessoa é
amável. Você está com ela todos os dias e vê suas interações com outras pessoas.
Você jamais a ouviu proferir uma palavra colérica. Mas você poderia estar certo que
de que ela sempre é amável? Quem sabe o que ela faz quando você não está por
perto? Talvez ela torture filhotes de gatos e de cachorros. E quem sabe tudo o que
passa pela mente dela? Quem sabe o que ela faria caso pudesse sair ilesa da
situação? Você certamente não sabe coisa alguma disso, portanto, no fim das contas,
tudo sobre o que você pode estar certo é de que você a conhece como amável.A
amabilidade dela sempre pode ser duvidada.
E podemos ficar andando em círculos, cenário após cenário, mas
continuaremos chegando a este impasse— embora você pode estar absolutamente
certo de que você está certo em seu conhecimento de algo, você muito certamente

138 Ou uma comunidade completamente unificada de pessoas para ser exato — ou para ser inexato.
09 Para poupá-lo da ironia — eu estou certo disso? Claro que não, e esse é exatamente o ponto!
103
não está certo. E isso se dá porque você sempre conhece comouma pessoa, como um
ser com uma perspectiva inflexivelmente limitada, e você jamais pode transcender
sua “pessoalidade” a fim de alcançar certo tipo de conhecimento objetivamente certo.
Conforme Leslie Newbigin diz, “É obviamente absurdo supor que a objetividade total
seja possível; pois, se não há sujeito algum que conheça, não há conhecer’140.

Conhecimento Pessoal
E aqui se encontra a saída do ceticismo e relativismo. Devemos adotar o fato de que
todo nosso saber é, em última análise, pessoal. É o conhecimento que temos como
pessoas penosamente finitas. E além disso, o tipo mais significativo de conhecimento
que podemos ter é o conhecimento de outras pessoas. Em ambas as extremidades, o
conhecimento genuíno é pessoal,

A implicação de que todo nosso saber é pessoal, não apenas no sentido


de que ele envolve o comprometimento pessoal e apaixonado daquele
que conhece, mas também no sentido de que nosso conhecimento não
será completo até que ele pressione além das realidades impessoais
(exploradas com as ferramentas da física, química, biologia e as
ciências humanas) para aquela realidade pessoal (...).141

Isso quer dizer que devemos aceitar e adotar o risco envolvido em todo o
saber humano, principalmente nosso conhecer de Deus. Nós poderíamos mais
certamente estar errados e nossas crenças mais amadas podem certamente ser
duvidadas. Mas isso não torna nosso conhecimento inadequado ou menos
significativo. Longe disso! Ele simplesmente quer dizer que devemos rejeitar a noção
inocente de que o tipo mais significativo de conhecimento seja o conhecimento que
não possa ser duvidado.
Antes, o oposto é verdadeiro, o tipo mais significativo de conhecimento —
conhecimento pessoal — sempre pode ser duvidado! É o comprometimento pessoal
de uma pessoa com outra pessoa. Não é um salto de fé cega, mas é um passo em solo
incerto. Podemos e devemos estar confiantes — profundamente confiantes —, mas
não podemos ter certeza.

140Newbigin, Proper Confidence, 45.


141Ibid., 61-62.
Certamente deve ser uma ilusão imaginar que nos possa estar disponível
um tipo de certeza que não envolva esse comprometimento pessoal. Ao
menos isso deve certamente ser dito: se a descrição bíblica da situação
humana for verdadeira;,se a realidade suprema é um Deus pessoal, a
quem pertencemos ediante de quem somos responsáveis; então há algo
bastante absurdo na postura daqueles que alegam certeza infalível
acerca de Deus (...).Em nossas relações interpessoais, jamais faríamos
tais reivindicações (...). Que absurdo é fazer tal reivindicação em
relação a Deus!142

Boas Maneiras - Boa Teologia


E é por isso que a humildade, a contenção e a moderação em nossas crenças sobre
Deus não são simplesmente boas maneiras. Elas são boa teologia
Longe de serem as marcas de ceticismo ou falta de coragem, elas são marcas
de uma teologia que manca, pois ela está realmente lidando, lutando e batalhando
com Deus. Elas são marcas de uma teologia que parou de tentar transcender a
transcendência. São marcas de uma pessoa que desistiu da exausta e fadada rebelião
contra a finitude; as marcas de um humano que abraçou ser um humano — risco,
incerteza e tudo mais. Somos humanos e isso significa que não conseguimos atingir
a certeza. E é por isso que uma das confissões teológicas cristãs mais nobres e puras
é o reconhecimento de nossa humanidade, ao invés da dissimulação dela por trás de
frágeis fingimentos de presunção e certeza.
As únicas opções não são certeza ou fracasso; a fé sempre tem espaço para
dúvida, e isso não é algo ruim. Conforme Daniel Taylor diz, “Minha própria
experiência é de que a certeza, para os seres humanos, não existe, jamais existiu,
jamais em nossos estados finitos — existirá e, além do mais, não deve existir.
Muito sabiamente, esse não é um dom de Deus que Ele resolveu dar a Suas
criaturas”143 Ou, conforme diz Buechner, “Dúvidas são as formigas nas calças da fé.
Elas mantêm-no alerta e em movimento”144. Ao invés de destruírem a fé, a dúvida e a
incerteza podem animá-la, ao nos conduzir à postura adequada de humanidade
humilhada e submissão confiante. Nós minimizamos a dúvida quando a analisamos
e a aceitamos em fé.
E é por isso que talvez não seja demais dizer que a dúvida está mais
próxima da fé do que a certeza. A dúvida — se aceita como o espinho inevitável no

142lbid„ 67.
143Taylor, The Myth o f Certainty, 94.
l44Buechner, Wishful Thinking, 23.
lado da humanidade — pode dar à luz a fé, quando a colocamos diante de Cristo
que, na cruz, disse, “M eu Deus, m eu Deus, porque m e abandonaste?
Fé, dúvida, humildade e confiança — essas são o material e a substânciada
teologia na sua melhor condição. Presunção, soberba e certeza — essas são o
material e a substância da ideologia no seu pior estado.

Dizendo o Indizível
Tenho uma opinião. Estou confiante em minha teologia. Penso que os calvinistas
estão certos em algumas coisas, um tanto quanto equivocados em outras, e
realmente errados em ainda outras. Eu provavelmente tenho minha parcela
presunção. E compartilho minha experiência porque acredito que haja um caminho
melhor, e gostaria de que você se juntasse a mim nesse caminho. Mas eu poderia
estar errado e devo estar bem com isso, pois talvez a única coisa pior do que estar
errado é estar certo de que você está certo — uma afirmação que é menos sobre
boas-maneiras e tolerância do que é sobre teologia e honestidade.
Barth, em uma de suas conhecidas declarações, disse, “Devemos falar de
Deus. Somos humanos e, todavia, não podemos falar de Deus. Devemos, assim,
reconhecer tanto nossa obrigação quanto nossa inabilidade, e com esse mesmo
reconhecimento dar glória a Deus. Essa é nossa perplexidade. O restante de nossa
tarefa, em comparação, esvai-se em insignificância’145.
Não conseguimos realmente falar de Deus.
Não podemos parar de falar de Deus.
Essa é realmente nossa perplexidade — minha e sua —, e é uma
perplexidade que jamais é resolvida. Ela só é aceita. Confiança? Definitivamente.
Certeza? Não. Você é humano e eu também sou — isso é fato. Portanto, troquemos
nossa confiança por um andar manco e vamos, juntos, procurar por migalhas.

14SKarl Barth, The Word o f God and the Word o f Man (Nova Iorque: Harper & Brothers, 1957), 186.
106
Jovem, Incansável e...
Dilema do Evangelho
Então essa é minha peregrinação de conversão ao calvinismo e desconversão dele,
minhas divagações de desconstrução e reconstrução. E apesar de minha jornada
teológica jamais chegar ao fim deste lado do túmulo, podemos encontrar um lar no
caminho Deus sabe que precisamos de um. Eu tenho um, e estou aprendendo a
mancar pela casa. Eu sou mais ou menos jovem, sou incansável e sou...
Bem, ainda não estou bem certo acerca de como terminar a frase acima.
“Jovem, incansável e reformado” flui facilmente ao dizer.“Jovem, incansável e teísta
do livre-arbítrio” não tem o mesmo efeito. E além de ser um dilema retórico, isso é
um dilem a do evangelho, pois essa frase precisa terminar com algo acerca do
evangelho. Se o evangelho for realmente o centro radiante da fé, da vida, da
adoração e da missão cristãs, então faríamos bem se nos centrássemos nele, ao invés
de nos tornarmos fixados em um de seus raios.
Independentemente de sua convicção teológica, o evangelho não é
primariamente uma proclamação do calvinismo ou do teísmo do livre-arbítrio (ou
de qualquer outro “ismo”, diga-se de passagem); no entanto, você seria desculpado
por pensar que fosse, devido ao sentido atribuído por certas pessoas. Nem é o
evangelho “as boas novas que, em razão apenas da morte de Jesus, seus pecados
podem ser perdoados, e tudo o que você precisa fazer é crer, ao invés de tentar
impressionar Deus com suas ‘boas obras’”146. Não, como uma avalanche crescente de
vozes estão enfatizando, o evangelho é algo muito maior que a justificação pela fé,
dupla imputação, e expiação substitutiva147. Como um protestante evangélico, penso
que essas doutrinas têm seu devido lugar, mas elas não são o evangelho. Se
quisermos ser pessoas que vivem e preguem o evangelho, então precisamos ir até os
Evangelhos (Mateus. Marcos, Lucas e João... Eles são chamados Evangelhos por um

l4í'Wright, How God Became King, 6.


Vide Scot McKnight, The King Jesus Gospel: The Original Good News Revisited (Grand Rapids:
Zondervan, 2011), N. T. Wright, How God Became King, e Dallas Willard, The Divine Conspiracy, caso
queira algumas percepções concisas e estimulantes sobre essa questão.
107
motivo), e lá encontramos que as palavras-chave no vernáculo do evangelho são
reino, cm zc discipulado.

Reino
Tanto em Mateus 4:23 como em 9:35, ouvimos que Jesus estava “proclamando o
evangelho do reino”. Se quisermos basear nossa interpretação em Jesus —
geralmente uma idéia brilhante —, então talvez nós devêssemos, no mínimo, tentar
definir o evangelho em termos de reino. O evangelho é uma mensagem acerca de
um reie um reino. E conforme N.T. Wright, Scot McKnight e vários outros
laboriosamente enfatizaram, o evangelho é a boa nova de que Deus tornou-se rei de
todo o universo na e através da história de Jesus.

Um novo estado de coisas foi trazido à existência. Uma porta que


ninguém pode fechar foi aberta. Jesus é agora o Senhor do mundo por
direito, e todos os outros senhores devem prostrar-se aos Seus pés148.
Observe isto: o que Deus faz ao enviar o Filho é estabelecer Jesus como
o Messias, que significa Rei, e Deus estabeleceu em Jesus Cristo o reino
de Deus, que significa que o Rei está governando em seu reino.
Precisamos reafirmar isso: a ideia de Rei e um reino estão conectadas
com a criação original. Deus queria (...) que Adão e Eva governassem
neste mundo. Eles falharam, então Deus enviou seu Filho para
governar. Como seu Rei e Messias e Senhor, o Filho comissiona a
Igreja para dar testemunho ao mundo da redenção em Jesus Cristo, o
verdadeiro Rei, e para encarnar o reino como o povo de Deus.149

Esse é o evangelho150. O Rei e seu reino chegaram estrondosamente, e é


melhor que todos osoutros reinos observem e gratamente se prostrem em submissão
antes que o ajoelhar não seja mais opcional. E este é o convite do evangelho, como
Jesus disse, “Arrependei-vos, pois é chegado o reino de Deus”151. Entregue seu
pequeno domínio ao Único que é verdadeiramente soberano.
E quando der uma olhada de perto no evangelho do reino, você verá que, ao
invés de reinar a partir de certo trono nas alturas no céu, o Deus do evangelho reina
a partir de uma cruz.

l48Wright, How God Became King, 37.


l49McKnight, The King Jesus Gospel, 36.
150 Para um excelente esboço do evangelho, vide ibid., 148-53.
151 Mateus 4:17.
Cruz
Em Marcos 10, Tiago e João fazem uma pergunta a Jesus, “Podemos sentar à sua
direita e esquerda quando vier em sua glória?” Isto é, “Podemos ficar com os
melhores lugares quando você for o rei coroado e conduzir o exército celestial,
estabelecendo o reino de Deus e esmagar a tudo e todos?”
Um pedido justo, sem dúvidas, e então Jesus responde, “Vocês não sabem o
que estao pedindo. Para começar, esses assentos já estão designados, e, ainda mais
importante, eu não penso que você iriam querer, de qualquer forma, esses lugares.
Sabe, voces pensam que eu irei fazer as coisas da forma como vocês as fariam. Vocês
pensam que vou pisar em meus inimigos, e responder a violência com mais
violência, e me certificar de que ninguém tire proveito de mim. Mas não sou como
vocês, e meu reino não é como coisa alguma que já viram antes.E se quiserem um
lugar em meu reino, então precisarão entregar suas vidas. Pois mesmo eu, o Rei, não
vim para ser servido, mas para servir e entregar minha vida como resgate de
muitos”152.
Salte para Marcos 15. Os discípulos se dispersaram e Jesus está na cruz
sozinho. Só na verdade que ele não está sozinho, visto que nos é dito que dois
criminosos estão crucificados com ele... Um à sua direita e outro à esquerda. Isso,
claro, lembra-nos da conversa que Jesus teve com Tiago e João, na qual eles
perguntaram se poderiam sentar à sua direita e à sua esquerda quando ele viesse em
sua glória, quando ele se tornasse rei. E aqui vemos o atordoante paradoxo da
crucificaçao, a crucificação de Jesus é o momento quando Jesus é entronizado como
rei, o momento quando ele vem em sua glória, o momento que o universo
ansiosamente esperava, mas que jamais poderia ter antecipado153
E então o épico plano de Deus de endireitar tudo, de lidar com o pecado,
julgar o mundo, estabelecer seu reino na terra como é no céu, atinge seu clímax na
cruz quando Deus recebe todo sofrimento e ódio e violência e pecado sobre si
e...Perdoa-os. Ele mata a morte e o pecado ao asfixiá-los com amor altruísta e
sofredor. O amor deu a última palavra e agora tudo pode ser redimido. O evangelho
do remo e o evangelho do reino em forma de cruz do Rei crucificado do universo,
Nos temos, ai de mim. depreciado a cruz, imaginando-a meramente como um
mecanismo para nos livrar de nossas próprias indecências (...). A cruz é muito, muito

l52Minha tradução de Marcos 10:35-45.


53Wright, How God Became King, 221.
mais. Ela é o momento quando a história de Israel atinge seu clímax; o momento
quando, por fim, os vigias sobre os muros de Jerusalém vêem seu Deus vindo em seu
reino; o momento quando o povo de Deus é renovado, a fim de ser, finalmente, o
sacerdócio real que assumirá o mundo não com o amor ao poder, mas com o poder
do amor; o momento quando o reino de Deus prevalece contra os reinos do mundo.
É o momento quando uma grande, antiga porta, trancada e barrada desde nossa
primeira desobediência, se abre ( - ) 154
E, então, para aqueles com estômago para a coisa, como entramos no reino
em forma de cruz do Deus crucificado?

Discipulado
Siga-me.
Procure em todas as partes nos evangelhos, e verá que esse é o único convite
que Jesus realmente estende a todos. Conforme Dallas Willard observa, o Novo
Testamento é um livro escrito por discípulos, sobre discípulos e para discípulos155. O
reino é para os discípulos, pessoas que estão aprendendo a seguir Jesus, para que
possam se tornar como ele156. Você não pode optar pelo cristianismo, mas recusar o
discipulado. Discípulos não são super-cristãos; eles são apenas cristãos.
E, atrelada á palavra “discípulo", está uma gama de outras ideias importantes,
confiar em Jesus, pedir a Ele para que “entre em seu coração", ter seus pecados
perdoados. E apesar dessas coisas serem importantes, elas jamais podem ser tomadas
como um convite para algo que não seja o discipulado. É discipulado ou fracasso. O
discipulado é a entrada para o reino.
A intenção de Jesus — e a intenção do evangelho — era e é criar uma
comunidade de discípulos que ama Deus com o coração, a alma e as forças, e ama
seu próximo como a si mesmo. Era criar uma comunidade onde o Rei crucificado
reina. Nada mais serve, pois isso é o que o evangelho faz, ele faz discípulos daquele
reino em forma de cruz do crucificado Deus e Rei, Jesus.

154Ibid., 239-240.
155Dallas Willard, The Spirit o f the Disciplines: Understanding How God Changes Lives (Nova Iorque:
HarperCollins, 1988), 258.
l56Essa é uma descrição muito simples de discipulado, portanto, leia a obra The Divine Conspiracy escrita
por Dallas Willard.
Discípulos. Manufaturados ou Orgânicos?
Como mencionado anteriormente, geralmente se diz que a teologia de alguém não é
sustentável a menos que ela possa ser pregada nos portões de Auschwitz. Parece que
o evangelho também força-nos a dizer que a teologia de alguém não é sustentável a
menos que ela naturalmente produza discípulos do reino.
Se você estiver vivo e tiver um par de olhos decente, então você sabe que o
não discipulado é o elefante branco na igreja”137. O evangelicalismo está repleto de
evangelhos falsos e teologias que produzem consumidores de bens e serviços
religiosos, ao invés de discípulos. Tanto o calvinismo quanto o teísmo do livre-
arbítrio, em suas várias formas e expressões, não são exceções. Mas uma vez que se
admite que as mãos de todos estão um pouco sujas, há uma pergunta que pede para
ser feita. O calvinismo ou o teísmo do livre-arbítrio produzem, de maneira natural.
discípulos do reino?
A pergunta é penosamente escorregadia, pois (conforme mencionado
acima) existem muitas variações e expressões de cada um desses sistemas. Tendo dito
e admitido isso, eu ainda penso que seja uma pergunta que valha a pena ser
considerada.

Vontade Que Tem Importância


Conheço muitos calvinistas que são discípulos radiantes do reino. Tenho visto o
neocalvinismo desafiar vários de meus próprios amigos e pessoas que congregam
comigo a pegarem sua cruz e a seguirem a Jesus. Eu mesmo primeiro comecei a ser
discipulado seriamente quando era jovem, incansável e reformado. Alas a pergunta
não é se o calvinismo e, em particular o neocalvinmismo — está ou não
produzindo discípulos. Ele obviamente consegue produzir e os produz.
A pergunta é se a ênfase do calvinismo naturalm ente produz discípulos. E,
de minha perspectiva finita e minha experiência limitada, eles não produzem —
pelo menos de acordo com o entendimento de discipulado que esbocei acima. O
neocalvinismo pode e realmente manufatura discípulos; eu só não sei se ele pode
fazer com que eles cresçam organicamente. E o que importa no fim das contas é o
seguinte.

l57Willard, The Divine Conspiracy, 301.


No cerne do discipulado movido pelo evangelho há a decisão, pela graça
através da fé, de se entregar e seguir Jesus — isto é. no âmago do discipulado movido
pelo evangelho, há a crença de que você tem escolha e, portanto, uma vontade que
importa.
Na mente humana, a escolha está profundamente amarrada ao significado,
tanto é assim que não sabemos como encontrar significado sem escolha. Minha
esposa encontra significado quando lhe envio um buquê de rosas porque ela sabe
que eu poderia ter escolhido não ter feito isso. Se alguém apontar uma arma para
minha cabeça e me fizesse enviar um buquê para ela, as rosas perderiam o sentido,
porque eu não tive escolha. Se Jesus não tivesse escolha, não tenho certeza o que
encontraríamos na cruz. mas não penso que encontraríamos qualquer significado
nela. Ela não significou coisa alguma — ela apenas aconteceu.
E longe de ser uma construção humana desenvolvida para acrescentar
significado à nossa existência, eu acredito que Jesus mostra que essa relação entre
escolha e significado está no centro do evangelho — do reino, da cruz e do
discipulado. Diariamente Jesus o desafia a segui-Lo na cruz, de forma que seu velho
eu possa continuar a ser crucificado, e diariamente você deve decidir se assim o fará.
Diariamente Jesus o convida a se unir a ele em missão, alcançando os perdidos e os
menores, e diariamente você deve decidir se assim o fará. “O que você, pela graça de
Deus, fará com a sua vontade?” — Jesus nos faz essa pergunta muitas e repetidas
vezes.

Perseguindo Sua Própria Cauda


E no calvinismo, você simplesmente não tem escolha e, portanto, não possui uma
vontade que tenha importância. Então as perguntas, “o que você fará com a sua
vontade? O que fará com seu reino?” passam ser incompreensíveis.
Você pode ter a ilusão de uma vontade que importe, mas ao puxar a cortina,
é-lhe revelado que a vontade de Deus é realmente a única escolha.
Independentemente da paixão da retórica que você mecanicamente produz para
explicar isso. o fato é que Deus já decidiu se você irá ou não seguir Jesus,
compartilhar o evangelho, negar a si mesmo e se entregar ao reino. Sua vontade não
importa — pelo menos não em algum sentido que faça sentido.
E, todavia, espera-se que você aja como se sua vontade importasse. Você
deve correr na esteira e fingir que está correndo a corrida da fé. Isso força-o à
112
posição embaraçosa de aparentemente suspender sua teologia, a fim de viver
fielm ente — pois viver fielmente exige viver com significado, e viver com
significado exige escolha. Você acredita que Deus determina todas as coisas e,
contudo, age como se sua vontade não fosse completamente determinada.
Para ser claro, eu não estou dizendo que o calvinismo não pode produzir
discípulos fieis (mais uma vez, ele pode e produz), eu só estou dizendo que a fim de
produzi-los, ele deve falar e pensar em nossas vontades como se elas fossem
importantes (têm uma escolha) ainda que suas bases teológicas já tenham deixado
claro que nossas vontades não importam. No final, eu não sei se esse tipo de
dissonância cognitiva e ginástica mental organicamente produz discípulos do reino.

Jovem, Incansável, Seguindo a Jesus


E quanto ao teísmo do livre-arbítrio? Ele naturalmente produz discípulos? Vou
qualificar a pergunta e reformulá-la. pode o teísmo do livre-arbítrio, de maneira
natural, produzir discípulos? Sim, eu penso que sim. Pois apesar de suas muitas
falhas, no cerne do teísmo do livre-arbítrio está a crença de que, pela graça de Deus,
nós temos escolha e, portanto, uma vontade que importa — a mesma crença que jaz
no centro do discipulado motivado pelo evangelho.
Então, não apenas o discipulado se encaixa na narrativa do teísmo do livre-
arbítrio; ele parece ser a linha que mantém tudo unido. Desde ser criado à Imago
Dei, passando pelas árvores do jardim, e pela árvore sobre a qual o Deus crucificado
de amor altruísta foi pendurado, até à árvore da vida no reino ressurreto de Deus,
nós somos convidados a render nosso governo a Deus, seguindo Jesus em
discipulado, e a reinar com ele “para sempre e sempre”. Há um relacionamento
profundamente orgânico aqui. O teísmo do livre-arbítrio fornece ao discipulado
uma casa adequada.
E talvez essa seja a melhor forma de terminar a frase. Eu sou mais ou menos
jovem, ainda incansável e estou aprendendo a seguir Jesus.
Domando o Tigre (Também Conhecido Como
Romanos 9)
Romanos 9, Outra Vez
A fim de terminar minha história, parece inevitável que devamos encerrar voltando
a Romanos 9 —o tigre que ruge, que devorou o teísmo do livre-arbítrio de Piper, e
fez o mesmo com o meu. Eu entendo caso você ainda pense que ele esteja lambendo
os beiços, ávido para devorar tudo o que eu disse até o momento. Eu discordaria de
você, mas posso entender.
Este capítulo é chamado “Domando o Tigre*, mas isso é um pouco enganoso,
pois eu não me importo muito em domar Romanos 9 — eu me importo em liberar o
tigre. Pois, não se engane, Romanos 9 é um texto cabeludo e agressivo, contudo, sua
agressividade está enraizada em sua misericórdia, não em sua estreiteza. Romanos 9
tem dentes, mas eles são para salvar, não para condenar.
Eu não sou um perito em teologia paulina, mas eu sei como ler pessoas que
são, portanto, eu gostaria de concluir oferecendo alguns poucos pensamentos em
forma de síntese, ressaltando o que muitos especialistas bíblicos acreditam que
Romanos 9 — ou melhor ainda — 9 a 11— ensina.

O Que Dizer de Israel?


Primeiramente, nós temos o contexto — e que exige certa confissão por parte dos
leitores evangélicos da Bíblia. Nunca esteve a leitura evangélica equivocada da Bíblia
— caracterizada principalmente por nossa aversão à particularidade, nosso
desprezo à cronologia, e nosso egoísmo —mais exposta do que na carta de Paulo aos
Romanos.
Em outras palavras, se você ler a Bíblia de maneira equivocada como se ela
fosse uma coleção de livros, cartas, oráculos e poemas escritos para você
(respondendo todas suas indagações, lidando com todas as suas preocupações), ao
invés de para seus destinatários reais (sejam os judeus pós-exílio, cristãos judeus do
primeiro século, ou gentios romanos perplexos), o livro de Romanos irá expô-lo e
expô-lo rapidamente. Conforme N. T. Wright observa. “Por muito tempo temos lido
a Escritura com olhos do século XIX e com indagações do século XVI. É hora de
voltarmos a ler com olhos do primeiro século e com indagações do século XXI’158.
Então o que vemos quando lemos Romanos 9-11, da melhor maneira que
podemos, com olhos do primeiro século? Com quais questões Paulo está lidando?
A primeira coisa que vemos — e isso é mais que evidente— é que a
passagem não é um aparte teológico, escrito com a finalidade de resolver o dilema
determinismo-livre-arbitrio. Não é como se o escriba de Paulo, observando uma
pausa indecisa em seu ditado, sugere que Paulo discurse um pouco acerca dos
pontos mais sutis do calvinismo, antes de prosseguir com algumas instruções
específicas para a comunidade romana. Conforme o próprio Paulo diria: “De
maneira nenhuma!’
Antes, tudo oque Paulo disse até este ponto — acerca da imparcialidade de
Deus. acerca do povo de Deus seros judeus e os gentios unidos em Cristo, acerca da
inadequação e obsolescência da Lei, acerca de todos virem a Deus com base na graça
e na fé em Jesus, o Messias — suscita a questão de Israel. Por que Israel, em sua
maioria, rejeitou seu Messias? O que Deus está fazendo com Israel? Ele esqueceu de
seu primeiro povo escolhido (Israel),por um novo povo escolhido (gentios)? Se sim,
Deus não está sendo infiel a suas promessas para com Israel?
Conforme Romanos 9=1-6 deixa claro, essas questões são as lentes através
das quais devemos ler os capítulos 9 —11, e se você as esquecer por um instante
sequer, tudo irá ficar confuso.

Paulo, Judeus e Roma


Eu sei. eu sei= nenhuma dessas questões realmente dizem respeito a nós.
Nós não nos importamos com o que Deus estava fazendo com Israel, e
certamente não perdemos o sono ponderando sua aparente falta de fidelidade à
aliança que ele fez com Abraão. Então, presumimos (vê só como funciona?) que, por
não nos importarmos com essas coisas, então Paulo também não se importa, pois ele
escreveu Romanos para nós. Mas Paulo não está escrevendo para nós, por mais
indiferentes que sejamos a essas questões, Paulo se importa com elas e se importa
profundamente, e ai de nós se tentarmos camuflar e “desjuidazar” Romanos 9 -1 1 ,

158N. T. Wright, Justification: G od’s Plan and P aul’s Vision (Downer’s Grove, IL: InterVarsity, 2009), 37.
115
de sorte que fique mais fácil para nós lidarmos com a passagem e a “aplicarmos em
nossas vidas”.
Como um judeu seguidor de Jesus, a pergunta de Israel deixou Paulo em
grande angústia (9.2-3), mas ela era especialmente pertinente à situação de Roma.
Sabemos que Roma tinha um histórico de antijudaísmo, e que os judeus foram
expulsos de Roma no final da década de 40, então aparece provável (e o capítulo 11
confirma) que os gentios romanos estavam predispostos a olhar os judeus com
desdém1S9. Os judeus eram uma raça inferior, que havia surpreendentemente
rejeitado o Jesus que você adorava. É uma combinação volátil, certa para produzir
confusão e arrogância da parte dos cristãos gentios em Roma.
Paulo então escreve como um cristão judeu, tentando explicar como a
rejeição de Israel de seu Messias realmente não significa que Deus se tenha
esquecido de Israel, nem que isso deixa algum espaço para arrogância dos gentios.
Ben Witherington, de maneira sucinta, diz.

Paulo deve refutar as noções de que Deus abandonou seu primeiro povo
escolhido, de que a Palavra de Deus falhou, e de que Israel tenha
tropeçado a ponto de estar permanentemente perdido. Subjacente a
essas réplicas está a refutação da hipótese da superioridade gentia na
igreja romana. Aqui como em outros lugares, Paulo está buscando
nivelar o campo de jogo, a fim de deixar claro que todos estão “no”
povo de Deus pela misericórdia e graça de Deus, e que ninguém tem o
direito de se vangloriar em suas próprias realizações. Ele também quer
deixar claro que a salvação de Israel ainda faz parte da estratégia de
Deus 160

Com esse contexto firmemente em vista, nós podemos agora ler o restante
de Romanos 9-11, e evitar de perder o todo por causa das minúcias.

Endurecimento e Misericórdia
Então, o que está acontecendo com Israel?
De maneira bastante apropriada, Paulo responde essa pergunta ao recontar
a história de Israel, ilustrando que, do início ao fim, a fidelidade e a misericórdia de

159Ben Witherington III e Darlene Hyatt, P aul’s Letter to the Romans: A Socio-Rhetorical Commentary
(Grand Rapids: Eerdmans, 2004), 279.
I60lbid., 249.
Deus têm sido mais fortes do que a incredulidade de Israel161. Desde os patriarcas
(9:6-13), passando pelo êxodo (9.14-18), até o exílio (9,19-29). Deus encontrou
uma maneira de superar a futilidade do pecado e das circunstâncias de Israel.de
sorte que ele pudesse mostrar as riquezas de sua glória sobre os vasos de
misericórdia, tanto judeus quanto gentios (9.23-24). Deus quer uma família enorme
e mundial de pecadores redimidos, e ele irá conseguir sua família. Israel deveria
ajudar na realização desse plano através de sua obediência, mas, porque eles
falharam. Deus irá, contudo, fazer com que isso aconteça através de sua
desobediência.
Em termos do êxodo, Deus não causa a pecaminosidade de Faraó (Faraó já
havia escravizado o povo de Deus — Êxodo 1,8-14), mas endurece Faraó em sua
pecaminosidade pré-existente, de maneira que o nome e o poder de Deus possam ser
proclamados por toda a terra. Semelhantemente, Deus não causa o pecado de Israel,
mas os “endureceu parcialmente’ em seu pecado pré-existente, de sorte que a
“plenitude dos gentios’ possa chegar (11,25). É simplesmente má leitura bíblica
ignorar o paralelo entre o endurecimento de Faraó e o de Israel, falhando em
reconhecer que o endurecimento de Israel não é um decreto de reprovação (como
11,11-32 deixa claro), assim como também não o é o endurecimento de Faraó.
Agora, como no passado, Deus usa — e não causa — a incredulidade humana para
alargar sua família. Paulo oferece um excelente resumo em 9,30-32.

Que diremos, então? Os gentios, que não buscavam justiça, a


obtiveram, uma justiça que vem da fé; mas Israel, que buscava uma lei
que trouxesse justiça, não a alcançou. Por que não? Porque não a
buscava pela fé, mas como se fosse por obras. Eles tropeçaram na
"pedra de tropeço".

Em termos nada incertos, Paulo diz que Israel tropeçou e rejeitou seu
Messias porque falharam em buscar a retidão pela fé. Eles não tropeçaram porque
Deus unilateralmente os endureceu, mas porque eles buscaram a justiça "como se
fosse pelas obras’ (9.32). Inversamente, os gentios obtiveram a justiça, não porque
Deus unilateralmente escolheu salvá-los, mas porque eles a buscaram pela fé, Em
outras palavras, Paulo explica a misericórdia e o endurecim ento como respostas de
Deus à fé e à incredulidade, não decisões eternas e unilaterais para salvar ou

161 Uma percepção que devo a N. T. Wright, “Romans”, The New Interpreter’s Bible, vol. 10 (Nashville'
Abingdon, 1994), 622.
condenar pessoas. E para que não percamos esse ponto. Paulo elucida isso pelo
menos duas outras vezes. Em 11,20-23. ele diz,

Está certo. Eles [os judeus], porém, foram cortados devido à


incredulidade, e você permanece pela fé. Não se orgulhe, mas tema.
Pois se Deus não poupou os ramos naturais [Israel], também não
poupará você [gentios]. Portanto, considere a bondade e a severidade de
Deus: severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para com
você, desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você
também será cortado. E quanto a eles [Israel], se não continuarem na
incredulidade, serão enxertados, pois Deus é capaz de enxertá-los outra
vez.

Fazendo uso da imagem de uma oliveira, Paulo diz que os judeus haviam
sido cortados p o r sua incredulidade, ao passo que os gentios foram enxertados em
razão de sua fé. E, mais uma vez, voltamos a Romanos 11.25,

Irmãos, não quero que ignorem este mistério, para que não se tomem
presunçosos: Israel experimentou um endurecimento em parte, até que
chegasse a plenitude dos gentios (...).

Endurecimento Parcial
Isso foi o que aconteceu com Israel. Por que eles rejeitaram seu Messias, Deus
endureceu Israel, a fim de abrir amplamente o reino para os gentios. Deus fez uso da
incredulidade de Israel como uma oportunidade de arrancar as portas do reino de
suas dobradiças. M as esse é um endurecim ento parcial e temporário. Não é um
decreto de condenação preordenado e incondicional. Israel foi realmente endurecido
e cortado, mas ele pode ser enxertado novamente caso não continue em sua
incredulidade (11,23). Paul Achtemeier, de maneira muito útil, observa,

A dificuldade está no fato de que aqueles que entenderam esses


versículos como sendo afirmações de verdade eterna acerca de como
Deus lida com cada indivíduo, ao invés de uma afirmação de como
Deus tem lidado com Israel na perseguição de seu plano para a
redenção de uma criação rebelde (...). Paulo está fazendo uma
afirmação acerca de como Deus lidou com Israel, e continua a lidar com
ele, mesmo quando a nação rejeita seu Filho; a saber, tratando Israel
com misericórdia, mesmo quando a nação merece ira (...). A passagem
é, portanto, acerca do alargamento da misericórdia de Deus para incluir
os gentios, não acerca do destino limitado e predestinado de cada
indivíduo.

No final, Paulo encerra toda a questão, “Pois Deus colocou todos sob a desobediência,
para exercer misericórdia para com todos* (11:32). Conforme Witherington diz,

Isso significa que tudo o que Paulo disse acerca do endurecimento, e


sobre Israel sendo vasos de ira,era uma condição temporária e com o
propósito último de Deus mostrar misericórdia sobre todos (...). Deus
fez isso para que todos tenham que se relacionar com ele com base na
graça e na fé, de maneira que ninguém jamais pensaria que Deus estava
em débito com eles, ou que Deus lhes devesse algo.163

Uma Expansão na Misericórdia de Deus


Tudo o que foi dito se resume a isto.
O plano peculiar, sinuoso e não convencional de Deus, através de Israel e
para o mundo, é colocar todos sob a desobediência de sorte que ele possa m ostrar
m isericórdia a todos. A ênfase — do início ao fim — está no desejo de Deus de
deixar as pessoas entrarem, e não em deixá-las no lado de fora. É sobre a expansão
da misericórdia de Deus, não sobre sua estreiteza. Israel não merece a graça; os
gentios não merecem a graça, mas Deus, todavia, a concede.
Longe de ser um tratado voltado para justificar a retidão de Deus na eleição
incondicional, Romanos 9 -1 lé um tratado acerca da incompreensível misericórdia
e escandalosa fidelidade de Deus para com suas criaturas, através do Jesus Cristo
crucificado e ressurreto. Israel rejeitou seu Messias, mas ao invés de rejeitar Israel,
Deus usou sua rejeição para mostrar misericórdia aos gentios. E no final, o desejo de
Deus é que ele possa mostrar misericórdia para todo o mundo (11:32). O Deus de
Romanos 9-11 encontra caminhos para mostrar misericórdia, mesmo quando os
fatos clamam por julgamento.Isso, para mim. não se parece com o calvinismo, mas
se parece muito com Jesus.
Mais uma vez. oferecer uma exposição versículo a versículo de Romanos 9 -
11 está fora de minha esfera de expertise — e isso já foi feito muitas vezes —. mas
esses são alguns pensamentos orientadores que eu considero úteis. Utilizar as lentes
da pergunta de Israel (9,1-6) e os panoramas interpretativos de 9=30-32 e 11.20-32

'“ Paul Achtemeir, Romans, Interpretation (Atlanta: John Knox, 1985), 164-165.
Witherington e Hyatt, P aul’s Letter to the Romans, 276-77.
(em oposição em se firmar sobre os textos 9,14-23 e interpretar o restante da Bíblia
a partir de tais versículos), nós podemos ter um vislumbre de uma visão maior. Eu o
encorajo a ler a passagem agora, e ver por si mesmo. Para uma análise mais
aprofundada feita por pessoas com credenciais para tal, vide alguma das seguintes
obras.

— William Klein, The N ew Chosen People (Grand Rapids, Zondervan, 1990).

— Ben Witherington III d Darla Hyatt, Paul’s Commentary to the Romans, A Socio-
Rhetorical Commentary (Grand Rapids, Eerdmans, 2004).

— N. T. Wright, “Romans”, em The N ew Interpreter’s Bible, Volume 10 (Nashville,


Abingdon, 1994).
Epílogo

Luzes Apagadas
Suíça?
Tenho um amigo que, através de uma mistura perplexa de natureza e nutrição, alega
profunda lealdade tanto à equipe da Universidade do Texas quanto à da Texas A&M.
Ele nos deixa loucos com suas lealdades conflitantes. O que quero dizer é que você
não pode ir a um jogo de futebol americano do time Longhom s contra o Aggies e
torcer para ambos — isso simplesmente não está certo.Pare de ficar em cima do
muro, ou você irá se machucar. Contudo, ele, de maneira feliz, torce. Isso me frustra,
mas preciso admitir: ele é a única pessoa no jogo que se dá bem com todo mundo
(ou ao menos ele acha que se dá). Em uma multidão de pessoas vestindo laranja
queimado e outras vestindo vinho, ele é a Suíça.
Toda vez que chego no final de um debate particularmente disputado, a
primeira pergunta que me vem à mente não é, “Eu ganhei?”, mas “Valeu a pena?'. Eu
precisei tomar partido? Posso ser neutro nessa questão? Podemos dizer sim aos dois
lados? A Suíça é a melhor opção?
No que diz respeito ao livre-arbítrio e ao calvinismo, os argumentos podem
tomar-se tão complexos, as evidências bíblicas tão flexíveis, e os debates tão raivosos
que você não consegue deixar de pensar se essa coisa toda não deveria ser marcada
como uma Suíça teológica. Sim, Deus é infinitamente bom e, sim. Deus cria pessoas
para condená-las. Sim, Deus se parece com Jesus e, sim, Deus não se parece
com pletam ente com Jesus. Sim, nós temos livre-arbítrio verdadeiro e, sim, Deus é a
causa última de todo evento.
Na verdade, quer seja uma escolha calculada ou uma contradição não
examinada, eu penso que a maioria das pessoas, nessa questão, pousa na Suíça. Os
que se inclinam para o teísmo do livre-arbítrio usam o calvinismo como uma muleta
quando querem segurança e conforto. Os que se inclinam para o calvinismo usam o
livre-arbítrio como uma muleta para perceber suas vidas, suas escolhas e seus
relacionamentos — isto é, sua existência — como significativos.
Salte!
E para esses eu diria, eu gosto de Suíças teológicas muito mais do que nazistas
teológicos — e você é mais que certamente livre para pousar onde quiser —, mas a
Suíça realmente existe nessa questão ou você só gostaria que ela existisse? Você pode
acreditar que Deus unilateralmente controla cada pequena partícula da realidade e,
todavia, Deus não controla cada pequena partícula da realidade, assim como você
pode acreditar que Deus criou o mundo e que ele não criou o mundo (eu suponho).
Ninguém pode fazer com que você faça sentido — você pode acreditar em qualquer
coisa o que quiser.
Mas por que acreditar em algo que, até onde podemos ver, não é um
paradoxo, mas uma patente contradição? Ou Deus é a realidade toda-determinante
ou ele não é (por sua própria escolha, naturalmente). Eu gostaria que houvesse um
meio termo, mas... Qual seria ele? Contudo, talvez você ainda pense que seja a
melhor opção — talvez seja (essa é a Suíça em mim se pronunciando). Mas, se nada
mais, eu espero que o conteúdo lido até o momento tenha mostrado que há outra
forma; uma forma de ter um Deus soberano, glorioso, que ainda se parece com Jesus
e ama igual a ele. Apesar de longe de ser perfeito, o teísmo do livre-arbítrio tem a
seriedade de manter a soberania, a glória, a graça e o amor juntos. Portanto, fique
em cima do muro o tempo que quiser, mas não tenha medo de saltar.

Luzes Apagadas
Porque um dia as luzes irão se apagar.
Aquela chama tremeluzente da existência da forma como a conhecemos
será extinguida pelo túmulo. O que acontecerá lá, do outro lado da morte? É uma
pergunta repleta de enigmas e temores. Ouvimos sussurros de esperança tão
profundos que eles fazem o coração palpitar. Temos vislumbres da ressurreição.
Eu não conheço a linha do tempo, nem o mecanismo de como tudo
funciona, mas eu não ficarei muito surpreso caso a morte nos envie em uma jornada
ao centro do universo. E o que encontraremos lá? Quem encontraremos lá?
Infinita energia absorvedora, ou infinita energia doadora?
Um infinito colapso de Ser em direção a si mesmo, ou um infinito
compartilhar de Ser altruísta?
Um Ser que glorifica a si mesmo a todo o custo, ou que ama a todo custo?
Um buraco negro, ou um Cordeiro crucificado?
122
No centro do universo, penso que existe um Criador com marcas em suas
mãos, encharcando o cosmos em um gratuito derramar de amor. Ele não precisa
disso — ele simplesmente quer isso. É quem Ele é. E quando as luzes se apagam, o
verdadeiro concerto começa.

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