Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
na fenomenologia religiosa
W a l d o m i r o O . Piazza
1. IMPORTÂNCIA DA P E S Q U I S A FENOMENOLÓGICA NO E S -
T U D O D A R E V E L A Ç Ã O CRISTÃ ( J U D A I C O - C R I S T Ã )
C o m o cristãos, q u e p r o f e s s a m a fé na p l e n i t u d e da Revela-
ção em Cristo, o p o n t o d e partida para u m a reflexão s o b r e o
problema da Revelação é naturalmente e necessariamente a expe-
r i ê n c i a d o s d i s c í p u l o s d e J e s u s d e N a z a r é s o b r e as a p a r i ç õ e s d e
Páscoa, pois f o r a m estes a c o n t e c i m e n t o s q u e d e r a m o r i g e m ao
movimento religioso c h a m a d o " c r i s t i a n i s m o " . São Paulo é muito
explícito a este respeito: " S e Cristo não ressuscitou, é vã a nossa f é "
(1 C o r 15,17).
Isto, pois, d e v e f i c a r b e m a s s e n t e : N ó s , c r i s t ã o s , q u a n d o
falamos de Revelação t e m o s em vista a Revelação q u e se prende ao
mistério p e s s o a l d e C r i s t o , e C r i s t o r e s s u s c i t a d o , e n ã o u m a
R e v e l a ç ã o d e t i p o g e n é r i c o , s e m c a r a c t e r í s t i c a s p r ó p r i a s , tal c o m o
se d i s c u t e n a F i l o s o f i a , a q u a l R e v e l a ç ã o , p o r i s s o m e s m o , s e e x a u r e
18
Revelação, c r i t i c a m e n t e e s t u d a d a ; N e c e s s i d a d e d a R e v e l a ç ã o , d i a -
leticamente analisada...
C o m o se vê, este e s t u d o tinha mais o sentido de uma
Filosofia d a R e l i g i ã o , g e n e r i c a m e n t e c o n s i d e r a d a , d o q u e o d e
T e o l o g i a d a R e v e l a ç ã o C r i s t ã . De f a t o , e m t o d o s e s t e s t r a t a d o s n ã o
se a t e n d i a às c i r c u n s t â n c i a s c o n c r e t a s d a a u t o - c o m u n i c a ç ã o d i v i n a
testemunhada nas nossas Escrituras, mas a c o n c e i t o s racionalmen-
te e l a b o r a d o s c o m a e v i d e n t e f i n a l i d a d e d e s e r v i r a o s p r e c o n c e i t o s
de uma Filosofia agnóstica, e não c o m o intento d e esclarecer o
verdadeiro significado da Revelação Cristã.
A l é m d i s s o , c o m o e s t e s t r a t a d o s c o l o c a m as p r o v a s d a
existência de Deus e da possibilidade de sua a u t o - c o m u n i c a ç ã o no
início d a T e o l o g i a d a R e v e l a ç ã o , p a r e c e m i n s i n u a r q u e e s t a só p o d e
ser f o r m u l a d a n a d e p e n d ê n c i a d a q u e l a s p r o v a s , i n v e r t e n d o a s s i m o
princípio t e o l ó g i c o d a " f i d e s q u a e r e n s i n t e l l e c t u m " .
Em contrapartida, o m é t o d o f e n o m e n o l ó g i c o nos dá ocasião
para n ã o s ó p r e c i s a r as f o r m a s e s p e c í f i c a s d e q u e se r e v e s t e a
auto-comunicação divina em nossas Escrituras, c o m o também para
auscultar o seu significado próprio, a saber o que Deus nos quis
realmente comunicar.
Reputamos este m é t o d o mais objetivo e convincente, pois
não s ó a b r a n g e e m u m t o d o a R e v e l a ç ã o d o A n t i g o e d o N o v o
Testamento, d e s c o b r i n d o a sua íntima ligação e c o m p l e m e n t a ç à o ,
como esclarece a sua verdadeira finalidade, q u e não é de uma
"ciência de D e u s " , c o m o supõe a especulação racional, mas a
comunicação de um "desígnio d i v i n o " de salvação, objetivado na
História d e Israel e m a i s a i n d a n a E n c a r n a ç ã o d o V e r b o .
Desta forma, o m é t o d o f e n o m e n o l ó g i c o apresenta igualmen-
te u m a d i m e n s ã o v e r d a d e i r a m e n t e a n t r o p o l ó g i c a , p o i s v a l o r i z a a
experiência religiosa, q u e se insere, antes de tudo, na vida c o n c r e t a
e problematizada d o h o m e m neste m u n d o , e não em uma " f u g a
psicológica" para o m u n d o do além.
Costuma-se dizer q u e o m é t o d o f e n o m e n o l ó g i c o é "irracio-
nal", d a n d o ao t e r m o um s e n t i d o pejorativo, mas sem razão, pois a
fenomenologia só é " i r r a c i o n a l " no s e n t i d o d e q u e não parte d e
conceitos claros e distintos, f o r m u l a d o s abstratamente, nem c o m
eles se p r e o c u p a ; m a s é a l t a m e n t e r a c i o n a l n o s e n t i d o d e q u e
ausculta o significado próprio da experiência religiosa, a qual, s e n d o
uma atitude tipicamente h u m a n a , é certamente racional, c o m o tudo
o que é genuinamente humano. À Teologia Sistemática compete,
j u s t a m e n t e , c r i a r as c a t e g o r i a s r a c i o n a i s a d e q u a d a s p a r a d e f i n i r a
natureza, o c o n t e ú d o destas experiências vividas.
20
2. R E V E L A Ç Ã O E I N S P I R A Ç Ã O NA H I S T Ó R I A D A S R E L I G I Õ E S
E s t á n a o r d e m d o d i a o " d i á l o g o " e n t r e o c r i s t i a n i s m o e as
r e l i g i õ e s n ã o - c r i s t à s , q u e se e s t e n d e n ã o s ó às f o r m a s c u l t u a i s m a s
t a m b é m ao c o n t e ú d o doutrinário, principalmente com respeito
àqueles sistemas religiosos que dizem possuir "livros sagrados",
o n d e pensam encontrar uma "revelação divina".
Certamente, esta t e n d ê n c i a ao " d i á l o g o " e ao c o n f r o n t o
amistoso das respectivas doutrinas é auspicioso. Mas seria lamentá-
vel q u e a t e n d ê n c i a a o " i r e n i s m o " l e v a s s e a u m a a t i t u d e m i s t i f i c a d o -
ra d a v e r d a d e , p a s s a n d o p o r a l t o as p r o f u n d a s d i v e r g ê n c i a s d e u m
sistema religioso para outro, pois isto seria falta de sinceridade e
acabaria por comprometer os resultados positivos de um autêntico
"diálogo".
Aqui p r o c u r a r e m o s expor a f e n o m e n o l o g i a própria da Reve-
lação e da Inspiração no sistema religioso judaico-cristão, confron-
t a n d o c o m a fenomenologia própria da Revelação e da Inspiração
n o s sistemas religiosos não-bíblicos, para ver em q u e bases é
possível um a u t ê n t i c o " d i á l o g o " .
Antes de tudo, Revelação e Inspiração não são propriamente
" c o n c e i t o s " r a c i o n a i s , q u e se e x a u r e m n a a n á l i s e d e s e u s e l e m e n -
t o s e t i m o l ó g i c o s , m a s , c o m o diz S c h i l l e b e e c k x ( R e v e l a ç ã o e T e o l o -
gia, edição das Paulinas), " c a t e g o r i a s religiosas" que a b r a n g e m
f e n ô m e n o s religiosos diversos e m e s m o heterogêneos, cujo signifi-
c a d o varia m u i t o d e sistema religioso para sistema religioso.
Esta é uma verdade fundamental, que não p o d e m o s escamo-
tear por c o m o d i s m o didático, o u p r e c o n c e i t o de escola, sem
c o m p r o m e t e r a objetividade d a própria História das Religiões. Neste
p a r t i c u l a r , v a l e o q u e diz M i r c e a E l i a d e , a u t o r i d a d e r e c o n h e c i d a e m
f e n o m e n o l o g i a r e l i g i o s a , q u e " n ã o se p o d e f a z e r H i s t ó r i a d a s
R e l i g i õ e s s e m levar e m c o n t a a f e n o m e n o l o g i a p r ó p r i a d e c a d a
s i s t e m a r e l i g i o s o , p o i s as r e l i g i õ e s n ã o s e d e f i n e m p e l a s u a s i t u a ç ã o
n a H i s t ó r i a , m a s p e l o s i g n i f i c a d o d a e x p e r i ê n c i a r e l i g i o s a q u e lhes
d e u o r i g e m na H i s t ó r i a " ( M . E l i a d e : T r a t a d o d e h i s t ó r i a d a s r e l i g i õ e s ) .
Ora, Revelação e Inspiração a p r e s e n t a m no g r u p o das
religiões bíblicas uma f e n o m e n o l o g i a bem distinta daquela que
e n c o n t r a m o s no g r u p o das religiões não-bíblicas.
No caso das religiões não-bíblicas, v e m o s o h o m e m alçar-se
a Deus estimulado por uma experiência religiosa de tipo cosmológi-
co, p o r q u e é através d o C o s m o (céu c o m seus astros, terra com
seus elementos) que o homem chega à experiência do "mistério
t r e m e n d o e f a s c i n a n t e " d o S a g r a d o , na e x p r e s s ã o clássica de
R u d o l f O t t o (O S a g r a d o ) . E s t e f a t o é t ã o c o m u m e v e r i f i c á v e l n a
21
História d a s R e l i g i õ e s q u e p e r m i t i u a M i r c e a E l i a d e f o r m u l a r a s u a
t e o r i a das " h i e r o f a n i a s " , o u seja, a t e o r i a d e q u e a e x p e r i ê n c i a d o
S a g r a d o p a r t e d e e l e m e n t o s d a n a t u r e z a q u e s u s c i t a m no h o m e m a
e x p e r i ê n c i a d e a l g o t r a n s c e n d e n t e q u e a r e f l e x ã o p o s t e r i o r leva a
identificar c o m Deus.
Não se n e g a q u e d e n t r o d e s t e c o n t e x t o " h i e r o f â n i c o " p o s -
s a m ser e n c o n t r a d o s f e n ô m e n o s r e l i g i o s o s d e n u n c i a n d o u m a e x p e -
riência d e t i p o t e o f â n i c o ( t e o f a n i a , s e g u n d o a i n d a M. E l i a d e , é a
m a n i f e s t a ç ã o p e s s o a l d e D e u s ) , p o i s D e u s é l i v r e d e se m a n i f e s t a r
como quer e o n d e quer, mas d e n t r o de um sistema " h i e r o f â n i c o " é
a experiência d e tipo c o s m o l ó g i c o q u e lhe dá sentido e a caracteri-
za. Em p a r t i c u l a r , as m a n i f e s t a ç õ e s t e o f â n i c a s , n o c o n t e x t o c o s m o -
lógico, são s e m p r e individuais, n u n c a a p a r e c e n d o c o m o " i n t e r v e n -
ç õ e s " divinas na história d e um povo, p r e p a r a n d o para o advento d o
" r e i n o d e D e u s " , c o m o a c o n t e c e e m Israel.
No c a s o d a s r e l i g i õ e s b í b l i c a s , p o r é m , as E s c r i t u r a s m o s t r a m
a Deus vindo ao e n c o n t r o d o h o m e m m e d i a n t e a c o n t e c i m e n t o s
concretos, m a r c a n d o a vida de certos p e r s o n a g e n s (Abraão, Moi-
sés...), c o m v i s t a s à r e a l i z a ç ã o d e u m p l a n o d i v i n o n a h i s t ó r i a d a
humanidade.
N ã o se n e g a n o c o n t e x t o " t e o f â n i c o " d a H i s t ó r i a d e Israel a
existência de experiências de tipo c o s m o l ó g i c o , mas estas apare-
cem apenas c o m o elementos c o m u n s a toda a religiosidade popular,
e n ã o c o m o a n o t a c a r a c t e r í s t i c a d a e x p e r i ê n c i a r e l i g i o s a d e Israel,
que é sempre de tipo histórico, pois é através de eventos bem
determinados no t e m p o q u e o israelita se dá c o n t a da existência
d e D e u s e p e r c e b e o s s e u s d e s í g n i o s s a l v í f i c o s . De f a t o , o q u e
caracteriza a Revelação na Bíblia é a e x p e r i ê n c i a e s p e c i f i c a m e n t e
" t e o f ã n i c a " , q u e c o n s i s t e na a u t o - c o m u n i c a ç ã o divina, sem r e c u r s o
a f e n ô m e n o s exteriores, o u seja a experiência de tipo místico
(mesmo q u a n d o c h a m a d a de visão, s o n h o , audição), a qual se
realiza p r o p r i a m e n t e n o í n t i m o d a c o n s c i ê n c i a h u m a n a , e s c a p a n d o
assim a t o d a a v e r i f i c a ç ã o e x t e r i o r , a n ã o ser n o s a c o n t e c i m e n t o s
que posteriormente a objetivam na história.
Ora, s ã o j u s t a m e n t e e s t a s d u a s t ã o d i s t i n t a s f o r m a s d e
experiência religiosa q u e determinam o significado das categorias
de R e v e l a ç ã o e I n s p i r a ç ã o n o s d o i s g r u p o s r e l i g i o s o s r e f e r i d o s .
Nas r e l i g i õ e s n ã o - b í b l i c a s , a R e v e l a ç ã o a p r e s e n t a - s e c o m o
um c o n h e c i m e n t o d e D e u s q u e p a r t e d e u m a " r e f l e x ã o d o h o m e m "
sobre uma experiência de tipo hierofânico (descoberta do "mistério
t r e m e n d o e f a s c i n a n t e " no m u n d o e s p a c i a l ) , e n q u a n t o nas r e l i g i õ e s
bíblicas a p r e s e n t a - s e c o m o u m a " P a l a v r a d e D e u s " q u e s e i n s e r e n o
t e m p o , isto é n a H i s t ó r i a .
22
O m e s m o a c o n t e c e c o m a c a t e g o r i a d e I n s p i r a ç ã o . Nas
religiões não-bíblicas apresenta-se c o m o uma "intuição tiumana"
s o b r e o mistério d e Deus, sugerido pelo mistério dos f e n ô m e n o s
naturais, e n q u a n t o nas religiões bíblicas, caracteriza-se por uma
a ç ã o e s p e c í f i c a d e D e u s nas f a c u l d a d e s d o h o m e m , c o m u n i c a n d o -
Ihe u m d e s í g n i o d i v i n o , q u e s e i n s e r e n a v i d a e n a h i s t ó r i a d a
comunidade.
T a m b é m aqui não se nega que Deus possa, no primeiro caso,
e s t i m u l a r a " i n t u i ç ã o h u m a n a " n o s e n t i d o d e levar o h o m e m a
buscar o " d i á l o g o " c o m Deus, n e m que, no s e g u n d o caso, os sábios
p o s s a m c h e g a r a D e u s a t r a v é s d e u m a " i n t u i ç ã o p r ó p r i a " . Mas,
consultando a fenomenologia própria de um e de outro sistema
religioso, d e v e m o s c o n c e d e r q u e no g r u p o das religiões não-
bíblicas a " i n t u i ç ã o h u m a n a " é p r e d o m i n a n t e , justificando, inclusive,
as m a i s d i s p a r a t a d a s i d é i a s s o b r e D e u s , e n q u a n t o n o g r u p o b í b l i c o a
" a ç ã o d i r e t i v a " d i v i n a i m p õ e - s e a o s mais f o r t e s d e s v i o s d a s p a i x õ e s
humanas.
Em d u a s palavras: nas religiões não-bíblicas, a Revelação é
um " d i s c u r s o do h o m e m " sobre o problema de Deus, elaborado a
partir d e intuições individuais ( m o n ó l o g o ) , e n q u a n t o nas religiões
b í b l i c a s é u m a m e n s a g e m d i v i n a d i r i g i d a a o h o m e m , á q u a l ele
c o r r e s p o n d e c o m a o b e d i ê n c i a d a fé (diálogo). Se possível, ainda
mais c l a r a m e n t e : n a s r e l i g i õ e s n a t u r a i s , o h o m e m fala d e D e u s ,
d i z e n d o o q u e p e n s a a respeito dele, nas religiões bíblicas. Deus fala
ao h o m e m , d i z e n d o o q u e quer dele.
P o r isso, n ã o i m p o r t a q u e c e r t o s a u t o r e s d e H i s t ó r i a d a s
Religiões afirmem, por exemplo, que o hinduísmo também tem
"livros s a g r a d o s " , devidos a h o m e n s " i n s p i r a d o s " , pois o q u e decide
n e s t a q u e s t ã o n ã o s ã o as g e n e r a l i z a ç õ e s d e a l g u n s s á b i o s , m o v i d o s
por uma visão niveladora das religiões, mas a f e n o m e n o l o g i a própria
d e c a d a sistema religioso.
Se, p o r é m , a Filosofia, s i s t e m a t i z a n d o demais, c o n f u n d e
freqüentemente num só conceito estas diferentes fenomenologias
r e l i g i o s a s , isto s e d e v e e m p a r t e a o f a t o d e q u e , e m t o d a s as
e x p e r i ê n c i a s r e l i g i o s o s e s t á p r e s e n t e u m e l e m e n t o q u e é s e m p r e um
p r o b l e m a vivo: o h o m e m .
De f a t o , o h o m e m e s t á no f u n d o d e s t a q u e s t ã o : é ele q u e
" d i s c u r s a " sobre o problema de Deus, movido por uma " i n t u i ç ã o "
das realidades transcendentes, entrevistas em uma hierofania, c o m o
t a m b é m é o h o m e m que " o u v e " uma Palavra de Deus, em uma
experiência religiosa d e tipo teofânico, o u seja em u m a experiência
e m q u e D e u s se m a n i f e s t a p e s s o a l m e n t e ( s o n h o s , v i s ã o , a u d i ç õ e s ) .
S e , p o i s , n ã o h o u v e s s e a l g u m e l e m e n t o e x t e r i o r a mais p a r a
caracterizar estas diversas experiências religiosas, poder-se-ia tal-
23
De f a t o , e n c o n t r a m o s n a s r e l i g i õ e s n ã o - b í b l i c a s , a o l a d o d e
elevados p e n s a m e n t o s sobre Deus, igualmente idéias e representa-
ções reprováveis. Esta divergência d e juízos p o d e ser explicada (não
j u s t i f i c a d a ) p e l a i n f l u ê n c i a d o m e i o e pela bruteza do coração
h u m a n o , q u e leva a t r a n s f e r i r p a r a a e s f e r a d i v i n a o q u e é
tipicamente humano, c o m o sentimentos e paixões inconfessáveis. A
pesquisa religiosa mostra c l a r a m e n t e q u e a experiência religiosa é
d e si m e s m a s e m p r e e l e v a d a e d i g n a , mas t a m b é m m o s t r a q u e s o f r e
as m a i o r e s d i s t o r ç õ e s l o g o q u e é t r a d u z i d a e m t e r m o s d e c u l t u r a
humana e e n c a r n a d a na p r o b l e m á t i c a h u m a n a .
Q u a n t o à e x p e r i ê n c i a d e t i p o h i s t ó r i c o , tal c o m o e n c o n t r a -
mos nas r e l i g i õ e s d o g r u p o b í b l i c o , o f e r e c e s e m d ú v i d a m a i o r
objetividade e maior elevação ideológica, pelo fato m e s m o de se
ligarem a u m a P a l a v r a d e D e u s i n s e r i d a e m a c o n t e c i m e n t o s c o n c r e -
tos, d e s i g n i f i c a d o p r e c i s o , q u e r e s i s t e m à i n f l u ê n c i a d o a m b i e n t e e
se i m p õ e m a o s d e s v i o s d o c o r a ç ã o h u m a n o . É o q u e v e m o s n a
1
24
razão p r o f u n d a q u e j u s t i f i c a v a d a p a r t e d a I g r e j a a a c e i t a ç ã o d e s t e s
livros c o m o n o r m a t i v o s d e s u a f é , e c o m o s e t r a t a v a d e o b r a s
literárias, l i g o u n a t u r a l m e n t e e s t a r a z ã o p r o f u n d a a u m a a ç ã o
e s p e c í f i c a d o E s p í r i t o S a n t o , q u e e s t a v a n a Igreja, nas f a c u l d a d e s
intelectuais d o s h o m e n s q u e o s escreveram, s e g u n d o o e n s i n a m e n -
t o d a c a r t a a T i m ó t e o : " T o d a a E s c r i t u r a é i n s p i r a d a p o r D e u s " (2
T i m . 3,15-16). L e ã o XIII f o r m a l i z o u e s t a d o u t r i n a n a E n c í c l i c a
"Providentissimus Deus", ensinando que a "inspiração" é uma ação
específica do Espírito Santo nas faculdades do hagiógrafo,
iluminando-o sobre o que deve escrever, estimulando-o para q u e
eficazmente escreva, e assistindo-o para que só escreva o que Deus
quer, e n s i n o e s t e q u e foi a s s u m i d o p e l o V a t i c a n o II (DV n ' 11). A
esta a ç ã o e s p e c í f i c a d o E s p í r i t o S a n t o p o d e m o s d a r o n o m e d e
"inspiração carismática", valendo-nos da doutrina paulina sobre os
d i f e r e n t e s c a r i s m a s d o E s p í r i t o S a n t o c o n c e d i d o s a o s fiéis d e n t r o d a
Igreja (1 C o r 12,4-11).
No e n t a n t o , a a ç ã o d o E s p í r i t o S a n t o c o m o tal e s c a p a a
qualquer verificação de n o s s a parte, por se tratar, j u s t a m e n t e , de
a l g o p r ó p r i o d e D e u s . P o r isso, n ã o t e m o s c o n d i ç õ e s e x t e r i o r e s p a r a
distinguir entre a " i n s p i r a ç ã o c a r i s m á t i c a " d o s livros bíblicos e o u t r o
q u a l q u e r t i p o d e " i n s p i r a ç ã o " q u e p o s s a existir, c o m o , p o r e x e m p l o ,
a i n s p i r a ç ã o q u e m o v e u S. I n á c i o a e s c r e v e r o L i v r o d o s E x e r c í c i o s
Espirituais. O ú n i c o c r i t é r i o , n e s t a q u e s t ã o , é o " d i s c e r n i m e n t o " d a
Igreja, g u i a d a p e l o E s p í r i t o S a n t o , q u e o p e r a n o t e m p o , a t r a v é s d o
c o n s e n s o da fé d o s cristãos.
Q u e dizer, e n t ã o , d a " i n s p i r a ç ã o c a r i s m á t i c a " d o s l i v r o s
bíblicos q u a n d o c o n f r o n t a d a c o m a " i n t u i ç ã o religiosa", q u e e n c o n -
tramos nos livros tidos por s a g r a d o s pelas religiões não-bíblicas?
Devemos partir d o fato de q u e não se p o d e afirmar sem mais
q u e tais l i v r o s c a r e c e m t o t a l m e n t e d e " i n s p i r a ç ã o d i v i n a " , n ã o s ó
porque apresentam, não raro, elevados p e n s a m e n t o s s o b r e Deus e
sobre a vida espiritual, c o m o no g r u p o das religiões espiritualistas
do o r i e n t e , c o m o , p r i n c i p a l m e n t e , p o r q u e n ã o p o d e m o s n e g a r a
Deus a l i b e r d a d e d e m o t i v a r as e x p e r i ê n c i a s r e l i g i o s a s q u e d e r a m
o r i g e m a tais livros, j á q u e D e u s q u e r q u e t o d o s s e salverri.
Para distinguir, p o r t a n t o , a " i n s p i r a ç ã o c a r i s m á t i c a " d o s
livros b í b l i c o s d a " i n t u i ç ã o r e l i g i o s a " c o m u m d e v e m o s a p e l a r p a r a
um c r i t é r i o q u e n ã o seja e c l e s i á s t i c o , m a s a b r a n j a o f e n ô m e n o
universal d a m a n i f e s t a ç ã o r e l i g i o s a , o u seja, u m c r i t é r i o t i p i c a m e n t e
fenomenológico.
Ora, já vimos q u e a " i n t u i ç ã o r e l i g i o s a " , m e s m o q u a n d o
f a v o r e c i d a p o r u m a m o t i v a ç ã o d i v i n a a u t ê n t i c a (a e x p e r i ê n c i a
religiosa), a p r e s e n t a - s e s e m p r e c o m o u m " m o n ó l o g o " d o h o m e m
sobre o problema de Deus, c o m toda aquela ambigijidade e
subjetividade a q u e já aludimos, e n q u a n t o no caso da "inspiração
carismática" temos sempre um " d i á l o g o " entre Deus e o homem.
26
Quando se procura definir e m termos precisos (racionais) qualquer ação divina, como a
"inspiração", freqüentemente se cometem os dois erros clássicos. O p r i m e i r o é de pensar que só
quando conseguimos e x p r i m i r as realidades d i v i n a s em conceitos "claros e distintos", então as
conhecemos como são. É preciso ter presente que toda a "racionalização" é sempre uma
"alienação", no sentido de que o próprio processo de reduzir a realidade a "conceitos claros e
d i s t i n t o s " leva a considerar a realidade sob determinados aspectos, o m i t i n d o outros, talvez mais
importantes. Além disso, há m u i t a s realidades, chamadas existenciais, que se mostram irredutíveis a
qualquer racionalização, c o m o o dar a vida por amor a o u t r e m . Pascal dizia, a propósito, que o
coração tem razões que a razão não conhece. Hoje em dia os sábios preferem falar de realidades
"supra-racionais", em vez de " i r r a c i o n a i s " , j u s t a m e n t e para significar que nem tudo pode ser
reduzido a idéias claras e distintas, mas, n e m por isso, deixa de ser sumamente racional: a sua
racionalidade, porém, é de outra espécie, ou funciona de outra forma.
Outro erro é de equiparar as ações divinas às ações humanas. Deus, j u s t a m e n t e por ser Deus,
t e m seu m o d o de agir, que n e m sempre pode ser reduzido ao modo de agir humano. Isto acontece na
criação e preservação do m u n d o . " R a c i o n a l i z a n d o " esta verdade de fé, dizemos que Deus é a "causa
suprema e única" do m u n d o , o que é certo, mas, inconscientemente, vemos esta "causa" no mesmo
nível das "causas secundárias e múltiplas" que encontramos no mundo, o que é errado.
Raciocinamos assim: uma j u n t a de bois não consegue desatolar u m carro, mas um trator, sim; da
mesma forma: as causas que conhecemos não conseguem dar existência ao mundo, mas Deus, sim.
Logo, nivelamos Deus a u m trator, ou seja a "causa suprema e única" às "causas secundárias e
múltiplas". É claro que este modo de " r a c i o n a l i z a r " as cousas d i v i n a s não leva a nada, porque peca
pela base. A causalidade d i v i n a , ou seja o modo de Deus agir no m u n d o , tanto em sua criação c o m o
em sua conservação, nunca poderá ser penetrado pela razão h u m a n a porque se trata de realidade de
ordem essencialmente diversa (e não só p o t e n c i a l m e n t e m a i o r ) da ordem criada, empírica,
c o n t i n g e n t e , c o m que o h o m e m lida a cada dia. A causalidade d i v i n a poderá c o i n c i d i r c o m a
causalidade mundana no conceito abstrato de "causa", mas não em sua realidade total. Temos de
dar a Deus o que é de Deus.
O mesmo se diga da "inspiração d i v i n a " , que poderá c o i n c i d i r sob o ponto de vista psicológico
c o m a "inspiração h u m a n a " (do poeta, do artista, do inventor...), por causa dos efeitos na pessoa
h u m a n a , mas não em sua realidade. Por isso. reduzir a "inspiração d i v i n a " a puras categorias
psicológicas, é t o m a r a n u v e m por Juno. Certamente, querendo Deus mover certos homens a
c o m u n i c a r a outros homens uma mensagem d i v i n a , deverá agir nas faculdades intelectuais de tais
homens. Mas este é o efeito exterior no " i n s t r u m e n t o " escolhido, e não a própria ação divina, que
resta sempre inacessível à perspicácia humana. A q u i também, demos a Deus o que é de Deus, e ao
h o m e m o que é do h o m e m .
27
3. R E V E L A Ç Ã O C O S M O L Ó G I C A E R E V E L A Ç Ã O H I S T Ó R I C A
SÓ t a r d i a m e n t e Israel r e f l e t i u ( t e o l o g i c a m e n t e ) s o b r e o p r o -
b l e m a d a s " o r i g e n s " ( d o m u n d o , d o h o m e m , d o mal...), a s a b e r :
q u a n d o a d i n a s t i a d a v í d i c a , d a n d o g r a n d e z a e s e g u r a n ç a ao P o v o
Eleito, p r o p o r c i o n o u - l h e t a m b é m o s m e i o s c u l t u r a i s p a r a criar u m a
l i t e r a t u r a p r ó p r i a , n a q u a l f i x o u p o r e s c r i t o n ã o só as v e n e r a n d a s
t r a d i ç õ e s d o s P a t r i a r c a s , m a s t a m b é m as e s p e c u l a ç õ e s d o s s á b i o s a
r e s p e i t o d o s d e s í g n i o s d e J a v é c o m r e s p e i t o a o s e u P o v o Eleito,
r e m o n t a n d o a t é o s d i a s d a C r i a ç ã o . O m e s m o , aliás, a c o n t e c e u c o m
todos os povos da antigüidade: só depois que adquiriram certa
c u l t u r a e e s t a b i l i d a d e p o l í t i c a , as s u a s elites i n t e l e c t u a i s r e f l e t i r a m
s o b r e as c r e n ç a s r e l i g i o s a s , p r o c u r a n d o d a r - l h e s c e r t a c o e r ê n c i a
ideológica, geralmente a serviço d o s p o d e r o s o s d o momento.
Mas e n q u a n t o e s t e s p o v o s p a r t i r a m d o p r o b l e m a c ó s m i c o ,
Isreal se f i r m o u e m s u a p r ó p r i a h i s t ó r i a , v i s t o q u e J a v é se m a n i f e s t a -
ra p o r m e i o d e i n t e r v e n ç õ e s p e s s o a i s n a o r i g e m e n a t r a j e t ó r i a
histórica deste g r u p o h u m a n o .
Com efeito, a primeira " e x p e r i ê n c i a r e l i g i o s a " de q u e trata a
Bíblia é a d a " e l e i ç ã o " d e A b r a ã o , d e p o i s a d a " l i b e r t a ç ã o " d o E g i t o ,
s e g u i d a d a " a l i a n ç a " a o s pés d o S i n a i , e d a " c o n q u i s t a " d a T e r r a
Prometida. A este período glorioso, q u e p o d e m o s chamar de épico,
segue-se um período atribulado politicamente, mas f e c u n d o em
a p r o f u n d a m e n t o religioso, m a r c a d o pela volta d o " r e s t o " , pela luta
heróica pela p u r e z a da fé javeísta, pela e s p e r a n ç a escatológica, q u e
culmina c o m o a d v e n t o de Cristo.
0 primeiro capítulo do Gênesis, neste c o n s p e c t o histórico,
r e p r e s e n t a u m a r e f l e x ã o p o s t e r i o r s o b r e as v i c i s s i t u d e s d o P o v o
Eleito, c o l o c a d o n o P a r a í s o d a T e r r a P r o m e t i d a e d e l a v i o l e n t a m e n t e
e x p u l s o p o r s e ter c o n t a m i n a d o c o m o s m i t o s c a n a n e u s d a f e c u n d i -
d a d e (a s e r p e n t e q u e i n d u z E v a a c o m e r d o f r u t o d a á r v o r e q u e
comunicava t o d o s os c o n h e c i m e n t o s mágicos...), reflexão esta q u e
e s t a b e l e c e a p r e e m i n ê n c i a d e J a v é s o b r e t o d o s o s ritos e c u l t o s
politeístas d a q u e l e s t e m p o s .
Este s i m p l e s f a t o p õ e a q u e s t ã o d a R e v e l a ç ã o h i s t ó r i c a e m
oposição à Revelação cosmológica, c o m o segue:
- Revelação cosmológica: N a s r e l i g i õ e s n ã o - b í b l i c a s d a a n t i -
g ü i d a d e . D e u s s e m p r e a p a r e c e l i g a d o às f o r ç a s d a n a t u r e -
za, o q u e é c o m p r e e n s í v e l p o i s o m u n d o c r i a d o é a
primeira e mais evidente a u t o - c o m u n i c a ç ã o d e Deus. Por
isso, o s m i t o s d e c r i a ç ã o d a s r e l i g i õ e s n ã o - b í b l i c a s m o s -
tram a divindade surgindo do caos, c o m o uma força
inteligente e soberana que dá sentido e ordem à natureza.
28
- Revelação histórica: N a s r e l i g i õ e s b í b l i c a s ( j u d a í s m o , c r i s -
tianismo e de alguma forma o islamismo) Deus sobrepõe-
se a o t e m p o e a o e s p a ç o , i m p o n d o a o c a o s p r i m o r d i a l a
s u a v o n t a d e e s a b e d o r i a s o b e r a n a s . P o r isso, é o S e n h o r
da natureza e dos acontecimentos, que ordena segundo
o s desígnios d e sua Providência. Em c o n s e q ü ê n c i a , o
t e m p o (a H i s t ó r i a ) a s s u m e u m v a l o r t o d o e s p e c i a l : é o
l u g a r o n d e s e " e n c o n t r a m " as d e c i s õ e s d i v i n a s c o m as
d e c i s õ e s h u m a n a s , d a n d o s e q ü ê n c i a à História da Salva-
ç ã o . A h i s t ó r i a d e Israel o f e r e c e a c o m p r o v a ç ã o d e s t e
s i g n i f i c a d o t r a n s c e n d e n t e d a h i s t ó r i a h u m a n a , p o i s aí o s
d e s í g n i o s d i v i n o s c l a r a m e n t e se " i n s e r e m " n o s a c o n t e c i -
mentos profanos, dando-lhes um significado determinante
para a salvação da h u m a n i d a d e .
O s a d e p t o s d e u m a c i ê n c i a h i s t ó r i c a , q u e se l i m i t a a r e g i s t r a r
os fatos isoladamente, c o m o a c o n t e c i m e n t o s fortuitos, sem ligação
e n t r e si, n ã o a c e i t a m e s t a v i s ã o t r a n s c e n d e n t e d a H i s t ó r i a . C e r t a -
m e n t e , o s f a t o s i s o l a d o s , as i n s t i t u i ç õ e s h u m a n a s c o n s i d e r a d a s em
si m e s m a s , as d e c i s õ e s t o m a d a s p o r i n d i v í d u o s a o s a b o r d e c e r t o s
impulsos, podem parecer desconexos, arbitrários, sem sentido
" h i s t ó r i c o " . Mas isto é c o n s i d e r a r a p e n a s a " e s t r u t u r a " da História.
Q u a n d o , p o r é m , v e m o s o s a c o n t e c i m e n t o s na s u a l i g a ç ã o
i n t e n c i o n a l , as i n s t i t u i ç õ e s h u m a n a s n a s u a p r o j e ç ã o s o c i a l , as
d e c i s õ e s individuais na sua o b j e t i v a ç ã o n o f u t u r o , então não
p o d e m o s n e g a r q u e e x i s t e a H i s t ó r i a , p o i s o q u e a c o n t e c e no
presente supõe o passado.
29
A i n d a u m a o b s e r v a ç ã o : Israel n ã o c o n h e c e u o t e r m o " h i s t ó -
r i a " , q u e é g r e g o . P o r isso, o s s e u s e s c r i t o r e s s ó f a l a m d e " t r a d i ç ã o "
(em h e b r a i c o : t o l e d o t h = g e r a ç ã o ) . C o n t u d o , f o i Israel q u e c r i o u o
g ê n e r o literário q u e h o j e c h a m a m o s d e " h i s t ó r i a r e l i g i o s a " , o u
" T e o l o g i a d a h i s t ó r i a " , em v i r t u d e , j u s t a m e n t e , d e s u a h i s t ó r i a e s t a r
marcada por intervenções de Javé, q u e lhe e m p r e s t a m um sentido
altamente religioso.
Esta é, c e r t a m e n t e , a p e r s p e c t i v a d a l i t e r a t u r a c o n h e c i d a s o b
o nome de " d e u t e r o n ô m i c a " , constituída pelos livros d o D e u t e r o n ô -
mio, J o s u é , J u i z e s , 1-2 S a m u e l e 1-2 Reis, p o i s aí e n c o n t r a m o s u m a
h i s t ó r i a d e Israel, d e s d e M o i s é s a t é o exílio b a b i l ô n i c o , c u j o c o n t e x t o
é u m a série d e a c o n t e c i m e n t o s m o s t r a n d o c o m o J a v é a m p a r a e
a b e n ç o a o P o v o e l e i t o s e m p r e q u e e s t e s e m o s t r a fiel, e c o m o o
castiga e corrige s e m p r e que se mostra relapso.
Mas m e s m o a c h a m a d a l i t e r a t u r a s a p i e n c i a l , q u e se c a r a c t e -
riza por u m a r e f l e x ã o d e t i p o e x i s t e n c i a l , c o m o o s P r o v é r b i o s e o
E c l e s i á s t i c o , a i n d a q u e n ã o se l i g u e d i r e t a m e n t e a a c o n t e c i m e n t o s
históricos, nem expresse uma Palavra de Javé, c o n t u d o revelam
uma o r i e n t a ç ã o t e o l ó g i c a e u m a e l e v a d a é t i c a q u e s e p r e n d e à
Palavra d e D e u s o u t r o r a m a n i f e s t a d a a h o m e n s c a r i s m á t i c o s , e m
circunstâncias decisivas para a história d e Israel.
Desta f o r m a , s ó m e d i a n t e u m g r a n d e e s f o r ç o d e a b s t r a ç ã o
p o d e r e m o s falar d a R e v e l a ç ã o j u d a i c o - c r i s t ã s e m r e f e r i r - n o s à s u a
n o t a c a r a c t e r í s t i c a (à s u a f e n o m e n o l o g i a p r ó p r i a ) , q u e é d e u m a
Palavra d e D e u s i n s e r i d a e m a c o n t e c i m e n t o s h i s t ó r i c o s .
30
CONCLUSÃO:
E n q u a n t o p e s s o a - i s t o é, e n q u a n t o u m ser q u e g o z a d e
p e r f e i t a l i b e r d a d e - J a v é sai d o a b s t r a t o , d o s í m b o l o , d a g e n e r a l i d a -
de, e age na história, entretem-se em diálogo c o m seres históricos. E
q u a n d o Deus-Paí se manifesta de m o d o radical e c o m p l e t o , então
encarna-se, c o m o Verbo, em J e s u s Cristo, em ser histórico q u e
transforma a própria história em teofania. A c o n c e p ç ã o d o t e m p o
mítico e d o eterno retorno (cósmico) está definitivamente ultrapassa-
da.
Isto constitui uma g r a n d e r e v o l u ç ã o religiosa, muito g r a n d e
p a r a q u e p o s s a s e r a s s i m i l a d a e m d o i s mil a n o s d e v i d a c r i s t ã . N ó s
nos explicamos:
Q u a n d o o s a g r a d o s e m a n i f e s t a u n i c a m e n t e n o C o s m o , ele é
facilmente " r e c o n h e c i d o " : o h o m e m religioso pré-cristão facilmente
d i s t i n g u e u m a p e d r a s a g r a d a d e t o d a s as o u t r a s p e d r a s q u e n ã o
i n c o r p o r a m o sagrado; facilmente distingue u m signo carregado de
p o d e r religioso - u m a espiral, um círculo, u m a c r u z g a m a d a , etc. -
de t o d o s os outros signos q u e não possuem este poder; facilmente
s e p a r a o t e m p o litúrgico d o t e m p o profano, pois e m certo m o m e n t o
o t e m p o p r o f a n o c e s s a d e fluir p e l o f a t o m e s m o d e c o m e ç a r o rito, e
temos o tempo sagrado.
31
P a r a o j u d a í s m o , e, p r i n c i p a l m e n t e , p a r a o c r i s t i a n i s m o , a
divindade manifestou-se na história. O Cristo e os seus c o n t e m p o r â -
neos fazem parte d a história. Nào s ó d a história, e n t e n d a m o s b e m ,
pois o F i l h o d e D e u s , e n c a r n a n d o - s e , a c e i t o u a f o r m a h u m a n a .
Para o cristão, portanto, o p e r o u - s e u m a s e p a r a ç ã o radical
e n t r e o s d i f e r e n t e s e v e n t o s h i s t ó r i c o s : a l g u n s s ã o t e o f a n i a s (a
presença histórica de Cristo), o u t r o s são profanos. Mas o Cristo,
p e l o s e u C o r p o M í s t i c o , a Igreja, c o n t i n u a a e s t a r p r e s e n t e n a
história. E i s t o c r i a , p a r a o v e r d a d e i r o c r i s t ã o , u m a s i t u a ç ã o
e x t r e m a m e n t e difícil, p o i s ele n ã o p o d e r e c u s a r a h i s t ó r i a , e n ã o
pode, também, aceitá-la em sua totalidade. Deve c o n t i n u a m e n t e
"escolher", esforçar-se por "distinguir", na massa dos aconteci-
m e n t o s h i s t ó r i c o s , o s e v e n t o s q u e , p a r a ele, t r a n s f o r m a m - s e p e l o
seu significado salvífico.
N ó s s a b e m o s c o m o e s t a e s c o l h a é difícil: n a h i s t ó r i a , a
separação entre o s a g r a d o e o p r o f a n o - tão clara e nítida nos
t e m p o s p r é - c r i s t ã o s - n ã o é m a i s e v i d e n t e . T a n t o mais q u e , d e d o i s
séculos para cá, a q u e d a d o h o m e m na história se t o r n o u vertigino-
sa. Nós c h a m a m o s " q u e d a n a h i s t ó r i a " à t o m a d a d e c o n s c i ê n c i a ,
por parte do h o m e m m o d e r n o , de seus múltiplos c o n d i c i o n a m e n t o s
históricos. Q u a n t o s cristãos m o d e r n o s invejam a sorte d o h i n d u : Na
concepção do hinduísmo, o h o m e m d o " k a l i - y u g a " é t a m b é m um
d e c a í d o n a c a r n e , i s t o é, c o n d i c i o n a d o p e l a v i d a c a r n a l : a o c u l t a ç ã o
do espírito na c a r n e é q u a s e total. Mas o cristão m o d e r n o sente-se
decaído, não s o m e n t e na carne, mas t a m b é m na sua c o n d i ç ã o
histórica. Não é mais o C o s m o , nem a C a r n e , q u e lhe criam
obstáculos no c a m i n h o da sua salvação: é a História, o terror da
História!