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VITÓRIA, SÁBADO, 22 DE AGOSTO DE 2015

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FOTOS: ARQUIVO DE FAMÍLIA E REGINA HEES

À prova do tempo
PESQUISADORA PUBLICA EM LIVRO UM DOS PRIMEIROS
TRABALHOS SOBRE OS POMERANOS Páginas 6 e 7

No topo, um casamento na família Berger; abaixo, uma pequena propriedade do distrito de Jetibá: à direita, o paiol, ao lado de uma casa típica da zona rural
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Pensar
A GAZETA
VITÓRIA,
história
SÁBADO,
22 DE AGOSTO
DE 2015

Diferente de alguns pesquisadores que dão as costas a seu objeto de estudo após a conclusão, Regina

UM MUNDO
REVELADO
PESQUISA REALIZADA COM POMERANOS DE SANTA MARIA
DE JETIBÁ HÁ 40 ANOS É PUBLICADA EM LIVRO

O
pioneirismo da obra tida pelos descendentes de pomeranos por mentais. Ela hoje se arrepende de não
“Santa Maria de Jetibá – terem sofrido discriminações em vários ter registrado com mais minúcia o
uma comunidade teu- momentos da história capixaba devido à interior das edificações, talvez pelo
to-capixaba” (Edufes, sua religião, a maioria sendo de confissão cuidado em não incomodar as famílias
2015), de Regina Rodri- luterana; à sua língua, considerada es- que, algumas delas, receberam-na com
gues Hees, se configura tranha ao português; às suas práticas certa desconfiança, mesmo com a ajuda
em diversos campos. Em primeiro lu- culturais, julgadas primitivas e ultrapas- da intérprete. Ainda assim, as fotos
gar, sua autora foi uma das primeiras
pesquisadoras com espírito acadêmico
sadas. Contudo, a autora resolveu en-
frentar o desafio e, com determinação, A Pomerânia não estampadas nos suscitam várias inda-
gações.
a se debruçar sobre o tema da imi-
gração em terras capixabas. E nele
passou a coletar dados que ajudassem na
construção de uma narrativa esclarece-
acabou de todo; Uma delas: o que o destino fez com
aquelas crianças e seus rostos resplan-
estabeleceu recorte pioneiro, ao en-
focar como objeto de estudo uma co-
dora do contexto histórico em que se
estruturou essa microssociedade.
pode ter decentes? A exposição feita nesta obra não
se prende somente ao passado histórico,
munidade majoritariamente constituí- desaparecido dos mas privilegia a realidade vivida pelos
da por etnia europeia – a pomerana – descendentes dos pomeranos na década
que, após o processo imigratório, per- À prova do tempo mapas políticos, de 1970. Ou seja, não busca estudar a
maneceu por mais tempo relativamen- A dissertação de Regina Hees, que deu história pela história, mas conhecer o
te isolada do ambiente estadual. origem a este livro e demorou décadas repartida entre resultado dos esforços de gerações e ge-
Fui testemunha do empenho da autora
em pesquisar com acuidade o acervo do
para ser publicada, venceu a difícil prova
do tempo. Será sempre atual, pois referida
Alemanha e rações de agricultores.
Somente um arguto olhar feminino para
Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo, então em fase de reorganização. E
a um momento determinado, por ela
fixado de maneira imperecível. Mais do
Polônia, mas captar e dar o devido peso ao fato de
pessoas nossas contemporâneas, passados
nisso num tempo em que não havia as que isso: no caso deste trabalho, houve ressurge nesta tantos anos, ainda se emocionarem com o
facilidades de hoje – fotocópia (rara e cara uma transmutação – de obra historio- sofrimento dos seus avós. Alguém mais
à época), computador, internet, escanea- gráfica para documento histórico; de dis- narrativa desavisado poderia objetar que este estudo
mento, fotografia digital. Esse também seu sertação para fonte secundária a ser con- não se aprofunda em nenhuma questão,
pioneirismo – na imensa riqueza docu- sultada de maneira imprescindível por historiográfica” nem busca interpretações ousadas dos
mental sobre a imigração existente na- parte de novos interessados. É uma pes- dados colhidos. Mas justamente nessas
quela entidade, Regina foi uma das pri- quisa de base que já serviu e continuará características é que reside o seu mérito
meiras que consultou esses preciosos ma- servindo como ponto de partida a muitas maior – a autora não quis se limitar apenas
nuscritos e os utilizou com propriedade outras. Os exemplos poderiam se mul- a um campo restrito de determinada ciên-
para reconstruir a presença de traba- tiplicar, mas fiquemos com alguns so- cia, mesmo que fosse a histórica, mas
lhadores europeus na história capixaba. mente: a presença dos tropeiros na região; lançou seu olhar sobre todo o edifício social
Hoje em dia, se conhece Santa Maria de a existência peculiar dos caminhos; os então existente em Santa Maria de Jetibá.
Jetibá com relativa facilidade – as co- meios e as condições de transporte. Com isso, conseguiu uma façanha difícil –
municações melhoraram em muito o con- Não tivesse sido seu avô paterno, transformar sua dissertação de mestrado
tato com este pedaço pomerano do Es- Otto Hees, um exímio retratista, Regina em documento de referência para o co-

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pírito Santo. Tal não ocorria há 40 anos. também tirou as fotografias que, além nhecimento daquele mundo pome-
Tudo era difícil, a começar pela des- de ilustrarem seu trabalho, dele fazem rano, registrando seus principais as-
confiança em relação aos forasteiros, man- parte integrante como fontes docu- pectos, como antes assinalado. Com
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A GAZETA
VITÓRIA,

por FERNANDO ACHIAMÉ


SÁBADO,
22 DE AGOSTO
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Hees mantém forte vínculo afetivo, uma espécie de comprometimento emocional, com a comunidade

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EDUARDO HEES ALVES/DIVULGAÇÃO
isso, apontou caminhos que agora Referente à comunidade de Santa Ma-
podem ser percorridos com mais pro- ria, muita coisa mudou de fato para o bem
fundidade. Aliás, começa seu trabalho e para o mal. Menos a veracidade contida
de forma bem apropriada, situando os nesse trabalho que permanecerá como
principais elementos geográficos da área fonte de referência obrigatória para quem
em estudo, com destaque para o solo, o queira se ocupar do tema nele tratado.
clima e as vias de comunicação. Com isso, chegamos à constatação evi-
dente – um trabalho, simples à primeira
vista, adquire importância com o passar do
Mudanças tempo e revela todo seu valor.
Diferente de alguns pesquisadores que Ressalte-se ainda o mérito da autora em
dão as costas a seu objeto de estudo após a assestar sua visada inicial no campo geo-
conclusão dos requisitos acadêmicos, Re- gráfico para depois centrar fogo na história.
gina Hees estabeleceu e mantém forte Sempre unidos o Espaço e o Tempo, sempre
vínculo afetivo, uma espécie de com- unidos. A Pomerânia não acabou de todo;
prometimento emocional, com a comu- pode ter desaparecido dos mapas políticos,
nidade de Santa Maria de Jetibá. Para repartida entre Alemanha e Polônia, mas
exemplificar – junto com o historiador ressurge nesta narrativa historiográfica. Pa-
Sebastião Pimentel Franco participou da rafraseando Fernand Braudel, que assegura
criação do Museu Pomerano e promoveu a presença do Mediterrâneo até onde se
exposição fotográfica em que a localidade cultivem oliveiras, a Pomerânia existirá
e seus moradores compunham a temática enquanto pessoas falarem seu idioma e
principal. E sempre que permitem seus praticarem seus costumes, mesmo que mo-
afazeres visita Santa Maria, como fez por dificados. Ao historiar a origem e condições
ocasião de um casamento típico pomerano dos tratos de terra em Santa Maria de
em 2013. E assim acompanha, mesmo de Registro de crianças pomeranas feito por Eduardo Hees Alves Jetibá, ao tirar retratos da gente pomerana
longe, as profundas mudanças que ocor- Regina Hees faz mais do que um mero
rem na região. trabalho acadêmico – ela nos proporciona
Muita coisa mudou. Edificações e peças – médicos, advogados, engenheiros, ar- descendentes de pomeranos rumaram pa- acesso a um mundo revelado para
do mobiliário pomerano, antes desva- quitetos, professores universitários – e ra as “terras quentes” do Norte do Estado sempre nessa sua obra.
lorizadas, agora integram o patrimônio técnicos em áreas diversas. Dos que fi- (em anos anteriores à pesquisa) e mais
cultural capixaba, sendo algumas delas caram na região, muitos prosperaram com recentemente se dirigiram para outras
distinguidas com tombamento pelo Con- a agricultura e, mais próximo de nós, com regiões além-divisas, como Rondônia. Os Fernando Achiamé
selho Estadual de Cultura. E cada vez mais a avicultura, cujo início foi entrevisto pela que aqui ficaram contam-se em muitos é poeta, escritor e historiador.
estes capixabas de pele muito clara se pesquisadora. Na atualidade, Santa Maria milhares. São capixabas que têm o po- achiame@terra.com.br
conscientizam da necessidade de se pro- ocupa o segundo lugar na produção de merano como língua materna e hoje não
tegerem no trabalho agrícola das mazelas ovos em nosso país. E o município se mais precisam se envergonhar disso; já
ocasionadas pela exposição excessiva aos orgulha de fornecer hortaliças e frutas possuem dicionário e livros em seu próprio Santa Maria de Jetibá -
Uma comunidade
raios solares. (alguns produtores as cultivam livres de idioma. O rádio, a educação formal, a teuto-capixaba (Edufes)
Muita coisa mudou. Descendentes dos agrotóxicos) para a Grande Vitória e mer- televisão, a internet contribuíram para que Livro pode ser adquirido pelo
pomeranos saíram das “terras frias” para cados distantes. eles se abrasileirassem, mas sem perderem site www.edufes.ufes.br
serem profissionais liberais bem sucedidos Sem dúvida, muita coisa mudou. Os traços fundamentais da sua cultura.

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