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CONTRIBUIÇÃO DA ANCILLA NARRATIONIS AOS TEXTOS LITERÁRIOS

Rommel dos Santos Andrade Werneck1

Resumo:

Este artigo analisa a contribuição da descrição enquanto tipologia textual nos três
gêneros literários aristotélicos: narrativo, lírico e dramático. Apresenta-se a estrutura
da descrição na literatura, suas causas e consequências tomando como exemplos
romances, poemas e textos teatrais. Notamos a importância e essencialidade que a
descrição provoca nas obras literárias.

Palavras-chave: Descrição. Tipologia textual. Literatura. Caracterização. Análise


Literária. Estrutura Textual. Criação Literária. Teoria Literária. Ancilla Narrationis.

PONTO DE PARTIDA

Disse Pablo Picasso que “a arte é uma mentira que nos habilita a perceber a
verdade.” Fazer Literatura é produzir a arte da palavra de sua época. Poetas
cantaram suas dores e a dor de seu tempo; contadores narraram histórias que
continham valores; atores representaram emoções que não eram só do dramaturgo
mas também de uma era.

E do ponto de vista estrutural isso se consegue selecionando palavras, modo


de articulá-las e efeitos desejados. Estamos certos de que não se pode desvincular
a arte literária do processo linguístico para confeccioná-la. Faz-se mister nos dias de

1
Professor de Língua Portuguesa na Prefeitura Municipal de Santo André. Fundador e Diretor do
Picnic Vitoriano São Paulo, clube revivalista e de Living History na cidade de São Paulo. Graduado em
Letras (Português/ Inglês) pelo Centro Universitário Paulistano. Universidade Metodista de São
Paulo. Pós Graduando em Língua Inglesa. E-mail: rommel_dickens@hotmail.com
hoje relembrar leitores, escritores, docentes e discentes da importância da dita
transpiração na produção de um texto. Este artigo objetiva estudar a relevância da
descrição e o modo como ela se manifesta na atividade literária. Como ocorre a
modalidade descritiva no conto? Como isso acontece nas poesias? Seria possível
encontrar o tipo descritivo nas peças teatrais? Ao fim do presente trabalho
espera-se que tais perguntas tenham sido respondidas.

Ainda que alguns considerem as descrições desnecessárias, chatas e


maçantes, contemplaremos os seus usos fundamental, decorativo e estratégico em
muitos textos de diferentes gêneros. Aqui estão considerações estruturais,
conceituais e opinativas acerca da presença tão mercante dessa tipologia na
Literatura oferecendo novas perspectivas.

1. TIPOLOGIA TEXTUAL

Todo texto tem uma função, apresenta uma estrutura e uma intenção ao ser
confeccionado. E é baseado nessas particularidades que podemos classificar os
textos em tipos. Primeiramente, convém separar o assunto tipologia textual de
gêneros textuais para facilitar a atividade docente na linguística textual como elucida
Silva.

Cristalizou-se ensinar tipologia textual como modalidades escritas e orais que


apresentam estruturas particulares. Werlich apud Trosborg idealiza os tipos ou
modos textuais em: descrição, narração, exposição, argumentação e instrução. Em
uma metodologia primária temos a tipologia textual. Muitos livros didáticos apontam
três grandes tipos: narrativo, descritivo e dissertativo e, às vezes, o tipo instrucional.
E a isso Ferenčík nomeia de classificação estratégica enquanto Bonini prefere
sequências textuais.
Numa segunda abordagem podemos verificar as características das
modalidades aplicadas em formatos diferentes. O tipo narrativo, por exemplo,
oferece relatos de acontecimentos, essa é uma modalidade escrita, mas como essa
modalidade se apresenta no cotidiano? Como uma notícia? Em forma de um conto?
Em um diário ou talvez numa fofoca? Essa classificação secundária é o gênero
textual. Uma fofoca é um gênero textual em que a modalidade narrativa predomina
quando se conta as ações das personagens, mas também pode ter caracterizações,
isto é, a modalidade descritiva. E ainda quem narra a fofoca pode argumentar contra
ou a favor do acontecimento emitindo sua opinião, revelando outro tipo textual: a
dissertação. Travaglia apud Silva denomina de conjugação tipológica a mescla de
tipos textuais. Sendo assim, enxergamos a fofoca como um gênero textual que
apresenta tipos textuais.

2. DESCRIÇÃO: CONCEITUAÇÃO E ESTRUTURA

A descrição é uma modalidade textual cujo principal objetivo é caracterizar, isto


é, apresentar detalhes de uma pessoa, paisagem, animal, cidade, artefato,
sentimento e qualquer outra coisa que possa ser retratada. O site Origem da Palavra
aponta a palavra como proveniente da língua latina “descriptio, ‘representação de
algo, cópia”, de describere e “transcrever, contar, esboçar”, formada por de-, “para
fora”, mais scribere, “escrever”. Portanto, etimologicamente o tipo textual em debate
está muito ligado à escrita ainda que também ocorra na oralidade.

O minidicionário Caldas Aulete aponta outro conceito: “ter trajetória ou


movimento em forma de: A bola descreveu uma curva”, o que favorece mais ainda a
ideia de que os tipos textuais costumam vir mesclados nas redações e no presente
exemplo é nítida a fusão do tipo narrativo com a descrição. Mesmo assim é
conveniente compreender a diferença entre as duas modalidades conforme Olegário
Paz elucida: “Distingue-se [...] da narração, uma vez que o referente não é o relato
de uma acção ou de acções articuladas, situadas no tempo, não conta uma história.”

Se a palavra descrição tem em sua origem a palavra escrever e seu conceito


abrange também uma trajetória, é possível estabelecer uma relação entre a
modalidade descritiva e a arte de escrever. A transcrição de características de um
objeto contribui para a confecção de poesias, peças teatrais, romances, contos,
crônicas e outros textos literários. É a descrição que oferece ao leitor um
detalhamento acerca das personagens, cenários, figurinos, sentimentos, ambientes
e situações sendo o escritor o responsável por omitir esse ou aquele detalhe, revelar
o que julga interessante, daí a contribuição da descrição à Literatura.

Assim como a tipologia textual, a modalidade descritiva também possui suas


etiquetas. Denomina-se estática a descrição em que não há movimento e
predominam os verbos de ligação e predicativos. Tomemos como exemplo o
seguinte fragmento da sequentia Stabat Mater: “Stabat mater dolorosa/ juxta Crucem
lacrimosa,/ dum pendebat Filius”. Já a atividade descritiva dinâmica apresenta
movimentação e verbos nocionais tornando-se muito próxima da atividade narrativa
conforme observamos nesse trecho de Bom Crioulo:

Por fim apareceu o comandante abotoando a luva branca de camurça, teso na sua farda
nova, o ar autoritário, solta a espada num abandono elegante, as dragonas tremulando sobre
os ombros em cachos de ouro, todo ele comunicando respeito. (CAMINHA, 1895: 4)

Além de narrar as ações do comandante são reveladas características físicas,


psicológicas e da indumentária, por isso é impossível separar a descrição do tipo
narrativo ou de qualquer outro tipo textual. E por isso, Paz chama a descrição
dinâmica de descrição narrativa. Travaglia aponta que até o momento ainda não se
encontra nenhum gênero textual unicamente descritivo. Essa relação entre tipologias
narrativa e descritiva serão abordadas posteriormente.

Descrever requer observar. O trabalho de observação se antepõe à


modalidade descritiva. Na literatura, o observador é mais que um observador, é um
artista e como afirma Wilde no prefácio de seu romance mais conhecido, “o artista é
o criador de coisas bonitas. Revelar arte e esconder o artista é o alvo da arte.”
Então, o observador deve perceber os cinco sentidos, selecionar o que julga
relevante e então escrever/ falar. Conforme Shaw, a descrição é um modo do
discurso que revela como algo impressiona os sentidos. Shaw afirma a dependência
da profundidade e riqueza da atividade descritiva da observação já que alguns
escritores retratam impressões visuais, por exemplo, ao passo que outros focalizam
em reproduções tácteis, paliativas, olfativas ou sonoras. Dias chama essas
reproduções de dados descritivos e elucida que os dados acerca de algo são um
reflexo da seleção feita pelo observador. Analisemos os cinco sentidos.

A visão talvez seja o sentido que mais se destaca. Bearzoti Filho considera
importante o uso de cores na descrição para que ela seja viva, chamativa e
interessante e atraia o leitor. O autor também estabelece uma conexão entre cores e
emoções indicando que as cores vivas representam as emoções alegres e um
quadro pálido apresenta, por sua vez, emoções neutras etc. Analisemos dois
fragmentos de Oscar Wilde, escritor altamente descritivo:

SALOMÉ: [...] É pela tua boca que estou apaixonada, Iokanan. A tua boca é como uma fita de
escarlate sobre uma torre de marfim. É como uma romã cortada por uma faca de marfim. As
flores da romãzeira, que florescem nos jardins de Tiro e que são mais vermelhas do que as
rosas, não são tão vermelhas. Os rubros gritos das trombetas que anunciam a chegada dos
reis, e metem medo ao inimigo, não são tão rubros. A tua boca é mais vermelha do que os
pés daqueles que pisam as uvas nos lagares. É mais vermelha do que os pés daquele que
volta de uma floresta onde matou um leão e viu tigres dourados. A tua boca é como um ramo
de coral achado pelos pescadores no crepúsculo marinho e guardado para os reis...! É como
o vermelhão encontrado pelos moabitas nas minas de Moab e tomado pelos reis. É como o
arco do rei dos persas, pintado de vermelhão e com cornos de coral. Não há nada no mundo
tão vermelho como a tua boca... Deixa-me beijar a tua boca.[WILDE]

A fala da personagem-título de Salomé apresenta a cor vermelha desdobrada


em várias imagens que poderiam até mesmo revelar vários tons de vermelho, uma
cartela de cores, afinal flores de romãzeira podem ser de um tom diferente do
vermelho dos pés dos que pisam sobre as uvas, provavelmente um tom mais
próximo do roxo. Conforme elucida Werneck (2009) a peça Salomé apresenta
sinestesias tais como a comparação da cor da boca (visão) com os “rubros gritos
das trombetas” (audição) e ainda por tratar de boca pode-se pensar na proximidade
com o paladar, o gosto do beijo.

Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia
entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as
vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham
reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água

passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas


de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras
e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado,
adormecido; [...] (AZEVEDO)

A descrição inicial de O Mulato focaliza as condições climáticas do ambiente o


que está intimamente ligado ao sentido do tato. A atividade descritiva sugere e como
sugestão o leitor pode imaginar a sensação de calor, a ausência de vento, realmente
sentir tudo isso e ainda o frescor da água entregue. Notem que a redação acima não
exclui a visão, pelo contrário, é pintado um quadro de São Luís, sabemos como se
assemelhavam as paredes e que as folhas estavam estáticas, por exemplo. A cor
local se manifestas nesses trechos. O texto de Aluísio de Azevedo continua:

A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela,


ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada, de
mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”; do outro lado da praça, uma preta
velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por
uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e
coração!’’ Era uma vendedeira de fatos de boi. (AZEVEDO)

Mais uma vez a visão não foi eliminada, mas a audição ganha destaque e se
evidencia no gemido dos armadores enferrujados de uma rede, em uma mulher
tuberculosa cantando e uma vendedora de carne, alimento este que não é provado
por nenhuma personagem, mas a presença de moscas sobre a carne, o calor
corruptor e o estado de higiene do tabuleiro sugerem o tipo de sabor. Enfim, Temos
como referência olfativa a abertura de The Picture of Dorian Grey e notemos
também a presença da light summer (visão) e o wind (tato novamente):

The studio was filled with the rich odour of roses, and when the light summer wind stirred
amidst the trees of the garden, there came through the open door the heavy scent of the lilac,
or the more delicate perfume of the pink−flowering thorn. (WILDE)

Passemos agora para outra questão. Estruturalmente, a atividade descritiva tem


o adjetivo como rei das classes gramaticais porque sua função é caracterizar os
substantivos fornecendo qualidades e/ou defeitos, o uso de adjetivo é
essencialmente descritivo. Como pode “descrever” os adjetivos e verbos
intensificando-os, modificando-os e os caracterizando, o advérbio também auxilia no
processo de descrição.

When I was young


It seemed that life was so wonderful
A miracle, oh it was beautiful, magical
And all the birds in the trees
Well they'd be singing so happily
Oh, joyfully, playfully, watching me
But then they sent me away
To teach me how to be sensible
Logical, oh responsible, practical
And they showed me a world
Where I could be so dependable
Oh, clinical, intellectual, cynical (HODGSON)

Sob a Sintaxe, o adjetivo é o adjunto adnominal/ predicativo do sujeito/ objeto.


Na primeira estrofe de The Logical Song, evidentemente, HODGSON utiliza os
predicativos acima sublinhados para caracterização dos sujeitos e o mesmo ocorre
com os adjuntos adverbiais (negrito) em relação aos verbos. O que merece
destaque é a combinação de desses dois termos da oração no processo descritivo e
sua importância para o detalhamento da situação do eu-lírico. Caímos no objetivo da
descrição: revelar, mostrar. O objetivo da música é ser escutada e temos aqui um
exemplo de atividade descritiva na oralidade. Ainda que describere seja “escrever de
fora” isso não exclui a fala.

A música da banda Supertramp também apresenta narração com os verbos.


Narrar significa contar e relatar os fatos, descrever é aplicar o como os fatos
aconteceram, quais eram os detalhes. Sabemos que os pássaros cantavam nas
árvores, isso é narrado. Mas como executavam o som? Happily, joyfully, playfully.
Ensinaram ao eu-lírico a se tornar algo? O quê? Sensible, logical, responsible,
practical segundo a descrição. O substantivo também constitui elemento descritivo.
Hamon apud Lopes & Reis (1989) afirma que “a descrição põe em equivalência
semântica uma expressão predicativa e uma condensação denominativa.” Bearzotti
Filho alega que a descrição começa com a percepção de traços substantivos
dependendo da natureza do objeto e exemplifica peças de vestuário como traços
substantivos. “Miracle e birds in the trees” são os traços substantivos da música
acima.
Little Lamb who made thee?
Dost thou know who made thee?

Little Lamb I'll tell thee,


Little Lamb I'll tell thee!
He is called by thy name,
For he calls himself a Lamb:
He is meek & he is mild, [BLAKE]

Para finalizar o tópico, temos um poema de William Blake que apresenta um


substantivo próprio em atividade descritiva, isto é, os traços substantivos já que as
perguntas giram em torno do nome do cordeirinho que é uma claríssima referência a
Cristo. Notamos no último verso do presente fragmento traços adjetivos e no
restante do texto a apologia à Criação por meio de substantivos e adjetivos.

3. ANCILLA NARRATIONIS

À descrição cabe o objetivo de auxiliar a narração. Porque sabemos que os


fatos aconteceram, isso nos é narrado. Mas como e onde ocorreram é uma
contribuição da atividade descritiva. Por isso, a descrição comumente é denominada
ancilla narrationis (escrava da narração). Vejamos considerações de autores sobre
isso.

[...]a descrição é, funcionalmente, o décorum para a realização do evento. Por outro lado, a
díade narração/descrição é inseparável, ela é um ser híbrido, vegetal e animal, que pertence
às belas letras e que se completa em si mesma, não surtindo o efeito estético se for separado
em diferentes segmentos[..] (ALVES)

A modalidade narrativa se estrutura principalmente em verbos porque Bakhtin


apud Alves aponta que se narramos um fato é porque ele acaba de ocorrer e que
entre o instante da ocorrência e o instante da narrativa há um período de tempo e a
experiência em que o enunciador passou. O trabalho descritivo também passa por
essa problemática após a observação. Há noção de tempo na atividade narrativa e
“a narração requer o uso do Pretérito Perfeito, dos Pretéritos-mais-que-Perfeitos e,
ou da variante estilística que é o Presente Histórico [...]” (ALVES).
Lopes e Reis (1989) afirmam que embora a descrição seja denominada ancilla
narrationis é difícil confeccionar um texto narrativo sem a modalidade descritiva já
que as referências mínimas às personagens e objetos devem obrigatoriamente
existir.

Denomina-se topografia a descrição de espaços. A caracterização de lugares é


reveladora, pode situar o leitor geograficamente onde acontece a narrativa ou
simplesmente revelar indiretamente aspectos das personagens. Observemos o
trecho abaixo:

A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha pequena. Logo à
entrada um cheiro mole e salobre enojou-a. A escada, de degraus gastos, subia
ingrememente, apertada entre paredes onde a cal caía, e a umidade fizera nódoas. No
patamar da sobreloja, uma janela com um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado,
coberta de teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de uma portinha, ao lado,
sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloroso de uma criança.
[...]
Empurrou uma cancela, fê-la entrar num quarto pequeno, forrado de papel às listras azuis e
brancas. Luísa viu logo, ao fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarelada, feita de
remendos juntos de chitas diferentes; e os lençóis grossos, de um branco encardido e mal
lavado, estavam impudicamente entreabertos...
Fez-se escarlate, sentou-se, calada, embaraçada. E os seus olhos muito abertos, iam-se
fixando — nos riscos ignóbeis da cabeça dos fósforos, ao pé da cama; na esteira esfiada,
comida, com uma nódoa de tinta entornada; nas bambinelas da janela, de uma fazenda
vermelha, onde se viam passagens; numa litografia, onde uma figura, coberta de uma túnica
azul flutuante, espalhava flores voando... Sobretudo uma larga fotografia, por cima do velho
canapé de palhinha, fascinava-a: era um indivíduo atarracado, de aspecto hílare e alvar, com
a barba em colar, o feitio de um piloto ao domingo; sentado, de calças brancas, com as
pernas muito afastadas, pousava uma das mãos sobre um joelho, e a outra muito estendida
assentava sobre uma coluna truncada; e por baixo do caixilho, como sobre a pedra de um
túmulo, pendia de um prego de cabeça amarela, uma coroa de perpétuas! (QUEIRÓS)

O trecho acima de O Primo Basílio apresenta a descrição como reveladora,


mostradora de verdades e ponto crucial de ironia. Luísa e seu amante se encontram
num apartamento improvisado denominado por Paraíso nas cartas. Estrategista, o
autor apresenta uma página antes uma descrição de como Luísa imagina ser o
Paraíso, isto é, completamente diferente da verdade que será projetada em
instantes. A ironia se dá no nome edênico, utópico e otimista a uma habitação em
péssimas condições de higiene e conforto o que torna o sonho de Luísa uma grande
desilusão, uma mentira. Mesmo tendo condições financeiras de providenciar um
quarto melhor, Basílio consegue o um quarto num cortiço o que evidencia que as
suas intenções são somente sexuais e práticas. Isto não nos é dito explicitamente,
mas o pressuposto implícito surge por meio de informações escritas, a descrição do
quarto imaginado por Luísa e a realidade nua e crua.

A descrição de personagens recebe às vezes o nome de prosopografia, alguns


dicionaristas utilizam o termo caracterização. O que nos importa é que a modalidade
descritiva de personagens compreende seus traços físicos e psicológicos e oferece
sentido à narrativa. Lopes & Reis (1989) afirmam que a caracterização se inicia com
a escolha do nome das personagens, o substantivo próprio já é por si só um
elemento descritivo e, muitas vezes, o nome pode servir como revelador da
psicologia da personagem. Citemos como exemplo Dionísia da Imaculada
Conceição, uma freira bêbada de Amor de Perdição. O português Camilo Castelo
Branco faz claríssima referência ao deus do vinho e ao recém-proclamado dogma da
ausência de pecados na Virgem Maria, mas tudo isso nome de uma religiosa
bêbada e fofoqueira.

[…], and the animals crept silently away. But they had not gone twenty yards when
they stopped short. An uproar of voices was coming from the farmhouse. They rushed
back and looked through the window again. Yes, a violent quarrel was in progress.
There were shoutings, bangings on the table, sharp suspicious glances, furious
denials. The source of the trouble appeared to be that Napoleon and Mr. Pilkington
had each played an ace of spades simultaneously. Twelve voices were shouting in
anger, and they were all alike. No question, now, what had happened to the faces of
the pigs. The creatures outside looked from pig to man, and from man to pig, and from
pig to man again; but already it was impossible to say which was which.(ORWELL,
1945)

Acima temos outro trecho narrativo: a cena final de Animal Farm, de George
Orwell. A atividade descritiva nos mostra um confronto entre os homens e as
lideranças suínas da granja. Numa leitura simples, contemplamos que homens e
porcos estão lutando, brigando e discutindo um jogo de cartas. É necessário
contextualizar a descrição e fazer leituras mais profundas, todo elemento descritivo
deve ser lembrado e associado ao resto da obra. Do mesmo modo como a escolha
dos nomes, os comportamentos, vestimentas e posturas devem ser estudadas na
formação de um conjunto. O confronto no jogo entre Mr. Pilkington e Napoleão não é
apenas um confronto de jogo, homens e porcos carregam agora as mesmas
características, os animais que assistem à cena não conseguem mais fazer
distinção. Mais do que uma briga, há uma união de atributos e ao mesmo tempo a
decadência dos socialistamente corretos porcos. Esse é o papel da descrição:
oferecer à narrativa coesão e coerência; ao leitor, a análise profunda da obra.

4. DESCRIÇÃO E POESIA

Comumente associada à construção de espaços, personagens e objetos em


contos, novelas e romances, a descrição também necessita ser recordada como
grande contribuinte do gênero lírico. Chama-se etopeia a descrição de sentimentos e
é sobre isso que especialmente tratam os poetas.

Desmayarse, atreverse, estar furioso,


áspero, tierno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, difunto, vivo,
leal, traidor, cobarde, animoso,

no hallar, fuera del bien, centro y reposo,


mostrarse alegre, triste, humilde, altivo,
enojado, valiente, fugitivo,
satisfecho, ofendido, receloso.

Huir el rostro al claro desengaño,


beber veneno por licor suave,
olvidar el provecho, amar el daño ;

creer que un cielo en un infierno cabe,


dar la vida y el alma a un desengaño:
esto es amor. Quien lo probó lo sabe.
(LOPE DE VEGA)

No soneto acima temos a atividade descritiva de um sentimento. Os Varios


Efectos del amor são verbos, ações e, por extensão, acontecimentos, isto nos leva
ao tipo narrativo. O que as pessoas fazem quando estão apaixonadas são ações
diferentes que constituem os efeitos descritos, caracterizados, estudados por Felix
Lope de Vega. “Esto es amor”: desmayarse, atreverse.... Então o gênero lírico se
preocupa em retratar impressões, sentimentos, situações e mais uma vez notamos a
mescla entre descrição e narração.

Milady, é perigoso contemplá-la,


Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

[...]

Em si tudo me atrai como um tesouro:


O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!
(CESÁRIO VERDE)

Nas estrofes de Deslumbramentos, temos a caracterização de Milady. São


fornecidas informações sobre seu perfume, sua postura e sua superioridade, afinal,
é conhecida a tradição de o eu-lírico louvar sua amada nos versos. Mas além dos
detalhes acerca de Milady temos também a reação descritiva do eu-lírico, é alguém
que se sente inferiorizado e seduzido. Embora a caracterização de personagens e
espaços aconteça especialmente no gênero narrativo, ela também pode ocorrer na
poesia.

5. GÊNERO DRAMÁTICO

Não nos restam dúvidas de que a modalidade descritiva desenhe cenários e


personagens para que neles se desenrolem acontecimentos favorecendo a tipologia
narrativa, que é tão importante quanto a descrição. Sentimentos são cantados pelo
eu-lírico. Contudo, e o gênero dramático? Como a descrição poderia se manifestar
no teatro já que ela aparentemente “não existe”? Cenários e personagens são
representados no palco, a assistência observa. Não há um relato indireto de
caracterização. Se uma personagem aparece em cena vestida de noiva numa igreja,
vemos isso ou uma representação disso diante de nós ao contrário do gênero
narrativo onde necessitamos de substantivos, adjetivos, advérbios, a figura essencial
do narrador relatando tudo...

Oras, o dramaturgo pode deixar rubricas de como devem ser o cenário e o


figurino, de objetos que as personagens portarão, pode utilizar do recurso da
escolha do nome como elemento caracterizador e as próprias falas podem fazer
descrição como observamos no trecho de Salomé, de Oscar Wilde no tópico 2 deste
trabalho.
Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual
chegando à barca infernal, diz desta maneira:

Brízida — Hou lá da barca, hou lá!


[...]
Brízida — O que me convém levar. Día. Que é o que havês d'embarcar?

Brízida — Seiscentos virgos postiços e três arcas de feitiços que nom podem mais
levar.

Três almários de mentir,


e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assim em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.
A mor carrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!
(GIL VICENTE)

O fragmento teatral acima é bastante descritivo, temos a apresentação da


personagem Brízida Vaz bem como de sua profissão em letra maiúscula: Alcoviteira.
Seus pertences revelam sua trajetória em vida e constituem o motivo da rejeição do
Anjo. Mais uma vez a descrição é reveladora, pois nos mostra o caráter de uma
personagem. Não se pode negar que a descrição apareça no texto dramático e nem
que possua papel tão importante.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Selecionamos alguns trechos literários dos três gêneros: lírico, narrativo e


dramático para abordar como a descrição se manifesta e contribui para a riqueza da
obra. Na análise, foi possível observar o como a tipologia textual descritiva exerce
função essencial para melhor coerência e coesão das obras e para melhor
entendimento do leitor.
Muitos acreditam que o processo de criação poética envolve 99% de
transpiração e 1% de inspiração. O domínio da tipologia textual pelo autor dos
romances, poemas e peças teatrais nos revela o quão importante é o processo
transpiratório, afinal, é conveniente pensar em literatura como uma arte que toca o
emocional dos leitores, discute as emoções na sociedade, mas se estrutura em
pilares da razão como o treino da redação. Escritores que conseguem se consagrar
no tempo e debatem as emoções com maestria são escritores que dominaram as
habilidades de narração, descrição e dissertação. A atividade descritiva se mostra
muito relevante porque atinge os objetivos pensados pelo autor e necessita do bom
conhecimento das palavras do idioma utilizado bem como a combinação dessas
palavras. Escrever literatura é arte e para produzir arte é necessário desenvolver
talento.

Indubitavelmente, os textos literários estudados neste trabalho só poderiam ter


se cristalizado no tempo graças às boas técnicas de descrição e seu excelente uso
estético.
CONTRIBUTION OF THE ANCILLA NARRATIONIS TO THE LITERARY TEXTS

Abstract:

This article analyzes the contribuition of description while textual typology in the three
aristotelic literary genders: epic, lyric and dramatic. It presents the structure of
description in literature, its causes and consequences taking as examples novels,
poems and theatrical texts. We notice the importance and essenciality that the
description causes in literary works.

Key words: Description. Textual Typology. Literature. Characterization. Literary


Analysis. Textual Scructure. Literary Creation, Literary Theory. Ancilla Narrationis.
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