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I P ersp. T e o J .

3 9 ( 2 0 0 7 ) 2 5 7 -2 6 1 I

ÉTICA CRISTÃ E REVELAÇÃO

n ecessid ad e d e p en sar o 'ev en to C risto ' (F ato C ristão ) v em d o d esejo


A in trín seco à fé d e ser co m p reen d id a em cad a situ ação . A ex p eriên cia
cristã, e co m ela a v isão d e D eu s, só p o d erá se ex p ressar co m sen tid o no
h o rizo n te d e co m p reen são p ró p rio d e cad a ép o ca. S ig n ifica d izer que à
m ed id a q u e se co n fig u ra u m n o v o h o rizo n te d e co m p reen são ap arece sem -
p re u m d esaju ste en tre a e x p e r i ê n c i a fu n d a n te e os m odos v iv en ciais, p rá-
tico s e co n ceitu ais co m q u e a ex p ressam o s l. S eg u e-se q u e a ex p ressão d essa
ex p eriên cia (cu ja característica fu n d am en tal é su a atu alid ad e) d ev erá en -
co n trar o s m eio s e as categ o rias p ró p rias em cad a co n tex to p ara só assim
p o d er tran sm itir co m fid elid ad e, o rig in alid ad e e sen tid o , a esp ecificid ad e
d essa p r o p o s t a q u e en v o lv e o ser h u m an o co m o u m to d o .

P o d eríam o s n o s p erg u n tar se o d e s a j u s t e acim a m en cio n ad o é u m a q u estão


referen te so m en te ao m o d o co m que ex p ressam o s n o ssa ex p eriên cia de
D eu s, o u se ela d iz resp eito à p ró p ria ex p eriên cia em si. E m b o ra n ão se
p o ssa sep arar a ex p eriên cia d a ex p ressão q u e a su p õ e, o q u e n o s p arece é
q u e a d in am icid ad e d a ex p eriên cia v ai ex ig in d o p o r si m esm a, a p artir d as
m u d an ças cu ltu rais e co m ela o su rg im en to d e n o v o s h o rizo n tes d e co m p re-
en são , um a d eterm in ad a 'flex ib ilid ad e' d o s co n ceito s n o s q u ais ela se ex -
p ressav a. C o m efeito , a ex p eriên cia d e u m D eu s am o ro so , p resen te e atu an te
n a h istó ria, ex ig e rep en sar, p o r ex em p lo , o s co n ceito s de c r ia ç ã o , de s a lv a -
ç ã o , de r e v e la ç ã o , m esm o p o rq u e um im p lica n ecessariam en te n o o u tro .

1 A. TORRES Q U E IR U G A , F im do C r is tia n is m o P rê -M o d e rn o , S ão P au lo : P au lu s,
2003, p. 17.
A q u i, p reten d em o s alu d ir à co n cep ção d e r e v e l a ç ã o so m en te à m ed id a que
esta traz im p licaçõ es p ara a reflex ão d o ag ir d o cristão .

O esfo rço teo ló g ico atu al d e p ro p o r u m n o v o p arad ig m a d e leitu ra a p artir


d a ex p eriên cia cristã co n siste essen cialm en te em 'v o ltar' a Jesu s d e N azaré
p ara resg atar a 'd iferen ça' cristã, v ale d izer, su a esp ecificid ad e, p ara além
d a frag m en tação d o d iscu rso p ó s-m o d ern o caracterizad o , em g ran d es li-
n h as, p o r ab o rd ag en s u n ilaterais o u p arciais n as q u ais o su jeito (en ten d id o
p ela categ o ria talv ez m ais ab ran g en te d e p e s s o a ) n ão se v ê co n tem p lad o na
su a to talid ad e. E m term o s d e M o ral T eo ló g ica, sig n ifica p en sar a ética cristã
n ão sim p lesm en te co m o um a a m ais en tre as éticas ex isten tes, m as co m o
u m a p ro p o sta realm en te ab ran g en te (p reten sõ es d e u n iv ersalid ad e), co n v in -
cen te (q u e articu le as p rin cip ais categ o rias d a p ráx is h u m an a num d iscu rso
co eren te), e q u e p o ssa ser v iv id a co m o ex p eriên cia ética n a d im en são co n -
creta d a v id a (d im en são d a p articu larid ad e).

A recu p eração d o 'Jesu s h istó rico ' ab riu n o v o s h o rizo n tes à cristo lo g ia e nos
ap ro x im o u m ais d a h u m an id ad e d e Jesu s. P ara a teo lo g ia cristã co m o u m
to d o , essa recu p eração é um a co n q u ista irren u n ciáv el. A ssim , a reflex ão
so b re o ag ir d e Jesu s d ev erá fazer em erg ir as categ o rias co m as q u ais se
p o d erá co n stru ir en tão um d iscu rso ético realm en te co n sisten te e fiel à
esp ecificid ad e d o ag ir cristão . E isso p o rq u e o s v alo res q u e se farão n o tar
n a p rática d e Jesu s n ão serão estran h o s ao s v alo res q u e alm ejam o s e co n -
sid eram o s co m o tais, d en tre o u tras co isas, p elo sim p les fato d e serem v alo -
res h u m an o s.

A h istó ria d e Jesu s d ev erá n o s m o strar q u e o s v alo res m o rais co n q u istad o s


ao lo n g o d a h istó ria d a h u m an id ad e já se ap resen tam em Jesu s. C o m efeito ,
n ão p o d e ser co n trad itó rio v er Jesu s co m o u m h o m em liv re, au tô n o m 0 2 , que
se relacio n av a co m o s d em ais, que tin h a d esejo s e que sen tia p ro fu n d a
aleg ria em v iv er. C aso isso fo sse estran h o à R ev elação , esta rev elação n ão
p o d eria ser co n sid erad a co m o p len itu d e.

Ponto de Partida da Ética Teológica Cristã

O q u e n o s p arece é q u e o p o n to d e p artid a d e u m a reflex ão ética cristã h o je


p ressu p õ e n ecessariam en te u m a re-Ieitu ra d o co n ceito d e R ev elação , p o is a
o rig em d a ética cristã é ju stam en te a fé cristã, e o cen tro d a fé cristã é a au to -

2 O c o n c e ito d e a u t o n o m i a o c u p a u m lu g a r c e n tra l n a re fle x ã o m o ra l m o d e rn a


so b re tu d o a p a rtir d e Im m a n u e l K a n t (1 7 2 4 -1 8 0 4 ). A in flu ê n c ia d e K a n t p a ra a
filo so fia m o ra l se fa z se n tir a in d a h o je . A p a rtir d o c o n te x to m o d e rn o é p ra tic a m e n te
im p e n sá v e l a firm a r a lib e rd a d e e , a o m e sm o te m p o , p re sc in d ir d a a u to n o m ia , p o is e sta
ú ltim a re m e te a o fa to d e q u e so m e n te u m su je ito liv re d á a si m e sm o su a p ró p ria
le i.
rev elação d e D eu s em Jesu s C risto . D aí d eco rre q u e o m o d o d e en ten d erm o s
a R ev elação in flu i d iretam en te n o sig n ificad o d a ação h u m an a d o s cristão s,
p o is esta d ev e ser ju stam en te u m reflex o d e su a fé.

P o r isso , trata-se aq u i d e m o strar q u e o p ro b lem a d a R ev elação an teced e a


reflex ão p ro p riam en te ética d o ag ir cristão , p o is a R ev elação d e D eu s em
C risto (p o n to d e p artid a d a reflex ão cristã) tem q u e ser en ten d id a so b o
p ressu p o sto d e q u e D eu s se rev elo u an tes d e C risto e co n tin u a se rev elan d o
d ep o is d e C risto sem q u e isso d im in u a a rev elação n o C risto .

N a v erd ad e, o p ro b lem a d a R ev elação m o stra su a m áx im a ten são sem p re


q u e n o s situ am o s u n i l a t e r a l m e n t e em u m d e seu s p ó lo s. C o m efeito , sem p re
q u e ela é in terp retad a co m o c o m u n i c a ç ã o d e a l g o o c u l t o , ten d e-se a acen tu ar
o e x t r i n s e c i s m o : o rev elad o é co n ceb id o co m o "v in d o d e fo ra", ex tern o ao
su jeito ao q u al a R ev elação é rem etid a sem co n tato d ireto e p esso al, q u e, p o r
su a v ez, d á m arg em p ara p en sá-Ia co m o in terv en cio n ism o d e D eu s n a
h istó ria. P o r o u tro lad o , se é in terp retad a co m o p r e s e n ç a i m e d i a t a d o rev e-
lad o n a ex p eriên cia h u m an a, ten d e-se a acen tu ar o i n t r i n s e c i s m o : o rev elad o
é en tão in tern o ao su jeito . T al p o sição co rre sem p re o risco d e co n fu n d ir o
rev elad o co m a co n sciên cia d a p ró p ria in terio rid ad e, p erd en d o su a referên -
cia tran scen d en te 3 , cain d o n o su b jetiv ism o .

C o m p artilh an d o d a p ro p o sta q u e ap resen ta o teó lo g o A n d rés T o rres Q u eiru g a,


creio q u e d ev eríam o s p en sar q u e D eu s n ão n ecessita "ch eg ar" ao h o m em ,
p o rq u e já está sem p re co m ele, o u seja, D eu s se rev ela sem p re. C aso q u isés-
sem o s d efen d er o u tra p o sição , teríam o s q u e ad m itir, o u q u e a R ev elação d e
D eu s em Jesu s C risto fo i u m ev en to q u e fico u en cerrad o n as co o rd en ad as
h istó ricas d e u m p assad o d istan te, e n esse caso o ag ir cristão seria u m a
im itação d o ag ir d e Jesu s, o u teríam o s q u e afirm ar a ab so lu ta tran scen d ên cia
d e D eu s, sem relação co m a co n tin g ên cia d e n o ssa h istó ria, e n esse caso a
R ev elação seria tid a co m o alg o q u e 'v em d e fo ra'.

O ra, to d a a h istó ria d e Israel fala d e u m p o v o q u e "d esco b riu " D eu s n a


h istó ria e ao fazê-Io fo i d esco b rin d o a si m esm o . A B íb lia n asceu d o 'd es-
co b rim en to ' d esse D eu s n a v id a d o p o v o e d o p ro g ressiv o ap ro fu n d am en to
n a co m p reen são , tan to d e seu m o d o d e relacio n ar-se co m o s d em ais, co m o
d o s m o d o s d e co n d u ta q u e isso su scitav a n eles 4 • A ssim , a h istó ria d a R e-
v elação co n siste b asicam en te em ir D eu s co n seg u in d o q u e esse m eio o p aco
e im p o ten te p ara o in fin ito , q u e é o esp írito d o h o m em , v á cap tan d o su a
p resen ça e se sen sib ilize p ara su a m an ifestação , en tran d o assim em d iálo g o
co m su a p alav ra d e am o r e aco lh en d o a fo rça salv ad o ra d e su a g raça. A isso
d en o m in am o s 'ex p eriên cia d e D eu s'.

3 C f. T O R R E S Q U E IR U G A , F im d o C r is tia n is m o P rê -M o d e rn o , o p . c it., p. 108.


4 C f. A . T O R R E S Q U E IR U G A , A R e v e la ç ã o de D eus n a R e a liz a ç ã o H um ana, S ão
P a u lo : P a u lu s, 1 9 9 5 , p . 4 0 .
S em o p ressu p o sto de um a ação co n tín u a, eficien te e am o ro sa d e D eu s n a
h istó ria h u m an a, a R ev elação n ão p assaria d e u m ev en to lo calizad o cu jas
p reten sõ es d e u n iv ersalid ad e já n asceriam fad ad as ao fracasso , lev an d o
co n sig o a 'in ten ção ' d iv in a o rig in ária de um a salv ação u n iv ersal. P o r isso ,
a cap tação d efin itiv a d a R ev elação d iv in a em Jesu s C risto sig n ifico u o fin al
h istó rico d o p articu larism o b íb lico e a d esco b erta d e seu d estin o u n iv ersal,
n ão co m o to talm en te n o v o , m as co m o o f e r e c i m e n t o em p len itu d e d o m esm o
D eu s já p ro cu rad o e em q u em v iv iam , m o v iam -se e ex istiam to d o s os ho-
m en s (ef. A t 1 7 ,2 7 -2 8 ).

C o m efeito , aco lh er a R ev elação co m o u m a o ferta, co m o p ro p o sta d e D eu s


à h u m an id ad e sig n ifica d ar-se co n ta de que n ão há co n trad ição en tre
im an ên cia e tran scen d ên cia em D eu s, e que D eu s asseg u ra, ao m esm o
tem p o , o v alo r irrev o g áv el d a lib erd ad e e au to n o m ia h u m an as d ian te d ele.
A fin al, o h o m em pode d izer 'n ão ' a essa p ro p o sta.

A p len itu d e d a rev elação em C risto n ão fech a, m as an tes ab re; n ão p aralisa


a p resen ça d e D eu s, m as an tes a to rn a p aten te em su a m áx im a atu alid ad e.
P o r isso , a R ev elação é sem p re atu al: D eu s co n tin u a se rev elan d o num
p ro cesso sem p re ab erto que tem à fren te, co m o m eta e co m o g aran tia, a
p len itu d e d o C ru cificad o -R essu scitad o s. D este m o d o , a R ev elação d e D eu s
em Jesu s C risto , ap esar d e ser o cu m e d a m an ifestação d iv in a, n ão é u m a
m an ifestação iso lad a. A o co n trário , ela se ap resen ta p o r ex celên cia co m o
ch av e-d e-leitu ra e h o rizo n te n o q u al to d as as m an ifestaçõ es d e D eu s p as-
sad as, p resen tes e fu tu ras p o d em ser referid as. P o is, a p len itu d e d a R ev e-
lação em C risto n ão está asso ciad a sim p lesm en te ao d ad o cro n o ló g ico , m as
o C risto rev ela o q u e já h o u v e, h á e h av erá d e c r í s t i c o n a h u m an id ad e.

Especiflcidade da Ética Cristã

S e é D eu s em n ó s q u em su sten ta co n tin u am en te n o sso ser, n o sso ag ir, n o sso


p en sar, en tão a p erg u n ta p ela R ev elação n ão p o d e o b ter u m a resp o sta sem
que a p ró p ria p erg u n ta já seja p arte d a resp o sta. D onde se seg u e que a
R ev elação só p o d e ser u m m o v im en to d e n ó s p ara D eu s p o rq u e é an tes u m
m o v im en to d e D eu s p ara n ó s. A aceitação d a in iciativ a d iv in a n o n o sso
p ró p rio ag ir só é p o ssív el por um a liv r e a c o lh id a d esta n a fé. A í está,
p o rtan to , a esp ecificid ad e d o ag ir cristão . E m o u tro s term o s, isso sig n ifica
q u e o cristão o lh a p ara Jesu s p ara in stru ir-se n o seu ag ir p o rq u e crê q u e em
Jesu s se d á a p len itu d e d a rev elação d iv in a e co m o tal a p len itu d e de um
ag ir seg u n d o a v o n tad e d e D eu s. E m ais, crê q u e atrav és d o seu ag ir D eu s

5 ef. TORRES Q U E IR U G A , A R e v e la ç ã o de D eus na R e a liz a ç ã o H um ana, op. c it., p.


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co n tin u a ag in d o n a h u m an id ad e, o u seja, D eu s c o n tin u a se r e v e l a n d o na
ação d o cristão .

A g o ra já tem o s co n d içõ es p ara afirm ar q u e o ag ir d o cristão n ão está d efi-


n id o d e an tem ão . E le está estritam en te lig ad o à ex p eriên cia de um D eu s
am o ro so , p resen te e atu an te q u e se rev ela co n tin u am en te e, p o r isso , d in a-
m icam en te. E sse am o r d e D eu s p ela h u m an id ad e, su a p resen ça e atu ação
co n cretas se m an ifestaram em p len itu d e em Jesu s d e N azaré. D aí o co n v ite
a 'v o ltarm o s' a Jesu s p ara red irecio n arm o s e re-sig n ificarm o s co n tin u am en -
te o n o sso ag ir e, so b retu d o , p ara d esco b rirm o s n o R o sto d e Jesu s, o ro sto
am o ro so d o P ai q u e se co m u n ica co n o sco e q u e, ao fazê-Io , p o ssib ilita e
su sten ta n o ssa ex p eriên cia d e fé.

Luiz C a rlo s 5ureki 5J é b a c h a re l e m F ilo so fia e g ra d u a n d o e m T e o lo g ia p e la


F a c u ld a d e Je su íta d e F ilo so fia e T e o lo g ia , B e lo H o riz o n te , M G .
E n d e re ç o : A v . D r. C ristia n o G u im a rã e s, 2 1 2 7
3 1 7 2 0 -3 0 0 B e lo H o riz o n te - M G
e -m a il: lu iz c a rlo ssu re k i@ y a h o o .c o m .b r

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