Você está na página 1de 8

0

O cinema e a cidade estã o ligados a igual ou mesmo inteiramente, a paisagem


uma mesma idéia de movimento que, tal- que modelar conforme seus meios e suas
vez, se assim podemos dízei, os identifi- necessidades
ca a um tipo de modernidade permanen-
te. É claro que uso o termo •modernida- O cinema e a cidade sao lugares de
de não em seu sentido histó rico, mas em representação que se interpelam e se usam
uma percep ção conceitual que designa- reciprocamente. Sem duvida nâo é por
ria uma diSQ OSÍÇáO, Uma disponibilidade acaso que, procurando demonstrar sua
à mudança, à inovação, à invenção sem, especificidade, as primeiras imagens cine-
no entanto, ser uma determinação obsti- matogràficas desvendaram por um lado o
nada, deliberada e constante à transfor- corpo individual em movimento, animal e
mação ou à ruptura. Encontramos neste humano, e, por outro, o corpo social per-
conce ito uma abertura à alteridade e à cebido no meio urbano através de seu rit-
diferença mas não necessariamente a pro- mo, seus deslocamentos e sua velocida-
posição vol untarista de um futuro sem de Não é tampouco por acaso que um
raízes. Este elo me parece reforçado pela dos mestres mais conhecidos do cinema
necessidade, tanto da cidade como do documentà rio e antropoló gico, um dos
cinema, de uma tniie em sceae. De fato, o fundadores da reflexão sobre o cinema
cinema ordena as relaçõ es entre as ima- enquanto linguagem, Dziga Vertov, encon-
gens e, assim, provoca a elaboraçã o de trou na cidade um lugar privilegiado de
sentido, visando a uma intencionalidade inspiração e de demonstração da pertinên-
precisa, resultante de diferentes e qoss1- cia cinematográfica na pesquisa e na ela-
veis pontos de vista no interior do pro- boração de se ntido O cinema é em si
cesso de produção cinematografica. Quan- mesmo um fenô meno urbano. Multiplici-
to a cidade, ela dispensa e dispõ e de um dade de trocas, diversidade de pontos de
espaço elaborado para receber os grupa- vista e de objetivos, aceleração e confron-
mentos sociais, em grande parte desvin- tação das comunicaçõ es, cidade e cinema
culados (uns mais outros menos) progres- produzem no que lhes concerne uma rea-
sivame nte da produção direta de seus lidade movediça gerada por um feixe de
meios de subsistê ncia e que produzem, projeçõ es espacio-temporais
iilllifú , tl'd0 r dü ttãOdO ítlgtltll pOr aCa-
SO - HO filGfnerlto c"fr1 t}tl0 O tlní VCf?sti t}tlC
havia dr :s envolví do .i antrop clorg ia sr-
recoinptinlil, moiiiento em q th o mun- nac‹ao colonial. Nc ste mesmo per iodo.
do colonial ;ifundava logo apó s o fím da ítoucli tinha termínado ace fílmagencs de
segunda u<rra munJiÜ - Qut et pro-
/dgo«P cm que relatada, csob a mim z dt
mov eu. através de um emprccndinic rito uma reconstituiç‹ao ficcional, a trajetó ria
cinematogr*fico, urna renovação da per:- de jovens nigcri.tno:› cm busCa de traba-
pecUm topológcanosontidoB uma lho nos tcrrító ríos mais ricos do golfo da
perctpçao mês din2micl dos fenómenos C•uiné. Doi:s ano:› mais tarde, ele realíza
da mudança. Ao mesmo tempo, perce- Pyrainide humair e, também na Co.sta do
bia-.se que o distante e o cxoti:mo mao Marfim, em que tratn, principalmente, das
estavam indiferente-s às tranformaçô es do relaçõ es de sexo e raça. Vemos. atravé.s
nocaso m undo c que os acontecime ritos de:sse ràpido percurso de sua fil mogra-
de outra natureza nâo estavam necessa- fia, que, no momento em que muita:s in-
riamente dependentes dos moví mento:s dcpendências africanas ainda nao tinham
• daqui • A problematica da diferença e sido conquistadas, momento em que a
da identidade ra se separar lentamente antropolo$ia e o cinema continuavam a
(muito lentamente!) de suas pesadas co- produzir ímagens cxó ticas, mesmo folcló -
cotaçõ es étnicas e mesmo raciais, herda- ríca› ou arcaicas da Africa, Rouch. assim
das do século XIX, para se expressar em como Georges Balandier, abria o.e olhos
termos culturalístas e histó ricos. às paisagens da contemporane idade e
iniciada os camp os de expl ora çáo da
É , assim, neste contexto de descolo-
modernidade que iria desenterrar nossas
nização cm curso e das primeiras apre-
dísciplinas do setor predefinido de um
ensõ es dos soció logos e antropó logos
pretendo • primitivismo -. O caminho se
sobre uma reconsideração geral das or-
traçava em direção à aprop riação pela
dens políticas, sociais e econô micas da
antropologia das sociedades complexas
qual as sociedades • exó ticas • também
c industrializadas, cujo domínio estava até
participavain, que foi realizado o filme
então reservado à sociologia. Esta sepa-
flor un Soir, primeiro longa metragem de
ração das áreas, conseqü ência de circuns-
ficçã o de Jean Rouch. Foi fílmado em
tancias histó ricas, conservou assim, ao
1957 na Costa do Marfim, durante uma
nível da classificação das ciências, o apnr-
longa pesquisa sobre a questão das mi-
theid político e ideoló gico que separava
graçõ es no interior da Á frica, domínio
o mundo em socie dades • desenvolvi-
ainda novo para a antropologia e para o
das • (antes tínhamos a arrogância na’íve
cinema. Dois a nos antes, realizou na
de dizer • civilizados •!) e sociedades •em
Costa do Ouro, colô nia inglesa c primei-
vias de dese nvo1vimento• (primeiro de-
ro territó rio colonial africano a se tornar
nomimamos de •sub-desenvolvidas• para
independente sob o nome de Gana, seu
não repetir os termos antigos, agora re-
filme-culto ice Nnítres bons. Neste filme,
conhecidos como estiginatizantes, de •pri-
vemos uz grupo de trabalhadores nige-
mitivos e até •selvagens•...). Foi preciso
Um a anÍ rop ol og' a- d i á ri

esperar muito tempo para que esses tra- ce, improvisando no campo efetivo de sua
balhos pioneiros levassem à admissão e vida cotidiana as seqü ências da realida-
ao reconhecimento da legitimidade do de provável, contudo, incerta. A impro-
olhar antropoló gico sobre todos os as- visação é guiada pelo ambiente e o sen-
pectos da contemporaneidade no campo tido produzido e interpretado esta pre-
das sociedades dominantes e, essencial- sente nos muitos níveis de expressão e
mente, •brancas•. de percepçã o. É a primeira elaboração
daquilo que, pouco a pouco, se tornará
O filme foi realizado como urna ver- para Rouch um modo freqü ente de reali-
dadeira pesquisa, os principais protago- zaçã o e que o cinema levará anos para
nistas encenavain sua pró p ria vida de aceitar como um modo narrativo particu-
imigrantes na cidade de Abidjan ao mes- larmente rico e, acima de tudo, legítimo:
mo tempo em que revestiam seus so- o documentário-ficção surgirá assim pro-
nhos de uma certa realidade. Compondo gressivamente e se distinguirà radicalmen-
um verdadeiro sociodrama, — e talvez ja te das tentativas indecentes realizadas por
prevendo o procedimento dramático de vários mercenários do cinema para con-
Pyramide Ilumaine —, os atores sã o os fundir a verdade ira falsificação do real
heró is de uma narração que lhes perten- com a realidade propriamente dita. Em
kotich, o que ficciooaliz‹ o documento é
lit›erd:ide dois .itores é extremamente sí-
a introduç-*o deliberada do im:igin‹írio:
tu«d». Conscqü entcn›cntc r la p¢rn›itc a
ele transpõ e os limites do rcalismo docu- in›pi’ovis4çlo c a invençïo como ac lon-
mental para introduzir a coinprccnsat› dc go n›ezsmo da ¢xistÉ ncia. A fíln1ag«ni tor- n.-
uma existência, ri.ao :›omcnte ao nivel de s¢, entao. uma vcrdadc ira fom›l de
uma cotidiantidade trivial, mace, tambem, zcoinpanhaniei›to, um procedimento fe-
no plano de uma afetividade c:specífica nomenológico qut pensa a ariao sem 2
que é posta em situaç.ao. projetando seucs viver unicamente. do mesmo modo que
sonhocs nos condicionamentos pragmàti- o pioces.o de realizaç.ao interpela o› ato-
cos do día-a-dia. A construção é. desse res sem, efltfeÍílDtO, 5tlbmete-los "e exi,çên-
modo, uma produçã o da pró prio situa- cia do e nquadramento. Desse jogo de
ção, um jogo no curcso da realização que autonomias interativas nasce a dinâmica
leva os protagonistas a misturarem aos de um discurso em freqü ente construçao,
acontecimentos do dia as esperanças da mas sempre inscrito no interior de uma
noite. Deste deb2tC entre os atores íe ló gica dram*tica, instruída pelas condiçõ e.‹
aqueles que encenam diante da camera
impostas pelo ambiente e pela situação
atuam em primeÍfO ltlgar Com aqueles que
de cada protagoni.sta em seu seio.
se encontram por dctiz:• e que, conse-
qü entemente, também» são atore.e) nasce- 0 filme foi realizado sem som, mudo,
rá, como em toda realizaçã o fílmica, uma
e a pó s-sincronização implicava a elabo-
realidade viva z, uma realidade que se
ração de um comentá rio a vários níveis
inventa a partir do momento em que se
ao mesmo tempo em que tentava uma
coloca os personagens no quadro de sua dublagem de si mesmo feita por um dos
pró pria existência. Conversas e falas sao principais heró is da aventura. Rouch in-
trocadas e criam os acontecimentos: um troduz alguns comentários, facilitando o
dos heró is do filme reproduz fora dele reconhecimento dos lugares e dos perso-
suas identificaçõ es e, por conta desse nagens e identificando as seqü ências. Ele
jogo, e verdadeiramente preso pela ver- provoca, assim, um distanciamento qua-
dndeire polícia de Abidjan! Assim, o fil- se brechtniano que é menos um procedi-
me nào c mais uma simples representa- mento de exposicão socioló gica do que
çã o, a fala nã o é simples descriçã o, a uma advertência lançada ao espectador
imagem e os gestos filmados nao se con- para que ele reconheça a autenticidade
tentam apenas em reprodu2Ír, há produ- de um jogo que se mostra e se esconda
çã o concreta de açô es e de relaçõ es e, tal como o jogo da verdade O ator Ou-
portanto, de afeto e de sentimentos cujas marou Ganda se dirige ao espectador
conseqü ências fogem a uma encenaçã o estrangeiro, ele toma a palavra e assim,
pré-estabelecida. A ficçã o se torna reali- acontecimento incrível, é a primeira vez
dade, expe riência compartilhada, ela que em um filme a palavra é dada a um
constró i um autêntico vivido (vécu), pois afticano. Esta fala é a expressão de uma
ela nada mais é do que uma tnise eit scê- representação consciente, não é umma si
ne do plausível e nâo uma dramatizaçâo - ples resposta a proposição de uma ques-
narrativa inteiramente pré-concebida. A tã o, sábia atitude diante daquilo que st-
U m a an o po og' a - d á

ria uma pesquisa tradicional. Trata-se de me estonteante do dinh erro inatingível,


uma fala endereçada. Ouma rou Ganda as portas do lucro, da liberdade e da fe-
interpela e descreve os lugares e as cir- licidade misteriosa parecem prestes a se
cunstâncias que se oferecem à imagem entreabrir a todo instante... Nenhuma ex-
Esta descrição não é uma interpretação periência contraria será sufici ente para
nos termos de um observador neutro. Ao quebrar definitivamente essas aspiraçõ es
contrario, é um verdadeiro mergulho na Ao contrario, os contrastes vividos enco-
experiência vivida em um meio específi- rajam e reforçar o crescer do sonho por
co, uma reivindicação pela apropriação nao se inscrever em em nenhuma reali-
de um sentido que nao se submete a uma dade, Os encontros não acontec em, os
análise exterior, mas se afirma em sua projetos vão por agua abaixo, o dinheiro
autonomia e se propõ e como uma ver- é uma mentira, o amor uma imagem pin-
são autó ctone dos acontecimentos. Ou- tada nas paredes de um bar onde o neó n
marou Ganda comenta sua pró pria vida se reflete nas garrafas de cerveja de uma
e a dos amigos, mas também pó s-sincro- noite sem saída Portanto, para além dos
ntza o papel que se atribui ao longo do desafios e das re jeiçõ es, uma foiça de
filme: o de um boxeador sonhador que vida p ersiste e tran sg ride a rea li da de
seria desempenhado por um ator amefi- amarga das desigualdades e das in justi-
cano, Edward G. Robinson, a menos que ças coloniais ou pó s-coloniais. Talvez seja
sonhe ser um boxeador que se passaria na constante produçã o do imaginario e
por Edward Robinson, ou, enfim, que seja da esperança que se concentre a capaci-
ou que sonhe ser boxeador e ator ao dade de resistê ncia à op ressão social e
mesmo tempo ao abandono afetivo. Sem dú vida, a men-
sagem é, pelo me nos, ambígua: é bem
Os sonhos se misturam e se projetam esta a vida sonhada...!! De todo modo, a
uns aos outros no quadro fictício de uma ilusâo não é tão perve rsa, ela não se
cidade trompe-l’oeil. O filme começa com constitui unicamente como dispe rsão da
imagens quase futuristas (para a época!) atenção ou manobra alienante do imagi-
de amanha-céus imaculados, de pontes e nario, novo avatar de um •ó pio do povo-;
estradas e anuncia o projeto proposto por ela se forma como realidade virtual sus-
Ganda-Robinson: •Eis Treichville. .• Trci- cetível de criar uma ação, de se transfor-
chville, bairro de bares e dDnCing$, baír- mar em imaginação criativa. Ela se torna
ro de prazer para os pobres, refú gio das o suporte tangível daquilo que sera cha-
fantasias para os imigrantes sem moradia mado mais tarde de soc iedade civil, cuja
e sem outra família que não sua pró pria perseve ran ça em inventar sua vida de-
comunidade flutuante e miserável: a rea- monstra e desmonta diariamente o ab-
lidade que aparece esta bem longe dos surdo mortífero das construçõ es teó ricas
grandes edifícios das primeiras imagens! do dito imundo real , administrado pelas
A miragem urbana está presente desde o famosas instit uiçõ es int ernacio nais da
início, a realidade longíqua do luxo e do economia, dos bancos e do lucro. Diante
modernismo, a imagem do sucesso pro- dos re pedidos resultados das pesadas e
fissional, amoroso, sentimental, o perfu- absurdas estatísticas d esse m undo, de
uma impossibilidade de existif f0ra dos 0e modo geral, Rouch contribuiu bas-
baixos limite s do que seria a sobrevi- tante para a abertura de novos setores à
vi ncia, constatamos que, ainda ho je , antropologia mundial ao se dar conta da
essas sociedades que pretendemos im- universalidade das dinâmicas de mudan-
possíve is de vive r, na medida d0S HOT- ça. A nível de abordagem, ele inaugura o
sos cálculos e ri ossos m ode los, conti- que Clifford Geertz formularà bem mais
nuam sua hricolnge insana, transgredin- tarde, sugerindo isso que chamo de acom-
do in finitam e nte as orde ns imp ostas panhamento /eaomeno/ó gico, tentativa in-
pela economia, pelo dire ito e pela ra- definida de uma compr eensão da dife-
zão ou, pelo menos, do que chamamos rença, aproximando-se o màximo possí-
assim... Não poderemos dizer, extrapo- vz“i de forma a olhar o Outro quase •por
lando um pouco nossa proposta, que à cima de seus ombros•. A abordagem do
raciona!idade abstrata de uma mundia- registro cinematogràfico não é somente a
lização seriali zante se opõ e a imagina- form ul ação de um método que permita
ção concreta das sociedades civis autó c- avançar para além da realidade aparente
tones c autonomizantes! dos fatos e gestos. De fato, jà sabemos
que ela permite uma análise posterior e
O que Ro uch propõ e no mome rito
re pctida do vivido, da instantane idade
em que come ça a realizar trabalho de
fugídia dos atos e das relaçõ es. Contudo,
campo (é bom lembrar que suas primei-
embora te nham os apenas come çado a
ras pesquisas datam do final dos anos
perceber as COrlSCqü é ncias, compreende-
40!), renova a postura etnografica fran-
mos que ela permite a aproximação de
cesa Nascida nos anos 30 e predomi-
uma distância que não é mais uma sim-
nan do amplame nte pel o men os até o
ples observação: uma proximidade sen-
início dos anos ô 0, ela contribuiu com a
sível e uma proposição de diálogo. Esta
criação de uma realidade setorial onde
antropologia compartilhada•, tantas ve-
se descobri am , do ponto de vista da
zes rcivindicada, não é um simples mé-
pesquisa, unidades sistêmicas que fugi-
todo de participação afetiva, ela dà conta
am à histó ria e às suas contradiçõ es até
do insuperàvel paradoxo da alteri dade
a provação destrutiva da invasão colo-
que a antropologia tem, justamente, por
nial. Assim, a antropologia se dividia em
função assumir: como mostrar e enten-
duas vias: de um lado um acompanha-
der a dife rença sem a tornar irredutível
mento mortal das socie dades h olistas
nem a reduzir ao idêntico. A questão é,
em via de desaparecimento; de outro,
igualmente, de tornar acessível a um e a
uma arq ueol ogr a social, rcconstru ção
Outro aquilo que lhes é estranho e mes-
precavida e respeitosa das formas soci-
mo de tornar acessível a Outro como a
ais extintas para sempre e cujo estabe-
um aquil o que lhes é ainda incompreen-
lecimento teria sido produzido sem gran-
sível A necessidade do diálogo constan-
de acontecime nto, das sociedades nas-
te, de uma continuidade de troca, de busca
cidas de mito e mortes nos prime iros
infinita de situaçõ es interativas: eis o que
contatos com o exterior, ou seja, com a
se precisa dem on stra r, eis o que uma
dinâ mica invasã o colonial.
antropologia que seguiria as vias indica-
m U a an op o og a- ó i a o

das ha muito tempo por Rouch buscava


um céu abstrato: suas int ençõ es entram
como seus meios e caminhos.
na definiçâ o do campo experimental. A
questão da p rofilmia' atitude sul o.sta
Mas retornemos a foi um Noir, 0 fil-
mente hipotética, suspeita diante da câ
me produz uma histó ria, ou melhor, his-
mera, não é simplesmente uma especifi-
tó rias entre cruzadas que se percebem e
cidade cinematográfica: nessas imagens
se interpretar uma as outras sob o olhar
iniciais evocadas acima, em que Ouma-
duplo do reali2ador e de um dos inté r-
rou Gan da, aliàs Edward G. Robinson,
pretes principais Impossível apresentar
nos interpela para nos apresentar Abid-
um ponto de vista ú nico, impossível bus-
jan e seu bairro Tre ichville, não é uma
car uma evidência unívoca. É uma nova
habilidade do cineasta para desestimular
determinação do Outro a quem é dada
tais questõ es, não é um simples efeito de
toda sua a uton omia. Sua ex isté ri cia é
estilo, trata-se de uma adve rtência ende-
pouco a pouco percebida como uma es-
reçada àqueles que até então (e ainda por
colha possível, como uma con stru ção
quanto tempo?) imaginavam constituir um
a utó noma e original, um camp o de in-
saber que inde pende das condiç õ e de
venção, de criação e não como uma sim-
pesquisa e sua restituição Sem se van-
ples etapa na ordem de um determinis-
gloriar e com uma apare nte inocê ncia,
mo geral. Enfim, o Outro antropologiza-
Rouch, não se contentando mais em ape-
do não é mais uma curiosidade arqueo-
nas mostrar e intcrrogar, dá a palavra aos
ló gica, um testemunho eventual de uma
seus piotagonistas. Esta fala interpela di-
histó ria teó rica da humani dade que se
retamente o espectador, colocando-o, sem
revela completamente fictícia em sua re-
d ú vida, como juiz do e spetaculo , mas
dução evolucionista: ele assume o esta-
obrigando-o a se reconhecer comprome-
tuto de sujeito tendo a possibilidade de
tido por um discurso que exp rim e uma
se dirigir àqueles que o vêem! Devemos
intenção deliberada e não uma aceitação
até nos preparar para começar um diálo-
aaire, senão ignorante, daquilo que ela
go, responder questõ es e não some nte
apresenta
arrogar-nos o direito de lhes perguntar e
de interpretar suas respostas! Essa é uma Assim, vàrias falas se exp rim em ao
das mais fortes propostas do filme: seus mesmo tempo em uma tela que até então
protagonista5 não somente falar em seu só deixava passar o discurso de um sa-
pró prio nome, contam suas vidas e seus ber ú nico e dominante: o do antropó lo-
sonhos, mas, como jà dissemos, olham go, do savant, do Branco. Esta polifonia
do outro lado da tela em direção ao es- nova e quase escandalosa para a ordem
pectador que os espera em algum lugar. colonial, existente ainda no final dos anos
ESsa maneira de se dirigir ao espectador 50, só pode ser entendida graças à des-
não é uma feliz descoberta formal do ci- coberta das ci dade 8, l ugares específicos
neasta, ela permite equilibrar as interro- que são reconhecidos pela diversidade,
gaçõ es. As questõ es do aritropó logo naO pelo encontro e pela mudança A urbani-
são sem retorno e o consumidor-solici- dade vista de perto e descrita escapa à
tante de ciência não se encontra mais em redução monolítica de um conhecimento
191
privilegiado Dar conta dos movimentos
que animam a cidade, dos caminhos que
se cruzam, é correr o risco de considerar
a plur al i dad e de pout os de vista, da
dis)unção das ló 8icas de ap reensão do
m undo É , naturalme nte , ultrapassar a
evidê ncia da asserção para reencontrar a
troca de interrogaçõ es; é come çar a se
preocupar corri a pertinência das ques-
tõ es mais do que com a coerência e a
estabilidade das respostas. Começamos a
perceber que a pesquisa se transforma
em uma reciprocidade de olhares ao lon-
go da qual se opera o descentrarnento
do mundo e através da qual logo se vis-
lumbrarà um contexto daquilo que H. G
Gadamer propô s chamar de confronta-
ção dialó gica • ou que R Rorty intitula
conve rsa ção , correndo certos riscos
quando práticas de ajustamento, de iden-
tificação ou de alinhamentos redutores se
desenvolvem e ganham terreno Com as
esperanças prometí das de entendimento,
logo se m ultiplicarão as relaçõ es de re-
cont ecimento de alteridades e de alter-
nativas necessarias e legítimas

Cinema and city are places of representations which interact and use each other 'Moi,
un Noir", by Jean Rouch, was filmed in the context of African decolonization, bringing in
landscapes of modernity. Constructing a real socio-drama, the actors are heroes in a narra-
tive which belongs to them. Fictional documentary and shared anthropology are thus
created The other gains autonomy to address the spectator This new poliphony, already
present in the end of the 50s, can only be understood once cities are discovered.

Você também pode gostar