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CINEMA AS A POTENCY IN Construções Identitárias, Lusofonia e Pós-

PORTUGAL FOREIGN POLICY Renascimento.

Rui Manuel Martins de Sousa Torres Introdução


Centro de Estudos Interdisciplinares
do Século XX da Universidade de Delimitação do campo de
Coimbra -CIES20 análise e objecto.

Portugal
O estudo do cinema nas relações
Abstract externas dos estados não é uma
originalidade. Nos estudos fílmicos
The time we live in is that of the eruption
aplicados em cinema português, no
of millions of subjectivities, of territorially
diffuse affective communities, geographies entanto, são escassos os estudos que
of affections and identity belongings
tem o foco nesta temática.
that go beyond the countries' geographical
boders. The continous flows of information Num país em estado de anemia
and communication, the transition to the
quanto à atividade cinematográfica,
digital economy accelerated by the
pandemic context, transformed people's estado anémico que se tem prolongado
daily lives into permanent daily contact
ano após ano durante toda a III República,
with mobile and fixed screens, at work, in
the public and in the private spaces. From e que em razão dessa anemia,
the cinema room to the cell phone, the
dificilmente encontra outras fontes de
cinema language is appropriated by the
disciplines of marketing, financiamento que não as que resultam
advertising business communication and
das políticas públicas de apoio ao cinema,
organizations, media, politics and artistic
practices, building appeals, standards, investigar qual o lugar possível e
disputing, fragmenting and uniting
desejável do cinema português na
communities of belonging and affections.
Cinema, man's unique look at the world comunicação externa de Portugal é
constitutes itself as Elian Kazan affirmed
urgente e necessário.
"the dialogue of the world" ,[1]. Modern
activity, art and industry, from an early age O objetivo da comunicação é
this artistic pratice contaminated and was
demonstrar a razoabilidade desta
contaminated,produced behaviors,attitude
s, in a double movement of appropiation urgência e necessidade, e também
and recreation of the appropriate. It is from
convocar os atores políticos e os
this empirical a priori that recognizes the
contamination of the real by cinema that fazedores dos cinemas para esta
this article is written, which seeks to
realidade.
identify the place of cinema, as an actor,
in the construction of the image of Num mundo de interdependências
Portugal in the contemporary world. Is
crescentes, para pequenos Estados como
there any articulation between cinema
produced with funds to support Portugal, a atividade cinematográfica cujo
portuguese cinema and public cultural
poder de influência dentro e fora dos
policies and between these and Portugal's
external communication? territórios de origem é inegável, não é
possível desprezar.
Keywords
A abordagem proposta
Soft power e cinema, Cinema acompanha as corrente pós-positivista e
Português, Políticas do Cinema, do pós-estruturalismo, assumindo a

1
produção do discurso e o exercício da ciência, a arte, tudo aquilo que condiciona
vontade como condição da ação do o olhar sobre a realidade em determinado
homem no mundo social. Entende-se que tempo ou lugar. As formas simbólicas
estruturas de significação só igualmente estruturam a leitura de mundo, criam uma
válidas para todos aqueles que tem rede de significados e organizam a
2
acesso a um mesmo contexto cultural, experiência.”
social, económico, político, etc. O cinema, As estruturas são, diz-nos (LÉVI-
arte popular, semiótica da vida, tem a STRAUSS, 1955; ALTHUSSER, 1998;
capacidade de comunicar com FOUCAULT, 2012) , o corpo de leis que
comunidades e indivíduos instituem e configuram a forma como se
simultaneamente em lugares distantes ou compreende a realidade.
próximos.
Para o estruturalismo filosófico, a Para o estruturalismo filosófico, a categoria ou

categoria ou ideia de fundo não é o ser, ideia de fundo não é o ser, não é a substância,

não é a substância, mas a relação; não é mas a relação; não é o sujeito, mas a
estrutura. Assim, contra o historicismo
o sujeito, mas a estrutura. De forma
diltheyniano, não é o sujeito que conduz o
menos radical acompanhamos as
curso da história; contra o idealismo hegeliano,
correntes pós-estruturalistas que sem
não existe uma lógica da história, pois não há
negar a dimensão estrutura, afirma a ideia de progresso e/ou continuidade na
construção do discurso ( texto, imagem, sucessão dos fatos históricos, por estes serem
som) com que o sujeito age sobre o real. contingentes, aleatórios; contra o empirismo, o
Tal como o herói relutante que sujeito não condiciona, por si só, suas

habita o cinema contemporâneo, a condições de possibilidade do conhecimento;

abordagem pós-positivista e pós- contra o existencialismo de Sartre, Heidegger


ou Merleau-Ponty, o homem não é senhor de
estruturalista afasta-se de forma decida
sua essência, não se projeta no mundo como
da linha imediatista e determinista da
lhe aprouver mas é condicionado por
causa-efeito. No caminhar humano há
estruturas a priori de compreensão.... Uma
sempre um fim, mesmo que do domínio leitura detida, principalmente
do inconsciente psicanalítico, que é de Arqueologia do Saber, segundo Rabinow e
motiva para o deambular tantas vezes Dreyfus (1983) impossibilita enquadrar
errático do não-herói contemporâneo. Foucault como teórico estruturalista,

Uma causa pode gerar múltiplos e justamente por este se recusar a pensarem
estruturas a priori de compreensão. O que
diferentes efeitos.
Foucault chama de estruturas epistêmicas
Um filme é sempre um produtor
nada mais seriam que regimes de verdade que
de sentido ou sentidos. Um produtor do
se manifestam no discurso, no aqui e agora e,
1
simbólico. Cassirer identifica o simbólico
por isso, não se mostram a priori. Os epistema
como a “ linguagem, a religião, o mito, a são formações discursivas que, construídas

1
CASSIRER, Ernst. 1998 Filosofia de las
2 Santos, Frederico Rios C. 2019 .Cinema,
Formas Simbólicas. Tradução de Armando
Morones. México: Fundo de Cultura Discurso e Relações Internacionais. São
Económica,. Paulo/pimenta cultural

2
sobre determinado tema, tenderiam a formar estratégias políticas no que se refere ao
um escudo frente a determinadas ideologias, poder de influencia na afirmação externa
ao mesmo tempo em que protege outras. O
do país. Consideramos o cinema
ponto chave na teoria de Foucault que
português enquanto fator relevante na
permitiria tratá-lo como filósofo pós -
afirmação e presença de Portugal no
estruturalista é então o conceito de formação
mundo global e em particular no mundo
discursiva , ideia que será retomada e
reproposta por analistas do discurso. Uma da lusofonia.
formação discursiva é aquela que estabelece o O património cultural material e
que pode ou não ser dito em determinado imaterial português é civilizacional e
contexto ideológico. Por exemplo, em universalista, a atividade cinematográfica,
uma formação discursiva republicana, não se na sua materialidade fílmica é uma
concebe a defesa de privilégios hereditários no
ferramenta de soft power, dado que
3
governo.
permite criar narrativas cinematográficas
que projetam valores, cultura, identidade,
A indústria cinematográfica e o
vividos pelos expectadores.
filme enquanto construtores de poder
Neste tempo de enorme tensão e
simbólico e não podem nem devem ser
redefinição geopolítica, em que a China
ignorados. A realidade demonstra que os
tornou evidente a sua capacidade, e
quotidianos domésticos, mas também as
eventual vontade, de na hierarquia das
relações internacionais, são em muito o
grandes potências vir a substituir o lugar
resultado das percepções, das opiniões
que os EUA tem ocupado nos últimos 100
públicas quotidianamente disputadas
anos, pensar o cinema português nesta
pelos diferentes poderes em presença nas
dimensão, enquanto ação instrumental de
sociedades de fluxo contínuo de
Portugal na afirmação e projeção dos
informação e comunicação. O filme e a
seus interesses estratégicos no quadro de
atividade cinematográfica é, nesta
Europa, ela mesma em redefinição, da
abordagem, um poder brando, da ordem
Lusofonia, e do Mundo é, uma
do soft power, é território de persuasão e
oportunidade para o desenvolvimento da
sedução, dispositivo estético expressivo
atividade cinematográfica, e uma
que dá visibilidade à voz singular de um
necessidade. Seguimos FOUCAULT,
determinado discurso nas relações
2010 ) quando afirma
externas.
No mundo contemporâneo de
Em toda sociedade a produção do discurso é
extrema complexidade e num país como ao mesmo tempo controlada, selecionada,
Portugal de recursos escassos em que a organizada e redistribuída por certo número
atividade cinematográfica é inexistente de procedimentos que têm por função conjurar
sem os fundos públicos que resultam de seus poderes e perigos, dominar seu

decisões de política cultural, é urgente a acontecimento aleatório, esquivar sua pesada

articulação da atividade cinema com as e temível materialidade .

3 idem
Desenvolvimento

3
4
Cinema português, relações relações sociais.

internacionais e geopolítica
Esta caracterização do bio poder
contem as dimensões mais significativas,
A construção do Biopolítico
damos nota de duas; o seu carácter
O último ano e meio da vida política interior e a sua relação contaminada na
veio confirmar a aceleração patrocinada dimensão e exercício enquanto produto e
pelos governos dos estados, em particular produtor da cosmo visão do indivíduo.
na União Europeia e sociedades do Não se trata mais de temer o aparelho
capitalismo desenvolvido, da construção repressivo do Estado. A decisão dos
das sociedade do biopolítico. O biopolítico Tribunais ou a intervenção das Polícias, a
caracteriza a dimensão e a forma do subjugação a leituras hegemónicas por
exercício do poder nas sociedades da parte da escola ou da igreja, mas de, no
informação, quando os media chegam a processo de socialização mediado pela
todos os espaços da vida humana, propaganda e informação, o individuo,
públicos ou privados. não pela força, mas por desejo e vontade
própria, se apropriar e integrar as
Foucault permite-nos reconhecer a natureza
_ dimensões visíveis e invisíveis do poder.
biopolítica do novo paradigma do poder . O bio
Tornar-se ele mesmo expressão do poder.
poder é uma forma de poder que rege e
regulamenta do interior a vida social, seguindo- O Poder bélico militar continua e
a, interpretando-a, assimilando-a e continuará a ter dimensão determinante
reformulando-a. O poder não pode conseguir nas decisões e alinhamentos da
um domínio efetivo sobre toda a da população geopolítica dos blocos e dos Estados. No
a não ser transformando-se numa função entanto o biopolítico tem como resultado
integrante e vital que cada indivíduo adopta e
alterações qualitativas na dimensão
reativa inteiramente por sua conta…a vida
clássica do controle e vigilância dos
tornou-se agora…um objecto de poder. A mais
Estados sobre as populações e sobre a
alta função deste poder é investir a vida de
forma de dimensão e controlo e papel da
extremo a extremo, e a sua tarefa é
administrá-la. O bio poder refere-se assim a opinião(s) pública(s).
uma situação em que, para o poder, o que está Para além do poder bélico de facto, é
diretamente em jogo é a produção e a necessário o seu uso ser legitimado pelas
reprodução da própria vida…quando o poder populações e pelo direito. Ou seja é
se torna inteiramente biopolítico, o conjunto do necessário uma opinião pública
corpo social é abrangido pela máquina do
internacional e nacional favorável ao
poder e desenvolvido na sua virtualidade.
combate “impiedoso ao inimigo”. Neste
Trata-se de uma relação aberta, qualitativa e
sentido, e por esta razão, o cinema
afectiva…o poder exprime-se assim como um
controlo que invade o fundo das consciências 4 Ver Michel Foucault, The History of Sexuality.
e dos corpos da população - e que se estende, Para outras abordagens do conceito do
ao mesmo tempo, através da totalidade das biopolítico na obra do Foucault ver “ the
Politics of Health in the Eighteenth Century” e “
Naisssance de la biopolitique”, in Dits et écrits,
vol.3, pp 818-825 Paris-Gallimard, 1994

4
enquanto lugar de alteridade, de comunicação de massa, a rádio, Emissora
aproximação de povos e culturas é um Nacional e posteriormente a RTP. É ainda
instrumento para a paz ao serviço dos no Estado Novo, acompanhado a
pequenos estados. cinematografia europeia, em particular o
cinema em França, que o cinema novo
Escola Portuguesa
começa em Portugal, um cinema movido

Coincidente ou não com uma por outras ambições de natureza mais

percepção do imaginário colectivo, o subjetiva e libertária, liberto de missões e

cinema português desde sempre teve ideias de Estado. Um cinema de “

relação próxima com ideias, realidades, literatura de gare”, em que, citando

dinâmicas sociais e culturais ao longo do Godard , para se fazer um filme basta um

séc. XX e tem mantido essa relação neste crime, uma pistola e uma mulher. Num

inicio do séc. XXI. breve momento ainda anterior ao

Olhar o cinema no tempo histórico movimento do cinema novo português,

é ver as representações culturais de uma foram realizadas obras cinematográficas

sociedade. É neste sentido que o cinema que expressaram o movimento do neo-

é arquivo, uma dimensão não menos realismo em Portugal.

relevante da atividade fílmica. Todo o Todavia não é fácil opor cinema convencional
filme enforma, consciente ou e cinema de resistência; eles não são campos
inconscientemente, valores estético- opostos; ao contrário, são focos diferentes
ideológicos. dirigidos sobre a sociedade, pontos de vista e
estéticas diferenciadas, mas não são
As nossas construções não são diferentes essencialmente distintos na descrição do
interpretações ou explicações de um mundo mundo que constroem enquanto
pré-existente e independente delas... 6
representação social
construções e mundo são uma e mesma coisa
5
A denominada “escola
Torna-se claro, pelos temas Portuguesa”, tem movimento embrionário
abordados no cinema produzido em na geração do cinema novo, em particular
português; Fado, Touros, Império, com António da Cunha Telles, Paulo
Ribatejo, Canções Populares, mas Rocha, Fernando Lopes, Manuel de
também autores como Camões, Frei Luís Oliveira. Diretores que afirmaram em
de Sousa ou Júlio Dinis, que o cinema sob Portugal o movimento do cinema europeu
o Estado Novo, e em particular durante o independente próximo da política de
mandato de António Ferro, serviu um autores e que, no caso particularmente
esforço de legitimação e construção de relevante da cinematografia de Manuel de
uma ideia de nação trabalhada também, e Oliveira, afirmaram a memória de um país
simultaneamente, através dos meios de
6 Leonor Areal, Cinema Português Um País
Imaginado Vol. 1 –Antes de 1974, Edições 70,
5 Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, pág. 17
pág. 5 – prefácio de Carmo D’Orey, Porto, ASA ( edição com o apoio da FCT)
1995

5
que se conheceu a si mesmo em outros Bénard da Costa, em 1991. Paulo

espaços territoriais distantes do seu lugar Rochacostumava dizer que existe um partido
filo-português na crítica cinematográfica
periférico no mapa europeu, como matéria
internacional, constituído por uma “elite” de
do cinema.
cinéfilos atenta aos filmes de autor feitos em
Portugal e que vê neles a persistência de uma
7
João Maria Mendes , sobre a
“escola”. De que ideia de cinema é esse
escola portuguesa, escreve: interesse sintoma? A que “procura” ou a que
“falta” respondem, nas cinematografias atuais,
O conceito de “escola portuguesa”,
os filmes portugueses valorizados por tais
frequentemente usado para definir o que
críticos?
caracteriza o cinema de autor feito em
Portugal, é uma expressão heurística que Foi Jacques Lemière quem caracterizou de
alude a obras cinematográficas e aos modos forma mais objectiva da “escola portuguesa”,
de as realizar sem definir com rigor o que lhes sugerindo que é identificável por três tópicos:
dá características idiossincráticas. Está 1. Invenção formal e inscrição do cinema numa
associado à simpatia ou empatia de uma fileira nova etapa da modernidade cinematográfica
da recepção internacional com “um certo 2. Afirmação da liberdade do cineasta e
cinema português” e esboçou-se entre procura constante dos meios dessa liberdade
scholars e no discurso crítico dos media a contra toda a norma industrial
partir dos anos 80 do séc. XX, que assistiram à 3. Primado da reflexão da questão nacional”.
consagração internacional de cineastas como O primeiro tópico de Lemière remete para
Manoel de Oliveira e António Reis e a 1967 e para o “novo cinema”, quando 15
umamenorização “política” de outros que realizadores portugueses levaram à Fundação
defendiam um cinema mais comercial e feito Calouste Gulbenkian, então percepcionada
para o entertainment de públicos mais vastos. como Ministério da Cultura alternativo, o
A ideia de “escola portuguesa” não é pacifica documento “O ofício do cinema em Portugal”,
nem tem igual entendimento nos diferentes que estará na origem, dois anos mais tarde, da
atores do cinema em Portugal, e continua a cooperativa Centro Português de Cinema,
merecer debate aberto sobre qual a prioridade, financiada pela fundação. O segundo tópico
a existir, do cinema produzido com fundos remete para a recorrente defesa cultural e
públicos, ou seja quase a totalidade dos filmes política da arte cinematográfica e do cinema de
com capacidade de existir no mercado dos autor contra as normalizações de formatos,
festivais e salas, produzidos em Portugal. A géneros e gostos promovidos pelo
expressão socializou-se sobretudo a partir da financiamento, produção, distribuição e
publicação de Histórias do Cinema, de João exibição de inspiração industrial/comercial.

Esta ponto que alimentou a discussão “


7 João Maria Mendes é ex-Presidente da
Escola Superior de Teatro e Cinema e Bragança-Paris” é no tempo presente em
professor coordenador no seu Departamento nosso entendimento estéril e
de Cinema. Leccionou no Doutoramento em
Artes Performativas e das Imagens em ultrapassada. Veja-se como exemplo o
Movimento criado em parceria pela
Universidade de Lisboa e pelo Instituto filme “Parasite” vencedor do Oscar 2020,
Politécnico de Lisboa. Foi co-fundador e é uma produção sul-coreana em que os
investigador integrado do Centro de
Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), atores nem usam a língua inglesa, o que
criado em 2008 pela ESTC e a Universidade
do Algarve. demonstra que a “nova Hollywood” do

6
ponto de vista conceptual não está mais Cinema e cultura nas
fechada no modelo de produção exclusivo relações externas no espaço da
das grandes companhias. A contradição lusofonia
assente na dicotomia cinema indústria -
cinema arte, não tem hoje adesão à A 5 de janeiro de 2015, o Instituto
realidade . Camões organizou um Seminário de Ação
Cultural Externa - Portugal no Mundo, na
O terceiro tópico refere-se à persistência da 8
sua comunicação Carla Figueiredo
reflexão poético/ideológica sobre “o problema
afirmou
português” ou da “sobrevivência nacional” nos
realizadores e seus filmes. Discussão de Num mundo em mudança é necessário que os
equívocos no imaginário histórico do país, sua Estados encontrarem novas abordagens para
fantasmática pobre mas imperial, herança o desenvolvimento das suas relações culturais
complexa da vocação marítima, da longa internacionais. Estas incluem a concepção da
síndrome salazarista e da guerra colonial, diplomacia, e da diplomacia cultural, não como
mescla de leituras da abertura gerada pelo apenas uma parte do aparelho e da ação
pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974 estatal, mas sim uma estrutura e abordagem
e pelo processo revolucionário a que ele deu integrante de ‘todo’ do governo, e o diplomata,
origem, bem como da normalização política ou o detentor de um cargo público, como um
que levou à adesão de Portugal à CEE em facilitador de ligações entre diferentes
1985. São temas abordados ora em evocações contextos e atores. Especificamente na área
históricas, ora em alegorias poéticas, ora, mais da ação cultural externa, poder-se-ia aplicar
raramente, em filmes-ensaio. como objectivos de uma nova abordagem,
uma tipologia simplificada que indica que as
Também este ponto, agora que
relações culturais devem evoluir no sentido de
nos aproximamos dos 50 anos do regime
apostar mais em projetos do que em eventos;
da III República, em modelo democrático, mais no multilateral do que no bilateral; mais
e perante um sistema discursivo que tem em coproduções do que em apresentações;
vindo a instalar o passado português mais nos processos do que nos produtos; mais
como status de violência e crime, e em trocas mútuas do que num sentido único;

verificando a problemática concreta no mais em ouvir do que em dizer; mais na


promoção de valores do que na
desenvolvimento dos países que antes
autopromoção... na minha análise, uma
eram territórios sob administração
estratégia coerente do todo da cultura nas
portuguesa, as crises migratórias, e
relações externas ainda não existe em
também a situação de grande fragilidade
Portugal... É importante que a ação cultural
institucional, económica, e que se teme externa seja guiada por uma estratégia
também a curto prazo social, no território coerente, com objectivos e metas claras,
nacional, um olhar renovado e sem pré- devidamente avaliada e implementada com
condição sobre a história recente de responsabilidade na prestação de contas e

Portugal parece-nos a cada dia que passa transparência nos processos... No entanto, a

mais urgente e necessário, nenhuma


disciplina será melhor que o cinema para 8 Docente e investigadora no Instituto for
Creative and Cultural Entrepreneursship,
o fazer. Goldsmiths, University of London.

7
avaliação dessas ações é simultaneamente um dos meios possíveis e desejáveis, isto
extremamente importante e difícil pois requere é, ao alcance das capacidades da
a conversão de elementos muitas vezes
cinematografia. Um dos mecanismos que
9
intangíveis em tangíveis.
importa desenvolver é o regime de co-

A autora destaca por um lado o produção, para uma efetiva afirmação e

carácter transversal estratégico da presença da cinematografia de Portugal

diplomacia a todo o corpo da ação no mundo, e em particular no mundo de

governativa, e por outro a sistematização expressão portuguesa.

estrutural de ações concretas, que em É relevante afirmar a

nosso entender tem inteira capacitação oportunidade para o desenvolvimento da

em filmes, festivais, desenhados com cinematografia nacional o assumir um de

objectivos concretos e como tal papel ativo pelo cinema nas relações

articulados com objetivos e missões internacionais.

estratégicas da diplomacia portuguesa. O olhar empírico e investigações

Esta visão está em linha com o académicas confirmam o cinema como

entendimento da cultura , no caso que nos território de alteridade. A narrativa

ocupa, a produção e distribuição cinematográfica é por definição um lugar

cinematográfica integrada no soft power. de encontros; encontro com o outro, ou

Não parece ser é demais nos dias hoje outros. As cinematografias nacionais

fazer notar que a afirmação de Portugal permitem aos pequenos estados

no contexto internacional advém da comunicar e exercer o poder de influencia

dimensão simbólica, imaterial, resultado em territórios e comunidades muito para

de existência histórica com momentos de além das fronteiras domésticas. A tese de

liderança num passado relativamente doutoramento em 2014 de Paulo Manuel

recente. Importa tornar claro que entender Ferreira da Cunha “ O Novo Cinema

o cinema como um fonte de influência, Português. Políticas Públicas e Modos de

num momento em Portugal aposta na Produção (1949-1980)” , dá conta da

transição para as economias do digital percepção clara da relevância do cinema

permite olhar de outra forma a para estado português ainda durante o

necessidade, os montantes, e as políticas Estado Novo, na tentativa de António

públicas para o sector da atividade Ferro, de um cinema português com

cinematográfica. A dimensão poder de visibilidade internacional. Viviam-se

influência do cinema de produção tempos de total domínio dos mercados

nacional nas relações externas de pela cinematografia das grandes

Portugal; comunicação, diplomacia companhias americanas e a oposição foi

cultural, no Sudoeste Asiático, em África, radical.

nas Américas, é de enorme relevância, e


António Ferro conseguia fazer aprovar a

9 primeira lei geral de cinema em Portugal, a Lei


http://d3f5055r2rwsy1.cloudfront.net/images/im 2.027, de 18 de Fevereiro de 1948.
ages_divulgacao/carlafigueira_ul.pdf A primeira versão da “lei de proteção ao

8
cinema nacional“ foi publicada a 24 de portugueses de grande metragem, na
Dezembro de 1946, sob a forma de decreton.º proporção mínima de uma semana de cinema
36.058, beneficiando claramente o sector da nacional por cada cinco semanas de cinema
produção e “trincava forte nos distribuidores e estrangeiro independentemente do número de
exibidores.“ Mas, segundo João Bénard da espetáculos semanais.“ Como filme português,
Costa (1998: 54), apenas três dias depois, a de acordo com o artigo 11.º, considerava-se os
27 de Dezembro, “depois de os americanos filmes que cumprissem três condições:
ameaçarem com boicote“, “Salazar em pessoa “ser falado
mudou o decreto“ e, no início de 1947, em língua portuguesa“, ser produzido em
“recambiou-o para a Assembleia Nacional para estúdios e laboratórios portugueses e “ser
os deputados da nação o discutirem.“ representativo do espírito português, quer
Reforçando a ideia generalizada da traduza a psicologia, os costumes, as
importânciada legislação para o futuro do tradições, a história, a alma colectiva do povo,
cinema português, “o ano foi escaldante, com quer se inspire nos grande temas da vida e da
cada um a mexer os cordelinhos que podia” cultura universais.“
Depois de os deputados rejeitarem a “versão Inequivocamente, a terceira das condições
soft emendada pelo Chefe”, o processo considerada na nova legislação para definir —
regressou à Câmara Corporativa para novo e, consequentemente, financiar — o filme
parecer e, finalmente, a 18 de Fevereiro de português ia ao encontro dos “caminhos
1948, a Lei 2.027 era publicada e seria seguros“, sugeridos pelo próprio Ferro no
regulamentada em 1949 (Ibidem). Do ponto de discurso “O Estado e o Cinema“ acima
vista meramente teórico, a polémica legislação referido, para a afirmação do cinema
parecia beneficiar sobretudo o sector da português: os filmes históricos, os
produção, nomeadamente com a criação do documentários e os “filmes de natureza
Fundo do cinema nacional (FCN): “Artigo 1.º poética“ (Ferro 1950: 64-65). Segundo Ferro,
A fim de proteger, coordenar e estimular a fora dos apoios deveriam ficar também outros
produção do cinema nacional, e tendo em filmes tidos como responsáveis pela crise
atenção a sua função social e educativa, assim criativa do cinema português: “filmes regionais
como os seus aspectos artístico e cultural, é ou folclóricos“, os “filmes extraídos de
criado o Fundo do cinema nacional.“ romances ou de peças teatrais“, os filmes
Na prática, de todas as finalidades do FCN, policiais e, principalmente, os filmes cómicos.
sobressaia a “concessão às entidades Baseados em fórmulas simples e repetitivas, e
produtoras de filmes portugueses de subsídios explorando os “chavões“, estes géneros
destinados a cobrir parte do custo desses fílmicos representam “o que há de mais inferior
filmes“ (Art. 7.º, 1.º). na nossa mentalidade“. Os filmes regionais e
Para além de eventuais dotações folclóricos, com o “bailaricos“ e cantigas
extraordinárias por parte do Estado, a principal “nitidamente metidos a martelo“, reproduzem
forma de financiamento do FCN seriam as visões estilizadas e depreciativas do
10
receitas resultantes das taxas de licença de regionalismo e folclore portugueses.
exibição, que incidia, acima de tudo, sobre os
filmes estrangeiros. O que também
desagradou aos sectores da distribuição e da
exibição foi a criação de um “contingente de 10 Tese de doutoramento“ O Novo Cinema
filmes portugueses“: “Artigo 17.º Todos os Português. Políticas Públicas e Modos de Produção
(1949-1980)” , Cunha, Paulo Manuel Ferreira da -
cinemas são obrigados a exibir filmes
Universidade de Coimbra , 2014

9
Setenta e dois anos depois da espectável para países como Angola ou
11
primeira lei do cinema em Portugal quanta Moçambique.

desta discussão ecoa fragmentada na


Para uma país com uma
discussão ainda hoje produzida sobre o
população de 10,28 milhões em território
que é, e o que deve ser, a política pública
doméstico, fica impossível negar a
para o cinema português.
dimensão extraordinária do capital
Ontem como hoje a questão da
cultural, simbólico, relacional, histórico,
política pública para cinema em Portugal
que é a identidade deste país na sua
no contexto das relações do país com as
relação com o mundo. Esta singularidade
outras nações no mundo, atendendo às
é de primeira importância para a criação e
dinâmicas sociais, culturais, económicas
internacionalização da produção cultural,
contemporâneas, é de particular
e na atividade cinematográfica em
relevância, ainda mais neste momento de
particular, pelo que é urgente pensar de
redefinição de blocos e zonas de
forma sistematizada a produção
influência.
cinematográfica nesta sua dimensão
Nesta segunda metade do séc.
estratégica, a curto, médio e longo prazo.
XXI que se avizinha em velocidade
Os estudos centrados na
acelerada a Lusofonia é espaço
diplomacia cultural são relativamente
estratégico, necessário, à afirmação de
recentes , diz (Bondam 2013) “ It is only
Portugal. O jornal Observador, em artigo
within recent years that cultural relations
publicado a 29 de Julho de 2019, dava
have entered the stage of political
notícia de números vinculados pelo
science”. Aceitamos a definição operativa
secretário de Estado da Comunidades,
para diplomacia cultural formulada por
José Luís Carneiro, quanto aos falantes
Cummings, Milton ( Cummings, 2003,
de português nestes termos
apud Schneider, 2006, pág. 191) “ ... the

a língua portuguesa é um dos principais ativos exchange of ideas, information, art and
estratégicos do Estado português, esperando- other aspects of culture among nations
se que até ao final do século XXI sejam 500 and their peoples in order to foster mutual
milhões os falantes espalhados pelo mundo. understandings”.
Há estimativas que apontam para que até
2060 a língua portuguesa possa vir a ser No ambiente relacional globalizante do início
falada por 380 milhões de pessoas... como do século XXI, a CPLP afirma-se como uma
exemplo há três anos havia três universidades comunidade plural, enriquecida pela
na China a ensinar língua portuguesa. diversidade, unida em torno do factor
Atualmente são mais de quarenta... É na linguístico e cultural comum, funcionando
América Latina onde o português é mais como matriz de potenciação das cultura
falado, mas as estimativas apontam para que, irmanadas lusofonia. Ao mesmo tempo, a

no fim do século, a língua portuguesa CPLP constitui a expressão institucionalizada


venha a ser a mais falada no continente do mundo lusófono convencionalmente
africano, devido ao crescimento demográfico formalizada, no plano político-diplomático,

11 Jornal Observador, 29 de Julho de 2019

10
pelos respectivos estados membros, no que respeita à conjuntura portuguesa...
afirmando-se a par das numerosas como doutrinou insistentemente Martin Wight,
comunidades de luso-falantes espalhadas pelo as ideias, as crenças, as afirmações, são mais
mundo, indiferentes às fronteiras territoriais do que elementos de uma imagem desejada e
manejada pelo Estado espetáculo que está em
Interessa manter uma diplomacia circulação, porque muitas vezes condicionam,
ativa, mas também desenvolver relações influenciam, e aceleram a competição
informais de forma continuada e internacional. ... A segunda Guerra Mundial
estrategicamente operante. E também destruiu o sistema euro-mundista e, com ele,

aqui o cinema aprofunda o uso da língua os pressupostos da soberania absoluta e

portuguesa como factor estratégico. Diz suficiente. Ainda que sem plano, os grandes
espaços multiplicam-se, alterando
Moreira
completamente a primeira e essencial
As teorias políticas do poder, em oposição às referência da soberania e da cidadania, que é
teorias normativas que examinam o fenómeno a fronteira, sagrada pela escala de valores
em termos de sistema de direitos e obrigações históricos e patrióticos. Portugal tem disso uma
legais, procuram avaliar o facto central do experiência sem equivalente... a das fronteiras
grau de controlo da população dentro do imperiais que, até à década de sessenta, eram
território e da medida em que se influencia o todas soberanias ocidentais, com exceção
comportamento dopoderes exteriores. É fr
de outros
é difícil estabelecer uma fronteira entre as então irrelevante caso de Macau; depois a
12
duas realidades descolonização deu-lhe por fronteiras novos
países vizinhança; finalmente, depois de 1974,
Não é certo que antiga política da ficou com uma só fronteira geográfica, esta
canhoeira tenha dado inteiramente lugar à europeia. Mas aconteceu-lhe que a fronteira ao
política da negociação e do tolerável. Em mesmo tempo de foi multiplicando, num
todo caso, a primeira das legitimações processo sustentado que vinha de antes, e que

fora da esfera dos tratados, é da opinião teve a ver com os grandes espaços. Deste
modo, a fronteira de segurança passou a não
pública internacional, uma variável
coincidir com a geográfica, porque é a da
disputada pelas potências e pequenos
NATO em lonjuras mal sabidas pelo
estados. Continuando com Moreira,
contingente de conscritos; a fronteira
Adriano, (1922).
económica transferiu-se para as comunidades
europeias, submetendo a economia interna a
a internacionalização acelerada que marca o constrangimentos que não controla; a nova
ambiente e as dependências de todos os fronteira política anda a ser redefinida ... e a
agentes soberanos e não-soberanos, e que fronteira cultural teve um primeiro ensaio de
acentua progressivamente a condição exógena fixação com o Tratado que instituiu a
de grande número de pequenos países a Comunidade de Estados de Língua
tenderem para exíguos, confere indiscutível Portuguesa...
carácter de urgência e prioridade à temática O conceito de cidadania europeia, antes de ter
das relações internacionais, um facto evidente expressão normativa moldada em função do
institucionalismo da União, é uma versão da
12 Moreira, Adriano, Teoria das Relações cidadania mundial, uma regionalização
Internacionais - 7ª edição ( Manuais Universitários) apropriada da Declaração Universal dos
pág. 444, ISBN 978-972-40-4660-0 , Coimbra,
Direitos do Homem, uma participação ativa na
Novembro de 2011.

11
sociedade civil internacionalizada, algumas O ano de 2020 e o que já foi
vezes surpreendida por uma política furtiva dos vivido e é previsível viver em 2021,
executivos. .. a livre circulação pelo mundo, no
demonstra um mundo em crise
exercício do direito básico de estar, de andar,
acentuada, muito em particular, no caso
e de ir de um lugar para o outro, multiplicou as
da UE e dos EUA, com a China e a
minorias étnico-culturais, ao mesmo tempo que
Rússia. Vivem-se convulsões sociais,
o avanço na concepção das várias cidadanias
vai derrogando antigos conceitos excludentes, alterações na cartografia do mapa político,
defensores do jus saguinis, por vezes e até nas convenções e alianças entre
nacionalistas, algumas vezes xenófobos e estados, como desde o fim da Guerra
violentos. As categorias estão em mudança, e Fria, e em vários aspectos do fim da
recentemente Thomas Hammar falou no tragédia da II Guerra mundial não se tinha
denizen type como realidade situada entre o
conhecimento. Não saberemos tão cedo
cidadão e o estrangeiro, um compromisso que
até que ponto a saída da Inglaterra da EU
vai correspondendo às chamadas colónias
não resulta de uma abordagem
interiores que as imigrações vão criando,
estratégica em função dos realinhamentos
sobretudo por causado mercado de trabalho...
As responsabilidades do aparelho educativo em curso nas lideranças geopolíticas.
são hoje desafiadas não por uma ordem Nem, neste tempo mais próximo, qual a
mundial estabilizada, ... antes acontece que relação do controlo biopolítico em nome
da Nova Ordem apenas se sabe que acabou a da saúde pública que os estados
antiga, do Estado soberano tem notícia que ocidentais estão a exercer nas
está em crise, do globalismo vai recebendo populações com as redefinições das
manifestações desintegradas, das
lideranças geopolíticas. Neste mundo com
dependências e interdependencies mundiais
192 países em estados de
sabe que foram desencadeadas mas não as
13 desenvolvimento desiguais, as dinâmicas
sistematiza.”
de poder no combate pela supremacia

Conclusão geopolítica, entre a República Popular da


China e os Estudos Unidos da América,
As emoções desempenham um papel tão evocando razões de natureza imperativa
importante como a razão nas relações
sanitária “congelam” relações sociais e
internacionais. Teria sido mais fácil para os
económicas em grande parte dos países
Estados Unidos aceitar ascensão da China
União Europeia, dando curso a uma
enquanto potencia se esta fosse uma potência
guerra biopolítica em que a construção
democrática ocidental, em particular uma
14 das percepções das opiniões públicas é
camarada anglo-saxónica
uma variável que todos querem controlar.
de se estar a assistir a um exercício
maquiavélico de tentativa controlo das
13 Moreira, Adriano, Teoria das Relações opiniões públicas internacionais. Escreve
Internacionais - 7ª edição ( Manuais Universitários)
pág. 13, 230,231,232, ISBN 978-972-40-4660-0 , Mahbbani
Coimbra, Novembro de 2011.
14 Mahbbani, Kishore, A China Já Ganhou ? 1ª Para um observador externo, é
edição, Bertrand Editora, pág. 309 ISBN 978-972- manifestamente claro que a postura dos EUA
25-4090-2, Lisboa, Novembro de 2020

12
face à ascensão da China também é individualismo, num processo de auto
influenciada por profundas reações flagelação com dimensão de uma
emocionais. Tal como os seres humanos
investida psicanalítica colectiva, tende a
individuais têm dificuldade em desenterrar os
olhar o facto histórico da expansão
motivos inconscientes que impulsionam o seu
marítima e do império como processo
comportamento, também os países e as
catártico, atendo à afirmação de Portugal
civilizações têm dificuldade em desenterrar os
no quadro da Lusofonia, torna-se urgente
seus impulsos inconscientes. É um facto que o perigo amarelo tem perman
e necessário trabalhar enquanto matéria
O facto contemporâneo é que a cinematográfica esse período único da
China, um dos cinco membros nação portuguesa, a relevância da
permanentes do Conselho de Segurança expansão marítima portuguesa, e o papel
das Nações Unidas, é o único país que charneira de Portugal no que foi o
desde a Segunda Guerra Mundial não Renascimento Europeu.
participou em guerras no estrangeiro Este período, o da expansão
longe das suas fronteiras. portuguesa foi e é determinante para a
percepção da identidade construída.
É preciso esforço para negar 16
A Era Gâmica resulta de
Portugal enquanto país charneira no
decisão política e administrativa, foram
Renascimento. Portugal com a expansão
decisões em sede de soberania que
marítima foi o país da proto-globalização.
abriram novas rotas e um novos
É considerando a matriz civilizacional de
conhecimentos do mundo.
que resulta a comunidade Lusófona, e o
Portugal constrói a sua identidade
cinema enquanto dispositivo técnico
no quadro da relação com os outros
expressivo construtor de mundo-visões
povos e geografias e é nessa relação de
com capacidade de sedução e influência
aventura, comércio, religião, cultura, com
nos diferentes públicos, nacionais e
outros povos, e sempre na relação com a
internacionais, que a linha de estudos
alteridade que Portugal se olha e
culturais aplicados em cinema que
descobre a si próprio. Não é irrelevante o
convoca as relações internacionais é hoje
facto, que tende a ser esquecido, de que
em Portugal um caminho e uma
nenhum outro estado europeu deslocou a
necessidade. Esta linha de investigação
sua capital política e administrativa até ao
tem por missão produzir conhecimento
hemisfério Sul, até ao então denominado
que alavanque criticamente as decisões
Novo Mundo. Portugal teve a capital do
do poder político quanto às linhas de
Império na cidade do Rio de Janeiro.
apoio ao desenvolvimento da
Torna-se impossível negar que a
cinematografia portuguesa.
especificidade do lugar que Portugal
Num momento em que a espuma
ocupa, ou pode ocupar, no conjunto dos
dos dias e a cultura do híper
16 Expressão cunhada pelo historiador Arnold
15 Mahbbani, Kishore, A China Já Ganhou ? 1ª
Toynbee, que considera a chegada de Vasco da
edição, Bertrand Editora, pág. 309,310 ISBN 978- Gama à praia de Kappad, Índia, em maio de 1498, o
972-25-4090-2, Lisboa, Novembro de 2020 início da globalização.

13
17
190 países com assento na Assembleia do espaço.

Geral das Nações Unidas no mundo


contemporâneo, imana desta construção Reconhecida a facilidade do filme em
de identidade material e simbólica, com chegar a diferentes públicos sem surpresa
inicio ainda antes do Renascimento, mas se entende o seu papel, importância e
que é nesse tempo de redefinição social, articulação com a presença externa de
cultural, política, que a especificidade da Portugal. O lugar simbólico e imaterial que
nação portuguesa se afirma e nos Portugal transporta não é do domínio do
transporta até à Idade Moderna e este arqueológico, mas um gigantesco acervo
tempo de fim de ciclo da pós- patrimonial identitário vivo, atado por uma
modernidade. Desse longo percurso de língua falada por mais de duzentos e vinte
mais de meio milénio resulta um milhões de pessoas.
monumental acervo cultural próprio e Não se trata, nem nunca se
comum, com países e povos na Ásia, em tratou de unicidade cultural mas sim
África e na América do Sul. É Castells pluralidade e plasticidade gerada numa
quem escreve: matriz comum.
Olhando as políticas públicas
No que diz respeito aos atores sociais, concretas para a nossa cinematografia o
entendo por identidade o processo de lugar atribuído ao cinema nas relações de
construção do significado com base num externas de Portugal é diminuto, para não
atributo cultural, ou ainda um conjunto de dizer quase inexistente. Se é verdade que
atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual
nos sucessivos enquadramentos
(ais) prevalecem sobre outras formas de
conceptuais que configuram o espírito e
significado. ... as identidades são fontes mais
corpo material das sucessivas leis do
importantes de significados do que os papéis (
pai, professor, militante de esquerda ou direita, cinema surgem sempre como princípios e
jogador de futebol, estudante universitário, etc) objetivos a
, por causa do processo de autoconstrução e
individualização que envolvem. Em termos afirmação da identidade nacional, promoção
genéricos pode dizer-se que as identidades da língua e valorização da imagem de Portugal
organizam os significados, enquanto os papéis no mundo, em especial no que respeita ao
organizam as funções. aprofundamento das relações com os países
18
Defino significado como a identificação de língua oficial portuguesa
simbólica, por parte de um ator social, da
finalidade da ação praticada por esse ator. na sua operacionalização, quando dos
Também proponho que, para a maioria dos
regulamentos específicos como é o caso
atores na sociedade em rede, ...o significado
organiza-se em redor de uma identidade
17 Castells, Manuel (Coord.) 1997,2001, The
primária (uma identidade que estrutura as
Power of Identity, pág.3 edição Fundação Calouste
demais) auto sustentável ao longo do tempo e Gulbenkian, Lisboa 2007, ISBN 978-972-31-1194-1
18 Lei n.º 55/2012, Artigo 3º Princípios e objectivos
1. a) Diário da República , 1ª série - Nº 173 de 6 de
setembro de 2012

14
subprograma de apoio à coprodução com orientação política para as políticas
países de língua portuguesa, não os publicas de apoio à nossa cinematografia
realizadores portugueses estão impedidos fossem implementadas através dos
de serem realizadores, como os protocolos entre estados como é prática
montantes disponíveis são exíguos, em corrente, integrando a visão estratégica já
2020 o orçamento para o Coprodução desenhada pela RPC com a Rota da
com países de língua portuguesa teve o Seda, permitiria um salto gigante na
montante de € 500 000. E o montante atividade cinematográfica nacional. É fácil
para a Coprodução Internacional perceber que qualquer margem mínima
Minoritária Portuguesa teve atríbuido € 1 de sucesso à escala da China representa
200.00. Orçamentos e disposições um mega sucesso à escala nacional.
legislativas incapazes de promover o que Serão centenas, ou os canais de televisão
a lei geral indica como prioridade. É local com audiências próximas da
objectivo desta comunicação chamar uma totalidade da população portuguesa.
vez mais a atenção para esta realidade, Neste sentido fica uma pergunta, qual a
que também atende, às dinâmicas de racionalidade para 17 anos depois das
mercados em crescimento como é o caso determinações do governo central da
do mercado dos 1,4 mil milhões de República Popular da China que
potenciais consumidores na CHINA. Ou afirmaram Macau enquanto plataforma
em números globais os 270 milhões de para os negócios com a mundo da
falantes da língua portuguesa, a língua lusofonia, com a criação do Fórum
mais falada no hemisfério sul. Económico e Comercial de Macau, e
O que faz o Estado Português depois de visitas a Lisboa e a Pequim ao
perante as dinâmicas institucionais que a mais alto nível, Portugal não ter ainda
nova rota da seda oferece, ou pode acordado um protocolo de coprodução
oferecer, à coprodução cinematográfica com a China?
transnacional de matriz portuguesa?
Perante o imobilismo a que ano a pós ano Notas finais
se assiste fica a pergunta; é Portugal
soberano nas suas decisões de acordos e Para um pequeno Estado como Portugal o
parcerias institucionais internacionais cinema é um instrumento de diplomacia
bilaterais - acordos de coprodução? cultural, um ativo importante na dimensão
Se sim, a que se deve a falta de “Soft Power”
19
, acresce que além de
ação efetiva por parte do IPC ? dispositivo estético expressivo, de massa
Para o cinema português, a viver e de nicho, com capacidade de influência,
continuadamente em estado de necessário ao sucesso da diplomacia
sobrevivência, a abertura dos mercados económica, é o próprio cinema em
do Sudoeste Asiático - através da condições especificas, ele próprio um
República Popular da China, Macau, e
zonas de influencia -, caso essa 19 Ver Joseph Nye “Soft Power: The Means to
Success in World Politics” 2004

15
ativo económico. Para Portugal país em setting”, como atrás referido, que ocupa
processo de transição para as economias em permanência as televisões do mundo
digitais, em que o sector cinematográfico Ocidental, e em particular a Europa e os
tem “naturalmente” um alargado espaço EUA, insistam na defesa do status quo
territorial e cultural com público potencial ante, mobilizando as opiniões públicas
na ordem dos milhões, ter políticas ativas contra o “perigo chinês”.
assertivas e potenciadoras da atividade, é Para Portugal, o país que na
não só uma necessidade como um europa há mais tempo e de forma
imperativo. É esse o caso que se espera continuada tem relações com a China,
do cinema no desenvolvimento das não é certamente do interesse estratégico
relações de Portugal com a Região país, uma relação de tensão, que não
Administrativa Especial de Macau - favoreça a amizade e o comércio. A
República Popular da China. O caso entrada na terceira década do século XXI
concreto das correlações cinema - evidencia aos olhos do mundo, o
relações internacionais Portugal - Macau - desenvolvimento económico, político,
República Popular da China, pouco demográfico, e também militar, que a
estudado, parece levantar particulares República Popular da China tem vindo a
dificuldades neste tempo de transição de operar desde os anos 70 do século XX.
centros de poder, como os Hoje é impossível pensar o mundo sem
desenvolvimentos recentes - pós inicio da República Popular da China enquanto
pandemia Covid 19 - tem vindo a potencia influente na geopolítica. As
demonstrar. tensões sociais e políticas no mundo
Não é seguramente de forma contemporâneo são enormes e os
inocente que a opinião pública é equilíbrios instáveis. Desde 1944, e do
diariamente confrontada com uma visão equilíbrio de forças da “guerra fria”, que o
em que a RPC aparece como produtor do mundo não vive igual estado de
vírus; é o “vírus chinês” , assim fragilidade institucional internacional e
denominado durante um ano em doméstica. Veja-se as movimentações
telejornais de todo o mundo pela voz do sociais nos EUA com a população com
Presidente dos EUA Donald Trump, Ou a laços étnicos com África em fúria nas ruas
perigosa ditadura como é apresentado a das cidades, em Espanha e caso da
“democracia recusada” a Hong-Kong, ou autonomia de Barcelona, ou as
as questões da legitimidade territorial do movimentações sociais dos “gilets jeunes”
mar da china. em França, bem como os sucessivos
O ano de 2020 tem forte pedidos de “ impeachement “ a
probabilidade de ficar na história deste presidentes no Brasil ou as agitadas e já
século XXI como o ano em que - por referidas movimentações sociais em Hong
razão de um surto pandémico - o declínio - Kong. É enorme a fragilidade do direito
dos EUA enquanto potencia líder global internacional em diferentes zonas do
se tornou verificável, ainda que o “agenda globo, a ONU não consegue levar a cabo

16
com eficácia os programas do PNUD segunda década do século XXI tem vivido
(desenvolvimento e erradicação da momentos de explosões e conflitos
pobreza do mundo), e a UE assistiu à sociais quase sempre justificados com
saída da Grã- Bretanha. questões identitárias que remetem ao
domínio do “homem branco” e da Europa
Para um país como Portugal, e eurocêntrica e colonial, a um tempo que
para um sector de atividade como o nas suas estruturas de domínio
cinema, a explosão das audiências em hegemónico económicas e sociais é já
plataformas digitais é uma oportunidade , distante do contemporâneo, mas que é
se assim as políticas públicas para o trazido para as dinâmicas sócio-
sector o entenderem. O género identitárias nas grandes urbes
cinematográfico filmes históricos, ficção, contemporâneas, em Londres,
documentário, ou híbrido, com elevadas Washington ou Lisboa, como atual.
taxas de acolhimento em todos os grupos Veja-se em 2020 a vandalização
etários, e classes sociais, e com espaço no largo do Trindade em Lisboa da
de exibição nas novas plataformas de estátua do escritor, diplomata, padre da
exibição, continua uma área temática Companhia de Jesus, António Vieira (
20
cinematografia adormecida, quando não 1608-1697) , ou quando em a Câmara
expulsa logo em sede de secretaria nos Municipal de Lisboa, na praça do Império
concursos públicos no ICA. A anterior em frente do Mosteiro dos Jerónimos,
afirmação é infelizmente confirmada com decidiu apagar os brasões símbolos da
caso de uma produção de série e filme expansão e presença de Portugal mundo,
longa metragem - D. João VI , que em o que levou a uma petição pública
dois anos consecutivos é assim expulsa, assinado por desconhecidos, ex-
no caso no concurso para apoio à escrita presidentes da República, e SAR D.
e desenvolvimento. Duarte, com mais de 13 000 assinaturas .
Sem estímulos concretos e Este realidade, só por si, demonstra a
sólidos nos programas existentes para contemporaneidade e até a urgência e a
apoio cinema em Portugal, apesar do apetência de diversos públicos para
campo cada vez mais alargado de cinema de temática histórica cruzando
públicos possíveis nacionais e acontecimentos, geografias, culturas,
internacionais, e da relevância da narrativas que em muito constituem a
atividade para coesão e identidade da identidade de Portugal. Num tempo em
sociedade portuguesa, o sector tem que largos sectores da opinião publicada
afirmado uma vitalidade crescente na sua tem como programa a saída do Estado de
potencia, são centenas os novos vários sectores de atividade, e em que as
profissionais que todos os anos chegam
20 Ver “ Palavra e Utopia” 130 minutos, realização
ao mercado, com formação superior em
de Manuel de Oliveira , prémio especial do júri no
cinema e audiovisual. Potencia que não é festival de Veneza, e nomeado para o Leão de Ouro,
produção Gémini Films e RTP, coprodução
transformada em realidade. O fim desta Portugal, Brasil, França, Espanha, Itália, ano de
lançamento , 2000 .

17
subvenções públicas ao cinema são vistas Grilo, João Mário, O Homem Imaginado ,

como despesa, e onde o cinema é até cinema, ação, pensamento, 2006 Livros
Horizonte
olhado como atividade parasitária e sem
relevância para o desenvolvimento do Moreira, Adriano, Teoria das Relações
país, torna-se necessário fundamentar os Internacionais , 2011 , 7ª edição Almedina
argumentos que tornam evidentes não só
McQuail, Denis, Teoria da Comunicação de
a razoabilidade, mas também a
Massas, 2003 , Fundação Calouste
necessidade, da atividade cinematográfica
Gulbenkian
na afirmação de Portugal no mundo
contemporâneo. Também neste sentido Rancière, Jaques, Os Intervalos do Cinema,

importa enquadrar o sector enquanto 2012, Orfeu Negro

atividade relevante para o exercício Rancière, Jaques, Nas Margens do Político,


diplomacia cultural, braço necessário à 2014, KKYM
diplomacia económica. Considerando a
potencialidade de crescimento que o
sector cinematográfico português
continuamente manifesta, é espectável,
num horizonte de médio prazo, a atividade
ter retorno verificável nos mapas excel
dos dados contabilísticos. Por outro lado,
importa continuar a referir que o valor
intangível e simbólico do cinema com
capacidade de circulação internacional
num país de pequena dimensão como
Portugal, mas com fronteiras culturais em
todos os continentes, é não só muito
elevado como necessário.

Bibliografia

Areal, Leonor , Cinema Português, um país


imaginado Vol. 1 e Vol. 2, 2011, edições 70

Deleuze, Gilles , A Imagem - Movimento


Cinema 1, 2004 Assírio&Alvim

Deleuze, Gilees, A Imagem -Tempo Cinema 2


, 2015, Documenta

Lipovestsky, Gilles, Serroy, Jean , O Ecrã


Global, 2010, Edições 70

18

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