Você está na página 1de 9

VEREDAS E CARNAUBAIS: UMA NARRATIVA SOBRE A

VIVENDA CAIÇARA EM CAPITÃO DE CAMPOS


FERREIRA, Camila S. (1)
1.Unidiferencial
camilasfg@live.com

RESUMO

O estado do Piauí teve seu território ocupado através da expansão da pecuária, em especial das
fazendas de gado. Essa ocupação deixou rastros arquitetônicos, que mesclavam influências
portuguesas, indígenas e africanas no modo de construir. As casas de fazenda são a tipologia
mais recorrente desse período, sendo portanto portadoras da historicidade das técnicas
construtivas aplicadas à época. Dentro desse contexto, escolhe-se como objeto de analise a
Vivenda Caiçara, uma moradia de 1910, localizada no Norte do Estado do Piauí, mais
precisamente em Capitão de Campos, que fica à 140km da capital. A casa em questão, foi
utilizada em atividades ligadas à pecuária e agricultura de subsistência, além de ser uma casa
típica da arquitetura popular, produzida por seus próprios moradores, com matérias da região e
técnicas tradicionais repassadas entre a comunidade. Para esta analise utilizou-se de
levantamentos arquitetônicos, históricos e fotográficos, além de relatos e conversas com os
moradores da região. Por fim, o artigo se propõe a ser não só um registro documental, mas
também uma narrativa, uma análise das casas pelos próprios moradores e aqui a autora do texto
se inclui como narradora e personagem de alguns fatos.

Palavras-chave: Arquitetura popular, narrativa popular, casas de fazenda, Capitão de Campos.


INTRODUÇÃO

Neste artigo vou falar de como aprendi a observar e analisar as técnicas


construtivas preponderantes na Vivenda Caiçara, uma casa de fazenda da cidade de
Capitão de Campos. A história dessa casa irá se confundir muitas vezes com a minha
história e com a história de minha família. Por isso a localidade de Capitão de Campos
foi escolhida, foi nela que vivi parte da minha infância, brincando nas veredas e nos
carnaubais, escutando histórias, e em especial histórias dessas casas da região.

A cidade de Capitão de Campos fica localizada ao Norte do estado do Piauí,


à 140km da capital Teresina, rota do eixo de acesso ao litoral piauiense. Historicamente,
o trajeto que liga a capital piauiense ao objeto de estudo do artigo, foi palco de alguns
fatos memoráveis para os piauienses, como a Batalha do Jenipapo e as inúmeras
viagens das tropas portuguesas e bandeirantes, adentro o território piauiense, fatos que
justificam o povoamento do local, conforme discorre Silva Filho (2007).

O município de Capitão de Campos está situado na região dos Carnaubais,


conforme o “Mapa de Potencialidades do Piauí”, desenvolvido em 2018 pelo Governo
do Estado do Piauí. A região é de clima semi-árido, com vegetação típica do Cerrado,
composta principalmente por palmeiras do tipo Carnaúba e formações arbustivas,
conhecidas regionalmente como veredas. Essa informação nos vai ser importante ao
longo da história, tendo em vista que é da natureza que vem quase toda a matéria prima
necessária para construção das casas de fazenda.

Além disso, como apresenta Barreto (1975), existe uma figura essencial na
composição desse cenário, que é o vaqueiro piauiense (e aqui adiciona-se por conta
própria suas companheiras, mulheres fortes e sertanejas, Euclides da Cunha 1que me
perdoe, mas antes de tudo, forte, são as sertanejas). Ele responsável por dominar a
terra e o saber-fazer das casas, elas por estarem a frente da família e da sabedoria
essencial com as plantas. Conjunto social que é relevante para explicar as estruturas
arquitetônicas das casas em questão, já que as casas jamais podem existir sem as
pessoas. Por falar em vaqueiro, vale ressaltar, que os irmãos da minha avô paterna
quase todos se ocuparam do ofício de vaqueiro, um em especial eu tive o prazer de
conhecer devido sua longevidade, tio Semeão, ele é peça importante para contarmos
essa história.

1
Caso o leitor não saiba, mas no livro: Os Sertões, o autor Euclides da Cunha lançou uma
frase célebre para a literatura brasileira, que dizia: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
A análise geográfica e histórica da região com a inclusão dos personagens
reais são essenciais para que se chegue a entender a Casa de Fazenda. Lemos (1978)
já dizia que: “o que interessa é compreender melhor a casa popular autêntica, dentro do
quadro da nossa sociedade...sem um mergulho profundo, até as raízes da
habitação...mergulho no tempo e no espaço, que disseque a moradia...não poderemos
planejar nada”. E assim faremos. Começaremos esse mergulho muito antes de eu me
profissionalizar para escrever sobre casas, mais ou menos nos anos 2000, quando pela
primeira vez me interessei em colher relatos sobre aquelas moradias, mesmo que eu
ainda não soubesse o que estava fazendo. Ao longo do texto vou relatar quem sou e
como estou imersa nessa narrativa.
A VIVENDA CAIÇARA:

“Uma casa do tempo do escravo”

Meu pai nasceu em uma casa de fazenda na localidade Caiçara, zona rural
de Capitão de Campos. Filho de Maria das Neves, apelidada carinhosamente como
Maricota e de João Angelo Ferreira. Batizado Eraldo da Silva Ferreira, em homenagem
a um padre do município vizinho, e popularmente conhecido como Eraldo da Caiçara, a
pessoa que o pegou a primeira vez nos braços foi a parteira. E ele sempre contou isso
orgulhoso:

“– Eu nasci aqui nessa casa, naquele quarto grande, a primeira pessoa que me
pegou nos braços foi a parteira. Gosto demais daqui...Ave Maria, quando eu nasci
meu primeiro sono foi numa rede armada ali nos troncos de carnaúba. Quando
fala em parto eu lembro daquela música lá do Luiz Gonzaga, a Samarica Parteira,
é daquele jeito mesmo, a mamãe dizia que quando ela foi parir amarraram um
lençol nos passador de rede da casa pra ela puxar e fazer força na hora de parir.”

Pelo fato de meu pai sempre ter gostado muito do lugar que nasceu e se
criou, tive um apego enorme à Caiçara, carinhosamente conhecida como Vivenda
Caiçara. Antes de eu me formar em arquitetura, observar os mistérios da casa já faziam
parte da minha rotina. Quando criança, eu passava horas imaginando o que poderia ter
acontecido ali tantos anos atrás.

FOTO

O nome Caiçara2 foi dado à localidade pelo fato da região ser banhada por
dois cursos de água. O rio Corrente, que é quem faz divisa natural entre os municípios
de Capitão de Campos e Piripiri, e o riacho Sambito, que margeia a casa.

FOTO

A casa de fazenda da Caiçara foi construída por volta de 1910, conforme


relatos de minha avó Maricota. A obra teve participação do meu bisavô paterno Firmino,
foi ele quem junto com alguns de seus irmãos e um mestre de obras do município vizinho
Piripiri quem tocaram a obra. Ainda criança eu perguntei a ela:

“- Vó, mas de quando é que é essa casa mesmo?

- Ah minha filha (sorrindo), aqui é antiga demais, é do tempo do escravo...

2
Etimologicamente, de acordo com o dicionário Aurélio de português, a palavra Caiçara
significa terra entre rios.
- Sério? Pois faz tempo demais, vó...

- Tua bisavó, Mãezinha, minha mãe, era escrava fugida, solta no mundo, aí casou
com papai e construíram essa casa... essa casa é antiga, é do tempo do escravo”

FOTO

Isso me causou um espanto, mas ao mesmo tempo encantamento, foi ali


que surgiu um estalar na minha mente e desde então a Vivenda Caiçara virou para mim
objeto de fixação. Despretensiosamente, ou obra do destino, acabei cursando
Arquitetura & Urbanismo, já na metade do curso me dei conta que aquela minha paixão
de criança poderia virar objeto de estudo científico. Me apeguei a estudar
minunciosamente a Vivenda Caiçara. Em busca de documentos, objetos, relatos que
me aprofundassem sobre o que se passou ali.

Esses dias recentes, pedi que minha tia, a quem chamo carinhosamente de
Dinha, irmã do meu pai e minha madrinha, me descrevesse minuciosamente como era
a estrutura física da Vivenda Caiçara:

“-É uma casa antiga, no chão é todo de tijolo de barro, nas paredes tem aquelas
pedras de lajeiro, o telhado é todo na carnaúba, as telhas são todas daquelas
antigas e a casa é grande. Tem 3 salas grandes, cozinhas, quartos grandes. Aquele
alpendre na frente já foi teu pai quem fez né, recente. Mas a casa mesmo antes não
tinha, nem era rebocada na frente. Só que sempre chamou atenção, por ser grande
e antiga.”

E é exatamente assim. A casa, conforme mostra a planta baixa a seguir,


possui amplos espaços, tendo sofrido apenas algumas pequenas adaptações para os
usos futuros: a inserção de um alpendre e de um banheiro no interior da casa.

FOTO

Para Curtis (2003), a arquitetura nordestina possui essa expressividade,


quando comparada com toda a arquitetura brasileira, em especial na arquitetura
residencial. Curtis (2003) diz ainda que a complexidade cultural e climática do Nordeste
foram peças chaves na criação de uma arquitetura mais original. Quando observamos
a Vivenda Caiçara é possível o entendimento de expressividade narrada pelo autor. A
casa com seus longos beirais recortam os carnaubais de fundo.

Não muito diferente de todo Piauí, a casa em questão surgiu de um latifúndio


pecuário, meu bisavó comprou as terras de um antigo criador de gado, escolhendo o
ponto mais alto das terras para locar a sede da fazenda. Silva Filho (2007), descreve
que era uma estratégia comum aos pecuaristas piauienses escolherem que suas
moradas ficassem locadas em pontos altos e de visão estratégica, tanto para observar
quem chegava, quanto para vigiar a pastagem dos bichos. Quando eu era criança, a
casa era conhecida como “aquela casa lá na estrada para o rio Corrente, que fica em
cima do morro”.

A casa fica de frente para o Norte, em uma posição estratégica que evita a
insolação direta. Enquanto a cozinha e os depósitos pegam maior parte da insolação,
os quartos e as salas foram posicionados de forma estratégica a ficar na sombra. É
interessante frisar também, que as paredes de orientação Norte/Sul são de pedra de
lajeiro, enquanto as de orientação Leste/Oeste são de adobo de barro, mais uma
estratégia climática sendo aplicada. Tendo em vista, que o adobo de barro é um material
poroso, sua presença nas frentes de sol nascente e poente impediam maior dissipação
do calor, deixando o ambiente mais frio.

Outro detalhe importante, é que minha avó narrava que as pedras de lajeiro
que ergueram as fachadas Norte e Sul da casa foram retiradas dos rios nas
proximidades. Tendo os homens achado com facilidade, já que o lito do riacho sambito,
fica logo à frente da casa.

O material utilizado no telhado foi a carnaúba e o sabiá, árvores típicas do


serrado piauiense e encontradas em abundância. Meu pai fala que hoje fica até difícil
de repor as peças de madeira de madeira dessa casa por um único motivo:

“Antigamente, a pessoa que tirava madeira pra construir uma casa, tirava madeira
na lua certa. Se o pé de pau foi cortado na lua errada, já era, ele enche de cupim.
Aqui nessa casa já coloquei dois troncos de carnaúba novos, os dois tirados na lua
errada, não deu outra, meu amigo, em poucos meses o cupim comeu. Ninguém
sabe mais tirar a madeira na data certa.”

Devido à resistência e porosidade, a carnaúba era colocada em pontos de


maiores esforços de cargas, como no vigamento e apoios da cobertura. Por ficarem
expostas, as peças de carnaúbas também eram utilizadas como armadores de rede.
Eram desses armadores que meu pai relatava terem armado sua primeira rede, assim
que nasceu. Nas ripas era utilizado o sabiá, uma madeira de qualidade, mas
entroncamento mais fino, que permitia um corte mais acertado para produção de ripas
e terças.

Uma vez, por volta de 2008, recordo de estarem destelhando a casa para
uma reforma, foi a primeira que observei com clareza que as paredes da casa não iam
até o teto, como nas casas que conhecia em Teresina. As paredes a meia é o nome
dessa estratégia, permite que o telhado fique apoiado apenas na madeira, além de servir
como uma chaminé, expulsando o ar quente pela parte de cima da casa.

FOTO

Barreto (1985), quando veio ao Piauí e pode observar as casas aqui


produzidas, detalhou que as moradas são esparramadas, ou seja, abertas e com amplos
cômodos, assegurando assim uma melhor ventilação. Barreto (1985), pontua que “O
povo com sua espontaneidade, sem sentir faz aquilo que lhe é característico e peculiar”,
além de finalizar dizendo que no Piauí “a arquitetura é de pura expressão popular”.

Para as aberturas, devido ao alto nível de insolação e a pouca arborização


do local, por se tratar de uma zona semiárida, os construtores delimitaram pequenas
janelas. Estas serviam apenas para circulação do ar e eram feitas em madeira de
figueira, devido à resistência a cupins e outras pragas.
COMO A CASA FOI CONSTRUÍDA

“O povo fazia mutirão pra fazer as casas”

Não preciso dizer que a casa ainda nos pertence, sendo hoje utilizada com
frequência pela família, e por isso vez ou outra necessita de manutenção, ponto que tive
que começar a observar, afinal para reparar qualquer eventual dano na casa era preciso
entender com que materiais e técnicas a mesma foi erguida.

As técnicas construtivas nela aplicadas sempre foram objetos de


curiosidade. Perguntando aos moradores da região consegui relatos de como as casas
eram construídas na época, e deixo com a fala, Tia Teresinha, prima do meu pai e
moradora da Caiçara:

“Naqueles tempos o povo fazia um mutirão pra fazer as casas. Cada pessoa sabia
um pouco, os homens tiravam os paus pra fazer os apoio, outros homens ficavam
responsáveis pelas paredes e pelo barro, na casa que era coberta de palha, tiravam
a palha antes e deixavam secando. Na casa da Mãezinha, que era de telha, acho
que foi outra história, dizem que veio um homem de Piripiri que ajudou todo mundo
aí a fazer essa casa, e dizem que tudo foi feito aqui mesmo, mas as telhas parecem
que vieram de carroça duma olaria lá do Ananjá3, lá o povo ainda hoje faz tijolo”.

Costa (2004), afirma que a arquitetura popular sempre é produzida por grupos,
no grupo de pessoas próximas. E é exatamente como acontece. Minha tia Dinha, narra
que vieram pessoas de fora para ajudar na construção da casa, entretanto nem todos
eram parentes:

“Como lá na Caiçara era isolado, na época, a primeira casa que foi construída foi
de palha, toda de palha, pelo que a mamãe (Maricota) falava, aí depois que a
Mãezinha mandou construí a casa mesmo de verdade, o nome do cara que veio
construir a casa era João Cara Branca, dizem que era muito conhecido na região,
porque ele era especialista em fazer casa de adobo. Agora se ele era de Piripiri
mesmo não sei dizer, seio que ele veio de lá, e ele tinha os trabalhadores dele lá,
mas quem ajudou também foram os irmão do meu avô Firmino até mesmo porque
na época o povo fazia assim.”

3
Ananjá é um povoado localizado na zona rural de Piripiri.
LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc. São Paulo: Editora Perspectiva. 1978.

Você também pode gostar