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rativas que condensam as afetividades mais não têm muito tempo para uma depuração
extremas dos seres humanos. sensível e categórica da criação artística.
Tudo o que existe de magnífico na realiza-
ção cinematográfica se deve, sobretudo, ao
2 A indústria e a vontade de
trabalho da memória e da imaginação cria-
eternidade tiva, e isso não tem nada a ver com os pro-
Ocorre que o cinema nasceu sob o signo in- tocolos comerciais, financeiros e mercado-
dustrial da reprodução e da serialidade, como lógicos. Quando a prioridade do cinema é
mostra Walter Benjamin, em seu estudo so- o lucro e a rentabilidade a experiência se
bre arte e reprodutibilidade [1936]. Não se torna pobreza. Reconhecemos os domingos
pode contemplar a aura do cinema sem as em festa e dias de glória passados com os
suas cópias. Há uma demanda importante super-heróis e as grandes estrelas no templo
pelas imagens e sons do cinema porque este sagrado do cinema. Mas sabemos que na in-
permite aos indivíduos sonharem acordados, dústria dos sonhos, estrategicamente é ela-
despertarem para a alteridade do mundo, ex- borado um repertório persuasivo de informa-
pandirem a consciência e ampliarem as por- ções, emoções e sentimentos prontos para se-
tas da percepção. As imagens extraordiná- rem consumidos pelas massas. Assim, desde
rias do cinema se comunicam com a dimen- as aventuras de Simbad, Flash Gordon e Tar-
são subterrânea do inconsciente coletivo, e zan até o ciclo interminável de subprodu-
assim acalenta os desejos mais profundos da tos como Superhomem, Batman, Matrix e
humanidade. O cinema vai longe no dom de Guerra nas Estrelas, temos esquemas pron-
iludir sobre a transcendência da morte. O tos e fórmulas de sucesso que “satisfazem” o
fascínio exercido pela sétima arte se justifica fantástico sonho de consumo das massas.
pelo fato desta arte excitar a imaginação dos Para o melhor e para o pior a produção
homens e das mulheres em torno do poder, em série gerou o kitsch (uma arte provisó-
beleza, amor e vontade de eternidade. ria, ornamental, de fácil assimilação), vista
A grande metáfora do cinema resplandece como “arte do banheiro ou arte da felici-
no filme A Rosa Púrpura do Cairo, mos- dade”, segundo Abraham Moles (1977), fun-
trando a necessidade diária do espírito hu- ciona como um modelo estético bastante pri-
mano de transcender a dura rotina do cotidi- vilegiado na sociedade de consumo. Porém,
ano. Os espectadores querem sempre mais, mesmo na arte kitsch há insights valiosos
e na aceleração dos seus tempos de trabalho para apreendermos o sentido das obras de
misturados aos tempos de lazer, desejam os arte tecnológica, incluindo as narrativas de
sonhos em quantidade e diversidade; ou seja, Hollywood, que respondem aos anseios dos
um tipo de exigência que casa bem com os leitores e espectadores informados pelos jor-
interesses mercadológicos da indústria cine- nais, cartazes publicitários, quadrinhos e te-
matográfica. levisão; o kitsch visa atender a expectativa
O ritmo industrial, a contabilidade e a ace- das platéias, em que a aceleração, velocidade
leração tecnológica, que caracteriza a grande e intensidade funcionam acionando valores
massa de produtos do cinema de Hollywood, estéticos, sensoriais e cognitivos.
Os desenhos de Walt Disney, o Mágico
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O cinema de Hollywood e a invenção da América 3
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4 Cláudio Paiva
alização do tema que transita pelas interfa- como as expressões étnicas, as minorias ide-
ces da mídia, sociedade, política e educação, ológicas, as redes de sociabilidade, as ações
mantendo conexões permanentes com a ética afirmativas e as modalidades de politização
e a estética. E, no que respeita especifica- do cotidiano. Tudo isso confere novos mati-
mente à pesquisa, há um repertório impor- zes ao campo das ciências da comunicação e
tante de trabalhos demonstrando as formas às relações entre o Brasil e os Estados Uni-
de dominação e resistência cultural, confe- dos, no que concerne à nova ordem econô-
rindo - de certo modo - uma marca à mo- mica, política e sócio-cultural, criando um
derna tradição da crítica brasileira e latino- campo de visibilidade e oralidade para con-
americana. Mas ao mesmo tempo, positiva- templarmos os estilos de interculturalidade
mente, no contexto da globalização cultural, tramados nos contextos locais (regionais) e
encontramos novas perspectivas mostrando globais (transnacionais).
como, durante o chamado “século ameri-
cano”, não cessaram de ser produzidas ima-
5 As telas e redes multiculturais
gens, sons e discursos reveladores das con-
tradições e paradoxos da maior sociedade de Buscamos um caminho diferente do habi-
consumo do planeta. Como um exercício de tual, invertendo a lógica assustada com a
psicanálise e antropologia da cultura, o ci- dominação imperialista norte-americana e o
nema tem o poder de revelar a estranheza, controle da sociedade pela indústria cultu-
a parte reprimida dos indivíduos e das soci- ral, procurando uma alternativa para driblar
edades, criando um campo propício para a o pensamento único que percebe a globali-
passagem por onde se comunicam o plano do zação como um processo cruel de desman-
desejo e o plano da representação; logo, o ci- telamento das culturas locais. Seguimos a
nema possui uma dimensão crítica e uma ou- premissa de que as noções de imperialismo
tra terapêutica, como sugeria Gilles Deleuze, e colonialismo precisam ser contrapostas e
em seus estudos sobre a filosofia e o cinema dialogizadas com as noções de multicultura-
(1983 e 1985). lismo, interculturalidade e pós-colonialismo.
Os estudos culturais em comunicação têm Na Europa e nos Estados Unidos, os descen-
revelado várias experiências geradas nas zo- dentes dos antigos colonizadores, migrantes,
nas fronteiriças entre o histórico e o ficcio- estrangeiros do mundo inteiro têm realizado
nal, o real e o virtual, o semiótico e o sim- uma complexa cartografia cultural, reterrito-
bólico. E o contexto da paisagem norte- rializando as experiências, os agenciamen-
americana constitui um lócus privilegiado, tos, as contratualidades simbólicas, promo-
pois estando no epicentro do capitalismo vendo associações multiétnicas e intercultu-
global, testemunha os encontros e as associ- rais. (Isso também acontece entre o Brasil
ações mais surpreendentes, cujo sentido afir- e Portugal, no que respeita à ficção televi-
mativo não pode ser negligenciado pelas cul- siva seriada, desde a exibição internacional
turas híbridas do planeta. Por este prisma de Gabriela até a transmutação de Os Maias
pode-se estimular a discussão dos problemas para os audiovisuais).
do pós-colonialismo, das mediações sociais, No interior dos processos culturais naci-
do local da cultura no contexto global, assim onais e regionais são articuladas novas mo-
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6 Cláudio Paiva
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O cinema de Hollywood e a invenção da América 7
ções criando oportunidades estéticas e poéti- ção estética e inteligência cognitiva, consci-
cas liberalizantes. Esta talvez seja a carac- ência crítica e incorporação de procedimen-
terística mais solene da arte tecnológica do tos éticos, além de instigar formas de catarse
cinema: flagrar o instante efêmero da cru- e transcendência no interior das experiências
eldade e trazê-lo como uma experiência de culturais nos diversos recortes locais das so-
choque para a proximidade intimista dos te- ciedades de consumo. Esta é uma das dimen-
lespectadores nos espaços e tempos do seu sões afirmativas, libertadoras e revolucioná-
conforto familiar. rias do cinema norte-americano.
Enfatizo o papel dos audiovisuais e espe- Cumpre declarar que esta apreciação do
cificamente do cinema americano, na medida cinema se faz, primeiramente, tendo em vista
em que este atua há mais de um século con- o momento em que se formam no Brasil (e
tribuindo na formação sensorial e crítica do na América Latina) uma cultura popular de
imaginário ocidental. De certo modo, o ci- massa irrigada pelo cinema e pela televisão,
nema de Hollywood atualiza o repertório das ou seja, durante os anos 50/60/70. E lança-
mitologias antigas; e aqui focalizo esta ex- mos uma mirada sobre a produção cinema-
periência como uma modalidade de reinven- tográfica, sublinhando os chamados clássi-
ção da América tanto pelos cineastas, direto- cos contemporâneos, mas também as peque-
res, artistas quanto pelos telespectadores dos nas obras que constituem - analogamente -
quatro cantos do mundo que reconstroem as uma espécie de “literatura menor” , como es-
suas identidades a partir dos homens e mu- creve Gilles Deleuze [1975], servindo, con-
lheres, metrópoles e cidadelas imaginadas tudo, de norteamento para os “exercícios do
no cinema. No trajeto dos meios às medi- ver”, numa sociedade como a brasileira se
ações (e vice-versa) configuram-se as inter- iniciando num processo de modernização in-
culturalidades, ou seja, as influências mú- dustrial e tecnológica. Assim, prosseguindo
tuas, reciprocidades, contágios e transversa- nos anos 80/90/00, percebemos como o ci-
lidades das culturas histórica, técnica, reli- nema se dissemina no planeta através das di-
giosa, musical, etc. Na era do turbocapi- ferentes modalidades discursivas, como apo-
talismo, com a aceleração dos fluxos inter- logia e paródia, mas também crítica e ironia
midiáticos e informacionais as redes e telas do “american way of life”.
funcionam também como dispositivos de in-
terculturalidade, colocando em relação dinâ-
8 O mel e o fel do cinema
mica os cinco continentes e suas especifici-
dades culturais locais. norte-americano
No conjunto mais amplo dos produtos de Houve uma vez em Hollywood o tempo forte
Hollywood, encontramos obras de arte que dos filmes musicais e dos dramas exube-
são importantes na formação das subjetivi- rantes, glamourosos como Casablanca (Mi-
dades e sociabilidades universais. Desde as chael Kurtz, 1942), Gilda (Charles Vidor,
origens até as realizações mais recentes, o ci- 1946), Cantando na Chuva (Gene Kelly,
nema propicia estilos de sonoridade e visibi- 1952), Sabrina (Billy Wilde, 1954), A
lidade que estabelecem a criação de comuni- um passo da eternidade (Fred Zinnemann,
dades afetivas, orientando modos de educa-
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8 Cláudio Paiva
1954), Suspiro de uma saudade (Henry dos republicanos e recrudescimento das mo-
King, 1955), Melodia Imortal (George Sid- ralidades puritanas. Nessa ambiência inume-
ney, 1956), Tarde demais para esquecer ráveis filmes comerciais e alternativos, inti-
(Leo MacCarey, 1957), Amor sublime Amor mistas e sensíveis como Por volta da Meia
(Robert Wise, 1961), Doutor Jivago (Davis Noite (Bertrand Tavernier, 1986), Bird (Clint
Lean, 1962). Constituem narrativas român- Eastwood, 1988), Sexo, mentiras e videotape
ticas, melodramas que permanecem no ima- (Steven Soderbergh, 1989) Fisher King, o
ginário de muitas gerações de cinéfilos e são pescador de ilusões (Terry Gilliam, 1991),
filmes premiados exaltando as paixões amo- Grand Canyon, ansiedades de uma gera-
rosas, mas, sobretudo, enaltecendo o ethos, a ção (Lawrence Kasan, 1991), Um dia de
ideologia e sonho americano. fúria (Joel Schumacher, 1993), Seis graus
Todavia, concomitantemente, a literatura, de separação (Fred Schepisi, 1993), Bas-
o teatro, as narrativas antigas inspiraram inú- quiat, Traços de uma vida (Julian Schnabel,
meras histórias que se tornaram célebres por 1996), Despedida em Las Vegas (Mike Fig-
seus matizes ácidos, insólitos, provocantes, gis, 1995), Felicidade (Todd Solondz, 1998),
como se espera da “grande arte”. Nesse filão O oposto do sexo (Don Roos, 1998), Alma
encontramos As vinhas da Ira (John Ford, de poeta, olhos de Sinatra (1998), Quero ser
1940), Crepúsculo dos Deuses (Billy Wil- John Malcovitch (Spike Jonzen, 1999), Pol-
der, 1950), A Malvada (Joseph Mankiewicz, lock (Ed Harris, 2000), As Horas (Stephen
1950), Uma rua chamada pecado (Elia Ka- Daldry, 2002), Brilho eterno de uma mente
zan, 1951), Gata em Teto de Zinco Quente sem lembranças (Michel Gondry, 2004).
(Richard Brooks, 1958), De repente, no úl- Estas são algumas obras que constituem
timo verão (Joseph Mankiewicz, 1959), O mergulhos subjetivos, decifrando as modula-
que aconteceu a Baby Jane? (Robert Al- ções da solidão, infortúnio, desencontro e in-
drich, 1962), Doce pássaro da juventude (Ri- comunicabilidade entre as pessoas. A cons-
chard Brooks, 1962), Lolita (Stanley Kubric, ciência do trágico cotidiano e a busca de saí-
1962), Quem tem medo de Virgínia Woolf ? das em tempos difíceis são a tônica princi-
(Mike Nichols, 1966), Julia (Fred Zinne- pal destas produções, que como expressão
mann, 1977). Tais obras consistem em re- da grande arte dramatiza as contingências
tratos cruéis da condição humana, projeções e dissabores humanos. São por vezes fil-
cruas do mal-estar civilizacional, exposição mes humorados, irônicos, sarcásticos que ir-
das atitudes extremas dos seres humanos, en- radiam - sobretudo - uma atmosfera de trans-
cenação explícita da complexidade e estra- cendência pelos canais da música, da pin-
nheza dos homens e mulheres diante das fi- tura, da literatura, da dramaturgia transmu-
guras do destino. tados na película cinematográfica. Muitos
Após a revolução sexual, rebeldia juve- deles são adaptações de obras literárias, uma
nil, fim do sonho e pós-orgia, o mal-estar boa parte representa expressões fortes do cir-
na pós-modernidade - que genericamente re- cuito alternativo, mas principalmente cons-
mete aos anos 80/90/00 - tem gerado outros tituem roteiros surpreendentes atravessados
desafios, novas sacadas dos cineastas face às pelas marcas da interculturalidade entre paí-
“nov(elh)as” ondas conservadoras, o retorno ses, regiões, estilos e tendências diferentes
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incluindo a moda, design, comportamentos e nema para as jovens gerações que - no Bra-
linguagens, e são importantes na medida em sil (e na América Latina) - cresceram sob a
que sinalizam o sentido da produção cultural égide de um regime autoritário e graças às
em suas diversidades locais e globais. imagens, sons e discursos libertários encon-
traram os canais para a catarse e a transcen-
dência da rotina de uma vida mecanizada.
9 Sonhos e pesadelos da América
Mais lisérgico, o filme The Doors (Oli-
Há um filme que define de certa forma um ver Stone, 1991), vai fundo num diagnóstico
balanço na contracultura do cinema: Hair das gerações que radicalizam as experiências
(Milos Forman, 1979) consiste numa expe- psicodélicas, expansão da consciência indi-
riência singular que traduz as formas do so- vidual com drogas, sexo e rock in roll, tendo
nho e do pesadelo americano, atraindo pla- como leitmotiv a vida e a carreira dionisiana
téias jovens do mundo inteiro. Trata-se de do cantor pop Jim Morrison, cujos exageros
um produto que se caracteriza por um prisma o levaram a uma morte prematura causada
de interculturalidade que aproxima as dife- por overdose. Aliás, a representação das tri-
rentes fronteiras culturais do Oriente e Oci- bos rebeldes, do grito das gerações roqueiras
dente, masculino e feminino, branco, negro, se mostra fulminante no filme A Rosa (Mark
amarelo; conjunção feliz entre a razão crítica Riddel, 1979), fixando o itinerário de Janis
e a imaginação criadora. Logo, dá exemplo Joplin, imortalizada nas telas por Bette Mi-
de como o cinema se debruça sobre o mul- dler. Assim o cinema de Hollywood se ins-
ticulturalismo, as hibridações e interpenetra- creve como algo mais do que uma mera “in-
ções de tendências aparentemente irreconci- dústria da consciência”. Em outras modula-
liáveis. Temos aqui os resíduos dos discur- ções a consciência musical norte-americana
sos animados pela utopia da liberdade. seria liberada em outros musicais como em
Hair transmite a assimilação de sensações O Fantasma do Paraíso (Brian de Palma,
que já tinham sido experimentadas no te- 1974), na ópera-rock Tommy (Ken Russel,
atro da Broadway (desde 1968), ganhando 1975) ou no film cult Pink Floyd, The Wall
força pelo investimento poético e musical (Alan Parker, 1982).
que agrega a sensibilidade das tribos urbanas Num outro registro, Sem Destino (Peter
no mundo inteiro. Mas lembramos que se Fonda) e Perdidos na Noite (John Schlesin-
instala num período histórico em processo de ger), ambos de 1969, já imprimiram em sua
crescente conservadorismo, descrito como a época, a natureza dos filmes insólitos; os
era Reagan, o início da globalização econô- seus personagens - em dupla - são outsiders,
mica e desmontagem dos discursos libertá- marginais, desviantes e significam uma esca-
rios e progressistas que se diluem num con- pada do estabelecido, da vida burguesa, das
texto fortemente mercadológico. Todavia, normas do status quo, virando do avesso a
malgrado as tonalidades irracionalistas, os imagem do sonho americano. Ambos desar-
matizes estetizantes do comportamento dio- ticulam a proposta narrativa do happy end,
nisiano das tribos rebeldes e a estandartiza- são obras de arte embaladas na filosofia dos
ção das utopias revolucionárias, Hair é im- “road movies”, expressando a tragédia das
portante como um “instante eterno” do ci- “bad trips”, como se não houvesse saída para
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10 Cláudio Paiva
os condicionamentos sócio-históricos e cul- que está em jogo é a busca das saídas in-
turais. dividuais: a gíria, a droga, o psicodelismo,
Sem Destino [Easy Rider] retrata um mer- o vestuário extravagante, o transe psicodé-
gulho na América profunda, denunciando o lico, a atitude cool atestam o aquecimento
puritanismo, o machismo, a misogenia, o de um grau de narcisismo que se espraia pe-
preconceito e o medo de tudo aquilo di- los grandes centros urbanos. A caçada hu-
ferente do habitual. Dois motoqueiros re- mana, a selva de pedra, o desencontro, a so-
fazem o itinerário dos beatnicks dos anos lidão, o desencantamento na periferia do pri-
50, lançando-se numa odisséia pelos espa- meiro mundo compõem um cenário insólito.
ços abertos dos Estados Unidos, movidos a Ali se representam a morte e vida dos out-
drogas e rock in roll (bem antes dos narco- siders num mundo industrial que se agigan-
doláres), mas -sobretudo- empenhados num tou, sem deixar lugar para os perdedores. A
processo de busca interior. Então, Sem Des- melodia pós-romântica entoando os itinerá-
tino é um filme que possui um sentido ex- rios solitários dos dois vagabundos, Ratso
tremamente místico, porque ali se inscreve (Dustin Hoffman) e Joe Buck (John Voght)
o desejo de transcendência à materialidade permanece na memória acústica dos espec-
que caracteriza estilo de vida americano. O tadores do mundo inteiro propiciando uma
final trágico, em que os motoqueiros são ba- sinergia que agrega os solitários do planeta.
leados na estrada pelos caipiras americanos A sua proeza está na carga simbólica que
hostis às imagens de liberdade encarnada pe- reúne universalmente as sensibilidades dis-
los dois hippies, é emblemático de uma era persas dos nômades de culturas distintas nas
em que o sonho de liberdade é destruído pela mais diversas partes do globo. Os cenários
intolerância de uma sociedade conservadora em ruínas da América são transmutados na
e violenta. No futuro, o retorno à estrada se estética efervescente da cultura pop: esta é
fará no filme Telma e Louise (Riddley Scott, a senha mais eficiente do filme permitindo
1991), trocando a dupla de rapazes por uma o gozo estético das gerações flutuantes entre
dupla de mulheres, numa fuga alucinada com o sonho americano e a rotina diária da vida
desfecho trágico, mostrando as dimensões da globalizada.
barbárie americana na era melancólica das
“fast food”.
10 As tribos rebeldes na praia de
Num cenário intensamente urbano e nar-
cisista, o filme Midnight Cowboy, estranha- Hollywood
mente traduzido no Brasil por Perdidos na O filme Woodstock (Michael Wadleight,
Noite, foi assistido no Brasil por platéias 1970) permanece no imaginário das gerações
numa fase de repressão sexual extrema que de jovens dos anos 60/70 porque permitiu
encontravam o seu alívio nas pornochancha- visualmente ao público mundial “pegar ca-
das. Mas os espectadores mais cult, dese- rona” na visibilidade e sonoridade de uma
josos de uma produção mais elaborada re- época historicamente fantástica. Woodstock
alizaram a sua catarse pelo viés da ética- representa a grande viagem para todos aque-
estética de o Midnight Cowboy. Como na les sujeitos cujo temperamento nômade pôde
maioria dos filmes de arte desse período, o
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O cinema de Hollywood e a invenção da América 11
se realizar mesmo sem sair da poltrona. En- estilhaços as geladeiras, aparelhos de televi-
tão, esteticamente é valioso pelo seu sen- são, automóveis e eletrodomésticos. Simbo-
tido iniciático, pelo arrebatamento do espí- licamente o cineasta italiano como cruel ico-
rito através das batidas e sonoridades eletrô- noclasta explode o sonho americano de con-
nicas do rock. Abre um campo enorme de sumo, atacando a quintessência da cultura de
possibilidade diante da realidade imaginada massa, ou seja, o objeto, a mercadoria. Ele,
pelos jovens centauros, pacifistas e guerri- como diria Marx, acerta no coração do feti-
lheiros. Hendrix, Baez, Cocker, Clapton, che ocidental moderno. As imagens lisérgi-
Daltrey, Dylan, Joplin, Moon, Santana e ou- cas de jovens desnudos que se agregam fisi-
tros encarnam o grito ancestral dos oprimi- camente nas áreas do deserto, como doces
dos: a musicalidade frenética no festival de bárbaros que declinam a ordem civilizató-
Woodstock consiste numa vibrante aparição ria realizam o choque intercultural: o olhar
do deus Dionísio na era eletrônica. Reúne europeu de Antonioni sobre a cultura norte-
numerosa galera: negros, latinos, mulheres, americana industrializada e mergulhada na
afroamericanos, outsiders preparando a sopa orgia dos objetos de consumo é cruel como
cósmica que vai nutrir o substrato multiét- os textos de Jean Baudrillard. A diferença
nico, interracial, polifônico e tribalista das está em que o cineasta encontra uma solução
Américas no século XX e XXI. Então, Wo- estética para o “drama ocidental”: niilista,
odstock é um filme que serve de referên- radical, ressentido, pessimista, transforma a
cia para se vislumbrar a anunciação das in- amargura diante do que vê como desolação
terculturalidades contemporâneas desde sua existencial em beleza estética da guerra aos
gênese estética e musical. A agonia e o objetos. Baudrillard também não deixa pe-
êxtase das grandes obras greco-latinas, es- dra sobre pedra em sua semiologia da Amé-
trangeiras, multisseculares retornam em fil- rica. Os simulacros e cópias do mundo real
mes como Woodstock, com potência total. resplandecem, para o sociólogo francês des-
Através das tecnologias recentes os musicais crevendo a América como a primeira soci-
aguçam a percepção e a inteligência coletiva edade pós-moderna do mundo (1998). De
pelo ritmo, poética musical e extrema visua- certo modo, refaz a impressão sarcástica de
lidade. Oscar Wilde, mostrando o trajeto histórico
dos Estados Unidos, da barbárie à decadên-
cia sem passar pela civilização. Mas a iro-
11 Estranhos e estrangeiros na
nia na experiência de ambos escritores é que
América são idolatrados no megaconsumo das cele-
Zabrinsky Point (Antonioni, 1970) consiste bridades intelectuais que encantam os ame-
numa película agressiva e estabelece uma ricanos.
iconicidade radicalmente subversiva do mito
da felicidade na sociedade industrial. An-
tonioni, convidado a fazer um filme sobre e
nos Estados Unidos, literalmente explode os
ícones norte-americanos, transformando em
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12 Cláudio Paiva
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O cinema de Hollywood e a invenção da América 13
Aluguel (1992), Pulp Fiction (1994), Kill Bill das narrativas cinematográficas por meio de
(2003 e 2004) e Sin City (2005). uma metalinguagem de grande força poética.
Desmitifica o sonho de Hollywood sem per-
der a ternura pelo cinema. Sem final feliz,
13 A Rosa Púrpura do Cotidiano
nem infeliz, a obra é pródiga pelo desvela-
O cinema de Wood Allen representa certa- mento da relação entre os seres urbanos e
mente o que há de mais “genuíno” na arte ci- suas próteses, suas imagens especulares na
nematográfica norte-americana com sotaque tela, na espessura de uma arte tecnológica
nova iorquino. Mas a sua relevância reside que ri das desesperanças. Ri da interpenetra-
antes pela ironia que caracteriza as narrativas ção estranha entre natureza, história de vida
do que pelo glamour da vida chique dos ha- e mitologia do cinema. Logo, A Rosa Púr-
bitantes de Manhattan. A sofisticação de lin- pura do Cairo persiste na imaginação urbana
guagem de Allen é provocante pelo pastiche ocidental pela execução de um projeto esté-
em que se misturam as culturas judaica, lite- tico que radicaliza a representação dos se-
rária, psicanalítica, esotérica e musical num res humanos e seus duplos na corporeidade
embaralhamento que serve de estofo para a simulada pela arte cinematográfica. A me-
sátira social do comportamento das classes talinguagem poética do cinema em A rosa
médias, suas paixões, seus fetiches e suas Púrpura possui o seu equivalente em ou-
neuroses. Os espectadores dos filmes de Al- tro filme, que homenageia A Era do rádio
len se vêem com um perfil semelhante aos (1987), resgatando imagens e sons dos tem-
seres urbanos de Nova Iorque, Londres, Pa- pos da grande guerra mundial, os grandes
ris, Tóquio ou S. Paulo. Ou seja, Allen res- salões, as celebridades, a penetração exótica
ponde às expectativas e inquietações da sen- dos idiomas, cancioneiros e estilos estrangei-
sibilidade do homem das multidões, solitário ros (como o da brasileira Carmem Miranda),
e cultivado pelas emanações dos seres imagi- além da hibridação bem sucedida do radio
nários do cinema. A Rosa Púrpura do Cairo com dramaturgia e os musicais formidáveis
(1985) é sagaz ao conceder vida ao simula- que se irradiaram nos anos 30/40.
cro, aos personagens de ficção, à mitologia Sobretudo, A rosa púrpura traz à discus-
das celebridades, ao sonho de transcendên- são o aspecto fundamental das intertextuali-
cia na experiência efêmera da atividade de dades e interpenetrações das mídias, revigo-
consumo. rando o tema da grande ilusão do cinema,
O filme é importante porque o autor ali ra- as relações entre a ficcionalidade e a vida
dicaliza a beleza do mito cinematográfico em cotidiana; aliás, retomando a temática das
sua banalidade, mostrando um espelho do es- ilusões, dos mitos e da vida real ficcionali-
pectador extasiado diante da sua própria mi- zada, Wood Allen tocará nos nervos do “sys-
tologia, que sai da tela, encarnando o amor, tem star”, da sociedade do espetáculo, em
mas também o Mefisto que lhe oferece uma Celebridade (1988), algo que já teria feito
existência artificial e maravilhosa e lhe con- como paródia na arte pop de Noivo Neuró-
vida para ingressar literalmente na realidade tico, noiva nervosa (1977), carnavalizando o
forjada pelo cinema. teórico McLuhan como celebridade intelec-
O cineasta desmonta a aura romântica tual.
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14 Cláudio Paiva
14 Agonia e êxtase de uma vida tas que assegura uma fantástica audiência. É
mentirosa um exemplo de Hollywood com filtro em ní-
vel contra-ideológico, desvendando as ner-
A recepção no Brasil de um filme como O vuras da relação íntima entre o mundo real
Show de Truman (Peter Weir, 1998), deve e o mundo imaginado dos audiovisuais. O
ser compreendida no amplo contexto dos Re- filme alerta astuciosamente para alguns de-
ality Shows (No Limite, Big Brother, Casa talhes da relação entre a realidade imaginada
dos Artistas), no início das experiências afe- pelos audiovisuais, as grandes possibilidades
tivas e sexuais pela Internet e num ambiente de escolha, as tomadas de decisão diante das
que, passo a passo, evidencia a proliferação ilusões mais promissoras.
das câmeras de vigilância. O filme perfor-
matiza uma endoscopia da vida americana e
o êxtase social face ao fenômeno midiático- 15 O cinema abrindo as portas
tecnológico. É um filme soft que desvela da cibercultura
com ritmo e elegância o kitsch americano
Há várias linhas possíveis para resumir a ló-
atravessado por um sistema de controle do
gica de sentido de um filme como Blade
imaginário, pela ficcionalização radical da
Runner, O Caçador de Andróides (Ridley
vida cotidiana. É o universo da tela total de-
Scott, 1982). A primeira remete o arqué-
nunciada por Jean Baudrillard (1997), como
tipo universal do replicante, aquele que se re-
assédio, ocupação e anulação das liberdades
cusa a morrer, atualizando uma pulsão vital
individuais através dos dispositivos midiáti-
da existência do ser em quaisquer circuns-
cos. Tem semelhança com o filme Video-
tâncias espaciais ou temporais. A segunda
drome (David Croenberg, 1983): só que este
indica a perplexidade dos humanos diante de
se caracteriza por uma violência extrema,
um mundo caótico e sombrio que não se re-
brutal e sangrenta em que o aparelho de te-
alizou como promessa de felicidade. A ter-
levisão dispara com arma de fogo contra o
ceira leva a uma interpretação agônica do Ser
telespectador. Em “...Truman”, a existên-
em sua contingência de nomadismo, muta-
cia do personagem é roubada, recriada arti-
ção e finitude, mas terrivelmente assustado
ficialmente em laboratório, os seres que pri-
diante da experiência da clonagem humana.
vam de sua privacidade são atores contrata-
A celebração do filme na iconologia clás-
dos, o seu amor é inventado por uma cor-
sica da cultura midiática se deve à exaltação
poração anônima. Mas é um filme, light,
dark de uma cultura high-tech de fim de mi-
os procedimentos de controle são sinistros,
lênio, entediada no cotidiano multicultural
mas calmos, serenos e tranqüilos. É perspi-
das tribos sobreviventes. Mas se deve, so-
caz também centrando o foco narrativo so-
bretudo, à temática dos cyborgs que domi-
bre o cotidiano dos cidadãos-telespectadores
nará grande parte da representação artístico-
vivendo a ficcionalidade de um personagem
midiática do século XXI. Visão, som e fúria
real pré-fabricado. Então, desta forma Tru-
comporão o tema dominante no universo in-
man consiste num espelho da sociedade atual
tersemiótico das artes audiovisuais, respon-
nas Américas, na Europa, nas culturas glo-
dendo ao êxtase e ao mal-estar da civili-
balizadas do mundo inteiro, e é junto a es-
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O cinema de Hollywood e a invenção da América 15
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