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~ EdUERJ
!!JI Editam da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
..ífr Rua São Francisco Xavier, 524 Marncanã
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www.cduerj.uerj. br Prólogo ............................................................................................... .............. ...... ?
edue1j@ uerj.br
Editor Executivo Italo Moriconi T. As cinco portas da paisagem - ensaio de uma cartografia das
Assistente Editorial Eduardo Bianchi
Coordenadora de Produção
problemáticas paisagísticas contemporâneas ................................ .. ........... 11
Rosania Rolins
Assisteme de Produção Mauro Siqueira
Coordenador de Revisão Fábio Flora
Revisão
II. Geografias aéreas ................ ........ ............... .................................................. 67
Magda Frediani Martins
Maria Filomena Jardim Diniz
Capa Carlota Rios
Projeto e Diagramação
III. A paisagem, entre a política e o vernacular ............ ........ ...... ...... ...... 103
Emilio Biscardi
CDU 711.4
Imagem da capa adaptada de The naked city, de Philippe Migeat (1957).
1O O gosto d o mundo: Exercícios de paisagem
sentações e das práticas. É nessa perspectiva que o presente livro 1. As cinco portas da paisagem - ensaio de
pretende situar-se.
Os ensaios que compõem esta obra são o desdobramento e
uma cartografia das problemáticas
a reformulação de alguns textos já publicados, bem como de con- paisagísticas contemporâneas
ferências e cursos que tive a oportunidade de propor a públicos
variados nos últimos anos. 1
Quero aproveitar o ensejo para agradecer aos colegas, ami-
gos e estudantes que, nessas diversas circunstâncias, acompanha-
ram o desenvolvimento das minhas análises, tanto na École Na-
tionale Supérieure du Paysage - ENSP, de Versalhes, no Instituto
de Arquitetura da Universidade d e Genebra, na École Nacionale
Supérieure en Architecture et Paysagc - ENSAP, de Lille, nos Car-
nets du Paysage, quanto na equipe EHG0 2 do Centre National de O que é a "paisagem" nas culturas espaciais modernas e
la Recherche Scientifique - CNRS. Este livro também é o teste- contemporâneas? Qual "realidade" é indicada com esse nome,
munho de uma parceria intelectual e profissional com Gilles A. quais são as práticas e os valores que correspondem a esse nome,
T iberghien, a quem dirijo meus agradecimentos especiais. e quais são os objetos que resultam dele? Na verdade, é muito
difícil responder a essas perguntas. 1 O historiador da cultura está
confrontado com uma conjuntura teórica e historiográfica com-
plexa, ambígua. Efetivamente, existem, atualmente, uma polis-
semia e uma mobilidade essenciais do conceito. de paisagem , e
essa situação teórica deve-se, em parte, à atomização profission al e
acadêmica das diferentes "disciplinas" que fazem dela seu campo
de estudos e d e intervenções. Sabemos que a paisagem é um obje-
to n ão apenas para o paisagista, o arquiteto ou o jardineiro, mas
também para a sociologia, a antropologia, a geografia, a ecologia,
a teoria literária, a filosofia etc. E n ada garante que essas d iversas
discipl inas, quando confrontadas à questão da pa isagem, pensem
na mesma coisa e mobilizem as mesmas referências intelectuais.
1
Enconrramos uma perplexidade análoga no início do ensaio de Cario Tosco, 11
1
paesaggi.o come storia (Bolonha: II Mulino, 2007), que propõe, entretanto, uma
Uma nota sobre a o rigem dos textos foi inserida no fi nal do volu me. rentativa de reconstrução histórica do conceito. Ver também: Wylie, J. Land-
Équipe Paris-EHGO, Inreraction Spatiale, Épistémologie er Histoire de la Géo- scape. London and New York: Routledge, 2007; bem como: Delue, R. e Elkins,
graphie (N. da R.). J. (ed .). Landscape The01y. London and New York: Roucledge, 2008.
12 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem ... 13
, . "Podemo~; entretanto, perc~ber hoje, de forma geral, cinco pos- . lll que os homens pensam dela, ao que percebem dela e ao que di-
s1ve1~ entradas nessa questão, cinco problemáticas paisagísticas que l l'lll dela. Ela é um tipo de grade (retícula) mental, um véu mental
coexistem no pensamento contemporâneo e que não se superpõem q11 l' o ser humano coloca entre ele mesmo e o mundo, produzindo,
exatamente, é verdade, embora possam ser, às vezes, articuladas umas , llm essa operação, a paisagem propriamente dita. ''.Antes mesmo de
às outras. Assim, a paisagem é considerada como uma representação ,n o descanso dos sentidos, a paisagem é a obra da mente", segundo
cultural (principalmente informada pela pintura), como um território \1111011 Schama. 2 A paisagem é uma _imerpret~Çã'!; uma "leitura"
pr~duzido pelas sociedades na sua história, como um complexo sistêmico (t\lain Corbin) ou, ainda, a expressão de certo tipo de linguagem3 •
articulando os elementos naturais e culturais numa totalidade objeti- Não existe em si, mas na relação com um sujeito individual ou co-
va, como um espaço de experiências sensíveis arredias às diversas formas 1\·t ivo que a faz existir como uma dimertsão da apropriação cultural
possíveis de objetivação, e como, enfim, um local ou um contexto de 1 lo ~undo. A paisagem fala-nos dos homens, dos seus olhares e dos
projeto. Cada uma dessas posições é sustentada de forma privilegiada, \ l'LIS valor~s, e não propriamente do mundo exterior. Na realidade,
embora não exclusiva, por uma "profissão" ou um grupo de profis- ~<'> haveria paisagens interiores, mesmo se essa interiori<la<le se tra-
sões, ou até por uma formação ou uma corporação acadêmicas. Por duz e se inscreve "no exterior", no mundo.
e~em~lo, os defensores da primeira concepção são, principalmente, Tal concepção da paisagem implica uma teoria inrelecru-
histonadores e filósofos da arte, enquamo a noção de "sistema pai- ;il ista da percepção, como confirma, em certo sentido, o próprio
sagístico" é mais utilizada por ecologistas ou alguns geógrafos, e a filósofo Alain, para quem é necessário distanciar-se da "ideia in-
d~ "projeto" é característica do vocabulário dos paisagistas. Essas [!;ên ua da percepção", que nos leva a crer que "[... ] a paisagem
diversas concepções ou posições convivem na "cultura paisagística" .1presenta-se a nós como um objeto ao qual não podemos mudar
contemporânea, conferindo, dessa forma, à análise dessa cultura uma nada, e so' temos que rece bera sua marca ,, .4
verdadeira riqueza e uma real complexidade. Na atualidade, trabalhar Segundo ele, é preciso olhar mais de perto e perceber a pre-
de u~ pomo .de vista teórico sobre a questão da paisagem supõe que sença de um ato de interpretação no cerne da própria percepção.
~e aceite. considerar, pelo menos provisoriamente e como hipótese, a É preciso observar o efeito de um julgamento naquilo que é visto
JUStapos1ção e a superposição desordenada desses diferentes discursos como horizonte longínquo, confusão dos detalhes, distâncias, re-
e pontos de vista sobre a paisagem. levos, cores, sombras. Assim, conclui Alain:
A paisagem: uma realidade mental ,. Schama, S. Le Paysage et la mémoire. Paris: Le Seuil, 1999, p. 13. O cenário da
paisagem, prossegue, "consrrói-se canto a partir dos ·cstraros da memória quanto !\
daqueles dos rochedos".
Uma primeira abordagem da paisagem consiste em defini-la l Ver, por exemplo, Augustin Berque, que d istingue quatro ripas de represe ntação
c?mo um ponto ~e vista, um modo de pensar e de perceber, prin- como condições instauradoras da paisagem: represemações linguagciras, literá-
rias, picturais, jardineiras. Cf. Berque, A. Les raisons du paysage. Paris: Hazan,
cipalmente como uma dimensão da vida mental do ser humano. A
1995, p. 34.
paisagem não existe, obfetivamente, nem em si; então, ela é relativa ~ Alain. Eléments de philosophie. Paris: Gallimard, 1940, p. 21.
14 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 15
[... ] a distância do horizonte não é uma coisa entre as coisas, Entretamo, a própria noção de representação paisagística
mas sim uma relação das coisas comigo, uma relação pensada, 110de ser entendida de forma mais ou menos restritiva, levando
concluída [...]. O que faz aparecer a importante distinção que 1'1tláo a questionamentos bastante diferentes.
deve ser feita entre a forma e a matéria do nosso conhecimento.
Essa ordem e essas relações que sustentam a paisagem e qual- l~lisagem e modelos pictóricos
quer objeto, que a determinam, que fazem dela algo real, sólido,
verdadeiro, essas relações e essa ordem são relativas à forma e )
Assim, muitas vezes, a paisagem foi estudada e designada,
definem a função pensamento (1940, p. 21).5 .1nces de tudo, como representação artística, principalmente in-
f(nmada pelos modelos da pintura. A invenção histórica da pai-
-· ~ Nessa perspectiva, o estudo de uma paisagem, real ou ape- sagem foi relacionada com a invenção do quadro em pintura, no
nas representada, costuma ser identificado com o estudo de uma Renascimento, mas também, no próprio quadro, com a invenção
forma de pensamento ou de percepção "subjetiva" e, mais geral- da "janela": a paisagem seria, portanto, o mundo tal como é visto
mente, uma expressão humana informada por códigos culturais desde uma janela, seja essa janela apenas parte do quadro, ou con-
~eteri:iina~os (discursos, valores etc.). É preciso retornar, por as- fundida com o próprio quadro com um todo. A paisagem seria
sim dizer, ir aquém da própria paisagem, para enxergar nela as uma vista emoldurada e, em todo caso, uma invenção artística.
razões de ser, na cultura e na vida social, de que é, de alguma A janela, escreve Victor Stoichita, desempenha um "papel cata-
forma, a encarnação. A análise da paisagem consiste numa aná- 1isador" na invenção deste novo gênero pictural do Renascimen-
lise de categorias, de discursos, de sistemas filosóficos, estéticos, to, que é a paisagem. "É o retângulo da janela", acrescenta, "que
morais, que a paisagem deve pretensamente prolongar e refletir. transforma o lado de fora em paisagem"7, pois ativa uma dialética
Não cabe diferenciar, a este respeito, a paisagem real da paisagem do interior e do exterior, isto é, instaura uma condição indispen-
representada (em imagem ou em texto). ln situou in visu, a na- sável da paisagem na história da pintura: a distância.
tureza da paisagem não muda fundamentalmente. Ela é sempre, É nessa perspectiva que a história da arte passou a conside-
p~r essê~ci~, ~ma expressão humana, um discurso, uma imagem, rar o problema do "nascimento" da paisagem na E uropa Ociden-
sep ela md1v1dual ou coletiva, seja ela encarnada numa tela, em tal d o século XVI, na prolongação das famosas análises de Ernst
papel ou no solo. E, nesse sentido, metodologicamente falando, é Gombrich. 8 Gombrich destacou várias dimensões no aconteci-
perfeitamente legítimo imaginar uma "iconografia da paisagem",
ou seja, a aplicação à paisagem das categorias e dos processos acio-
7 Sroichira, V. L'lnstauration du tableau. Geneve: Droz, 1999, p. 58. Anne Cauqueli n
nados por Aby Warburg e Erwin Panofsky na interpretação das
desenvolve um ponto de vista análogo em L'lnvention du paysage. Paris: Plon,
obras de arte.6
1989, PP· 121 e seg. Ver também: Wajcman, G. Fmêtres. Paris: Verdier, 2004: ~ -
"Pas de paysage sans fenêtre. [...]La fenêrre esr lc lieu du paysage" (pp. 240: 259) .
5
l bid., p. 23. Idêntico argumento em: Roger, Alain. Court traité du paysage. Pans: Galhmard ,
Cosgrove, D. and D~niels, S. (eds.). The !conography ofLandscape. Essa)'S on the
6
1997. A ideia já está presente na Philosophie du paysage, de Georg Simmel.
Symboltc Representat1on, Design. and Use o.fPast Environments. Cambridge: Cam- Gombrich, E. "La rhéorie artistique de la Renaissancc cr l'essor du paysage'',
bridge University Press, 1988 , pp. 1-10. evocado em l'Ecologie des images. Paris: Flammarion, 1983, PP· 15-43. O artigo
16 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem... 17
entretanto, por M1chel Baridon em Naissance et renaissance d11 paysage (Arles: Entretanto, a noção de paisagem também pode ser vista,
Acces Sud, 2006).
9 de forma mais ab rangente, como representação cultural coletiva
Gombrich, E. "La Théorie arrisrique de la Renaissance". Op. cir., p. 17.
10
Ibid., p. 26. dou individual. Sem rejeitar o ponto de vista estético, ao qual
11
Esses parerga representam, escreve Paolo Giovio, "rochedos despedaçados, arvo- continuam dando um lugar importante, às vezes até constitutivo,
redos verde1antes, as margens firm es dos grandes rios que atravessam os países, os antropólogos, h istoriadores, geógrafos ou sociólogos contribu-
os florescenr_es trabalhos dos campos, o duro e alegre labor dos ca mponeses e íram, ao adotar um procedimento culturalisca, para recolocar_ (o
tamh:m as vistas longínquas de uma região ou do mar, as frotas de navios, a caça
aos pass.~ros, a ca?a a cavalo: e tudo o que pertence a esse gênero tão agradável de
que também quer dizer: deslocar) a paisagem dentro de uma tn-
se olhar (crtado 1n Gornbnch, E., ibid., p. 25). Reconhecemos aí aquilo que vai
se tornar o vocabulário básico da pinmra de paisagem.
•i Gombrich, E. Tbid., pp. 29-30.
11
Ibid., p. 33.
18 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem ... 19
terrogação geral sobre a sociedade. 14 Foi possível mostrar que as 1 própria estética é questionada do ponto de vista do seu valor ou
determinações da construção paisagística também são econômi- 1 l 1 ,ua função dentro da cultura. A própria história da arte se be-
cas, religiosas, filosóficas, cienríficas e técnicas, políticas, até psi- 1ufo.: ia dessa abordagem social e cultural, que a leva a enriquecer
canalíticas15 etc. Elas podem, é claro, ser estéticas, mas, nesse caso, .ilgu mas de suas problemáticas. Assim, foi possível, por exemplo,
1e l.1cionar o desenvolvimento da representação piccural da paisa-
14
Cf. entre outros: Barrell, J. The Dark Side of the Landscape: the Rural Poor in I'·' 111 nos Países Baixos dos séculos XVI e XVII com as transforma-
English Painting 1130-1840. Cambridge: Cambridge University Press, 1980; 1,ucs concomitantes, nessa parte da Europa, da vida científica, mas
Cosgrove, D. Social Formation and Symbolic Landscape. London: Croom Hclm, 1.1111bém da vida religiosa e política. 16 Da mesma forma, foram
1984; Lugin bühl, Y. Paysages. Textes et représentations du paysage du Siecle des
Lumieres à nos jours. Lyon: L1. Manufacture, 1989; Cosgrove, D. The Palladian n 111<ladas as relações entre a experiência estética da natureza e a
Landscape. Geographical Change and its Cu/tum/ Representations in Sixteenth- lorrnação de uma identidade burguesa metropolitana na França
Century ltaly. The Pennsylvania State Universiry Press, 1993; Voisenac, C. (dir.). do século XIX, 17 ou entre a pintura de paisagem e o acionamento
Paysage au pluriel. Pour une approche ethnologique des paysnges. Paris: Maison des
, k uma cultura geológica no romantismo alemão. 18
Sciences de l'Homme, 1995; Olwig, K. R. Landscape, Natttre and the Body Poli-
tic. From Britain's Renaissance to America's New World. Madison: The University Enfim, muitas obras estabeleceram de que forma a história
of Wisconsin Press, 2002; Bender, B. & Winer, M. Comested Landscapes: Move- 11.1 paisagem europeia devia integrar as dimensões ideológicas da
ment, Exile and Place. Oxford: Berg Publishers, 2001; Micchell, W. J. T. (ed.). '"ª construção como referente imaginário da identidade nacio-
Landscape and Power. 2. ed. Chicago: Universicy of Chicago Press, 1994, 2002;
Desporres, M. Paysages en mouvement. Transports et perception de !'espace, XVIII-
11.tl. Há uma codificação nacional e política do olhar paisagístico,
)()(< siecle. Paris: Gallimard, 2005. , omo mostrou François Walter, que lembra, depois de Benedict
15
A questão da paisagem é abordada por Freud dentro das suas reflexões sobre a /\nderson, t9 que a nação existe em grande parte nas construções
figuração simbólica na interpretação dos sonhos: "É fácil reconhece r que, no ao mesmo tempo imaginárias e materiais - que lhe dão uma
sonho, muitas paisagens, particularmente as que apresentam pontes ou montan-
has arborizadas, são descrições de órgãos genitais. Marcinowski reuniu uma série .1parência apreensível para os olhos dos membros da comunidade
de exemplos em que os sonhadores explicam os sonhos por desenhos que devem que reúne, como aos olhos daqueles que rejeita no exterior e que
representar as paisagens e os locais onde acontece o sonho. Esses desenhos mos-
tram bem claramente a diferença entre o sentido aparenrc e o sentido oculto do
sonho. À primeira vista, são plantas, mapas etc., mas um exame mais detalh ado "Pour une psychanalyse de l'horizon", e especialmente as páginas 141-144, nas
reconhece neles representações do corpo humano, dos órgãos genitais etc.; pode- quais é discutida a análise de Guillaumin.
se então entender o sonho[... ]." (L7nterprétation des rêves. Paris: PUF, 1967, p. " Alpers, S. l'Art de dépeind1·e. Paris: Gallimard, 1983. . .
306; ver também as páginas 314 e 342-343.) A perspectiva de uma "psicanálise Green, N. The Spectacle of Nature. Landscape and Bourgeois Culture m Nzne-
da paisagem" ainda é pouco comum. Citemos, entreranto, Guillaumin, J. "Le teenth-Century France, Manchester: Manchester Universicy Press, 1992.
paysage dans le regard d'un psychanalyste; rencontre avec les géographes". Bulle- Mitchell, T M. Art and Scimce in German Landscape Painting 1770- 1840. Ox-
tin du Centre de Recherche sur l'Envimnnement Géographique et Social (CREGS). ford: Clarendon Press, 1993. Convém mencionar também o livro de Claude
Universidade de Lyon-II, n. 3, 1975, pp. 12-33; e id., Le Moi sublimé. Psycha- Reichler, La découverte des Alpes et la question du paysage (Geneve: Georg, 2002),
nalyse de la créativité. Paris: Dunod, 1998, especialmente as páginas 123-125, que mostra em detalhes como se articulam narrações de viagem, análises cientí-
nas quais Jean Guillaumin parte da hipótese de que a paisagem desempenha um ficas, meditações religiosas e poéticas na formação de uma sensibilidade pais-
papel "substancialmente análogo à função de sustentação que Freud reconhece agística propriamente alpestre durance os séculos XVIIJ e XlX.
nas 'pu lsões do cu' em relação à libido de objeto" (p. 123). Ver também: Collot, i•J Anderson, B. L'lmaginaire national. Réflexions sur !'origine et l'essor du nationa-
M. La Poésie moderne et la structure d'horizon. Paris: PUF, 1989, segunda parte: lisme. Paris: La Découverre, 2002 [1983].
20 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem... 21
designa como estrangeiros. Assim, por exemplo, na França, as fes- 1111pcrial" foi desenvolvida para dar conta das múltiplas maneiras
tas da Federação, no início da Revolução Francesa, foram precisa- , 111110 as representações paisagísticas foram integradas à constru-
mente, escreve Michelet, momentos extraordinários de descober- ~ .10 dos imaginários coloniais. 22 Poderíamos, assim, multiplicar
ta da paisagem e da natureza, que se tornaram, simbolicamente, lww os exemplos ligados a esse tipo de estudo.
as encarnações da ideia republicana: A bem da verdade, de um ponto de vista estritamente
111t·Lodológico, a ampliação do espectro das disciplinas inte-
Os locais abertos, os campos, os vales imensos onde, geralmente, 1l'ssadas pela paisagem não significa um questionamento da
aconteciam essas festas pareciam abrir ainda os corações. O ho- l'l<'>pria noção de paisagem como imagem, como construção fi-
mem não apenas tinha se reconquistado, estava tomando posse l'.mativa de origem humana, quer in visu, quer in situ. A abor-
da natureza. Várias dessas narrativas dão tes temunhos das emo- il.1gcm iconográfica vale tanto como uma concepção estética
ções que o seu país, visto pela primeira vez, deu a esses pobres .. . 1 l.1 representação quanto como uma concepção cultural mais
coisa estranha! Esses rios, essas montanhas, essas paisagens gran- .1lirangente. A ideia que se impõe, em todos os casos, é que a
diosas, que atravessavam todos os dias, foram descobertos na- p.1 isagern é como um texto humano a ser decifrado, como um
quele dia; nunca os haviam visto (Michelet, J., 1952, p. 411).20 ,1gno ou um conjunto de signos mais ou menos sistematica-
111cnte ordenado, como um pensamento oculto a ser achado
As paisagens, mais exatamente alguns smos escolhidos 1H>r trás dos objetos, das palavras e dos olhares. Como escreve
pelo valor histórico, memorial e/ou natural, vêm, então, concre- 1 )avid Lowenthal, a paisagem
tamente, concentrar neles, como num apanhado do território, a
consciência do pertencimemo nacional. A montanha suíça, mas [... ] é não apenas um lugar imediatamente presente, mas tam-
também a floresta alemã, a planície húngara, a landa escandinava bém um lugar de memória. [.. .]Tanto nos lugares como nas pes-
ou o campo romano, seja em forma de representações picturais
e literárias ou de instalações concretas, tais como jardins e par- 1885-1945. Cambridge, Mass., and London: H arvard Universiry Press, 2004;
ques, apresentam-se como os estereótipos vivos da comunidade Corbett, D. P.; Holt, Y. and Russell, F. (ed.). The Geographies o/Englishnm: Land-
21 •cape and the National Past J880-1340. London and New H_aven: Yale .U~iversiry
nacional. No mesmo tipo de perspectiva, a noção de "paisagem
l'ress, 2003; Ely, C. This Meager Nature. Landscape and National ldentity m impe-
20
rial Russia. DeKalb: Norrhern Illinois U niversiry Press, 2004. Ver o relatório de
Michelet, ]. Histoire de la Révolutionfrançaise. Paris: Gallimard, 1952, r. 1, p. Brice, Carherinc. "Building Nations, Transfo rming Landscapcs". Contemporary
41 1 (Bibliotheque de la Pléiade). Ver o comentário que faz Marc Richir em: Du European History, v. 16, n. 1, 2007, pp. 109-19. . . .
sublime en politique. Paris: Payor, 1991, pp. 13-83. · Cf., enrre outros: Ryan, J. R. Pictun'ng Empire: photography and the vrsualtzation
21
Walter, E Les Figures paysageres de la nation. Territoire et paysage en Europe (XV!'- of the B1·itish Empire. Chicago: Universiry of Chicago Press, 1998; Mitchell, W.
XX' siede). Paris: Edirions de l'EHESS, 2004. A literatura dedicada às relações J. T. "Imperial Landscape". ln Mitchell, W. ]. T. (ed.). Landscape and Power.
entre olhar paisagístico e fabricação das representações nacionais é hoje extre- Op. cit., pp. 5-34; Sluyrer, A. Cownialism and Landscape. Postcolonial Theory.and
mamente rica, especialmente no mundo anglófono. Entre as obras mais estimu- Applications. L1nham/Oxford: Rowman & Litclcfield Publisher~, 2002; Driver,
lantes: Thompson, R. (ed.). Framing France. lhe Representation of Landscape in E and Cilbert, O. Imperial Cities: Landscape, Display and Identzty. Manchester:
France, 1870-1314. Manchester: Manchester Univcrsiry Prcss, 1998; Lekan, T. Manchester Universiry Press, 2003; Casid, ]. H. Sowing Empire: Landscape and
M. lmagining the Nation in Nature: Landscape Preservation and German ldentit;\ Colonization. Minneapolls: University of Minnesota Press, 2005.
22 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem... 23
soas, o olhar da mente percebe um palimpsesto construído na Multiplicam-se as pergunras a esse respeito. D~ que f~r.ma
base de todas as nossas experiências passadas, de nossas hipóteses odcmos falar da paisagem das grandes metrópoles mdusma1s e
11
passadas e atuais sobre a história da paisagem (Lowenthal, D ., 1m industriais que se desenvolveram com os séculos XIX e XX?
1
2008, p. 14).23
1levemos con tinuar falando em termos de "be1eza" e "harmoma . ,,,·
26
,\ vategoria do "pitoresco" ainda tem um significado, e qual? Em
Uma abordagem hermenêutica das representações paisagís- iJlll' "língua" essas paisagens devem ser faladas, des~rit~s, narradas?
ticas é, nesse caso, perfeiramenre legítima.
t 'orno pensar, por exemplo, e representar a emergenc1a dos n ~vos
11h jctos paisagísticos que são hoje os espaços urbanos, os .eq~1p~-
A invenção de novas paisagens
111t·ntos industriais, os sistemas de armazenamento e de d1stnbu1-
11,10 da energia, as autoestradas, os artefatos diversos lig~dos ~vida
Entre as muitas perspectivas de pesquisa abertas por essa , onremporânea, que põem em jogo os valores da func1onahd~de,
abordagem , a mais promissora é, sem dúvida, a que se preocupa il.1 intensidade, da velocidade, da mobilidade? Como, além disso,
em fazer diretamente a pergunta a respeito das relações, a diferen- lrvar em conta a renovação das formas e dos ritmos plásticos que
tes épocas da cultura, entre, por um lado, o surgimento de novos
111Tpassou a arte desde os primórdios d~ ~é~ulo XX?.Co~ .ªajuda
objetos paisagísticos e, por outro, a definição de novos valores e nor- dl' que instrumentos formais? Que sens1b1hdades pa1sag1st1cas no-
mas paisagísticos. "Cada paisagem tem sua própria linguagem", es-
~ .1s vemos aparecer? .
creve Alain Roger, de forma muito justa. 24 Se a linguagem do idí- Hoje, muitos são os artistas que, prolongando o impulso
lio e da Arcádia e a pintura de paisagem clássica (a de C laude, por d.i<lo por Michael Heizer, Robert Smithson, Richard Long, ou,
exemplo) dialogam, elas fracassam, entretanto, quando se trata l'lll outro registro, Christo e Jeanne-Claude, Andy Goldsworthy,
de expressar novas categorias estéticas e de incluir outros objetos l' lltre outros, procuram, de uma fo rma ou de outra, ultrapassar o
paisagísticos. Sabemos, por exemplo, que o discurso do sublime
1 , 1mpo tradicional do exercício da arte para interrogar, de forma
se desenvolveu correlativamente ao aparecimento de dois novos
111 ais ampla, as relações que a obra mantém com o real, o espa-
objetos, que assumiram, então, um valor paisagístico: o mar e a 1,o, 0 tempo, a matéria e, mais geralmente ainda, os q~adros ? er-
montanha. 25
1 qJtivos e simbólicos da experiência do .mundo. M.UitoS ams t~s
:: Lowcnrhal: D. Passage ~i~ temps sur !e paY_sage. Gollion, Infolio, 2008, p. J4.
Roger, Alam. Court traite du paysage. Paris: Gallimard, 1997, p. 10 J. '" Ver a forma como Roberr Smithson revisita as categorias do pitoresco e da ruína,
25
Cf.. Corbin, A. Le Territoire du vide. L'Occident et le désir du rivage, 1750-1840. na narrativa da sua visita dos "monumemos" de Passaic (Sm ithson, R. ' A_ Tour
Pans: Aub1er, 1988; Saint G irons, B. (dir.). Le Paysage et la Question du sublime.
0 f rhe Monuments of Passaic, New Jersey". ln Fiam, J. (ed.). Robert Smithson:
Catálogo da exposição do Museu de V.1.lence. Paris: RiVIN, 1997; Reichler, C. La rhe Collected Writings. Berkeley: University of California Pre_ss, L996, _PP: 68·
D~couverte des Alpes. Op. cir., 2002. Sobre a questão do sublime na pintura de 74); e 0 comentário feito po r S. M arot em 'Tare de la mémoHe, l~ te'.mou e et
p~1sagem, ver também: Nau, C. le Temps du sublime. longin et !e paysage poussi- l'architecture" (Le Visiteur, n . 4, 1999, pp. 114-76). Cf. também: Cnqu1, J.·P Un
men. Rennes: PUR, 2005.
irou dans la vie. Essaís sur l'art depuis 1960. Paris: D esclée de Brouwer, 2002.
24 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 25
nos territórios abertos da cidade e da natureza, a céu aberto. 27 A l111ugrafia, o cinema, as imagens de vídeo, mas também o trem,
arte tomou uma dimensão verdadeiramente geográfica nesse caso, 11 .1111omóvel, o avião deslocaram o problema da representação da
uma dimensão paisagística no sentido direto e literal do termo: 1· 11 ~.1gcm, e questionam, hoje, a herança da linguagem pictural
está preenchendo o espaço da paisagem, transformando, afinal de 1•111 meio da qual tal representação, vez por outra, ainda é pen-
contas, o próprio espaço num campo de experimentação artística. ' 1il.1. l~ preciso, portanto, levar em conta o papel desempenhado
l Finalmente, foram as próprias práticas artísticas que, ao transfor-
mar a noção de obra de arte para integrar não apenas as formas,
1•111 1.·sses diferentes dispositivos e suportes concrews nos quais são
artística desse tipo pode ser considerada, afinal de contas, dentro ili .málise e, mais certamente, pela falta de palavras e de conceitos.
do quadro mais geral de uma interrogação sobre a fabricação con- ~ 1.1 ~ está claro que se faz necessária uma nova linguagem.
temporânea das territorialidades. 29 Alain Roger, em seu Court traité du paysage, retoma a ima-
Para seguir no mesmo sentido, o de uma reflexão sobre a 1•1 111 do "artista oculista" de Marcel Proust. O pintor original
necessária ampliação dos horizontes da sensibilidade paisagística, ( llrnoir) detém esse poder mágico não só de modificar nossos
é possível assinalar em que os valores e as normas paisagísticas são 11ll1.1res, mas de mudar o mundo em que vivemos: 31
estéticos, sim, mas não unicamente. Têm também uma d imensão
material e técnica. Cada um pode medir o quanto não apenas a Mulheres estão passando na rua, diferentes daquelas de outrora,
já que são Renoir, os mesmos Renoir .nos quais nos negávamos
27
Tomo emprestada a exp ressão de Domino, Christophe. A ciel 01.tvert. Paris: Scala, antigamente a ver mulheres. Os canos também são uns Renoir,
1999. A melhor introdução a esse conjunco de impulsos arrísticos é a de Tiber- e a água, e o céu (Roger, A., op. cit., pp. 14-5).
ghien, G. A. Landart. Paris: Carré, 1993. Ver também, do mesmo autor: Nature,
art, paysage. Arles/Versailles: Acres Sud /ENSP, 200 l , bem corno Penders, A. F. En
chemin, le land art. Bruxellcs: La Leme Volée, l 999.
O artista é instaurador de novos mundos, universos perecí-
28
Lembremos que, para Alain Roger, um país não é "naruralmente" uma paisagem. 1Ti'> e provisórios, acrescenta Proust, que durarão até "[... ] a pró-
1orna-se paisagem quando é tornado paisagem, isco é, "arrializado", integrado
a uma visão estética, que também pode evoluir no tempo como acabamos de
dizer: "Existem 'país' e paisagens, assim como existem nudez e n us. A natureza é " Ver as observações sobre a vista aérea e o fururismo no capírulo segui nte. A res-
indeterminada e s<Í recebe as suas determinações da arte. [...] O país é, de alguma 1wilo do cinema, ver: Morrer,]. (di r.). les Paysages du cinéma. Seyssel: Champ
forma, o grau zero da paisagem, o que antecede a sua arcialização, seja ela direta v,11lon, 1999; Costa, A. (dir.). "Le paysage au cinéma". Cinémas, V. 12, 11. ],
(in súu) ou indireta (in visu)". (Court traité du paysage. Op. cit., pp. 17-8.) '.OOJ; Narali, M . L1mage-Paysage. lconoÚJgie et cinéma. Sainc-Oenis: Presses Uni-
29
Pensamos, em particular, a esse rcspeiw, no rrabalho <lo casal Christo/Jean ne- vnsitaires de Vincen nes, 1996.
-Claude, ral como foi escudado por A. Volvey na sua tese, Art et spatialités: ceuvre " Rogcr, AJain. Court traité du paysage. Op. cit., pp. 14-5. Alain Roger cita Le Côté
d'art, objet d'art, et expérience esthétique d'apres l'a:uvre in si cu de Christo etJeanne- rlf' Guermantes. ln A la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 195 3, v. 2, p.
-Claude (Universidade Paris-1, 2003). 127 (Bibliorheque de la Pléiade) .
24 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 25
nos territórios abertos da cidade e da natureza, a céu aberto. 27 A (orografia, 0 cinema, as imagens de vídeo, mas também o :rem,
arte to~ou uma dimensão verdadeiramente geográfica nesse caso, 0 automóvel, 0 avião deslocaram o problema da representa~ao da
uma dimensão paisagística no sentido direto e literal do termo· paisagem, e questionam, hoje, a herança da linguag~m p1,ctural
está preenchendo o espaço da paisagem, transformando, afinal d~ por meio da qual tal representação, vez por outra, amda e pen-
c~ntas, o próprio espaço num campo de experimentação artística. sada. t, preciso, portanto, levar em conta o papel desempen~a~o
Fmalmente, foram as próprias práticas artísticas que, ao transfor- por esses diferentes dispositivos e supone.s concretos n?s quais s~o
mar a noção de obra de arte para integrar não apenas as formas, n:alizadas as percepções e produzidas as 1magen~: o~ s~stemas tec-
mas tam~ém as atitudes e as situações e, mais geralmente, os da- 11 icos contribuem para definir tanto objetos pa1sag1sucos quanto
dos usu~1s. da experiência do mundo revelaram que a noção de ;1fet0s de um tipo peCLiliar. 30
uma amal1zação paisagística devia ser repensada do zero, 2H e, em É difícil, na verdade, identificar as paisagens que estão apa-
todo caso, fo ra dos quadros restritos da pintura. Uma atividade recendo hoje. Talvez por ausência de distanciamento e pela ~alta
artística desse tipo pode ser considerada, afinal ele contas, dentro de análise e, mais certamente, pela falta de palavras e de conce1t0s.
do quadro mais geral de uma interrogação sobre a fabricação con- Mas está claro que se faz necessária uma nova linguagem. .
temporânea das territorialidades. 29 Alain Roger, em seu Court traité du paysage, retomaª. 1i:ia-
Para seguir no mesmo sentido, o de uma reflexão sobre a gem do "artista oculista" de Marcel Proust. O pi~tor ongmal
~ecess~ria a~pliação dos horizontes da sensibilidade paisagística, (Renoir) detém esse poder mágico não só de modificar nossos
. 31
e po~sivel ~ssmalar em que os valores e as normas paisagísticas são olhares, mas de mudar o mundo em que vivemos:
estéucos, sim, mas não unicamente. T êm também uma dimensão
material e técnica. Cada um pode m edir o quanto não apenas a Mulheres estão passando na rua, diferentes daquelas de outrora,
já que são Renoir, os mesmos Renoir nos quais nos negávam~s
27 antigamente a ver mulheres. Os carros também são uns Renoir,
Tomo emprestad~ a expressão d e Domino, C hristo phe. A cie/ ouvert. P~ris: Scala,
19?9· A melhor 1nrrodução a esse conjunto d e impulsos artísticos é a de: 't'iber- e a água, e o céu (Roger, A., op. cit., PP· 14-5).
ghien, G . A land art. ~aris: Caué, 1993. Ver também, do mesmo allCo r: Nrrture,
art, P~ysage. Arles/Vcrsa1ll es: Actes Sud/ENSl~ 200 t, bem como Pcndcrs, A. f•'. En O artista é instaurador de novos mundos, universos perecí-
chemrn, !e lrmd art. Bruxelles: La Letrre Volée 1999 ~ , "[ ] ,
28
Lembremos .q ue ' Para AJ am · Roger, um pais' nao
: e• "naruralmenre
. ,, uma paisagem. veis e provisórios, acrescenta Proust, que durarao ate ... a pro-
Torna-se. ~a1sag~m quando é ramado paisagem, isto é, "artializado", integrado
a. uma" visao esr~nca, que também pode evolu ir no tempo como acab~ mos de
~1zer: E~1stem país' e paisagens, assim como exisrem nudez e nus. A natureza é .10 Ver as observações sobre a vista aérea e o futurismo no capítulo seguinte. A res-
1ndctermtnada
{; e só recebe. as suas determinações da •arre . [... J O pais' é, de .a 1gurna peico do cinema, ver: Mottet, J."(dir.). Les J>aysa~es du ~mé~ta. Seyssel: Champ
~rma, o gr~u ~ro da. pai~ag;m, o que anteced e a ~ua arrialização, seja ela direta Vallon, 1999; Costa, A. (dir.). Le paysage au cméma '. Cmém~s, v. 12, n. ~·
<:n sttu) ou mducca. (m vzsu) . ( Court tra1té du paysage. Op. cit., PP· 17-8.) 2001; Nacali, M. L'lmage-Paysage. !conologie et cinéma. Samr-Dents: Presses Um-
29
I ensamos, em parn~ular, a esse respeito, no trabalho do casal C b risto/Jea nn c- versiraires de Vincenncs, 1 996. . ~ ,
-~lau<le'. tal ~orno fo1escud ado p or A. Volvcy na sua tese, Art et spatialités: fntvre li Roger, Alain. Court traité du PªJ'Srige. Op. cit., PP· 14.-5 . Ala'. n Roger cm Le Cote
d art, ob;et d ~rt, ~t expérience esthétique d'r.tpres l'a!uvre in siru de Christo et j eanne- de Guermantes. ln A la recherche du temps perdu. Pans: Gall1mard , 1953, v. 2, P·
-Gaude (Un1vcrs1dade Paris-I, 2 003). 327 ('B ibliotheque de la Pléiade).
26 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 27
xima catástrofe geológica desencadeada por novo pintor ou novo simplesmente outra dimensão, pois ela põe em contato a esfera da
escritor original". produção artística, propriamente dita, com outras determinações,
O que podemos concluir a não ser certa forma de confian- outros atores, outros desafios. E, sobretudo, a própria existência
ça? É do lado dos artistas e nas linguagens novas que eles propõem dessas realizações impede que se faça delas representações mentais
que, talvez, possamos aprender a ler e a apreciar as paisagens nas ou verbais puras e simples. Essa artialização in situ que é um jar-
quais a organização da vida contemporânea nos levou a viver. dim é, ao mesmo tempo, um lugar real, um espaço frequentado,
uma porção de território, mesmo reduzida. Em outras palavras, 1
A paisagem é um território fabricado e habitado (leitura de embora possa ser consid erado, com razão, ;.im veículo do imaginá-
John BrinckerhoffJackson) rio ou a expressão concentrada de um conjunto de afetos, embora
tr~duza de forma acordada um sistem; de ideias ou de desejos, o
No entanto, até onde podemos sustentar uma posição te- jardim também é um espaço desenhado, produzido, cuidado. A
órica que reduzisse a paisagem a ser apenas um discurso, uma sua apreensão exige, consequentemente, a adoção de uma pers-
imagem, um olhar, ou urna representação? Corno dar conta, por pectiva teórica suplementar, que leve em conta a dimensão das
exemplo, nessa perspectiva, dos objetos, das atividades, ou das re- práticas de fabricação e dos usos do espaço, isto é, colocando-se
alizações artísticas, como as que acabam de ser evocadas, que se na perspectiva de uma reflexão sobre as formas concretas da habi-
desenvolvem em escala territorial? tação do espaço. _
A escolha de uma escala sempre é, como se sabe, ao mes- Seguindo essa outra abordagem, a paisagem pode ser definida
mo tempo, a escolha de um tipo de problema; e, à medida que como um território produzido e pratiêado pelas sociedades huma-
cresce a escala do estudo (do quadro de pintura ao jardim e ao nas, por motivos que são, ao mesmo tempo, econômicos, políticos e
território), o conceito de paisagem modifica-se inevitavelmente, culrnrais] A d istinção entre país e paisagem, que fundamenta a pró- -
bem como o questionário ao qual é submetido. É possível, por pria existência da paisagem como tal, segundo Alain Roger, é então
conseguinte, introduzir algumas nuances a uma abordagem pura- consideravelmente atenuada e, no mínimo, redefinida. Efetivamente,
~
mente "representacional" da paisagem, o u até procurar enriquecê- nessa perspectiva, o valor paisagístico de um lugar não é considerado
' -la, mostrando que uma interrogação sobre a construção cu ltural unicamente do ponto de vista estético (embora também o seja), é
das paisagens também deve levar em conta a dimensão d e obje- considerado mais em relação com a soma das experimentações, dos
tividade prática da paisagem, isto é, a sua parte irredutivelmente costumes, das práticas desenvolvidos por um grupo humano nesse_
. material e, sobretudo, espacial. lugar. Muitos já. assinalaram o parentesco da paisagem, do pagus e
O exemplo da história dos jardins apresenta-se aqui como da pagina, no registro comum da inscrição, do marco plantado e da .
uma objeç~o a um intelectualismo restritivo nas concepções pai- fundação do sentido.32 A paisagem seria como um tipo de geografia
sagísticas. E bem verdade que é preciso ligar essas realizações con-
cretas que são os jardins a sistemas de ideias e de representações
~2 Ver, por exemplo, Michel Serres: "Não pergumem mais como se vê uma paisa-
dos quais são as expressões visíveis, mas a escala de espaço à qual gem, pergunta de criança mimada que nunca trabalhou, procurem saber como
vão se desdobrando leva a deslocar o problema, conferindo-lhe foi desenhada pelo jardineiro; como vem sendo composta lentamente pelo agri-
28 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 29
objetiva, uma escrita na superfície da Terra, produto nem sempre ências sociais da sua época, articula-se a partir de dois enunciados
consciente nem intencional (mas também pode ser) das atividades mais importantes, principalmente: a paisagem é um espaço organi- l
humanas. Escrita, agricultura: os dois termos parecem dialogar numa zado, isto é, composto e desenhado pelos homens na superfície da
alusão comum ao ato de cavar, gravar, talhar, sulcar e traçar formas Terra; a paisagem é uma obra coletiva das sociedades que transfor-
de modo durável num suporte mais ou menos macio, mais ou menos mam o substrato natural.
resistente. A consideração dessa "escrita paisagística" implica, afinal Antes de voltar em detalhe a esses dois pontos, cabe uma
de contas, certo afrouxamento da distinção entre a esfera artística observação: essa abordagem teórica concebe a paisagem como
propriamente elita e as €sferas sociais e cul~urais) . uma p.!_odução cultural) mas considera a cultura nos níveis ma-
Para explorar essa outra perspectiva, podem servir de base terial e espacial, isto é, a cultura encarnada em _erática~ obras e
as reflexões de um dos principais representantes do pensamento produções de todo o tipo. Sobretudo, Jackson toma distância de
contemporâneo da paisagem nos Estados Unidos: o histor iador e uma concepção que fosse puramente "estética" da paisagem. Não
teórico John Brinckerhoff Jackson (1909-1996), fundador da re- vemos mais a paisagem, escreve,
vista Landscape (em 1951), que lecionou durante muiros anos nos
departamentos de arquitetura da paisagem em Harvard e Berke- [...) como separada da nossa vida cotidiana e, na realidade, acredita-
ley, e cuja obra continua sendo uma referência imprescindível mos hoje que fazer parte de uma paisagem, dela tirar a nossa iden-
no mundo anglo-saxônico. 33 A teoria jacksoniana da paisagem, tidade, é uma condição determinante do nosso estar no mundo,
34
cunhada num diálogo constante com a geografia humana e as ci- no sentido mais solene da palavra Qackson, J. B., 2003, p. 262) .
cultor, há milênios [...J. Ele a compôs pagus por pagus. Ora, essa mesma palavra Portanto, conclui, não é "apenas em função do seu perten-
latina, de velh.a língua agrária, assim como o verbo pango nos d itam ou dão cimento ou da sua conformidade com tal ou tal ideal esté_tico" que -
a página, página que, esta manhã, estou lavrando com sulcos regulares, com a
devemos considerar as paisagens , mas também pelo modo como
relha elo estilo, pequeno recorte onde se ftxa, se planta, se estabelece a ex istência
de quem escreve, onde é canrada." (les Cinq Sens. Paris: Grasset, 1985, p. 260.) satisfazem algumas necessidades "existenciais" do ser human.5?
Mesma analogia entre paisagem e escrita encontrada em Tilley, C. A Phenomeno- (necessidades existenciais, aliás, que são, sobretudo, necessidades
logy ofLandscape. Places, Paths, and Monuments. Oxford: 13erg Publishcrs, l 994 afetivas e sociais).
(especialmente no capítulo l).
33
Para uma introdução à vida e obra de J. B. Jackson, ver a compilação realizada por:
Horowitz, Helen Lefkowirz. landscape in Sighi. Looking at America. Ncw Haven A paisagem é um espaço organizado
and London: Yale University Press, 1997. Dois livros de Jackson foram traduzidos
em francês: A la découverte du paysage vernaculaire. Arles/Versailles: Actcs Sud/ A paisagem não é simplesmente uma representação men-
ENSP, 2003, e De la nécessité des ruines et autres sujets. Paris: Le Linteau, 2005. Para
medir o impacro do pensamento de Jackson nos Estados Unidos, em particular,
tal. É "um espaço na superfície da Terra", afirma Jackson, que
ver: Meining, D. W. (ed.). The fnterpretation ofOrdinary Landscapes. Geogrttphical acrescenta: "[...] sabemos instintivamente que se trata de um es-
Essays. Oxford University Press, 1979; Groth, P. & Bressi, T. W. (ed .). Undm1r111d-
ing Ordinary landscapes. New Haven and London: Yale Universiry Press, 1997;
Wilson, C. e Grorh, P. (ed.). Everyda)' America. Cultitral Landscape Studies after}. Ji Jackson, J. B. A ia découverte du paysage vernaculaire. Arles/Versailles: Actes Sud/
B. Jackson. Berkeley: University of California Press, 2003. ENSP, 2003, p. 262.
30 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 31
paço com certo grau de permanência, com seu caráter exclusivo, Podemos fazer o mesmo tipo de observações a respeito da palavra
topográfico ou cultural, e, sobretudo, de um espaço comum a um .demã Landschaft (de onde deriva na realidade landscape) e da
grupo humano". 35 palavra francesa paysage. Alguns historiadores notaram a ligação
É verdade que a paisagem também é uma maneira de entre -schaft e as noções de conformação, organização, comidas
ver e imaginar o mundo. Mas é primeiramente uma realidade 110 verbo schaffen, que se encontra, por exemplo, em Gemeinschaft
objetivai, material, produzida pelos homensLToda paisagem é (comunidade). Da mesma forma, em francês, 38 -age remete ao
cultural, não essencialmente por ser vista por uma cultura, mas mesmo tempo à ideia de uma ação (graças à qual algo é realizado
...
essencialinente por ter sido produzida dentro de um conjunto ou produzido,jardinage) e à ideia de uma coleção, de um conjunto
d e práticas (econômicas, políticas, sociais), e segundo valores (feui!lage). De qualquer forma, para Jackson, a consequência é
que, de certa forma, ela simboliza. Jackson adota aqui o mes- clara: a paisagem é "uma composição de espaços criados pelo
mo po nto de vista sustentado por Eric DardeJ, em L 'Homme et homem no solo". Há um milênio, acrescenta, a palavra "não tinha
la Terre: "[... ] a paisagem não é, na sua essência, feita para ser nada a ver com a encenaçao - ou a evocaçao- d o teatro"39
.
olhada, mas sim inserção do homem no mundo, lugar de luta Por conseguinte, o primeiro objeto que deve preocupar
pela vida, manifestação do seu ser com os outros, base do seu <lquele que estuda as paisagens é a forma como o espaço foi or-
ser social". 36 ganizado pela comunidade. Ler a paisagem é perceber modos ~e
A própria história da palavra landscape (mas também da o rganização do espaço. Estudar a organização do espaço quer d i-
palavra paisagem), tal como Jackson a reconstrói no primeiro ca- zer, por exemplo, responder às seguintes perguntas: como a co-
pítulo de A la découverte du paysage vernaculaire, defende a sua munidade traça uma fronteira, reparte as terras entre as famílias,
posição. Landscape é composto de land escape. 'A.té na etimolo- constrói estradas e u m local para as reuni6es públicas, e reserva
gia mais remota, land sempre designou um espaço definido, com terra para o uso rnunicipal? 40 ~ paisagem é um espaço sociall ~~n
fronteiras, mas não necessariamente cercas ou muros."37 vém interessar-se, de fo rma mais geral, pelas fo rmas espac1a1s e
A palavra land designa, primeiramente, o que os camponeses sua diversidade, pelos elementos estruturantes e pelas d inâmicas,
chamam de "terra", isto é, um espaço que é, ao mesmo tempo, morfologias e fluxos que as atravessam e as transformam, pelas
fechado e faz pane de um espaço mais amplo, que é aberto. A descontinuidades do espaço e pelas circulações, pois todos esses
forma scape, assinala Jackson, remete a uma família de termos que traços permit em caracterizar uma paisagem: o ponto de vista me-
designam "aspectos coletivos do meio ambience": sheaf, shape. ship. todológico de Jackson , que ele procura pôr a serviço da arquitetu-
Nesse sentido, remete a noções de conjunto, de coleção, de sistema. ra da paisagem, é o de u~eógrafo. .
A organ ização espacial da paisagem traduz, amda, uma
35 lbid., p. 51. forma de organ ização da sociedade, bem como as representa-
16
Dardcl, E. L'Homme et la Terre. Paris: CTHS, 1990 [ l 952], p. 44. A rcspl'Í IO da
concepção dardeliana da paisagem, ver: Besse, J.-M. Voir la Terre. Six 1•.1.1r1i.1 wr /e
paysage et la géographie. Arles/Versailles: Actes Sud/EN SP, 2000, pp. 125-li li. JS Também é o caso em português: jard inagem, folhagem [N . do T.].
37
Jackso n,]. B. A la découverte du paysage vernaculrlire. Arles/Vc rs~i llcs: At:ll.'~ S11d/ 39 Ibid., p. 55.
ENSP, 2003, p. 53. 40
Ib id ., pp. 114-6.
32 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem ... 33
ções e os valores culturais que amam nessa sociedade. A paisa- que produzem o arquiteto ou o planiflcador, embora em maior
gem é uma forma de os homens darem uma medida e um senti- escala (Jackson, J. B., 1969, p. 33). 42
do à superfície da Terra. Toda paisagem, de um modo que lhe é
próprio, é relativa a um projeto social, mesmo que esse projeto Nesse sentido, as distinções que costumam ser feitas entre
não seja "consciente", mesmo se for a tradução inconsciente .1 paisagem comum, que seria produzida inconscientemente por
da organização de uma vida social. Consequentemente, aquele 11 ma coletividade humana, e a paisagem intencional, que seria
que pretende estudar as pa isagens tem com o tarefa primeira e' rnnscientemente projetada pelos profissionais, assim como as dis-
essencial ler e interpretar as formas e as dinâmicas paisagísticas tinções entre a construção civil e a arquitetura de paisagem, são
para aprender ne las algo do projeto da sociedade que produziu disrinções que deixam de ser tão rígidas: pois, em todos os casos,
essas pa isagens. 41 e em todos os níveis, o objetivo é a organização de um espaço que
Num artigo publicado em 1969 na revista Landscape, Jack- possa responder a necessidades humanas.
son destacou essa d imensão projetual de toda paisagem, em geral,
convocando uma analogia interessante com a cartografia: li paisagem é uma obra coletiva das sociedades
Uma fo rma útil de definir a geografia cult ural é d izer que é 0 es- O aspecto "morfológico" da paisagem é, na realidade, a ex-
tudo da organização do espaço, o estudo dos motivos aleatórios pressão de uma relação mais profunda, "vertical", entre o homem
(random patterns) que impomos na superfície da Terra pela nos- e a superfície da Terra, uma relação ativa e prática pela qual o
sa vida, nosso trabalho, e nossos deslocamentos. Segundo essa homem transforma o seu meio natural. As atividades humanas
d efinição, a paisagem pode ser vista como um mapa vivo, uma inscrevem-se no solo e o transformam. A paisagem não é, portan- ·
composição de linhas e d e espaços não muito diferente daquela to, um simples conjunto de espaços organizados coletivamente
pelos homens. É também uma sucessão de rastros, de pegadas que
se superpõem no solo e constituem, por assim dizer, sua espessura
11 tanto simbólica quanto material. A paisagem também é um lugar
Na ~o nclus~o do seu livro sobre a história dos arvoredos da França do Oeste,
de memória, no sentido que dá ao termo Mam ice Halbwachs: "O
Anme Amorne converge com as intuições de Jackson: "O aspecto dos campos
e o dos espaços mculros são man ifes tações da fo rma co mo o espaço é uti lizado local ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre
e.pensado pelos agricultores. [... )A paisagem aparece como o revelador do fun- o qual se podem escrever e apagar números e figuras. [... ] [Ele]
cwnamento de _uma sociedad~ em dado momento. [...] Interrogar a paisagem recebeu a marca do grupo, e reciprocamente".43
em termos de h1stonador consiste, po r exemplo, em observar como se rraduzem
no so~o a variedade das parcelas, a das propriedades e a das técn icas agdrias. Da
d uraçao das ro~ações culturais, dos métodos de construç.'ío e de man utenção das 4
' Jackson, J. B. "A New Kind of Space". Landscape, v. 18, n. 1, 1969, p. 33.
cercas, d_as técni cas de lavoura e de trabalho do solo depende obviamente 0 aspec- " Halbwachs, M. La Mémoire collective. Paris: Albin Michel, 1997 [1950], p.
ro da pa1sage:11, rural". (Le Paysage de L'historien. Archéologie des bocage> d<' l'Ouest 196. A paisagem não é como um quadro-negro, mas sim como um palimp-
de la France a l'époque moderne. Rennes: Presses Universitaircs de Ren1H:s. 2000, sesto: conserva nela as ma rcas das camadas de escrita que foram raspadas e
PP· 229-30.) Ann ie Antoine não despreza, por outro lado, o papel das represen- apagadas. Sobre essa questão da memóri a, ver Marot, S. "L'art Je la mémoire,
tações na construção histórica da paisagem de arvoredos. le rerrito ire et l'architecture". Op. cit. (Hoje reromado em Sub-urbanism and
34 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 35
A paisagem, nesse sentido, é como uma obra, e a terra, o Uma paisagem não é um elemenro natural do meio ambiente,
solo, os elementos naturais são como materiais aos quais os ho- mas um espaço sintético, um sistema artificial de espaços super-
mens dão forma segundo valores culturais que também evoluem postos na superfície da Terra, que fun ciona e evolui, não segundo
no tempo e no espaço. A paisagem é uma maneira de os homens leis naturais, mas para servir uma comunidade[ .. .). Assim, uma
inscreverem seu meio terrestre dentro de uma duração ou de uma paisagem é um espaço criado proposicalmence para acelerar ou
durabilidade que não se confundem com os ritmos naturais, para colher o processo natural. [... ] Representa o homem assu-
1 transformando assim esse meio em mundo histórico. 44 mindo o papel do tempo Qackson, J. B., 2003, p. 55).
46
tureza humanizada, humanidade naturalizada: a paisagem é uma Mas podemos também deduzir outra consequenc1a, relattva
realidade ontológica de um gênero próprio, dotado de um espaço ao sentido da paisagem. Qualquer que seja o projeto que veicula,
e de um tempo que lhe são próprios. Jackson destaca esse ponto a paisagem é a expressão de uma indagação a respeito do bem-
em vários trechos: -estar o u da "boa convivência" das comunidades h umanas, encar-
na uma indagação sobre os valores que podem fundamentar essa
"boa convivência" , bem como sobre o quadro espacial e material
real dentro do qual essa "boa convivência" pode ser realizada.
the Art ofMemory, "Architecturc Landscape Urbanism", n. 8. Londres: A rchi-
tectural Association, 2003.
11
Cf. Arendt, H. la Condition de L'homme modenze. Paris: Calmann-Lévy, 1968.
45
Brunhes, J. La Géographie humaine. Paris: F. Alcan, 1912, p. 41. 4<> Jackson, J. B. A la découverte du paysage vernaculaire. Op. cit., p. 55.
36 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 37
Pois, como escreve Jackson, foi assim que as paisagens fo- 0 homem. O eixo central da reflexão está aí: a paisagem é a l(
ram formadas, sempre; não apenas por decisão topográfica ou po- expressão de um esforço humano, sempre frágil e a ser recome- •.
lítica, mas pela organização das pessoas no local e pelo desenvol- çado, para habitar o mundo. 48
vimento de espaços a serviço da comunidade: trabalho lucrativo,
lazer, contatos humanos, contatos com a natureza, com o mundo A paisagem é o meio ambiente material e vivo das sociedades
exterior. De uma forma ou de outra, esses são os objetivos a que humanas
tendem todas as paisagens .. .47
A noção de paisagem adquire aqui, portanto, como se vê, O ecúmeno
uma significação muito abrangente: a paisagem é um espaço
político, e talvez um espaço mais social e cultural que político. Das análises acima, podemos concluir que a paisagem não
Observação decisiva, pois permite relativizar, ao mesmo tem- é apenas uma vista, uma imagem ou um pensamento. Também é
po, a concepção estetizante (ou pitoresca) da paisagem e a con- um mundo vivido, fabricado e habitado por sociedades humanas
cepção determinista. A tese está claramente enunciada num ar- em constante mudança. Ou seja, a paisagem identifica-se com o
tigo publicado em Landscape, durante o inverno de 1963-1964 ecúmeno humano.
(volume 13, nº 2), a respeito da conservação das paisagens: Essa noção de ecúmeno nos leva a fazer novas perguntas.
nele, podemos ler que, entre todas as razões que se pode ter Lembremos efetivamente que, para os geógrafos, durante muito
para preservar um fragmento de paisagem, a razão estética é tempo, o ecúmeno só representou uma parte (cerca de um quar-
certamente a mais pobre. Temos que achar novos critérios para to) da superfície do globo terrestre. E, a bem da verdade, os dois
L avaliar as paisagens, existentes ou futuras. Para tanto, é preciso espaços, o do ecúmeno e o do globo, permaneceram muito tem-
58
"."er, para um desenvolvimento dessa perspecciva: Berque, A. Médiance. De mi-
/Jeux en paysages. Mompellier: GIP Redus, 1990; e, sobretudo: Ecoumene. fntro- tions. Paris: TEC & DOC, 1999. Ver também: Clergeau, P. Une écologie du pay-
duction à l'étude des milieux humains. Paris: Belin, 2000. sage urbain. Rcnnes: Apogée, 2007. O livro de V. Berdoulay e M. Phipps (dir.),
59
A melhor introdução geral, em língua francesa, à ecologia da paisagem continua Paysage et systeme. De l'organisation écologique à l'organisation visuelle, edi ca<lo pela
sendo: Burel, F. e Baudry, J. Ecologie du paysage. Concepts, méthodes et applica- Universidade de Ottawa, 1985, é sempre útil.
44 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 45
formas espaciais objetivas são partes interessadas da evolução dos Como vemos, a paisagem em questão não é vista aqui uni-
processos paisagísticos. 60 camente como a tradução de um valor ou de uma decisão hu-
A paisagem apresenta-se então, neste caso, como uma mor- manos: embora estes intervenham, até certo ponto, no processo
fologia dinâmica, mais precisamente como uma totalidade atra- paisagístico, devem ser mediados pela totalidade dos elementos
vessada por dialéticas internas e externas que se desdobram entre do sistema com os quais lidam inevitavelmente. Podemos até
dizer que a sua realidade (enquanto valor, pensamento ou ação)
1 texturas, formas espaciais e temporais, fluxos, matérias desloca-
das e transportadas, e funções mais, ou menos, perfeitamente dd-se nessas mediações. Tal como concebida aq ui, a paisagem ,
preenchidas. Essas dialéticas, na verdade, constituem a paisagem nas suas espacialidades como nas suas temporalidades, não de-
como tal na sua realidade concreta. Mais globalmente talvez, é pende apenas do humano, embora este ocupe uma posição às
essa dialética entre, por um lado, certa estabilidade das formas e, vezes determinante. Mas deve ser entendida como o ponto de
por outro, a renovação das funções, a reorientação dos fluxos e a encontro entre as decisões humanas e o conjunto das condições
modificação da sua intensidade, enfim a substituição das matérias, materiais (naturais, sociais, históricas, espaciais etc.) nas quais
que faz, pode-se dizer, a história da paisagem. T alvez possamos ir surge e tenta formular-se. Mais ainda, nessa perspectiva, a paisa-
mais longe nesse ponto, e considerar a ideia de uma história da gem pode ser definida como uma realidade material, espaçotem-
paisagem que fosse articulada em torno de uma dinâmica inerente poral, organizada em certo sentido, com a qual os seres humanos
às próprias formas paisagísticas, uma dinâmica que se desdobras- vão ter de se explicar.
se, aliás, segundo modalidades temporais não lineares. 61 Às vezes,
a forma paisagística é "morfógena", 62 ela dá eixos à história futura A paisagem é uma experiência fenomenológica
do espaço, e isso de forma autônoma.
Assim, vamos aprendendo, progressivamente, que a pai-
60
Ver: Pinchemel, P. e G. La Face de la Terre. Paris: Armand Colin, 1988, pp. 373-
sagem não é apenas uma representação mental ou uma obra da
90; e, em pamcular, a figura 88 (p. 381 ), que propõe uma "formatação sistêmica cultura. Possui uma realidade que pode ser objeto das inves-
do conceito de paisagem". tigações da ciência. Mais imediatamente ainda, essa realidade
61 A . , d
qu1, so po emos remeter aos trabalhos de Gérard Chouquer. Ver, em particu- paisagística apresenta-se ao ser humano num encontro con-
lar: L'Etude des paysages. Essais sur leurs formes et leur histoire. Paris: Errance, 2000.
J?estacaremos, principalmeme, a distinção feita por Chouquer enrre quatro moda-
creto, d iversamente modulado nos seus conteúdos e formas .
lidades espaç~-ternporais atuand o na história das formas paisagísticas: a sincronia, Ou seja, a paisagem é o atestado da existência de um "fora",
a h1sterecrorna, a diacronia, a ucronia (pp.125-27). Ver também: C houguer G. de um "outro".
"Laplace de l'analyse des systemes spatiaux dans l'~tude dcs paysages du passe:'. ln
Mas como referir-se a essa realidade, a essa exterioridade
C~ouquer, G. (ed.), Les Formes du paysage. Paris: Errance, 1997, t. III, pp. 14-24;
assim como, do mesmo auror: Quels scénarios pour l'histoire du paysage? Orientations da paisagem? Duas vias são possíveis: a ciência, como acabamos
de recherche pour L'archéogéographie. Coimbra-Porco: CEAUCP, 2007. de ver, e outra coisa, que vamos chamar aqui de experiência. A '
62
O termo (proposto por F. Favory) aplica-se à totalidade dos elememos paisagísti- ciência não é a única maneira de se referir à paisagem, nem mes-
cos que exercem uma influência sobre as formas "muito além d a época de criação
mo talvez a primeira: a paisagem é primeiramente sensível, uma
e de funcionamento" (Chouquer, G . "Laplace de l'analyse des systcmes spatiaux
[...]". Op. cit., p. 21). abertura às qualidades sensíveis do mundo.
46 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 47
d:rermina~os. E, na verdade, dizer nesse caso "a paisagem", j~ é veis, mexerem-se sobre ela, de leve, como formigas! (Id., ibid.).
j minha inércia de placa de sinalização, ser coexrensivo ao próprio 11 ,1, o trabalho sobre a língua que se faz em filosofia e em poesia
1111 dcsse fazer jus à experiência paisagística na s~a v~r~ade, como
mundo, enuar na sua ressonância universal, assumir o seu ritmo
(Maldiney, H., 1995, p. 31). 7' ~l somente na poesia e na filosofia o evento patsag1st1co pudesse
,cr restituído e levado ao auge da sua realidade.
Dizer o estranhamento De forma geral, somente a arte, como poema, e t~lvez a
11 iística podem d izer essa experiência da paisagem ou, ma1~, pr:-
Como então descrever, como dizer e representar esse espaço 1 isamen te, dar a ver e a ouvir essa paisagem como expenenc1a
da paisagem que nos en volve e nos transpassa, que nos desloca e lundamental, originária, da conivência com o mundo. A ~rte não
nos transborda? Como falar da paisagem, quando estamos além porque representaria a paisagem, mas porque 1!'1ostra a paisagem,
ou aquém da representação e do d iscurso no sentido usual desses porque a faz chegar como tal à presença e, mais ger~l~ente, P?r-
termos? E, mais exatamente, como fazê-la, ou melhor, deixá-la que faz aparecer o mundo enquanto mundo. O ~b!e,ttvo d~ P~~
falar? Qual é a palavra que poderia restiruir, ou melhor, como já tura de paisagem , escreve Erwin Straus, é tornar vlSlvel .º mv1s1-
fo i dito, prolongar a experiência paisagística considerada num tal vd, mas como coisa oculta, distante". 77 A verdadeira pmtura, a
radicalismo? Mais ainda, em que a língua poderia acolher e fazer verdadeira palavra, a autêncica apresentação da paisagem. ta~vez
soar a paisagem no seu próprio evento?76 residissem, no fundo, nessa arte de manter o segredo, de mdicar
Os discursos que se encarregaram, principalmente, dessa a sua p resença, ou a sua passagem, sem procurar m.edir .essa. pre-
interrogação sobre a língua e seus poderes de apresentação da ex- M.:nça. A experiência radical da paisagem não estana. cnsta11:z-ada
periência, assim como sobre as relações que ela mantém com o 110 estranho sentimento da iminência daquilo que iaz aqui, ao
momento próprio da sensibilidade paisagística, situam-se mais do lado, numa reserva inextinguível, o silêncio?78 Por sua vez, Jean-
lado da poesia e da filosofia (e até, às vezes, no caso da fenome- -l~ rançois Lyotard solicita a poesia, como "escrita ~a impo~s~vel
nologia, na exata articulação, embora sempre problemática, do descrição, a descritura". O que está em jogo na descntura poenca,
registro filosófico e do registro poético). C omo se, no fundo, ape- acrescenta, "é a matéria como paisagem, e não as formas pel~s
quais ela pode se inscrever". O estranha~ento prod,~zido pela pai- ,
7
s Maldiney, H. Aux déserts que l'histoire accable. L'art de Tal Coat. Paris: Oeyrolle, sagem "é absoluto, a implosão das própnas formas .
1995, p. 31. "O espaço de Tal Coar," acrescenta Maldiney (p. 58), "é o espaço
da paisagem, não de uma paisagem-espetáculo, mas de uma paisagem-meio. A
paisagem não está na nossa frente como um conjunto de objecos, a não ser que •7 Suaus E. Dusem dessens. Op. cit., p. 519.
a tenhamos convertido em sítio, isto é, em geografia pitoresca. Ela nos envolve e 'R Esse s~ntimento do horizonte como presença "ao lado" parec~ corrcspo~der,
nos uanspassa. Estamos imersos nela: o nosso Aqui só se refere a ele próprio". embora num registro diferente, à preocupação do paisagista ~lchcl. CoraJoud
76
Augusrin Berquc parece d11vidar dessa possibilidade, quando estabelece uma dis- quando dedara: "O espaço sobre o qual estão me peclin~o para intervir é m~s-.
tinção entre "pensamento da paisagem" e "pensamento paisagístico". O "pensa- interessante para mim que a forma como mantém rclaçoes com os espaços a sua
mento da paisagem'', caracterizado por um dualismo fundador, o da modernida- volta. Chamo isso de horizonte: a forma como cada espaço va7..a no espa~o ao
de, não pode restituir a autemicidade da forma de ser e de fazer que caracterizava Lado , que, por sua vez, vaza no espaço ao lado e, aos p?ucos,. atinge o que ~01 cha:
o "pensamenro paisagístico", que é um pensamento silencioso. Ve r Berque, A. La rnado de horiwme. Este último é, para mim, o conceito unificador da paisagem
Pensée paysagere. Paris: Archibooks, 2008. (Entrevista com P Madec, in Techniques & Architecture, n. 403, 1992, P· 62).
54 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 55
A paisagem como projeto questionar 0 estado do mundo, é sop~sá-lo naquilo que_ pode o~
i ncr aos homens que nele estão; cammhar é uma expenme~taçao
A caminhada: uma crítica do real do mundo e dos seus valores. A caminhada, de fato, requa~ifi.ca o
,.,paço, no sentido próprio do termo: dando-lhe novas qualidades,
Voltemos ao exemplo da(caminhada) Caminhar não é sim-
novas intensidades. .
plesmente uma forma de estar fora, passivamente, no mundo. O valor experimental e questionador da caminhada~' mais
1 Na caminhada, a sensibilidade é tão ativa quanto ativada, o es- i•,nalmente, dos deslocamentos dentro dos _espaços naturais e ur-
tar no mundo é orientado, articulado. Existem artistas (mas tam- li:inos, foi percebido e até teorizado ha muito tempo. ~s grandes
1
bém peregrinos) para quem cam inhar é fazer obra, para quem o tiictrópoles modernas tornaram-se ca~pos de exploraçoes ao mes-
deslocamento faz a forma: entre os mais famosos encontram-se mo tempo lúdicas e metódicas, sob d1vers~ fig~ras: .º fl~nar b~u-
hoje Richard Long e H amish Fulton, que concentram no exer- ··
l1t.: 1a1nano, a deambulação surrealista' a denva s1mac1onista, o ir a
cício concertado e prolongado da caminhada por um território / onzo do grupo Stalker.so Mas, a cada vez, trata-se de apreender,
o essencial da sua ação de artistas. 79 "No wa!k, no work", escreve dt.: revelar, ou até de construir idealmente _outro es~aç?, outras
Fulton . Para ele, trata-se de construir pela caminhada uma experi- representações e outras experiências possíveis, no propno espaço
ência, bastante próxima, afinal de comas, daquela dos andarilhos urbano ou a partir dele, tal como é dado, atribuído, recortado e
místicos. Não se fala da caminhada como de uma "meditação"?
organizado.
O desafio é mudar a percepção, diz ainda. Se Richard Long com-
partilha essa posição fundamental ("Minha arte se faz no pró- É preciso [escreve Guy Debord, em 1953] chega~.ª u '.11 estranh~
prio ato de caminhar'', escreve), não se contenta em caminhar, mento pelo urbanismo, a um urbanismo não unluáno, ou, mais
vai também desenhando o caminho a partir das suas caminhadas, exatamente, pensado em função de outra utilização. A c~nstru
às vezes literalmente, ou traçando-o diretamente com os pés, ou ção de novos quadros é a condição p rimordial de outras amudes,
depositando-o no chão pelo alinhamento de pedras colhidas no outras compreensões do mundo (Debord, G., 1953) .si
local. Embora efêmeras e tendo como único testemunho as foros
que traz, suas obras são como os vestígios, as marcas da sua passa-
gem pelo local. Elas contribuem, entretanto, para renovar a visão
que temos desses locais. hll Alé · cita
d 0 livro de T hierrv/ Davila · d o na nora anrenor,· ver·· Careri , F· Walksca-
Em ambos os casos, efetivamente, caminhar não é apenas m•v1 l',_ · as an Aesthetic Practice. Barcelona: Gustavo GT 1 1, 2002·' bem como··
pes. wa "mg h ., le d' t
vila T (dir ) Les Fioures de la marc e: un sicc arpen eurs.
estar no mundo, é estar nele de forma interrogativa: caminhar é Fr éch urer, M . e
ºª ' · · · ,,.. ,
Paris: RMN, 2000. Os livros de Augoyard, J.-F. Pas a pas. Essaz sur e e e
· l h mine
-
ment quotidien en milieu urbain. Paris: Le Seuil, 1979; e de Cerrcau, M. d.e.
79
l'lnvention dtt quotidien, l, A rts de faire. Pans: Galhmard, 1994 [1980)_(Folio
essais) continuam essenciais. Voltaremos a eles no último capítulo dest~ hvrleo.L
Mas temos também Gabriel Orozco, Francis Alys e muitos outros artistas que
atribuem à camin hada uma função plástica. Ver, sobre esse ponto: Davila, T. a1 D b d G "Manifeste pour une construcnon · des s1tuanons
· · " · 1n t ernatzona et-
Marcher, créer. Déplacements, jlâneries, dérives dans l'art de la fin du XX' siecle. ~ or '3 .
trtste, n. , ago. 1953 (citado in Debord, G. CEuvm. Paris: Gallimard, 2006, P·
Paris: Éd. du Regard, 2002.
108 (Collection Q uarto)) .
As cinco portas da paisagem ... 57
56 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
É, primeiramente, a consideração do solo. Já nos conscien- do universo urbano. A natureza está na cidade, e está presente,
tizamos do fato de que o solo possui uma espessura, espessura que por um lado na forma de preocupações quanto à qualidade das
não é apenas material, mas também simbólica. O que significa .iµuas e d o a;, por exemplo, por outro lado, na forma de pro!etos
que o solo é o efeito de uma construção histórica, que traz toda de parques e jardins públicos e, enfim, na f~rma de r.eflexoes e
uma superposição de passados e que é, ao mesmo tempo, urna
1 :-.periências relativas à diversidade das essências vegetais que po-
reserva para energias futuras. Em outros termos, o recurso à paisa- lcm ser instaladas nela de forma sustentável. Em outros termos,
gem reflete a conscientização do fato de que o espaço não é uma ( . 1
, 1 cidade é, hoje, um meio natural h íbrido, de um tipo ~amcu_ar .
página cm branco, assemelhando-se mais a um pal impsesto. O t, claro que cada uma dessas três direções s~sc1ta muitas
solo não é uma simples superfície plana que se oferece à ação, mas in Lerrogações, polêmicas, e exige pedidos de escl~r:c1me~to. ,~as
confronta a ação a um conjunto mais ou m enos denso de marcas, permanece 0 fato de que, a cada vez, a problemat~ca p~1sag1sttca
de p egadas, de dobras e de res istências que a ação deve levar em
84
rn ntribui para mudar os questionamentos sobre a 1dent1dade ~os
conta. Os locais têm m emória, por assim dizer. tt:rritórios e 0 seu porvir. É bastante significativo, a esse respe1~0 ,
Encomramos a m esma perspectiva com a reivindicação de que os paisagistas sejam chamados a intervir em ~sp~ços onde estao
uma relação renovada com o território. Com um elemento suple- cm jogo questões de limites e de extrapolação de hm1tes, em espaços
mentar, entretanto, que é o da ampliação da escala de intervenção que são bordas, limiares, passagens, intervalos e onde, a cada vez,
e, mais ainda, da articulação entre as diferentes escalas de inter- surge a questão de um ordenamento possível do e~contro entre o
venção. Falou-se, a esse respeito, de uma volta da geografia. Con- urbano e 0 não urbano, entre o edificado e o não ed1ficado, entre o
• siderar o ]territ?_:1Õ\ é, por exemplo, considerar o espaço urbano Íechado e 0 aberto, entre o mundo humano e o mundo natural e,
na complexidade das suas relações com a organização do espaço talvez mais radicalmente, entre o "dentro" e o ((Ítora"·
rural que o cerca, com a malha das estradas e dos caminhos, com 'É essa perspectiva que é acionada no movimento de câmera
' as circunscrições administrativas, em resumo, é recolocar o espaço de Jean-Luc Godard, em sua Lettre à Freddy B~ache (um film e .?,.,.. -
urbano dentro de alguns conjuntos morfológicos de escalas, de sobre Lausanne que é uma bel íssima lição de paisagem), que faz
temporalidades e lógicas de fun cionamento diversificadas, com os
0 olho deslizar entre o verde do campo, o cinza da cid ade e o azul
quais d eve, entretanto, se coordenar. da água, perm itindo que se juntem, n um mesmo pensamento,
Enfim, a p aisagem é convocada de forma privilegiada quan- corno diz 0 próprio Godard, "a p edra dos ~rquit~tos ,e~ pedra ~os
do se trata de imaginar soluções que permitam o "encontro", por rochedos". Em outros termos, a problemánca pa1sag1st1ca consiste
assim dizer, entre a cidade e a "natureza". As preocupações eco- em pensar a cidade a partir das suas relações e ~a sua i_ntegra?ão
lógicas e ambientais são hoje determinantes, como sabemos. A com 0 solo 0 território, o m eio vivo. Ela permite, mais precisa-
natureza já não significa mais apenas o "outro" da cidade, essa mente, rec~srurar ligações entre a cidade e a s~a localização, entre
coisa verde mais ou menos selvagem que é encontrada no exterior a cidade e 0 seu território, a cidade e o seu meio natural.
Essa problemática da "tecedura" parece, a bem da verdade,
decisiva para d eterminar de forma exata o tipo de aç~o qu: é própria
84
Ver, a esse respeito: Corboz, A. Le Territoire comme palirnpseste et autres essais.
Besançon: L'Imprimeur, 2001. do paisagista. Estamos aí no horizonte de uma racionalidade con-
As cinco porcas da paisagem... 61
60 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
textual. A palavra "contexto", frise-se, remete à ideia de "tecer com". 11·mpo, fazer o inventário (o geógrafo e o naturalista descrevem
( E podemos indagar se o projeto de paisagem não é, justamente, da o mundo) e construir desenhando (a geometria). Inventar é,
- \ orde~ dessa a~ivida~e de "tecedura com". É possível que o projeto ·'º mesmo tempo, encontrar o que já estava aí (o arqueólogo
de paisagem seJa o ac10namento dessa espécie de jurisprudência, que 11
1vcnta a peça que desenterra) e formular algo novo (urna ideia
se preocupa, para atuar no espaço urbano, com as particularidades o t1 um objeto).
da. localização, do território e do meio natural. O pensamento da O projeto de paisagem seria, então, o seguinte: criar algo r
pa1s~gem, para o paisagista, é um pensamento do possível. Mais
que já escava aí. A situação intelectual do paisagista é parado-
x ;1 I. Efetivamente, trata-se de fabricar, elaborar o que já está
precisamente, ele é a busca dos possíveis contidos no real.
presente e que não se vê. Devemos construir para ver o que
Projetar a paisagem está aí, para descobrir o que está aí, devemos traçar para saber
o que queremos e o que queremos desenhar. A lógica do pr~jeto
-. O ~ue pode ser, então, esse pensamento do projeto que se- l- a lógica da obra. O critério não é a verdade (não há projetos
~'ª própr,'º. do paisagista? O que é projetar quando o espaço não verdadeiros e outros falsos), mas há, sim, a pertinência, ou a
e uma pagma em branco ou uma tábula rasa? O que é um pen- conveniência.
samento do projeto que seria, ao mesmo tempo, um pensamento
da preocupação? Formulemos a pergunta, de forma mais brutal O paisagista [escreve Gilles A Tiberghien] percebe a localização
1
num modo dinâmico, como uma forma em porvir. [...) Des-
ainda: como o "princípio esperança" pode ser articulado com o
"princípio responsabilidade"? 85 de então a intenção projetual só tem realidade se ela se exercer
numa localização determinada e, da mesma fo rma, a localização
Poderíamos refazer a pergunta, com a seguinte fórmula:
só tem sentido como tal para a intenção projetual, na medida
proj.etar é im~ginar o real. A fórmula é deliberadamente ambígua.
em que suas próprias restrições tornam-se oportunidade e possi-
Projetar a paisagem seria, ao mesmo tempo, pô-la em imagem ou
bilidade de projetar. A intenção formativa transforma as próprias
representá-la (projeção) e imaginar o que poderia ser ou vir a ser
resistências da localização em possibilidades, oportunidades, in-
(projetação). Essa ambiguidade, ou essa circularidade, é constitu-
centivo e, assim, de certa maneira, só faz prolongar a sua nature-
tiva da própria noção de projeto no pensamento da paisagem. Ela
86
dá ênfase às duas dimensões comidas no ato do projeto: testemu- za (Tiberghien, G. A ., 2005, p. 99).
nhar, de um lado, e modificar, do outro.
Em outros termos, o projeto inventa um território ao re-
Mas essa ambiguid ade encontra-se em outros dois ter-
mos, que também são utilizados nas abordagens de projeto (e presentá-lo e ao descrevê-lo. 87 Entretanto, essa invenção é de na-
em pedagogia): descrever e inventar. Descrever é, ao mesmo
R6 Tibcrghien, G. A. "Fonne et projer''. Les Camets du Paysage, n. 12, 2005, P· 99.
R7 A comparar com 0 que escreve Giuseppe Demartets a respe1~0 da geografLa hu-
81 mana e sua implicação nos projetos de cransformação rermonal, em P1·ogetto tm-
Reconhecemos, aqui, uma alusão às obras simétricas de Bloch, Ernst. Le Principe
esperance. Pans: Gallimard , 1976-1991, 3 v.; e de Jonas, Hans. Le l'rincipe respon- plicito. fl contributo delta geografia umana alte scienze del território. M1lan : Franco
sabi!ité. Paris: Cerf, 1990. Angeli, 2007.
62 . O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 63
tureza singular: .P~i~ o que é inventado já está, ao m esmo tempo, ficiais, certa linha Bexuosa que é como o seu eixo gerador." Essa
presente
A· no terntono, mas como não visto e não sabido at'e encao.
- linha, aliás, pode não ser nenhuma das linhas visíveis da figu ra.
mvenção revela o que já estava aí, ela revela e desvenda um novo Não está mais aqui do que lá [mas] as linhas visíveis da figura
~lano d~ realidade. Mas não teríamos visto essa realidade se não remontam até um centro virtual [que é] o movimento que o olho
tivesse
. .sido .desenhada e pensada. Como se a inteligência h umana não vê, [e até] atrás do próprio movimento algo ainda mais secre-
viesse msenr-se no movimento do mundo para destacar nele cer- co. [... ] [É uma] arte que não destaca os contornos materiais do
~os e!e~1e~tos e reatar as ligações entre esses elementos, como se a modelo, nem os esmaece em prol de um ideal abstrato, mas os
mtel1gencia hu~ana participasse, no fundo, da criação do mun- concentra simplesmente em torno do pensamenco latente (Berg-
~~· Por~ue, se a mv~nção é descritiva, simetricamente, a descrição son, H ., apucl D idi-Huberman, G., 2004, pp. 282-3) .39
e mvem1va. A descnção é a atenção escrupulosa nos sinais daquilo
que está na nossa frente e, mais ainda, ela se esforça em tecer li- Um dos motivos essenciais do que se convencionou cha-
-
"baçoes entre esses sma1s
. . e a captar neles como que uma forma, ou mar de "projeto de paisagem" talvez esteja contido nessa noção de
pelo menos o esboço de uma espécie de acabamento das coisas. "pensamento latente", que ficaria atrás das formas visíveis, nessa
Ao analjsar a obra de Etienne Jules Marey e a questão da re- c-;pécie de onda que se desenvolve ao longo de toda a extensão,
presentação do movimento, Georges Didi-Huberman cita Henri conferindo-lhe, por assim dizer, um sentido. O projeto seria a
Ber~so~ que, por sua vez, remete a Ravaisson, Leonardo da Vinci cartografia dessa onda invisível, desse "centro virtual" dos movi-
e ~nsto.re~es .. Bergson c~nvoca Leonardo "precisamente para mar- mentos do espaço. É essa dança do espaço que é preciso captar,
car a ex1genc1a de uma lmha que não seria a curva do movimento ao desenhá-la.
ou o seu gráfico, mas sim uma curva em movimento, uma linha
dada no ato, no tracejar, na dança da sua própria flexão". ss Conclusão
Bergson:
Os diversos enfoques teóricos que acabam de ser apresen-
Há, no Tratado da pintura de Leonardo da Vinci, um a página tados podem, sem dúvida, estar mais ou menos ligados a certas
(... ]onde é dito que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulante disciplinas ou profissões das quais constituiriam, de alguma for-
ou serpenteante, que cada ser tem seu próprio modo de serpen- ma, a palavra de ordem e o paradigma fundador, ou até o ponto
tear, e que o objeto da arre é tornar esse serpenteamento indivi- de honra. Assim, para usar um exemplo fácil, não podemos deixar
dual. "O seg~edo da arte de desenhar é descobrir em cada objeto de observar que os guardiões da primeira porta de entrada para a
a forma particular como se dirige através de toda a sua extensão, paisagem encontram-se mais entre os historiadores e os teóricos
tal como uma onda central [sic] que se desdobra em ondas super- da arte e da literatura, enquanto os ecólogos tendem mais a adorar
88
D'd· H b "
1 1- u errnan, G. La danse de toure chose". In Mannoni, L. e Didi-Huber- 19
Bergson, H. La Pensée et le Mouvant, tal corno citado por G. Didi-Huberrnan cm
rnan, G. Mouvements de !'air. E.-j. Mare11, photoora,,he desfiZ · J p .· . M J "La danse de toute chose", op. cir., pp. 282-3. A frase citada por Bergson é de
2004, PP· 281 -2. J' o·. r u1aes. aus. acu a,
Ravaisson.
64 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 65
a terceira entrada e, para os paisagistas e arquitetos, a direção é lugares onde atua? E como leva em conta, além d isso, a necessá-
obviamente projetual. 11.1 dimensão emancipadora da sua atividade, destinada a trazer
Mas, na realidade, essas diferentes abordagens podem se 11111 "melhor-viver" às populações e aos territórios alvos dos seus
encontrar, ou até se sobrepor, num mesmo amor, e a fortíori nes- projetos? Como, enfim, insere as suas intervenções num contexto
te operador da complexidade que é o paisagista. Efetivamente, ., ocial marcado pela pluralidade, ou até a contradição, das normas
este último está constantemente às voltas com expectativas esté- 1 lc crença e das formas de racionalidade?
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ticas (inclusive as próprias) e horizontes morais ou políticos, mas As posições teóricas que foram consideradas nas páginas
também com as realidades materiais e estruturais específicas das .1mcriores estabelecem um quadro de reflexões e ações possíveis, <-
localizações em que intervém, e da mesma fo rma com os afetos 111ais do que trazem respostas definitivas para es te conjunto de "
particulares suscitados pela experiência sensível dos lugares em i 11terrogações. Efetivamente, não temos certeza de que seja possí-
que se encontra. vel fazer uma síntese dessas diferentes problemáticas paisagísticas
De modo geral, quem quer que se depare com a questão da 11um pensamento global da paisagem. Mas também não temos
paisagem está confrontado ao problema da coexistência de racio- u .:rreza de que seja necessário.
nalidades paisagísticas diferentes, e ao da rearticulação das funções Tentemos, então, propor outra coisa, isto é, uma unidade
da razão que a modernidade dissociou: racionalidade instrumen- sem síntese ou, mais precisamente, sem totalização. Em outros
tal, que se encarna em modelizações científicas, assim como em termos, vamos aceitar o deslocamento, a passagem de um discur-
dispositivos e saberes técnicos; racionalidade moral, que aponta :-.o a outro discurso, de um ponto de vista a outro ponto de vista.
os valores coletivos e os horizontes éticos e políticos dentro dos Passemos, sem fim, por todas as portas. Afinal, não seria isso a
quais a ação humana se dá um sentido; racionalidade estética, que <.:xperiência paisagística por excelência: a do pensamento aberto?
se encarrega da diversidade das formas possíveis do encontro dos Porque, se a paisagem é portadora de um potencial crítico
corpos e das sensibilidades com o mundo; racionalidade dialógica cm relação ao estado real do mundo, é sem dúvida porque, no
ou comunicacional, que fixa os quadros simbólicos onde se cons- fundo de toda paisagem, reside algo como uma geografia utópica
troem as o rientações e os princípios da vida em comum. e um princípio de esperança que vêm contrabalançar o princípio
O paisagista é o principal envolvido nesse conjunto com- . de responsabilidade, o princípio de cautela, o princípio de conser-
plexo e diversificado de preocupações às quais deve, entretanto, vação. Mas é, sobretudo, porque a própria ideia do fim do mun-
responder e nas quais se inscreve enquanto ator da transforma- do, assim como a do fim das paisagens, é uma ideia contraditória.
ção das realidades territoriais. Como consegue, na elaboração e Um mundo cujo começo e fim não possam mais me representar
na conduta do seu projeto, coordenar as diferentes razões que o passa a ser, para mim, um simples objeto, que posso percorrer
permeiam? Como consegue, por exemplo, coordenar, de um lado, com o olhar ou o pensamento, ou graças a companhias de aviação,
o alcance estratégico das soluções técnicas, que dá às situações de é verdade, mas que não habito mais. É um espetáculo que está na
disfunção espacial para as quais é chamado a intervir e, do ou- minha frente, mas diante do qual fico de fora. Entendemos hoje,
tro, a atenção compreensiva que deve ter com as representações escreve Jean-Luc Nancy,"[ ... ] que um mundo é, ao contrário, um
dos moradores, mas também com as significações e valores dos meio no qual estamos, e que só pode ser apreendido do interior
66 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
[... ].Por isso, podemos dizer que nunca se vê um mundo: estamos li. Geografias aéreas
nele, nele habitamos, o exploramos, estamos nele ou nos perde-
mos nele". 90
O mundo é uma totalidade inacabável, mas também um
meio no qual vivemos. Aprendemos que a paisagem faz parte da
nossa vida, que o horizonte é uma dimensão do nosso estar no É preciso andar para aprender e
mundo. Projetar é, portanto, primeiramente querer esse inacaba- voar para compreender.
mento, e a responsabilidade do projetista, quando se trata da pai- A ponta da pirâmide também é a
sagem, talvez resida nisto: é o portador do inacabamento, isto é, sua base.
das significações em reserva, dos horizontes espaciais e temporais É preciso estar separado para reunir.
dentro mesmo da localização, dos futuros. Um mundo sem hori- Paul Claudel
zontes, isto é, sem paisagem, sem cantos do mundo que chamem
o desejo, simplesmente deixou de ser um mundo. Se a paisagem
é uma obra, no sentido que Hannah Arendc dá a essa palavra, se
ela é a abertura de uma duração e, nesse sentido, de um mundo,
então ela é uma vontade e uma meditação da vida e não da morte, A fotografia de avião e, em primeiro lugar, o olhar aéreo não
uma meditação sobre o nascimento das coisas e não sobre o seu constituem apenas uma nova condição técnica da visão: trazem à
desaparecimento. tona, em toda a sua grandeza e potência, uma d imensão inespera-
da da realidade terrestre.
Esta nova dimensão do real, o ser novo que a fotografia
aérea contribui, literalmente, a revelar na sua existência, e até na
SLta ontologia, é a paisagem. O avião, o olhar que ele permite, e
a focografia que registra esta visão aérea apontam a paisagem -
enquanto tradução e testemunho da maneira como os homens
habitam coletivamente na superfície da Terra - como uma ordem
<le fatos sui generis que deve, então, ser estudada per se.
Convém insistir neste ponto: o olhar aéreo não se contenta
cm assinalar a existência das aparências passageiras do mundo, de-
monstra a consistência dessas aparências e - por assim dizer - sua
estrutura e substancialidade.
A superfície da Terra é uma realidade inteira, uma realidade
90 Nancy, J.-1. "The End of che World". Entrevisca com J.-C. Royoux . 1n Cosmo-
espacial e temporal animada por ritmos que lhe são próprios e,
grarns. New York: Lukas & Sternbecg, 2005, p. 77. Ver, para codo o trecho: "Bouc
du monde". Les Carnets du Paysage, n. 16, 2008. como tal, pode vir a ser objeto de um estudo especial. A aviação e