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Texto não-verbal

Quando se fala em texto ou linguagem, normalmente se pen­


sa em texto e linguagem verbais, ou seja, naquela capacidade hum a­
na ligada ao pensamento que se concretiza num a determinada língua
e se manifesta por palavras (verbum, em latim).
Quando se fala em texto ou linguagem, normalmente se pen-sa em texto e lin
Mas, além dessa, há outras formas de linguagem, como a pintu­
ra, a mímica, a dança, a música e outras mais. Com efeito, por
meio dessas atividades, o homem também representa o m undo, ex­
prime seu pensamento, comunica-se e influencia os outros. Tanto a
linguagem verbal quanto as linguagens não-verbais expressam senti­
dos e, para isso, utilizam-se de signos, com a diferença de que, na
primeira, os signos são constituídos dos sons da língua (por exemplo,
mesa, fada, árvore), ao passo que nas outras exploram-se outros sig­
nos, como as formas, a cor, os gestos, os sons musicais, etc.

Em todos os tipos de linguagem, os signos são combinados en­


tre si, de acordo com certas leis, obedecendo a mecanismos de orga­
nização.

Em bora o objetivo deste livro seja o estudo da linguagem ver­


bal, não deixa de ser útil reservar uma lição para tratar, em linhas
gerais, das semelhanças e diferenças existentes entre este tipo de lin­
guagem e os outros. Vamos destacar sobretudo as semelhanças e de­
m onstrar que muitos processos da linguagem verbal encontram cor­
respondência em linguagens não-verbais. Em bora essa correspondên­
cia não seja absoluta e um mesmo tipo de mecanismo assuma con­
tornos específicos em cada tipo de linguagem, muitos dos processos
estudados neste livro podem ajudar a compreender e analisar prod u­
tos (ou textos) da linguagem não-verbal.

Semelhanças e diferenças
Uma diferença muito nítida vamos encontrar no fato de que a
linguagem verbal é linear. Isto quer dizer que seus signos e os sons
que a constituem não se superpõem mas se sucedem destacadamen-
te um depois do outro no tempo da fala ou no espaço da linha escri-

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ta. Em o u tra s pa la vra s, cada signo e cada som são usados num mo
m e nto distinto do o u tro . E ssa característica pode ser observada em
qualquer tipo de enunciado lingüístico, como neste verso de Drummonde:
T / e / u / s o m / b / r / o / s s / u / p / o / r / t / a m o /m / u n /d / o .

Na linguagem n ã o -v e rb a l, ao c o n trá rio , vários signos podem


ocorrer sim ultaneam ente.

Se, na linguagem verbal, é impossível conceber u m a p alavra em


c a valad a em o u tra , na p in tu ra , p o r exemplo, várias figuras ocorrem
sim ulta n e am e n te . Q u a n d o co n te m p la m o s um q u a d ro , captam os dc
m a n e ira im ed iata a to ta lid a d e de seus elementos e, depois, po r um
processo analítico, po d e m o s ir d e c o m p o n d o essa totalidad e.

O texto n ão-verbal p o d e , em princípio, ser considerado d o m i­


n a n te m e n te descritivo, pois representa u m a realidade singular e con­
creta, n u m p o n to estático do tem po . U m a foto, por exemplo, de
um h o m e m de capa p reta e chapéu, com a m ão na m a ç a n e ta de
u m a p o r ta é descritiva, pois ca p ta um estado isolado e não u m a tr a n s ­
fo rm a ç ão de esta d o , típica da narrativa.

M as p o d e m o s o rg a n iz ar u m a seqüência de fotos em progressão


n a rra tiv a , p o r exem plo, assim:

a) foto de um h o m e m com a m ão na m a ça n e ta da porta;

b) foto da p o rta sem i-aberta com o m esm o h om em espreitando o in­


te rior de um aposento;

c) foto de u m a m ulher d eitad a na cam a, gritando com desespero.

C o m o nessa seqüência se relata u m a tra n sfo rm a ç ão de estados


que se sucedem p ro gressiv am ente, configura-se a n a rra ç ã o e não a
descrição. Essa disposição de imagens em progressão constitui re c u r­
so básico das histórias em q u a d rin h o , fotonovelas, cinema, etc.

S o b re tu d o com relação à fotografia, ao cinema ou à televisão,


pode-se p en sa r que o texto não-v erb al seja um a cópia fiel da realida­
de. T a m b é m essa im pressão não é verdadeira. P a ra citar o exemplo
da fotografia, o fo tógrafo dispõe de m u itos expedientes p a ra alterar
a realidade: o j o g o de luz, o ângulo, o e n q u a d r a m e n to , etc.

A e sta tu ra do indivíduo p od e ser alterada pelo ângulo de to m a ­


da da câm era, um ovo p ode virar u m a esfera, um rosto ilum inado
pode passar im pressão de alegria, o m esm o rosto, som b rio , pode
dar im pressão de tristeza. M esm o o texto não-verbal, recria e t r a n s ­
fo rm a a realidade segundo a concepção de quem o prod uz. Nele,
há u m a simulação da realidade, que cria um efeito de verdade.

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Os textos verbais podem ser figurativos (aqueles que reprodu­
zem elementos concretos, produzindo um efeito de realidade) e não-
-figurativos (aqueles que exploram temas abstratos). Também os tex­
tos não-verbais podem ser dominantemente figurativos (as fotos, a
escultura clássica) ou não-figurativos e abstratos. Neste caso, não
pretendem simular elementos do m undo real (pintura abstrata com
oposições de cores, luz e sombra; esculturas modernas com seus j o ­
gos de formas e volumes).

Como ler um texto não-verbal?


A leitura de textos não-verbais exige muitas competências, das
quais não é possível tratar num a só lição. Entretanto, como disse­
mos, muitos conceitos que aprendemos ao longo deste livro podem
ajudar a compreensão desse tipo de texto; por exemplo, os concei­
tos de figuras, temas, reiteração de traços semânticos, estrutura fun­
damental, estrutura narrativa, denotação, conotação, metáfora, me-
tonímia, etc.
Vamos dem onstrar a utilidade de alguns desses conceitos, explo­
rando-os na análise de casos concretos de linguagem não-verbal.
Os conceitos de tema e figura são úteis para analisar, por exem­
plo, fotos, quadrinhos, novelas, filmes.
Como um filme pode passar para o espectador temas abstratos,
como a despersonalização do operário, por exemplo? Charles Cha-
plin, no filme Tempos modernos, usou figuras expressivas e simples
para exprimir esse tema: projetou na tela um rebanho de carneiros
em filas compactas e, logo a seguir, um grande número de operá­
rios a caminho da fábrica na mesma disposição dos carneiros. As fi­
guras são claramente alusivas ao tema da despersonalização, da per­
da da individualidade, da desumanização do homem num mundo
de máquinas. Ao confrontar operários e carneiros, usou ainda um
recurso muito comum da linguagem verbal, a metáfora, e transferiu
para o conjunto hum ano a conotação desairosa que culturalmente
é evocada pela figura dos carneiros.
Todo o Brasil assistiu à novela Roque Santeiro, de Dias G o­
mes, que, através do relato de acontecimentos que ocorrem na pe­
quena cidade de Asa Branca, figurativiza muitos temas da realida­
de brasileira. Nesse pequeno cenário de província, que é a figura
do próprio Brasil, aparecem várias outras figuras: o padre velho
que ainda usa batina figurativiza a igreja tradicional; o padre jovem
que u sajeans figurativiza a nova igreja; Sinhozinho Malta, podero­
so e rico coronel, figurativiza o poder econômico; o Prefeito Florin­
do Abelha figurativiza a submissão da política ao poder econômico.

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Assim, quase todos os personagens concretizam um tema da reali
de nacional.

Toda novela é um texto narrativo onde aparecem as fases dl


seqüência narrativa: a manipulação, a competência, a performance.
a sanção. Na mesma novela a que nos referimos, quando o novo
prom otor, manipulado pela consciência do dever, para instaurar n
justiça, faz o delegado intimar Sinhozinho Malta a depor e este exe­
cuta a tarefa baseado na competência que lhe confere a lei, o promo
tor recebe a sanção positiva de todo o povo, que quer ver a justiçi
cumprida.

O cinema, o teatro e a televisão são linguagens complexas que


exploram, simultaneamente, várias formas de linguagem (a verbal
na fala dos personagens, a música, as imagens, etc). Neste caso, to­
das as linguagens devem concorrer harmoniosamente para expressar
o mesmo sentido.

Num a das cenas da novela citada, Padre Hipólito, o velho vigá­


rio tradicional, tom a consciência de que colaborou com os interes­
ses econômicos, por ter ajudado a ocultar a notícia de que Roque
Santeiro estava vivo e de que não era santo milagreiro como acredi­
tava o povo ingênuo. Arrependido do seu pecado, vai confessar-se
com o jovem e progressista Padre Albano.

Todos os componentes dessa cena foram cuidadosamente m on­


tados: o velho padre cai de joelhos diante do padre moço e, choran­
do, confessa seu pecado. Este pronuncia a fórmula de absolvição
("eu te absolvo de teus pecados em nome do Pai e do Filho e do Es­
pírito S anto"). A câmera focaliza o velho padre de cima para bai­
xo, o que o torna pequeno e faz o contrário com o padre moço, en­
grandecendo-o. As figuras do texto verbal (declaração do pecado
x palavras de absolvição) e do texto visual (de joelhos x de pé;
de batina x de jeans; velho x moço; choro e mão no rosto x mão
erguida para absolver), os recursos de angulação e enquadramento
(câmera de cima para baixo x de baixo para cima), tudo concorre
coerentemente para exprimir o tema de uma velha Igreja, conivente
com os poderosos, que pede perdão a uma nova Igreja, que está
do lado dos pobres.

É evidente que nem todos os mecanismos da linguagem verbal


se aplicam aos textos não-verbais.
A linguagem não-verbal não explora obviamente os recursos fô­
nicos próprios da linguagem verbal tais como aliterações, rima, rit­
mo, assonância. Num texto não-verbal, como os signos são de outra
natureza, vamos encontrar oposições de cores, formas (linhas retas
x linhas curvas; horizontais x verticais), oposições de luz e sombra, etc.

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A título de ilustração, pode-se imaginar um filme cujo tema se­
ja a oposição entre a tristeza e a depressão da velhice x a alegria e
a euforia da infância. O cineasta pode escolher a oposição de cor en­
tre cenas para reforçar o contraste. Assim, todas as cenas que se re­
ferem à velhice são sombrias, com baixa iluminação; as cenas da in­
fância são claras e carregadas de luz. Nesse caso, o contraste entre
claro e escuro, que pertence ao plano da expressão, foi explorado
para manifestar as noções de alegria x tristeza, que pertencem ao
plano do conteúdo.

Assim como a linguagem verbal, a não-verbal tem uma sinta­


xe, uma morfologia e um léxico. No entanto, a sintaxe, a morfolo-
gia e o léxico de cada linguagem têm suas peculiaridades.

Num texto de história em quadrinhos, por exemplo, o discur­


so direto é indicado por um balãozinho dotado de um apêndice que
aponta para o personagem que está falando; se esse apêndice é cons­
tituído por uma série de bolinhas, é sinal de que ele está pensando
e não falando. Esses recursos podem ser considerados como uma
morfologia própria da história em quadrinhos.

No cinema, a montagem (combinação organizada das cenas)


constitui uma verdadeira sintaxe dessa linguagem.

Segundo essa sintaxe, o diretor combina as imagens para obter


um certo significado: pode, por exemplo, opor uma cena de um
mendigo catando restos do lixo a outra em que um rato revira os de­
tritos de uma lata. O significado dessa montagem é claro: o homem
reduzido à condição de rato.

Exemplo clássico de montagem vem ilustrado no filme O encou-


raçado Potemkin, de S. M. Eisenstein, célebre cineasta soviético.

Os soldados do czar descem uma escada em passo de parada


militar, de baionetas caladas, atirando nos revoltosos e na popula­
ção em geral. Eisenstein cortou a seqüência em dezenas de partes e
juntou-as numa outra ordem: pernas e botas de soldados, gente es­
magada, a mãe abatida por uma bala, o carrinho do bebê descen­
do desgovernado escada abaixo. Todas essas imagens, numa ordem
aparentemente ilógica, revelam o caos e a tragédia do acontecimento.

P ara concluir esta lição, vamos destacar que, assim como exis­
tem mecanismos para montar um texto verbal e organizar seus signi­
ficados, existem mecanismos para montar textos não-verbais. M u i­
tos desses mecanismos são comuns a ambos os tipos de textos, mas
não todos.

Como se aprende a ler um texto verbal, também se pode apren­


der a ler um texto não-verbal.

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