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HISTORI/\ I
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DESENHOS DO ~UTO~
VINHET~S E DECOR~ÇÕES
DE LEDn nCQU~RONE
• • • • •

LIVRARIA FRANCISCO ALVES •• EDITORA PAULO DE AZEVEDO LTDA.


RIO DE JANEIRO • • SÃO PAULO •• BELO HORIZONTE.
F. Acquarone, na ocasião em que pintava a tela "Sinfonia
do Guarani", exposta no Salão Oficial de Belas Artes no
ano em que se festejava o centenário de Carlos Gomes •

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DO MESMO AUTOR:

História da Arte no Brasil (Edição juvenil)


A Conquista do Mar (História da Navegação)
O Gigante Brasil e os seus Tesouros
Primores da Pintura no Brasil
Os Grandes Benfeitores da Humanidade
Bezerra de Menezes, o médico dos Pobres
Caxias, o Soldado Brasileiro
História do Café
História das Artes Plásticas no Brasil
Mestres da Pintura no Brasil
OUVEF\TUF\E
No pórtico dêste livro poderia ser inscrito o seguinte:
"História Literária da Música Brasileira".
! Isso porque a matéria está apresentada em forma lite-

rária.
As letras modernas criaram uma nova modaz:idade de
vulgarização das ciências, das artes e da história. E' o qu~
se chama, hoje em dia, em língua inglêsa, de "outline" lite-
rário.. ou melhor, em português claro, de escorço literário
sôbre determinado assunto.
"Escorço", no vocabulário dos artistas plásticos, quer
dizer: encarar de frente o motivo, dando a impressão exata
do seu desenvolvimento, em reduzidas dimensões. Mutatis
mutandis o mesmo que se observa nas modernas sínteses
literárias.
O espírito da presente obra está encerrado nessa ordem
de idéias. Enganam-se os que pensam encontrar nela a
análise técnica da música de fulano ou de beltrano, desta ou
daquela época.
Não desenhei o perfil, com a abundância dispendiosa
de detalhes, da música brasileira. Preferi traçar-lhe a pers-
pectiva dos planos, vistos em linhas sintéticas, fugitivas,
mas com a impressão justa de sua intensidade. Fiz obra
"impressionista", se me permitem a classificação, tal como
o fizeram Will Durant, na "História da Filosofia", ou Van
Loon, nas "Artes".
Fugi, sempre que possível, ao caráter didático, evitando
citações de pautas e notas, exemplificações melódicas, har-

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mônicas, etc., ou a apresentação abundante de clichés de-
monstrativos dos processos musicais dos autores.
Obras compendiosas "adotadas pelas escolas e institutos
oficiais" não faltam em nosso país, com caráter estritamente
educativo, indispensável aos estudantes e aos técnicos.
O que sempre sonhei, porém, foi escrever para o povo.
Ora, nem todos os que porventura (ou por desventura, quem
sabe?) passarem os olhos ao longo destas páginas, terão a
feNcidade de conhecer notas musicais; não podel'iam, por-
tanto, entender dissertações eruditas a respeito da arte de
Euterpe, coisa que iria concorrer fatalmente para que per-
dessem, logo de início, o interêsse pela matéria.
Foi dentro de tais considerações que decidi concorrer
para tornar mais ampla a vulgarização da história musical
do Brasil, apresentando êste livro que, espero, irá aumentar
li atração que o assunto merece . Não constitui êle, tecnica-
mente, a análise dos motivos musicais do Brasil, mas a
verdadeira "vida" da nossa música, a "biografia" musical
de nossa terra, cuja similitude pode ser encontrada na "Bio-
grafia de um Rio - o Nilo", de Emmil Ludwig.

PODE-SE falar, com todo o acêrto, em "música bra-


sileira". No entanto, ninguém poderá falar ainda em "pin-
tura brasileira", "escultura brasileira", etc. Já possuímos,
realmente, música com características próprias, desenvolvi-
das sôbre temas ou motivos do nosso folclore, indiscutivel-
mente distintos dos de outros países.
Não nos foi possível, porém, conseguir ou estruturar
até hoje uma "escola" brasileira para as artes plásticas.
E' que estas requerem um estado de civilização mais culto
e mais sedimentado para a aquisição de um caráter próprio.
O mesmo povo que fornece motivos para a mlÍsica,
através de seus cantos populares, apresenta motivos para
a plasticidade, através de seus usos e costumes, de sua in-
dumentária original ou suas tradições lendárias. E' mais
fácil, no entanto, firmar e desenvolver características espe-
cíficas nas artes dinâmicas do que nas artes estáticas.
Esta é a razão de ter eu escrito a "História das Artes
Plásticas no Brasil" e, agora, a "História da Música Brasi-
leira" .

adiante encontra-se a declaração que fiz no


sentido de transformar esta obra em uma longa entrevista
com os "três grandes" da nossa música atual: Heitor Villa
Lobos, Oscar Lorenzo Fernândez e Francisco Mignone.

-8-
Foi essa, não há dúvida, a diretriz tra-
çada e rigorosamente seguida.
Cumpre-me, no entanto, esclarecer que
nem sempre serão citados aquêles três no-
mes, no desenrolar da narrativa, a fim de
que ela se torne mais suave. Ninguém po-
derá negar que seria fastidioso, enfadonho
mesmo, estar eu a declarar continuamente:
a respeito de talou tal assunto, Villa Lobos
falou assim . .. , ou então: Lorenzo Ferndndez
e Mignone, respondendo iI minha pergunta,
externaram-se do modo seguinte... o que
redundaria em simples processo jornalistico,
coisa que procurei evitar.
Fíca porém entendido que as impress6es
específicas que formam o único conteúdo
precioso desta obra, nem sempre são de mi-
ltha inteira propriedade. Refletem, as vêzes,
opiniões dos "três grandes", colhidas no de-
correr de palestras que com os mesmos man-
tive durante certo tempo.

Euterpe, a musa qu~, na Grécia


antiga, presidia aos destinos da
g MOSICA é divina! E' puro atributo dos
deuses. Sempre os povos acreditaram no po-
música der sobrehumano das artes. Pensando bem,
o dom que os artistas trazem do berço não
lhes é outorgado por nenhum poder terreno: "nasce-se" ar-
tista; ninguém" se faz" artista . ..
Sem a dotação gratuita de certa dose de talento, reve-
lado cêdo ou tarde, por irresistivel impulso vocacional, nin-
guém poderá realmente inspirar-se para a realização de
obras de arte. Aperfeiçoa-se a técnica; apuram-se pro-
cessas; torna-se mais precisa a habilidade; descobrem-se
recursos; tudo isso, no entanto, nada poderá estruturar sem
êsse "não sei quê" inato, congênito, inerente ao organismo
artístico, que é como que um misto de espiritualidade, de
fôrça mental, de sensibilidade refinada e de habilidade ma-
nual. Por isso mesmo a Arte, como as religiões, teve sempre
para os povos certa aura de mistério e de fôrça divina.
Os egípcios, os assírios, os persas, os chineses, tódas as
civilizações orientais, em suma, atribuiam aos deuses a ins-
piração artística; a arte possuía, portanto, numes tutelares.
Na velha Judéia a música só existia em louvor de
Jeovah. A lira de David e as harpas tangidas em pleno
Sanhedrim acompanhavam os salmos que iam diretamente
CiO céu. '.

-~) -
Na Grécia e em Roma eram as musas que presidiam ao
destino das Artes. Euterpe, com a harpeólia, protegia os
músicos e a êles distribuía os seus favores. Para ela apela-
vam os tocadores de flauta, de pífanos, de tamborins rús-
ticos e de graves cornamusas.
Com o advento do cristianismo os deuses se recolheram
aos seus penates e as portas do Olimpo foram cerradas para
sempre. Nova coorte de divindades espalhou-se pelo mundo
civilizado. Mas os homens continuaram a crer na origem
divina das Artes e na inspiração que, dos céus, desce para
a. alma dos artistas.
O espírito dogmático da igreja romana distribuíu san-
tos e santas para todos os gostos, patronos de várias profis-
sões, criando, por sua vez, pequenos cultos particulares.
Como padroeira da música ficou Santa Cecília, virgem
romana, "pálida e loura, muito loura e fria", que morreu
após tormentos crudelíssimos na cidade dos Cézares, em
282. E' representada com a lira dourada em uma das mãos
e, na outra, a palma do martírio.
Mereceu as honras dos pincéis de Rafael, de Veronese
e de Rubens. Os músicos - os católicos, especialmente -
volvem os olhos para ela, nos momentos de aflição. Os que
não acompanham a igreja sentem, contudo, a poesia si/ente
da lenda de Santa Cecília e o suave olôr que ela empresta
aos mistérios sagradas da Arte.
Claudia Muzzio, em seus derradeiros anos de vida, plas-
mou sua última criação em "Cecília", drama lírico-sacro de
Monsenhor Reffice; e foi em homenagem à Santa Cecília
que Villa Lobos escreveu a oração seguinte, lida para todo
(j Brasil, no Dia da Música:

"Santa Cecília" Divina Pro te tora da Música!


Ouve, em regozijo a tua santa imagem, em satisfação à
influência sacrossanta do teu poder milagroso, em humil-
dade pela grandiosa e eterna obra de Deus, à veneração de
uma raça, à evocação de um povo, as preces ardentes, cheias
de Alma e Fé, dos artistas sonoros do Brasil!
Tu que deste ao Brasil o privilégio do amor pela mú-
sica; que fizeste dos pássaros, rios, cachoeiras, mares, ventos
e da gente desta terra, uma sinfonia incomparável, cujas
melodias e harmonias têm influído na formação da lnte-
Ugência e Bondade brasileiras, auxiliando espiritualmente
a disciplina coletiva da mocidade e dos homens para servir
às funções úteis e indispensáveis da humanidade, para me-
lhor compreensão do valor inconfundível do patriotismo, e
para saber dar valor consciente ao folclore regional e sen-
tir artisticamente a música nacional
- ilumina os que desejam ajudar a arte do Brasil;
- protege os que acreditam no valor e utilidade da
música;
- ajuda aos que anseiam proteger os artistas;

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- inspira aos que cantam o hino da nossa
Pátria, a uma execução perfeita, como prova
de obediente disciplina cívica;
- esclarece os que confundem a mani-
festação popular nativa, bôa mas inculta, com
a expressão de arte cultivada;
- entusiasma os verdadeiros artistas que
vivem desanimados pela confusão que a opi-
nião pública estabelece entre o valor autên-
tico e os falsos artistas "
- alegra os que imaginam que a música
possa ser algum dia a "Bandeira Sonora da
Paz Universal" "
-- encoraja os compositores que, desani-
mados na carreira da sua vida musical satis-
fazem o declive do gôsto popular;
- mostra aos indiferentes que vivem em
várias camadas sociais, a felicidade de quem
ama a música;
- perdôa aos que não acreditam na cura
dos anormais e na educação dos princípios
da disciplina cívico-social pela música;
- faze com que a opinião pública saiba
respeitar o valor das artes e dos bons artistas
brasileiros;
- guia a mocidade pela arte do som;
- anima os que consideram a música de
lnterêsse Nacional, por ser um dos fatores
que educam o espírito, tal como a Educação
Física fortalece e desenvolve o organismo.
Santa Cecília! Divina Protetora da Mú-
sica!
o notável soprano Cláudia Muzzio, no
papel principal da ópera de Monsenhor Ouve, em regosijo ii tua santa imagem,
Refice "Santa Cecilia"
em satisfação à influência sacrossanta do teu
poder milagroso, em humildade pela grandiosa e eterna obra
de Deus, à veneração de uma raça, à evocação de um povo,
as preces ardentes, cheias de Alma e Fé, dos artistas sonoros
do Brasil".

TÔDA a gente sabe, com-:rteza, que muitas obras


deverão ser lidas, manuseadas e consultacZas, para que se
possa escrever um livro como êste. Ninguém poderá supôr
que a "História da Música Brasileira" tenha brotado intei-
rinha da minha imaginação, sem a ajuda de dezenas, de
centenas de outros autores.
O trabalho que tive foi justamente êste,' ler muito, sele-
cionar, anotar, dispôr a matéria apresentada em pilhas de
volumes, tirar daquilo tudo as minhas próprias conclllsões,
ouvir profissionais, conviúer com êles, consultei-los continua-

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mente, estruturando, em suma, o arcabouço da obra, para
revesti-lo, em seguida, com a minha fraquissima literatura.
Penso que será perfeitamente dispensável enfileirar aqui
uma infinidade de nomes de autores e de livros, como é cos-
tume fazer-se na apresentação das famosas "bibliografias".
Ademais, sempre impliquei com tais demonstrações de
erudição fácil. Que adianta,. realmente, ao leitor uma lista
numerosa de autore;;, cHja citação nem sempre serve para
wdenticar a veracidade do que está escrito? As "bibliogra-
fias" trazem-me à lembrança o hábito de certos conversado-
res que insistem em afirmar: Asseguro-lhe que não estou
mentindo. Se você duvida, pode perguntar a fulano ou bel-
Irano . .. "

TeRMINANDO estas ligeiras considerações, cumpre-me


agradecer a todos - e não foram poucos - que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a realização desta obra.
Aos "três grandes" - Heitor Villa Lobos, Lorenzo Fer-
nàndez e Francisco Mignone -- pertencem essas páginas,
dedicadas que lhes foram pelo autor.
Estendo o meu sincero reconhecimento ao prof. Luiz
Heitor Corrêa de Azevedo e ao radioman Henrique Fareis
(o conhecido "Almirante") por suas contribuições inesti-
máveis.
Agradeço aos artistas, compositores, virtuoses, dansari-
nos, etc. e a todos aqueles que, de boa vontade, me facilitaram
o manuseio de arqllivos - tanto particúlares como oficiais
- cedendo-me ainda elementos para a matéria ilustrativa
do presente livro.
À Editora Paulo de Azevedo Limitada, tradicionalmente
entregue à prodllção de compêndios escolares. os meus me-
ihores agradecimentos pda honrosa exceção que abriram em
mell favor ao publicar esta despretensiosa" História da Mú-
sica Brasileira" .

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CONTECEU a Balzac ... Desde êsse dia, o "Adultério" tornou-se


Quando o mestre tema indispensável às locubrações do roman-
da "Comédia Humana" cista.
traçou as páginas sar- E nunca mais o abandonou ...
cásticas da "Fisiologia Conta Balzac, de forma pitoresca, a lenta
do Casamento" relatou, absorção de seus pensamentos mais freqüen-
em prefácio notável, as circunstâncias que o tes pelos motivos do adultério. Chegou a
levaram a produzir aquela obra. Conta êle ponto do próprio Diabo vir tentá-lo à beira
que, encontrando'-se certa vez em uma reu- do leito, nas horas de vigília, nas horas de
nião da aristocracia francesa, ouviu, pronun- sono, em todos os momentos, em suma, dos
dada pelos lábios de cereja de uma marquesa seus vagares intelectuais. Tornou-se, em úl-
qualquer, a seguinte palavra: "Adultério". E tima análise, em pura idéi a fixa.
confessa que até então ela nunca lhe havia Não só o Diabo como também as cria-
soado tão profundamente como naquela oca- turas humanas perguntavam-lhe, constante-
sião. Não sabe mesmo por quê, encontrou-lhe mente, pelos resultados das proposições que
certa ressonância estranha e indefinível. lhe eram impostas continuamente.
- Então, porque não escreves um livro
Quando abandonou a reunião, não dei-
a respeito do adultério? Tens todos os ele-
xou lá a palavra que ouvira; trouxe-a con-
mentos ao alcance da mão. Vamos, atira-te
sigo, aparafusada no cérebro e, caminho de
ao trabalho ...
casa, virava-a e revirava-a nos meandros da
E Balzac, seguindo mais as insinuac'ões
massa cinzenta.
do cornudo Satanás do que as dos hom'ens,
No dia seguinte não pensou mais no adul- decidiu-se a escrever a obra.
tério. Êste porém, adormeceu no substratum E assim surgiu a "Fisiologia do Casa-
cerebral do autor. E lá ficou. mento" .
Tempos depois - não sei onde, nem a
que propósito - Balzac tornou a ouvir o vo-
cábulo fatídico e, desta vez, 'comentado. Che- Isto - é verdade - aconteceu a Balzac.
gou mesmo a trocar idéias a respeito das suas Guarda~as, porém, as devidas proporções
causas possíveis e das suas conseqüências entre o gênio e a mediocridade, é coisa que
quase impossíveis. pode acontecer a qualquer mortal. Tanto é

-17 -
Após haver escrito a "História da Arte
no Brasil", alguém me perguntou: - E a
história da nossa música, também está lá'~
Não estava.
Logo depois outra indagação, no mesmo
rumo. E outra. E outra mais. Compreendi,
por fim, que a "História da Arte no Brasil"
estava incompleta. Faltava-lhe a música e,
talvez, alguma coisa mais.
Comecei, então, a indagar a mim mesmo
porque não completaria eu o ciclo das artes,
cm nosso país, escrevendo também a história
da música? Mas o subconsciente sorria para
mim. Mesmo assÍln. tive ousadia para enca-
rar o problema.
Que diabo! A literatura musical, derra-
mada no país, é das mais abundantes. Con-
troversa, é verdade, mas cheia de monogra-
fias interessantes e aproveitáveis. Seria ape-
nas trabalho de concatenação, de pesquisa,
de seleção.
Perquirir as causas das várias formaç'ões;
indagar da heterogeneidade das influências;
tirar ilações conscientes e coser tudo em um
alinhavo cronológico, tal seria o trabalho que
o sr. Raul Villa-Lobos, pai do COIr.positor
eu me deveria impor.
verdade que aconteceu a mim. Prova evi- Mesmo assim, faltava-me o alento neces-
dente de que os fenomenos de sugestão tanto sário. Resolvi não pensar mais em tal come-
podem ocorrer em um cérebro iluminado - timento.
o de Balzac, por exemplo - como em um E a vida continuou ...
cérebro acanhado e obscuro - o meu, tam-
bém por exemplo. Rolaram alguns meses.
As resultantes do fenômeno é que são, Um dia as imposições do acaso levaram-
no entanto, bem diversas: enquanto o pri- me a um velho casarão da rua do Passeio;
meiro produz uma obra prima, o segundo
traça uma obra que não é prima, absoluta-
mente. Ccnfesso, todavia, que já é um mo-
tivo de orgulho ter sido vítima das mesmas
circunstâncias de que foi vítima o gênio de
Balzac.
Tal qual aquela história do fanático ad-
mirador de Bethoven, seu fiel acompanhador
pelas ruas de Viena, debaixo da chuva fina
que 03 fustigava a ambos, indiferentemente.
Ao regressar à casa, encharcado e transido de
ido, dizia aos amigos com desmedido orgu-
lho: - A chuva que me ensopou as vestes
caiu também sôbre Beethover. ...
ViJIa-Lobos em seu gabinete de trabalho, no Conservatóri()
E aqui está o meu caso. Nacional de Canto Orfeônico

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Cena do bailado "Ulrapurú" (lenda do pássaro encantado) texto e música de Vllla_Lobos. apresentado no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro

era o antigo Pedagogium, cujas dependências grenhas soltas, cogumelada sob as abas lar-
haviam sido recentemente abandonadas pelas gas do chapéu, conservava bem essa aura
repartições públicas, que as ocupavam. estranha de simpatia que se evola da fisio-
Instalei-me no primeiro andar e dispus- nomia dos artistas. Veio a mim. Abraçamo-
me ao trabalho que se me oferecia na ocasião. nos como velhos amigos e surgiram as pri-
Amplos painéis em branco, alinhados pelas meiras efusões.
paredes, esperavam, na indiferença da sua Soube, então, que Villa Lobos trabalhava
alvura, que os pincéis os revestissem de rou- no andar superior. Os serviços da SEMA
pagens decorativas. (Superintendência de Educação Musical e
Passei os primeiros dias esboçando "cro- Artística, do Departamento de Educaç'ão do
quis", tentando motivos, aprestando-me, en- Distrito Federal) conservava ainda as suas
fim, para o labor que iria me absorver por instalações naquele prédio.
espaço de alguns meses. O maestro, que dirigia êsse departamen-
Certa manhã, dentre as pessoas que me to, estava na iminência de se trasladar, com
surgiam diàriamente, enquadrou-se na porta os seus auxiliares, para outro prédio qual-
de entrada o vulto do maestro ViLa Lobos. quer, pois o velho Pedagogium havia sido
A passos lentos, penetrou no aposento. condenado pelos demolidores da Prefeitura.
Sua figm:"a meio curvada, como a sopesar Em todo o caso, como as providências da
enorme fardo aos ombros, vinha em marcha mudança poderiam ser retardadas, ficou-me
tarda e vagarosa. A cabeça romântica, de a esperança de gozar ainda o convÍvÍo de

19 --
'"
I
Villa Lobos,pelo menos durante a minha €!algal' lentamente a escada do segundo an-
permanência ali.
Exultei com isto. Achei mesmo ótima a
perspectiva e, ao despedir-me dêle, vendo-o
dar, fiquei uns momentos suspenso das mi-
nhas cogitações, engolfado nas lembranças de I
um passado mais ou menos distante ...
I
~
,f:

(Js primeiros contactos ao artista com o ÇjJrasif 1


!
CONHECI Villa Lobos aí pelas alturas de Eu, pelo menos, deixava-me ficar, mercê
~
1910. da paixão que sempre alimentei pela músi-
Sua figura, esguia e estranhamente ro- ca, horas intermináveis a ouvi-lo, absorto e
mântica, lembrava os decantados heróis de quedo, no esfôrço de compreender o que êle
Murger. Os olhos quebrados e grandes, ro- procurava traduzir.
lando no fundo de olheiras iodadas, davam- Nesse tempo eu lia Homero. Meu espí-
lhe à fisionomia a expressão de quem fitasse rito, ávido de sensações estéticas, encantava-
continuamente um mundo singular, visível se com a aura legendária dos poemas do
apenas para êle mesmo. A larga cabeleira grande rapsodo cego. Tomava, insensivel-
sobrava-lhe, não raro, em melenas desali- mente, o rumo da Grécia heróica, como que
nhadaspela testa. formando já, dentro de mim, o suave enlêvo
Minhas recordações evocam-no abraçado do helenismo puro e perfeito que haveria de
a um violão marchetado de madrepérolas, ficar perfumando a minha vida inteira, em
tipo espanhol, cujo encordoamento dedilha- meus êrmos silêncios interiores.
va com maestria. Muitas vêzes o surpreendi Há coisas engraçadas e curiosas na his-
curvado sôbre o instrumento e absorvido à tória das nossas sensações. A mim, pelo me-
procura de sonoridades estranhas. nos, sucedeu isto: à fôrça de ouvir Villa
Era isso em uma afastada casa de su- Lobos, na época em que Homero me contava
búrbio, confortável e acolhedora, onde vi- os seus poemas, ficou-me gravada a impres-
viam meus p·adrinhos. são associativa dêsses dois enlêvos. Até hoj e,
Todos os domingos, invariàvelmente, quando ouço um solo de violoncelo, não sei
Villa Lobos lá comparecia e quando não de- por que, vêm-me à lembrança, logo, de rol-
dilhava o violão, centralizava em sua pessoa dão, as lutas em tôrno de Tróia; o corpo de
o ambiente social da reunião. Era de vê-lo, Heitor arrastado ao longo das muralhas da
exuberante de conceitos, eloqüente e fogoso cidade; a súplica de Priamo e, sobretudo, o .1
nas longas tertúlias de arte que lá se trava- cativeiro pungente e emocional de Andró- '\
vam. De outras vêzes, o músico surgia à maca.
porta com seu violoncelo encapado e um sor- Todo aquêle mundo fantástico dos he-
riso manso, através do qual luzia a brancura róis e dos deuses rodopia em minha imagi-
dos dentes. Nesses dias exultava a pequena nação, sempre que ouço o gemer de um
assistência. E' que o violoncelo - deixem-me violoncelo. Dir-se-ia que o som do instru-
julgar assim - foi sempre o instrumento da mento descerra o véu atrás do qual está es-
predileção de Villa Lobos. condido, no meu subconsciente, a epopéia
A sonoridade, que lhe saía das crinas do que eu aprendi, quando Villa LqlJos brincava
arco, parece que traduzia, já naquêle tempo, com o arco sôbre as cordas. ..
o mundo convulso e torturante que germina- Essas coisas tôdas - bem o sei - só têm
va dentro do artista. valor para mim. Não devem interessar a·

-- 20 -
Villa-Lobos reg'enc1o a "Boston Symphony Orquestra ", nos Estados Unidos

mais ninguém. Em todo o caso, se as con- A vida traçou-nos rumos diversos. Para
signo aqui, é apenas para pagar de público, Villa Lobos ela começou a ser desde logo um
ao artista, essa dívida antiga de gratas emo- arranco ascencional em direção da glória_
ções estéticas. Mesmo afastado, acompanhei-lhe as vá-
Devo, realmente, a Villa Lobos essas do- rias etapas. De vez em quando chegava-me o
ces impressões no dealbar do meu espírito. seu nome aos ouvidos, trazido pelo eco dos
sucessos. Ora em reuniões íntimas, ora em
exibições públicas, ouvia constantemente pe-
N esse tempo eu era ainda uma criança, quenas composições suas. Foi assim no Tea-

j quando muito um adolescente.


Por isso mesmo, passei despercebido a
Villa Lobos. Pouco tempo depois de haver
tro Municipal, durante um concêrto sinfôni-
co, em que executaram o seu poema da
"Guerra" .
estalado a primeira grande gueo:a, cessaram Já o pais falava de Villa Lobos como que
as reuniões em que eu ouvia Homero e Villa a prever, em seus primeiros surtos, "tôda a
Lobos. E como o único ponto, onde eu me orquestração que no seu crânio havia". E
encontrava junto a êle e o ouvia executar rememorei, quase maquinalmente, as fases
era na casa distante e confortável dos meus rápidas de sua vida, conhecidas através de
padrinhos, perdi, desde então, o contacto palestras travadas ao tempo em que o ouvia
amável de ~ua companhia. tocar violão.

- 21-
Imaginava-o ainda aos seis anos de ida- - No meu pais, no Conservatório de
de, iniciando Os estudos de violoncelo. Apren- Cascadura.
dia música com seu próprio pai. - E quais foram seus mestres?
E' de notar, aliás, um filãozinho here- - Pixinguinha, Donga, Bilhar, etc ....
ditário que se derivava de seu avô materno,
o velho Santos Monteiro. Pianista da côrte
de Pedro II, foi êle compositor que andou
em voga, autor da célebre "Quadrilha das
Com efeito. Villa Lobos viveu a sua mo-
Moças", peça que fêz verdadeiro furor, nos
cidade dentro das rodas boêmias dos músi-
salões do Paço, até à proclamação da Repú-
cos populares, no Rio de Janeiro. Chegou a
blica.
fugir de casa para a residência de um tio, só
Santos Monteiro estava para sua época para gozar maior liberdade e poder viver no
como, mais tarde, Nazareth para·o tempo dos meio dos músicos, tendo vagabundeado ao
saudosos "tangos brasileiros" ... lado de Cadete, Eduardo das Neves, Anacleto
t.-- Villa Lobos - cujo nascimento se veri- de Medeiros, Kalú, Ernesto Nazareth e outros.
ficou a 5 de março de 1887 - teve por pais Ao deixar a orquestra dos teatros ou dos
o Snr. Raul Villa Lobos e D. Noêmia Mon- cinemas juntava-se aos seresteiros das belaÍ>
teiro Villa Lobos que residiam, então, na rua noites de cavatinas, pelos bairros da ddade.
Bento Lisboa, no Rio de Janeiro. Afirma êle que obteve aí as noções mais
Como houvesse em casa vários instru- claras, mais exatas do verdadeiro contra-
mentos de sôpro, o pequeno Heitor, às es- ponto (1) ...
condidas, sempre que se furtava à vigilância Cansado de perambular por uma única
paterna, tomava do piston, da clarinete ou cidade, decidiu um dia passear sua curiosi-
do óboe e exercitava a embocadura em cada dade itinerante pelo país inteiro. Vendeu
um dêles. Surpreendido um dia pelo pai, algumas coleç-ões de livros preciosos, herda-
maravilhou-se êste da habilidade que o filho dos de seu pai, e seguiu por êstes brasÍs
demonstrava. E resolveu dar-lhe lições dês- afora.
ses in'ltl'umentos. Contava, então, dezoito anos de idade.
Foi assim que Villa Lobos fêz sua inicia- No sul, no norte e no centro seu nome
ção musical. entrou a repontar com freqüência, dirigindo
Quando contava doze anos, em 1899, per- concêrtos, executando em recitais, ou m~smo
deu o pai. Ao lado de sua mãe iniciou, en- como autor de peças apresentadas por ou-
tão, a luta no mundo, em longo e pertinaz trem. A necessidade de viver impelia~o a
esfôrço, realizado em tôrno de si mesmo. estas atividades. Mas não era isto que êle
D. Noêmia preferia que o pequeno seguisse esperava realizar em seu espairecimento
um curso de medicina. através de sua terra. Não era um virtuose;
Nessa época os teatros, os cinemas e até seus desígnios tinham outro sentido; suas
mesmo os restaurantes mantinham orques- intenções seguiam outro rumo.
tras em seus salões. O rapaz, porfiando pelo O que levava Villa Lobos a errar pelos
pão de cada dia, tocava violoncelo e algumas vários Estados de seu país era ünicamente
vêzes, piano, em vários dêsses lugares de o desejo de conhecer intimamente as várias
diversões. feições de cada um dêles:· os usos, os costu-
Para ilustrar mais vivamente seu caso mes, o folclore musical e poético, o espírito,
de autodidatismo, é curioso lembrar uma enfim, de cada região ou de cada agrupa-
passagem humoristica de Villa Lobos, quan- mento racial. Sua intuição de artista, pro-
do, mais tarde, já se encontrava na Europa. fundamente integrado no momento universal
Perguntando-lhe vários professores fran- das pesquisas musicais de cada povo, guia-
ceses onde o nosso maestro fizera os seus va-o nessa diretriz. Os anos passados a per-
estudos, êste respondeu pron tamen te: lustrar o interior -- haurindo com satisfação

- 22-
os ares virgens que a gente humilde respi-
rava, observando os usos simples dêsse povo
desconhecido nas cidades - trouxeralij-Ihe,
sem dúvida, o manancial inesgotável com
que iria revestir-se, ma~ tarde, o pensamen-
to musical do artista.
Foram-lhe, com efeito, de inapreciável
valor os proventos conquistados nesse perio-
do de erraticidade atraves do Brasil. Ora
dirigindo orquestras, no Paraná (1908); ora
regendo no extremo norte, no Amazonas
(1911), ou mesmo aqui perto, em Friburgo,
Cantagalo, etc. (1915), seu nome começava a
estrelar o mapa do seu país, acendendo uma
luzinha em cada lugar por onde passava.
Foi no ano catastrófico em que a pri-
meira grande guerra talou os campos eu-
ropeus, que Villa Lobos apresentou os resul-
tados iniciais de seus estudos, colhidos entre
os elementos autóctones do Brasil, exibindo
alguns trabalhos calcados sôbre temas do
folclore afro-ameríndio: "Dansas dos índios
Mestiços ", "Fábulas características", etc.
Sua atividade nunca mais conheceu des-
canso. Com o extenso material nativista, ar- Villa-Lobos ao lado de Florent Schmldt, cm Paris

mazenado em suas comportas sentimentais,


o artista desdobrou-se de então para d .. A êsse tení.po Villa Lobos aparecia nos
Possuía já os elementos mais vibráteis para cartazes assinando as partituras de várias
a grande arte que iria realizar. óperas. Escreveu "Alegria", "Jesus", "Zoe",
"Malazarte" e "Izaht". Esta não lhe consu-
E teve início a trajetória luminosa. miu mais de quatro meses de trabalho. Foi
Alguns anos mais tarde (1919-20) assis- executada no Municipal, sob sua regência, e,
tia à execução de obras suas, no Municipal mais tarde, em 1922. Ainda sob sua regência
do Rio, em concêrtos memoráveis dirigidos foram apresentados os grandes concêrtos sin-
.por Marinuzzi e Weingartner. f:le próprio fônicos, com que o Rio comemorou a visita
regeu as suas admiráveis sinfonias de "A dos reis da Belgica ao Brasil.
Guerra" e da "Vitória", duas páginas em- Villa Lobos sentia crescer a aura de ad-
polgantes de música orquestral. Por essa miração e simpatia do público que o aplau-
ocasião vários elementos de destaque nas le- dia. Começava a ser discutido e combatido,
I tras organizaram a famosa "Semana de Arte
Moderna", em São Paulo. Exibiram-se, no
sinais evidentes de que tinha "alguma coisa"
para transmitir.
certame, inúmeros valores de tôdas as mani- Chegou a um ponto em que o próprio
festações artísticas. país lhe pareceu pequeno. Seus devaneios de
Villa Lobos tambem acorreu a êle. Com- artista fizeram-no sonhar com o mundo in-
pareceu com trabalhos escritos alguns anos teiro. Precisava expandir-se. Compreende-
atrás; sua atuação mesmo assim foi de gran- ram isso vários amigos do artista e um grupo
de relêvo, a despeito daquêles que haviam dêles decídiu tomar a serio o empreendi-
produzido especialmente para a "Semana de mento de enviar Villa Lobos à Europa. E,
Arte Moderna". nas primeiras semanas de 1922, seguia o ar-

-23 -
tista, Atlântico afora, com os olhos deslum- Porque o espírito de sua terra e de sua
brados para o mundo superior em que iria gente, argamassado· no seu subconsciente, era
viver. Atrás dêle ficava o Brasil: dentro o elemento vital de que se haveria de nutrir
dêle, porém, seguia também o Brasil ... a grande arte de Villa Lobos .

. .. e os primeiros contactos com o munoo


E SSAS coisas passavam-me pela cabeça, em de Villa Lobos nos meios artísticos do velho
um turbilhão de recordações, enquanto eu continente. E' um prazer ouvi-lo falar des-
traçava os meus croquis, no velho casarão sas coisas; sua palavra colorida e expressiva
do antigo Pedagogium. empresta à narração um sabor esplêndido,
A aparição de Villa Lobos, na sala onde dado o arrebatamento com que o artista a
eu trabalhava, e os momentos rápidos de pa- expõe.
lestra bastaram para a evocação dêsses tra- Eu tive êsse prazer. Ouvi-o discorrer
ços de sua vida. sucessivas vêzes a respeito das suas compo-
Agora, sabia-o ali em cima, no segundo sições, realizadas no Velho Mundo; dos cír-
andar, onde eu o teria durante alguns meses. culos de artistas que o festejavam continua-
Não sei bem por que, uma idéia vaga e m en te; das emoções, enfim, vividas desde a
imprecisa juntou em meu cérebro a figura borda do Mediterrâneo até aos confins das
de Villa Lobos e a história da música no cidades nórdicas da Europa.
Brasil. Não cuidei, desde logo, de sacar con- Sua estadia foi longa; durou quase um
clusão alguma de tal pensamento. A tarde, decênio. Felizmente não foi ininterrupta;
porém, subi ao segundo andar e fui tirar dois houve alternativas. Durante nove anos Villa
dedos de prosa com o velho amigo. Lobos tornou quatro vêzes ao seu pais. Vinha.
Encontrei-o chupando um c h a r u t o, dava uma amostra da ascensão contínua de
óculos encavalados na ponta do nariz, em seu gênio e - zás! - seguia novamente.
meio de uma papelada enorme espalhada sô- singrando o Atlântico.
bre a mesa. Parecia atarefado. Mesmo as- Na Europa, os seus sucessos contavam-
sim não resistiu amàvelmente a uma pales- se pelo número de suas exibições. Os màio-
trinha; deixou o trabalho para falar. (Villa res artistas e musicólogos encaravam-no já
Lobos é um "causeur" adorável). como um artista excepcional, não ocultando
Palavra vai, palavra vem, em pouco tem- mesmo as suas impressões a respeito. Exter-
po estavà eu senhor dos principais fastos de navam-se com freqüência, encoraj ando-o ar-
sua trajetória pelo Velho Mundo. Soube as- dentemente.
sim que os mil francos mensais que lhe da- Sob a sua regência, realizou concêrtos de
vam os amigos patrícios serviram-lhe para obras originais em França, Bélgica, Inglater-
eustear os primeiros anos longe da pátria. ra, Alemanha, Holanda, Suíça, Luxemburgo.
Findo êsse período de auxílio, passou o ar- etc. Não raro, era convidado para dirigir
tista a viver por sua conta, dos seus concêr- grandes orquestras, neste ou naquêle país, O
los e das suas obras; alguns dêles, em cará- que aconteceu em Portugal, em Espanha e
ter definitivo, já haviam sido executados no em alguns outros. De outra feita, ia apenas
Brasil, em uma série de concêrtos, pouco an- assistir às exibições de obras suas, como em
tes do autor haver embarcado para a Eu- Praga, em Riga, etc. Não havia centro mu-·
ropa. sical na Europa onde seu nome deixasse de
Seria fastidioso enumerar aqui, tim-tim figurar na primeira plana, ao lado dos gran-
por tim-fim, o desenrolar da ação brilhante des nomes da música antiga e moderna.

- 24-
Stokowsky, ao lado
de Vl!la-Lobos,
estudando uma parti-
tura dêste ültlmo,
antes de dirigi-Ia,
juntamente com o
maestro brasileiro, na
Orquestra "City Cen-
ter Symphony"

Sua tecnica inovadora, fruto de seu pug- divulgação os artistas A, Rubnistein, Florent
naz autodidatismo, original e livre dos mol- Schmidt, Eugênio CoaIs, Vera J anacopulos,
des consagrados, havia atingido um grau ine- Jean Wiener, Colchowisky.
gável de perfeição, cuja segurança mais se Há um fato que caracteriza esplêndida-
afirmava, à medida que o pensamento do mente o espírito original e altamente artís-
artista chegava à maturidade, tico de que se achavam impregnados os tra-
Era realmente notável a extensão de sua balhos musicais de Villa Lobos.
obra, levando-se em conta que êle ainda não
E' o seguinte:
completara quarenta anos de idade. A com-
plexidade da mesma era notória; seu estI'O Certa manhã nevoenta, em Paris, o jo-
musical abordava, com facilidade espantosa, vem artista, havia pouco chegado à Europa,
todos os gêneros de música, desde as peque- foi bater à porta do mestre francês Vincent
nas peças simples para canto, piano ou ou- d'Indy. :f:ste ouviu-lhe, pacientemente, as
tros instrumentos solistas, ate às partituras peças uma por uma. Indagou-lhe, após, ao
que vinha.
das grandes sinfonias, sonatas, quartetos,
óperas, lltingindo seu clímax absoluto nos - Estudar com o mestre; aperfeiçoar-
oratórios, missas e demais variantes da gran- me no que puder ...
de música religiosa. Vincent d'Indy teve um sorriso bondoso
Contou entre seus amigos os maiores no- ante a ingenuidade do rapaz. Fitou-o longa-
mes da música universal. Strawinsky, Hin- mente e, com palavras de franca animação,.
demith, Prokofieff, Honneger, Poulet, Case:Ia, acabou por declarar:
Ravel, Roussel, Copolla, Rossi e niuitos ou- - Você não tem mais nada para apren-
tros, que testemunhavam sua admiração ao der comigo ...
compositor dirigindo constantemente suas E, dentro de seu entusiasmo, assegurou
obras. Muito concorreram, também, para sua que aquilo que acabara de ouvir era já obra:
sólida, bem construída, bem executada, em época, ficaram os mesmos fazendo parte do
seu plano superior de composição. catálogo dos conhecidos editores musicais.
Villa Lobos exultou. Mais tarde, chegou Nem todos, porém, são conhecidos no Brasil,
a receber cartas de Vincent d'Indy, nas quais embora apareçam, com freqüência, nos pro-
o mestre afirmava com mais conyicção essas gramas dos mais notáveis concertistas do
mesmas impressões, pois acabara de analisar Velho Mundo.
tecnicamente a La sinfonia escrita no Rio, Dentre as páginas mais expressivas de
em 1917. Villa Lobos contavam-se as seguintes: os
Essa opinião ficou como base na cons- grandes bailados "Uirapurú", exibido em
ciência artística de Villa Lobos; estribado Buenos Aires, e "Jurupary", interpretado em
nela, seguro da sinceridade do mestre fran- Paris, pela arte refinada de Sergio Lifar; os
cês, entendeu que não devia procurar mais opúsculos dos "Choros", "Dansas Africanas";
ninguém para julgamento de sua obra; e as sinfonias "Amazonas", "Naufrágio Kleô-
assim o fêz. nico", "Tédio de Alvorada", "Myremis", a
Não tardou que os editores Max Eschig "Missa de São Sebastião", as "Cirandas", o
viessem bater-lhe à porta, propondo-lhe a "Rudepoema ", dedicado a Rubinstein e mui-
publicação de seus trabalhos. E desde essa tos e muitos outros.

"P'
l;) preClSO enSlnar O

Q DANDO, voltou à pátria, Villa Lobos sen-


tiu, como desoladora mágoa, o ambiente de
então, depreciada e sustentada por um cír-
culo de amadores que a consideravam, ape-
estagnação artística em que se achava mer- nas, passatempo de reuniões sociais.
gulhado o seu país. A indiferença dos diri- Bem inspirado nos seus intuitos, voltou-
gentes soprava como vento glacial sôbre a se, antes de mais nada, para a alma das cri-
incultura do povo; chegava mesmo a uma anças: "E' preciso ensinar o Brasil a can-
hostilidade surda contra os que se armassem tar" .
de boas intenções. Coroava-se o medíocre.
Imperava o desenfreado sentimento oportu- Neste lema está o verdadeiro espírito da
nista das multidões. campanha vilalobiana.

Villa Lobos constatou tristemente essa Cônscio de seus bons propósitos as auto-
decadência do nível cultural de sua pátria; ridades, é verdade, souberam corresponder
dentro do desconfôrto que lhe trazia o pa- aos anseios do artista. Nasceu, então, a
norama das falsas competições, não se dei- SEMA (Superintendência de Educação Mu-
xou, no entanto, abater. Pelo contrário. Seu sical e Artística), mantida pela Municipali-
espirito de predestinado, afeito à luta, reagiu dade da Capital. Êste instrumento de supre-
soberbamente. Traç'ou um esbôço de larga ma orientação do canto coletivo devia pla-
campanha, cujos objetivos êle fixara, mas nejar, cuItuar e desenvolver o estudo da mú-
cuja repercussão êle mesmo, talvez, não sica em tôdas as escolas do Rio.
fôsse capaz de prever. Preparava-se Villa Lobos para uma im-
. Dentro de suas cogitações, esqueceu-se portante campanha de educação musical, in-
quase de si mesmo para entregar-se viva- troduzindo nova e adequada orientação no
mente à coletividade. Decidiu ser o artista ensino, baseada em raízes do folclore brasi-
do povo; deliberou pugnar ousadamente em leiro, com o intuito grandiloquente de criar,
prol do levantamento e da independência da em caráter definitivo, a música séria na-
arte musical no Brasil, que êle achava, até cional.

- 26-
Momento de ensaio, para uma das grandes concentrações orfeônicas das escolas do Distrito Ff..derc.l, apre-
sentadas por Villa-Lobos

:t:sse aparêlho magnífico - a SEM A - VilJa Lobos não cuidou de provar, com
foi idealizado e criado pelo pensamento de argumentos balôfos, a utilidade de tal ensino.
Villa Lobos. Só mesmo sua desmedida capa- Provou-o com fatos. Preferiu trabalhar a
cidade de ação, a serviço de uma idéia pro- discutir. E o resultado de seu trabalho fêz
fícua e benfazeja, seria capaz de realizações calar os maldizentes.
tais. Sua obra foi de tal ordem, avultou d~
Não lhe faltaram críticas acêrbas e in- tal maneira que, hoje, poucos anos distantes
vestidas solertes de desafetos e despeitados. de seu início, seria rematada estultice pre-
Contra isso êle possuía, no entanto, o escudo tender amesquinhá-la; a sua utilidade se
1 impenetrável da fé em seu trabalho, escudo
que o defendia dos dardos que lhe arremes-
acha comprovada aqui, como, de resto, em
todos os meios mais adiantados.
savam furiosamente. E' que o canto orfeônico mantém-se co-
Dentro de sua miopia ou de sua própria mo um dos elementos de maior importância
cegueira, críticos medíocres procuravam es· para a educação do povo, pois o conduz à
tabelecer confusões, no terreno em que Villa concepção de idéi~s pmas, ao mesmo tempo
Lobos construía com seu idealismo. Chega- que o esclarece para u'a mais ampla com-
ram a negar valor ao ensino do canto orfeô- preensão do Belo e do Artístico. Verdadeira
nico! educação artística.

- 27-
Neste mesmo ano de 1930, Villa Lobos
realizou, em São Paulo, a convite da Socie-
dade Sinfônica, uma série primorosa de nove
concêrtos sinfônicos de músicas originais, de
autores clássicos e modernos, brasileiros e
estrangeiros, quase todos em primeira au-
dição.
No ano seguinte, já integrado no seu
plano ideal de canto orfeônico, realizou,
ainda na Paulicéia, o maior acontecimento
cívico-artístico jamais visto na América do
Sul: o grande concêrto vocal onde atuaram
mais de 12.000 vozes (escolares, militares,
elites sociais, operários, acadêm~icos), além
de 400 músicos de orquestra e banda.
Tal acontecimento foi repetido aqui, no
Rio, três anos depois. No estádio do Flumi-
nense, o maestro brasileiro reuniu cêrca de
quinze mil vozes de alunos das escolas pú-
blicas.
Com isto firmava-se definitivamente a
fama de artista-educador, que tão merecida-
mente seu próprio trabalho lhe outorgara.
De todos os paises vinham-lhe os ecos
dos aplausos francos. Da Argentina, manda-
ram-lhe um convite honroso: o Teatro Co-
Uma atitude de regênc!a de Villa-Lobos lon, de Buenos Aires, esperava-o:
Villa Lobos dirigiu lá uma série de dez
Convencido de tais coisas foi que VilIa concêrtos e quatro bailados, entre os quais
Lobos se atirou destemeroso à luta. Começou se encontrava seu famoso "Uirapllrú".
assim: no intuito de semear o gôsto pela No ano seguinte, foi designado para re-
música pura organizou, mal chegado da Eu- presentar o Brasil no Congresso de Educação
ropa, uma excursão por mais de sessenta ci- Musical, em Praga. Cuidaram os congressis-
dades de São Paulo, realizando conferências tas - delegados de quase todos os paises -
ilustradas com piano, ceIo, violão, violino, do estudo de vários planos de ensino musi-
coros ou orquestra. cal, usados em cada pais. Dêsse certame saiu
Não cabe aqui o relato de tôdas as fases vitorioso o plano de VilIa Lobos, que foi clas-
da campanha memorável do artista para a sificado em primeiro lugar.
consecução de seus ideais. A longa e por- Deixando o congresso, o artista excur-
fiada pugna em tôrno daquilo a que chama- sionou ainda por outros países, fazendo con-
va a "Independência da Arte Brasileira ", ferências em Paris, Berlim, Viena, e no Con-
exigiu-lhe um destemeroso esfôrço e uma gresso de Musicologia, em Barcelona, onde
pertinácia nunca desmentida. Mas Villa Lo- foram adotados os métodos e esquemas de
bos venceu e aí está, como que a atestar sua ensino, que o educador pusera em prática no
vitória, a disseminação do canto coral em Brasil.
tôdas as nossas escolas. Mais ainda. O 01'- De regresso, mais ainda se dedicou o
feôn de Professores, de utilidade indiscutível maestro à pedagogia musical. Sua atividade
e a própria Orquestra de Professores, cuja neste setor tem sido infatigável. A SEMA
única finalidade é fazer arte pela arte. constituiu no Brasil um departamento mo-

- 28-
delar, cujos empreendimentos colocaram. o nico, que jà mereceu de alguém o sub-título
nosso país em um plano inegável de superio- de "Bíblia Musical". Consta ela de cento e
ridade. trinta e sete cantigas infantis, nacionais e
Basta ver o "Guia Prático" realizado por estrangeiras, pacientemente selecionadas e
Villa Lobos. E' uma coletânea, em seis volu- adaptadas por Villa Lobos para a educação
mes, de peças educativas para o canto orfeô- e formação do gôsto artistico das crianças.

()nae se verá que o artista já está compfeto

E u conhecia, mais ou menos, a atuação


de Villa Lobos como compositor, como re-
gava uma chuva de cinzas sôbre as calças do
execntor ...
gente e, sobretudo, como educador. Não com Para tocar, êle não se fazia de rogado.
os detalhes com que a descrevi até aqui. Com um simples convite eu o arrancava da
O desenrolar minucioso de sua vida, banca burocrática para o centro da sala, que
onde domina a projeção de seu vulto na êle enchia de frases musicais.
música contemporânea universal, surgia aos Claro que eu não podia perder aquêles
bocados, nos farrapos de palestras que eu momentos. Ficava ali firme e Villa Lobos
mantinha com êle, em seu gabinete, na aceitava meu entusiasmo com viva simpatia.
SEMA. Tôdas as vêzes que êle me queria lá em
Tôdas as tardes subia para a prosinha a cima, pegava em um instrumento qualquer
que já me habituara. e mandava escancarar a porta; eu subia,
atendendo ao chamamento musical. Deixava
A sala onde Villa Lobos trabalhava tra-
o deserto lá em baixo e ganhava o oasis ...
zia-me a sugestão de um oasis, onde eu me
Foi em uma dessas tardes que ouvi os
internava para descansar o espírito da aridez
primeiros trechos das famosas "Bachianas
de meu trabalho. Os dias ali se sucedíam,
brasileiras". " Villa Lobos compunha, na-
mas não se pareciam.
quela ocasião, a série magnífica de sinfonias
Embora afogado no burocracismo de seu que iriam, mais tarde, estarrecer e encantar
trabalho funcional, a arte exercia continua- os meios musicais de todos os países.
mente seu sacerdócio inelutável. De vez em
quando, surgia ali um instrumento qualquer:
um violino, uma viola, uma harmônica ou,
o que era melhor, seu próprio violoncelo. A medida que eu ouvia as "Bachianas",
Nessas ocasiões Villa Lobos descavalgava os hoje um trecho, amanhã outro, vendo-as sur-
óculos e, largando a papelada soporífera, to- girem assim como esplêndida florescência da
mava do instrumento. Em poucos minutos, alma do artista, ia juntando em meu cérebro
estava êle absorvido, a um canto da sala, à uma série de considerações em tôrno de sua
"procura de sonoridade" como costumava personalidade. E pensava assim: Villa Lobos
dizer. tenta realizar o trabalho dos geniais intér-
Era curioso vê-lo assim, encaramuj ado pretes no sentido de universalizar as canções
sôbre o violino, que êle prendia entre os joe- de sua terra .. Atesta-o a incompreensão que
lhos, na postura do violoncelo. Sua cabeleira o cercou e que agora, felizmente, já está bas-
escorria-lhe para a frente e ficavà pendu- tante atenuada.
rada a balançar as melenas sôbre o rosto, E' que. o seu esfôrço, servido pela emo-
como bambinelas sôltas. O charuto, espeta- tividade pessoal e pela capacidade de com-
do na piteira curta, de vez em quando lar- preender e interpretar o folclore de seu país,

- 29-
conseguiu varar a nebulosidade dos que não popular que lhes serve de argumento subsis-
atingiam as culminâncias de seu pensamen- te bem delineado em tôda sua pureza, ao
to de arte. invés de se apagar - coisa comum, em casos
Villa Lobos foi o esteta que mais profun- tais - sob a riquíssima indumentária har-
damente sentiu a alma popular do Brasil. mônica .com que o mesmo foi revestido. E'
E' que êle apurou o ouvido' na dire~ão de que Villa Lobos possui uma surpreendente
nosso mundo primitivo; deixou-se penetrar técnica orquestral que, por ser pessoal e in-
do rumor longínquo e tão agrestemente na- confundível, surgiu com caráter inovador,
tivo dos gritos bárbaros dos indígenas, das firmando as bases da musica brasileira.
suas melopéias selvagens, de seus coros ri- "A Dama Africana", a "Dansa dos Ín-
tuais que reboavam nas grandes catedraís dios Mestiços" e a "suite sertaneja" são, a
verdes das florestas. rigor, os marcos iniciais da longa trajetória
Ouviu, também, as exortações dolorosas que o maestro brasileiro iria realizar. Daí
do sangue africano na invocação de deuses para cá, numerosas têm sido as suas pro-
estranhos - os singulares tótems do conti- du~ões.
nente negro.
Tudo isso se consubstanciou no seu ego,
formando-lhe como que o substratum valioso Certo dia, recebi de Villa Lobos um con-
e opulento com O qual deveria ditar, mais vite para assistir à execução das "Bachianas"
tarde, as diretrizes da arte musical de seu n.O 1, por uma orquestr~ de oito violoncelos.
país. Dentro dêle o reMIa da imaginação e Foi num domingo chuvoso, no salão de
da sensibilidade entrou a triturar, a moer concêrtos da Casa d'Italia, em 1938. Após a
todo êsse material, ainda em forma bruta. primeira parte do programa, Villa Lobos as-
Operou-se, então, a gestação artística: os ele- sumiu a regência e as suas páginas, esplên-
mentos colhidos em suas fontes originais fo- didamente interpretadas, enlevaram o audi-
ram-nos devolvidos pelo artista revestidos das tório, que as aplaudiu delirantemente.
formas raras da beleza universal; os motivos Enquanto ouvia a execução, filosofava
rítmicos e melódicos do folclore nacionul, de mim para mim. Nas "Bachianas" a arte
após a filtragem dos processos harmônicos, do maestro brasileiro atingiu seu ponto cul-
surgiram-nos opulentos e magníficos, trans- minan te. E' que êle compreendera, como
figlll'ados pela inspiração superior. nenhum outro, o sentido cósmico da música
Mas não perderam nada de seu encanto de Bach.
original. Villa Lobos criou, dest'arte, o ver- O caráter de universalidade, de que se
dadeiro, o incontestável" ambiente de brasi- revestem as produções do genial músico sa-
lidade", na música de seu país. Sua obra é xão, torna-as, de falo, uma fonte folclórica
tôda ela impregnada de um caráter genuina- universal, tão rica e profunda como os "ma-
mente nacional, desde os cantos ameríndios teriais sonoros populares de todos os países".
primitivos até os da época atual. Essa frase, que aí vai entre aspas, é do pró-
Para realizar isso o artista relegou, com prio Villa Lobos.
desprêzo, os velhos processos canónicos da Realmente, quase não é passiveI situar
escolástica musical; rompeu com a técnica Bach nesta ou naquela escola; êle pertence
seródia na qual a música era baseada, e foi ao mundo. Sua musica vem do Alto. Fami-
buscar os temas e a inspiração de suas obras liar dos deuses, suas harmonias se espalham
nos mananciais inconfundíveis da nacionali- por todos os recantos do planeta, surgindo
dade. Emprestando-:he o toque de seu ta· na fonte musical de tôdas as raças.
lento e de seus conhecimentos amplos, Villa Villa Lobos compreendeu Bach como ne-
Lobos exibiu-os à apreciação Llniver~al. nhum outro, talvez.
O mais admirável, no entanto, é que o Dentro da corrente musical moderna.
artista não desfigura os temas fundamentais cujo expoente é, sem duvida, Stravinsky, o
de suas composições. O desenho primitivo e russo genial que lançou o grito da "volta a

- 30-
! Um momento
I
I
da "Dansa
,[ da Terra ", bai-
lado apresen-
tado por Villa
f Lobos, no
Ii estádio de São
Januárl0,
Rio de Janeiro

Bach" - e da volta a muitas outras coisas -, Dentro de tal critério Villa Lobos fêz
o compositor patricio é de todos o que mais música de câmera, evocando no âmbito do
assimilou o caráter humanista da música espírito harmônico de Bach "alguns panora-
bachiana. Enquanto para outros luminares mas sugestivos e típicos da vida do Brasil".
modernos, como Honneger, por exemplo, Nesses trabalhos, Villa Lobos esforçou-se por
Bach é um mecanista, para Villa Lobos êle é expressar, em tôda sua plenitude, o vigoroso
mestre que se adapta a qualquer principio e altivo pensamento musical, que lhe referve
de escola musical. na cerebração ardente, dentro de um ambi-
ente de pura brasiljdade.
- E' desiemeroso afirmar certai _coisas
- disse-me êle, certa vez - mas creia que
em Bach se encontram até os princípios da
escola futurista! Com tais procesos de cempOSlç,lO Villa
Vê-se por aí como o artista se integrou Lobos nada mais fêz do que seguir as diretri-
nosp.ensamentos do mestre. E foi p.or isso que zes da música de seu tempo, cuja inspiração
êle encontrou uma freqüente familiaridade é bebida diretamente nas fontes originais do
entre a grandiosa música de João Sebastião folclore de cada país; não fêz outra coisa
Bach e os motivos constantes de nossa mú- senão integrar-se no movimento artístico de
sica popular. nossos dias, movimento que o impeliu a rea-
A arte do genial mestre germânico pos- lizar, em sua pátria, o que os outros artistas
sui, a seu ver, "uma expontânea afinidade de realizam nas suas.
ambiente hannônico, contrapontístico e me- E' por isso que o nosso compositor se
lódico, com uma das principais modalidades tornou admírado no mundo inteiro. ~le im-
da música folclórica do Brasil". pôs, aos ouvidos de todos os continentes, a

31 -
música de seu _país, traduzida em linguagem Infelizmente, nem todos la fora imagi-
superiormente artística, única maneira de nam o esforço que isso tudo lhe custou, den-
Jazer com que ela seja entendida. tro das fronteiras de sua patria ...

() "cfimacx:" artfstico oe Vi ((a :Po8os atinJe seu


ponto cu(minante

o amontoado de linhas acima estava es-


crito e repousava há alguns anos no fundo
no espirito, na indumentária, no ritmo e nas
evoluções daquêles que, há mais de meio
.da gaveta. Uma série de afazeres novos veio século, desfilavam aos olhos das multidões,
interpor-se em minha vida de' franco-atira- nos tempos do Brasil Império. Foi, além de
,dor, obrigando-me a sustar o relato da se- uma nota de curiosidade pitoresca, uma va-
qüência de fatos que integram a vida glo- liosa contribuição às pesquisas saudosistas
riosa de Villa Lobos. dos costumes nacionais.
Foi bom, em parte, Quando retomei o No ano seguinte, dirigiu concêrtQs no
:fio interrompido ja o maestro havia comple- Rio, em Montevidéu e Buenos Aires, e com-
tado novos surtos - que eu nunca deixara pôs novas e valiosas obras educacionais e
,de acompanhar pelo noticiário dos jornais.
artísticas, merecendo destaque as "Bachia-
Agora, porém, neste ano da graça de mil nas Brasileiras" n.O 3 (piano e orquestra),
nOvecentos e quarenta e seis; rlecidivolver as "Saudades da Juventude" (orquestra),
ao assunto de minha debatida histó'ria da "Mandú-Çarara" (coros e orquestra) e "Pre-
música no Brasil. lúdios ", para violão (6 peças) .
Voltando ao assunto, é claro, voltei a
procurar Villa Lobos, 1!:le não dirigia mais a Essa seqüência de composições não foi
SEMA; com a criação do Conservatório Na- interrompida até hoje, prosseguindo o ar-
donal do Canto Orfeônico, em 1942, fôra no- tista, ano por ano, a lanç'ar novas contribui-
meado diretor e designado pelo Ministério ções para a edificação da música brasileira.
,da Educação, dois anos depois, para reger Escreveu várias obras corais sôbre temas
a cadeira de "Didática do Canto Orfeônico". ameríndios, o "Hino à Vitória", o "Sétimo
La é que fui encontra-lo, atarefado como Quarteto de cordas" e "Bachianas" n.o T (or-
sempre, num amplo gabinete, cuj as janelas questra). Em 1942, já diretor do recém-
abrem para o cenário empolgante da Gua- criado Conservatório Nacional de Canto Or-
nabara, e foi la que retomei minhas consi- feônico, organizou e dirigiu uma missa cam-
derações em tôrno da vida do artista, no pal com dez mil escolares, recebendo ainda
})onto em que a havia abandonado. o título hOBorario de "Doutor em Música",
Verifiquei, desde logo, que, nestes últi- da Universidade de New York, e o de mem-
mos oito anos, sua atividade se desenvolvera bro, também honorário, do Instituto Nacio-
no sentido de arrojadas criações e no pros- nal de Belas Artes, daquela mesma cidade.
seguimento de largo programa educacional. Em 1944, foi convidado para dirigir concêr-
tos e realizar conferências, no México e no
No Rio de Janeiro fêz realizar, em 1939,
Panamá. Produziu ainda "Bachianas" n.O 8
um curioso certame de dansas típicas brasi-
(orquestra), a 6. a Sinfonia e o "Quarteto de
leiras, apresentadas em cinco terreiros. Nesse
cordas" n.O 8.
mesmo ano criou a "Sôdade do Cordão",
,exibindo, pelas ruas da cidade maravilhosa, o ano seguinte trouxe para a carreira de
um autêntico cordão carnavalesco, calcado Villa Lobos uma movimentação das mais no-

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táveis, não só pelo número e qualidade das
composições executadas, como- pela: consa-
gração recebida em vários países das Amé-
rlcas.
Esteve no Chile, dirigindo obras suas, na
orquestra de Santiago; compôs a "7. a Sinfo-
nia", para o concurso de "Sinfonias das
Américas", de Dedroit; "Madona", poema
sinfônico, por encomenda da Koussevitzky's
Foundation", em memória de Natalie Kous-
sevitzky; "Trio" (violino, viola e ceio); 1.0
concêrto (piano e orquestra), para a pianis-
ta canadense EIle BaIlon; "Bachianas Bra-
sileiras" n.O 9 (vozes); "Dansa" (Martelo);
"Quarteto de cordas" n.O 9; "Canções de
Cordialidade" (5 números) além de vários
arranjos e um 2.° volume de "Solfejos".
Nos Estados Unidos, dirigiu concêrtos na
"Columbia Broadcasting System", na "New
York City Symphony Society", de New York.
Em'Boston, regeu obras suas com a "Boston
Symphony Orquestra". Em Chicago, realizou
um concêrto de câmera, na Universidade,
tendo ainda gravado, na Columbia, as "Ba-
chianas Brasileiras" n.O 5 (orquestra de ce-
los", com Bidú Sayão como solista, e as
"Sp.restas", com a cantora Jennie Tourel. Johann Sebastian Bach cuja música de sentido universal
Inspirou as "Bachianas Brasileiras"

nico em tôda sua pCljança e no mistério sel-


Diante de Villa Lobos, vendo-o falar, ex- vático de suas florestas impenetráveis. Ou-
pondo as características e as normas de sua tras vêzes, o artista abandona os processos
arte, com aquela exuberância de frases e de violentos e rudes para se deleitar na senti-
gestos, sente-se o próprio espírito da música mentalidade apaixonada da própria alma
que êle compõe, rica de expressões e de des- . brasileira, buscando inspiração nas fontes
lumbramentos inesperados. Nele, o velho de nosso folclore, nas canç~es, nas modinhas,
conceito do "estilo é o homem" merece apli- nos temas, enfim, de maior repercussão po-
cação imediata; seu temperamento exorbi- pular, como na série dos "Choros" escritos
tante apresenta uma gama interessante de para piano,. violão ou orquestra, todos de
aspectos sentimentais, desde os arroubos uma tocante emotividade puramente nativa,
mais violentos às carícias mais blandiciosas. cujos temas traem os ritmos e o sentido me-
Veja-se-Ihe a obra. lódico de sabor popular; apurando, de outras
Por vêzes sua personalidade aparece ar- feitas, a delicadeza de suas intenções, surge
rebatadora, ciclópica, como (para simples ainda como o intérprete e o analista sincero
exemplo) no majestoso poema-bailado e curioso dos motivos infantis. Ei-Io então
"Amazonas" . E' a própria alucinação do realizando uma outra feição de sua obra,
inferno verde que ali está, na luta tentacular não menos interessante do que as demais,
das fôrças naturais, na angústia quase indes- que é a série das "Cirandas" e "Cirandi-
critível e tormentosa de uma natureza ainda nhas ", do "Carnaval das Crianças Brasilei-
primitiva e gigantesca. E' o drama amazô- ras", da famosa "Prole do Bebê" e outras

- 33-
para exibi-lo quase que em sua forma primi-
tiva, "ligeiramente enriquecido", como acon-
tece comumente. Nada disso. No cadinho de
sua sensibilidade fundem-se os temas melódi-
cos e rítmicos do material popular para res-
surgirem transformados ou transfigurados
pelo caráter iniludível de sua personalidade,
que imprime, em cada obra, os traços de seu
temperamento vigoroso e ardente.
A contribuição de Villa Lobos para a
música moderna, sua projeção personalíssi-
ma no panorama da arte de nossos dias, sô-
bre ser das m'ais valiosas, representa, ainda,
a elevação que poderá obter, em futuro não
remoto, a verdadeira música brasileira.
Veja-se o que sôbre êle escreveu Fran-
cisco Curt Lange, um dos mais notáveis mu-
sicólogos da atualiclade, reconhecido como
uma das maiores sumidades em música, no
V!lla Lobos executando ao piano, em seu apartamento
Boletim Latino Americano.
mais. Inspiradas em temas populares infan- "Ao falar do compositor capaz de legar
tis constituem um mosaico encantador de à posteridade os frutos de um esfôrço artís-
pequenas obras-primas, representadas em tico-nacionalista, ninguém poderá estranhar
peças pianísticas tais como "Polichinelo", que se coloque em lugar predominante, a fi-
"Terezinha de Jesus", "Moreninha", "Xô-xô gura de Villa Lobos. Passarão décadas e va-
passarinho", etc. riarão os conceitos sôbre música escrita on-
O ponto culminante da obra de Villa Lo- tem e hoje, porém a função que desempe-
bos é, porém, a série das "Bachianas Brasi- nhou Villa Lobos em seu país, com raras
leiras". Dentro do espírito cósmico da mú- qualidades temperamentais e artísticas, jus-
sica de Johan Sebastian Bach, adaptável a tamente no sentido da exaltação das virtudes
"qualquer princípio de escola mundial", o de um povo, ficarão gravadas inalteràvel-
artista brasileiro desenvolveu várias páginas mente na história da música do Brasil. Não
de marcante lirismo melódICO, de estranha e é possível imaginar-se um homem que tenha
lânguida sensualidade, tudo muito ao sabor batalhado mais por sua obra, pela concepção
da ternura e ardência brasílicas. brasileira dessa obra e pela dignificaç'ão de
A "Lenda do Caboclo", a "Canção do sua própria figura de músico, pedagogo, cria-
Carreiro ", a "Embolada ", as "Modinhas", o dor e organizador.
"Canto de Nossa Terra", e o próprio "Tren-,
E é novamente a feliz conjunção de uma
zinho do Caipira", que encerra onomatopai-
cam ente a 2." série das Bachianas, são atesta- série de qualidades que tornou possível que
dos vivos da indisfarçável música brasileira, tôda tendência por dignificar sua terra sej a
no que ela apresenta de mais puro, de maior justamente em Villa Lobos um mérito que
solidez estrutural, de mais vigorosa palpita- ninguém poderá diminuir. E constatamos
ç'ão sentimental. As Bachianas não são ape- que nele tudo foi um personalismo poderoso,
nas a mais significativa afirmação da obra com incriveis recursos fisicos, uma aguda
de Villa Lobos, mas a mais pujante afirma- percepção de quanto o rodeava, um poder
ç'ão da música brasileira. de assimilação e armazenamento como nUll-
A arte de Villa Lobos não se restringe ao ca vi em compositor algum, uma inventiva,
aproveitamento de nosso populário musical uma graça e uma distinção para dizer as

34 -

I
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~oisasem um plano que está muito distante POl' essa ocasião fêz-se ouvir em Nova

do povo, e que não deixa de ser, contudo, York, a "Bachiana Brasileira n.o 3", em pri-
um legítimo nacionalismo". meira audição, executada pela Orquestra da
Em Dezembro de 1946, Villa Lobos me- Columbia Broadcasting.
receu o prêmio de Música do Instituto Bra- Com o intuito de garantir mais ampla
divulgação de músicas de Villa Lobos, foi re-
sileiro de Cultura e Arte, no valor de Cr$
centemente fundada, na capital americana a
50.000,00, instituído pelo Itamarati.
"Villa-Lobos Music Corporation", que se es-
Em 1947 o compositor escreveu e entregou
forçará ainda para a vulgariza~ão de páginas
a partitura de uma opereta "Madalena", en- de outros autores brasileiros, consoante os
comendada pelos Estados Unidos da Amé- desejos do próprio maestro que emprestou
rica. seu nome à emprêsa.

- 35-
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LO~ENZO
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FE~NJ\NDEZ

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. ,
[fi oilJersioaoe oe opznzoes e sempre prolJeitosa

CONvívIO com Villa Lo- o. verdadeiro estímulo que ela me trouxe


bos, ao passo que de- para a aventura de um livro.
senvolvia a ~mizade re- Quando lhe falei de meus projetos, ex-
cíproca, fazia robuste- pondo aos seus olhos a "esquisse" do que
cer-se, dentro de mim, pretendia realizar, Villa Lobos teve a única
a vontade de atender atitude que. eu poderia esperar dêle; pôs-se
aos reclamos de Satan; e o desejo de escre- à minha disposição. Comecei, porém, a ma-
ver a história da música no Brasil começou tutar seriamente; pensei que, trazendo para
a criar suas raízes penetrantes e inamovíveis. as páginas de uma obra sôbre música apenas
as opiniões de um grande músico, faría tra-
E' que eu via em Villa Lobos um dos ele-
balho unilateral; êste, a despeito da colabo-
mentos necessários ao empreendimento. Sua
ração valiosíssima, seria reflexo de um ponto
proverbial boa vontade afigurava-se-me ine-
de vista pessoal e exclusivista.
xaurível; além do mais, eu estava certo de
que o as~unto iria provocar o entusiasmo do E' certo que em questões de Arte o as-
maestro. sunto deve ser debatido, sujeito às mais am-
plas controvérsias. As teorias e o pensa-
Para mim seria fácil tarefa organizar a mento fundamental, em problemas de tal
obra, dar-lhe a devida estrutura, dispor-lhe ordem, merecem explanações de natureza
os capítulos, emprestar-lhe, enfim, o cabedal diversa e apreciações díspares. O sistema
de minhas assertivas e convicções, adquiri- restritivo não deve ser consagrado. Quanto
das no estudo e no apaixonamento da maté- mais intensivo fôr o choque de opiniões tanto
ria. Faltava-me, no entanto, o espírito de mais variado será o tema, de vez que êle po-
análise do técnico, a experiência direta do derá ser desenvolvido e exposto em tôdas
artista criado dentro da sua arte, desenvol- as suas facetas. A apresentação dos vários
vido no sentido da cultura musical, fatores ângulos facilitará, por sua vez, melhor apre-
êstes que sobej am em Villa Lobos. ciação e mais útil compreensão do assunto.
E' fácil de ver-se por aí o quanto me Foi pensando assim que decidi, desde
entusiasmou sua presenç'a em minha vida e logo, ouvir outras autoridades. Estas, no

- 39-
Regozijei intimamente com a idéia de
. ouvi-los, trazendo para. as páginas da obra
em projeto o pensamento dêsses notáveis
edificadores da música nacionalista no Bra-
sil. E o livro planejado surgiu logo no meu
pensamento como uma longa entrevista em
tôrno dos aspectos e do desenvolvimento de
nossa música, realizada de modo agradável
e sumamente valiosa com os "três grandes"
da atualidade: Villa Lobos, Lorenzo Fernân-
dez e Francisco Mignone.
Uma vez firmado êsse propósito, uma
vez tomada essa resoluç'ão, de maneira irre-
movível, foi com plena satisfação que invo-
quei outra vez o Diabo e, apertando-lhe efu-
sivamente as mãos rubraSi, comprometi-me
com solenidade: Senhor D. Satanaz,
aceito sua sugestão. Vou dar início ao tra-
balho. Toque!
O cornudo personagem teve um riso in-
fernal, agradeceu comovído e desapareceu.
Nunca mais o vi, até hoje ...

Não posso precisar onde e quando co-


Lorenzo Fernández, pequenino ainda, no colo de seu nheci Lorenzo Fernândez.
progenitor Os azares da vida conduzem as pessoas
a situações que, não raro, se diluem nas ne-
entanto, deveriam possuir as mesmas creden- bulosas do espírito. E ficam esquecidas.
ciais de Villa Lobos, a mesma autoridade de Muitas vêzes os momentos que assina-
opinar, a fim de que as apreciações de uns lam sucessos agradaveis, no transcurso da
não desmerecessem as apreciações de outros. vida, perdem irremediàvelmente o formalis-
Tornava-se necessário que todos tivessem a mo de suas datas, subsistindo apenas a es-
responsabilidade de suas afirmações, respon- sência de seu significado.
sabilidade calcada no próprio valor de suas Lorenzo Fernândez apresentou-se ao meu
obras e na indiscutível expressão de suas conhecimento como um fato auspicioso. Ar-
atuações no cenário artístico do país. tista emérito, um dos "eleitos dos deuses",
Com tal critério, lancei os olhos em trouxe-me, com a sua figura simpática, o
torno .. prazer indiscutível que a gente desfruta,
sempre que estabelece contato com os repre-
No plano ocupado por Villa Lobos duas sentantes da intelectualidade. No caso em
figuras se impuseram logo, com nitidez ab- aprêço pouco me importa a hora, o dia, ou
soluta: Lorenzo Fernândez e Francisco Mi- o ano do nosso primeiro encontro; basta-me
gnone. Distanciados, um pouco além, muitos saber que nos tornamos íntimos e, cada vez
outros se movimentavam. Não tive dúvida, que a vida nos proporcionava novo encon-
porém, em ceder à primeira impressão; tro, mais essa intimidade se concretizava.
eram êstes, realmente, os únicos capazes de A reciprocidade, (penso que ela existe
integrar o grupo dos "big three" da música em nosso caso), dos fluídos de simpatia que
brasileira, nos aproxima até hoje, fazia com que tro-

-40 -
Uma atitude €:xpresf.:Ya da regência de Lorenzo Fernã.ndez

cássemos a miúde impressões e conceitos em procurando fixar bem o seu pensamento,


tôrno de problemas de Arte. calmamente, educadamente ...
Era sempre com prazer indisfarçável Não pratica, como se diz hoje em dia,
que encontrava a figura do maestro, alta, a palestra demagógica. Convence por isso
forte e ereta, com os óculos acavalados no mesmo. Convence e deslumbra os parceiros.
nariz, protegendo dois olhos oblongos, quase
cerrados, e um sorriso sempre amável, sem-
pre franco, sempre acolhedor. Tudo isso eu estava considerando, en-
Lorenzo Fernândez, em seu trato pes- fiado gostosamente em uma ampla poltrona
soal, é o que se pode chamar acertadamente de "draperie" clara, numa noite quente de
um gentleman. Educado e culto, foge por setembro, quando fui supreendê.-lo em seu
isso mesmo à generalidade. E' um deleite próprio lar.
ouvi-lo discorrer sôbre seus pontos de vista, Lorenzo Fernâlldez vive num magnifico
sustentando-os com a discreção macia de apartamento, no Leme, a dois passos do mar.
seus argumentos, medidos e bem dosados, "Living" confortável, mobiliado com sobrie-
como que traindo a preocupação de não dade inglês a (olhem o gen tleman !) na pe-
constranger ou magoar o interlocutor. De- numbra da iluminação indireta, revela, no
fende com denôdo e, se fôr necessário, com seu arranjo discreto, a mentalidade exata do
arrôjo incrível, sua doutrina artística, o por- seu morador.
quê de sua Arte, o rumo de suas tendências; Pelas paredes alguns quadros - poucos,
mas o faz com elevação de idéias, sem gran- é verdade '- levam os convidados, em ima-
des exterioridades, sem gestos espetaculares, ginação, para algum recantD colonial de ci-

- 41
dades mineiras, para uma praia do nordeste Eu estava ali, em função de meu traba-
com suas choças e seus coqueirais, para os lho. Fôra trocar idéias com o maestro em
céus claros de Petrópolis ou para as praias tôrno da realização que me atulhava a caixa
marulhentas do Rio, cuja alvura inimitável craniana.
está ali fora, a poucos metros da sala. Além Tal como sucedeu com Villa Lobos, me-
dêsses aspectos da terra brasílica, há ainda reci de Lorenzo Fernândez a mesma acolhi-
uns dois ou três retratos do' maestro - tra- da entusiástica, o mesmo apoio e a mesma
balhos de. pintores conhecidos -- um estudo compreensão de meus desígníos. Exultou
de nu e u'a máscara de Beetlloven; em gra- com as idéias que estavam a cimentar o fu-
vuras, alguns mestres da música universal. turo livro, vibrou com o meu entusiasmo e,
Sôbre os armários, pej ados de livros, es- sem mais rebuços, em atitude de apoio fran-
tatuetas diversas. Numa salinha contigua co, pôs-se à minha disposição. Que eu vol-
está o piano - alma indiscutível daquêle tasse quantas vêzes quisesse, que o impor-
ambiente, razão-de-ser da vida do seu dono, tunasse com questionários e conv'ersas lon-
síntese de tôdas as suas realizações, - além gas, que dispusesse dêle, enfim, para conse-
de ampla mesa de trabalho. guir tudo o que desej asse.
Aí é que aparecem, em uma parede, do Confesso que me senti comovidamente
fundo, as fotografias dos músicos (musicó- grato com tais demonstrações de solidarie-
logos e musicistas), todos com dedicatórias dade: comovi-me sem que tal coisa, no en-
amáveis, como que passando atestado públi- tanto, me provocasse pasmo de espécie al-
co da estima que Lorenzo Fernândez irradia guma. Não estivesse eu tratando com um
e distribui nababescamente. artista ...

Çjartinoo oa música uni7Jersa( c~eJa o


artista à música nacionafista

o seAR LORE~ZO FERN,~NDEZ não é oriundo de


estirpe nobre. Sua árvore genealógica tem
menino vai para a medicina. Teremos um
bom médico na família ...
raízes plebéias, afundadas na camada da E o Oscarzinho crescia. Não sentia atra-
gente do campo, em terras da velha Espanha. ção alguma pela carreira que o velho esco-
Seu avô era camponês e, nos campos do país lhera. Em compensação o piano, que ocupa-
do Cid, nasceram ainda seus pais. va uma parede inteira da pequena sala de
Compreende-se por aí, mercê de leis atá- visitas, atraía-o de maneira irresistível. Assim
vicas, a exuberância de ritmos e colorido da que lhe abriam o tampo o pequeno sentia a
futura obra do artista, alicerçada nos pri- fascinação daquêle teçlado branco e negro,
mados da arte ibérica. como dentes muito alvos duma bôca enor-
Vindo para o Brasil em busca de novas me ... E era naquelas teclas que êle passeava
perspectivas de vida, o casal Fernândez aqui os dedos incertos, procurando sonoridades que
se radicou. O menino Oscar viu a luz do dia lhe deleitassem a sensibilidade.
na rua Silveira Martins, no Catet~, aos 4 de Assim foi se criando, aos poucos, uma
novembro de 1897. afinidade indestrutível entre o estudante e o
Sua infância decorreu através das eta- instrumento. Inúteis se tornaram as arengas
pas naturais da educação primária e secun- paternas, a falta de estimulo e as recomen-
dária. Os pais, em seus colóquios domésticos, dações de que só mesmo uma carreira libe-
davam expansão aos seus anhelos: - Êste ral, com um diploma reconhecido, poderia

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Lorenzo Fernll,ndez regendo um concêrto popular, às 10 horas da manhã, em Santiago do Chile

constituir a verdadeira estabilidade na vida selhou: - Menino, dedique-se à música. A


de Ulll homem. música é o seu caminho ...
O pequeno, aos doze anos de idade, tran- O rapaz sentiu como que um deslumbra-
cava-se na sala e brincava horas seguidas mento. O conselho de Henrique Oswald va-
com o teclado. Não tinha estudo de espécie leu-lhe como uma advertência do destino. E
alguma; improvisava, arrumando os tons, Lorenzo Fernândez seguiu-a à risca.
conseguindo melodias rústicas. Era a voca-
ção: indisfarçável, insopitável, inelutáveL ..
Chegou a ponto dos próprios pais rend,~­ Feito o respectivo concurso de admissão,
rem-se à Imposição dos fatos. ingressou no velho Instituto Nacional de Mú-
E' verdade que êles não contrariaram o sica (hoj e Escola Nacional de Música). Ali
filho. Deploraram-no apenas e desistiram de realizou os cursos de piano e composição,
vê-lo formado pela Faculdade de Medicina, com os professores J. Otaviano, Francisco
com um anelão verde no dedo, senhor de Braga, Henrique Oswald e Frederico Nasci-
uma carreira lucrativa e estabilizadora. mento.
Mas Lorenzo era artista. Em 1920 apresentou suas primeiras
r Em 1915, já concluído o curso de huma- obras em concêrtos. Dois anos depois con-
nidades, apresentou-se ao velho mestre Hen- quistou os três primeiros prêmios num con-
rique Oswald e executou algumas de suas" curso nacional de composição.
composições. Calmamente, o compositor de Prosseguindo, estimulado pelos sucessos
"II neige" pousou-lhe a mão no ombro e acon- iniciais obteve o primeiro prêmio num con-

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curso internacional de música de câmera.
Apresentou, nessa ocasião, o seu famoso
"Trio Brasileiro", editado, mais tarde, pela
Casa Ricordi, considerado por muitos como
"obra básica em tôda a nossa música de câ-
mera" e "cujo título, - na opinião de No-
gueira França - já define um compromisso
entre o significado autoctone, da música e a
sua forma clássica".
Em 17 de julho de 1923 foi nomeado pro-
fessor substituto, durante o impedimento do
catedratico Frederico do Nascimento, um de
seus mestres.
Justamente um ano depois, dado o fale-
cimento dêsse velho professor, Lorenzo Fer-
nândez foi finalmente indicado para ocupar
a cátedra, como interino, sendo nomeado efe-
tivo em 26 de maio de 1925.

Até a época da composição do "Trio bra-


sileiro", o artista não havia ainda desbrava-
do o campo que se lhe oferecia para as rea-
lizações da música de sua terra. Até ali, -
convém notar, - suas composições eram de
pura inspiração alienígena; êle mesmo o con- Bidú Sayão, ladeada por Villa Lobos e Lorenzo Fernãndez
fessa, metendo corajosamente o bisturi no na resid2ncia do autor de "Malazarte"

periodo que perlustrara durante a sua for-


mação tecnicamente musical. cérebro começou, um dia, a perceber que
Embora curta, a influência exercida pe- tudo que fazia não tinha a ressonância da
los autores franceses - especialmente De- vida que o cercava, da vida que lhe andava
bussy e Ravel - foi notória. Sob êste signo, em tôrno. Suas peças contrastavam estra-
compusera: "Fantasia em fá menor", "No- ahamente com o ambiente em que se agita-
turno", "Miragem" e "Duas Miniaturas", va, e cujos átomos êle não respirava devida-
além de algumas outras, sôbre versos de men te. Tudo estava impregnado de espírito
Bilac. A primeira, escrita antes de 1918, era europeu, sem características pessoais, sem
de pura inspíração panteísta, reveladora da coloridos nacionais,
alma bucólica do artista, grande apaixonado Seu temperamento reclamava adaptação
das horas crepusculares. ao meio, bradava por uma integração abso-
Teve seus dias ocupados ainda no arran- luta nos complexos de seu povo e de suas
jo de um longo poema musical, sôbre a ca- tradições. E o artista deixou-se arrastar, sem
choeira de Paulo Afonso. tle próprio afir- resistências inúteis, pelos reclamos de seu
ma, com sincera convicção: - Aquilo devia destino artístico, cedendo ao imperativo de
ter sido uma conseqüência do "Carnaval" de suas verdadeiras diretrizes.
Schumann. " Quís fazer coisa idêntica ... Inspirou-se, inicialmente, Eum tema que
Devo acentuar, porém, que, ainda aí, o bra- lhe pareceu 'ser exclusivamente seu e compôs.
sileiro era exótico para mim. o "Trio Brasileiro". Nêle aparece mll tema
O compositor sentia-se de fato alheado popular cearense, apr.oveitado para o "An-
de sua terra e de sua gente. Esvurmando o dante" .

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Feita essa primeira página, Lorenzo Fer- estradas no desfile glorioso da festa dos reis
nândez exultou intimamente; sentia nela o magos; na "Toada", já se ouve o canto da
Brasil em tôda plenitude de seus motivos saudade, enternecedoramente tristonho, na
musicais, no estendal de suas possibilidades; hora em que o oriente empalidece em mei-
suspirou longamente na delícia de se ter ei1- gos tons crepusculares, "entre o pudor da
contrado a si mesmo ... tarde e as tentações da treva", como no verso
imortal de Bilac; finalmente, o "Batuque"
Prosseguiu, desde então, a trabalhar com
encerra a suite sinfônica: êsse tema, desen-
sua personalidade, afastando denodadamen-
volvido pela maestria de Lorenzo Fernândez
te qualquer influência exterior; começou, em
já se tornou famoso, famosíssimo mesmo.
suma, a fazer arte "de dentro para fpra ... "
Dentro de sua arquitetura musical sente-se o
Já em 1925 realizava três grandes con- ritmo marcante das dansas afro-brasileiras,
cêrtos de música sinfônica e de câmera, da- do frenesi bárbaro dos negros estridulando
tando desta época a "Suite Sinfônica sôbre no horror das senzalas e terreiros. f:sse Inag-
três temas populares", e a Suite "Reisado do nífíco trecho musical já foi apresentado em
Pastoreio" executada, mais tarde, na Europa todos os grandes céntros musicais: na Argen-
com êxito absoluto; o "Reisado"; a "Toada" tina, no México, na Colômbia, no Chile, na
e o "Batuque". América do Norte e na Itália. Nos Estados
No primeiro, o artista procurou traduzir Unidos foi regido por Toscanini.
a alegria natural dos vaqueiros no pastoreio, E' música brasileira, como forma e es-
quaQdo êles cantam e dansam, enchendo as sência.

ascençao e suas etapas

EM 1926, Lorenzo Fernândez foi a S. Paulo, Vale a pena percorrer os assinalados


onde realizou concêrtos de música de câmera. triunfos do artista através das etapas de sua
No ano seguinte escreveu as "Visões Infantis". vida, decorridos na década 1930-40.
Daí até 1929 organizou vários outros re- Foi êsse realmente um decênio de pro-
citais, tendo apresentado, dentre as obras de fícuas realizações, dado o natural amadure-
câmera e sinfônica, o "Quinteto para instru- cimento de seu espírito artístico, traduzido
mentos de sôpro" e o poema ameríndio "Im- na excelência e apuro de tudo o que es-
bapara". Como a "Suite Sinfônica", essa é creveu.
outra peÇ'a que mereceu consagração popu- Logo de início, foi convidado pelo dire-
lar, sendo gravada em discos na coleção co- tor da Escola Nacional de Música para orga-
memorativa executada especialmente para a nizar e dirigir o corpo coral daquela casa de
Feira de Nova York .. educação artística. Ainda em 1930, teve a
"Imbapara" é um belo poema escrito satisfação de ouvir sua suite brasileira "Rei-
sôbre tenras de caráter ameríndio, uns ori- sado do Pastoreio" executada pela Orquestra
ginais outros de autenticidade rigidamente Sinfônica, sob a regência de Francisco Braga.
nativa, baseado num pequeno entrecho dra- O êxito dessa página não se restríngiu ao
mático. Sua apresentação mereceu os mais Brasil; extravasou fronteiras além e foi con-
justos encÔmios. sagrar-se na" Europa e nos Estados Unidos.
Em 1929, Lorenzo Fernândez "foi convi- Nos dois anos seguintes, dirigiu vários
dado para ir a Barcelona, representar seu concêrtos sinfônicos no Rio de Janeiro e São
país na grande exposição internacional, du- Paulo, com as orquestras municipais, com a
rante os festejos ibero-americanos. da Escola Nacional de Música, da Sociedade

- 45-
Cena de "Imbap::trc- ", bailaCo·i.1d!gen:l de Lorenzo Ferni1ndtz aprefentado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1936

Sinfônica Paulista e do Departamento de 1937 - Designado membro da Comissão


Cultura, da mesma cidade. Nacional do Teatro.
Em 1933, apresentou, num grande con- 193-3 - Comissionado pelo govêrno bra-
cêrto sinfônico, alguns trechos do drama lí- sileiro para representar a música nacional
rico de sua autoria "Malazarte",· em cuja no grande festival Interamericano de Música,
contextura êle trabalhara de parceria com realizado por ocasião dos festejos comemo-
Graça Aranha, autor do libreto. rativos do IV Centenário da fundação da ci-
Em 34, por ocasião dos festejos come- dade de Bogotá (Colômbia). Nesse certame
morativos da fundação de São Paulo, foi obteve o único prêmio para obras de orques-
convidado pe~o govêrno daquêle Estado para tra concedido pela "News Music Association",
dirigir concêrtos sinfônicos. da Califórnia, sendo premiada sua obra "Ba-
tuque", do primeiro ato de "Malazarte".
De 35 a 40 decorreu um lustro portador
Prosseguindo viagem, realizou 1 ong a
de inúmeras e bem significativas honrarias
tournée artística através da América latina,.
ao artista.
visitando, a convite, vários países amigos.
Citemo-las sem comentários, de acôrdo Convém notar que Lorenzo Fernândez
com dados conhecidos: só encontrou amparo monetário de seu país
1935 - Foi nomeado professor do Ins- para a delegação que ajudou a integrar, na
tituto de Artes da Universidade do Distrito Colômbia. O resto da excursão gloriosa que
Federal e eleito membro do Conselho Téc- realizou pelos demais países irmãos foi de-
nico da Es·cola Nacional de Música. vida unicamente a seu esfôrço próprio e à
1936 - Fundou o Conservatório Brasi- imposição de seu talento.
leiro de Música, para o qual foi eleito dire- Ainda na Colômbia, foi com prazer que
tor, cargo que ocupa até hoje. se viu alvo das honrarias do govêrno daquêle

46 -
II
i

país, que lhe pediu escrevesse o "Hino à sua pujante característica, marcantemente
Raça". Desincumbindo-se de tão nobre ta-
I refa, compôs uma página admirável de pura
nacional.
Basta um rápido olhar pelo noticiário
música americanista. dos jornais latino-americanos daquela época
Convidado, em seguida, pelo govêrno de para a verificação de tais afirmativas; de um
Cuba para.r~·aHiar, em Havana, concêrtos de modo geral todos êles chegam às mesmas
música brasileira, para lá se dirigiu. Não só conclusões: V - que o Brasil, em matéria
regeu grandes orquestras sinfônicas, na ca- de composição musical, caminha entre os pri-
{ pital cubana, como realizou ainda algumas meiros na América; 2.° - que a nossa mú-
conferências sôbre a nossa música, o que lhe sica foi uma revelação esplêndida e inespe-
valeu ser condecorado pelo govêrno e eleito
rada, graças aos esforços do maestro brasi-
\ Acadêmico Correspondente da Academia Na-
cional de Artes e Letras, de Cuba.
leiro, genuíno embaixador da Arte e êle pró-
prio artista de mérito; 3.° - que os compo-
Após êsses êxitos, recebeu novo convite sitores de cada país deveriam agradecer os
oficial, dessa vez do govêrno do Chile. Re- salutares ensinamentos proporcionados pelas
petiu em Santiago as atividades exercidas na obras magníficas com que os músicos brasi-
capital cubana, tendo sido, nessa ocasião, leiros têm procurado exaltar o folclore de
eleito Membro Honorário da Faculdade Na- sua terra.
cional de Belas Artes, da Universidade de Como embaixador, Lorenzo Fcrnândez
Santiago do Chile. não se esqueceu, aliás, de seu papel ue ar-
A atuação de Lorenzo Fernândez, pe- tista, integredo nas massas populares. Em
rante os auditórios dos países que visitou, Santiago do Chile, por exemplo, realizou, no
foi das mais brilhantes e eficientes. Graças Teatro Canpolican, nmgrande concêrto po-
aos concêrtos e confe"rências que realizou, os pular" auspiciado por la caja de seguro obli-
povos irmãos tiveram ocasião de verificar a gatorio" e dedicado" a los asegurados y obre-
magnificência da música brasileira em tôda ros deI pais".

Cenário do 1.0 ato da ópera "Malazarte". Realização do cenógrafo Jaime Silva

- 47-
De regresso à pátria, passando pelo Pa- Berlim, Varsóvia, Roma e vVashíngton, me-
namá, Lorenzo Fernândez, ainda a convite recendo verdadeira consagração. Nesta últi-
da Universidade, realizou um concêrto de ma cidade foi dirigido por Toscanini, que o
música de câmara e uma palestra sôbre arte executou lambém no Rio, por ocasião de sua
musical brasileira. memorável tournée, com a orquestra da Na-
Quando para aqui voltou, foi homena- tional Broadcasting Corporation.
geado pelos alunos da Escola Nacional de Dos "Três Estudos em forma de Sonati-
Música, que haviam acompanhado atenciosa- na" disse Andrade Muricy, um dos mais aba-
mente a senda tr·iunfal do mestre. Fundaram, lisados críticos brasileiros:
liessa ocasião, o "Centro Acadêmico Lorenzo "O que há mais notável a acentuar acêr-
Fernândez", entidade que se caracterizou por ca dêstes "Estudos" é seu caráter de brasi-
uma intensa atividade cultural. Sob os aus-
lidade.
picios do govêrno realizou então um con-
cêrto de música chilena e um outro de mú- Sem dúvida, a tecnica e, neles, univer-
sica de seu país, irradiado para os Estados salista, sem nenhum exotismo rebuscado,
Unidos. sem regionalismo afetado. Os motivos, ori-
ginais de Lorenzo Fernândez, empregados no
Em 1939, setembro, foi estreado, com
primeiro e terceiro estudos da família, são
grande êxito, na temporada oficial do Tea-
dos mais caracteristicamente nacionais, e en-
tro Mt+nicipal, um ballet, em dois quadros,
tretanto, a fatura é de tal sobriedade, e a
de sua autoria, intitulado "Amaya". Inspi-
estilização tão radical, que não será de es-
rado em assunto lendário dos povos incaicos,
tranhar se alguém pensar em Strawinsky,
essa obra do compositor patrício e uma pu-
ouvindo-os" .
jante revelaç'ão de temas ameríndios e de
uma plasticidade de ritmos encantadora e Mário d~ Andrade, comentando a "Toa-
deliciosa. da para você", escreveu, por sua vez:
Nesse mesmo ano, no dia 12 de outubro, "Muitas feitas a obra-prima dum artista
realizou, sob o patrocínio do Instituto Brasil- atinge o milagre de resolver o caso do ovo
Estados Unidos, um notável concêrto de mú- de Colombo: é simples, absolutamente fácil
sica norte-americana, no Teatro Municipal e se iguala às manifestações do populário. A
do Rio de Janeiro. No final, foi executado, gente percebe isso lendo, por exemplo, cer-
em comemoração à data da descoberta da tos lieder de Goethe, examinando certas es-
America, simultâneamente pela orquestra e culturas egípcias, escutando certos recitativos
coros do nosso príncipal teatro e pela or- de Carissimi. Foi isso que Lorenzo Fernân-
questra e coros do Teatro Colon, de Bogotá, dez conseguiu admiràvelmente na "Toada
seu "Hino à Raça", irradiado para tôda a pra você". O acompanhamento malincônico,
America. prop~sitalmente monótono, e refinado, ajuda
Em 1940, Lorenzo Fernândez teve conhe- o embalanço da toada e a moleza sentimen-
cimento de que o seu "Batuque" havia sido tal da idéia: é tudo uma coisa só e sobretudo
executado diversasvêzes em Boston, Méxieo. ficou uma coisa pura".

[Jl sincerioaoe na arte


E M: setembro de 1941, descerrou-se o pano O drama lírico era o "Malazarte", de
de bôca do Teatro Municipal do Rio de J a- Lorenzo Fernândez, sôbre libreto de Graça
neiro para a representação de uma nova Aranha, calcado na famosa peça dêsse escri-
ópera brasileira, em plena temporada lírlca tor patrício, responsável pelo movimento mo-
oficial. dernista em nossas letras.

-48-
Cena do "Batuque ", final do L' ato da ópera "Malazarte ", de Lorenzo Fernll.ndez

"Malazarte" poderá merecer, realmente, pulares, tudo, em SUIna, eln "Malazarte",


o() qualificativo de "brasileira", entre aspas. concorre para a definição do verdadeiro tea-
E' que ela não é brasileira apenas por ter tro lírico brasileiro. E essa diversidade apa-
:sido escrita por um homem nascido no dorso rente de suas minúcias, constituída pela or-
-dêsse gigante "deitado eternamente em ber- questração rica e e colorida, a variedade rit-
·ço esplêndido. " " Não. A razão do vocábulo mica e melódica, resulta - graças à habili-
.aspeado reside no espírito de sua música, dade do autor, - em uma obra de notável
baseado em temas e processos artísticos in- unidade artística.
trinsecamente nacionais. tle mesmo, explicando a um jornalista
Tanto o ambiente revelado pela cenari- da época a orientação seguida na elaboração
.zação: um solar colonial, um salão solaren- de "Malazarte", assim se expressou: - "Pre-
.go, a praia mansa da Bôa Viagem, a velha tendi fazer uma coisa bem diferente do que
.praça com o poço ao centro e a visão da se fêz até hoje, por aqui. Coisa brasileira,
igrejinha ao fundo, como a apresentação das brasileirissima. Mas de um brasileirismo bem
figuras que se movimentam no transcurso compreendido, .é claro. Não chamo de bra-
·dos quadros; tanto o desenvolvimento do sileirismo às tentativas vulgares de explorar
próprio drama como os motivos encantado- a corda desafinada dos nacionalistas baratos.
res do nosso folclore, estrugindo tumultuosa- Para mim, brasileirismo é o sentido íntimo
mente na agitação tremenda das dansas po- que tôda obra nossa deve ter, essa qualidade

- 49 ~
de nascer da nossa terra, dentro da nossa A preocupação musical não o absorve a
psiqué, para a nossa alma especial de brasi- tal ponto que êle não possa dedicar boa parte
leiro. E' aquêle profundo sentimento da ter- de seu tempo à leitura e, até mesmo, à pra-
ra, que Graça possuía em tão a~to grau e que tica do beletrismo. Pouca gente sabe que
foi a pedra de toque da nossa amizade". Lorenzo Fernândez é poeta. Lírico de boa
O público compreendeu e aplaudiu a in- marca, extravaza continuamente sua veia
tenção de Lorenzo Fernândez. Sua peça ope- poética na confecção de pequeninos, mas en-
rística ficou, realmente, como um dos marcos cantadores poemas românticos.
mais expressivos do gênero, em nosso pano- E' diante dos tons crepusculares que se
rama musical. expande sua inspiração panteísta. A hora
doce do angelus, quando a natureza se em-
buça em véus de sombra, é a hora predíleta
do compositor. Fica momentos esquecidos,
Para completar ligeiras notas biográfi- deixando-se penetrar da poesia terna e pe-
cas, em tôrno da figura do músico brasileiro, numbrosa do anoitecer.
resta-nos fazer ainda algumas l'eferências à E compõe versos como êstes:
sua atuação neste último lustro.
Em 1941, foi êle, mais uma vez" convi- SOMBRA
dado pelo govêrno chileno para representar
a música brasileira nos festejos comemorati- O Sol caminha para o poente
vos do IV Centenário da fundação de Santia- E vai lançando a minha sombra
go e para membro do júri internacional do Para tras
grande concurso de composição, ao lado de
Aaron Copland, dos Estados Unidos, e Ho- Cada vez mais longe ...
norio Sicardi, da Argentina.
Na capital do Chile realizou um grande Cada vez mais longe ...
concêrto sinfônico e, de regresso ao Brasil,
um outro sinfônico e um de câmara, na ca- Cada vez mais difusa e distante
pital da Argentina. Nessa ocasião, em Bue- Como uma grande saudade
nos Aires, foi eleito membro honorário da Que se vai apagando
"Associacion Argentina de Musica da Câ- Pouco a pouco ...
mara" .
No ano seguinte, dirigiu, no Rio, dois PORQUE?
concêrtos com a Orquestra Sinfônica Brasi-
leira, tendo como solista Magdalena Taglia- Às vêzes pergunto a mim mesmo
ferro. O porque desta saudade imensa
Lorenzo Fernândez prossegue até hoje Desta saudade do nada,
em seu labor ininterrupto, dividindo suas Desta melancolia
atividades entre a Escola Nacional de Músi- Da ausência
ca, o Conservatórío Brasileiro de Música e o Do Bem que nunca sonhei
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, Do Amor que nunca possuí
no qual ocupa também uma cátedra. Da Amargura que nunca provei
Da Alegria que nunca senti.

Lorenzo Fernàndez, intelectualmente, fo-


ge ao nível comum dos artistas brasileiros: Sua alma tem o travo melancólico dos,
pode ser inscrito no grupo reduzido dos ar- nostálgicos; porque há uma espécie de nos-
tistas cultos, senhores de cultura autêntica- talgia nos poetas, que nada tem a ver com a
mente generalizada. nostalgia comum e quase prosaica dos via-

- 50-
Aspecto do concêrto inaugural do Audit6rio do Conservat6rio Brasileiro de Música, em 1942

jantes. Já Baudelaire, o mestre nefelibata da mento de introspectivo obriga-o a ser sincero


poesia francêsa, falava da "saudade absur- com suas emoções.
da" dos rapsodos, saudade de países que êles Êle próprio confessa que, quando sente
nunca viram nem nunca visitaram ... Esta a necessidade de trabalhar, prefere sempre es-
nostalgia a que me refiro, e que enubla em tar só, à noite, sem a presença de qualquer
tons violáceos a sensibilidade dos artistas. pessoa, sem a perturbação de qualquer ruído
A música de Lorenzo Fernândez traduz estranho. Confessa ainda que, nos momentos
exemplificarmen te o caso em aprêço. Seus de lazer espiritual, costuma procurar inspi-
processos de composição diferem dos de Villa ração na leitura de poemas, elaborando pri-
Lobos; enquanto êste é acachoante e tumul- meiro mentalmente e, em seguida, tecnica-
tuoso, em suas características mais frisantes, mente, suas mais elevadas produções.
na concep~ãode formas musicais, que vão - Para citar um exemplo - diz êle -
dos elementos mais bárbaros ao elevado sen- aí temos o "Heisado do Pastoreio". Quando
tido cósmico da Arte, o outro apresenta uma fui transportá-lo para o papel, já o tinha
obra uniformemente equilibrada, sem a in- inteiramente pronto na memória.
tensidade dos arroubos violentos nem o aco- Honesto nos seus processos artísticos,
modamento do pieguismo sentimental. chega ao ponto de compor "d'apres nature".
A música de Lorenzo Fernândez decorre Aí vai o que êle disse, certa vez, a um entre-
suavemente e penetra a sensibilidade dos ou- vistador:
vintes, sem imprevistos, sem surpresas, ape- - O ambiente exterior exerce grande in-
nas com a beleza harmoniosa de seu espírito fluência sôbre mim. E' de tal ordem sua
melancolicamente brasileiro. Seu tempera- influência que, quando estava compondo o

- 51-
drama lírico "Malazarte", por exemplo, sen- Nepomuceno orientou e Villa Lobos realizou,
tia necessidade de ir, continuamente, à praia com a superioridade de seu talento.
,da Boa Viagem, em Niterói. E ficava ali, Procurando o sentido da arte do compo-
,contemplando longamente, demoradamente, sitor, escreveu, certa' vez, Luiz Heitor:
,o mar ... E ficava sentindo o que me vinha "A grande fórça de Lorenzo Fernândez
,da natureza. está na orquestra, não só pelo senso pi to-
Essa necessidade de haurir a "ambien- resco que êle possui, das combinações or-
tação" natural e propiciatória à elaboração questrais, e maestria com que domina o jôgo
da obra de arte é sentida por todos os artis- dos timbres, como, também, pela própria ~s­
tas sinceros e traduz fidelidade às emoções sência da sua música, muito . arquitetural,
-pessoais. Já Flaubert confessava-se prêsa feita de motivos curtos, combinados, fracio-
dessa mesma imposição, sentindo-se obriga- nados e modificados pela elaboração temáti-
,do a visitar a região onde outrora se elevava ca e, portanto, na gama das sonoridades 01"-
,Cartago, a fim de poder descrever fielmente questrais, postos em evidência e enriquecidos
o drama de Salambô. Eça de Queiroz, dentro pela variedade dos timbres. A música de Lo-
.do "fog" enervante de Londres, lamentava- renzo Fernândez nasce na orquestra, como a
:se, em cartas aos amigos, de não poder pros- de Berlioz; mesmo cm suas peças de piano,
.seguir na novela do Padre Amaro, pois lhe principalmente as do período inicial de sua
faltava na capital inglêsa, o ambiente enso- obra, sente-se, constantemente, a solicitação
larado das aldeias portuguêsas, cenário de dos timbres orquestrais. E é, de fato, na or-
sua obra. E, enquanto não foi sorver aquêl~s questra que essa música atinge a plenitude
ares regionais, não pôde prosseguir em seu de sua significação".
íl:rabalho. Recentemente Lorenzo Fernândez con-
Lorenzo Fernândez sente também, como cluiu a composição de uma grande peça sin-
Flaubert e Eç'a, a necessidade do ambiente e fónica, "O Caçador de Esmeraldas", em qua-
procura, no clima brasileiro, os verdadeiros tro movimentos, cuj a inspiração se radica,
rumos da arte de seu país, os mesmos rumos sem dúvida, num espírito de pura brasilida-
nacionalistas, cuj a idéia, em sua opinião, de que tem orientado a sua obra.

- 52-
III

F~f\NCISCO
MIGNONE
Vm orama oentro oe um 8aifáoo

AMPLA sala da nossa as personagens que o integraram, andaram


principal casa de es- me povoando a imaginação hipertrofiada.
petáculos vibrava ain- O trabalho de Mignone é, realmente, de
da quente dos aplau- notável significação artística e um dos mais
sos frenéticos dos es- marcantes no campo da música brasileira.
pectadores quando o Outros valores colaboraram na peça: o
pesado velário desceu sôbre a última cena poeta Guilherme de Almeida, que escreveu o
do maravilhoso bailado "Yara", de Francisco argumento e o pintor Candido Portinari,
Mignone ... " autor dos cenários exibidos no dia da apre-
Dá gôsto escrever, de vez em quando, sentação. A despeito do mérito inestimável
coisas assim, já ditas e reditas, verdadeiros dêsses dois artistas, a glória de "Yara" deve
lugares comuns, porque elas traduzem real- ser creditada, especialmente, a Francisco
mente um estado d"alma, singelamente sin- Mignone, autor da partitura. O maestro su-
cero. perou-se a si mesmo nessa composição, cujo
De fato, o entusiasmo dos espectadores tema se desenvolve - sob motivos folclóri-
foi de tal ordem, que não dava mesmo tempo cos ou não - em tôrno de aspectos pura-
a ninguém para tecer frases buriladas ou mente brasileiros.
previamente estudadas. O núcleo central que o inspirou foi o
Certas obras de arte têm, por vêzes, o drama periódico das sêcas do Nordeste. Êste
dom de causar verdadeiras "inflaç'ões", em "leit-motiv", no entanto, não restringe o es-
nossa sensibilidade. A reação que provocam pírito do "ballet" à ordem das obras de cará-
é tal que chegam até a despertar, à falta de ter local ou regional. Nada disso.
outros qualificativos apropriados, o desejo Graças à música de elevada expressão
de se dizer desaforos aos seus autores ... artística que Mignone compôs, "Yara" é uma
O bailado "Yara", levado à cena no Tea- verdadeira mensagem dirigida pelo Brasil à
tro Municipal do Rio de Janeiro, em agôsto humanidade. Seu sentido universal reclama-
de 1916, é obra que se enquadra no número rá consagração justa em todo o mundo.
limitado daquelas que produzem, realmente, As cenas folclóricas, tais como o tema
grande exaltação nos sentidos. fundamental do "Bumba meu Boi" (a che-
Minha impressão, pelo menos, foi tão °
gada do Boi, o pacto com Vaqueiro, a ma-
profunda que, por muito tempo as cenas e tança, o esquartejamento, a ressurreição), a

- 55-
vinda da Burrinha e dos noivos pretinhos jeiras, e foi em sua sala de música, tomada
culminam, no final do primeiro ato, com o em grande parte pelo vulto negro do piano-
alvorôço colorido de um frêvo desenfreado·· de cauda, que iniciamos nossàs palestras em
e louco, crescendo de forma alucinante, co- tôrno dos problemas de interêsses reciprocos.
municando a todos um entusiasmo indescri- A figura alta e corpulenta do maestro,
tível. movendo-se com lentidão e serenidade, pos-
No segundo ato, o drama assume propor- sui, inegàvelmente, essa aura de simpatia
ções que atingem a um insuperável clima pa- que emana das inteligências artistlcas e en-
tético. E' a tragédia das sêcas. E' Mignone volve os demais, na atração de um halo de
descrevendo em música o que Euclides da superioridade.
Cunha plasmara nos "Sertões".
Expús-Ihe os meus planos, pedindo-lhe
Surge aos olhos dos espectadores a ari-
que se exteriorizasse a respeito das várias
dez calcinada dos desertos de pedra e areia.
épocas musicais em nosso país e dos homens
O sol que tosta a terra, queimando-a impla-
càvelmente, faz suas aparições contínuas. Se- que as integraram com a expressividade de
suas obras.
cam-se os últimos arroios. Morre a boiada
esquálida. E as teorias de retirantes, rôtos e Após ouvir minha dissertação inicíal.
trôpegos, cruzam o solo amaldiçoado. E' uma Mi g n o n e desfechou-me, inesperadamente,
procissão impressionante, bandos precatórios certos pontos de vista de um personalismo
com os pés inchados, pregados na combustão irrepreensível. Disse-me, de início, que, le-
do terreno, e os olhos dilatados, pregados na vando em conta sua posição de músico "bra-
combustão do céu. sileiro", dentro do campo da atualidade bra-
Pedem clemência, pedem misericórdia, sileira, pouco interêsse lhe despertam os seus
confiantes na única salvação possível: a pie- colegas musicistas de outros tempos. E acres-
dade de Deus ... centou, quase textualmente:
A música de Mignone é comovedora e - No terreno da alta expressão musical
forte, de acentos tropicais. Seu desenho te- de nossos dias, interessam-me enormemente-
mático desenvolve-se com plasticidade incri- duas figuras exponenciais: Villa Lobos e Ca-
vel, acompanhando as emoções do drama até margo Guarnieri. Os outros, nossos anteces-
ao final majestoso da morte do místico, mar- sores, respeito-os apenas como nomes que'
tirizado pela turba cansada de esperar pelo surgem na ordem cronológica, em que hones-
milagre prometido. tos historiadores os colocaram ...
"Yara" é obra sólida, marco dos mais Sob a minha leve estranheza, Mignone-
característicos da música brasileira, capaz de
apressou-se a esclarecer:
revelar ao mundo inteiro a pujança dos nos-
sos compositores atuais. - Não veja, nesta afirmação, nenhuma
tentativa de subestimar o talento e a capaci-
dade dos demais artistas. Nada disso. Se me-
refiro apenas àqueles dois é porque Villa Lo-
Quando deixei o teatro trazendo, den- bos foi, pela idade e pela época em que exer-
tro de mim mesmo, a ressonância daquela ceu seu primado artístico, o fixador do ver-
notável página dramática, antegozava a con- dadeiro destino nacionalizante da nossa mú-
tribuição que Francisco Mignone ida, por sica, enquanto o outro, Camargo Guarnieri,_
certo, trazer para as páginas de minha "His- surgiu como o mais feliz de todos os con-
tória da Música Brasileira". temporâneos. Sua felicidade reside justa--
Não me enganei sôbre o valor dessa (',ou- mente em ter vindo depois de Villa Lobos.
tribuição nem na boa vontade com que êle se Após o desbravamento feito por êste e a con--
dispôs a me atender. seqüente indicação do caminho a seguir, na-
Procurei-o no apartamento em que _en· da mais lhe restava senão caminhar, cami-
tão residia, próximo do bairro das Laran- nhar sempre sem a menor preocupação ex-

- 55-
perimentalista, de vez que seu destino estava
fixado. Camargo Guarnieri é fruto de um
pequeno grupo; constituído por Villa Lobos,
Luciano GaBet e Lorenzo Fernândez.
- A êsse grupo, poderemos juntar tam-
bém Francisco Mignone ...
- Se assim o quiserem, concordou o
maestro. Todo o meu esfôrço, de resto, está
dirigido na criação de uma música autênti-
camente brasileira. Tenho concorrido, como
os demais, para a'cançar êsse desideratum.
Desbravo também. Guarnieri, no entanto,
muito mais moço do que nós, quando surgiu,
já não tinha mais destino a procurar: já êle
estava aí traçado. Teve bons mestres, que o
orientaram como Baldi, Sá Pereira e Mário
de Andrade. Tão sólido foi o suLstratum ad-
quirido que, mais tarde, quando caíu nas
mãos de um professor que o poderia ter des-
viado de seu rumo - o professor Cantú --
continuou sua meta artística sem que nada
conseguisse demovê-lo. Com tais premissas
posso garantir que Camargo Guarnieri está
realizando música profundamente brasileira,
mais psicolàgicamente brasileira do que Villa
Lobos e todos os de nossa geração. Repito,
:-Ilgnone aos dolR anos de Idade
no entanto, que, sem Villa Lobos, Mário de
Andrade, Lorenzo Fernàndez e Luciano Gal- que fôsse gênio, fazer a música que está
let êle não poderia, de forma alguma, nem fazendo.

fJl poesia aos suBúrBios .. .

FRANCISCO 1VIIGNONE fala com a franqueza. embora a rememoração de etapas longínquas


rude, por vêzes, dos fortes e vitoriosos. Cons- de sua vida trouxessem-lhe a fragância de-
ciente do seu destino e da própria consistên- liciosa de momentos agradáveis, já vividos ...
cia de sua obra vive, continuamente, a ex- De tudo o que ouvi, procurarei dar a
vurmá-Ia cada vez mais. idéia mais aproximada possível, nas linhas
Pedi-lhe que me falasse de sua própria que se seguem.
pessoa, dos primeiros albores de suas incli-
nações, da traj etória, indiscutiveh:nente lu-
minosa, de seu talento. Ouvi-o durante ho- Francisco Mignone nasceu na capital de
ras seguidas, em dias consecutivos, obrigan- São Paulo, aos 3 de setembro de 1897. Seu
do-o a vencer os escrúpulos naturais que o pai, o professor Alferio Mignone, excelente
assoberbavam, por ter de falar de si mesmo, flautista, ocupa ainda hoje o lugar de solista

- 57-
na Orquestra Municipal do Estado bandei- Muito mais tarde, quandf} Chico Bororó
rante. Foi com êle que o pequeno Francisco desapareceu e surgiu em seu lugar o maestro
iniciou seus estudos musicais, ao passo que Francisco Mignone, alguns dos temas dêsses
cursava as letras primárias. Sua tendência pequenos trabalhos foram aproveitados e
musical não passou despercébida ao velho transformados em obras de grande enver-
Mignone, que procurava estimulá-la por to- gadura. Sua vida, nesse período, foi idêntica
dos os meios. à de' Villa Lobos. A mocidade de Mignone,
Com dez anos de idade, o pequeno teve em São Paulo, tem similitudes com a de seu
o· seu primeiro mestre de piano: o professor colega carioca, no Rio de Janeiro. Boêmio,
Silvio Motto; mas não largou a flauta. Con- misturado com as camadas mais populares
tinuou a exercitar-se nela, chegando mesmo dos noctívagos paulistanos, o músico passava
a executar com absoluta perfeição. as noites tocando os seus "chorinhos" na
Dos treze aos vinte e dois anos decorreu flauta, acompanhado pelos violões e cava"
a primeira fase de sua carreira artística, vi- quinhos dos companheiros.
vida no Brasil. Pobre, vendo seu pai a pele- Eram autênticas noites de serenatas, sob
jar denodadamente, Mignone, criança ainda, o luar que banhava ,em prata leitosa o casa-
foi obrigado a enfrentar a luta pelo direito rio pobre dos bairros proletários.
de existir superiormente, isto é, estudando. Muito ganhou Mignone com êsse contac-
A fim de poder custear os estudos, co- to com os músicos populares, contacto que
meçou a tocar em pequenas orquestras como lhe serviu para a criação do fundo de musi-
pianista (condutor, como se chamava na épo- calidade bem brasileiro, revelado em dias
ca). Nessa primeira fase, serviu continua- posteriores.
mente em muitos conjuntos (pequeninas or- Escrevia então música de sucesso popu-
questras), atuando em bailes e festivais par- lar, tipicamente nacional, caráter que con-
ticulares. De vez em quando tocava flauta servou em muitas de suas produções futuras.
nas grandes orquestras. Veja-se, por exemplo, a série de "Valsas de
Com quinze anos iniciou seus estudos de Esquina", nas quais a alma e a maneira po-
harmonia sob a orientação de Savino de pular transparecem, lindamente expressa.
Benedictis, continuando-os, mais tarde, com Atualmente, o grande artista trabalha,
o maestro Agostino Cantú. vez por outra, na apuração dessas pequenas,
Seu aprendizado tornou-se intenso. Em peças, escritas naquela época. Sua preocupa-
1913 conseguiu matricular-se no Conserva- ção, no entanto, é a de não desvirtuar o
tório Dramático e Musical de São Paulo, ins- caráter natural das mesmas, evitando; tanto
crevendo-se nas aulas de piano, flauta e com- quanto possível, que elas sej am deturpadas
posiç'ão. Quatro anos passou ele ali estu- por influências estranhas.
dando. Compondo e recompondo, hoje em dia,
Em 1917, deixou-o, trazendo consigo o suas "valsas de esquina", além de obedecer
diploma das três classes. Com êle saiu, tam- a um preponderante desejo de dar vida nova
bém diplomado, o musicólogo Mário de An- às músicas que lhe brotavam da sensibilida-
drade, com quem Mignone estudou Estética de juvenil, esforça-se o maestro para que não
e História da Música. desapareça uma significativa e genuína ex-
Durante o curso, o estudante exibia-se pressão da música popular brasileira.
repetidamente em público, como solista. A valsa brasileira já possui realmente
Sua veia de compositor, até então laten- suas características expontâneas, embora sua
te, começou a dar demonstrações de exube- origem não estej a ainda estabelecida, de
rância invulgar; surgiram assim, precoce- modo certo e definitivo.
mente, suas primeiras obras. Eram peças -" - Não podemos incluir nelas, - pon-
para dansa ou então canções singelas, tódas dera Mignone, - as valsas de Ernesto Na-
publicadas sob o pseudónimo de "Chico- zareth, nas quais, bem como nos famosos
Bororó" . "tangos" que deram popularidade extensa a

- 58-
êsse compositor nos quais a maneira de ca-
denciar e a linha melódica denunciam uma
influência claramente "chopiniana".
As valsas de esquina de Mignone evo-
cam, em seu ambiente musical, a poesia en-
cantadora dos subúrbios do Rio e de São
Paulo, de há trinta anos atrás. Ouvindo-as,
invade-nos a sugestão emoliente daquelas
ruas em ladeira, sem calç'amento, mal ilumi-
nadas pelos combustores de gás, com as
casas de porta e j anela, enfiadas em j ardin-
zinhos gradeados e abrigadas sob a fronde
de mangueiras, amendoeiras e sapotiseiros.
N a esquina, - em geral, encruzilhada de
duas ruas, - para, por instantes, o grupo de
trovadores boêmios que vinha, rua afora,
sob o luar macio, enchendo os ares calmosos
de mensagens sonoras.
O -lamento da flauta, contraponteando
com os acordes cheios dos bordões e o estrí-
dulo dos cavaquinhos, fazia com que alguma
j anela se abrisse e, em seu retabulo, se
apoiasse a figurinha de alguma suburbana,
sem atávios e sem pintura, de olhos postos
na lua e nas estrêlas, sonhando com o namo-
rado que ha pouco ali estivera, livre do
plantão da Central do Brasil ou do quartel
do Batalhão Naval. ..
Francisco Mignone em 1921 (cidade de Milão)
"Acorda, donzela,
Pois a noite é bela, a valsa "Manon" e o tango "Não se impres-
Vem vêr o luar ... sione". O mérito dessas duas peças está em
Que a dormir te esqueces que o autor fêz aparecer seu verdadeiro
Quem por ti padece, nome.
Quem vem lá do mar." No ano seguinte, em outro certame, dessa
vez de música séria, arrebatou o primeiro
Era poético, não resta dúvida... Era
prêmio com "Romance em la maior".
deliciosamente encantadora essa magia das
serestas suburbanas, cuja sugestão ainda nos Se considerarmos a idade do compositor
naquela época (dezesseis anos), teremos jus-
vem através das "valsas de esquina ", de Mi-
gnone. tificado seu caso de precocidade.
Com vinte anos, teve lugar a primeira
exibição de suas obras sinfônicas, realizada
a 16 de dezembro de 1918, no Teatro Muni-
o autor de "Yara" foi um caso de pre- cipal de São Paulo. Foram elas: o poema
cocidade. Basta dizer que, aos quinze anos "Caramurú" e a "Suite campestre", sob a
de idade, participando de um concurso de regência de seu pai, professor Alferio Mi-
música popular, obteve o segundo lugar com gnone.

- 59-
Nessa noite, o jovem artista atuou como Antes de seguir para o velho mundo,
solista, executando a primeira parte do con- Mignone resolveu apresentar um outro con-
cêrto de Grieg. cêrto sinfônico, desta vez regendo êle pró-
Foi indescritível o êxito dessa audicão
Tão notavel a sua repercussão que a co~is~
prio a orquestra. Nessa audição deu.a conhe-
são do Pensionato Artístico, estabelecido pelo cer a "Paráfrase sôbre o Hino Cavalheiros
g-ovêrno de São Paulo, decidiu' enviar à Eu- da Kirial", peça de grandes efeitos instru-
ropa o jovem musicista, a fim de que o mes- mentais, e que evidencia sua natural facul-
mo pudesse aperfeiçoar e concluir seus es- dade para trabalhar os variados naipes or-
tudos. questrais.

V13cenção em {fnffa reta


F or na manhã de 4 de agôsto de 1920 que seus velhos pais. Antes de partir, já havla
Francisco Mignone deixou o Brasil, lançan- êle traçado o seu programa de estudos, esco-
do-se em pleno Atlântico, rumo à pátria de lhendo a cidade de Milão, na Itália, pois era
a que maior atração exercia sôbre sua curio-
sidade artística.
Chegando ao tradicional centro milanês
tratou, desde logo, de dar início a uma longa
etapa de estudos. Seu mestre privado de
COI~lposição foi o maestro Vincenzo Ferroni,
do corpo docente do Real Conservatório Giu-
seppe Verdi. Apesar de estudar em terras
italianas e de seu professor ser ainda italia-
no, a educação musical de Mignone tomou
Um caráter - notadamente ligado à escola
francêsa.
Como poderia explicar-se tal disparida-
de?' Muito simplesmente.
Vincenzo Ferroni, que fêz seus estudos
fundamentais em Paris, foi um dos discipu-
los mais brilhantes de Massenet, o mestre da
lírica francêsa. Em sua turma, tinha êle por
condiscípulo o nosso Francisco Braga. Quan-
do Ferroni terminou o curso, alcançou o pri-
meiro prêmio em um concurso de fugas, no
Conservatório de Paris, em 1885, de cuja
banca examinadora fazia parte, como presi-
dente do júri, o grande Cezar Franck.
Regressando à ItáIía, Ferroni foi lecio-
nar no Conservatório de Milão, adotando,
como método de ensino, os mesmos trafados
usados no Conservatório de Paris, isto é, o
Francif3"co }Ii,;-none fa:::e!ldo a lnaquillage, antes de enver- de Savard, para o contraponto e o de Dubois,
gar a ca~.ac~ p3.ra aparecer no filme •. Bonequinha
de Sêda", cuja música é de sua autoria para a fuga. Na turma de alunos de Ferroni

- 60-
contavam-se Francisco Mignone e Alexandre
Levy, um dos pioneiros da música brasileira.
Nesse curso, de caráter estritamente francês,
esteve o nosso artista durante dois anos.
Foi quando êle escreveu seu primeiro
drama lírico: "O contratador de diamantes".
A respeito dessa ópera há um episódio
interessante a contar, denunciador das pri-
meiras sugestões para a estruturação da mes-
ma. Quando Mignone ainda se encontrava
no Brasil, em 1917, foi levado à cena, em São
Paulo, um drama de Afonso Arinos de Mello
Franco, denominado "O contratador de dia-
mantes". E' uma obra literária já bem co-
nhecida entre nós, baseada em um episódio
do Brasil colonial, vivido no interior da ve-
lha província das Minas Gerais. Em um dos
momentos da peça há uma cena em que apa-
rece uma pequena orquestra regida pelo
"Maestro Plácido", figura típica do tempo da
Regência. O conjunto executa no palco um
gracioso minueto. Naquela ocasião quem
ensaiou a orquestrinha da peça foi Francisco
Mignone. Ensaiou e tomou parte no espetá- A importante figura do "Sol ", na interpretação do bailarino
Oleg Tupine, para o bailado "lara ", de l<', lVIignone,
culo, encarnando a figura do "Maestro Plá- no Teatro Municipal do Rio,
cido", enfiado em trajes da época, com ca-
beleira empoada e casaca à Luiz XV ... loncelos, ficando imóvel, horas seguidas, a
Durante os ensaios assistiu inúmeras vê- fim de não ser percebido.,.
zes à repetição das cenas, ficando-lhe o dra-
ma inteiro fixado em seu subconsciente ar-
tístico. Anos mais tarde, em Milão, compôs
a música sôbre um libreto extraído da obra Certa vez a Sociedade de Concêrtos Sin-
de Afonso Arinos. A nova ópera foi estreada fônicos de São Paulo decidiu organizar um
no dia 20 de setembro de 1924, no Teatro concurso para a escolha de uma composicão
Municipal do Rio de Janeiro, dirigida pelo sinfônica. Foi isto em 1923 e Francisco ~1i­
maestro russo Emil Cooper. gnone já se encontrava novamente no Brasil.
O sentido de brasilidade do autor come- Sua, peça, "Cenas da Roç'a", logrou o pri-
meiro prêmio, além de medalha de ouro.
çava a afirmar-se definitivamente, apron-
tando-se para os longos remigPos do futuro. E não foi só. Noutro concurso, aberto
Em Milão, ao passo que cursava assidua- pela mesma Sociedade, em 1926, venceu to-
mente as aulas, freqüentava, não menos as- dos os concorrentes, alcançando os dois pri-
siduamente, as grandes demonstrações de meiros lugares com o poema sinfônico "Festa
arte que ali, de contínuo, se sucedem. Nunca Dionisíaca" e a peça de caráter descritivo e
mediu sacrificios para assistir aos concêrtos de sabor brasileiríssimo "No Sertão".
sinfônicos regidos por Arturo Toscanini, pro- Por essa época, esteve no Brasil o gran-
curando até, por todos os meios possíveis, de Ricardo Strauss, com a Orquestra Filar-
ouvir os ensaios do grande regente; para isso, mônica de Yiena. Impressionado pelo cunho
ocultava-se nos cantos da sala ou, então, es- "diferente", de nossa música, o notável autor
premia-se atrás das caixas vazias dos vio- da "Salomé" pediu à direção do Teatro Mu-

- 61
Com a apresentação da ópera completa,
seu nome firmou-se, definitivamente, no con-
senso geral. Estimulado por êsse triunfo,
Mignone procurou inspiração para um novo
drama lírico na literatura espanhola, tendo
fixado sua atenção numa novela da escritora
asturiana Concha Espina. Arturo Rossato
extraiu, dessa novela, um libreto, que teve
por título "L'innocente". Trabalhando sem
descanso, em pouco tempo Mignone entre-
gava para ensaios a partitura completa de
sua nova obra.
Em 1928, viu ela as luzes da ribalta, sob
a direção do conhecido regente Tullio Sera-
fin, o mesmo que, durante anos a fio, foi di-
retor de óperas líricas no Metropolitan Rou-
se, de Nova York.
Escusado se torna repetir aqui o que dis-
seram de "L'innocente" as críticas da época.
Basta que se consigne o êxito indiscutível que
a nova ópera de Mignone alcançou, no cir-
culo dos musicistas brasileiros.
Quem, todavia, não se deixou envaidecer
com isso foi o próprio autor: não se embalou
nem adormeceu na rêde de elogios que lhe
teceram em volta. Sabia que tudo o que fi-
zera até então nada mais ere do que o "prin-
cípio". Muito teria ainda que produzir e se-
dimentar para a estruturação da "sua obra",.
o sr. Alferio Mign0ne. pai do compositor, regendo no estádio
aquela que já lhe andava a ocupar a imagi- .
do Pacaembú, em São Paulo nação, ensaiando seus primeiros vôos.
Mignone colheu os aplausos que o triun-
nicipal do Rio de Janeiro que lhe fôssem fo de "L'innocente" lhe conferira; colheu-os.
fornecidas obras de artistas brasileiros. e encerrou-se em si mesmo. Durante cinco·
O velho Alferio Mignone, inteirado dos anos ninguém soube de novas obras do autor
desejos de Strauss, através da solicitação de de "Congada".
um amigo da direção do teatro, entregou-lhe Foi um tormentoso lustro, decorrido en-
a partitura de "O Contratador de Diaman- tre 1924 e 1929, no qual Mignone olhou para
dentro de si mesmo, no exercicio de rígorosa
tes", que o filho lhe mandara da Europa.
auto-critica, ~omo que a pressentir os novos
Desta, foi destacada a "Congada", parte das
rumos de sua sensibilidade. Finalmente, após.
dansas da ópera. Strauss escolheu-a, de- êsse interregno de espectativa e estudos, o
monstrando grande entusiasmo pela mesma artista, diante da corrente que se iniciava no,
e a ela se referindo em têrmos altamente en- Brasil, dentro de um ideal nacionalista, na-
comiásticos. turalmente impulsionado por ela, entrou a
Os jornais abriram manchetes ao sucesso produzir. Seus primeiros trabalhos coloca-
do compositor patrício, especialmente após a ram-no, de pronto, entre as figuras mais re-·
execução, no Rio e em São Paulo, daquela presentativas da música brasileira.
página fortemente sincera de Francisco Mi- A primeira obra apresentada foi a "L"'
gnone. Fantasia Brasileira", para piano e orquestra.

- 62-
Francisco Mignone executando ao piano, em sua residência

A esta seguiram-se logo, a cl.lrta distância, a gel' as melhores obras sinfônicas do grande
segunda, a terceira e a quarta fantasias. camrJineiro. Para isso, constituiu-se uma
Em 1932, Mignone atinge um dos cumes orquestra de cento e tantas figuras que, bem
mais imponentes de sua obra, hoje em dia ensaiada, apresentou-se com absoluto êxito.
extensa e variada, com a apresentação do Por êsse tempo foi convidado a ir à Ale-
grandioso bailado afro-brasileiro "Maracatú manha reger um concêrto de músicas sinfô-
de Chico-Rei". nicas brasileiras, com a orquestra Filarmô-
Baseado num episódio histórico do Bra- nica de Berlim. Na capital germânica, Mig-
sil colonial essa obra marca um assinalado none alcançou verdadeira consagração.
triunfo do rp.aestro paulistano. Nela está Após tais sucessos, foi convidado, pelo
amplamente demonstrada a faculdade excep- govêrno italiano, para reger a orquestra do
cional de Francisco Mignone para o "jôgo Augusteo.
das grandes massas orquestrais", o que fazia Desde então grande (em sido a produ-
Mário de Andrade exclamar entusiasmado: ção do maestro, rica de obras primas, tanto
"A verdadeira e melhor expressão musical de pianisticas como sinfônicas ou música de câ-
Mignone reside na orquestra. Nesse campo mara. Citemos algumas, sem preocupações
nenhum brasileiro lhe pode ser comparado". seletivas: "Cucumbysinho", "Lenda Sertane-
ja", "Cateretê", Batucajé", "Sonho de um
Menino Travesso", "Ouverture das Três Más-
caras Perdidas ", além de uma" Sonata ", seis
Em 1936, por ocaSlao do centenário de "Prelúdios", outros seis "Estudos Transcen-
Carlos Gomes, Mignone foi escolhido para re- dentais", escritos para piano. Paralelamente,

63 -
Mignone compos peças de música de câmara, Orquestra Sinfônica de Filadélfia, sob a di-
das quais a mais reputada é o seu "Sex- reção de Eugene Ormandy.
teto" . O poema não é vazado no espírito da
Na música sinfônica, porém, é que êle música religiosa, embora celebre quatro das
define inteiramente sua personalidade incon- mais famosas igrejas do Brasil: São Fran-
fundível de brasileiro. cisco, da Bahia; Rosário, de Ouro Preto; Ou-
Recentemente, as obras para orquestra teiro, da Gloria, no Rio de Janeiro e Nossa
revelam a alta compreensão do artista, já in- S'enhora da Aparecida, em São Paulo.
tegrado no entrevero termentoso das lutas so- Para sua contextura inspirou-se Migno-
ciais, onde êle se definiu, tomando seu lugar, ne nas festas populares que se realizam pe-
disposto ao embate, emprestando ao mesmo riàdicamente em volta dos citados templos e
a alta significação de sua Arte excelsa. que se tornaram fontes de emoção artística,
A contribuição de Mignone para a exal- puramente folclórica. De mistura com elas,
tação dos temas sociais que glorificam o tra- nota-se a reprodução de corais, em honra e
balho humilde das massas, elevando-o à con- glória das santas, entoados por ocasião dos
dição mais valiosa da moderna sociedade, é festivais.
deveras inestimável. De alto poder evocativo, êste poema sin-
Suas obras mais recentes são a "Sinfonia fônico de Mignone apresenta uma amálgama
do Trabalho", o "Leilão", em seis movimen- de elementos indígenas, africanos e portu-
tos, o "Espantalho", a " Fest,a das Igrejas", gueses, o que vem afirmar ainda mais as ca-
e o bailado "Yara". O primeiro, sem dúvida racterísticas nacionais de sua inspiração.
o ,mais significativo, é um poema ovante, em Em 1946, Mignone apresentou, em pri-
quatro movimentos: "Canto da Máquina", meira audição para o Brasil, a "Sétima Sin-
"Canto da Família", "Canto do Homem For- 'fonia", de Shostakovitch, conhecida como a
te" e "Canto do Trabalho Fecundo". "Sinfonia de Leningrado". t:le mesmo regeu
"A Festa das Igrej as" foi conduzida pelo a Orquestra Sinfônica Brasileira, à noite, ao
próprio Mignone, em Nova York, em abril de ar livre, no estádio do Fluminense Foot-Ball
1942, durante a visita do maestro aos Estados Club, em uma esplêndida apresentação da
Unidos, e mais tarde em vVashington, pela Universidade do Povo.

$. irrepreen8ilJe{franqueza com que o arti8ta fl{a


A TÉCNICA de Francisco Mignone torna-se, dos que só a prática ensina. Ninguém me-
dia ii dia, mais pessoal, com uma evidente lhor do que Mignone poderia estar indicado,
libertação de conhecidas fórmulas estrangei- entre nós, para um lugar de destaque na re-
ras. Mignone abrasileira-se cada vez mais, e gência, de vez que êle possui, em alto grau,
suas expressões artísticas cada vez mais se os "dotes essenciais que se exigem de um
identificam com a grande realidade musical regente, tão complexos e quase ilimitados em
do seu país.
nossos tempos, tais como: sensibilidade, senso
A despeito de sua trabalheira intensa na rítmico e dinâmico, comunicabilidade, muita
composição de obras musicais, outras ati vi- prática e, sobretudo, longa convivência no
dades reclamam a presenç'a do mestre, tais
meio profissional".
como o magistério e a regência.
Filho de um professor de orquestra, êle São dêle mesmo as palavras acima. Com
mesmo músico de orquestra, fácil se lhe tor- tais qualidades só a Mignone poderia ser con-
nou adquirir o domínio absoluto dos segre-, fiada a cadeira de regência de orquestra, que

- 64-
COnétrto de cinco piano~j organizado péla Casa Carlos ,,"ehl'~. no Instituto Nacional de :'\f(lf"ica, Tomaran1 parte. no
l11e~m10: T0111ás Tel'an, I}arl'O~0 Xeto, Arnaldo Estl'€.·h" ,João Itiberê da Cunha e Francisco ~\líg·none. Xo gTUpO ao fundo
vê·se o nlaestro FranC'Í~t:() Braga.

ele ocupa na Escola ;\'acional de Musica, con- :Nada paga, de fato, o espetáculo empol-
quistada em concurso brilhante, em 1939. gante do artista em plena alucinação do seu
Particularmente, o maestro emprega suas trabalho fecundo, tal como o do guerreiro
atividades na direção artistica da Rádio Glo- mergulhado nas batalhas. Supersensível, vi-
bo, dirigindo os programas orquestrais nos vendo a inquietação natural dos criadores,
estúdios daquela PR. Mignone é bem o caso tipico da nevrose ar-
Lá é que fui surpreende-lo, algumas ve- tística que caracteriza os grandes talentos.
zes, no decorrer desta longa entrevista. E era Quando lhe vem a inspiração de algum
no transcurso dos ensaios, no meio de deze- tema, costuma tomar suas anotaç'ões - este-
nas de músicos, que êle roubava a si mesmo ja onde estiver - em pedacinhos de papel,
uns momentos ligeiros para me atender. Vi- que leva sempre nos bolsos. Às vezes, quan-
nha abraçar-me, em mangas de camisa, su- do lhe falta o papel, escreve num embrulho,
ando em bicas, após o trabalho incessante de na capa de um livro ou de uma música!
apuro e aperfeiçoamento de alguma peça or- Traça depois a primeira tentativa a la-
questral. Gostava sinceramente de o ver as- pis, tão sintética que o próprio compositor,
sim, engolfado no trabalho, em plena ativi- passados alguns dias, dificilmente consegue
dade artística, martelando o cérebro dos seus decifrar. Tais· apontamentos constam de
músicos, a fim de lhes transmitir a expressão abreviações e sinais, e constituem uma ver-
espiritual que procurava arrancar da massa dadeira taquJgrafia, tôda especial, inventada
de instrumentos. na hora pelo autor.

-- 65 -
Antes de escrever o original definitivo, dizer a respeito de minhas invenções meló-
Mignone refaz a sua obra três ou quatro vê- dicas. .. De resto, essa história de plágio é
zes. Uma vez decidido o que a mesma de- uma questão muito aleatória, isto é, depende
verá ser, trabalha então com rapidez até o de julgamentos futuros. Estudar e aprender
seu acabamento integral. ' no que os outros fazem não é imitar nem
Tudo isso êle me confessou em palestras, plagiar.
nos estúdios do rádio. Confessou ainda - Realmente, - retorqui, concordando
"otras cosi tas más", com aquela franqueza, -- o plágio é caracterizado pelo decalque
por vêzes rude, de Francisco Mignone. servil, irresponsável ...
Disse-me, por exemplo, da preocupação - Claro, bradou Mignone. O plágio é
constante que o assoberba em não permitir, condenável porque é feito com a intenção de
mesmo na técnica, que a sua música se en- roubar o sucesso alheio. Quando é feito, po-
feite de bisantinices e chinesices, coisas que rém, com o intuito exclusivo de "aprovei tal'
a tornariam pesada e de difícil execução. a lição alheia", é plenamente justificável,
Isto quanto à música de conjunto, é claro. como já tem ocorrido muitas vêzes, casos em
Quanto à música de puro virtuosismo, seu que não existe o plágio, mas apenas a facul-
temperamento aficionado ao estilo brilhante dade de conformar a certa orienta<ião pessoal
e esplendoroso, pode alcançar as mais altas os elementos fecundos da criação alheia.
esferas da virtuosidade. E' necessario, no - Pode apresentar um exemplo?
entanto, controlá-la, a fim de que ela se apre- - Com todo o gôsto. No "Maracatú de
sente sempre lógica e não se derrame em Chico-Rei", e em algumas f an tasias para
efeitos demasiadamente conhecidos ou, me- piano e orquestra, aproveitei várias obces-
lhor, já estereotipados . sões rítmicas de Strawinsky e De Falla. Foi
Outro freio de que Mignone faz uso é o uma ótima idéia, pois tais elementos coinci-
que controla suas qualidades melódicas, a diam prodigiosamente com a rítmica afro-
fim de que sua produção não descambe para brasileira, concorrendo para imprimir mais
o que é banal e demasiadamente fácil. "caráter" àquelas obras. E' por isso que digo
Foi êle mesmo quem me declarou, em e repito: a facilidade que tenho para tirar o
palavras mais ou menos como as que se se- máximo proveito, das lições dos mestres não
guem: "Possuo certa tendência, ou melhor, é defeito, mas uma das maiores qualidades
certa facilidade para imitar outros autores. inerentes aos artistas.
Deverei desprezar essa facilidade? De modo E Francisco Mignone, entusiasmado, pas-
nenhum, Ademais, meu caro, não há êsse sa a disc~)iTer, ma;.s amplamente, a respeito
que se possa gabar de ser jnteil'amente pes- de plágio e plagiários. Deixo-o faIcu' li vre-
soal. Aproveito, portanto, as minhas facul- mente, prucurando anotar-lhe os pens:Hnen-
dades no sentido de extrair dos outros o que tos e as conclusões com a possí ;reI fidelidade:
me parece bom, transformando, porém, to- - Repare bem o que vai pelo campo da
dos os motivos, no meu cadinho tempera- literatura. Guilherme de Almeida recebeu
mental, até conseguir algo de meu. :Êsse sugestões claras de Pierre Louys, mas conse-
aproveitamento se opera, com especialidade, guiu compor as admiráveis "Canções Gre-
nos elementos mais construtivos da música: gas". Manoel Bandeira já confessou publi-
ritmo, harmonia, polifonia, forma, etc. camente a influência recebida de Mário de
- E quanto à linha melódica? indaguei, Andrade e outros. Quanto a êste, conhecido
curioso. musicólogo, inspirou-se largamente nas len-
- Aí já se torna difícil aproveitar o das de Koch Gruenberg, tendo transportado
alheio, não só por ficar muito evidente o "frases inteiras" de Teschauel', de Mário Bar-
aproveitamento, como também, pelo risco de reto, e fêz o "Macunaima". O seu plágio já
deformar o espírito do que se quer criar, di- foi denunciado em jornais e em intriguinhas
ficultando, portanto, o traço pessoal, Não me de porta de livraria. Chegou a ser estampa-
interessa, em absoluto, o que outros possam do em livro, por Haymundo de Morais, c

- 66-

, -'
Nunes Pcreira jú anunciou pela imprensa
estar escrevendo UIll tomo inteiro em torno
de "As Fontes de lVIacunaima". Nada disso
impediu, nem impede que "lVIacullaima" sej a
considerado o melhor livro... de Mário de
Andrade! E' que isso não é plagiar; é sim-
plesmente faculdade para compor. A verda-
deira originalidade está na lógica da criação.
Debussy, por exemplo; sua obra c uma têl;ça
parte de franceses (até de lVIassellet!), outra
têrça parte de MOllssorwzky e o resto, puro
Debussy. Pois bem, bastou isso para que o
mestre do "Clair de Lune" fosse originalís-
simo em suas criações e até chefe de escola!
Mignone fala calmamente, sem arreba-
tamentos, sem gestos largos, como que me-
dindo a extensão das palavras e dos concei-
tos, que vai enfileirando diante do interlo-
cutor.
Tl'anscrevo aqUI esses pedaços de con-
versa pelo alto significado que êles encer-
ram, através dos problemas de ordem geral
expostos com tanta franqueza. Servem, de
resto, como contribuição preciosa para oes-
tudo das atitudes e das faculdades artísticas
do autor de "Maracatú". Franeisco :Migr:.(me elll ml1 dos seus últimos retratos
Pedi-lhe que me falasse de seus proces-
sos e da maneira como se habituou a estudar - Quase todos, sem que se possam re-
os temas que desenvolve e enriquece. Não se gistrar êxitos apreciáveis. Em geral, fracas-
fêz de rogado. sam, caindo a maioria no círculo da l110di-
- Observando a minha obra, eu próprio nha. Só mesmo o Villa Lobos, em algumas
reconheço que tenho pesquisado muito, não de suas "Serestas", e o Guarnieri em certas
obstante ter ainda muito o que pesquisar. canções, conseguiram atingir o fim colimado.
Proponho, constantemente, a mim mesmo Seria injustiça não reconhecer essas vitórias.
uma porção de problemas técnicos e ... exij o - E como devem proceder os demais?
soluç'ões satisfatórias. As vêzes, resolvo-os
com relativa facilidade. Por exemplo: com- - Estudando o populál'io e, sobretudo,
ponho uma "valsa de esquina" em três par- os autores que eitei. E' o que faço. Por ven-
tes e procuro logo a possibilidade de ir acres- tura será um descrédito para mim estudar
centando, cOlltrapontlsticamente, as melodias um compositor mais moço do que eu, como
das partes. Tudo isso, é claro, não passa de o Guarnieri? Acho que não... Devemos es-
um treinamento técnico, útil mas ineficaz, de tudar tudo e aproveitar de todos. Percebidos
vez que não atinge a essência do problema os elementos psicologicamente expressivos da
"valsa brasileira". Divirto-me, porém, com atual música brasileira, euidar então de dar-
tais entretenimentos. Pesquisar sóbre pro- lhes desenyolvimento. Pegar nos elementos
blemas e~sénciais é procurar aexpressivida- da modinha e fugir, sistemàticamenie, da
de psicológica da música brasileira. forma canção, da forma toada e atacar o
- E quais são os que exercem pesquisas processo da melodia infinita.
de tal natureza? - Em que maneira?

- 67-
- Na da cantata-solo antiga, por exem- criador é um compromisso perene com a pos-
pIo; ou na das pequenas cenas representadas teridade.
ou não, gênero pastoral antigo. Até mesmo - Está ai uma bela sentença, "seu" Mig-
a da ópera, em um ato. none!
- E o poema para a "cantata"? E o -Bela e justa. E' necessário ter fé na
texto para a "pastoral"? human~dade porque ela acaba sempre por
- E' simples. Escolhe':se um assunto fazer justiça. Pouco me importa se algum
qualquer e pede-se, em seguida, a versalha- critico me derranca as costelas ou procura
da a um poeta, que sej a musicável. Dessa ignorar o que faço. ?\ ada disso me interessa.
forma tenho procedido, pesquisado e, pen- O que é essencial é "h'er em ação. Ora fra-
so, realizado qualquer coisa ... cassando, ora colhendo louros, vou vivendo
Francisco Mignone, dentro de sua hones- porque estou lutando. A orientação que me
tidade artística, exerce uma autocrítica cons- nortei~l é esta: provocar uma inflac;ào du
tante e severa sôbre seus trabalhos. E foi "Eu", de forma a criar uma noção extensls-
nesse espírito que êle serenamente con'cluíu: sim a de orgulho, tão grande que sé supel'po-
- E' muito possível que eu construa uma nha à vaidade. Só assim me tornarei pal'[l-
obra que me satisfaça, que eu julgue bôa, na doxalmente humilde a ponto de reconhecer,
qual tenha talvez solucionado um problema com exatidão, minhas qualidades e meus de-
essencial de música sem que os críticos nada feitos. Só um orgulho desmedido conduz à
percebam das minhas intenções. Paciência! verdadeira humildade!
Dia virá, remotamente ou não, que alguém - Upa! está aí outra bela sel~tellça!
irá perceher. Dia virá... A vida do artista E despedi-me.

- 68...,.
lnTERnAClonALISMO\
. AO·
~

f\ MUSICf\ NO MU NDO
consioerações que correm por
.
minga conta e Tl8CO

i <
Ão será novidade par. mui-
ta gente dizer-se q ue a mú-
sica nasceu <:iuando llasceu
No dia em que os nossos bisavós histó-
ricos, em uma tentativa de imitar o canto
natural das aves, juntaram dois sons, har-
o primeiro homem. monizados entre si, nesse dia nasceu a mú-
O instinto musical é, sica.
pois, inato em tôdas as Parece indubitável essa tentativa; donde
raças, em quase todos os agTupamentos étni- se segue que os pássaros ensinaram a música
cos. A natureza é, em sua essência, uma ao "rei da criação" ...
eterna fonte melódica: cantam as cachoeiras Mal descoberta, a nova arte eomeç:ou
no estrépito de suas águas; modulam Os rios logo a exercer o seu domínio sôbre a senti-
canções lentas e monótonas; canta o vento, mentalidade do homem; passou a ser sobe-
zurzindo entre as galhadas; entoa o velho rana no reino da expressão, ímpondo influ-
mal' a canção rude das marulhas. Do seio da ências estranhas à sensibilidade humana e
terra, do recesso das florestas - nos vales, concedendo, em troca, a melhor consolação
nos campos, nas montanhas - evolam-se as da vida.
melopéias das aves, o estrídulo das cigarras, Cansado de imitar os pássaros, o homem
os roncos das feras e o canto musical dos entrou a combinar os sons que lhe saiam da
homens. garganta, bem como os que percebia pela
Simples ruídos ou sons disciplinados en- vibração ou percussão de objetos.
chem os ares e envolvem o globo ... Brotou então a idéia dos primeiros ins-
trumentos. Esticando uma pele sêca sôbre
Dentro da criação as aves cantam per- estacas; retezando alguns fios nas pontas de
correndo Ullla esquisita gama sonora; dos um arco ou abrindo, em furinhos, o fuste das
mamíferos, no entanto, o homem é o único gramíneas para o arranjo de sons variados o
capaz de exercer a música vocal. nosso bisavú ia invei:..lando aos poucos o ins-

-71-
Guitarra eg-!pcin. Eg!llCio tocando harpa. (Figura en- Harpa egípcia
('ontrflc1a no RepulC'to <1e }lRm~~f' TI)

trumental primitivo que, em sucessivos apel" Surgiam por esse tempo os primeiros
feicoamentos
.'
cheD'aria
to
à maravilha de nossOs instrumen tos,
dias. Em breve, o tocador já não exercitava Até então a música só existira em seu
sozinho os sons vocais ou instrumentais, ou- estado rudimentar, isto é, no ritmo de dansa
tros companheiros se lhe ajuntavam em tôr- e na melopéia épica. A Grécia, no entanto,
no. E a música das primitivas tribos selva- despertava para o mundo. Preparavam-se os
gens - como a das que até agora permane- helenos para oferecer à edifieação das gera-
celll em estado primitivista - ecoou, enchen- ções futuras os altíssimos cumes a que po-
do os ares, na repetição indefinida de um dem atingir o pensamento e a sensibilidade
mesmo movimento, mais ou menos apressa- do gênero humano.
do, mas sempre regular. O homem, naqucle lUomen to, experimen-
A sucessão monótona da mesma nota sa- tava sensações novas e surpreenden tes, que
tisfazia àqueles músicos bárbaros. O som o fizeram abandona!' sua atitude dc simples
brutal do tambor e do tam-tam era para êles contemplativo para tentar remigios aluci-
. ~ I
a suprema alegria da vida, a mais alta ex- nan t es, ;'. I
pressão musical a que podiam atingir. Era e E encontrou na música a fonte do liris-
continua a ser em muitas tribo~ africanas, mo cósmico: a melodia, "\'ibration même de
do Taiti, da Polinésia e mesmo das Améri- son sang agité, soufle de son coem palpitanl,
eas, onde o estado prime\'o não foi ainda mo- úme de sem âme, forme aérienne et Ílwin-
dificado por influências alienígenas ou pre- cible de sOli étre intérieur". Quem fala as-
disposição própria. sim é Edou<lrd Schuré, () analista profundo
Com () rolar dos séeulos e o desen\'olvi- do "Drama Musical".
men to periódico das faculdades humanas, a A lira de sete cordas, inventada por Ter-
música foi exercendo, cada vez mais, seu pandro, facultou a distinção de novos rilmos,
suave mister de .. abrandar os costumes ... " de novas melodias.
~() dealbar da velha Grécia heróica, Ur- 5ap110, a divina Sapho "aux bondes selll-
feu, o inconsolável apaixonado e encanta- blables aux violeltes" tangia o "magadis ",
dor de animais, ia até aos infel'1los à' prc}cura lira de som peneh'ante, que ela mesmo havia
de sua Eurídice e, na famosa porta, onde os aperfeiçoado. Seu canlo quente e apaixona-
que entravam deyiam deixar tóda esperança, do "ibra"a nas cordas do instl'lunento: "Lulh
tangendo sua lira, fazia adormecer o próprio divin, repollcls Ú mes désirs, devien!l hanno-
Cl'rhel'o. nienx)"
Tais melodias encantavam os gregos e o
próprio Solon; o mais austero e mais sábio
legislador da antiguidade, deleitando-se com
o hino que a poetisa de Lesbos entoaYa em
Fla,lta de Pan, Kimbólico
louvor de Afrodite, exclamava extasiado: jn"trt1m~nto da yelha
"Eu não quisera morrer sem ter ouvido esse Hêlade
canto!"
Pelas planícies da Hélade .- nos campos
e nos vales, nos montes e nas florestas __ o

estridulava ,os ares a flauta mágica de Pan.


E os sá tiros sopravam nela, enchendo os bos-
ques de melodias amorosas que penetravam mundo gl'eCO-l'Omano. Os homens se propu-
os sentidos das ninfas e das hamadríades, nham a desprezar os bens terrenos; volta-
fazendo-as capitular ante os envolventes flní- vam as costas às coisas bóas da terra: aos
dos musicais. bons vinhos, ao amor sem peias pelas mu-
Os gregos cllltuavam as formas vivas do lheres, às sensações deliciosas de um mundo
corpo humano; empolgavam-se com a beleza pa~IHo .
e a harmonia muscular dos deuses; exalta·· Pregava-se a renúncia, pregava-se a abs-
vam a perfeição da mulher nua. Para aquele tenção e o .iejum. exaltava-se o gózo dos sa-
povo de estetas, a vida terrena era um pre- crifícios ,voluntários. A vida tenena nada
mio inestimável outorgado aos seres yjnntes. mais cra do que um estágio, uma passagem
A morte, desagradável e repelente, nào lhes rápida para a vida eterna. Desde que nas-
trazia preocupações. Yiviam apenas a exis- cia, o ser humano começava a preparar-se
tência terrestre. para o dia festivo e111 que devia fazer a jor-
Um dia, porém, rcboou, desLendo elo nada final.
Olimpo, um grito angustioso: O grande ;)nn
é 1I10rto!
Era o cl'epúsLulo dos deuses. Era a mortc A nova música mcrgulhava suas raízes
dos deuses ... llaS primeil'as comunidades cristãs. Os pri-
Com a derrocada do paganismo, surgia meiros cantos, inspirado:; na <1<'>1' e l1a espc-
a era da cristandade: o mundo ia ganhar UIll l'ant;a de uma vida melhor, foram entoados
novo deus e a música ia perder a inspil'açüo dentro das catacumbas, Ol1(J.:: se agrupavam
pagã. os perseguidos pela I'ea<':<lo policialesca das
Foi sensível essa ]lerda. Que iriam fazer autoridades.
agora, na Grécia que sonhava e que cri ava Foi naqueles longos LOl'l'cdol'es cavados
beleza, aqueles que dedilhavam n harpa, na rodw viva que brotaram, da alma nova
aqueles que assopravam na flauta, aqueles dos homcns, os primeil'os salmos, que os fiéis
que tangiam a cítara, se estavam mortos os recitaYfllll e1l1 memória do :\lestl'e bem ama-
inspiradores (kuses que aligei I'ayam seus do. Xnsl'eu ali o cHnto cristão.
sentimentos, fazendo com que estes se trans- Xinguém poderia (lizel', naqllela época
formassem em harmonias sublimes? obscura, (lue o lllurmúrio que ellLhia o âm-
No paganismo como que os deuses vi- bito das catacumbas pudesse um dia sair,
viam cnlt'e os homens, eram seus familiares. espraiar-se pelo mundo, derrocando deuses e
CO]I] Baccho bebia-se vinho, LOIll Ceres se- templos, para LOllstruir outl'OS tantos tem-
meava-se o trigo, com Pau dansava-se ao som plos em louvor de Ulll outro Deus. Quem
rI:.l fLluta. Sob o domínio dos deuses pagãos diri a, realmente, que tal aconteLessc '?
(J yinho LOl'l'iu, as dansas giravam, a vida era Mas acollteLeu. A nova dominadora, a
alegl'e. Igreja, iniciou então um pel'Íodo nebuloso,
A nova cOJlcellç:i.o da e:dstência andava sob a inspiração de UIll ne ou morrc ver-
em sentido o]1osto àqlleie que imperava !lU dadeil'amente angustioso.
senvolvidos por Santo Ambrósio, no s6culo
IV, e Gregório, o 'grande, no VIII.
Higida e implacável, a sombria salmodia
era Ulll apêlo contínuo à justiça eterna e à
glória redentora no outro lIlundo.
Com seu llnisono monótono, o canto gre-
goriano, que enchia a nave tenebrosa dos
templos, perpassava sôbre o rebanho dos
fiéis ajoelhados, tal como gélido vento de
morte que os fizesse fremir.
Do lado de fora, em compensação, o
povo, embora soh o guante dos senhores feu-
dais e dos senhores eclesh'tsticos, criava as
canções alegres dos troyadores, êsses aedo,
profanos que procuravam manter vivas as
trovas populares acompanhadas pelo som
dos alaúdes.
E a música seguia sua marcha.
Houve Guido de Arezzo, com seu siste-
ma inovador de notação,. com os neumas es-
critos em quatro linhas, verdadeiro esfôrço
para dotar a música de uma linguagem uni-
versal. Houve Palestrina, mestre da capela
Giu:::eppe Verdi, autêntico re]Jre~entnnte das ultr('L-melódicas
ópen1s itnlií:1na~ de São João de Latrão que, com sua famosa
"Missa papae Marcelli", aprovada pelo não
Não silo poucos os fi ue consideram a menos famoso concilio de Trento, marcou a
Idade Média COlllO ul\1a noite escura para as verdadeira separação entre a música Sa(Ta
artes, em geral. Estoll nesse número; a pin- c a profana, libertando esta última da inter-
tura e a escultura pouco brilho alcançaram, ferência religiosa, o que abriu nova estrada
com efeito, não obstante o talento (1:2 f:!lguns para os destinos de Eutel'pe. Houve a intro-
artistas, cuja fórça criadora, convenhamos, dução da polifonia eom o canto enriquecido
viu-se cerceada pela esll'citeza do dogmatis- de várias vozes independentes umas das ou-
mo. A al'quitctUl;a floresceu, religiosamente, tras. Houve o nascimento da orquestração e
cm "preces de pedras", dirigidas para () céu; a harmonia conseguiu suplantar o velho sis-
a música arrastou-se, a princípio, em fOl'rna tema polifônico.
de eaniochão, que nada mais era do que a Em breve, já se via longe o tempo em
continuidade das antigas lamentações he- que os trovadores - especialmente os pro-
braicas. vençais - enchiam as estradas e os castelos
Acredito que haja muita gente capaz de medievais com as alegres canções sôbre os
se deleitar com aquêles cantus firmus, de feitos dos cruzados.
tom grave e de uma monotonia por vêzes A emancipação da consciência musical
fúnebre. Santo Agostinho, por exemplo, ver- profana do sentimento puramente religioso,
tia lágrimas ao ouvi-los e dizia que êles lem- operada por Palestrina, foi o ponto illicial da
bravam uma marcha lenta através do "vale expansão profunda que a primeira iria so-
de sombras da morte", e que faziam "des- frer, A Alemanha estava destinada a ser o
cer a verdade em sua alma". teatro dêsse desenvolvimento que iria cul-
Mas eu não sou Santo Agostinho; dai minar espetacularmente nas sinfonias de
não me deixar penetrar muito da beleza da- Beethoven. Na Itália e na França, a música
queles Te Dellln, de Ulll 1I1iserere ou de um continuaria a ser nitidamente distinguida em
.1f(((fllificat, formas de canto litúrgico jú de- duas categorias, a profana e a sacra, enqnan-

~ 74--
to !las terras centrais da Europa, sob a in- Com a ação de Lutero --- o esll'aI1Ílo
fluência luterana, ela iria apresentar-se com monge que tocava flauta, alaúde e compunha
um sentido construtor, onde os dois gêneros os seus hinos -- a música instalou-se supe-
estariam confundidos. riormente na Alemanha, que passou a exer-
Não resisto à tentação de transcrevel cer, desde então, indiscutível hegemonia ar-
aqui dois parágrafos de Schuré, em favO!' tística no velho continente.
desta afirmação. Transcrevo-os porque tenho Para positivar essa hegemonia basta :.t
a certeza de que não se poderia dizer de ou- citação dos nomes de Bach, conhecido como
tra forma o queêle sintetizou de maneira o "pai da música", Haendel, Pel'golesi, Haydn
tão edificante, nos seguintes períodos: e Mozart. O primeiro dêles, sobretudo, re-
"La musique l'eligieuse proprement dite, presenta o verdadeiro marco na história
revêt, par exemple, dans 1'0l'atOl'io de Haen- da música, que podia ser dividid~t em doi"
deI, un caractcre assez hUl11ain, assez univel'- longos períodos: antes e depois de Bach.
seI, pOUl' perdl'e tout cachet dogmatique et As culminâncias a que foi elevada h
c1érical. D'autre part la musique dite pro- arte musical nas produções daquele humilde
fane acquiert dans Beethoven tant de pro- organista de aldeia j amais foi atingida pOI'
fondeur, de puissance et de sérieux, qu'ellc nenhum outro compositor: a ohra de Bacl!,
atieint au sentiment religieux le pIus vaste, de puro sentido cósmico, impregnclll com
nous devoile dans ses del'llieres symphonies seu espírito os rUillOS da música de tO([05 os
une rêligion nouvelIe, à laquelle on ne sal!- tempos.
rait refuser le nom de réligion de l'buma- E' esta a verdadeira cO!lsagl'açüo Msle
nité !" gênio excepcional.

(]onceitos anáfoJos sô8re ouas artes


A MELHOH maneira de filosofar sôbre a mentalistas; podem ser sinté ticos ou exube-
arte, em geral, é ainda o velho sistema com- rantes de detalhes.
parativo ou analógico, se assim o quiserem. Partindo dos desenhos os pintores come-
Confesso que para mim ainda é o mais çam a trabalhar, enchendo-os de côrer;, en-
tentador, pois ninguém há de querer negar riquecendo-os de tonalidades mais ou menos
pontos de contacto ora evidentes, ora embu- vivas, consoante o temperamento de cada um.
çados, que emprestam às artes um mesmo A pintura realiza, pois, a harmonia cromá-
espírito de desenvolvimento e de expressão. tica.
E já que eu me sinto propenso a deixar aqui Na música o artista, em cima da melo-
pl.lulazinhas filosóficas, vejamos algumas dns dia, isto é, do desenho temático, desenvolve
similitudes existentes entre a música e a pin- seus recursos infinitos, enriquecendo-a de to-
tura. nalidades as mais estranhas, realizando uma
E' fácil comparar o desenho à melodia. peça harmónica, cuj a fórça de expressão es-
Esta representa, com efeito, o desenho temá- tará tamhém condicionada ao temperamento
tico inicial, que delineia os contornos do as- de cada um. Quando o sentimento do artista
sunto em traços secos, despidos de tonalida- faz dêle um insigne desenhista, as ohras lhe
des cromáticas. O que se passa com o·s dese- saem repassadas de encanto melódico insu-
nhistas, passa-se tamhém com os músicos: os perável; quando a paixão pela cor o domina,
traços podem ser executados com técnica êIe compõe aütênticas obras primas, na pin-
vigorosa ou repassados de devaneios senti- tura ou na hal'1l1onização.

-75 -
A musica religiosa, grave e solene, e bem
o reflexo daqueles paineis majestosos da pin-
lura nos afrescos das capelas góticas. O pe-
dodo romântico trouxe o mesmo espírito,
não só à musica e à pintura, como tambem
à literatura e à poesia. Tódas as artes, aliás,
seguiram sempre a par-e-passo, frutos do
clima social de cada época.
O movimento modernista confirma ainda
as mesmas assertivas; qualquer pessoa inte-
ressada no assunto poderá descobrir, .desde
logo, que a pintura modernista nada mais é
do que a musica atonaI.
Os mesmos anseios extravagantes, os
mesmos impulsos ilógicos e desvairados, as
mesmas distorsões alucinantes, estão impreg-
nando a música modernista e as telas surrca-
listas. Frutos, sem duvida, do período de de-
pressão cultural que a humanidade está vi-
vendo, a caminho de algum renascimento
que ninguém poderá dizer se será remoto
ou não, mas que virá, a despeito da reação
exercida pelos que pretendem dete-lo.

lTm dia, nos domínios da músieu, surgiu


a ópera.
n('t;thOH>I1, Em uma admir{lyc-'l úgua-forb: elo pintur O novo genero propunha-se reunir qua-
italiano AHl'€do J'drini Iro lllodalidades de arte: a música, a poesia,
Os impressionistas ~ e aqui está outro () teatro e a dansa.
cxemplo- quer nu pintlll'a (~Iallet, Henoil', Chegamos aqui a um pon to ao qual bem
Courbert" etc.), (Iuer na musica (Debussy, se poderia aplicar o adágio popular: !' Pau
Hieardo Strauss, etc.), pl'eocupadíssimos em que nasce torto, tarde ou nunca endireita".
dar "amhiente" ao que compunham, pel- Porque a ópera nasceu errada. :Nasceu
diam, bastas vezes, o contôrllo (ks desenhos nos salões aristoeráticos, como passatempo
iniciais, dissolvendo-os na harlllonia opulenta dispendioso e inexpressivo de cortezãos es-
de eôres ou de sons. tultos; deu seus primeiros vagidos nos am-
;\() periodo clássico fácil é notar a alW- bientes principescos da Itália (Flor~nça, Nú-
logia entre a música e a pintura, bem como poles, etc.) do século dezesseis.
na era romàntica. Ora, toda a gente sabe (ou tem ohriga-
Pode haver, por exemplo, maior seme- ção de saber): Arte que não se ampara nas
lhança do que a notada entre a arte rococó fontes expontâneas do povo, que não flui da
e os minuetos e pavanas'? Tocados, êstes lem- atmosfera nativa e fecunda das criações po-
hram inexoràvelmente a puerilidade m'isto- pulares, não é Arte, com inicial maiúscula.
crática do tempo das erinolinas e das festas A ópera está, decididamente, neste caso:
"campestres" . um genero aristocrático, feito para o encan-
Mozarte1:1oeherini produziam em mú- tamento de fidalgos, coisa aliás que ate hoje
sica justamente o que Boueher e Fragonard se observa nas clássicas temporadas líricas
cxecu tavam em pintura. dos atuais teatros de ópera, levadas à cena

- ir, ~
Cena de :'l\!anon Lef-icaut ", ópera que, constitui, até hoje, uma da~ grande.I.( Htl'aç;üe~ do teatro l!l'lco frallCéf::

para gaudio e deleite de determinada cama- Os madrigais, inicialmente apenas reci-


da social, a que poderemos chamar "aristo- tados, passaram a ser cantados, COll1lJostos
cracia d'argento", para várias vozes, a princípio sem acompa-
nhamento instrumental, l\Iais tardc, come-
Os espetáculos, que deviam ser dedi~'a­
çaram a meter-lhe, de vez em quando, HIlla
dos às massas menos favorecidas de posses
"canzouetta ", e não raro vinham figuras
monetárias (embora, às vêzes, lllais favore-
como a ~oite, o Sono, a Amora, cantar cer-
cidas pelo bom gàsto) são exclusividade dos
tas árias ao som do órgiio, elo davecino ou
"trezentos de Gedeão", em cada cidade,
da harpa,
Vej amos, porém, as origens da ópera, Não demorou llJuito a intromissão do
Nascida de um capricho senhorial, trou- "hallet", na ópera; desde então as tres artes
xe, desde logo, imperfeições comprometedo- passal'am a viver j UI1 tas, pois o elemento
ras para o gênero; artificial e de preten- dramático ainda nào se impuscl'a devida-
sioso "rafinement", não revelava a verda- mente,
deira alma popular, única que é capaz de A "comédia hal'lllOllica" gerou a ópel'a-
produzir uma arte viva, palpitante e eterna, comica, que pulou da Itália para os salões
Tais imperfeições são conservadas até hoje, franceses, vindo de Monteverde a Lully e
não obstante as numerosas belezas parciais Rameau, Passando a fronteira alpina ga-
de algumas delas, nhou a ópera um novo espírito -- o espírito
Arte de .diletantes e enfatuados, faculta gaules - embora nada mudasse em sua
em sua própria estruturação a mistura dos forma essencial,
mais vulgares artifícios com as mais altas Os compositores franceses impuseram-
aspirações artísticas, Convencionalissima, lhe. uma ação mais viva e mais natural, e
essa "mélange" do bom e do mau fixou, no sobretudo, uma orquestração mais inteligen-
entanto, a ópera como um mal necessário, te, além de períodos de declamação,
que teve seu berço nas tragédias on pasto- Era já· evidente a participação da arte
rais, COI1l acompanhamento de coros, teatral !la úpel'<l, Com os franceses, () novo

-- 77-
gCllero ganhou Cxpolltuneidude mais sillccrH zial11 delirar as platéias -- como acontece
c mais justa. ainda hoje - quando os tenores adiposos
Cheia de árias, recitativos e coros, não soltavam dós de peito arrazadores e as mons-
tardou a ópera em obscurecer os horizontes, truosas prima-donas, pesando cento e tantos
desencadeando verdadeira guerra' entre os quilos, tinham o desplante de afirmar ao pú-
adeptos da "italiana" e da ·'francêsa". A blico que estavam definhando, tuberculosas ...
coisa chegou a ponto do própriQ rei de Fran- A ópera, cujo cetro passara de Mozal'l
ça conservar-se fiel à ópera francê.sa, en- a Rossini, em quem a frivolidade atinge pa-
quanto a rainha, Maria Lesczynska, dava radoxalmente as raias do sublime, desdenha-
suas preferências aos espetúculos italianos. ya então a parte dramática com uma "sans
Havia até, llas platéis, cadeiras "do lado do façoll" admirável. Verdi enchia os teatros
rei" ou no "canto da rainha" ... com a "melodia pura" de suas. árias, seus
A guerra, porém, chegou a tenno e hou- quartetos, suas mas,;us corais. Era, de falo,
ve uma trégua, como acontece no fim de tó- melodia que não acabava mais. Em torno
das as guerras. dele formavam os fanáticos do "Rigoleto ",
Belicosos eram, no entanto, os lllusicis- da "Trayiata", do "Baile ele Máscaras" ou
tas; um novo inimigo entrava na arena: a da "Fôrça do Destino".
ópera alemã. Nessa época surgia, porém, na Alema-
Já em pleno domínio da música sinfó- nha, o espírito de Ricardo \V agner. Como o
nica, as terras teu tas apresentaram, certa advento de um mundo novo, a obra do ale-
vez, às côrtes européias, um novo composi- mão genial empolgou os musicistas e mllsi-
tor: Gluck. Vindo para a França, sob a pro- cólogos, estarrecendo os adeptos da música
teção de Maria Antonieta, logrou sucessos melódica. \Vagner fêz o drama musical im-
iniciais com Os seus trabalhos. pregnando-o de seu temperamento apaixo-
Gluck foi positivamente um inovador no nado, pleno de um idealismo raras Yêzes
gênero. Se Beethoven conseguiu dar ampli- atingido.
tudes incriyeis à linguagem universal da mú- Seu esfórço concentrou-se inteiramente
sica, Gluck iniciou um período de renasci- num único ponto: o drama. Tudo, em sua
mento musical, similar ao da pintura e es- obra, devia girar em torno de tal desígnio:
cultura. o cenário, a música, o texto poético, a inter-
As óperas de Gluck são a ressurreição pretação, etc. E tudo se realizou C0l110 ele
serena e olímpica da tragédia grega. Com mesmo previra.
extraordinário poder evocativo êle fêz sur- Em uma imagem - pitoresca, mas fri-
gir do abismo dos séculos os dramas tene- sante -- '\Vagner comparava a orquestra a
brosos de "Orfeu e Eurídice", de "Alceste", um cavalo e o drama ao cavaleiro. Na' ópe-
de "Armida" e ele "Ifigcnia em Tauris". A ra, freqüentemente, o cavaleiro corria atrás
essência imortal da alma helênica ali se en- do cavalo, ou vice-versa. Diante de tal fato,
contraya enriquecida e mais impressionante \Vagner procurou apenas estabilizar o caya-
porque vivia dentro de UIll mundo de har- leiro bem seguro sôbre a sela, pondo-lhe as
monia genial. rédeas na mão. Feito isso, declarou: "És li-
Gluck tentava isso tudo, porém, em ple- vre para ir onde quiseres; tua montada é
na côrte francesa de Maria Antonieta, onele fogosa e dócil: não deixes, porém, de guiá-
fervilhava a guerra inconseqüente dos adep- la nunca ... "
tos dêste ou daquele. Abalido, sem ânimo A luta entre wagneristas e verdistas foi
para se sobrepor aos embates da adversida- tremenda. Choveu pau a yaler. Muita gente
de, o compositor decidiu abandonar a lula. se bateu ardorosamente negando ou procla-
Retirou-se para Yiena, onde expirou. mando a "música do futuro". Hoj e sabemos
Mais Ullla vez vencera a Itália - "la que a arte musical não seguin bem aqueles
nostra Ilalia" - terra onde nascera a arte prognósticos. A ópera, tanto a alemã como
inexcedível do "bel canto", cujas óperas fa- a italiana ou a francêsa, entrou em declínio,

78 -
Compreendendo seu vkio de origem, já
houve quem tentasse integrá-la na sensibili-
dade do povo, vivendo os habitas e o am-
biente das camadas populares, De minha
parte confesso que a "Louise", de Charpen-
tier, trouxe-me ao espirita a ilusão de uma
estrada de novas possihilidades, dentro das
quais a ópera poderia redimir o seu passado
aristocrático, reivindicando uma poslçao
simpática e agradável no mundo social de
nossos dias, O drama de Zola está ali como
o verdadeiro, o autêntico drama musical,
sem falsos idealismos, sem mitologias inatin-
gíveis, exercendo sua função de colocar a
arte a serviço do povo.
E' o drama proletál'io pela primeira vez
tentado no mecanismo da ópera, vivido por
uma família humilde de trabalhadores, en-
tre as llIiséi'ias e os esplendores dos artistas
Richard Wagner, notável criador da "mllsica boêmios e das costmeiras de Paris, e ambi-
do futuro"."
entado com pujante superioridade pelas can-
ções folclóricas dos velhos pregões de lVIont-
especialmente no conceito dos que entendem
que a música tem sublimações diante das parnasse. !
quais o gênero operístico é um mundo de "Louise" é uma tentativa séria de tor-
banalidades. nar a ópera inteiramente democrática,

[Jenoéncias nacionafistas-oa música atua{


DEMOCHATA era, sem dúvida, o "lied", gê- e na Austria, muito mais do que em França
nero altamente expressivo, resultante do apro- ou na Itália,
veitamento do tema de canções populares, Foi a necessidade de apresentar condig-
Seu desenvolvimento ficou .ligado à invenção namente o novo gênero de canções que levou
do piano cuja expansão, por sua vez, acabou os instrumentistas ao aperfeiçoamento suces-
por torná-lo o mais popular dos instrumentos. sivo do cravo até à construção do piano-forte,
O "lied" de grande estilo passou a exer- ou mais resumidamente, do piano alnal.
cer influência marcante, Schubert, Schu- Acompanhando a princípio as canções popu-
mann e lVIendelssohn eram verdadeiros ar" lares e os "!ied", o novo instrumento não
tistas do povo, integrados nas aspirações e tardou a impor-se como solista, de-vez-que
nos anseios da gente humilde que arrastayu apresentava realmente características para tal.
uma vida vegetativa, em COll traste duro com Espalhou-se· então pelos salões a febre
Os ouropéis de lima aristocracia especuladora estranha do virtuosismo, Concomitantemen-
e balôfa. Em pleno expansionismo o "lird" te, ou como conseqüência, impus-se a criação
encontrou seu call1po pl'opkio na Alemanha da expressão pCl'sonalíssima. As salas de

79 -
C~"n<l ÚC .. I(!)\'a::L, ]:inn . (lt' ~\l()ll!-~:l)r;!·hki. 11m dn~; compOnl'l1t('~ (:0 fc:mos() "~;l'llP() c1o:-; ci:1co' r;'..:e rl2\'o1t!c:io-
11(:11 :1 mll!"ic~:t l'U;-:::-'êl 1 üri~'nt.::tnc1o-a
li\) ~l":;tid() 11adorw lbta

C011(;el'(O l'egol'gitên'am do quc havia de mais Outra di\'crgenLÍa de prinClplOs lllusi-


aristocrútico e mais elcgante llas córtes eu- Lais, estabeleeida nos séculos dezessete c de-
ropéias. O ambicnte perfumado pelas essên- ;wilo, foi a famosa rivalidade entre os adep-
cias raras assemcllJaya-sc às telas de Gains- los da "música lltll'a" e o;; da "música des-
borought ou FJ'agol!ard. As Labecinhas em- critiva" .
poadas, as Lal'inhas pontilhadas pelos tenta- ~ào houve louros de vitória para ne-

dores "gl'ains de heauté ", as LÍnturinhas de nhum dos contendores, COlUO, de resto, acon-
vespas e outras coisas mais, exibiam-se aci- tece, invariàvelmente nas pendências artis-
ticas. Os anlagonismos entre duas escolas
ma das largas saias l'odadas que gemiam
resultam sempre na imposição de uma ter-
soh o fru-fru dos tafetás e das sêdas do ori-
ceira, fruto de um estado mais adiantado do
ente. A um dado momento uma tempestade pensamento estético. Os contendores ocupam
de aplausos saudava a figura do virtuoso, a liça enquanto o ambiente social assim o
enfiado na austera casaca negra, o pescoço permita; com a evolução, porém, novas cor-
atufado em uma gola branca de rendas fi- rentes fazem a sua entrada arrazadora, rele-
níssimas. Cumprimentava, sentava-se, expe- gando ao passado as influências que incen-
rimentava negligentemente o teclado... c diavam o cérebro dos disputantes. E estes
iniciava o concerto. se aquietam "sem ódios nem rancores" ...
A música descritiva encontrou apoio va-
Os maiores "virtuosi" foram, sem duv,"
lioso de muitos artistas de valor, até mesmo
da, Paganini e Liszt; um no violino, genial-
de genios autênticos; encontrou e encontra
mente cabotino; outro no piano, genialmente
ainda hoje, tal como sucede com a musica
discreto. pura.
Liszl consagrou-se ainda C01:..10 um dos Qualquer delas vale, no entanto, pelo
cultores da criação personalíssima da musi- formalismo em que estão vazadas ou me-
ca, genero em que Chopin foi, por seu turno, lhor, pela intenção, bem difundida na época,
UlIl dos astros mais refulgentes. de fazer arte pela arte.

-- 80 -
Hoje em dia tal dogmatismo parece es-
tar virtualmente condenado, de-vez-que o
ambiente de socialização dos regimes, das
atividades e do próprio pensamento requer
muito mais do que isto. Procura-se hoje, nas
obras de arte, a essência e não a forma ape-
nas; o conteúdo e não a exteriorização. A
rebusca desse conteúdo conduz fatalmente o
artista às fontes populares. Isto explica, em
parte, o movimento atual da música nacio-
nalista, isto é, aquela que é inspirada única-
mente no folclore, no canto popular, nas
origens e no desenvolvimento de cada agru-
pamento racial. Dentro dêsse espírito estru-
tura-se uma nova "música do futuro", cujas
primeiras camadas ja foram sedimentadas
no período de transição que estamos vivendo,
assinalando-lhe o novo rumo, as novas dire-
trizes.
Mas, quais são essas diretrizes? Que es-
tranho rumo será êsse?
Não é muito simples responder a tais
quesitos. Mesmo que o fôsse, a resposta im-
plicaria em divagações, mais ou menos fas-
tidiosas.
Quem quer que se interesse pelos proble-
"Schubert" em uma tela magnifica do pintor Cesare Bacchl.
mas do desenvolvimento das artes, especial-
mente da música, nota, nos dias de hoje, a
tendência dos povos para criar, cada qual, a Hoj e, todavia, pouco tempo decorrido,
sua linguagem musical, ao contrário do' que podemos afirmar que ela já faz parte da mú-
muita gente boa entendia, isto é, que a mú- sica do passado. Erraram os profetas e isso
sica devia possuir apenas um espírito mais porque os imperativos de cada rasa começa-
ou menos análogo para tôdas as raças. ram a guiar seus artistas no rumo da nacio-
nalização da música.
Este consenso imperou durante séculos.
A coisa começou ai pelas alturas da me-
Os compositores - daqui ou da Ásia, da Eu-
tade do século dezoito. Não estará mesmo
ropa ou das Américas - sempre que tinham
muito longe da verdade quem afirmar ter
necessidade de dar à luz os frutos da sua
sido Chopin um dos primeiros compositores
arte, recolhiam-se às três maternidades que
que empreenderam o esfôrço renovador da
existiam então: a alemã, a italiana e a fran-
música, dirigindo-a no sentido das canções
cêsa.
nacionais. O genial polonês foi seguido de
Eram estas, com efeito, as três famosas perto por seus colegas russos. Surgiu logo
escolas universais. Tôda produção que não Miguel Glinka, que ficou conhecido como o
correspondesse a uma delas, não satisfazia, "pai da música russa".
positivamente. A alemã, com especialidade, Glinka andou, com efeito, rebuscando as
entrou, no último período, a exercer um des- fontes do cancioneiro russo, criando o movi-
potismo incrível com o wagnerismo, levando mento reacionário contra o condominio das
os que se batiam por 'Wagner ao cúmulo de escolas alemã, francêsa e italiana. A reação
afirmarem, enfàticamente, que sua música aliüiou adeptos. Em pouco tempo aparecia,
seria a "música do futuro". ainda na Rússia, o famosíssimo grupo' dos

- 81-
,,','cCillCO". Este grupo, que conseguiu dar à patriotislllo estéril. Sem o querer, ele:,; con-
'musica russa um caráter nacionalista irre- cedem maior soma de valores à sua pátria
dutível, era constituído por Balakirev, Cesar do que os chefes da demagogia artística que
Cui, Borodine, Rimsky-Korsakov e. Mussor- perambulam por todos os cantos do globo ...
gsky; este ultimo, com especialidade, foi, E' assim que surgem, não só na musica,
dentre os "Cinco", o que mais longe levou como também na pintura e nas demais artes,
as formas novas que criaram a música russa as escolas, isto é, as correntes que, à fôrça de
fora dos moldes emopeus. calcarem seus processos no cultivo das tradi-
A datal' do grupo dos "Cinco '0 a escola ções de um povo, acabam por se tornarem
russa espraiou-se pelo· llluudo, impondo-se intrinsecamente inerentes a este mesmo povo.
de forma indisfarçável. São fàcilmente reconhecíveis as escolas
O exemplo dos compositores eslavos foi pictóricas que floresceram nos Países Baixos,
compreendido e seguido nos demais paises e em Florença, na Alemanha, na Inglaterra, na
as chamadas escolas universais viram, desd.e Espanha, França, ete. E' fácil também dis-
então, decretada a falência de sel! pretenso tinguir, hoje em dia, a músiea russa, a alemã,
domínio. . a italiana, etc.
Em cada raça a musica começou a to- O folelore de cada região, próprio do
mar consciência da sua própria unidade. Os povo que a habita, tem quase sempre raízes
artistas perceberam - mesmo intintivamente seculares. A alma de uma raça sofre um
- que havia em cada povo um profundo processo evolutivo lento e se desenvolve atm-
sentimento de amor às suas tradições; digo
instintivamente, porque o fenômeno da per-
vés de mil e uma lendas, as quais vão for-
mando a riqueza de suas tradições.
I
I

eepç'ão artística independe de quaisquer ou- E' esse tesouro que constitui a base do
tros sentimentos dirigidos. Daí a estultice de
pretender alguém "dil'igir" o sentido das ar-
folclore; em quase todos os povos ele é opu-
lento, (nuns mais do que em outros, é claro). I
tes, em qualquer país. Elas florescem e se
afirmam, marcantes e inconfundíveis, alra-
vés da corrente de obras do passado e não
consoante a vontade de quem quer que sej a,
Nele a alma dos homens se deleita, fiel às
recordações da infància; são cantigas, len-
das, narrativas e fábulas, todo um acêrvo,
enfim, de gratas emoções, tudo peculiar ao
II
arvorado em criador da arte nacional. pOYO que o criou, e incompreensível, na

No momento da criação a arte não tem maior parte dos casos, pelos demais povos. r
pátria, não reconhece fronteiras. Já se viu
mesmo o esfàrço inútil, tentado neste sen-
Para que a alma popular de um deter-
minado grupo se torne entendida e amada
I
tido pelos finados regimes fascistas, onde a por outros agrupamentos humanos, faz~se
liberdade de pensar e de criar eram siste- mister que o artista - pintor, escritor, músi-
. màticamente anuladas, desde que não esti- co, etc. - tenha o dom supremo de o tra-
vessem em função de falsas patriotadas. Tais duzir em linguagem acessível a todos, isto é,
experiências políticas, de tão triste memória, em linguagem univcrsal. Ai é que está o
resultaram em Ullla noite escura para a ci- caso; nessa hora é que entra em cena a Arte,
ência e para a arte, em todos os países em a verdadeira Arte, com A maiuseulo.
que foram tentadas. O problema é mais comum entre os mú-
O movimento, que impele os músicos de sicos, pois que a musica é mais fàcilmente
hoje a beberem no folclore a inspiração no- sentida do que as artes plásticas. Quando
va, é um imperativo fatalístico do momento. um compositor consegue tórnar entendida
Os verdadeiros predestinados não fogem a pelo mundo a sua arte, calcada nos cantos
êle nem a êle se entregam, por querer; com- populares de seu país, então sim, podemos
preendem, apenas, a beleza que reside nas dizer que surgiu um ártista superior.
pesquisas e na adaptação do cancioneiro tra- Porque não basta a pintura de assuntos
dicional de seus países, sem subordinarem, regionais para que se diga que está firmada
contudo, ésse esfôrço a qualquer idéia de uma escola nova. Não. Também não basta

- 82 ~
a reprodlH;ão de calltos populares para que
se afirme a existência de uma e,seola de mú-
sica nacional.
"Se o musico, como acontece geralmen-
te, vaza a matéria original na forma usada
pelos tempos,sossobra no· academismo mo-
nótono e na escolástica asfixiante. As formas
tl'Udiciouais devem apresentar-lhe, não um
Illodêlo, mas um método: a, êle cahe criar
formas, não forçosamente novas de todo,
lllas estl'itam'ente adaptadas ,à matéria. Esta
licão, dá-a hoje a todos, um músico de gblio,
el;lbebido de arte popular, um criador que
domina do alto toda a música contemporâ-
nea: Stravinsky".
Estas palavras !ião de André Coemoy,
nitico francês e apaixonado exaltado do
grande composi tor russo. Elas traduzem me-
lhormente a justeza das considerações já
feitas.
Como Stravinsky, isto é, dentro do mes-
mo critério de composição, há em nossos
<lias uma llUmel'Oga plêiade de musicos que,
inspirando-se llas tradições da música fol- U111a caricatura de Stravinsky, traçada enl 1.1m programa
de concêrto, em Nova York
clórica ele seus povos, produzem peças imor-
tais para a música universal. Mercê dessas
trecho, capaz de dar mais realce às minhas
circunstâncias, ouvimos hoj e Stravinsky e
ponderações. Ei-Io:
somos capazes de compreender muita coisa,
"Sempre será muito dificil averiguar se
que existe de russo dentro de' sua música.
é o artista que cria a atmosfera nacional ou
O mesmo se dá com o alemão Schoem-
se é esta que faz aquele. As canções negras
herg, com o italiano Russolo, e mais ainda
americanas foram escritas por um branco:
com PedreI, Honneger, De Falla, Ravel, etc.
Estevão Foster. O que chamamos música ha-
Outra coisa interessante a assinalar é waiana provém, na verdade, dum diretol' de
que, para sentir e interpretar os temas popu- banda prussiano. De ol'dinário, associamo.,;
lares de qualquer povo, não ~ eO~ldição indis- "Carmen" e "Bolero" ao que pode haver de
pensável pertencer o al'tista a ,ê~se mesmo máis tlliicamente espanhol; todavia Bizet e
povo. Os exemplos, ao longo dà;l~i~JQ,t.ia_:da Ravel eram franceses. Os melhores tangos
música, ai cstão, bem fris:ãnfes e ]jhli .nütó-: não foram escritos pelos argentinos, mas pe-
rios. los a'iemães; e Dvorak, um tcheco, escreveu
..
O artista é o tipo mais adaptável a qual-
quer clima espiritual, dadas as suas faculda-
a mais notória das sinfonias puramente ame-
ricanas. "
des cósmicas e, portanto, não subordinado a E, prosseguindo, afirma, um pouco adi-
marcos fronteiriços de espécie alguma. Desde ante:
que êle sinta e penetre fundamcnte no âmago "Seja como for, na "música nacional"
do espírito· de um povo, tOl'lla-se-Ihe fácil a dêstes últimos cem anos há traços incontes-
tarefa de traduzir o que êsse povo canta, na táveis da atmosfera do país a que ela per-
linguagem universal da música elevada. tence. Tchaikowsky não descreve o "veldt"
Não resisto à tentação de chamar Van africano nem a pradaria do Kansas e sim
Loon em meu auxílio, transcrevendo-lhe um as intenninúveis estepes russas. O mesmo é
lícito dizer da música de Borodine, de Mous- Já é tempo de colocar aqui um ponlo
sorgsky e de Rimsky-Korsakoff. Os próprios final, nesse desenrolar de divagações através
da história da música universal.
compositores modernos, como Scriabine e
Não sei bem se havia realmente necessi-
Strawinsky têm, nas suas obras, alguma coisa
dade de tal dissertação, antes de percorrer·
que vos obriga a exclamar: "Isto, sem dú- mos as etapas por que passou a música no
vida, é russo!" sem que possais saber porquê. Brasil, desde os tempos obst:liro~: da Pindo-
Outros, como Raçhmaninow e Cesar Cui, rama até os nossos dias.
apresentam, nas suas músicas, elementos Entendo, de mim para mim, que, uma
mais ocidentais do que russos; todavia ne- vista prévia sôbre o conjunto, poderia servir
para melhor ambientar o leitor no exame dos
nhum dêles consegue subtrair-se ao pátrio
detalhes. Como não se deve dÜisociar a his-
fundo eslavo".
tória de um povo - de qualquer setor que'
Não falta quem diga que Tchaikowsky é ela seja encarada - da história do mundo,
"músico italiano". Não comungo nesta opi- sinto-me à vontade paea fazer as considera-
ções acima, justificando-as ainda com o de-
nião. Como Van Loon, não vejo nenhum
sejo que impele o individuo de dar à língua,
musicista peninsular cuj as produções tenham
sempre que entram em debate temas acêrca
o espírito das do mestre de "1812". Pelo
de problemas de arte, em geral. Há a consi-
contrário. Sua música - embora com o
tlerar, de resto, que, no número dos meus
aproveitamento de alguns temas italianos - prováveis leitorel:;, talvez haja algum alheio
é, para mim, intrinsecamente russa, pois não a tais questões. Se não houver êsse alguém,
foge aos imperativos que sempre dominaram então poderei afirmar que perdi () meu latim.
e nortearam a música da pátria do socia- Agora, passemos à História da Música
lismo. Brasileira.

- 84-
I

F\ MUSICF\ NO-- E>~F\Sll


. B
'~Çf{ór amorosa oe três raças tTlstes ...

o Brasil selvagem, dos tem- intervalos e a extensão extremamente res-


pos précabralinos, quando trita da voz. caracteristic-a que se atenua ao
as tribos indígenas perva- contacto de OutllOS estados culturais, mais:
gavam isoladas pela ter- adiantados. Originàriamente, porém, os acen..,
ra virgem, os can!os de tos monótonos das canções bárbaras são de
guerra, monótonos e gra- uma tristeza, de uma melancolia extrema.
ves, contrastavam estranhamente com a or- As tribos autóctones do Brasil não fugi~
questração matinal da passarada, no alto das ram à regra. Seu caráter dominante é o
ramarias. Canários e arapongas, saraeuras e queixume doloroso, aniquilante, que lhe vi-
eoleiros, siriemas, araras, maracanãs e bem- nha provàvelmente da exuberância ciclópica
te-vis, tóda t1mü fauna incrivel de tenores, da natureza. O homem sentia-se pequenino,
baixos e. sopranos, enchia os ares com uma sufocado sob o pêso de tantas coisas gigan-
atordoante algaravia, como que a compensar tescas: diminuía, tornava-se minúsculo, de-
os parcos recursos melódicos dos homens ves- sanimado e triste, entregando-se, sem reações
tidos de tanga e de penas que se movimen- inúteis, ao domínio avassalador do ambiente.
tavam em baixo. Não era atóa que o poeta
Ninguém poderá negar a tristeza que
iria mais tarde, cantar no exílio:
flui do canto e da música dos nossos indí-
genas. f:sse caráter foi superiormente sen-
"Minha terra tem palmeiras
tido pelo príncipe dos nossos poetas, em seu
Onde canta o sabiá;
formosíssimo soneto sôbre a Música Brasi-
As aves que aqui gorjeiam
leira. E' mesmo difícil falar em tal assunto
Não gorjeiam como lá".
sem que nos venham à mente os indefectíveis
catorze versos do mestre da poesia parnasia-
E não gorjeavam mesmo. na no Brasil.
Quanto ao elemento humano, êsse, mal Há certas definições que ficam tão arrai-
podia comprazer-se na imitação de lueia dú- gadas aos temas, que se torna quase impos-
zia de pássaros. E' sabido que uma das ca- sível discorrer sôbre êstes sem a citação da-
racterísticas mais chocantes do canto dos quelas. O soneto de Bilac está nesse caso.
selvagens é a ausência quase absoluta dos Além da síntese admirável que êle repl'esen-

- 85-
Nossos indigenas são, como já vimos, de
',uma tristcza inata, dessa.- tristeza de povo
, inf:rim,~st.agna·d() ~l~\ ~'n~ pr6gre,ssã'Q ~o­
,1utIva, abúhco e amqUIlado pela n'Lol1strno-
'sfdade de uma natureza gigaritesea, 'brutal,
n:rrasadúrà.
Incapaz de reagir contra as condições
naturais, renuncia à luta, contentando-se em
perumbular pelo intrincado da porfia vegc-
tal, em trabalhos de ca~a e de guerra.
Que espécie de música poderia espel'ar-
se dessa gente? Nenhuma, a não ser os rit-
mos bárbaros dos cantos guerreiros ou das
dansas em volta das tabas, para a celebração
de cerimônias religiosas. Eram nestas que
estrugiam os chocalhos c os' guizos, amarra-
dos aos tornozelos, enquanto sacolejavam os
maracás replctos de seixos. Os bastões dc
ritmo, por sua vez, marcavam o compassar
monótono da cantilena, ao passo que estri-
dulaval11 no .ar os sons agudos das tromhetas
de Jurupari, casados ao buzinar de conchas,
de flautas nasais, de pios e, assovios.
Mesmo assim, essa música saía estranha-
mente nostálgica, dado o caráter itinerante
das ti'ibos, que erravam por êsse mundo in-
findável de nosso "hinterland", cujas regiões
incHo coroado soprando a buzina en1 ,; Hinal de COlnbate"
tão difel'en tes provocavam o gôsto amargo
- Desenho de DelJret - das saudades.

la dos eleillentos <Iue tonlrihuiralll l)ara a


~dificação do nosso mUlH!o de ritmos e sons; Veio depois o português.
além da definição do espírito, intrinsecamen- Povo sem fortes caraclerísticas definido-
te melancolico, que paira sóbre nossa música, ras de arle elevada, de vez que tanto a pin-
há nele, ainda, a beleza lírica dos dccassíla- tura como a música c a poesia são meros
resultan tes das mesmas modalidades espa-
bos, tidos, justamente, como dos melhores
nholas, foi êle, 110 entallto, o veículo que
f{lle sua lira produziu,
trouxe para cú a contribuição--esi;'~üural da
O cantor da "ia-Lactea foi, realmente, músic:a, isto é, os elementos capazes de fun-
de fclicidade espantosa ao fixar o caráter da damentar as transformações, a fusão e a se-
"flor amorosa de tres raças tristes". leção dos ritmos c mclodias dispares elas
E' a tristeza, de fato, a nota dominante dcmais raças.
em tudo o que se tem composto em pautas N a época em que o Brasil começou a so-
hrasileiras. Desde os cantos populares até à Íl'er--ã colonização lusa, Portugal se encon-'
música mais erudi ta sentem-se, cm nossas trava em período de lamcntavel decadência"
melodias, os acordes que "são desejos e or- A IilOral e os costumes, as tradições e o pen:
fandades, nostalgias e paixões", embora, 35 samento artistico c científico apresentavam
vêzes, se denuncie nelas "o fógo soberano sinais evidcntes de corrupção e cOllseqüente
do amor" cm "requcbros e encantos de im- decomposição. O que a Côrte mandou para
pureza ... " a nova colônia, inicialmenle, foi a escória, o

I)fi --
rehutalho, os.. detritos delUwL~9cied?çl~_já '"
sem elevação de princípios, rebaixada às
condições mais lamentaveis a que pode che-
gar a grei humana. O Brasil começou mal c
isto não é segredo para ninguém. "Asilo,
coúto e 11omís10 de criminosos e degl'egados"i
consoante memórias de historiadores.
Esta gente deixava, porem, as patrias
terràs~--iraiêii(fo'o arc:abouço do peito cheio
das saudades de suas aldeias, de. set~sparen­
tes, do clima e do ar nataf que iam ficando
paraÚ,as. Era a nostalgia-tle~ (WC 110s fala'
Bilac, aliadá à tristeza do ocea~lo.,
Sentimentalíssimo, morbidam€úte evoca~
tivo; o luso. - como acontece até hoje com o
iú1igrante do "jardim da Europa" - assim
que se encontrava longe da terra, vogando
sôbre os mares, entrava a extravazar a sau-
dade, aquela terrível e arrazadora saudade,
de cuj a definição só êle guarda o segrêdo.
Cahe aqui um episódio, que eu não ga-
ranto se é lendario ou não, capaz de ilustrar
o que estou a dizer. Certa vez, quando a
armada de D. Sebastii'io se dirigia no rumo
d'Ãfriea, para a batalha desastrosa de Alca- "Costumes de São Paulo", em um desenho de Rugenc1aH,
CeI' Kibil', contra os mouros, el-rei mandou onde ~e vê a yelha guitarra ibérica.

que viesse à sua presença, no barco capitâ-


nia, o almoxarife da frota: naturais da tena .i un tau-se a tristeza dos des,
- Tenho conhecimento, disse êle, de que terrados ...
nos porões das naus trazeis cêrca de mil gui-
turras! Como se explica isso?
- Saiba vossa majestade - retrucou, Veio depois o negro.
todo curvado, o aulico -- que, dez mil que Caçado a elavinote ou a laço nos desel"
fossem, não seriam bastantes para abafar a tos ou nas florestas da orla oddental da
saudade dos portugueses que viajam na ar- Afdea, seguia o novo imigrante, nos porões
mada ... dos navios negreiros, para terras de Santa
Eram assim, realmente, os nostálgicos Cruz.
lusos:---Pocle=s-e---ilúagíúar'com facilidade o A primeira nau que cruzou o oceano,
estado em q\le essa pO])l'e gente desembar- trazendo em seu bójo a carga sinistra de
cava em terras da colônia'. carne humana, inaugurou, sem dúvida, a era
Os recalques a que eram obrigados, no mais triste, mais degradante, e que mais elo-
esforço de abafar a onda de saudade, vi- qüentemente depõe contra o espírito de lm-
nham à tona tôda a v~z que se dispunham manidade de que ha mel1lt1l'ia na história do
a cantar, acompanhados pelo tanger melan- I1lUlHlo!
tólico das guitarras. E as trovas saiam tris- O longo martirológio que os negros su-
tes "como a tristeza ossiânica do mar ... " portaram, servindo de pasto aos delírios
, O Fado, a Moda c o Acalanto. eram en- despóticos e ganancíosos dos gual'oiães e de-
, toados como verdadeiras lamúrias, cantos de fensores da tão pl'odamada "civilização cris-
marujos desterrados, ritmados pelos soluços lã ", é a mais vergonhosa exemplificação' do
dos instrnmentos de cordas; ii tristeza dos "homo hominus 11lpllS ... "

87 --
'rran~porte de uma leva de uegTos, seg'undo un1 desenho de Rugendas

Jogados aos lôbregos tumbeiros flutuan- trata de exercer a opressão de uns pelos
tes, amontoados como postas de carne viva outros.
no fundo úmido e malsão dos porões infec- Ap6s o trabalho exaustivo nos canaviais
tos, mesmo ali, os sentimentos de dôr e de ou nos engenhos, recolhidos às senzalas, só
isolamento irremediável explodiam nos can- então é que os infelizes tinham uma vaga
tos nativos, entoados entre soluços como a ilusão de liberdade. Sôltos nos terreiros, ba-
descarga insopitável de recalcamentos pro- tidos pela luz macia dos luares nordestinos,
fundos. Era a nostalgia, a "tristeza dos de- a cainçalha humana reunia-se, em "volta' de
sertos", das palmeiras balouçando às brisas círculo", para o desabafo necessário ao su-
do Atlântico, cujos espiques brotavam à portamento de uma vida agoniada e estúpida.
porta das choças, alongando-se para o céu Começava a batucada. Batendo com vigor
como símbolos da liberdade. nas peles esticadas dos tambores de jongo,
Chegados às novas plagas, vendidos se- dos bombos, dos atabaques e dos pandeiros,
paradamente ou em lotes nos mercados dos tangendo os uricungos, as sansas e as ma-
brancos, onde pontificava uma fidalguia de-
rimbas, ou estrepitando as campaínhas e os
genel'adora e um clero lllal intencionado, os
chocalhos de cacimbas, a malta se esfalfava,
pobres coitados eram en treglles aos novos
cantando e sambando, em requebros impro-
senhores. Iam para as fazendas e para os
vizados, sob a claque das palmas.
engenhos.
Esperava-os ali a série inquisitorial de Eram maracatus, candomblés, os côcos
castigos, cada qual mais bárbaro, represen- de Zambê e os cateretês infernais. Um cheiro
tados pelos troncos, pelas gargalheiras, os acre de suor tresandava, enchendo o ar de
"anjinhos ", os chicotes de rabo de tatu, por um odor ahniscarado, insuportáyel; mas, em
tôdas as invenções diabólicas que sempre que pese a movimentação excessiva e a gri-
brotam do cérehro dos homens, ([uando se taria viva dos eirellllstnntes, o espetáculo .-

--- 88 -
"Dansa dos Purús '\ em 1lnl desenho de Rugendas

vestia-se de uma impressão dolorosamente Não resta dúvida de que, à tristeza con-
triste e acabrunhadora. gênita do índio e do branco, veio juntar-se
também a tristeza do africano.
Os gritos roucos que saíam dos peitos
opressos eram gritos de revolta impotente, Outras influências, além das do índio, do
de nostalgia insopitavel, de pungir acerb.o, português e do negro, concorreram para a
gritos que outrora explodiam livres, nos de- formação do que se pode classificar, hoje em
sertos arenosos do continente negro. Eram dia, como música brasileira. E' evidente que,
vozes d' África ... tanto os espanhóis quanto os franceses e ho-
landeses, contribuíram para impregnar de
O acento de profunda tristeza estava ir- acentos estranhos as nossas melodias, reali-
remediàvelmente revelado naquelas canções zando o que é chamado, nem sempre a pro-
de senzala, impregnado das cIndas, das toa- pósito, de sincretismo musical.
das dos enge"nhos, durante a moagem da
A contribuição espanhola, essa é, sem
cana, nas invocações fetichistas a Egun, Exu
dúvida, de largas proporções, especialmente
e outros que tais, nos doces acalantos das
se atentarmos no fato de ter a civilização da
mães-pretas, embalando tanto o seu rebento
pátria de Cel:vantes dominado inteiramente
como o do senhor branco, ou nos bailados e a dos lusos, na estreita faixa que êstes ocupa-
nas ccrimônias rituais. vam, ii horda do Atlântico.
E' sabido que tódas as manifestações do dos pilHas calçados a lajes quadradas, as
espirito lusitano são derivantes do outro, gelósias, os famosos "mucharabiehs", as co-
muito mais considerável, a que se conven- lunas de "pau torcido", tudo, enfim, está a
cionou chamar de ibérico. Tanto as artes assinalar os motivos mosárabes, superior-
plásticas como a música, a poesia e a litera- mente aproveitados e empregados pela ex-
tura portuguesas, j amais conseguiram trair pressiva iniciativa artística dos espanhóis.
o cunho andaluz, mourisco-nioudej ar, caste- A pintura portuguesa, essa então eviden-
lhano, catalão, etc., de que se acham pene- cia a influência da técnica e dos processos
tradas, realizando um esfórço de plena eman- oriundos das escolas de Yelasquez, de Goia
cipação. e de Sorola.
Não estará fora de propósito quem afir- A música lusa, por SUa vez, não poderia
mar que a arte e o pensamento das terras de furtar-se ao cal'áter dominador do cunho es-
Afonso HenriqtJes sempre foram subsidiárias panholante que avassalava a península. Vê-
da arte e do pensamento espanhol; êste, por se isto nos próprios instrumentos, dos quais
sua vez, sofreu influências diversas, sendo a nenhum é tipicamente português: a guitarra,
de maiOl' monta a que lhe veio das tribos a gaita, a "harmônica" são intrinsecamente
úl'abes, durante a longa ocupaçúo da penín- espanholas.
sula pelos povos semitas da Africa.
Foi, portanto, de iniludívelcm'ater espa-
Sucede, porém, que o espanhol, possui-
nhol a contribuição que os portuguêses trou-
dor de fortes características raciais, dentro
xeram para a nossa música. Quanto às in-
das quais tudo se funde e se dilui, processou
fluências italiana e francêsa, é sabido que. a
com facilidade a assimilação, a transforma-
primeira conseguiu penetração bem mais sen-
ção e a seleção dos motivos árabes, no ex-
sível do que a segunda. Foi no século deze-
tenso cadinho da sensibilidade ibérica. Como
nove, especialmente, que a música da penín-
resultado impôs-se, (embora conservando o
sula itálica exerceu certo primado sôbre a
fundo lllosárabe), a arte espanhola, marcan-
inspiração dos nossos compositores, através
temente decisiva em muitos outros povos e
~....f..a.l11osas canções napolitanas.
no caráter estético da arte músical.
A influência francêsa é notada, sobretudo,
Portugal, êsse então, tornou-se um au-
em cánticos religiosos e cantigas de rodas in-
têntico seno espiritual, dominado avassala-
fantis, sendo justo assinalar, nessas últimas,
doramente pela Espanha. Trasladando-se
uma outra contribuição: a holandesa.
para o novo mundo, onde ida exercer a co-
lonização, trouxe para o mesmo a imposição Ainda C0l110 influência européia, certas
dos motivos que lhe era feita na metrópole. músicas de dansa, tais como a \Valtz, a Pol-
A al'quitetura, por exemplo, dentro de ka, a Mazurka e a Schottische coneorreram
suas linhas rígidas de barroco jesuítico, quer também para a disseminação de novos ele-
em templos, quer em construções residen- mentos que se infiltraram e se impuseram à
ciais, deixa patellte-~, - atraycs de seus or- inspiração de nossos lllusicistas .•
natos, seus frisos, seus pá tios e seus muros Já no século atual nova contribuição de
de azulejos, - as impressões inapagaveis yulto tem sido a da música norte-aIllericaua;'
da arquitetura espanhola. cuj a influência elo jazz, em nossas ;,otííí;'osi-
As fontes nos Utrios, os bancos coloniais ções, quer populares quer semi-ely<tltas, deve
de ladrilhos col(.K\90,S, as plSCIllas no centro \ ser reconhecida, sem sofisl~~~
'-.--"~.-\ /""
/'
/'

que pooem ter a&un;/a utifioaoe


Q['A~J)O se faz -;etereneia à musica "semi-
C'rudita", ó óbvio que se trata de tuna gra-
daç[lO existente entre a música popular, pro-
priamente dita, e a alta expressão de música
".
90 -
artística ou ampiamente erudita. E' o que se sim, a extrema variedade de aspectos que ás
chama vulgarmente de peç'as urbanas, peças mesmas apresentam, dada a extensão terri-
que traem iniludivelmente certo cunho in- torial de nossa pátria e, conseqüentemente, a
dustrial. diversidade de agrupamentos étnicos.
O canto do povo, êsse, é intrinsecamente As canções do nordeste, por exemplo,
rural: cantigas de roda, desafios, pregões e guardam Ulll caráter próprio, profundamen-
~alllbas. São frutos que brotam, espontânea- te diferente do espírito inerente às canções
mente, nas ruas, nos morros, nos campos ou sulinas. Mesmo de Estado para Estado, essa
nos sertões. Alguém cria essas melodias pri- diferença se acentua de forma iniludível. Os
mitivas, sem nenhuma preocupação de' téc- sambas que descem dos morros cariocas cm
nica ou escola, seguindo, ltnicamente, o im- nada se assemelham üs modas caipiras de
pulso iresistível que flui ela alma dos can- São Panlo ou às valsiilhas sertanejas do in-
tores. E' o povo que canta, compondo 111a- tel'Íor mineiro.
quinahnente os tipos embrionários daquilo Em nossas estações de rádio ollvem-se\
que terá mais tarde linguagem universal, diàriamcnte canções populares calcadas sô-
mercê do aproveitamento dos temas pela bre temas folclóricos de uma diversidade
expressão musical artística. incrível. Desde as da Amazônia, recheadas
Êsse canto do povo é, de forma geral, de de lendas regionais, como a "Cobra-grande",
acen tuada tristeza. Especialmente no Brasil, a "Jara" e o "Saci-Pererê", ao longo do rio
onde - como já vimos - as camadas ínfi- gigantesco, até as apimentadas batucadas
mas da sociedade sempre foram vítimas da baianas ou os lamentos nostálgicos dos pes-
opressão, do menosprêzo e da tirania das cadores e .i angadeiros dos verdes mares bra-
chamadas elites, fato que, infelizmente, até vios; desde as emboladas e os CclCOS ritma-
hoj e pode ser proclamado. dos do nordeste, até a arrogància espanho-
Ora, antes de atingir seu grau superior, lada dos cantares dos pagos sulinos; desde o
isto é, de notável elevação artística, os can- frêmito estrepitoso do frêvo pernambucano
tos populares passam pela gradação da cha- até. á moleza dolente do samba "tirado" nos
mada música urbana; uas cidades, os temas barracos de fôlha, pendurados à beira dos
genuinamente populares sofrem, não há dú- pl'ecipicios dos morros cariocas.
vida, processos seletivos que, em muitos ca-
sos, trazem vantagens e noutras não.
O aproveitamento das cantigas ingênuas
e despretensiosas das populações rurais, ao
passar pelo cri \'0 dos folcloristas das cidades,
perdem, nüo raro, suas qualidades inatas,
seu sabor primitivo e agreste, corrompendo-
se, ell,l suma, ao contato de um artificialismo
inoperante. Presidem-nas, a maior parte das
vêzes, tend2ncias industl'ialistas, indisfarçà-
yeImente fixadas.
De outras feitas, porém, dá-se o contrá-
rio: os temas sâo enriquecidos, bem aprovei-
tados e passam a constituir páginas encanta-
doras de música semi-erudita. Tudo depen-
de, é daro, do lrabalho, das intenções ou das
cIualidades técnicas dos musicistas.
No panorama da música brasileira é
mesmo numerosa.a lista de composições, em
pura "versüo urbana" dignas do aprêço e da
atenção dos musicólogos. E' de notar, oull'os- l\Ii'trio de Andrade, em um esplêndida
tra~"1(10 de Cândido POl'tinari

- (l1 --
o Brasil é um ycrdadC'lro laboiciro, uni A civllização brasileira operou-se intei-
autentico mosaico de ritmos c melodias, de- ramente dentro deste critério: Deus, o amor
nunciadores, todos êles, do caráte.r e da sen- e a nacionalidade. A princípio era a fé. A
sibilidade de cada grupo regional. Cada um colônia viu-se, logo no início, prêsa fácil da
dêles reflete ainda os processos que, através religiosidade. O espírito jesuítico impregnou-
dos anos, operaram no sentido da deforma- se em todo o sistema de nossa colonização:
ção ou corrupção das formas primitivas, pro- na arquitetura, na pintura, nas letras, na es-
cessos originários, não só do famoso triângulo cultura, na música incipiente. O incenso mís-
indo-afro-Iuso, como também de outras fon- tico penetrava solerte na organização feuda-
tes, tais como italianos, germanos, poloneses, lesca, nos hábitos e na vida em comum, nas
sírios, judeus, etc. E' verdade que a música cidades e nos campos, nos templos e nos'
trazida por êstes povos,' mercê de processos palácios.
\ '.
.. i..' sincl'éticos; foi aqui absorvida, resultando em Os primeiros artistas> plásticos eram san-
.''''' /
" novas modalidades a que hoje já podemos teiros ou esculpiam para a igreja; os pinto-
chamar "nacionais". Alteradas em sua es- res decoravam apenas os tetos e as paredes
sencia, as árias européias perocram sua 111- dos conventos e capelas; a poesia cantava as
flexão primitiva, transformando-se inteira- delícias celestiais e o reino de Deus; a mú-
mente, graças à diluição sofrida ao contacto sica, finalmente, de cm·áter exclusivamente
dos temas nacionais. "litúrgico" era composta e impingida como
A valsa hrasileira, por exemplo, lembra elemento de socialização dos primitivos ha-
fracamente sua ancestral, a vienense. O "Miu- bitantes. O trabalho de catequese impelia os
dinho", que veio da polka européia e nossa jesuítas a submeterem os selvagens pela su-
"Marchinha" carnavalesca, que teve por pro- gestão melódica.
tótipo a famosa marcha do velho mundo, Não era atôa que o padre Manuel da
servem como exemplos de nacionalização. N óbrega considerava com justa sinceridade:
Tôdas essas dansas representam, portan- "Com a música e a harmonia comprometo-
to, variantes sensíveis, com caráter estrita- me a trazer a mim todos os indígenas da
mente regionais e, de um modo geral, brasi- América" .
leiras cm sua forma.
Mas mesmo nesse tempo, em i1leno alvo-
recer do Brasil, já. o sincretismo musical co-
meçava a apresentar seus primeiros efeitos.
As litanias contidas nos autos jesuíticos co-
E' insubstituível a definição que Mário meçaram, desde logo, a absorver cantos e
de Andrade deu a respeito das fases por que dansas ameríndias, sofrendo até a intromis-
passou a música brasileira, em seu penoso são de palavras indígenas.
<l esenvol v j 111 en to . O conheci do musicólogo,
Êsse esfôrço dos missionários da Igrej a
ardente defensor da cultura nativista, esta-
tendia a substituir as cT,enças primitivistas
beleceu uma lógica - sob o ponto de vista
dos indígenas por outras importadas, onde,
social - na seqüência da evolução da nossa
segundo consideração de Mário de Andrade,
música. Resume-a em tres fases: primeiro
"o Deus de baixo, o Deus popular que dava
Deus, em seguida o amor e, finalmente, a
colheitas, protegia nas guerras e igualava
nacionalidade.
nllsticamente o agrupamento, fàra substituí-
Acredito que ninguém poden\. fugir a tal do por outro, igualzinho ao primeiro na apa-
classificação, principalmente os que se em- rência, mas com outros princípios: um Deufl
brenham a fundo no estudo dos processos singularmente escravocrata, que repudiava a
cyolntivos da músiea em nosso país. escravização do índio mas consentia na do
Essas três fases correspondem, aliás, a negro, um Deus gostoso, triunfal, cheio de
outras tantas históricas, caracteristicamente enfeites barrocos e francamente favorúvel no
distilltas. regime latifundiúrio".

82 -
Dansando aos pares. (Tribo dos Guaicurús)

Esse Deus ficou até hoj e firme e inamo- o senhor dom Pedro, lúbrico soberano, ar-
ví)lel na mentalidade obscura das nossas po- ruaçando pelas bodegas por alllor das "brasi-
pulações rurais, mercê da exploração da leiras quentes e sensuais" até os últimos re-
ignorância, cuja manutenção corresponde aos presentantes plebeus, desenvoltos e desabri-
desígnios da padraria ávida e dos latifundia- dos em suas conquistas, todos sofriam o in-
ristas vorazes. fluxo de uma época em que havia, positiva-
mente, o predomínio das coisas impúdicas e
das atitudes proibidas ...
Veio depoís o amor ... As artes deveriam llecessàriamente re-
Uma vez desaparecida a necessidade de fletir êsse ambiente de inquietação dos sen-
acalmar o nativo, com a imposição da arte tidos. Os palácios da nohreza e os palacetes
religiosa, novas modalidades começaram a dos cortesãos passaram a merecer decorações
repontar, sujeitas em. sua maioria aos im- sôbre motivos greco-romanos, como o da
pulsos da sexualidade. marquesa de Santos e muitos outros.
Tanto a pintura como a escultura e a Ninfas, ddades e hamadríades exibiam
música iniciaram suas feições profanas. nos tetos e salões o esplendor de suas carnes
Nos tempos do primeiro império o amor nuas, ao lado das apolíneas atitudes dos ga-
campeava sôlto, dominando os costumes e lãs helenicos. As Ccres, as POlllonas, as Flo-
dando oportunidade a novas arremetidas ras e ontros mcmbl'os da família dos semi-
<la imaginação e da criação artísticas. Desde dcuses gregos surgiam pelos jardins, nos pú-

- 93-
II

Dansa nativa elos Borôros

tios dos edifícios, trepados no alto dos te- Imperial de Ópera, fixou-se como profícuo
lhados. organizador, coordenando a prática musical
A música não poderia fugir, iJol' seu tur- em sua expressão mais el'udi ta; o segundo
no, ao sopro renovador da sensualidade am- realizou a "sintese profana ele toda a ~ri­
biente, e nela a tendência profanesca firlllou meira fase estética da nossa música".
também seu domínio. Nos salões cantavam- Pura consagração dos métodos italiunis-
se lundus e modinhas amorosas, manifesta- tas, suas óperas "Joana de Flandres", "Noite
ções semi-eruditas da música popular. no Castelo", o "Guarani", o "Schiavo", etc.,
Nas letras contavam-se histórias de amor são poemas de amor, infelizes ou não, cuj a
dramaticidade revela nitidamente o "undel'-
cheias da malícia ou da ingenuidade de va-
gos desejos. Perpassavam nelas as "morenas ground" sensual que as inspirou.
garbosas", as "mestiças de olhar azougado", Fruto da época; época que imperou com
bamboleando as formas rotundas e acenden- o cetro da profanidade e das paixões indivi-
do fagulhas em tOl'llO ... duais; época ele absorção que estava a ante-
ceder a outra, de franca nacionalização da
N as esferas da alta expressão musical
música; limiar de um novo mundo de sen-
pontificava o melodrama. Era a época do
sações.
domínio avassalador da ópera italiana, com
suas árias melódicas intermináveis, ~eus re-
citativos, quartetos e massas corais, entre- Veio depois a nadonalidade ...
meados de momentos de baile. Com o advento republicano, um espírito
Surgiu Francisco Manuel e slll'giu Car- democrático nascente trouxe novo alento ao
los Gomes; o primeiro, criando a Academia ambiente espiritual.
Nova consciência, de caráter brasilito, lado-de-consciência coletivo que se fOl'mun\
principiou a esboçar-se lançando raizes para na evolução social da nossa música, o na-
elevar-se, mais tarde, criando galhada farta cionalista". Dai para cá novas figuras têm
e dando seus primeiros frutos promissores e surgido, novas afirmações que muilo vôm
saborosos. concorrendo para a sua nacionalização, fi-
Não tardaram em ver, al'tistas e escrito- xando-lhe rUlllOS definitivos e impondo-lhe
res, tudo o que estava errado no rtUBO quc dil'etrizes seguras para a compreensão e ()
seus ancestrais haviam seguIdo. Empenha- encantamento univcrsais.
ram-se então em obras que traduzissem, de Apelo aqui, mais Ullla vez, para Mário
maneira formal e decisiva, o verdadeiro es- de Andrade, pedindo-lhe que me empreste o
pirito de nacionalidade. período final desta série de considerações,
certo de que ele se prestará a dizer com cla-
Foi a vez de Alexandre Levy e Alberto
reza o que cu só poderia fazer de maneira
Nepomuceno, os dois primeiros marcos na nebulosa.
formação da música intrinsecamente brasi-
Transcrevo-o a seguir: "Ela (a nova '\
leira. Desbravaram com afoiteza; e, após
música) terá que se eleval' ainda um dia à ('-
êles, repontaram pela estrada valores que
fase que chamarei de cultul'al, livremen le
lhes completaram a obra, em um esfôrço de estética, e sempre se entendendo que não
elevação, cujo corolário é, sem dúvida, o pa-
pode haver cultura que não reflita as reali-
norama musical de nossos dias.
dades profundas da terra em que se realiza.
Foram reall1lcn te "ês tes dois homens as E então a nossa músÍea será, não mais na-
primeiras conformações eruditas do novo es- cionalista, mas simplesmente nacional ... "

- 95-
PO~f\CE

[J/ n1úsica que êif.istia no Ç)Jrasi(

~ u~';;;:;n:;ü!",~a'qU~o ~:::~
~ar, mais tarde, o nome
tativos, criaram peças de raro interesse, na
arte dos trançados e na cerâmica.
Esta - notadamente as de Santarém e
~e América, eram povoa- Marajó - revela o máximo grau de cultura
das apenas por tribos abo- a que chegaram aquêles obscuros oleiros, es-
xígenes, a vida decorria tampando, em cerâmios de variadas formas,
em função da natureza: inculta, selvagem e estilizações da fauna e da flora, além das
.de puro aspecto primitivista. figuras totêmicas que lhes viviam na imagi-
N a imensa área, onde '-Cabral teria de nação e integravam o seu nebuloso quadro
aportar, um dia, com os seus homens a bordo mitológico.
de algumas caravelas, enxameavam os ir, 'L • Na arte dos sons, foi ainda a natureza
genas, constituídos em numerosos agrupa- . que lhes cedeu o manancial para a reprodu-
mentos. Seu estado de "civilização" era nulo. ção vocal ou instrumental, representado pelo
As manifestações da cultura nativista não ,canto dos pássaros, pelo ronquejar das feras
iam além da craveira comum, isto é, da mes- ou pelos ruídos naturais das cachoeiras, dos
ma exibida por todos os povos em suas ori- '~'ios, dos trovões - dos chamados murmú-
gens e em pleno estado rudimentar. rios da floresta.
Escravos da natureza, especialmente des- Por uma fatalidade incoercível todos os
ta natureza peculiar às extensas regiões de sons recolhidos e reproduzidos pelos nossos
floresta cerrada, dela sofreram a influência selvagens eram ofertados, em forma de culto
esmagadora, que, fundamen talmen te, domi- bárbaro, às suas fontes de origem, após te-
nau o caráter de suas manifestações. Sem rem passado pelo crivo da crendice e da su-
cantata com nenhum outro estalão de cul- perstição. O canto natural e a dansa, ritma-
tura, nada mais lhes restava do que a sub- dos pelo tam-tam dos instrumentos, integra-
serviência aos fenômenos naturais e à cópia vam-se indiscutivelmente aos ritos e às ceri-
servil dos elementos que lhes eram oferecidos mônias religiosas. Procuravam, por meio
à vista e ao ouvido. Exercitando suas habi- dêles, conseguir os favores dos deuses, abran-
lidades manuais, a serviç:o de certos dons que dando-lhes os furores, além de pretenderem
facultavam a alguns déles poderes in terpre- captar-lhes a faculdade de "sujeitar os fenô-

- 99--
edificação futura de sisudos historiadores ou
de simples pesquisadores da vida de nossos
tataravós indígenas.
E' mesmo de praxe citar-se uma meia dú-
zia dêsses itinerantes, a fim de que fique,
deliberadamente sedimentada, a opinião de
quem escreve sôbre eventos de nossa História.
Sem fugir à regra, deixo aqui consignadas,
por meu turno, as impressões de alguns dê-
les, menos pela exibição de falsa erudição do
que pelo contingente de clareza que elas irão
trazer ao que pretendo acentual':
Jean de Lery, por exemplo, que aqui es-
teve, trinta auos após o descobrimento da
terra, surge como o primeiro cronista a re-
gistrar a música dos nossos indígenas, dando
conta de suas observações a respeito de dan-
sas e cantos rituais. E não foi sem certo
entusiasmo que o viajante francês consignou
a musicalidade dos aborígenes da Pindora-
ma. Depois de ter assistido, durante duas
horas, às cerimônias de lima dansa religiosa,
confessou ter surgido dela" uma tal melodia
Dois carajás c1ansancio o Hurumã.
que, embora êles não soubessem o que é a
arte da música, os que não os ouviram, custa-
menos da natureza à vontade do homem, riam a crer que se h armonizassem tão bem".
proteger o indivíduo contra os adversarios e Mais adiante, em sua "Histoil'e d'ull
os perigos, dando-lhe ainda o poder de pre- voyage fait en la tel'l e du Brésil", completa
.i udicar os seus i}1in!ig()t(. Esta ci tação é de Jean de Lery suas (mpressões, dizendo ter
Freud, o notabilíssimo teorista do mundo dos assitido a um atraente "espetáculo, não so-
recalques e dos complexos. mente ouvindo os acordes tão bem ritmados
Nesta tentativa de mimetismo espiritual de uma tal multidão, e sobretudo, pela ca-
(o homem julgar-se totem) ou físico (o ho- dência e o côro da balada, a cada passo, to-
mem imitar a posição e a envergadura de dos arrastando suas vozes".
certos animais) o nosso selvagem não se Na obra do cronista francês encontram-
afasta, aliás, dos demais povos quando num se ainda anotações musicais de cantos indí-
período inicial de isolamento e formação. genas, nos quais vão êles repetindo, monoto-
Era portanto nas cerimônias rituais que namente, uma única frase que muitos pre-
se encontravam as primeiras manifestações tendem ser um "hino" a certo passara azul:
da música aborígene, no Brasil, consubstan- "Canide Iune, Canide Iune, heura nech! ... "
ciada em curtos desenhos ritmo-melódicos. Gabriel Soares de Souza, autor do "Tra-
Em todos os aspectos da vida tribal re- tado descritivo do Brasil", escrito no século
pontam êsses primeiros vestígios musicais; dezesseis, oferece-nos centenas de paginas
mesmo porque, como sucede na generalidade preeiosissimas em tôrno da vida dos aborí-
dos povos primitivos, nossos índios sofriam genes, descrevendo-lhes minuciosamente os
a fascinaç'ão da música, utilizando-se dela costumes, cerimônias religiosas e tradições
nas suas cerimônias sociais e litúrgicas. tribais.
Muitos foram os viajantes que por aqui Por elas, constata-se ainda que os cantos
andaram, a partir de 1530, e muitas são, por- e dansas primitivas dos Tamoios e Tupinam-
tanto, as cl'ônicas que êles nos deixaram, para bas não eram em louvor da alegria ou do

- 100-
índios da tribo Terena na sua festa guerreirE
"bate-pau" - Bananal - Estado
de Mato Grosso

amor, mas dirigidos, de maneira geral, aos vez que a emoção os empolga; nesses casos,
deuses da guerra, Verdadeiro incitamento à p~l:-éll1, é lícito afirmar que se trata antes de
luta, à selvageria e à destruição de outras ÍIirlet~nninação rítmica, um pouco ~t feição
trihos, ;to _cantochão salmódico, do que de depen:
Segundo o cronista seiscentista, gabayam- dência a rilmos verbais, supondo, já, metros
se êles de ser grandes músicos, com boa voz, poéticos organizados. A maior parte das ma-
cantando em uníssono, Prezavam de tal for- l;ifestaçõés nlusicais prendia-se à dansa; ti-
. ma a faculdade musical dos seus comparsas riha de ser, pois, ritmicamente regular, cons-
(que chegavam a poupar freqüentemente a tituída por fórmulas repetidas e suscetíveis
\ vida dos iüimigos prisioneiros, que se reve- de análise, à luz ele nossas concepções".
lassem" grJu),des componedores de cantigas de O hábito de cantar é tão freqüente entre
improviso". Tinham êsses bardos acentuado os índios que Von den Steinen, referindo-se
prestígio entre os Tamoios "mui estimados aos Borôros, diz que" a tribo dá a impressão
e por onele quer que fôssem eram bem aga- de uma sociedade masculina de canto",
zalhados e muitos atravessavam o sertão por
entre seus contrários, sem lhes fazerem mal".
.t-O padre João Azpilcueta Navarro de-
monstra, por sua vez, a intuição e o gôsto
QJ~xto dos cantos indígena~~ explica Luiz
musical dos indígenas utilizando, como o me-
Heitor, era quase sempre improvizado. Em
lhor meio de cativar a confiança elos nativos,
geral oscal1tos se compunham de sol~e côro
a sua própria música arranjada para órgão,
!J,ltel'llados, cabendo ao côro um estribilho
na propaganda da doutrina cristã.
,sempre repetido. O bom cantor devia saber
improvizar. E assim por diante, E' unânime a opi-
Simão de Vasconcelos, outro cronista de nião dos cronistas e dos cientistas que se
notória' relevância, falando do sentimento embrenharam pelos sertões bravios da velha
musical dos nossos índios, afirmava que "ne- Pindorama, quando firmam a inegável, a
nhuma outra coisa satisfaz tanto a essa gente, irreprimível fascinaç'ão exercida pela músi-
como a doçura do canto; nela põem tôda a ca, nas tribos selvagens que a habitavam.
felicidade humana". Partindo de Jean de Lery, através de
"O ritmo musical - disserta Luiz Heitor Spix e Martius e de Koch Gnllnberg, vamos
- se ~avã';icfüsivamente à dansa. Ha- encontrar nos dias de hoje os depoimentos
via,
,
é certo, uma espécie de declamacão
'
de mais objetivos e de maior precisão dos pes-
fórmulas mágicas ou rituais, em linguagem quisadores atuais, sendo de notar como uma
musical, bem como a transição do {alado das maiores autoridades, o antropólogo Ro-
para o cantado, a que se refere Manizer, tôela quette Pinto.
"-""""----.'

- 101 -

,
Luciano Gallet, recentemente desapare- lulo de celebrar-se a morte de um veado, (IS
cido, um dos mais esclal'ecidos estudiosos do guerreiros bebem abundantemenle uma es-
espírito de brasilidade da nossa música, che- pécie de aguardente feita de milho, o "010-
gou, após árduas meditações, a· conclusões niti" ,
sujeitas, por sua vez, a graves controvérsias. Roquette Pinto descreve: "A noite, re-
Observava êle que o nosso indígena já cra colheram as mulheres à choupana e vieram,
músico bem antes da época do' descobrimen- diante de nosso rancho, armados de j arara-
to. Suas intenções musicais, no entanto, so- cas, cantar e dansar, festejando a caçada, ao
freram sél'Íos de~vios espêcialmente em vir- redor de uma grande cabaça onde j azia, em , '

tude das catequeses, tendo mesmo desapare- 'postas, Ulll cervo 1110queado". Dispondo (j
cido o cm'ater musical indígena, após o con- seu fonógrafo, conseguiu o sábio brasileiro "",1"',1

tágio da cultura dos do inadol'es. Conclui gravar a música de três das principais can- ,
finalmente que, como e~11se<Íüência dêsse tigas pareeis, deixando-as como contribuição i
processo de desintegração, a niúsica dos Ín- ines-tim'ável, ao documentário atual dos mu-
dios inantém-se, hoje em dia, afastada da sicologistas. Sâo elas: "Ualalàcê", "Teiru"
música brasileira, e "Iatokê", cujas letras transcrevo a seguir,
Há muito o que contestar, por certo, com suas respectivas significações:
nestas impresões de Luciano Gallet.
Não sâo raros, com efeito, entre as 'obras
UALALÚCÊ
de nossos compositores, os motivos harmoni-
zados das tribos autóctones,
Akutiá-han, nohin ôkôre
Viajando cientificamente pela "Rondà-
nia", Roquette Pinto recolheu temas dos Pa- ,// I Ulmman uizoná nêtêu
reeis, por meio de fonogramas, temas êsses Niáhaká nohiu-ê Kamalalô
que foram aproveitados por Villa Lobos, em Motia saiá Ariti okanatiô
esplêndidas harmonizações, nos b a i I a dos ,'Ukuialaná Kamalalà
"Teiru" e "Nozamina", e por Lorenzo Fer- Kozákitá kàlôhàn unitá nêtcll
nândez, no seu "Imbapara".-
, Niahakaká akaterê Kel'arê
Falando a respeito das dansas dêsses
mesmos Parecís - índios da Serra do Norte,
',----- Estribilho:
- entre os quais viveu por muitos meses, o
cientista descreve várias cerimônias religio-
sas a que teve a ventura de assistir. Refere-se, Ha! Ha! Noáianauê! Uh!
por exemplo, às festas em tàl'l1o do"Iôhôhô ",
fetiche que consiste em "uma vara nodosa, O "llalaloeê" narra espisódios da vida da
guardada religiosamente, a título de amuleto índia Kamalalà, Indo passear à floresta viu
protetor, durante anos e anos". Quando a um homem trepado num pé de tarumã; su-
mesma se torna imprestável, pelo uso e pelo pondo que fôsse um índio, disse-lhe:
ataque dos insetos, é então queimada, proce- - Ariti, dá-me uma fruta de tal'lImã?
dendo-se à procura de uma outra,
Aqui é que o ritual atinge o seu "clí- E o homem respondeu:
max", A cantilena principia com a busca, nas -- Kamalalô pensa que eu sou Ariti ...
matas, de um novo "Iàhàhà". Uma vez en- Eu sou pai do mato, ..
l'ontrado, voltam todos para ~ aldeia "can-
tando sempre, em voz muito alta, monoto-
namente, duas notas. , . ", Êsse estranho can-
to a que as mulheres da tribo não devem
Yaiê alltiá hal'eneze
ouvir chamam "grito do Nokauixitá" ,-
Outra cerimônia dos Pal'ecís é aquela Zalôkare uel'ôl'êtú
conhecida como "Kaulollcnú ", na qual, a ti- Amôklltiá lanclhaná

-102 -
r'
r

NU-itá tiáhazako
Tahãrê-kalôl'e mauce
Uaiuazarê-uaitekô

o teirúcelebra a morte do cacique de


Uaiuazarê-uaitekô, assassinado acidentalmen-
te por Zalokarê. Tahãrê-Kalôrê, que presen-
ciou o fato, compôs o teirú para comemo-
rá-Io.

JATOKÍ':

Natió atiô Kamaizokolá


Natiô atiô ualokoná atió
Natiô Kamáizokolá
Nêê-êná éma makoé etú
Nêê-êná Kamáizokolá
Oné nauê kotá zanezá
Nêê atió Kamáizokolá.

oiatokê celebra o salto do rio Juruena,


que os Pareeis, numa antiga luta, conquista-
ram aos Vaikoakorê. Kamáizokolú é o nome
do referido salto:

Meu nome é Kamáizokolá


Eu sou o mesmo ualokoná
Meu nome é Kamáizokolá
Um pagé indfgena, tocando maraeá, dansa longas horas,
Nenhum homem poderá banhar-se aqui. in"voC'ando ã!-' alm(ls elos seus antepasf::ac1os
Eu sou Kamáizokolá
Êste rio bom é o maior de todos. o empreendimento de caçadas, etc.) Tais
Meu nome é Kamáizokolá. nailad.os eram conhecidos como os "puraci"~
aos quais Olavo Bilac se refere em seu fa-
moso soneto, chamando-os de "bárbara po-
racê" .
Os cânticos indígenas existiam em fun- Cantavam também em louvor da natu-
cão da-dansa. "O índio - como explica Luiz
• - >
l~~zà :Miio( ao trovão, à lua cheia e às ár-
Heitor - não concebe a música sem o texto
vares. A fôrça de dansar e cantar, dentro de
cantado. A dansa se associa freqüentemente
~m espírito fundamentalmente religioso, aca-
à música cantada. Música, fórmulas verbais
}Jaram por transformar a _ '1sa ritual em
e dansa constituem uma forma única de ex-
dansa festiva. :Afeiçoaram-se aos meneios do
pressão de fundo nitidamente religioso".
bailado exercitando-o finalmente, como pra-
~~ntavam, pois, ao passo que dansavam por
zer, estimulante para o corpo, o que propor-
ocasião da comemoração dos fatos comuns
da vida doméstica (o nascimento, a união cionou a criação de novos passos, novas
dos casais, a morte, a imposição do nome, marcações.
etc.) ou os acontecimentos ligados a certos Observa-se, portanto, uma distinção acen-
fenômenos natmais (a época das colheitas, a tuada entré as duas especies de dansa: aque-
do plantio, as migrações nas várias estações, las que são pnramente de carúter ritual e as

-103 -
Dansa. "Doré I', en1 que os
índios imitnndo pássaros, evocam
OR ancestrais - Tribo
Curic-nro. - Alto Xingú - Mato
Gro~so .

que se incluem no número das dansas fes- marcam


--- a evolucão
- "
ela vida indivi-
tivas. .~uale do grupo social.
Stradelli, em seus "Vocabulários", nota 2) Guerreiras.
essa diferenciação, enquanto Von den Steinen, 3) Venatórias.
que escreveu um volume intitulado "Entre os li) Funerárias.
Borôros", acentua a particularidade de um 5) Baquicas.
mesmo tropa musical servir tanto para dan-
sa festiva como para dansa religiosa. Recreativas
FOl,-a das gr~llldes festas - como obser-
vou lVIétraux - os índios executavam, tôdas 1) Coletivas ou com numerosos parti-
as noites "dansas nas quais o caráter reli- cipantes.
gioso já se achava consideràvelmente afas- 2) Individuais ou com número restrito
tado". Southey, por sua vez, opina que '~ de participantes.
dansa entre os selvagens, quando não é uma
cerimônia religiosa, converte-se, tal como en- De acôrdo com a disposição c mOVllllcn-
tre as crianças, em mero brinquedo". ~ão tação coreográfica apresentam essas dansas
existe nelas nenhum caráter acentuadamente os seguintes tipos:
erótico:
Em geral, os sexos não se misturam por 1) Roda (a) dansarinos lado a lado,
ocasião das dansas. Entre os antigos tupís com a frente voltada para o círculo;
só se verificava esta promiscuidade durante (b) uns atrás dos outros, individual-
as festas do cewim. Aí, imitavam êles as dan- mente ou aos pares, fechando o cír-
sas dos tapuios, acelerando os movimentos culo.
coreográficos. 2) Cordão ou fila.
Luiz Heitor assim classifica as dansas 3) Grupos opostos.
indígenas, pelo seu valor na vida ;tribal: 4) SaltatÓrias.
5) Imi ta tivas .
Rituais
Manizer obsenê1, entretanto, que "não se
1) De fundo puramente religioso ou li- verificam dansas idênticas nas tribos cliver-
gadas às diversas cerin}(lllias que sas" .

-- lO.! -
Roquette Pinto chegou iüesmo li flImar
UIll bailado guerreiro, onde figuram índios
dos grupos Kôkôzú, Anunzê eUaintaçú, e
uma dallsa festiva, executada pelo Tagnanís
e Tau í t ê s em homenagem aos visitantes
brancos.
A primeira, cinematografada em Cam-
pos Novos, mostra-nos os guerreiros dispostos
em linha "colocados a uns 15 metros de um
pedaço de pau que figura o inimigo, can-
tando em compasso binário, marcando o
tempo com o batel' dos pés no chão".
índio can~la tocando buzina. Lil11it~8 de Goiás com o
Maranhão. (Bxpediçilo Ol11on Leonal'dos)
O tema da dansa consiste no ataque ao
adversário, . a prineipio :por meio de flecha-
das, finalizando por uma bôa coça de pau ... Outros observadores deixaram também
Na dansa festiva, executada em Butiris, farto e curioso documenh\.rio sôhre cantos e
diante da câmara cinematográfica, as coisas dansas selvagens. Kock Grümberg, por exem-
se passam de outra forma. plo, assistiu, na região fronteiriça da Colôm-
bia, a vários momentos de coreografia entre
Ouçamos o próprio Roquette Pinto des- os índios do rio Airary.
crever o que testemunhou in loco: "Ao som
Nestas dansas entrava um elemento novo:
de uma cantiga intermina formou-se grande
a máscara, usada também em várias festivi-
roda. As mulheres à esquerda dos homens,
dades de outras tribos. O bailado que o cien-
constituíam-se pares sucessivos, fechando o
tista. gel'lpânico descreve é de alto efeito
círculo; cada homem colocava a mão no om-
dramático, pois focaliza a luta dos guerrei-
bro da respectiva "dama". Dentro da roda,
ros contra os espíritos maus que pretendiam
três meninas da mesma idade, pouco mais
apoderar-se da maloca.
ou menos, acompanhavam-nos em fila, muito
juntas, com os olhos baixos, as mãos cruza- As máscaras reproduziam, em geral, fi-
das sôbre o peito. A do centro servia de eixo guras de animais ou de sêres sobrenaturais,
para todo aquêle sistema coreográfico ... como tantas outras, que ainda encontramos
em nossos dias, nos cordões carnavalescos.
Começou-se a rodar às 7 horas da tarde,
Feitas COl11umente de fibras de caroá (como
cantando sempre. As meninas, sem discre-
observou Estêvão Pinto entre os Pancarís do
par, deixavam no chão pulverulento, mar-
ramo Gé, em Pernambuco), entravam 'nos
cas regulares, que a luz da lua alumiava per-
hailados como atributo sagrado, representan-
feitamente. Dh'-se-ia que punham os pés nos
do espíritos bons ou maus.
mesmos rastros, feitos na primeira volta.
Othon Leonardos, que chefiou uma ex-
Meia-noite. À beira das fogueiras, que cada.
pedição, em 1938, ao norte de Goiás revelou
fa~nília acende, dormia a gente velha; res-
várias dansas e cânUcos dos índios Canela e
mungavam alguns, avivando morrões que
dos Apinagés, todos também pertencentes ao
pareciam pequenos rubis esparsos. E na roda,
ramo Gé.
suando, cheios de poeira, mais mortos do que
vivos, todos nós entrávamos no côro: Das excursões empreendidas, o cientista
trouxe extenso documentário fotográfico, on-
- Tagnani-í! Tagnani-í!
de aparecem curiosos e típicos instrumentos
- Tangrê! musicais usados pelos selvagens.
E assim foi, durante o resto da noite. No Brasil Central, a oeste do rio Ara-
Quando um de nós fugia, e procurava a rêde, guaia, habitam os Tapiragés, tribos de pacatos
vinham logo dois ou três lataO'ões reforcados Índios agricultores. Quem andou entre êles
'" .
e empurravam para o seu pôsto o desertor ... " foi () naturalista Charles '\Vagley, da "Co-

- lOf) -
Íumbia Ulllverslty;', sob os auspíclos d.o l\111- be perCllssâo
seu Nacional do Rio de Janeiro. Em seus
relatórios estão narradas as dansas, acompa- 5) Chocalhos.
nhadas de canç'ões, dos Tapiragés, por oca- 6) Guizos.
sião da cerimônia do Trovão. São verdadei- 7) Bastões sonoros.
ros rituais da feitiçaria "xamanistica", isto 8) Tambores
é, poder dos pagés, derivado de sonhos e de
fôrças reveladas através dêles. Tipo especial
Barbosa Rodrigues escreveu, certa vez,
9) Zumbidores.
para a Revista Brasileira um magnífico es-
tudo sóbre "O Canto e a Dansa Selvíeola",
Qada a contribuição escassa que os mes-
onde assinala algumas dansas imitativas, t'ais
mos oferecem à nossa musica erudita, não
C01110: tanquarê, sucuriú, uariuaiú e· outras.
merecem, creio, descrições circunstanciadas,
Fato que merece destaque é o de apro- coisa de interêsse circunscrito a alguns estu-
veitarem os selvagens momentos de dansa diosos do assunto. Por isso mesmo, a sim-
para as grandes libações, que levam a efeito, ples citação dos nomes e da maneira como
bebendo até cair desfalecidos, sem que fique são utilizados deve bastar para uma idéia
um s6 de pé, após dia e noite de função ... sucinta dêsse instrumental primitivista dos
nossos "maestros" das florestas ínvias.
Ouçamos, inicialmente, o que en:;' suas
"Memórias sôbre usos e costumes dos índios
Nilo é lá muito extensa a lista dos I\1S-
guaniru, caiu as e botocud6s ", relata o Padre
lr'.lll1elitos indígenas. Claro Monteiro do' Amaral. Referindo-se à
justeza rítmica dos exe~utores, nos momen-
A fim de poder ritmar convenientemente tos prolongados das dansas rituais, escreve:
as dansas, tinham êles necessidade de qual:' "Ajustando as pancadas do tamboril ao som
quer coisa que fizesse a "marcação" dos pas~ da flauta, bailavam juntamente a compasso,
sos, embora de maneira monótona, através de tal modo que podiam competir com os
de um "tam-tam" enervante, capaz de se mais dextros e finos gaiteiros europeus. Nem
prolongar por noites e dias consecutivos. era necessário que ninguém os ajudasse por-
Também não é grande a inventiva dos nos- que o mesmo, com a mão esquerda e dedos,
sos selvagens na confecção de seu instru- sustentava, tocava e floreava na gaita, e de-
mental, nem largos eram os recursos de que baixo do braço pendurava o Tamburil, e com
dispunham para levá-la a cabo. a mão direita o ia batendo e tocando. A
Não é de estranhar, pois, a pobreza dos maior parte de suas gaitas mais afamadas
instrumentos aborígenes, quer os de percus- eram tabocas; havia uma chamada "Toré ",
são, quer os de sôpro ou os de cordas. do comprimento de 6 a 7 ,palmos, e tão
Na classificação de Luiz Heitor os ins- grossa que podia servir de boa tranca aos
trumentos usados pelos índios brasileiros per- mar.iolas. Os flautistas, para poderem ani-
tencem aos seguintes tipos: mal' tal almanjarra, precisavam ser grandes
beberrões, e por isso s6 a tocavam nas suas
borracheiras" .
De sôpro
Pelo exposto, vê-se que havia homens de
sete instrumentos entre as tribos selvagens.
1) Trombetas (longas e com emhoea-
Aquêle que tocava gaita e tamboril, por exem-
dura lateral) .
plo, demonstrava iniludíveis habilidades de
2) Cornetas ou buzinas. virtuose ...
3) Flautas (de diversos tipos) . O "Toré", a que se refere o cronísta e
-I) Instrllmentos de palheta. que Gonçalves Dias, o poeta indianista, ape-

~ 106 --,--
Üdou de "BoréÍ>, é uma espécie ele trombeta,
de feitio conico, cm CUSl:U lle pUll, pele de
jacaré ou mesmo cm burro. E' a mais vul-
gar do grupo das trombetas.
O autor do "I-Juca-Pirama" fala tam-
bém na inúbia, que deve ser o "membi-
tarará", dos Tupis. Eram feitas de madeira,
em geral massal'anduba, e de diversos ta-
manhos.
As trombetas de Jurupari são, por seu
turllO, muito faladas em virtude da formosa
lenda amazonica tecida em torno do deus
musical que tem êste nome.
"Por trombetas - diz Luiz I-leitor -
entendemos os instrumentos de sopro inclí-
genas que não pertencem nem ao tipo ria Criança Apinag'é, toc'ando choc-t\lho (gotarelé) .. Alcleia
Dacaba Boa-YiHta-c1o-Tocantini':1, norte de (inUt:-3. (Ex.-
flnutn nem ao de tuba com palheta e que j

pecliçllo Othon Leonardo,)


s:in construídos de madeira sem cerne ou de
hambu, geralmente terminando por uma I'e- Rio Negt'o. Eram talhadas em colmos de
gunda peça de maior diàmetro, em madeira gramÍneas ou em ossos de animais (algumas
ou bambu, empregada como ressonador; mais vêzes em tíbias humanas). Existe também
freqüentemente essa segunda peça é uma ca- grande variedade de flautas, de pios, de as-
lJa<;u. Êsses instrumentos têm sido chamados, sovíos, etc.
ltaiJitualmente, de trombetas ou trompas, pe- Verticais, transversais ou nasais encon-
los cronistas; süo os torés dos índios, dos tram-se de espécies diferentes. Kock-Grüm-
quais recebem muitas outras denominações. berg diz que viu uma flauta de bambu me-
Algumus vezes, sob os nomes de trombetas dindo um metro e setenta centímetros! Como
ou trompas sào descritos instrumentos de as trombetas, não possuíam também orifícios
palhetas" . para dedilhaç·ão. Estes aparecem, contudo,
Variam muito de tamanho e são, em ge- nas flautas transversais e em algumas nasais.
ral, talhadas em bambu ou em talos de pal-
Das primeiras as mais conhecidas são a
meiras trabalhadas em forma de cornetas. A
"Uaraperú", citada por Stradelli, "com aber-
variedade de dimensões (oito ou dez flautas
tura no n1eio, por onde o tocador sopra,
que vão desde as do tamanho de um homem
abrindo ou fechando com os dedos as duas
até às do comprimento de trinta centíme-
extremidades abertas conforme precisa".
tros), produz sons diferentes que, no conjun-
to, conseguem uma orquestração agradável. As outras, isto é, as flautas nasais eram
As trombetas de Jurupari são objetos sa- sopradas - é claro - pelo nariz; isto por-
grados, conservados longe das vistas das mu- que, em certas tribos os lábios ficavam de-
lheres. Classificam-se, além disso, entre as formados ou furados, segundo hábitos tradi-
maiores flautas da América do Sul, e os cionais. Talhavam-nas em pequenas dimen-
sons são produzidos por um único orifício, sões em gomos de bambu ou de taquara.
de vez que não possuem dis'positivos para Na família das flautas notam-se ainda a
dedilhação. "flauta- Uaupé", com três orifícios, trabalha-
Os búzios também eram utilizados como da em osso; a "flauta de Pan" (antiga si-
instrumentos, segundo o que nos relata Ga- rinx) , também conhecida dos nossos selva-
hl'lel Cloares. gens, e a coleção d e pios e assovios destina-
Há ainda as trombetas com ressonador dos à caça e à imitação de cantos de pássa-
em bambu grosso ou mesmo cabaças. sendo ros, marrecos, galos, etc. São muito usados
a mais conhecida a "Slll'ibi", dos índios do pelas tribos "Apinagé". "Canela" c "Maué".

- 107-
Êstes últimos usam o famoso apito "Mi- A exemplo dos demaIS selvagens da Áfri-
mê ", espécie de buzina em taquara. ca ou das ilhas do Pacífico, nossos índios
Os "Guaicurús" e "Borôros" utilizam-se, utilizam o trocano para o chamamento e a
por sua vez, de zumbidores; instrumentos reunião de tribos. E' um verdadeiro toque
aerofones, que soam, uma vez agitados no ar. de reunir bárbaro que ecôa pela floresta,
Per~ira de Melo, na "Música no Brasil", através de vales e montanhas.
fala a Lda no "Membychuê", em forma de Nessas ocasiões, descem as tipóias e o
flauta dupla; na "Cangoera", talhada no osso trocano quase encosta no solo, O som se
dos guerreiros afamados que se extinguiam propaga, então, a maior distância. As tribos
na luta; e no "Vatapú", buzina cujo som que se encontram em um raio de seis a sete
tinha a virtude de atrair os peixes. quilômetros ouvem-no perfeitamente; as que
Roquette Pinto, na "Rondônia", assinala estão mais afastadas, colam o ouvido ao chão
alguns instrumentos de Nambiquaras e Pa- (coisa que fazem constantemente os nossos
reeis. Fala, por exemplo, de flautas nasais, índios), percebendo-o com facilidade.
como a "Tsin-hali" (ocarina feita com dois
discos de cabaça) e da "Hait-teataçú", do Funcionando dêsse modo, em ondas lon-
mesmo tipo da primeira. gas e curtas, como estação transmissora pri-
Descreve ainda a "Hezô-hezô" (grande mitiva, o trocano exerce o mesmo papel que,
trombeta, com embocadura de piston, pos- na Idade Média, exerciam os sinos das al-
suindo uma formidável caixa de ressonância, deias, quando com êles se convocavam os
feita de uma cabaça); o "Tiriaman", talhado habitantes da região para as guerras ou para
em taquarussú; o "Valalocê", instrumento as festividades,
sagl'ado dos Parecís e a "Kaiguêtazú", flauta Imagine-se agora um bombo extraordi-
dupla, importada provàvehnente dos Maués e nário como êste, percutindo soturnamente na
Mandurucús, vizinhos aguerridos dos índios marcaç'ão do ritmo das dansas guerreiras!
da Serra do ~orte. Imagine-se ainda êsse ronco tenebroso ao
Todos êsses instrumentos de sopro sub- lado dos chocalhos, dos guizos, das trombetas,
metiam-se, todavia, ao grupo dos de percus- de dezenas de instrumentos, e ainda o canto
são, aos quais cabia, antes de mais nada, a estrepitoso de centenas de indivíduos!
grande tarefa de marcar o ritmo das dansas Espetáculo atordoante, ensurdecedor, mas
e dos cantos. Durante horas a fio, dansavam belo dentro da majestade solene elo barha-
os selvagens, monotonamente compassados, ao rismo e do instinto natural das raç'as!
som dos maracás, dos trocanos, dos bastões
de ritmo .. ,
O trocaDo, que em língua tupi se chama
"torokaná 'I, era uma espécie de bateria das
nossas orquestras atuais, Enorme, enormís- Outro instrumento curIOso é o chamado
simo, lembra um bombo colossal! "bastão de ritmo" ou "bastão sonoro", Con-
Os maiores eram constituídos por um siste em "um canudo de cana de seis a sete
tronco de dois a tres metros de comprimen- palmos de comprido, e tão grosso que cabe
to, com mais de metro e meio de diâmetro, um braço, gordo que seja, por dentro dêle;
completamente oco, e dois, três ou quatro o qual calmelo é aberto pela banda de cima,
orificios, ligados por estreita fenda. Suspenso e quando o tangem vão tocando com o fundo
e entipoiaclo em quatro estacas, o trocano é do canudo no chão, e soa tanto como os seus
manejado, às vêzes, por mais de um tocador, tambores, da maneira que êles os tangem",
Os sons são produzidos pelo martelar de ma- Essa descrição é ele Gabriel Soares, que
cetes, cuj a extremidade é formada por um assistiu a inúmeras funções musicais dos
cabeção de goma elástica, A intensidade so- aborígenes, onde imperava o bastão ele rit-
nora depende da força do martelamento ou mo, a que o cronista chama de "taquara",
do lllgar em que se percute, por ser feito de bambu,

108 -
Divergem espe<.:uladores do assunto quan-
to à origem dêsses instrumentos: se é da Ma·
laia, da Polinésia ou do próprio Amazonas.
Divergem também os tamanhos e os fei-
tios dos bastões de ritmo, havendo deles uma
preciosíssima coleção, no Museu Nacional do
Rio de Janeiro,
Em Marajá, por exemplo, chegaram a
medir metro e meio de comprimento,
Batidos com força no chão, produzem
um som surdo, principalmente no solo de
terra dura, No desenvolvimento das dan-
sas, os bastões ritmavam soturnamente o com-
passar monótono e caracterís,tico do cerimo-
nial.
Esmerando-se em aplicações de bom gos-
to, alguns obscuros artistas selvagens pro-
curam gravar ornatos e desenhos calcadOs na
flora e na fauna, ao longo dos colmos de ta-
quara, enfeitando-os ainda com chocalhos e
penas.
Os "Uarangá" tinham maracás na parte
superior.
O "maracá" faz parte da família dos
guizos e chocalhos. Sua importância chega a
ser considerável, se levarmos em conta o po-
der espiritual que lhe é atribuído. Seu re-
manescente aparece, hoj e em dia, nos "con-
juntos" de estações de rádio e consiste em IncHo da Serra do Norte, tocanc10 "lJaitte,üaçú" (ilauta
na.sal). EIU baixo o inIHl'U111ento l'0111 ü:S trt-:; orií[C'ic)l;.
uma cabaça oca, na extremidade de um cabo, (Roquete Pinto-Rondônia)

dentro da qual se coloca uma porção de pe-


drinhas ou caroços. Sacudindo e volte ando a Venerados especialmente pelos Tupis e
cabaça, chocalha o seu conteúdo, produzindo Tupinambás, que os guardavam em relicários
um som cascateante e que muito anima as (como os crentes cristãos procedem, aliás,
dansas. com bastões e cetros de alguns santos), os
O maracá varia também de dimensões e maracás tinham a faculdade de abrandar
ornamentações, de tribo para tribo. Há até temporais e de sarar enfermidades.
o maracá duplo, isto é, com duas cabaças Na família dos guizos e chocalhos há
ligadas ao mesmo pau. ainda a assinalar aquêles que são usados co-
Vale a pena examinar, no Museu Nacio- mo amuletos para o exorcismo dos maus
nal, a coleção que lá se exibe, principalmente espíritos, constituídos por uma penca de ca-
os de cascas trabalhadas que apresentam or- rocinhos de frutas, unhas e dentes de ani-
natos lavrados com certa graça. A excepcio- mais, furados e enfiados em cordéis de fibras.
nal importância do maracá residia, contudo, Os selvagens usam os chocalhos no pes-
como já ficou assinalado, na sua função de coço, nos tornozelos, nos pulsos ou na cintu-
objeto sagrado. Usado de preferência pelos ra. Ao tempo em que dansam vão guizalhan-
pagés e morubixabas, seu poder sobrenatural do aquêles cachos de pequenas contas, acom-
exercia - na superstição ingênua dos selva- panhando o ritmo da cantilena.
gens - influências de vária espécie nos ho- Quando féitos de dentes de veado, de
mens e nos elementos naturais. jaguar ou de javali. exercem também pode-

109 -
res solJrcnatlll'ais. Quase todas astrilJos·:::...... em música DrasUei ra. E' () meslllO caso dos
especialmente os BOl'oros, os AmamlJes, os artistas plásticos que, pelo fato de pintarem
Chavantes, os Parecis e os índios de Marajó tipos nacionais ou regionais, não fazem com
- faziam largo uso de guizos e . chocalhos, isso phtura brasileira ...
variando os mesmos de nome e 'de material, - Carlos Gomes, por exemplo - explica
consoante os caroços de plantas ou os animais Villa Lobos -- apanhava temas primitivos de
de cada região. carúter indígena, mas vestia-os à maneira
cmopcia; levava-os aos alfaiates italianos e,
de lá, saíam êles acentuadamente vel'diallos.
_Q. ele~ll~nto autóctone, é claro, não podia O mestre do Guarani, e como êle muitos
deixar de conti·ibuir para a formação da lllÚ~ yutros, não chegava a criar aquilo que se
sica brasileira. Aquelas canções rudes, festi- tornava indispensável, necessário, dissociável
vas ou guerreiras, entoadas nas catedrais ver- do espirita brasileiro, isto é, o "ambiente" do
des das florestas, ao som de tantos instru- nosso pais, o clima musical capaz de integral'
mentos bizarros, devia ter concorrido, forç'o- os temas escolhidos em algo diferente dos
. samente, para a sedimentação dos motivos complexos artísticos do velho mundo. :f:.ste
temáticos ou dos elementos rítmicos daquilo trabalho quem o empreendeu foi êste seu
que, nos dias de hoje, podemos classificar de criado.
III úsica brasileira. Procurei no extenso temário dos nossos
Resta saber, todavia, em que consistiu aborígenes os elementos precisos para o es-
essa contribuição e se ela foi realmente de tudo de uma nova técnica a fim de poder
grande monta no desenvolvimento do espí- amalgamar uma nova estrutura musical.
rito musical do nosso povo. Vesti as melodias em roupagens brasileiras,
Sôbre a importância do subsídio apre- eis tudo.
sentado pelos selvagens à sensibilidade dos O resultado é o seguinte: enquanto êles
nossos musicistas, atraves dos tempos, não não passam de simples seguidores de escolas
existem opiniões divergentes. Todos são unâ- alheias, eu e os que me acompanham pro-
.!lÍlnes._ en1 proclamar a pouquíssima influên- curamos estabelecer os pilares de uma cons-
cia que aquêles cânticos rituais bárbaros exer- , trução nova que, sem jatância alguma, já fo-
ceram na estruturação do nosso edifício mu- ram bem plantados ...
sical. Lembro-me que, certa vez, na Europa,
Mário de Andr~de, por exemplo, julga após a apresentação de músicas de minha
que" o elemento ameríndio no populário bra- autoria, recolhi palavras desalentadoras de
sileiro está psicologicamente assimilado e Bernard Shaw, o qual deplorava "aquêle
pràticamente já é quase nulo", enquanto para agrupamento de coisas bárbaras ... "
Luciano Gallet, o caráter indígena musical O genial autor de "César e Cleópatra"
desapareceu ao fim de algum tempo, depois não poderia entender, é claro, tudo o que da
do contacto com a civilização; em conse- minha terra eu havia levado para os seus
qüência "a música dos índios mantém-se afas- ouvidos. Nem eu poderia ter a pretensão de
tada da música brasileira atual". que um autêntico, um puro e civilizado in-
Trocando idéias com Villa Lobos, em tôr- glês fosse deleitar-se com o amontoado de
no do assunto, ouvi do mestre impressões de ritmos e melodias bárbaras, exibidas em cen-
um ineditismo, não direi chocante, mas ex- tros onde imperava a "música universal".
tremamente pitoresco. Foi, no entanto, êsse barbarismo que me
O autor das "Bachianas" é, sabidamente, tornou célebre.
um criador de música "brasileira", desde que Para ser consagrado no mundo inteiro,
fique estabelecido que "criar" é fazer coisa construí a "minha obra", sem necessidade
nova ... de tombar na macaqueação comUlll de arre-
O simples tema brasileiro, dentro de lima medos de Beethoven ou Vvagner, Chopin,
partitura, não a transforma, de modo algum, Mozart ou outro qualquer".

---- 110 -,

, i
-A mUSIca genuinamente brasileira, que
se vai- desse dentar nas fontes profundas e
..!Jlll'as da nacionalidade, tem suas ha~monias
mescladas do canto deguerra dos indígenas,
das canções de ninar das pretas minas, da
toada tristonha dos escravos e da amolecida
dolência dos cantares portuguêses, Ela tem
u altivez dos iudios, a submissão dos negros,
III' g=-t'k

o sensualismo dos lusos.


A nossa raça, descendendo de três raças
diferentes delas herdou seus defeitos capi- ~.o:-:.~~:- -- e;;m«IC--;;lJt=:rmlSl
tais: dos indios, a indolência; dos negros, a
meiguice; dos portuguêses, o excesso de sen-
®
timenta~i~!l:!o. Nossa mÓslca traz em sua 01'-
giill1itii.#ü- +~- --. . . . .
quest~ação as vibrações sentimentais delas
três: do índio, o arroubo guerreiro; do ne- ®
gro, a am-argura da escravidão; do pOl:tuguês,
o langor sensual.
Música estranha, sôbre a qual atuaram
três raças tão diversas, ela procura traduzir
êsse tumulto de sentimentos vários que mar-
tiriza nossa alma. Não seria possível escre: ___
vê-la com o espírito da música francêsa, com ..
o vigor da alemã, com o cantante da italiana. Tipos de flautas dos !ndlos da Serra do Norte:
Ela e diferente, porque e tumulto, e desor- 1) - "RezO-RezO" - Instrumento sagrado dos l'arec1s.
dem, e choque de sentimentos: Ela tem de 2) -
3) -
"Tlrlaman" - Idem.
"Zoratealô" - Idem.
ser vibrante, contraditória. . 4) - "Rera-hera-hun" - Idem.
5) - ,. Ualalocê" - Ielem.
Por isso, Bernard Shaw não compreen- 6) - "Kaiguêtaz(\" - Flauta dupla

.. • •
deu Villa Lobos. Não o compreenderá ja-
mais aquêle que não descender das três raças
e não trouxer, dentro de si, essa tempestade
.~ de sentimentos, de emoções brancas, negras
Jt'. O O O e brônzeas que palpitam dentro de nós, que
o
• O
o
o· só nós conhecemos, que só nós sofremos .

·0 o·
Expor a nossa música às plateias euro-
péias'é o mesmo que fazer desfilar, aos olhos
dos povos refinados por sécuÍos de continui-
o • dade racial, um negro vestido de indio call-
ÜÍldó um fado português.
o •
() , Somos índios, somos negros, somos por-
• o

• • • ••
o tuguêses: nossa música enfeixa três raças,
o o
o abarca três continentes; ela há de ser gran-
diosa como as nossas florestas, há de ser ar-
dente como os areais africanos, há de ser
• HOF"\ENS amena como os prados porhlguêses. Só nós,
O MU\...HERE.S brasileiros, co~npi:eendelllos seu tu mu 1 to.
Aquilocrúe soa aos· ouvidos de Shaw como
+ CRIANCAS
J 'üma barulheira sem sentido, penetra em
E::squemà üe uma dan~a. fe!:-itiva dOf;
Tagnani:-;j :-::egundo Roquette Pinto. nosso íntimo, vai lá dentro de nós provocar

111 -,
impressionados pela nobreza dos mesmos,
quando dizem: "A flexivel linha melódica
que nos desenvolve a flauta de um indígena
diferencia-se imediatamente de uma melodia
espanhola, por sua absoluta falta de sensua-
lidade, por uma força expressiva contínua e
sóbria" .
Em todo o riquíssimo folclore lllusical dos
In~;;'pr~d-~l~~ina de, fato, uma grande emoti-
'~rl<Le um profU1~do~entimento de melan-
colia, que mais se acentuou após a conquista
-es-pãiiIiõla'.~óen·tá~to;~s Incas, como todos
rr:vu de buzina u:-:a<18, nOH rituais dos índios
Barbado", de r.!ato Gro",o os ~nleri~ldios, davl,lm a impressão de desco-
rrneCe;·q~~íq1Jer espécie de notação musical,
essa desordem de sentimentos, .tão nossa, que. -seii(lo ~. m{lsica transmitida por tradição oral.
-;C~~lela~l;olia de ilegro, q~~e é arrogância 'de . A' no~sa lnÓsica indígena" cminen temente
índio, que é sensualismo de português.' ritt;~i eguerreil:a, .h'asta~te pobre - pelo
menos _ a que se conhece através da escassa ..
.......Somos diferentes . e a- nossa arte há de,.
, -.... _.
dO~Ul~~e~1tacão que possuímos - consistia,
ser diferente. Nós a criaremos, como un~a
quase sellll;re, l~a e~~~E~!:ante !llQlH)toni.a.de __
afirll.1ação da nossa cultura.
---(í~l~;'~ll-trê~-llótas-l:epetidas incessantelllente.
,Villa Lobos, Levy, Nepol11uceno, Fernân- -----O "'êateretê"ou "catua" pode ser consi-
dez e Mignon:e, já surgiram como bandeiran- derado uma das raras dansas em que se ob-
tes dessa nova obra. Outros Fernão Dias vi-
serva a influência aborígene".
rão, para devassar e conquistar o sertão
Desenvolvendo as suas impressões em
imenso, virgem e opulento da nossa própria
tÔl'l10 do continente musical autóctone, apre-
arte.
sentado pelos aborígenes, Lorenzo Fernân-
dez conclui: "Embora a música dos nossos
índios não tenha contribuído diretamente,
penso que deva ter exercido uma forte ação
Lorenzo Fernàndezafirma. por sua "ez, de presença em face dos outros elementos.
que a música indígena não se apresenta co- Há, por momentos, em nossa música, fenô-
mo elemento direto na formação da nossa menos estranhos, que só podemos atrib~lÍr a
sensibilidade musical, quer na de fundo po- essa ação subconciente. No entanto, temas
pular, quer na de caráter artístico. colhidos dil'etamente e transcritos nas obras
"Contraste chocante com essa pobre con- de Jean de Lery, Spix e Martius, Steinen,
tribuição - explica o autor de "Imbapara" 'Roquette Pinto e outros, apesar da notável
- é a formidável influência exercida pela concordância que lhes empresta foros de au-
música dos Incas, no Peru e nos altiplanos tenticidade, soam como música exótica aos
da Bolívia e Equador; dos Chibchas, na Co- ouvidos do nosso povo. Em resumo: a contri-
lômbia; dos Mayas, na América Central; dos buição direta dos nossos selvicolas é estranha
Aztecas, no México, e dos Araucanos no e pobre. Cabe a nós, criadores da música
Chile. brasileira, a transfiguração dêsses elementos
De tôdas as contribuições ameríndias para a elaboração de obras que universali-
ressalta, por sua notável beleza, a que foi le- . zem uma linguagem nova".
- gada pelos Incas, principalmente na região Lorenzo Fernândez pode falar dêsse
E~ll~~~. Essa contribuição é hoje patrimÔ- modo, pois já deu exemplos concretos do
aio universaL depois dos estudos admiráveis aproveitamento a que se refere. No "Imba-
do ilustre casal fl'ances D'Harcourt. Referin- para", por exemplo, existem ligeiros esboços
(lo-se à melodia incáiea, sentem-se ambos temáticos que foram gravados diretamente

112 --
dos Pareeis, nos fonogramas de Roquette
Pinto.

A contribuição aborígene para as dansas,


caracteristicamente brasileiras catalogadas
em tôdas as obras destinadas a estudar-lhes
as origens, as adaptações e tran,sformações,
resume-se, acentuadamente, nos "Candomblés
de Caboclo", nos "Catimbós" e, talvez, nos
famosos "Cateretês".
. taI vez porque o " ca tere t'e " ou " ca-
DIgo
tua" tem sido objeto de sérias controvérsias
entre os pesquisadores de suas raizes origi-
nárias, Não faltam os que afirmam ser êle
oriundo de dansas religiosas dos selvícolas,
como também não são poucos os quepren-
dem aOs africanos e sua defluência,
Até mesmo em seu sentido etimológico,
o têrmo "cateretê" tem sido virado e revi-
rado, sem que se haja conseguido, todavia,
Um autêntico trocano d"s Indloa do alto Ama~onas, exis-
nenhuma assertiva plausível e definitiva. tente no M\ISeU Nacional (Rio de Janeiro),
Quanto ao "candomblé" do caboclo, nada
mais é do que uma resultante do sincretismo Tais coisas, é certo, pouco interessam à
das crendices indígenas com as religiões cris- música brasileira. Sua contribuição, quando
tãs (catolicismo e espiritismo), revelada na muito, poderá servil' como subsídio para os
prática das sessões de terreiro, onde é de historiadores da dansa, de vez que os rituais
hábito receberem os iniciados o espírito dos de tais cerimônias são efetuados ao som de
caboclos e dos pagés para o receituário de cantilenas, onde se reconhecem claramente
ervas e raízes (terapêutica dos selvagens), elementos das "três raças tristes"." Ao
Nos candomblés de negros, baixam, de pre-
passo que arrastam durante horas a fio uma
ferência, os pais de santo",
ladainha monótona e enervante, realizam
O "catimbau" ou "catimbó" tem a mes- passos e meneios de dansas, cujo interêsse
ma expressividade do cateretê, modalidade não nos parece apreciável, especialmente em
que é do baixo espiritismo,
um livro como êste .

• CD
• •

--- 11:\
JONGO f\F~ICf\NO

[li acufturacão ao 0Jrasi(

S PÁGINAS do grande manchadas de sangue, de brutalidade, de vio-


livro da História nem lências! Durante três séculos o oceano Atlân-
sempre são imáculas, tico serviu de esteira aos navios negreiros, em
de invejável p u l' e z a cujos porões infectos viajavam "legiões de
e alvura incontrastá- homens negros como a noite ... "
vel.
O Brasil teve a desdita de receber, duran-
Na cavalgada humana através dos sé-
te trezentos anos, as cargas sinistras de mi-
culos há momentos de exaltação gloriosa, de
lhões de escravos, caçados nos areais arden-
ascenção idealística, de sublimaç'ão enterne-
tes do continente africano. Mancharam, com
cedoras; mas há também fundas depressões,
isto, as páginas de sua história, marcando-as,
instantes de ignomínia, baixezas, corrupç.ões,
crimes abominÍíveis. indelevelmente, com o ferrête da iniquidade;
mas a culpa foi menos dos \'erdadeh~os bra-
A' secular exploração do homem pelo
sileiros do que das hordas de estrangeiros.
homem cujo clímax reside no despotismo
conquistadores e aventureiros.
exercido por uma minoria Igananciosa sôbre
as maiorias desprotegidas, teve a sua carac- Ainda na campanha abolicionista - o pri-
terística mais acentuada na' época feudalística meiro movimento emancipador de nosso povo
da escravização negra; Nada, realmente, mais - os gênios que a dirigiram foram obrigados
abjetamente revoltante do que essa fase in- a lutar contra o reacionarismo e o interêsse
feliz da história da humanidade. Páginas inconfessável <la minoria governamental, ihS-

115 -
pir,ada,
.......
~. ~ ,
em sentimentos
.'..
de autêntico esclav,a- " O trecho que está acima, entre aspas,
pertence àü grande intropologistil e' etnólogo'
.' "

gIsmo, '
, 'Tanto Castro Alves ,como José do fatr.o- Artur Ramos, um dos mais condentes estu-
cinio, laIitó' Nabuco como Rui BarbO,sa;em~ diosos das culturas negras no Brasil e no
penharam-se leoninament,e na 'campanhá: sa- Novo Mundo.
grada. ,~O último "nâo cessava de clamar, no Não é pequeno, aliás, o número dos pes-
parlamento e nas 'praças pÚblicas, chamando ,quisadores;cujas contribuições são das mais
a atenção dos l):6mens do govêrno e ,dos ho- apreciáveis, r~presentadas em subsidios de
mensdo povo piiraa mole imensa dosinfe- real interêsse:
lizes deserdados, er;t:palavras de fulg6r,et~­ " A etnografia negra tem sido, nos últimos
no:/ "E' uma imensa,:massa negra de ~abeças anos, objeto de estudos dentific.os acurados e
humanas, em cujáface, muda conío:a calma conciencicisos~' Desde Nina Rodrigues, apon-
das noites sem: 'asÚ'bs, a agonia e o vílip'êndio :. tado como o pioneiro dos estudos sôbre o
de três séculos'1Íprofundaram o suléo eterno ':'negro, até Gilb~rto~Freyre, i:nuitos se atira,-
das lágrimas extintas, 'e sôbre cuja fronte ram ao labor científico com desusadoafinéó'.
branqueja a neve alpina da velhice santifi- Tanto homens de ciência como hOlÚens de
cada pelo martírio irresgatável". arte (entre êstes Debret, Rugendas e outros)
E indagava, ansioso: "Acaso a vossa con- concorreram para o acêrvo documental em
ciência, que é -a conciência pÍlblica, não está tôrno dos estudos experimentais do negro
ouvindo, neste momento, alguma coisa que os brasileiro. João Ribeiro e Silvio Romero in-
sentidos não percebem? alguma coisa como clinaram-se, por sua vez, sôbre o estudo do
se, debruçados da amurada de um navio, problema negro e, mais tárde, Gá:lógeràs, Lu-
despedindo-vos da pátria que se limita pela ciano Gallet, Mário de Andrade, Edson Car-
escravidão ao ocidente e ao oriente, pro- neiro e outros mais.
curásseis escutar 'a voz do que se não ouve Artur Ramos, no entanto, alteou-se den-
nas ondas do Atlântico, decifrar, nas vagas tre todos, como uma das maiores competên-
que se desfazem chofrando o costado do bar- cias do pais, em estudos afro-brasileiros,
co, o testemunho melancólico das vítimas do dando-lhes considerável luzimento. Com o
tráfico africano, que elas sepultaram, contra seu conhecimento profundo do assunto, la-
uma civilização que assenta na barbaria, e menta o etnólogo o grande movimento ro-
não sabe repudiá-la?" mântico ~ que deu origem ao referido de-
Ao verbo de fôgo de Rui juntaram-se creto de Rui ~ destinado a apagara "man-
os apêlos dos demais abolicionistas; e quan- cha negra". Em virtude dêle ficamos~em a
do o famoso 13 de Maio deu por extinta a precisão estatística para estabelecer ó núrriero
escravidão no Brasil, o próprio mestre baia- de escravos entrados no Brasil, bem como !JS
no, já ministro da Fazenda, no govêrno re- procedências das tribos, durante os três sé-
publicano, era o primeiro a tentar apagar a culos de traficagem. Mesmo assim, conseguiu
"mancha negra" de nossa história, promul- êle fixar, através de análise segura, não só os
gando um decreto que mandava "queimar os aspectos da origem negra, como ainda as
documentos históricos da escravidão". manifestações de sua cultura espiritual e ma-
"Qúeimaram-se to dos os documentos terial: reIigiões~ folclore, organização social,
aduaneiros, foram destruídos os "assentos" artes plásticas, culinária ...
dos senhores, os livros de matrícula de escra- Dest'arte, sabemos hoje que, de modo
vos, os 'regulamentOs do fisco, para apagar o geral, os negros vindos para o Brasil perten-
maldito estigma. A intenção não podia ser ciam a várias nações 'africanas, apresentan-
mais generosa, porém,o prejuÍzo histórico do, portanto, diversidade de crenças, línguas,
foi considerável. Os poucos documentos sal- s:gstumes, etc.
vos não têm permitido reconstituir, com fi- Tratan~ porém, g-ª--Jlculturação negra
delidade, uma larga fase da história brasi- no Brasil - fenómeno que nada tem a ver
leira". com a adaptação, acomodação, assimiIaç'ão

110 -
"Batuque", segundo um desenho ele TIugenduti

ou ajustamento - Artur Hamos estabelece o~ hoje são dificilmente identificH.Yeis, Meslllu


três pontos capitais de culturas negras que entre' elas, as culturas sudanes'as interpene-
sobreviveram no Brasil. São êles: traram-se, ficando nítida a predominância
I - Culturas Sudanesas, representadas da cultura yoruba,
principalmeriTe pelos Yoruba, da Nigéria Transportando-se para o Novo Mundo
'(NagÔ, Ijechá, Eubá, e outros grupos me- o l~egro carregou nos porões dos "tumbeiros"
nores) ; os elementos culturais que possuíam: cultos
II - Culturas Sudanesas, fortemente religiosos, superstições e crenças,' línguas,
influenciadas pelo Islam; vestes e ornamentos, além das suas tradições
III - Culturas Bantús, introduzidas pe- artísticas reveladas na escultura e, especial-
los negros procedentes dé Angola, Congo ou' mente, na música.
Moçambique. Não nos interessa tanto aqui a 'cota for-
Dentro dêste quadro podem ser estuda- necida pelo negro à composição" étnica do
das: a importância das culturas trazidas pe- Brasil; interessa-nos, sobretudo, a contribui-
los negros para o Brasil e a influência exel'- ção cultural que, em nosso país, sofreu modi-
"dda pelas mesmas, após o contato com as ficações fundamentais, resultando - mercê
demais culturas, que aqui atnaram. , dos fenômenos de aculturação ~ em outras
E' claro que as culturas sudanesas nào e mais variadas manifestaç'ões.'
se conservaram cm estado de pureza origi- A música dos negros trazidos para o
nal, sobrevivendo, todavia, na amálgama, ou BrasÜ, foi perdendo, tempo após tempo, sua
melhor, no sincretismo cultural operado, na pureza de origem, seu espírito estritamente
nova terra. De tal forma foi a mescla que africano. ao contacto com os usos e costumes

- lli-
existentes na nova terra . Refo.rmo.u-se, po.r~, . .ticos e dansas rituais. Porql~ tal como veri-
tanto, no entrançamento. natural e inevitável fi~amos'nõ capítui()'refeí.e~te à musicologia
.co.m o.S mo.tivo.s ,da música trazido.s po.r ou- dos indígenas, P.~~t,~er constatado que, ~en­
tros Po.vos da Europa e mesmo, com os da tre os negros, .a música ~xistia em função da .
música dos aborígenes. dãii'Sã:-E,' corno, po~·"~~a vez, as dansas fa-
Q~.J~~,J9~Jl1a,. se....()pe!'9 u , éss,~ ,~i!lcr~!is~!9. '~r~;-P~rte
~--- .~ '_.-
i'itteg~~;;te'~(iã~
..._.,....,'". ..
"~.. ,.
~erimonias feti·
m~~!~,a!,q~e hoje em dia, faz-se ne~essário. ~.~,i~ta~,chega-se à conclusão de que se torna
um esfôrço considerável para a identificação i~(gsp.~J:l~Avel certa. famili::ridade, logo de
dos temas originais. . início, com as religiões do negro, pura co-
"~'pri:tJ}jtiv.os c~Qt~L~!E}E~DPS. - afir- ~llecimento fundamental da matéria. -,,:.-
ma Luiz Heito.r - melOdicamente mais po.-,. Não se enquadraria no. espírito. do l~re-
bres, fo.ram substÚ~lid~~' ~li"'-âdap'iados'-"~~ sente livro um aprofundado estudo das cul-
formas' e~r~péiat~, E'. quase il.l~possivél ~n:-<,_ turas negras, no tocante às suas tendências
contrar, ho.je, no Brasil, cântico.s de autêntica. religio.sas, às práticas rituais e a discrimina-
pro.cedêncfããfricàna., O crioulo, negro. bra- ção to.têmica dos seus deuses. Tudo isso. po.de
sileiro, é o agente dessas transiorm.aç6es, nas" ser estudado na obra extensa de sociólogos,
quais se perde a tradição africana e as me- antro.pologistas e etnólogos, cuj as mono.gra-
lo.dias po.rtuguêsas são. modificadas' por mo.- fias constituem acervo altamente precioso..
vimentos rítmicos desconhecidos' noc~nti- ., Faz-se mister, no entanto, UIU rápido.
nente negro.". "coup-d'oeil" sôbre as caracteí:ísticas princi-
"Q,!1~mquiser debruçar-se sôbre o estudo pais dos variados cultos africanos, especial-
do manancial da música negra terá necessà- mente os praticados pelos povos yo.ruba, da
riamente de penetrar no mistério. de suas re- Nigéria, portadores das mais impo.rtantes das
ligiões, a fim de captar-lhe o. sabor dos cân- culturas negras trazidas para o Brasil.

JUdaneses e 0Jantús
C na co.sla da Guiné, desembar-
APTURADOS
caram na Bahia e lá, constituíram o maior
gô, orixá das lutas e das guerras; Yemanjá,
Yansan, Amamburuçu (Nanamburucu ou sim-
núcleo de escravatura, so.b a denominação plesmente Nanam), Oxun, Oxumaré, divin-
geral de nagôs. dades das águas; Oxóssi, deus caçador; Omu-
Go.zavam os yoruba das preferências dos lu, orixá da varíola; Irôco., Há, cultos filolá-
co.mprado.res, não. só por sua compleição. fí- tricos; Ibeji, os gêmeos; e outros de menor
sica (eram altos e corpulentos), como por importância.
suas aptidões para o. trabalho.. Sua religião Essa porção de mitos que aí está repre-
apresenta uma divindade suprema, o Olorum, senta, é claro, o culto original, na Nigéria.
cujos intermediários, os orixás, que "bai- Transplantados para o Brasil não. se co.nser-
xam" para o entendimento direto. com os varam assim. Em virtude do contacto coiu
mortais, são em número regular. outras religiões, em outro continente de "san-
Ouçamos a enumeração dêsses interme- tos católicos" e de deuses ameríndios, deu-se
diários, na palavra de Artur Ramos: "Os a fusão inevitável, perdendo mesmo os yoru-
mais co.nhecidos na Bahia são. Obalalá (Ori- ha a memória de alguns dos seus mitos.
xalá ou mais comumente Oxalá), o maior de Resistiram porém os prineipais: Xallgô, Ye-
todos; Xangô, orixá popularíssimo e do.s mais manjá, Ogun, Exu ... "
poderosos, deus do trovão; Exu, entidade ma- Co.nstantemente surgem êles llas canções
léfica; Ogun, quase tão popular quanto Xan- regionais da Bahia, como sedimento que são

-118 -
"Lundu ", segundo um desenho de RugendaR

da estrutura mítico-religiosa das populações d'Agua, no Amazonas e na Bahia. A feitiça-


mestiças daquela região. .tia nagô exerce o seu culto nos chãmados
E' ainda Artur Ramos quem nos vai fa- terreiros, apresentando-se sob denominações
lar do estranho sincretismo operado entre os diferentes, de Estado para Estado.
santos do catolicismo e os do africanismo. Na Bahia, são chamados cand ombl és; no
"f:sse sincretismo católico é um fenômeno nordeste, são catimbós e xangôs; no Rio, ma-
já largamente estudado por Nina Rodrigues cumbas; na Amazônia, pagelanças ...
e por mim. Basta lembrar que, na Bahia, Tanto nos catimbós como nas pagelanças
Oxalá identificou-se ao Senhor do Bonfim; sente-se, a par da influência negra, o domí-
Xangô, aS. Jerônimo e Santa Bárbara; Ogun,
.!iio das crenças indígenas, mais intenso nes-
/a Sto. Antônio (Bahia) e S. Jorge (Rio); Ye-
sas últimas.
manjá, a N. S. do Rosário e N. S. da Piedade;
Os próprios dirigentes, investidos em fun-
Oxun, a N. S. da Conceição (N. S. das Can"
ções sacerdotais, mudam de nome, conforme
deias, como recentemente observou Edson
a região. Na Bahia, êles são babalaôs; no
Carneiro); Nanamburucu, a Santana; Oxóssi,
Río, babás, babaloxás; no nordeste, babalo-
a S. Jorge; Omulu, a S. Bento; Ibejé, a São
Cosme e S. Damião; Exu, ao diabo ... As rixás. Tudo isso, em linguagem corriqueira
identificações prosseguem, com variantes de traduz-se por "pais de santo".
Estado e até de localidade". , Dêsses candomblés e macumbas saiu ú
O sincretismo afro-indígena também pro- grande manancial rítmico de dansas e de mú-
duziu estranhas dualidades.· A Yemanjá dos sicas, cujos motivos tanto têm impregnado o
negros é a mesma Yara, dos indígenas. Mãe' folclore afro-brasileiro.

- 119-
Festa de N. S. do Rosário, padroeira dos negros

E' fácil imaginar a importância de tal .objetivo, com as repetições intermináveis de


con:-i~:ibuição, d~do o caráter das cerimônias um único motivo, proporcionar aos seus ou-
religiosas, cujo ritual era acompanhado de vintes, de natureza contemplativa, essa espé-
dansas. músicas e cânticos. Tôdas as festas, cie de enternecimento, de estado segundo,
tôdas as comemorações, tôdas as "sessões" que é justamente o que êles procuram".
estavam estreitamente ligadas ao canto e à Tanto a macumba, no Rio, como o can-.
dansa. domblé, na Bahia, impressionaram funda-
.0 prestígio da música nas funções de mente todos aquêles que se entregaram ao
terreiro pode ser notada fàcilmente. Ela par- estudo das fontes originárias da nossa mú-
ticipa de todos os momentos, orientando mes- sica. E' o ritmo cadenciado e monótono das
mo o espírito do cerimonial. dansas e dos cantos, é a exaltação lúbrica dos
jj:.~~.t!:e 0.5 pov<?~llegros -- como diz Artur participantes, excitados, de mais em mais,
Ramos, ao estudar o folclore negro no Brasil pela cadência soturna dos instrumentos que
.-- "a música é o complemento obrigatório dirigem os "passos" e as "p.ossessões" dos
em to,}os os atos da vida do grupo: religião, sacerdotes e dos "mediuns".
J'iloslnágicos, cerimônias de guerra, caça, .Porque o sincretismo não se operou ape-
pesca, atos da vida diftria, na dôr e na ale- nas entre o culto africano e o católico; veri-
gria, no trabalho e ilas diversões públicas e ficou-se também entre aquêle e as práticas
privadas. A melodia é constituída de uma rituais do baixo espixiti_smo.
frase que' se repete sempre, durante horas Júlio Ribeiro descreve uma cena impres-
inteiras" . sionante a que assistiu, em São Paulo: "Ao
E Stephen Chauvet, em sua "Musique som de instrumentos grosseiros dansavam
negre", completa: "Essa· música tem por negros e negras, formados em vasto circulo,

- 120-

,,
agitavam~se,polineavam compassadamente, bindas e nas linhas de Angola, revelam-se
rufavam adufes aqui e ali. Um figurante, no como sobrevivências culturais dos bantus. O
meio,saltava, volteava, baixava-se, erguia- deus supremo é Zambi ou Ganga Zumba.
se, retorcia os braços, contorcia o pescoço, Daí para baixo segue-se uma série infindável
rebolia os quadris, sapateava com frenesi in- dé semi-deuses, espíritos, etc.
descritível, com uma tal prodigalidade de O zumbi (fantasma notivago) é invoca-
movimentos, com um tal desperdício de ação do pelo Quimbanda (sacerdote supremo),
nervosa e muscular, que teria estafado um tanto como pelo Embanda (pai de terreiro ou
homem branco em menos de cinco minutos, de santo). O sincretismo dos bantús é mais
E captava ... E a turba repetia em côro: acentuado com o espiritismo. Os médiuns
Eh! pomba eh! ... " exercem o contrôle dos trabalhos, desenvol-
Há cânticos de real interêsse até mesmo vidos sob a linha de Umbanda, a linha da
de certa beleza, especialmente os cânticos de Costa, e outras que tais.
Yemanjá. Para a formação da música e da dansa
Os xangôs do nordeste concorrem, por afro-brasileiras não é pequeno o contingente
sua vez, com uma .série de toadas, já bem apresentado pelos bantus. Basta dizer que o
difundidas, graças aos esforços dos que se famoso samba teve origens iniludíveis no ba-
dão ao labor de recolhê-los, devidamente au- tuque angola-congolense. Partindo dêle, veio
tenticados. sofrendo numerosas transformações até cons-
. Vê-se, pelo exposto, que a maiorcontri- tituir-se no samba de nossos dias, tão carac-
i búição do negro para a cultiiraÍnusical rlq' teristicamente nacional.
nosso pais foi, indisfal'çàvelniente a dos yo- De origem bantu são ainda o sarambe-
rubas. que, o sorongo, o caxambu, o jongo . . ,
A cultura bantu, introduzida pelos ne- Em algumas de nossas festas populares
gros procedentes de Angola e de Moçambi- há, evidentemente, sobrevivências do folclo-
que, não teve a supremacia inegável da cul- re de procedência bantu, tal como acontece
tura sudanesa, muito embora dessa forma o nos congos ou cocumbis, e os quilombos das
j lllgassem muitos estudiosos. Suas religiões, Alagoas. Artur Ramos afirma que podemos
acentuadamente no culto de zambi, dos cam- encontrar elementos totêmicos dos povos ban-

Os negros de hoje usam, ainda,


mep;mos instruJuentos de seug
nllce~traisafricanOFl: tamhorins,
~u!cas. \ambores ...

- 121 --
tus em cordões,' ranchos e clubes carnavà.les- De um modo geral ficaram conhecidos
cos, maracatus do nordeste e até mesmo no pela denominação de malês. Altos, fortes e
Bumba-meu-boi, que muitos folcloristas fi- robustos, nunca se separavam de seus talismãs
liam à tradição natalesca do boi dó presepe, ou mandingas. Os feiticeiros eram mandin-
glleiros. Os sacerdotes são conhecidos como
alufás, que distribuem as mandingas (em
geral, versículos do Alcorão, em papel, ma-
deira ou objetos vúrios), Como o menor
o culto do male ou alllfá é remanescen- grupo afdcano existente no Brasil não tar-
te do islamismo, introduzido no Xovo Mundo dou e fundir-se inteiramente com os demais,
pelos grupos sudaneses, influenciados pelo perdendo as caractel'ÍstÍeas originais de sua
ls1al11. Dêsses gl'llpOS, destacavam-se, em pri- cultura. Mesmo assim ainda se notam, na
meiro plano, os Haussás, provenientes da Bahia, resíduos iniludiveis dos negros haus-
!-;igéria do Norte. sás islamizados: a túnÍea branca dos árabes,
O caráter árabe dos haussás revela-$e nas os famosos turbantes e rodilhas em panos
contínuas revoltas que chefiavam, mesnlO da Costa, todos listrados como tecidos orien-
entre os outros negros sudaneses. Como qlle tais; as chinelinhas, e o tipo classico da baia-
continuavam, na Bahia, as insurreiç'Ões a na, tão difundido, hoje em dia, até nos car-
que sa tinham habituado, nas tribos islami- n?vais brasileiros. Suas crendiees, no en-
zadas do Sudão, Os mandingas, do Senegal tanto, perderam-se no sincretismo com ou-
(de descendência hamito-semítica) concorre- tras exercidas por agrupamentos muitíssimo
ram, por sua vez, para a transladação da cul- mais numerosos. Assim também sua música,
tura maometana, da África para o Brasil. suas dansas, seus cânticos ...

eânticos e oansas afro-8rasifeiras


S()XRE~PO sob ~(~guall te.. doho!lleIl1,~b.rªncü, __ Pobre de melodia, a mUSIca do negro se
no h01'1;or da escravidão, o negro encontrava ca;;cterÍza éspecialmente IJelo ritmo. De fra-.
um único' consôlo para esquecer, pormo-' ·ses·"simpie;i,·sem temas melódicos sedutores,
mentos, a crueldade dos castigos e das il1i~ "c'oÍÍ1 mÍla repetição constante, de uma mono-
. q]l,iclIlQes: a música, com. li ~ qual ritmava as, . . toniit que chega a enervar, conserva, porém,
dansas
-~ .- e os cantos feiticeiros. . .
uma riqueza rítmica positivamenté"esparítosa.
, ,Derivativc:> natural, sem.outro sentido que _ Graç"ªL.:à multiplicidade instrumental,
não fôsse o de amenizar o inferno da vida
que' levava, a música' impôs-se~ desde logo,.
--...
onde QL. timbres
,,~._,-~ .. '. 'mais variados ressôamao.
, .~.-

1.~do...J!.Q....\'ozerio senzalesco, cadenciado e so-,


em todos os momentos religiosos, em tôdas turnC!, sllll be.leza se expande de forma mo-
as práticas rÚuais, sintetizando, em si mes~~ . vimentada e impressionante.
ma, o caráter dominante da cultura negra no Renato de Almeida, historiando a músi-
Br~~il. ca brasileira, opina: "O ritmo foi a grande
'. Su~ influência foi, portanto,. decisiva. marca da música negra, permitindo-lhe essa
Dela nos veiô essa lascivia impudente, reve- caracterização própria, graças, sobretudo, aos
hida em nossa música, "cadência acêsa em instrumentos de percussão, ao próprio batido
requebros e encantos de impureza", como de mãos, para acompanhar as dansas, dando
,que a encerrar e a revelar "todo o feitiço do ao ritmo uma importância irrecusável e ao
pecado humano. ,. " .. mesmo .tempo~permitindo um movimento in-

122 -="_-
tenso até o frenesi, dentro de uma série va-
ri adissima de efeitos".
Em seu espírito primitivista e sincopado,
foi enorme, portanto, o cabedal que ela apre-
sentou aos futuros processos de harmoniza-
ção, em tôrno da multiplicidade das suas
cadências. Os in~trumentos de percussão
eram em grande numero, e doslllifS- vari~~
A cu!ca, inll'umenlu
dos sons, o que facultou a criação de notável ('onh€citlíssln10 nas batu-
poliritmia. Sôbre esta, surgiu um quadro ex- cada~ do lHo
tenso de dansas dramaticas fetichistas (batu-
caj és), úu simplesmente diversivas e profa-
nas (batuques). As primeiras destinam-se a
provocar o transe mistico em que a persona-
lidade do dansarino é substitui da pela do
espirito invocado. "Coreografia. alucinante
- como escreve Artur Ramos - das filhas
de santo, com participação total do corpo,
braç'os, pernas, mãos, cabeça, em movimen-
tos, e contorsões violentas, sem cansaço, sem
solução de continuidade, até as manifesta-
ções espasmódicas, finais, da queda do
santo" .
Tolenare descreve, por sua vez: "Essa "Estudos", uma enumeração precimHssnna
coreografia era caracterizada por um tremor dos cantos e dansas de negros, surgidas no
muito vivo e muito extraordinário de todos Brasil. após () fenômeno sincrético de que
os principais músculos do corpo, e um mo- elas resultaram.
vimento muito indecente dos quadris e das Todos os que' historiam a nossa música
coxas. :f:ste tremor e êste movimento, pro- Iliio deverll fl1l'tal'-sc ao dever de dtal' essa
duto de considerável fôrça muscular, exigem l'elat;<lo, como suhsidio indispensável.
muita arte e muito exercício. Os dansadores
desafiam-se para ver quem os prolonga por Ei-la:
mais tempo, e os aplausos do publico são a
recompensa do que tem os musculos mais "Cantos de origem negra, ou usados pe-
robustos e sobretudo mais móveis". los negros:
{ . Quanto aos batuques, Luiz Heitor diz que
i"são dansas profanas que pertencem ao tipo CIntIa (canção).
do batuque angola-congolense. Há apenas Lundu ou Landum (canção brasileira).
variantes, dando lugar a designações diver- Acalantos (cantigas de ninar).
sas. A mais vulgarizada é samba que pro- Invocações aos san tos (Egum)
vém, talvez, do semba (embigada) africano". Cantos de feitiçaria (em varias circuns-
. Tão forte foi a impregnação das dansas' tâncias) .
negras, na formação da nossa estrutura mu- Cantos de trahalho; nas ruas, nos ofí-
sical que até hoje elas subsistem - não em cios, nos serviços diários.
sua pureza original, é claro - através das Cantos de engenho, durante a moagem
evoluções de bailados, durante os festejos de cana.
carnavalescos ou em outras comemorações Cantos de Cllcumbis, nos bailados e ce-
populares. rimônias.
Luciano Galle!, um dos mais eruditos co- Cantos· de Congadas, em grande quanti·
nhecedores do nosso folclore, faz, em seus dade de melodias.
"S:_ªIlJ~~ de carnaval, antigo e atuaI. corpo, sem sair do lugar. No centro da roda,
~~!lt9s, de rua, alguns tornados célebres: um dansarino, às- vêzes dois, evoluem em
O Bilontra, Chô Aruana, Toca Zumba. dansas saracoteadas, de grande agilidade, e
de execução difícil.
_Dansas negras, implantadas no Brasil: O "cantador" improvisa estrofe, o c.ôro
responde enquanto ao lado estão os músicos
1 - Quimbête (Minas). com seus instrumentos ruidosos.
2 - Sarambeque (Minas). Estas dansas prolongam-se dia e noite;
3 - Sarambu (Minas). desde que circule a "pinga" e que os ânimo.';
4 ~ Sorongo (Minas e Bahia). se mantenham exaltados".
5 - Alujá (fetichista) . . t:ste quadro sintético, traçado com habi-
6 - Jequedé (fetichista). lidade por Luciano Gallet, dá uma idéia per-
7 - Cateretê (Minas, S. Paulo, Rio). feita do número e da variedade considerável
,8 - Caxambu (Minas). das dansas surgidas no Brasil, e fundamen-
9 - Batuque (nome generalizado). tadas em ritmo$ e cadências africanistas.
10 - Samba (Bahia, Rio, Pernambuco).
, ., Dos cantos deorig~m negra, hoje tão .
11 - Jongo (Estado do Rio).
exploradóspelos" compositores de música in-
12 - Lundu (inicialmente dansa).
dush:ial, de fabricação urbana, o lundu foi,
13 - Chiba (Estado do Rio).
sem dúvida, o que maior repercussão alcan-
14 - Cana Verde (Estado do Rio).
çou nas ruas e salões aristocráticos do Brasil
, 15 - Maracatu (nordeste).
imperial.
16 - Candomblé (Bahia).
17 - Côco de Zambé (Rio Grande do ,Sim, porque o lundu, nascido nas senza-
las~_ganhou_a._nJa,_espraiando-se pelas cida-
Norte).
des e penetrando nos palácios, onde os cor-
~t~~~g!,_se divertiam. Veio de Angola, como
a) - Algumas dansas tomam o nome do
instrumento principal usado na dansa: Ca- música dedansa, popularizando-se com ra-
pidez incrível, tornando-se também canção,
xambu, J equede.
com o correr dos tempos. Aí então é que
b) - Outros tomam o nome da cerimô-
sua divulgação mais avultou. Caiu em voga.
nia .principal, mesmo dansadas fora delas:
Agradou em cheio; e não tardou que o espí-
Maracatu, Candomblé.
rito licencioso tomasse conta dêle, como ex-
c) - Alguns nomes como Batuque são pressão da malícia popular. Guindou-se· fi-
genéricos; Os outros são variantes locais: nalmente para os teatros, onde foi apreciado
Samba, Chiba. pela aristocracia, que tanto se habituou a
d) - Em alguns lugares, cada nome de- ouvi-lo a ponto de levá-lo para os salões.
signa uma dansa caracteristica, deixando o Bem instalado, em meio de veludos e alca-
nome de ser genérico. tifas, o lundu adquiriu um jeito sentimental
e) -' Normalmente, as dansas são acom- e romanesco, chegando mesmo a confundir-
panhadas de batemão e cantos, às vêzes im- se com a própria modinha, que era, ao tempo.
provizados, e de vários instrumentos entre a canção dos amores fáceis do nosso mil
os quais predominam os de percussão. oitocentos e trinta.
f) - Cerias dansas também são impro- Teve a consagrá-lo os versos ligeiros c
"izadas, c.onforme a habilidade do dansarino. dengosos de poetas conhecidos do populacho
rI) -- As dansas de conjunto, como o e acatados na côrte. As meninas cantavam-
Jongo (no Estado do Hio), o Samba (Per- no à socapa ou nos salões, acompanhando-se
numbuco), o Côco de Zambé (Rio Grande molemente nas guitarras. Oliveira Martins,
do Norte) se formam de grandes rodas de em sua "História de Portugal", chega a con-
!tomens (' mulheres, que cantam em curo, siderá-lo "uma feiticeira melodia sibarita,
batem as mãos em tempo, e dansam com o em lânguidos compassos entrecortados, como

- 121-
qtlando falta o fôlego, numa embriaguês de
sensualidade voluptuosa".
Como tudo que é moda, o hmdu também
pass-õu;- passou, mas deixoll um substi'atâm
fortemente acentuado nas futuras produções
da nossa musica popular.
Com seu espírito romântico, serviu de
inspiração a um grande numero de modinhas
ou cantigas, repletas de brejeirices e lascivas
palavras de amor ...
Não faz muito tempo, Yilla Lobos com-
pôs um magnifico lundu para uma peça de
teatro de Viriato COl'réa, "Marquesa de San-
tos". Néle o autor das "Bachianas" fez re-
viver, com graça inexcedível, a leveza e o
ligeiro travo de sensualidade que fruía dos
lundus amorosos do tempo de Pedro I. Além
do lundu, há ainda alguns chôros e desafios
impregnados do sentimento emoliente e aca-
lentador das canções de senzala.

N a nomenclatura das dansas afro-brasi··


leiras distingue-se, fàcilmente, as dansas guer-
reiras das profanas e das religiosas.
As primeiras, em seu cará ter bélico; as
segundas, em seu tom sensualista e apaixo ..
nado; as ultimas, por sua forma mística,
marcam, nitidamente, a classificação em que
se apresentam à vista dos estudiosos.
O negro, sambador inveterado, saraco-
teava incansàvehnente nos porões dos "tum-
beiros", nos terreiros aplanados e nos pátios
das senzalas. Ágil de movimentos, de leveza
impressionante, sua natureza o. induzia, ir-
reprimivelmente, à prática alucinante da co- Tambor negro, ladeado por duas trombetas ind!genas.
reografia, em contraste frisante com a mole- (Museu da Escola Nacional de lIIúsica),

za e o sedentarismo comodista dos senhores


brancos, Repassando a lista de dansas negras, em
nosso pais, repontam, em primeiro lugar, o
Dessa forma, não é de estranhar o domi- batuque eo samba.
nio absoluto da influência do negro, nas dan-
Ambos chegam a confundir-se, muitas
;.,
sas que surgiam, novas, no Brasil, mercê do vêzes, sendo difícil estabelecer-se, em certas
sincretismo operado, pouco a .pouco, entre
regiões, diferenças essencias. Confundem-se
elas e as demais importadas do velho mundo.
também os pesquisadores da etímologia de
Influencia extraordinária, decisiva. Tra- ambos os termos, no afã de definir-lhes o
ço marcante na futura música nacionalista. significado 'justo.

-- 125 -
Muitas são as opiniões a respeito da ori- Pernambuco, como Samba trançado; em Mi-
gem da palavra batuque, de onde saiu a mo- nas Gerais, como Cateretê; no Maranhão,
derna batucada. O que parece mais certo,. no como Ponga e Dansa do Tambor; no sul do
entanto, é atribuir-lhe um sentido estrita- país, como Fandango; na Bahia, como Sa-
mente onomatopaico (batuque, batuque, bã~ rambeque, Sarambé e Sorongo; no Pará, co-
tuque ... ) . mo Carimbó e no Rio de Janeiro, como as
Quanto ao samba, é mais corrente a con-· conhecidissimas batucadas, nascidas nos mor-
viéç-ã~o-de que o têrmo deriva dese-mba (em- ros da· cidade e espalhadas pelos centros, no
bigada), dado o passo mais importante dá tríduo carnavalesco.
dansa ser, justamente, o momento das famo- Os autores de música popular, de cara-
sas embigadas, que os dansarinos usam com.o ter~~indúsfri~Ii~á.vel, estão-fartos· de explorar
convite para a exibição pessoal, no centro da o samba e o batuque, oferecendo eontinua--
roda. ..
II\ente ao mercado de discos, uma aluvião
O samba e o batuque têm sido descritos esf()n t~ã.nte . de- prodúções boás e más . Nos'~
em páginas magníficas, quer por· documen- té-âtros, nos. filIlles nacionais, nos cassinos é,
taristas, observadores frios, ou por literatos espéêíãímente, nas estaçõe's radiodifusoras, a
de excitante e imaginosa fantasia. Não há, epidemia do samba e do batuque atinge pa-
creio, nenhum brasileiro que não o conheça, roxismos já bastante condenáveis. Em seu
que já não o tenha assistido, no interior 0\1 delírio sambístico chegam a exportar canto-
nos centros urbanos. res
~.-..... .
, ,
de microfones para exibições no estran-
O caráter lúbrico da dansa, o estrépito geiro. .-
ensurdecedoramente monótono do seu acom~ "O samba é brasileiro!" E' a sentença
panhamento, junto à quente excitação pro~ que anda, comumente, na bôca de muito bra-
duzida pelo aceleramento de movimentos e sileiro supernacionalista ... E o próprio Walt
pelas grandes libações de bebidas alcoólica~, Disney já o popularizou através de uma pe-
fazem do batuque e do samba qualquer coisa lícula magnífica: "Os três cavaleiros".
de atraente e de pitoresco, revelação de um
quadro bárbaro, cujos coloridos traem, indis'-
eutivelmente, a origem frisante do africano.
Os requebros coleantes das negrinhas e A respeito do cateretê fel'\'ilham tam-
mulatas, de contornos fortemente desenha- bém as opiniões em contrário.
dos; o bamboleio e o tremelicar dos quadris E' dansa africana? E' dama indígena '?
fartos, dos seios turgicos, das côxas, vereIa·· "Chi lo sá?".
deiras colunas de ébano _. ao som dos tam-
bores, das cuícas, dos chocalhos, dos adufes, Suas origens têm sido esmerilhadas con-
dos pandeiros e dOS'i.,ganz~s, têm inspirado cientemente, não faltando os que lhe atribuem
dezenas de páginas de~~~\evação ~rtistica, raízes ameríndias, como também os que o
J,.-1i'I'.:-.' ,

não só na literatura como também na mu-


"
prendem a qualquer obscura modalidade
sica. Seu ritmo quente fêz Alexandre Lev)' afro-brasileira.
produzir seu famosíssimo "Samba ", e Loren- O próprio nome não conseguiu até hoje
zo Fernândez compor um "Batuque". Isto, definição etimológica consentânea. De qual-
para citar apenas dois, como exemplificação. quer forma é dansa tipicamente brasileira,
Das senzalas elas se espraiaram pelo país que surge em vários Estados, sob designações
inteiro, penetrando em todos os costumes, diversas. Alteram-se também de região para
impregnando-os com a "malemoh~ncia" de seu região os assuntos das modas do cateretê e
ritmo sensual. a disposição dos dansarinos. De um modo
Hoje é conhecido em varios Estados sob geral, no entanto, é "dansa acompanhada de
as mais diversas denominações. ~o Estado canto, sapateada e palmeada ao som da vio-
do Rio, por exemplo, surge como longo; em la" , como a classifica Valdomiro da Silveira.

-126 -
Dentro das variedades do samba, podem me e atrapalhada, cuja enunciação deve ser
ser notados ainda o miudinho, dansado em rapida, apressadamente ritmada. Cantam-na
sambas~de-roda ou em salões burgueses; o preferencialmente de improviso.
jongo, mais popularizado no Rio, em Minas Como variantes do samba apontam-se
e S. Paulo, dansado estrepitosamente ao som ainda o recortado, sem nada de especifica-
de palmas e tambores; os côcos e emboladas, mente interessante; o cururu, de caráter pau-
listano, por excelência, e de uma monotonia
vulgarizadíssimos em nosso populário nor-
enervante; o ciriri, peculiar ao norte e ao
destino, mais praieiro do que sertanista.
Estado de Mato Grosso, além de outras como
A embolada é antes cantada do que dan- o catimbó, no Para, e o pezinho, em Santa
sada. Constitui-se de uma versalhada enor- Catarina.

c ~aracatú
.O UTRO aspecto da fusão sincrética dos três
elementos raciais esta sobejamente eviden-
ou transformadas ao contacto com as demais
culturas.
ciado· na formação de algumas dansas dra- Os bailados populares do negro no Bra-
maticas que nada mais são do que bailados sil podem ser catalogados em congas, conga-
populares. das, cucllmbis,quilombos, qllicllmbl'es e ma-
E' certo que foi o branco o portador para racatlls.
o Brasil das dansas descritivas, encerrando O primeiro e o último são, sem dúvida,
enredos embebidos, geralmente, nas tradições os de maior relevância, onde reponta com
dos vários países de origem. Aqui chegando, mais vigoroso delineamento a imposição do
no entanto, êsses bailados populares sofre- temário africanista,
ram a inevitavel interpenetração dos motivo~ ()s congos e os 11lw'a('atl1S resumem, conl
aborígenes e africanos já existentes, Resul- ~feito, tôda a pujança daquela músÍl'a de rit-
taram, dela, diversos tipos de dansas dramá- I}lOS bárbaros, onde se expande u .. dolênchl
ticas afro-amerindias, nngustiosa da raça escravizada,
Como sempre, o contingente oferecido Derivatiyo para a expansão dos recalques
pelo negro foi o de maior monta, e das fixações produzidas peJa opressão do
Deixo, de propósito, para mais tarde, o branco, as dansas africanas surgiam como
registro de algumas dessas dansas, especial- uma necessidade de extravazamento inconti-
mente aquelas em que o predomínio do por- da, como um resumo dos seus poucos mo-
tuguês está notoriamente firmado. Por exem- mentos de alegria. , .
pio: as chulas, os fandangos e cheganças, a O próprio A.rtur Ramos, estudando o fol-
cana-verde; a chimarrita, os pastoris e reis a- clore negro, classifica os congos como "o de-
dos, ranchos, etc. A intromissão de motivos lineamento dos grandes complexos primitivos.
ameríndios e, principalmente, de motivos o poder absoluto do pai, a revolta dos filhos,
africanos é notada com freqüência, nessas a morte do pai, a confusão, etc.",
dansas, especialmente nos ranchos, no bum- Dentro do seu supremo desconfôrto (l
ba-meu-boi, nas pastoris. negro contava, apenas, com os momentos fu-
Neste capítulo, dedicado à contribuição gazes de "liberdade", que antecediam a noite
exclusiva do negro para a formação da mú- de sono pesado, após um dia inteiro de labor
sica brasileira, devem ser incluidas apenas as ininterrupto e bárbaro. Era naquelas horas
dansas dramáticas, surgidas dos costumes e que êles, reunidos nos pátios das senzalas pro-
tradições do elemento africano, e adaptadas curavam dar expansividade aos seus senti-

-127 -
lliéntos ~e bárbaros, acorrentados ao ergás- O desfile dós cortejos, nos cOhgos ou
lulo. E dansavam. E calJ.tavam. E represen- congadas, pelas l'uasafora,· era um espetá-
tavam. culo curioso. Amnltidão, tôda paramentada
Daí surgiram os bailados populares e a com fantasias de côres vivas, evolui a pelas
própria interpretação de ten1.as dramáticos ruas, cantando e dansando, até ao local onde
em dansas a caráter. deveria ter inicio a representação.
De feição e intenção religiosa, os congos Os motivos dramáticos eram ins.pirados
e maracatus, à medida que se foram espa- na história da rainha Ginga Bandi, que go-
lhando pelas diversas regiões do país, tive- vernou Angola, no século XVII. Essa rainha
ram suas características alteradas, com a in- decidiu certa vez enviar uma embaixada atre-
tromissão de novos temas, novas variantes vida ao reis D. Henrique ou D. Cariongo, Rei
musicais ou dramáticas. Chegaram, por vê- dos Congos. Seu filho, o heróico Principe
zes, à profanidade. Suena (ou Mameto) interpela os temerários,
Os congos ou congadas --- como os de- sendo morto por êles. Entra em cena, então,
mais bailados e dausas dramáticas, no Brasil o Quimbôto (feiticeiro), que ressuscita o in-
- não deixam de sofrer as slias controver- fante, para a glória do povo angolês ...
sias, quanto aos detalhes de execução e apre- Tôdas essas figuras desfilam em ordem
sentação. Sua origem, no entanto, é coisa de dansa, fazendo evoluç'ões coreográficas,
indiscutível: procede da antiga tradição afri- em meneios de galanteria e requebros sen-
cana, vinda do século dezesseis, da coroação suais.
de reis negro1!, escolhidos por eleição e sole-
E' fácil imaginar-se o pitoresco de uma
nemente investidos do poder . A representa-
cena daquelas. Um rei, metido em roupa-
ção aqui era levada a efeito no dia da festa
gens berrantes, com uma corôa de lata
de Nossa Senhora do Rosário e como prova
na cabeça, seguido de uma côrte bizarra,
de devoção, ao glorioso santo negro, São Be-
composta de príncipes, cortezãos, exército e
nedito. Padroeiro de largo prestigio no "flos
cantadores, entoando canções tristes de sen-
santorum" dos escravos, para êle apelavam
zala, ao longo das estradas. Ladeando a côrte
continuamente, coisa que até hoje se verifica,
marchavam os pedintes, esticando sacolas
nas cerimônias de macumbas e candomblés.
para que das sacadas ou da multidão cho-
vessem as patacas destinadas à X S. do
"Nesse mato tem fôia,
Rosário.
Tem rosário de Nossa Senhora,
Aruê, São Benedito, A própria igreja concorreu para que se
São Benedito, valei-me esta hora" atribuisse certo caráter cristão às festas da
congada, chegando mesmo a proceder à co-
roação do caricato rei, dentro dos templos,
A principio os congos consistiam apenas
diante dos altares, que para isso eram ilu-
nas cerimônias de coroação dos reis e nada
minados e enfeitados. Os sinos repicavam e
mais eram do que um simples desfile do sé-
quito real. Mais tarde, porém, adicionou-se-" as bandejas areadas corriam diante de tôdn
lhe uma segunda parte, isto é, os motivos gente, enchendo-se de dinheiro ...
dramáticos. Dessa forma, o bailado passou a Luiz Edmundo alude a um têrmo lavra-
ser dividido em dois atos distintos: o cortejo do na igreja da Lampadoza, com data de
e a representação. Era patente a caricatura 1811, onde está consignada a coro~ç'ão do
das côrtes português as através das figuras negro Caetano Lopes dos Santos (rei) e da
que tomavam parte na função. Além do mo- fulô Maria Joaquina (rainha).
narca e dos cortezãos mais eminentes, apa- Carregados aos ombros de negros robus-
reciam ainda marechais, coronéis, arautos. tos, os andores dos monarcas dominam a
Imitavam até o cerimonial da côrte no multidão, que desfila aos gritos e alaridos,
tratamento dos figurões, que só mereciam tendo as bandas de música à frente. A ne-
"majestade", "excelência", etc. grada sua, em evoluções dificeis, ensopando

-128 -
de suor fétido as roupagens de sêda.e de
belbute.
Negro que não acaba maisl
Imponente, ostentando com orgulho fi
corôa de papelão dourado, sua majestade
abre, para os circunstantes, as grandes bei-
çolas, em sorriso alvar. Sua fantasia é um
amontoado de panejamentos pesados, salpi-
cado de pedaços de metal prateado, recorta-
dos de latas de flandres. Logo após vem a
Chocalho de ferro batido, da, tribos sul-africana"
rainha. Atufada, por sua vez, em mantaréus (i\Iuseu ::\acional - nlo de ,Janeiro)
pesados, mal pode manter-se sôbre o andor,
aos bamboleios e sacudidelas. movimentos de um parafuso, Mas recuam
Ao cabo de algum tempo, chegam ao lo- logo, rei e rainha, indo tomar assento nos
cal da representação. Termina, então, a pri- respectivos tronos, sob os pálios refulgentes
meira parte da congada. de lantejoulas,
Variam substancialmente as âpresenta- Soam agora os ásperos e grotescos ins-
ções da segunda parte. Variam em forina; trumentos, em COmpasso de jongo, Há uma
em essência, porém, conservain o mesmo voz que insinua:
espírito.
Há, por vêzes, complicações de entrecho, Quemquerê oia congo do má
com interferências de embaixadores da Tur- Gira Calunga
quia, almirantes da Loanda, reis de Mana- Manu que vem lá.
bim, de Canindé, etc.
Luiz Edmundo descreve, com o lavor ele Do idioma africano ainda restam, como
sua prosa literária, um espetáculo de conga- se vê, na versalhada tôsca das congadas, al-
da, no Rio de Janeiro, ao tempo dos Vice- guns vocábulos. Da floresta africana a lem-
reis. Vale a pena reproduzi-lo, em sua tirada branc:a, porém, se apaga lentamente. O dra-
fündamen tal. ma coreográfico já vai perdendo o seu cunho
"Erguendo-se do trono de improviso e de origem. Evolue. Adapta-se.
pôsto à flor da terra, o rei, aí, resvalando o O mameto, filho do rei, um molecote de
pernil cinqüentão, ataca um bailado curioso, dez anos, como os monarcas todo metido em
sempre envôlto na capa pesadissima, fazen- sêdas e C"om sua capa de belbute, logo que
do chocalhar as estrêIas e as luas de metal: sentam em seus tronos o rei e a rainha,
avança e, em circulos, a erguer os bracinhos
Sã rei du Congo tenros, põe-se a dansar, cantando em voz de
Quero brincá; falsete:
Cheguei agora Mameto do Congo
de Portugá. -~,- . Quero brincá;
Cheguei agora
o côro: de Portugá,

E' Sambangalá, E' quàndo, rompendo a fila dos que for-


chegado agora mam o cercado humano, marcando o campu
de Portugá. onde se desenrola a fUl'ça, surge um caboelu
de ôlho trágico, vestido como um cacique. e
A rainha, que seguiu o rei nas suas dia- que desfere o tacape terrível sôbre a cabeça
bruras coreográficas, baila, também, sacudin- do mameto, Enquanto o filho do rei resvala,
do o tundá revôlto, aos rebolos, imitando os morto, dansa, o mesmo, um bailado faunea-

-- 129 -
no, a agitar o seu capacete de plumas e a Os cucumbis se apresentam, no panora-
sua tanga de penas de arara e assu. ma das dansas dramáticas, como uma nova
Ouve-se, aí, uma voz que lamenta: modalidade dos congos ou congadas.
Com pequenas variantes, guardam, no
Mala quilombé, ó quilombé I fundo, a mesma substância de auto represen-
tado em praça pública, com o mesmo enrêdo
E ve-se logo o capataz que se dispõe, dramático. Ja os quilombose qllicllmbres
em passos cabalísticos, a participar ao rei a diferem, em sua essência, das dansas prece-
noticia da tragédia, a morte do príncipe. E' dentes. Celebram o Quilombo dos Palmares,
do poema. O rei ouve a nova estranha dan- e se conservam, principalmente, na tradição
sando um bailado trágico. E manda chamar popular das Alagoas.
então o feiticeiro (quimboto), a quem orde- Pereira de Melo descreve-os como "dan-
na que faç'a reviver, sem demora, o ma- sas africanas por meio das quais os negros
meto" . representavam simuladamente combates ha-
O pai de santo dansa agitadamente e vidos entre escravos foragidos e refugiados
canta: nos sertões do nosso país, contra indígenas
que, os aprisionando, vendiam-nos aos espec-
r: mamaô. r: mamaô. tadores, sendo o produto empregado nas des-
Ganga rumbá, seiserê iacô pesas da folgança".
r: mamaô. r: mamaô. O desfêcho - segundo Luiz Heitor .-
Zumbi, Zumbi, oia Zumbi, com a derrota dos negros pelos índios, entre
Oia mameto mochicongo, apupos dos assistentes, faz pensar que a od·
Oia papeto ... " gem negra dessa folgança, embora geralmen-
te admitida, pode ser posta em dúvida.
E por aí adiante, com respostas oportu- Os maracatlls, cuja etimologia do próprio
nas do côro. título tem sido esmerilhada detidamente, sem
O quimboto acaba "ressuscitando" o ma- que se chegasse, contudo, a conclusões defi-
meto, que passa a dansar alucinadamente. nitivas e irretorquíveis, é uma dansa drama-
A função termina no casamento do quim- tica, cujo centro nuclear está, sem duvida, no
boto com uma das jovens princesas que suas Estado de Pernambuco. Consta apenas de um
majestades lhe dão por espôsa ... longo desfile, sem representação de grande
Outros escritores deixaram em paginas interêsse, embora seja seu designio final o
apreciáveis, descrições circunstanciadas de coroamento do Rei.
congos e congadas. Uns reconstituindo, co- Vejamos como Pereira da Costa descre-
mo o cronista do Rio de Janeiro; outros, ve o desfile de um maracatu:
observadores diretos da cerimônia, testemu- "Rompe o préstito um estandarte ladea-
nhas de vista que foram, como, por exem- do por archeiros, seguindo~.se em alas dois
plo, Spix e Martius. cordões de mulheres lindamente ataviadas,
Podem ainda ser encontradas excelentes com os seus turbantes ornados de fitas de
descrições em Mário de Andrade, Gustavo côres variegadas, espelhinhos e outros enfei-
Barroso, Koster, Pereira da Costa, Vieira tes, figurando no meio dêsses cordões várias
Fazenda, e alguns outros. personagens, entre as quais os que conduzem
Inspirado no ritmo impressionante da- os fetiches religiosos - um galo de madeira,
quela atoarda bárbara e na melopéia cons- um jacaré empalhado- e uma boneca de ves-
tante que caracteriza a cantoria da cerimô- tes brancas com manto azul; - e logo após,
nia da coroação, Francisco Mignone compôs formados em linha, figuram os dignitários
uma pagina notavel, a "Congada", uma das da côrte, fe~hando o préstito o rei e a rainha.
mais impressionantes de seu repertório e, r:stes dois personagens, ostentando as in-
sem favor, da musÍGa brasileira. sígnias da realeza, como corôas, cetros e

130 -
compridos mantos, marcham sob uma gran- 'Mário de Andrade assim o descreve:
de umbela e guardados por archeiros. "Embebedadas (as pretas velhas) pela
No couce vêm os instrumentos: tambo- percussão violentíssima, dansavam lentas,
res, buzinas e outros de feição africana, que molengas, bamboleando levemente os quar-
acompanham -os cantos de marcha e dansas tos, num passinho curto, quase inexistente,
diversas com um estrépito horrível. O canto sem figuração nenhuma dos pés. Os braços,
de marcha entoado por tôda a comitiva com as mãos é que se movem mais, ao contorcer
fragoroso acompanhamento dos instrumen- preguicento dos torsos. Os braços vão se er-
tos, consta de uma toada acomodada ao pas- guendo, se abrem, sem nunca se esticarem
so, com letras de repetiç'ão constante, como· completamente, no ombro, no cotovelo, no
se vê da seguinte, que consignamos como tipo pulso, aproveitando as articulações com de-
da feição particular dessas toadas: lícia, para ondularem sempre. Às vêzes, o
tôrso parece perder o equilíbrio e lerdamente
Aruenda qui tenda, tenda vai se inclinando para uma banda, e o braço
dêsse lado se abaixa também, acrescentando
Aruenda qui tenda, tenda
o seu valor de pêso, enquanto o outro se
Aruenda de totorotÓ".
ergue e penetra no ar, numa circulação con-
tinua, vagarenta. 'Mas também, às vêzes,
As dansas, no maracatu, estão entregues
mais raro, como numa quebra de êxtase da-
ao livre arbítrio dos figurantes, de-vez-que
nada, um e outro braço quedam de sopetão
não existe marcação coreográfica especial.
em gestos bruscos, rapidíssimos, como se um
Cada um faz o que quer, sob a sugestão fre-
tremor perturbasse a diluição aérea do ser ...
nética da música. Esta, sim, é de um calor
Continua logo a lentidão volutuosa, sem ne-
rítmico raramente observado. Prodigiosa-
nhuma impureza, sêres vindos de outros pén-
mente obsedante, a música bárbara dos ma-
samentos, que na miséria, na velhice e na
racatus eletriza e empolga a imaginação dos
decadência de agora, eíigem, além de minha
bailarinos, proporcionando-lhes imprevistos
curiosidade, meu respeito, tão cheios de sua
sensacionais.
verdade êles estavam".
Os blocos de maracatus - que hoje em Os maracatus, com o seu ritmo violento
dia sobrevivem apenas nos festejos carnava- e empolgante, fornecem um manancial de-
lescos - são organizados como "nações", em veras apreciável aos compositores brasileiros.
cuja estruturação as pessoas reais aparecem 'Muitos dêles, aliás, já se têm inspirado na
de mistura. com figuras de animais. Dessa cadência quente e esfusiante da dansa negra,
forma, vêem-se o Rei e a Rainha dirigindo sendo justo citar a obra notável de Francisco
um séquito considerável de bonecas, jacarés, Mignone, o "Maracatu de Chico Rei", como
galos de madeira, calungas, etc. outra das mais expressivas páginas da mú-
O desfile é de um pitoresco admirável. sica brasileira, na atualidade .

• • •

-- 101
!Jnstrumentos a{ro.Crasifeiros
A o contr~!:i(L90que~se veriÚca nas tribos.
selv(colas- do Brasil, os negros quas~não
12 - 1ll1l11l!lgl1
13 - marimba._
~4 -
25 -
vuvu ou vu
xequerê ou xe-
p'ossuiam instrumentos de' sôpro ,Én~qu~~~to" 14 ~. puita quedê
o aborigene soprava furiosa~ent~"l;á's irom-'
betas de Jurupari, nas flautas e nas buzinas, A essa lista podem ser acrescentados
tocaúdo até com as narinas, o desterrado muitos. outros, tais como guizos, campainhas,
afri~~_noeontentava-se~m j)erc1,l\ircl.e mil e chocalhos, bombos, etc. Muitos dêles são en-
.uma formas diferentes. contrados no Museu Nacional, cuja coleção é
A percussão foi realmente a única mo- das mais preciosas.
dalidãdeque~mpregaram para a formidável' "'yindos para o Br:~sjl.. çul11PIi!1dQ se:udes-
expressão. rítmica que se encerra na' música tino amargo de escravos acorrentados .~_ von- .
_J!frº-:hx~sUeil~~.·_A~ vozes nostálgicas, sotur-
-dãded~~ ;enhór'es, os africanos construíram
namente arrastadas eram cadenciadas, de o§....J?,eus instrumentos da forma mais rudi-.
m~ntar e de mais singela execllção.
maneira atordoante por tôdas as espécies de
tambores, atabaques, ganzás, puítas, choca- ~_o,.~.~~L curso de folclore nacional, Luiz.
lhos, etc., de que era constituído o instru- '~r,,-ªI?T~s.en ta, par!! estudo, a divi~ão, (',on-::
mental negróide. s!l:~.rada por Chauvet, .do~instrumental negrg,
em instrumentos de ritmo e instmmentos de
"Comº~jnstrument9.cle~9pro_cita-se ape-
nas un:!JI. flauta de cana, que êks tãfha,:anl-
sôpro, propriamente ditQs.
"Os instrumentos de ritmo são:
em vários tipos, semelhante às fla~tasd~
a) Tambores, de todos os tamanhos e de
Pan, tendo de 4 a 7 tubos. Dessas, uma única
é . encontrada no Brasil, como de procedên- diversos f~r~atõ;, desde os grandes, para si-
cia negra: uma pequena flauta de taquara nais, atingindo 3,30 m. de altura, até os me-
chamada "afofiê". nores, em forma de ampulheta. Podem ter
pele numa só ou em ambas as extremidades;
D,en,tre os instrumentos de corda, podem são percutidos com as mãos ou com ba-
.,~~r"a§sin~lªdos os arcos sonoros, com u~a quetas.
,!.:~~_da única e uma cabaça, servIndo de res-" b) Tambores de fricção, encontrados em
sonador.
~~'--
Angola (puíta) e no CÜilgO (Iukombye e coy
. Lucian,o Gallet, embrenhado em pesqui- na bala) .
, s~sJ~speitáveis sÔ,bre a contribuição instru- c) Tam-tans ou gongos de madeira, ci-
mental do negro, apresenta-nos uma lista de _H!!S!~,~~9.s QU, acháiãêiõS,:lltilizâdos, pril1cipal-
vinte e cinco instrumentos, aqui transcritos mente, para a transmissão de sinais. Os ta-
em ordem alfabética: manhos variam, desde os gigantescos, usados
pelos Azandês (2,20 m. de comprimento), aos
1 -;- atabaque 15 - piano de cuia pequenos, do Congo Belga, que o executante
2 - adufe 16 - pandeiro, segura em uma das mãos, empunhando com
3 - agogó li - pererenga a outra a baqueta. Os grandes tam-tans ser-
4: - berimbau 18 -, quissange vem para transmitir sinais à distância.
5 - carimbó d) Trombetas deÔ~so,. de chifre, de
19 - roncador
6 ---: caxambu . marfim-;-Õii-'-d~" m~deira, co~ embocadur~
20 - socador
7 - cucumbi }~i~r;1.~· O~' tamanhos variam (as maiores
21 - tambor ou
8 - chocalho . têm 1,50 m. de comprimento).
9 - fungador· tambu e) _A~s9b!os diversos em madeira, chi- .
10 - ganza 22 - triângulo fre, ôsso ou marfim, com ou sem orifícios
11 - górigOI1 23 - ubatá para dedilhar. Apresentam a forma tubular

132 -
ou a de pequenas cabaças esféricas ou acha-
tadas.
f) ,~t~~_~.~.i!ID:Q_§.e.J1Lb.ªdJl.19 (simples
ou duplas).
g) . Chocalho~. e. guizQ~ de ma~e!~ll e de ..
frutos ~ê~ô's :·-Ó~ Kzankaras dansam acompa-
cnhados, unicamente, pelos guizos atados aos
seus próprios braç'os e pernas.
Os instrumentos pràpria~ente mll§jca!S
'" ....
_,~ .,~~-

são:
--~) Sanz.ao~ Zimbaé uma prancheta
grossa, g;;alÍli.~Iite 6ca,sôbre a qual se acham
prêsas, por uma das extremidades algumas
lâminas de ferro forj.fldo (7 a. 10), de váriof,
tamanhos. Descansando sôbre um cavalete
fixo, essas lâminas s~o postas em vibração
pela extremidade livre. Algumas vêzes, a
prancheta não é ôca; nesse caso, geralmente,
o instrumento tem uma cabaça servindo de Chocalho de ferro batido (Sul da Africa) e mn "Otchis-
saje" das tribos de Angola. (}!llsell Nacional - Rio)
caixa de ressonância. Toca~se segurando a
prancheta com as duas mãos e abaixando. as
Rumpi - idem.
lâminas com os polegares, para em segUIda
Batá - pequeno.
soltá-las. :Muito divulgado na África Equa-
Chama, Conguê, Gongon, Mangonguê ou
torial.
Elu - idem.
b) Marimbas são os xilofones. africanos Pererenga - o menor de todos.
(chamados bala no Sudão), munidos de ca- Incomba ou ingono - Pernambuco e
bacas servindo de caixa de ressonância. Ins- outros Estados do Norte.
tr~mento conhecido em tôda a Africa. Candongueiro _. de jongo.
c) Flauta de cana, de varios tipos (in- Tambu - idem.
cluind;?rãUtã~-dê-p'a-;: tendo de 4 a 7 tubos). Zambê - Nordeste.
d) Instrumentos de cord.a <!~ "\,~!io.s .!iI>()s
Os tambores de fricção têm, vulgarmen-
(arcos -sonõrõS~-cõm Uilíâ Ílnica corda e ca-
te, os nomes, ja hoje tão familiares ao cario-
b;~a como ressonador; arpas; violinos de
ca, de cuíca ou puíta. Também são chama-
. UI~a'só corda; liras; citaras; alaúdes; e ou-o
dos de tambor onca, no Maranhão; roncador,
h;üs'deconformação sui-generis)".
no Pará; socado,: e flzngador, em ambos os
"'-R~f~rindo-se ao alabaqlle ou tabaqlle, Estados.
Nina Rodrigues assim o descreve:
Todo esse instrumental de percussão foi
"Variadíssimo de forma, é fundamental- o responsavel pelos efeitos formidaveis do
mente constituído por um grosso cilindro oco, tam-tam africano, verdadeiro "background"
de madeira, tronco de árvore escavado in- da música brasileira.
ternamente, . em cuja extremidade superior
Nos festejos carnavalescos, especialmen-
se distende fortemente lima pele de animal,
te no Rio, tornou-se considerável a vulgari-
sôbre a qual se bate com o punho fechado
zacão dos tambores negros em tôdas as suas
ou vaquetas".
m~dalidades. Ao desfilar das "escolas de
CurioSa lista de lambores é ainda apre- samba" passam," diante da multidão, aos me-
sentada por Luiz Heitor: neios evolucionis tas. figuras de "r11a landros"
Ilu - grande. tocando pandeiros, cuícas, ganzas ...
Rum .- idem. Populari~arall1-se o::; instrumentos de rit-
Lé -- médio. mo dos africanos; o mesmo nãô aconteceu.

133 -
pode ser um pedaço de ferro qualquer, per-
cutido por outro menor. Tais sinetas, sem
badalo, são freqüentemente duplas.
Quanto ao chocalho dos negros é êle, por
excelência, o piano de cuia (agê, aguê, xa-
que-xaque ou caba<Ja). O cheJ.e é um cho-
calho de cobre, de função religiosa,
Luciano Gallet apon.ta, ainda, a sanza,
curioso instrumento confeccionado com uma
carapaça de jaboti que, substituia, as vêzes,
a cuíca. Como as marimbas, que lograram
grande difusão no período colonial, a sanza
('stá. hoje completamente em desuso.
Da família dos arcos sonoros produzidos
no Brasil, podem ser destacados o berimbau,
a gunga, da Bahia; o urucungo, o gobo e o
bucumbllmba. Todos êsses, de resto, ao que
afirmam pesquisadores, são nomes diferen-
tes de um mesmo instrumento.
Edson Carneiro assim descreve o berim-
Chocalho de enfeite das tribos africanas, (Museu
bau: "Nada mais é do que um arco de ma-
Nacional - Rio de Janeiro) , deira vibrado por uma vareta. A êsse arco
se junta a metade de unia cabaça, prêsa a
no entanto, quanto aos de caráter propria- êle por um cordão que atravessa o fundo da
mente musical. As sinetas de metal são cha- mesma. A parte óca da cabaça serve de caixa
madas, no Brasil, agogô e adjá. O primeiro de ressonância, ligada ao peito do tocador",

[}njtuência aO neJro na música 8rasifeira


'\ A jºftu~J.1ci.a e~ercidapelo el(!lII,ento afri-
J!ano sôbre a música brasileira, que se de-
profunda expressão racial estuanles da mais
expressiva fôrça telúrica; música palpitante
senvolve em sentido acentuadamente nacio- de perorações, de explosões barbaras, de sus-
. nalista, é das mais notórias, Qualquer um surros, de suspiros, de gemidos, de saudades
fàcilmente poderá senti-la. Mesmo porque, que flutuam na doçura dos acordes e das
nas veias da maior parte do povo brasileiro melodias descritivas. E eu, que tenho nas
circulam gotas de sangue negro, daquêle ge- veias o sangue negro em grande escala, não
neroso sangue que era de pai João escravo posso ouvir a música de Francisco Mignone
ou da mãe-negra, tão dócil e tão abnegada. sem sentir uma saudade atavica dos areais
Recente ou remotamente inoculado, lá extensos de Loanda, onde andei em épocas
estão elas, as hemoglobinas que os bantus remotíssimas, à sombra dos coqueirais, fu-
e os sudaneses nos legaram'.' Não adianta gindo ao cativeiro, ou embebendo a alma na
negar, loura beleza dos painéis palpitantes de sol.
Ouvindo a arte de Francisco Mignone, E quando ouço o "Maracatu do Chico Rei"
escreveu certa vez, um jornalista sincero: "A ou o "Babaloxá", fico inquieto, sentindo uma
música do maestro brasileiro é dessas músi- coisa inexplicavel verrumar-me o coração; e
cas gigantescas e gloriosas, infladas da mais escuto, dentro da música, as peroraç'ões de

-134-
negros, o tronitar dos rituais orientando as
macumbas pelos terreiros descampados, re-
percutindo pelas solidões infindas, E parece
até que escuto alguém dizer: - Samba, ne-
gro-moço, que negro velho já sambou; que
negro velho está cansado de sambar, de re-
quebrar, de dormir no tronco, de furar a
terra com os dentes da enxada, no eito dos
cafezais e dos canaviais. Dansa, negro-moço,
que negro velho já dansou!"."
Francisco Mignone merece realmente
exaltações como esta, pois muitas são as suas
composições cujos motivos foram abeberados
na linfa do puro africanismo,
'\ Villa Lobos, por sua vez, que costuma
dissecar células rítmicas, conclui pelo ma-
nancial inestimável que o elemento afro nos
legou e que ai está mareante, nas diretivas
da música brasileira .'KArtista de largos re-
cursos, o autor de "Bachianas" recolhe os
temas africanos, mas os transfigura dentro
da magia de seu sentimento criador, "Cria",
portanto, obra sua, personalissima e incon- Tipos africanos, de "reco-reco" e corrente de madeira,
feitos de uma s6 peça (Coleção do Museu Nacional -
fundível, Rio de ,Taneiro)

Em uma imagem pitoresca ---- fato co-


mum na prosa agradável do maestro - êle origem ameríndia, tudo o mais ficou impreg-
me demonstrou, certa vez, que procede jus- nado do totemismo africano, de sua lascívia
tamente como os droguistas, na manipulação irresistível e capitosa",
de produtos farmacêuticos: ao passo que Lorenzo Fernândez também afirma, con·
êstes tomam as raízes, as ervas, e demais ele- victamente: "A importância enorme da in-
mentos da térra, e, valendo-se dos princípios fluência negra na música brasileira é fato
da terapêutica universal, transformam-nos, evidente e só poderá ser negada por falso
servindo-se dos mesmos como base em pro- pudor perante a civilização européia. Não se
dutos medicinais, êle também recolhe os te- deve fugir à história, O negro, trazido como
mas afro-ameríndios e os transfigura, ofere- escravo,vivendo em contato íntimo com a
cendo-os ao mundo inteiro, dentro da lingua- família brasileira, exerceu influência não só
gem universal da arte, direta, pelos riquíssimos elementos folclóri-
~ .º§_mº!i:v_o~n_e~!Ql!, é claro, ~.Y~m.AgK_.QL cos trazidos do país de origem, como pela
!l~ais aproveitados, mercê de sl;1a maior im- açãosubconeiente exercida sôbre a alma da
posição ao ternário musical do Brasil. . nossa infância através da mãe-preta, modêlo
O ilustre musicólogo Andrade Muriei de resignação e devotamento,
também reconhece isso, em interessante es- Os maracatus, os batuques, as congadas,
tudo. Diz êle: "~gr.()_E~aB~~~proI1tll!llente . os jongos e inúmeras outras manifestações
em relação ao meio social que lbe impuse- de cantos, dansas e celebrações reljgiosas afri-
ranl,·Cantou e dansou, Depois apropriou-se canas aí estão afirmando a enorme influên-
das formas dramáticas dos colonizadores, cia do elemento negro na música brasileira" .
ãtingindo também as represcntaç-ões, Invadiu Finalmente, para colocar neste capítulo
quàse ludo, Se excetuarmos a "modinha" fÍQ . um fêcho condigno e valioso, vale a pena
século XIX e algumas dansas cantadas de ri tal' três parágrafos de Gilberto Freire:

135-
~""'Na ternura, na nllnuca excessiva, üõ sas-grandes. tle, que deu alegria aos são-
catolicismo em qu~' se, d'eliciam os nossos joões de engenho; que animou os bumbas-
sentidos, na música, no andar, na fala, no meu-boi, os cavalos marinhos, os carnavais,
canto' de ninar menino pequeno, em tudo que as festas de Reis.
é expressãó sincera de vida, trazemos todos
"Nos engenhos, tanto nas plantações co-
a marca inêonfundível da influência negra.
"Foi ainda o negro quem' animou a vida mo dentro de casa, nos tanques de bater rou-
doméstica do brasileiro de sua maior alegria. pa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando
O português, já de si melancólico, deu no prato, fazendo doce, pilando café; nas cida-
Brasil para sorumbático, tristonho; e do ca- des, carregando sacos de açúcar, pianos, so-
boclonem se fala: calado, desconfiado, quase fás de jacarandá de ióiôs brancos; os negros
um doente na sua tristeza. Seu contato só fêz trabalharam sempre cantando; seus cantos
abentuar a tristeza portuguêsa--, A risada do de. trabalho, tanto quanto os de xangô, os de
l~egí·ó é que quebrou tôda essa apegada e vil festa, os de ninar menino .pequeno encheram
tristeza em qU'e foi abafando a vida nas ca- de alegria africana a vida brasileira".
1~: ."," .
"

-136-
TRÊS SÉCU LOS
DE JESUITISMO
(Js famosos autos aos gesuítas

Esp]::que o . pJ:'imeirQ-.J!Q: roca da metrópole. Dai ter êle tornado a


rrtel11hr an co trauteou. colônia no famoso couto de tudo quanto era
Ullla canção OUtu.!la...~ria_ degradado que existisse em terras lusas.
qualquer em terras da No primeiro meio seculo, após o desco-
prim!tiva-Pfnd-õi:ãilja !~~ brimento, viveu o Brasil entregue a abando-
ve iiiicio, nesse momento, no absoluto. Apesar de revelado ao conheci-
a contribuição das raças-~üropéi~l)a~a~ for- mento da Côrte, não se interessaram os seus
-:!iiação . da futura· música brasHei~a.~ - iiã:i até dignitarios, desde logo, pelos problemas de
hoje desenvolveu-se lentamente a interpene- colonização. Outros centros exerciam, na
tração das culturas nativa e alienígenas, re- epoca, irresistivel atração à cobiça dos mo-
presentadas estas por alguns agrupamentos narcas lusos, tais como as índias e a própria
étnicos do velho mundo e do continente costa d'África, com o esplendor de suas ri-
negro. quezas, recentemente descobertas. As pró-
Já se conhecem, de sobêjo, as car'acteris- prias tentativas de colonização, tentadas em
ticas das primeiras explorações levadas a ca- 1531, por Martim Afonso de Sousa, e em
bo na colônia, bem como a maneira pela 1534, pelos donatários das capitanias, não
qual foi iniciada a colonização. lograram êxito, tendo ficado como simples c
Decadente e sem elevação cultural apre- imprecisos esboços.
ciável, o velho Portugal daquela época viu- Só com a chegada de Tomé de Souza,
se na obrigação de povoar, explorar e admi- primeiro governador geral, em 1549, é que a
nistrar um território cuja riqueza e extensão mesma teve inicio, concretizada na fundação
escapavam, por completo, à obtusidade bar- da cidade do Salvador. Com o primeiro man-

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datário vieram os jesuítas padres Manuel da côrte, pedindo para render suas homenagens
Nóbrega, João de Azpilcueta Navarro e vá- à augusta mãe. Levado à câmara da rainha,
rios outros. Dois anos mais tarde, chegava o diante dela, com o intuito de distrai-Ia, reci-
primeiro bispo, D. Pera Fernandes Sardinha, tou o "Monólogo do Vaqueiro", em versos de
o qual trazia, por sua vez, os padres Afonso sua autoria.
Braz, 'Salvador Rodrigues, Manuel de Paiva Estavam presentes o rei D. Manuel, sua
e Francisco Pires. Mais dois anos rolaram e, mãe, D. Beatriz, a duquesa. de Bragança e
já em 1553, surgem em \lOssa terra os padres demais figuras da côrte. Na véspera, o prin-
da Companhia de Jesus, Luiz de Gram, ex- cipezinho tinha vindo à luz do dia e tôda a
reitor do Colégio de Coimbra, Braz Lourenço família real cercava o leito da augusta·par-
e treze outros, entre os quais avultava a fi- turiente. Dizem que Gil Vicente, todo enfar-
gura do canarino José de Anchieta. pelado em trajes de vaqueiro, declamou o
E' justo que o leitor indague: "Para que seu auto. Mal terminara, entraram na câma-
tanto padre?" ra varias figuras de pastoi'es, trazendo pre-
A resposta só pode ser uma: "Para a sentes vários para o recém-nascido.
catequese ... " As gentes que habitavam o Esse auto, tido e havido como a obra
novo mundo eram tôdas bárbaras, em pleno prima do poeta bufo, assinala, como primei-
estado primitivista. Havia, portanto, neces- ra peça, o início do teatro português.
sidade de civilizá-las; e como "civilizar" era . Gostou tanto dêle a rainha, divertiu-se
sinônimo de "cristianizar", tal ação só pode- de tal maneira que chegou a pedir a Gil
ria ser exercida pelo clericalismo dominante. Vicente que o repetisse nas festividades das
Vindos para o Brasil, cuidaram os jesuí- matinas do Natal. O poeta acedeu, mas. apre-
tas ue firmar, antes de mais nada, os centros sentou outro trabalho, o "Auto Pastoril Cas-
nucleares de onde deveria irradiar-se, por telhano", não menos apreciável do que o
todo o território, a campanha catequizadora. primeiro.
Fundaram, pois, o primeiro Colégio, nu Estava fundado o teatro popular portu-
cidade do Salvador, e, logo em seguida, o de guês. Antes dêle o que havia era a repre-
S. Vicente, ambos sob a orientação do padre sentação de cenas da Paixão, do Natal e da
~Ianuel da N óbrega. O terceiro 'foi o de Pi- Festa de Reis nas igrejas, bem como a exibi-
ratininga. ção, em praças públicas, de histriões e far-
Assim, mais outro, outro mais ... e, em santes, jogos cênicos, dansas figuradas, etc.
pouco, o jesuitismo, alargando seu círculo de Teatro, no entanto, dentro do rigorismo do
ação, conseguia domínio irreprimível na or- têrmo, não existia ainda. Gil Vicente foi o
ganização da colônia. seu iniciador.
Para os trabalhos de catolização do gen- Aproveitando tôda a espécie de temas
lia encontraram os jesuítas um aliado pode- populares, o poeta imprimia-lhes o cunho de
rosíssimo na arte teatral. Suspeitaram, desde 'leu talento improvisador, transformando-os
logo, que o teatro poderia agir, na imagina- em cenas encantadoras e que muito delicia-
ção dos selvicolas, com grande poder de su- vam os assistentes. Compunha autos, não só
gestão em favor de subsegüentes convicções. de caráter religioso, abeberando-se em cenas
Nasceu então a idéia da representação dos da vida da igreja, dos santos e das lendas do
famosos autos. cristianismo, bem como nas de cara ter pro-
Que forma teatral era essa, afinal? De fano, calcadas em temas populares. :f:stes,
onde viera? especialmente, faziam o deleite dos cortesãos,
Muito simples: o auto nasceu no momen- exibidos que eram nos paços reais.
to em que nasceu também um principezinho A primeira peça de Gil Vicente tem a
pOl'tugues, mais tarde o obscuro D. João III. data de 8 de junho de 1502. Continuado por
Após o parto, encontrava-se ainda a rainha outros poetas, deu orientação nova ao teatro
D. Maria guardando o leito, quando o poeta português. Meio século depois, quando as
e ator cômico Gil Vicente se apresentou na primeiras levas de jesuítas vieram para o

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Brasil, já os autos gozavam de ampla -popu- colonial, sairam das igrejas ou à sua sombra
laridade. Sagazes e astutos, perceberam, foram abrigar-se. Tais como a pintura e a
desde logo, os catequizadores, o grande par- escultura - na decoração e ornamentação
tido que poderiam tirar dessa forma teatral das capelas - a música e o teatro começa-
para o deslumbramento sugestionador dos ram a desenvolver-se, para, mais tarde, ga-
selvagens. Dai o açodamento com que en- nhar foros de arte independente sob o pálio
traram a compor os famosos autos destinados do catolicismo.
a ser interpretados pelos catecúmenos, e que Os ~utos e comédias teatrais eramrepre-
constituiram o decantado teatro dos jesuítas. sentados nos adros das capelas da Vila de
Para a exploração da ingenuidade dos
aborigenes, é claro, não podiam êles apre-
sentar temas populares portuguêses em com-
pleto desacôrdo com as tradições do gentio.
Hàbilmente, inteligentemente, descobriram os
jesuítas o ternário do folclore indigena, suas
crendices, suas superstiç'ões e cuidaram de
exibi-las em forma de autos, lançando mão,
é verdade, de grosseiras e primitivas formas
cênicas. Com elas impressionaram, de fato,
o ânimo ingênuo dos nativos. Conseguiram
seu intento. Gente que ainda não possuiu
um estalão cultural - tanto os indios como
os povoadores, degredados e criminosos em Gil Vicente Cjue com seus fa-
mosos autos, deu origem ao
sua quase totalidade - na altura de compre- teatro musicado dos jesu1tas

ender os ideais da catequese, fàcilmente dei-


xou-se impressionar pelas bambochatas que S. Vicente, no Rio de Janeiro, e na aldeia de.
lhé eram apresentadas. S. Lourenço de Mal'uí, na margem oposta da
A figura central da catequese foi, sem baía de Guanabara, no local onde teve inicio
dúvida, o padre José de Anchieta. Talentoso a sesmaria que Mem de Sá concedera ao in-
e culto, dedicou-se aos trabalhos da missão, dio Ararigbóia. O teatro de Anchieta não tai'-
empregando nêles a sua atividade e os seus dou em ser imitado pelos demais missioná-
conhecimentos invulgares. Estudou com raro' rios que, em outros pontos do território, pas-
interêsse a língua tupi, chegando a compor saram a oferecer espetá cu los similares ao
uma gramática da mesma .. gentio e aos povoadores da colônia.
Anchieta ensinava em sens cursos o la-
Os jesuitas, sobretudo Anchieta, procura-o
tim e o espanhol, de mistura com as aulas do
ram aproveitar-se (como já ficou dito) de
catolicismo. Além disso, com o intuito supe-
lendas e crenças dos selvagens, apresentan-
rior de desenvolver o espirita religioso do
populacho, compunha versos e cantigas, tO\ do-as, de mistura com lendas e figuras da
das com pronunciado fundo de moral cristã. cristandade. Nos áutos e comédias andav;am
Escreveu também grand/'. cópia de diálogos mesclados personagens do catolicismo, do
a que chamava de "com0.dias", fazendo re- paganismo e os heróis guerreiros dos índios
presentá-las nas vésperas do jubileu da festa tupis e tamoios, além de sêres fabulosos e
de Jesus Cristo. De maneira invariável, ex- animais das nossas florestas. Era uma çon,-
plorava-se nelas a eterna lição aos que se fusão das mais desordenadas; mas, essa con-
entregavam aos vícios e à imoralidade. fusão tornava-se necessária para os trabalhos
Os autos eram apresentados no adro das da catequese.
capelas ou nos chamados "impérios", espécie O intento dos jesuítas era o de implan-
de terreno com palco armado, (1.0 lado dos tar a nova crença nas populações selváticas.
templos. Como se vê, as Artes, no Brasil mas isto não poderia ser feito de um mo-

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mento para outro. Fazia-se mister um período nham .os diabos, concertando planos· para a
de transição, suave e sem imposiç'ões sérias. destruição de determinada aldeia de indios,
A_~d.ucação foi .e~~rddª,. de preferência, já aclimatados ao domínio do branco. Ten-
sôbre os "columins", isto é, as ci'ianças jndi- tam abalar a fé dos habitantes. Mas existe
ge.Ilas. Diz Gilberto Freire que '~ª--llJ)~~.JL alguém que vela por êles: São Sebastião.
_ª_ IlllÍsica brasileiras surgiram dêsse conluio Travada a batalha entre o bem e o mal, o
de columins e padres". Completando as· suas santo, auxiliado pelos anjos, consegue der-
impressões, cita Jos{ Antônio de Freitas, o rotar os êmulos de Satã. E não só a êles:
qual afirma que "na poesia lírica brasileira derrotam também alguns imperadores roma-
do tempo da colonização, os jesuítas ensaia- nos (Décio, Nero, Valeriano ... ) que são,
vam as formas que mais se assemelh~vam aos afinal, arroj ados ao rio, arrastados por alguns
cantos dos Tupinambás, -com voltas e refrens, comparsas.
para assim atraírem e converterem os indí- Tudo isso era representado sob grande dis-
genas à fé católica". pêndio de gesticulação, de mistura com indi-
Couto de Magalhães escreve, por sua vez: genas que atravessavam a cena, vez por ou-
"Q.s jesuítas não coligiam literatura dos abo- tra, ao lado de animais fabulosos. Aimberê,
l'íg~nes,Illass~rvh'ªm:§~ule sua música e d.c Guaixara e Savarana faziam aparições ao
.suas dansas religiosas para atraí-los. ao cris- lado de Pijory e Cupié, cruzando e conver-
tianismo. ~. As toadas profundamente· me- sando com o Côrvo, o Urubu, o Gavião, o
lancólicas dessas músicas e a dansa foram Cão Grande e outros personagens zoológicos.
adaptadas pelos jesuítas, coni o profundo Triunfavam, invariàvelmente, as fôrças do
conhecimento que tinham do coração huma- catolicismo que levavam de vencida os seus
no, para as festas do divino Espírito Santo, perseguidores.
S. Gonçalo, Santa Cruz, S . .João, e Senhora Assim que descia o pano e as aclamações
da Conceição". estrugiam, os padres, satisfeitos, exibindoul11
Os autos eram apresentados em peque- sorriso beatífico, davam ordens para que
nos palcos com cenários pintados e cortinas plangessem o sino da capela, enchendo de
à semelhança de velários. . unção os ares da selva, como um convite aos
Devia ser estranha e interessante a rea- assistentes. :f:stes, ainda soh a ünpressã~ ter-
lização dêsses espetáculos, em terra ainda rível das investidas das fôrças do mal e da
selvagem, assistidos por uma das mais hete- vitória da Fé, não trepidavam: enchiam o
rogêneas· platéias de que há memória em pequeno templo, onde suas almas rogavam
nossa terra. em clima propicio, ouvindo têrços, ladainhas
Sentados no chão ou de pé, aos lados do e conselhos paternais ...
"império", viam-se índios, arcabuze,iros, sol- O argumento narrado acima é de "O
dados, gente humilde e até animais domés- Mistério de Jesus", o mais citado e comen-
ticos de· permeio com europeus, dominadrn; tado auto da lavra de José de Anchieta. Via-
pela febre d'ouro, bandidos da pior espécie de-regra versavam todos o mesmo tema, com
deportados por penas de degrêdo, maiorais pequenas variantes.
da administração, funcionários, chefes e che- Nada tinham a ver as comédias aqui for-
fetes. Um pouco acima, instalados em pa- jadas com as de Portugal. Há autores que
lanques especialmente construídos, ficavam confessam até serem elas por vêzes muito
os padres da Companhia "observando aten- superiores aos vários autos sagrados que com
tamente os efeitos produzidos no auditório aplausos se representavanl enl algumas côr-
pela representação". tes européias.
Iniciava-se o espetáculo com cantorias Era assim o teatro no Brasíl, nos albores
preparatórias. Descerrado o velário lá vi- da era colonial .

• • •
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Gomo os catequisaoores

M VITA gente há de estranhar que essa


história de autos apareça aqui e mereça tan-
Vejamos como Fernam Cardim, em sua
"Narrativa Epistolar",. descreve os diálogos
tas atenç'ões. Bem sei que êles devem inte- pastoris representados pelos catecúmenos, por
ressar muitíssimo mais à história do teatro. ocasião da visita que fêz em companhia de
.Ninguém ignor:a,_por~!p':',sue, bastas vêzes, chefes jesuítas às aldeias já mais ou menos
no decorrer da história, o teatro e a música cristianizadas: "Chegando o padre à terra,
serviram de complenleÍlTo;'um--ãô-óutrÕ: começaram os flautistas a tocar. suas flautas
Torna~se-·mesmà·-dmcÜ··dTssõciá-TÕs-:'-~--· com muita festa, o que também fizeram en-
(Lq.u.e_oos inter~§~ª..ªq!Ji, de resto,~~o é quanto jantamos debaixo de um arvorêdo de
pràpriamente a contextura dos auto§, .~ª.s_.~ aroeiras mui altas. Os meninos indios, es-
~_úsica e as danSa!Lqu~.n.êJes.. ~e_..e.!!.çen:!lvam condidos em um fresco bosque, cantavam
e que constituem, inegàvelmente, as primei- várias cantigas devotas enquanto comemos,
i:ªs_I).lªI)lf~staçÕesmu~icaiselll.j~()s.s..~~pãrs:· que causaram devoção, no meio daqueles
A...J!!!Ísica el1tJ:'I!Ya n~les como elemgnJ:o matos, principalmente uma pastoril feita de
d()s . m,ais.. preciosos. Sabiam º.&Jesuitas.ava--; novo, para o recebimento do padre visitador,
liar o pendor que tinhaIli. os.. ~at~çúm_enns seu novo pastor; chegamos à aldeia à tarde;
p~r.~ "as aI'te~ de~~n~a.r_~J.I!!l.@!'''. antes dela um bom quarto de légua, come-
O próprio Manuel da Nóbrega julgava-a çaram as festas que os índios tinham· apare-
tão necessária ao trabalho da catequese que lhadas, os quais saíam nús cantando e tan-
chegava a considerá-la uma segunda religião, gendo a seu modo, outros, em ciladas saíam
afirmando com tôda a convicção que, com a
música e a harmonia, comprometia-se a ar-
rastar atrás de si todos os indígenas da
América.
Não sei quem (parece-me que foi Var-
nhagem) chegou a evocar essa estranha fi-
gura de Orfeu de batina, em terras da Amé-
rica, tangendo a lira, seguido por extensa
multidão de botocudos, enfeitados de pena ...
Achei notável a sátira e me confesso con-
vencido da verdade da mesma. Os jesuitas
conseguiram, com efeito, sugestionar, com o
poder mágico da música, os índios tidos co-
mo "irracionais" pelos potentados da me-
trópole.
Osj!1.çJ.igenas prezavam a mú.sica ..a,.p.2!!~Q_
de re.m.ei tl!r.enULYtda.. de. inillligo~. prjsiºnek
~LS.exevelassem m~iÇ!>lL.9JL cantores.
Suas tendências eram, portanto, congênita-
mente musicais.
Descobrindo êsse filão sentimental en-
traram os jesuítas a explorá-lo conveniente-
mente, empregando a música e a poesia co- P·IO SEPH ANCHJETA soe IESV
s~ a mirCl.C1.tÚJ da-r-w
mo elementos convincentes nos trabalhos da ob;;1 írt''l3rajiJi,,'p 1lHj1lJ'!Jf eoI.,,;t ó40
catequese. Uma gravura de José de Anchlete.. conhecida no século XVIII

-143 -
índios" .çom suas tlaqtlis' e de alguns cantores
da Sé, com Órgão, cravos e descantes.
Através de descriç'ões de viajantes, como
a de, F,ernam Cardim, sente-se perfeitamente
o!lmbiente de transição que se operava .em
te~'~!l (hl,cplônia, transição que consistia na
anulação da cultura nativa ena implantação
da, cultura aliehígena. Tanto as clansas, como
os éânticos, tanto as línguasccimo os instru-
mentos, denunciavam a interpenetração fri-
sante entre os eleÚlentos mais díspares em.
plena estruturação de um novo país. Nesse
cuidado de anulação da cultura reveladil pe-
las nbssas tribos, os jesuítas ~ ernboracum-
prindo nobremente suaS funções de catequi-
zadores - concorriam para apagar as ma-
nifestações artísticas dos nativos que, se bem
'compreendidas, poderiam ter atingido a certo
estalão cultural, digno de respeito. Não po-
deriam, todavia, ter tais preocupáções aquê~
les que para aqui vinham com a missâo, ex-
clusiva de catolizar o gentio.
Que importância poderiam êles empres-
tar à dansa e ao canto dos selvagens, aos pri~
mores
. .;
de sua arte do .trancado ou às mal'avi-
,)

lhas qos seus cerâmios? Eram bárbaros e pre-


cisavam ser civilizados. Traziam os :missio-
Um missionário entre os !ndios, com seus enfeites ·de penas. nários o intuito de conquistar mais servos
armas e a trombeta de Juruparl. A mulher, 1l,esquerda, tem
" cabeça coberta por um vêu, por lhe ser !lroibido contemplar para Deus ; apenas isto preocupava os mem-
a flauta sagrada. (Gravura do livro do Barão de
Santo Angelo) , bros da Companhia de Jesus.
Villa Lobos, referindo-se ao grande mis-
com grande grita, outros que nos atroavam, sionário da colônia, assim se externou: .~
e faziam estremecer: os columins com muitos "A mim, eI;ll matéria de música, só interessa
molhos de frechas levantadas para cima"fa-' o que fêz Anchieta. Êle concorreu de fato
ziam seu motim de guerra e davam sua gri~a, para a educação do gentio. Suaatuação tem
e pintados de várias côres, núzinhos, vinha:m a marca das coisas destinadas a duraI: uma
com as mãos levantadas receber a bênção do eternidade ... "
padre, dizendo em português: louvado seja Sem dúvida, Manuel da Nóbrega, Anchie-
Jesus Cristo! Outros saíam com uma dansa ta, Azpilcueta Navarro e seus companheiros
de escudos à portuguêsa fazendo muitos tro- desenvolveram a contento da Côrte:a tarefa
cados e dansando ao som da viola, pandeiro, quélhes fôra cometida. Se os estudiosos dos
tamboril e flauta, e juntamente representa- fenômenos de aculturação lamentam a ausên-
vam um breve diálogo, cantando algumas cia' de descortíno artístico nos trabalhos da
cantigas pâÚias". catequese e chegam mesmo a imputar-lhes,
Seguia assim a representação, desenvol- como falta irreparável, a incompreensao dês-
vendo o indefectível enrêdo em umapitores- ses problemas, rendem-lhes, contudo, a ho-
ca mistura de línguas br'flsílica, portuguêsa e menagem de sua admiração pela maheirá
castelhana. como exercerâm sua missão, sacrificando-se
Ao cabo da farsa, tinha início a missa, tstoicamente em favor de sua causa, de uma
oficiada ao som.de um estranho conjunto de forma que tocava as raias do fanatismo. O

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trabalho de retirar das mãos dos indios o
maracá e as trombetas, colocando nelas a
cruz e o livro de rezas; o cuidado de fazer
com que esquecessem as cantigas de guerra
dirigidas a Tupãr e aprendessem as litanias
à Virgem Maria; o açodamento em substituir
as lendas. zoológicas, ingênuas e pitorescas do
folclore indígena por outras do florilégio
cristão; tudo isso, em suma, representa. o es- r
fôrço tenaz dos abnegados servos da igreja'
de Roma para o aliciamento de novas popu·,
lações em tôrno de seus principios doutri-
nários.
Foi longo êsse trabalho. A medida que
os tempos corriam, mais se acentuava a acul-
turação alienígena e mais se relegava o acêr-
vo artístico do nativo.
J.\1ltiJo_ tempódepQis, já, na era cQutel!l-
º
JL9r_t.l!~ª, foi que. br.a,sileiro - -º~-ªp~rtª.dQ
.pl.l!:,_a..:._I.l~~a realidade própria ~, voltou~s
vistas para os primitivos, na ânsia de buscar
ali os sedimentos da nacionalidade. No de-,
sejo de reparar, embora tardiamente, as in-
justiças que sofreram, durante séculos, aque-
las tribos, autênticas donas da terra, entra-
ram a pesquisar tudo o que a elas se refe-
risse. Constataram então que havia um acêrvo
considerável a explorar e a revelar à admi-
ração do povo. Lá estava, na exuberância de
sua cultura original, virgem ainda das impo- A cruz cat611ca lutando contra o maracá fetichista. O
tipo ajoelhado, simboliza bem o per[odo de transição de
~t1ltura imposto pela catequese
sições de temas exóticos, tôda uma série de
motivos ornamentais e decorativos na cerâ-
mica, na indumentária, na música, nas dan- mente os Jesuítas, na tentativa de converter
sas, nas artes domésticas, nas lendas, na re- os negros ensinavam-lhes o catecismo, fican-
ligião - que sei eu? - um mundo primitivo do com a impressão de ter aceito os dogmas
e pujante, capaz de cimentar e de edificar católicos, mas na realidade, até o presente
realmente um extenso movimento. de reno- mantêm, num certo grau, a crença em seus
vação artistica, no Brasil. Antropólogos, so- velhos deuses".
ciólogos, artistas e escritores, músicos e fol- Por isso mesmo, tornou-se possível o es-
cloristas; todos, em suma, dedicaram"se' ao merilhamento dos fenômenos de aculturação
esfôrço comum de fazercreflorir, de dar ex- nos elementos das três raças sedimentares
pansão ao "ego" da nacionalidade, que se em nosso país.
encontrava recalcado por tantos séculos de E os frutos ai estão: -ªlllúsica brasileira,
dominação. ori.ent!!~a.~m. seu rumo nacional, com carac-
Mesmo porque o indio e o negro conser- terísticas próprias, bebidas nas fontes origi-
varam,,~ despeito do esfôrço dos missionários, nãiSde indios, de negros e .de. brancos,]lliri-_
as caracteristicas de Sllas culturas. J:i Vieira midoê ;a-pTiíTul'a-e -a esculttú:'a,'coln-'os mo-
Rodrigues havia relata.do o que, ·êle chamou tivos acentuadamente plásticos, tomados.,ao
uma "ilusão da. catequese"'. E Artur Ramos espírito do Brasil dos primeiros tempos;. a
completa: "Os sacerdotes católicos; especial- sociologia, esvurmando os tumores malignos

-145 -
do absolutismo bragantista e aprcsentandu ú Seria fastidioso fazer, nestas pagmas, o
cdificação dos estudiosos os verdadeiros fun- relato da atividade dos jesuítas concretizada
damentos da família brasileira. Ao trabalho nos autos, diálogos e comédias que aqui fa-
de desfibração, de anulação cultural iniciado ziam representar. ~ãº..~ó.Anchieta comol1lUi:-
pelos jesuítas, sucede agora otrabalho de to~ outl'O~ Illissionáriose~creveram J2~a
reintegração do brasileiro em seu verdadeiro sua enumeração é extensa, como se po.de.. ve-
complexo racial e cultural. Para tanto, ajus- rificar· nas crônicas da Comp'.anhia.dELJ esus.
tam-se as fôrças daquêles que lutam por Pouco interêsse _tra,~rn elas aos__ qu~estupal1)
maior luzimento e brilho de suas diretivas Q_ desenvolvimento da música brasileira. De_
artisticas. ~~ráter e~.s.eºcialmente religioso, as músicas
Lorenzo Fernândez, referindo-se à mú- elaboradaspelosjesuitas não se revestiam de
sica dos jesuítas, disse-me certa vez: significaç!~-=-_ãrtii!ica~:c-o·mo-si~nples ..;-~ªlii;-
"Sob o ponto de vista estritamente do- ções que _~r_am_Q.a_I11úsLc~. importada. da me-
cumentário, 0.!!flu~!!c!tl:_.10_s_jesuitas, des- trópole, baseada, por suu__yez,-nocanto gre-
truindo as mani:t:.~~Jl\çlü~~Lmusicais.. dOS-llati: .w:Í!lllO. Áié~~~- do·m!ܪ~I},ª.d!Ute_~.abe xeaI-_
'.:~.~s.ubstituindo::asporcl\ntos religiosos. ,e.. .~nel1.te da lllt'1.sica daqu.~l~~!~!l!P2.~,)!!!!smo das
"~~is.térios'~, foi, na minha opinião, verdadei- compos!ç:§esj)rofanas, tão citadas . eJI1cI'ôni-
ramenJ~.(l~.@JiJr..ºsa. cas e Ill_emórias sôbre a nossa histÓri:;t.
Perderan.!:s.e, assin~J. as fontes mais pllra~ A igreja centralizava, sem dúvida, o cul-
~ originais da nossa música autóctone e, tem- tivo da música, de-vez-que os jesuitài.!C(iu~,
QQL!l{!p.ºi~ _·j~_;~;ja ..clifícild~scS~};~I~· ~ell!ai sôbrc· êla, pos~uial~l·rn:~is apurados conheci-
(@~_!l_ão-~~!i:vessem deformados numa cll:ri,osa mel!!os. Al?9~~e.. po_uco, por~m, !~i. o.s.ósto.
!!!Ü;!º.1:.!U.!!!l9~~l!IºP_~ifl.! A propsósito, contou- musical se difundindo, e forcando a criacão
me o saudoso Mário de Andrade que uma vez, de núcleos profa~os, constit~Ídos de esc~'râs
viaj ando pela Amazônia, ouviu um curiosÍs- "para aprender as ades da música e do
simo tema cantado por uma india, e que lhe canto" .
parecia sugerir vagamente um modo gregoria- O padre Manuel da Nóbrega, em 1549.,
no. Tendo anotado o tema, depois de muitas iniciou um curso no Colégio dos Jesuítas da,
investigações, descobriu ser o mesmo defor- j3-ªhl~kQlldehavia_ um me.stl:e-(:apela d~ no~e
mação de uma conhecida música religiosa. FranCISCO Vacas. Ensinava-se ali ';boal;~~~­
Essa constitui uma das maiores tragedias sica de vozes, coros ~ in~trumento;;;. DaÍi
do~ llO~SOS atuais folcloristas, principalmente 'sa!!:.anl músicos qlle,-~sé.i!iJJE~~_~~p~çªe~ .!:~ii~
agora, com a espantosa infiltração trazida giosas, passaram a difundir o que haviam
pelo rúdio através dos lllais longínquos ser- aprendido, fora dos muros conventuais, gru-
tões. pos de músicos populares. . -_. ,
COl!hedda .C.<J.l!1_U._~L ..!LX1~l!.s.kªlidadejo._ ---Naqu·é1a:--íl1esllul Bahia, pur exemplo, ci-
brasjleÍ1v_~_ª.slla JaçjU~la~lejl~adaptação c. tam-se "bandas de música de trinta figuras,
aEso~r:.çãg. fá.cil será imaginar a quantidade_ tôdas negros escravos, cujo regente era um
de criacões anónimas abastardadas e nas
• ..1- " __ " ~ ___ ..
francês provençal".. Isto era em princípios
_~ __

quais repontam fragmentos de música reli- do século dez esse te, época em que Euzébio de
giosa e até de óperas e operetas, tudo isso de Matos (irmão do famoso poeta-satírico Gre-
mistura com ritmos negros e teIl~as .mestiç'os, gório de Matos) enchia as noites de S. Sal-
o que lhes empresta, por vêzes, um aspecto vador com a graça picaresca dos seus lundus,
..:.'!!Jj -generis . acompanhados pelo tanger das violas.
Por êsses e outros motivos considero ver- _TaL~º-ll!(). aC()lltecia na Bahia, em Per-
dadeiramente criminoso o descaso com que nam~l!~~o_J~mbém s.urgiarn centros onde se.
o govêrno tem encarado esse problema, per- '2!ltivav~_ aruúsica, a ponto de aparecerem
mitindo que se extravie essa fonte de ensi- até fabricall!~~.g.~º!·gã_ºs. pa~~_<:apetl!s~in~- _
namentos preciosos para a nossa incipiente trum~ntos de sôpro é de corda. NQ...Bi9.-d.e.
cultura" . Janeiro, o ensino criava. incremen to,POiS. 1l9

-146 -
1~oA()J!lt!l1!"~11si_11_a~anl_os padres ll1Ú~ACf:l e
.c.anJüchão nos seminários de órfãos. Em SãQ,
Paul()_.ª __!l.tiyidade era, também, apreciável,
culminando com a criação, em 1774, do CÔl:O
~.,~ªJedraL Na,p-t_ovíncia de Minas Gerais
hayia lugares de llle~tre-c!lpela,.de_QIg!lJ.1istas
,g,,,de" mestres-de-côro em quase todos os tem-
- _.-_. 0·0 •• " . __ • _ _ _ " __ _

pIos, ao J)a.~º_qll~__ ~ __l11Úsjca J>0pular, como


canÇ"o_Il~~as, lundus, etc., encontrava ampla
~.u.lgarização, aceita como. cra pelo popu-_
lacho.
E...J!~§ilDJ. ~lILt,gººLºS. __~.fª1l tos._Q!!'<:!_~"?~
exerçiª- o povoamento, a música, cntrava tam-
bém a exerc~rs_uapcl~elT!lçãº-,
Em princ:ipios do século dezoito assina-
la-se a fundação dos primeiros teatros no
Brasil. Chamavam-se casas de Ópcra,
A primeira que a história registra é, sem
dúvida, a do Padre Ventura, no !lio de .J a-
neiro, em local ainda nilo intciramente iden-
tificado. Tudo induz, porém, a crel' que le-
nha sido no largo do Capim. ;.i'êle represen-
tavam-se pe~as de teatro, llotadamente as de
Antônio José, o Judeu, tiio trágkamentc as-
sassinado pela Santa IIHIUisição, llas foguei-
ras "redentoras" da capital do Reino. Um dos grupos da base do monumento ao lIfarechal Flo-
riano. de autoria do escultor Eduardo de Sá. Representa
Quanto ao padre Ventura, era ele um José de Anchleta convertendo ao catolicismo
uma jovem incUgena,
tipo de gênio folgazão, apesar de corcunda e
mulato, tendo o hábito de subir ao palco para
cantar lundus e, até mesmo, dansar o fado. Em São Paulo, a primeira Casa da Ópe-
Faleceu de desgôsto, com tôda a certeza, após ra foi construída no largo do Palácio e, em
o incêndio que devorou a sua Casa da Ópcra, Minas Gerais, llas cidades de Ouro Preto e
em 1776, quando ia em meio a represcl1ta~'ii() Diamantina.
dos "Encantos de Medéia ", do infeliz Judeu. O "Diário do Govêrno", de São João deI
Após êsse malôgro, Manuel da Silva, por- Rei, noticiou, no dia 6 de janeiro de 1824, a
tuguês de largo porte c barrigudão, propôs recepção que o ouvidor Antônio de Azevedo
ao marquês do Lavradio a cOllstruçtio de
e Melo e Carvalho ofereceu à sociedade local,
uma nova Casa da Opera. Atendido, edificoll,
em sua residência, onde o anfitrião fêz "que
em local também discutido, novo t~a,!ro que
lhe tomou o nome. ' se cantassem. hinos e árias, se tocassem as
melhores sinfonias, e se enttetivessein com
Com tôda a certeza lá se exibiram, tam-
bé:Ip., cantores e dansarinos, dos muitos que as mais esquisitas dansas, que foram desem-
havia no tempo dos vice-reis, tempo em que, penhadas com todo o primor da arte. " Con-
nas festas dos salões aristocráticos só se dan- Cluído esse ato se encaminhal:am em grande
sava o minueto, arremêdo .do. "minue(." fran- préstito formando 'em du~s extensas alas, até
cês, ao som' do cravo e da rahec a. fl Igreja de N. S. do Carmo, que se achava
Na Bahia houve, também, a Casa da ricamente vestida, e rompendo a orquestra
Ópera e, em seguida, o Teatro Guadel\lpe, com uma -sinfonia, que foi desempenhada
onde, às vêzes, se fazia música. pelos melhores professores, tanto dest~l tO-

147 -
mal'ca como da imperial cidade de Ouro .dasse,s~eomposta de indivíduos socialmente
Preto, cantou-se missa solene, etc, etc,", aplanados entre si",
Campos dos Goitaeás, capital .da Paraiba ;A_ªtuaç.ãodos jesuítas foi persuasiva e
do Sul, onde o gôsto da música se achava .penetrante, mercê de certa metodização do
bem difundido, teve sua Casa da Opera, e ~nsino de música, teatro, cânticos e dansa,
nela se exibiam "dextros professores de ins- Uma de suas mais concretas realizações,
trumentos musicais", E assim em Pernam- nesse sentido, foi, sem dúvida, o famoso "con-
buco, no Pará, no Rio Grande do Sul, no servatório" de Santa Cruz,
Maranhão, etc" as casas de espetáculos sur- A riquíssima Companhia de Jesuspos-
giam, concorrendo para o aprimoramento do suia, nos arredores do Rio de Janeiro, por-
bom gôsto das populações, fornecendo-lhes ção considerável de terras (Fazenda de Santa..
peças teatrais simultâneamente com demons- çn.lz). tôdas plantadas, medindo aproxima-
trações musicais, onde se faziam ouvir canti- damente vinte léguas de extensão, Ali fun-
gas, lundus, voltas, xácaras", daram êles
~-'~ ., ..
uma espécie de- "conse'~vatÓri~"
Essas digressões ligeiras em tôrno do de música destinado exclusivamente à for-
surgimento e exploração dos nossos primiti- mação de negros que demonstrassem talentos
vos palcos não têm outro intel'êsse, em nosso especiais para as artes eutérpicas .', Ali abri-
trabalho, senão o de salientar os esforços do gavam-se, como recolhidos de orfanato, cri-
povo no sentido de estabelecer centros onde 'anças negras, aquelas em que os mestres de
não só se representassem peças teatrais, como -inúsica descobriam aptidões capazes de me-
também se fizessem trechos de música po~ recer desenvolvimento condigno,
pular, em uma demonstração da atividade Que conseguiram resultadOs apreciáveis
dos obscuros compositores. e intérpretes do é coÍsa provada, O espanto e a admiração de
Brasil colonial, Além do mais, era no palcq que foram tomados o rei D, João VI e de-
dêsses e de outros teatros surgidos posterior- mais pessoas de sua augusta côrte, quando
mente, que brilharam os músicos virtuosos e visitaram o recinto e assistiram missa na
cantores, vindos dos grandes centros euro- igreja de Santo Inácio de Loiola, atestam o
peus e americanos, grau de educação mtisical a que tinham sido
A principio, naturalmente, era tealrbpa- levados aquêles negros, de ambos os sexos,
1'a "escravos", tanto para o prelo como para tanto na música vocal como na instrumental.
o Índio ou o branco, Orientado pela Com- Isto se passou, porém, em plena época
panhia de Jesus e utilizado como arma de do monarca foragido, quando, pela "supres-
colonização só poderia mesmo exibir comé- são dos jesuítas, a propriedade de Santa
dias sacras ou peças de música litúrgica, 111- Cruz foi reunida, com.todos os outros -bens
dispensáveis à sugestão religiosa, imóveis dêsses religiososi?.1aos dominios da
Demonstrando a necessidade dessas úl- Corôa", Pertence, portanto, a outro período
timas, Mário de Andrade pondera: "fi mú- de nossa história, aquêle em que o Brasil foÍ
!iica mística dos jesuítas veio então MÜ'._.b.el!l elevado à categoria de Reino, deixando de·
necessàriamente e no mais lógico sentido so- ser simples colônia, pelo menos na declara-
cial, como elemento de religião, de catequi- ção da nova carta régia,
,zação do índio e concomitantemente de geral Convém deixar mais algumas palavras
arregimentação, Encantava màgicamente e sôbre o conservatório de Santa Cruz para o
submetia as fôrças contrárias, isto é, os ín- capítulo seguinte, Neste, que aqui- se encerra,
dios; confortava quase terapêuticamente os houve apenas a intenção de dar uma peque-
empestados do exílio americano, isto é, os na idéia aos leitores do clima em que se de-
colonos e a todos fundia, confundia e harmo- senvolveram as artes musicais, no tempo co-
nizava num grupo que as necessidades, ou lonial dos vice-reis,
melllor, a total carência de técnica e rique- Durante três séculos nada se pr~dl:1ziu
za, tornava uma verdadeira comunidade sem de notável nesse terreno, nem mesmo o prin-

-148 -
epio de uma orientação no sentido de dotar foí necessário que sua majestade EI-Rei
a colônia de. escolas de música, dignas dêsse D. João VI viesse buscar asilo na colônia
nome. O poviléu ouvia melodias fáceis nos '" .P.!!Ku _~ue o Brasil pudesse despertar de uma
salões e nas praças .. D. Luiz de Vasconçelos, longa modorra. Efetivamente, no dealbar do
um dos poucos vice-reis que pretenderam século dezenove, a Côrte, para aqui trans-
ajudar os artistas, empreendeu esforços pura plantada, sentiu a necessidade de estabelecer
os fundamentos de certas instituições capa-
o soerguimento estético da sede do vice-rei-.
~~~. 4~. promover o desenvolvimento das vo-
nado, mandando mestre Valentim traç'ar jar-
çlls§es artísticas que merecessem os cuidados
dins públicos, pintores decorarem capelase de mestres bem orientados.
bandas de música tocarem "nas belas noites Com o advento dessa nova era, deixou,
,de serenata" nas praças onde as famílias
~--~> '-'."' -.'. ".-- . ' de fato, o nosso país de engatinhar, no es-
compareciam, a fini de amenizar os rigores fôrço de se pôr de pé, tornar-se ereto, cres-
dacanicula. cer, avultar, em ascenção contínua.

-149 -
PRIMEIR" CORTE
NO 5R"SIL
9J. goão VI e a eape{a 9lea{

ERTO dia, Napoleão - o ~~ país, antes que êste caísse inleit'amenle


"Grande", c o m o costu- em pener do inimigo. E o fêz precipitada-
mam dizer os seus admi- mente.
radores - entendeu que A fuga da côrte portuguêsa é assunto
devia dar uma lição às dos mais batidos e em nada nos interessa
côrtes portuguêsas, p e I a aqui. Basta-nos saber que a varredura napo-
audacia de se mostrarem contrárias aos seus leônica lanç·ou por cima do Atlântico, desde
desígnios de côrso-francês. a Metrópole até à colônia, os monarcas, os
Puxando da casaca de sêda uma caixi- cortesãos, o clero e outros "dignitários" c
nha de rapé, marchetada em ouro, fêz vir à áulicos da coroa, de mistura com os detritos
sua presença o general Junot e cometeu a de uma sociedade corrompida e inútil. Tudo
êsse guerreiro a tarefa de invadir o velho isso veio parar no Brasil, cm princípios de
reino de Afonso Henriques. 1808, isto é, em principios tambem do scculo
As ordens do imperador tiveram exe- dezenove.
cução imediata. A "Grande Armée", em Uma vez aqui instalada - de maneira
pouco tempo, atravessou as fronteiras luso- precária, é claro - cuidou logo a côrte bro.-
espanholas e acometeu, com o ímpeto costu- gantina de tornar a vida suportável nesta
meiro' sôbre as mal organizadas tropas lusas. terra em tal maneira graciosa. o. Não sabiam
Enquanto· pôde, o vacilante regente perma- mesmo os monarcas quanto tempo seriam
neceu firme, cm Lisboa; com a aproximação, obrigados a permanecer nela, de-\'ez-que o
porém, das hostes invasoras, decidiu abando- ascenso de !\ apoleão l ameaçava firmar ()

- 1;:;1
poderio francês -em tôdaa Europn. A-costu- tade .do nédio monarca. Porque a verdade
mado às regalias e ao confôrto que desfru- é que D. João não fêz tantas coisas apenas
tava na capital lisboeta, D. João VI estra- por entranhado amor à nossa terra. Fê-lo
nhou, a princípio, o novo ambiente social que mais por amor às suas conveniênciaspes-
os fados, em sua dureza, lhe haviam reser- soais e às próprias conveniências da pátria
vado. de além-mar. O ouro, canalizado daqui para
Na colônia a situação era pouco mais do Portugal, não cessou dc correr, servindo ao
que desoladora. Casas para moradia, não as culto impôsto pelo beatismo dos reinóis. Lis-
havia confortáveis e dignas; o aspecto das boa foi reedificada com êle, sem contar os
ruas surgia como a resultante de serviços milhões de cruzados que eram remetidos
públicos mal cuidados; comércio de carátcl' constantemente para o clero de Roma, desti-
primitivo; nada de imprellsa, nada de movi- nados à suntuosidade deobrus e construções,
mentos artísticos, econômicos ou financeiros para a salvação da alma do monarca que
capazes de assegurar as delícias e os prazeres passava os dias inteirinhos rezando. " Em
que fazem a vida deleitosa e doce... A ci- lodo o ca~o, consignemos a época que se ini-
dade era um amontoado de imundícies. As ciou com a vinda da côrte portuguesa como
habitações de pedra e cal não possuíam be- o princípio do sistema de organizaç-ão de
leza e, muito menos, higiene. tôdas as atividades estatais, em nossa terra;
A sociedade era das mais heterogéneas' c vejamos como se refletiu êsse principio no
alguns fidalgotes, que se distraiam nos salões terreno das artes, notadamente da arte mu-
"soi-disant" elegantes dos vice-reis; famílias sical.
burguesas de negociantes europeus, e, embai-
xo disso tudo, o poviléu sem instrução, sem
assistência moral e material, sem direitos Quando o futuro D. João VI aportou ao
dignamente expressos. Escravos,escravos ... Brasil as artes tinham suas manifestações
Negro que não acabavvíÍ1ais I restritas às atividades isoladas de um ou
D. João viu-se ~~brigação de criar no- outro habilidoso, cujo talento devia ser o.
vas condições de/vida para a sua côrte. Dai produto de um longo esfôrço em tôrllO de si
as iniciativas que se sucederam, durante o seu mesmo.
estágio no Brasil: a abertura dos portos, a O govêrno dos vice-reis não norteoune-
fundação do Banco do Brasil, da Imprensa nhum plano, não demonstrou mesmo inte-
Régia, do Jardim Botânico, do ensino das resse de espécie alguma para incentivar os
artes plásticas, da música, etc. impulsos vocacionais esporádicos que por
Walsch, em sua "Voyage au Brésil", es- aqui surgiam. Os pobres artistas plásticos,
creve: "Trois siecles durant, la presse avait em geral mestiços como José Leandro, Ma-
été prohibée au Brésil, pour crainte des ef- nuel da Cunha, Leandro Joaquim, Mestre Va-
fets dangereux qu'on la supposait devoir y lentim e o "Aleij adinho lO, trabalhavam para
produire; et, jusqu'el1 1802, il l1'avait été, os mosteiros ou igrej as, sem recursos que lhes
difon, jamais imprimé une seule ligne dans proporcionassem um padrão de vida digna-
toute cette vaste contrée". mente merecido.
Com tais atas o monarca passou à Ris- A metrópole não consentia que o povo
tóri~ conio um dos grandes benfeitores do pensasse. Temendo isso, um decreto do Rei-
nosso país. no mandava fechar a tipografia de Izidoro
Não faltam realmente historiadores que da Fonseca, pelo crime de pretender vulga-
o colocam no alto da galeria dos notaveis es- rizar livros ...
tadistas que o Brasil conta em seu acêrvo D. João, seriamente aborrecido com a
histórico. Felizmente, não faltam também os vida estagnada que a colônia lhe oferecia,
que encaram tais iniciativas como determi- resolveu tomar iniciativas capazes de sacole-
nantes inapeláveis de cedas drcunstâncias j ar o torpor em que todos se achavam mer-
que se operariam independentes da boa-von- gulhados. Dessa forma, mandou que provi-

-152 -
denciasscm a vinda .deuma colônia de artis-
las franceses ]Jara o Brasil. 'E ela veio, a
missão Le Br~ton. Integravam-na notáveis
artistas como Debret, os dois Taullay, Grand-
geall de Montigny, os irmãos Ferrez, etc.
A despeito da opinião - muito corrente,
aliás ~~ de que essa embaixada de artistas
haja concorrido, sem o querer, para "retirar
da nossa arte a sua feição nativa c a sua
tll'igil1alidade", ela marcou, il1disc.utivelmcn-
te,.o inicio de uma época dignificadora para
o ambiente espiritual do nosso povo. E' ver-
dade que tanto o arraigado lusitanismo do
príncipe, como o do imperador que o suce-
deu, não permitiram a livre ação dos mestres
franceses, cerceando-lhes em grande parte a
faculdade de estabelecer o ensino como éles
o consideravam realmente provei toso.
A proteção injustificável concedida a um
pintor português, medíocre e Íln'ejoso, o sr.
Henrique da Silva, levou o Rei à prática de
injustiças clamorosas com os artistas da co-
lônia Le Breton.
Henrique da Silva manteve luta contínua
contra os mestres franceses, luta pontilhada
de calúnias, torpezas, etc. Mas ... era portu- Nos tempos da velha Capela Imperial,· mllslca brotava
dos "armonluns", montados nos conventos
guês e. .. isso bastava.
No setor musical a coisa se repetiu com
as mesmas características. Os elementos que Certa vez foi D. João ouvir missa na
aqui se dedicavam à arte dos sons, sofreram Igreja de Santo Inácio de Loiola, em Santa
sensíveis e odiosas diminuições, por parte do '(:ruz. Lá existia o famoso "eonseryatório" a
monarca, cuj a simpatia e proleção acoberta- que já fizemos referência.
vam ünicamente os mestres portugueses. Esse núcleo, instituído pelos jesuítas para
O caso José Mauricio-Marcos Portugal é o ensino da música e do canto coral aos ne-
bem conhecido e reflete, em última análise. gros da colónia, fôra confiscado, juntamente
o dos pintores Debret-Henrique da Silva. com a Fazenda de Santa Cruz, em 1768, em
São do "Recopilador Campista", de 24 de virtude do decreto pombalino que ordenava
janeiro de 1835, os seguintes comentários: "Os a expulsão dos jesuítas. Pelo auto de seqües-
artistas que acompanharam D. João VI não tI'O .verifica-se que havia, na Fazenda, 1025
passavam de medíocres, e contudo eram os eílcravos; muitos dentre êles sabiam canta!'
melhores que Portugal possuía. Os recém- por solfa. Passando a fazer parte dos bens
chegados acharam entre os nacionais homens da corôa, continuou, contudo, o ensino dos
mais hábeis que êles, e entre outros José Le- escravos, sem que se saiba, aliás, quais os
andro, que obteve a preferência no concurso mestres que tomaram a si o prosseguimento
para o quadro do altar-moI' da Capela Real, dos cursos do quasi-lendário "conservatório".
não falando nos profundos conheCimentos fato incontestável é que negros e mulatos lá
musicais do genial padre José Mauricio". estavam, q~arenta anos depois, mais ou me-
E' claro que o periódico referia-se ape- 110S organizados, quando a augusta majesta-
nas aos que haviam acompanliado a côrte, de foi assistir à sua missa, em Santo Inácio
em sua fuga espetacular. de Loiola. O rotundo bragança não escondeu

- 153 "-
5e-u-'-pasmo,-:'pela .. perfeição. -com-a quaL a Religioso até à medula, tôda a atencão
música vocal e instrumental era executada do ~õnarca se voltava, porém, para a mús'ica
por .negros dos dois sexos, que se tinham sacra.
aperfeiçoado nessa arte segundo o método A Capela Real, que contou desde o ini-
introduzido, diversos anos antes, pelos anti- qio com a colaboração do padre José Mauri-
gos proprietários dêsse dominio, método que, cio, foi sem dúvida uma esplêndida realiza-
por felicidade, ali se conservara. Sua Ma- ç·ão do Rei luso. Constituiu, no obscuran-
jestade, que gostava nUlito de música, que- tismo daquêles tempos, uma grande afirma-
l'endo tirar partido dessa circunstâcia, fun- ção do programa de proteção às artes, de que
dou escolas de primeiras letras, de composi- tanto se vangloriava D. João VI. Ficou como
ção musical, de canto e de diversos instru-. o primeiro marco da cultura musical organi-
lllcntos em sua casa de diversão e conseguiu,
zada, em nossa terra.
em pouco tempo, formar entre êsses negros,
Lorenzo . Fernândez deu-me, a respeito,
tocadores de instrumentos e cantores muito
suas impressões:
hábeis" .
"Indiscutivelmente, a vinda da côrte por-
Quem conta essa história é o cronista
Balbi em seu "Essai Statistique sur le Royau- tuguêsa para o Brasil, com o grande número
me de Portugal et d'AIgarve", citadíssimo de magníficos artístas europeus trazidos en-
em todos os estudos sôbre música brasileira. tão, foi altamente benéfica e vantajosa, im-
Joaquim de· Vasconcelos, em um livro" Os pulsionando vigorosamente o progresso das
músicos portuguêses", editado no Pôrto, em artes no Brasil. Não sei mesmo qual seria a
1870, acrescenta que "D. João VI, para apre- nossa atual situação artística sem êsse im-
sentar uma idéia nova, lembrou-se de refor- pulso inicial do qual se beneficiaram tôdas
mar o conservatório africano e estabeleceu as artes através da missão contratada espe-
no seu palácio (maison de plaisance) uma cialmente na França e cuja lembrança ainda
escola de composição musical, de canto e vá- perdura com os nomes ilustres de Le Breton,
.....-...----------rios instrumentos .. ,". Essa "maison de plai- Debret, dos irmãos Taunay, de Montigny,
/ sance" devia ser forçosamente a casa de re- sem falar em Marcos Portugal e Sigismundo
creio da Fazenda Santa Cruz, como conclui Neuckomm, tambérn chegados ao Brasil mais
o Visconde de Taunay. ou menos por essa época".
Mais tarde os dois irmãos Marcos e Si- Antes de haver chegado de Lisboa o or-
mão Portugal chegaram a compor algumas ganista José do Rosário, mandado vir espe-
peças especialmente para os coristas do con- cialmente pela Côrte, ocupou o lugar o nosso
serva tório. Com a organização da Capela José Maurício, a quem o Rei dispensava
Real muitos de seus músicos foram recruta- grande consideração, não obstante ser um
dos para integrar o novo núcleo de cantores. mulato.
D. João era tido e havido, na época, co- Compulsando autores, -- cronistas, me-
mo entendedor de música, além de executor
morialistas ou simples comentadores, sente-
de bom-gôsto. Pelo menos, Balbi assim o
se a unanimidade de louvores à instituição
julgava, quando escrevia sôbre a reorganiza-
da Capela Real. Nela, ouviram-se grandes
ção da Capela Real e do conservatório: "Sua
peças religiosas, eomo o "Misérere", de Per-
Alteza o Príncipe do Brasil, que possui ex-
golesi, "que fêz o assombro dos estrangeiros
traordinário talento de música, que compõe
com tanto gôsto e facilidade e que toca em Roma, ali executado n~l Ser!1élUa Santa
diversos instrumentos, entre outros fagote, com igual pl·rfeição".
trombone, flauta e violão, muito contribuíu Possuia um corpo de cinqüen!:;,~~!~."lol.".es.
para aperfeiçoar êste estabelecimento, único contando-se entre êles "magnificos virt!/osi
no gênero, pelo encorajamento que deu a italianos, dos quais alguns -famoso:, castraii,
êsses negros e pelos benefícios que lhes pro- e 100 executantes excelentes, dirigidos por
digalizou" . dois mestres da capela, avaliando Debret os

-,- 154 --,:


gaslus rum êsscs artistas cm :100. 000 franco~ Na própria comitiva real tinham vindo,
.
anuaIs " . en lre os artislas, duas figuras de caslrados.
A respeito desses castrati, revelava Frey- Uma delas era Bento das Mercês, mais tarde
eil1et (que os ouvira pessoalmente), possui- regente da orquestra e cantor da Real Capela,
rem vozes doces e claras demais para vozes "muito conhecedor dos segredos da Música e
de homens e que "tinham uma fôrça e um possuidor de formosa voz de soprano"; a
\
10m grave que nunca se encontram em ne- outra era o conhecido cravista Bachicha,
nlmma voz de mulher... Assim, .pois, no
Brasil como na Itália, o luxo da música leva
compositor de fama da Real Capela de Lis-
boa. f:ste último perdeu a razão nos derra- \
os portuguêses a usarem êsses sêres mutila- deiros anos de sua vida. Dizem que, no hor-
dos que a natureza desaprovava, tristes e ror da sua loucura, em plena alucinação,
deploráveis vitimas da sensualidade (' ela "improvisava com estupenda inspiração ('
barbaria dos homens!" copiosidade" .

JJ1úsica sacra e música profana


A Capela Real era, arquitetônicamente, uma
cópia fiel da antiga capela real de Lisboa e,
Já vimos a edificaçúü dos primeiros tea-
tros no Brasil, nos tempos recuados dos vice-
para sua edificação, ° monarca expediu 01'- reis, no Rio de Janeiro. O teatro de Manuel
(Iens no sentido de que não se olhassem fi Luiz tornara-se inadequado às exigências do
despesas. ln leriol'mente era tôda forrada" de novo público. Mesmo assim, a côrte o fre-
panos de seda bordada a ouro, e muito bem qüentou por espaço de quatro anos, isto é, ate
iluminada por um número infinito de velas 1813, quando se inaugurou o Real Teatro São
e cirios". . João.
Em pouco tempo, porém, dada a inclina- Essa casa de espetáculos foi erigida gra-
ção natural do poviléu - pendor que é inalo ças aos esforços de Fernando José de Almei-
em quase todos os brasileiros - a música, da, conhecido como o "Fernandinho", que
como as demais artes, não ficou restrHa ape- aqui fóra cabeleireiro de um dos vice-reis. O
nas aos muros -eclesiásticos. ,Veio para a rua. fig aro era positivamente louco por arte tea-
Desdobrou-se em outras modalidades, C011-
tral, pois chegou a ponto de ofertar um ter-
quisÚiiidó caráter de franca pr~fànidáde ..
reno que possuía defronte da igreja da Lam-
Estabel~_ceú-se então nitidamente a dife·· padoza, para que nele se erguesse a nova casa
l'ença entre música sacra e música profana. de representar. Mais ainda: prometeu "con-
A primeira,· prestigiada pelo talento insupe-
correr com· os seus fundos, indústria, admi·-
rável de José l\fàuricio, centralizou suas ati-
nistração e trabalho, não só para a ereçãu,
vidádes na Capela Real, verdádeiro núcleo
como para o reger e fazer trabalhar". Três
irradiador da elevação musical daquela época.
aHOS durou a construção cujo "risco", imita-
A outra, de caráter profano, veio para .98 .. ~
Ilalcos da cidade e contou com o prestígio de ção do Teatro São Carlos, de Lisboa, ()bede-
Marcos Portugal, musicista lusitano aqui che- da a um traçado do brigadeiro João Manuel
ga~o em 1811. . _. da Silva; finalmen te, foi o mesmo inaugura-
Ambas éssas figuras merecem referên- do, no dia 12 de outubro de 1813, sendo le-
cias especiais; antes, porém, será de interêsse vado à cena ó drama lírico "O Juramento
geral uma rápida vista d'olhos no ambiente dos Nunes ", de D. Gastão Fausta da Câmara
musical do período donjuanino em nosso Coutinho (cuja música tem fi sua autoria
pnisc contestada, afirmando alguns ter sido de

.'. 1;;;; .-
Marcos Portugal) c o drama "Combate de Policarpo, violoncelista; Silva Conde, médico
Vimieiro" . e flautista; Alvarenga, poeta e exímio na
Tôda a côrte assistiu ao espetáculo tendo flauta, além do grupo de cantores, homens e
sido a orquestra dirigida por aquêle maestro mulheres, entre os quais João dos Reis, a
lusitano, nomeado, mais tarde, diretor artís- quem o monarca cHamava "o meu Mom-
tico do Teatro São João. Muitas de suas belli" ..
óperas foram ali montadas, '0 que concorreu O povo cantava, cm geral com acompa-
para o desenvolvimento do gôsto pelos dra- .uhamento de violão ou viola, de-vez-quc os
mas líricos, tão ao sabor, já naquela época, J2i!ln()!, eram raríssimos. Spix e Martius de-
das platéias da Europa. ram o seu testemunho pessoal: "O estado de
O Teatro São João foi destruido por vá- desenvolvimento em que se acha a música,
rios incendios e, novamente restaurado, che- nas altas camadas do Rio e das outras cida-
gou até nossos dias, como Teatro São Pedro, des costeiras do Brasil, corresponde inteira-
demolido finalmente pela Prefeitura para a mente ao amor, com que se cultivam aqui a
construção do atual Teatro João Caetano. poesia e as belas letras"
Em 30 de março de 1818 foi criada, pelo
rei, a cadeira de música, sendo nomeado para
regê-la José Joaquim de Souza Negrão.
A música começou, no novo Rcino, a en- Nasd.emais províncias a atividade nas-
contrar clima favorável à sua expansão. Tanto cente da música também se fazia sentir. Na
nas igrejas como nos salões, nos teatros ou Bahia, em 1812, conrluíam-se as obras do
nas ruas, ouvia-se música, boa e má, graças. Teatro São João, ir:augurado no dia 13 de
à tendência alegre e comunicativa dos habi: maio. Nêle atuava uma pequena orquestra
tantes das cidades. que executava "com maestria protofonias de
Pizarro, em suas "Memórias Históricas Pleyer, Girowetz, Boieldien e Rossini", como
do Rio de Janeiro", lança suas impressões: afirmaram Spix e Martius. Dessa. mesma
"A música manej ada com harmonia por ha- forma, registravam-se em Pernambuco na j

bilissimos e mui dextros professores, que Paraíba, etc., acontecimentos que denuncia-
aplicados a essa Arte se têm feito senhores vam desenvolvimento do bom gôsto musical
do seu bom gôsto, e ajudados pelas compo- dos habitantes.
sições dos melhores autores da Europa, be- Para o Brasil, viera em 1816, trazido pelo
bem com êles a delicadeza do concêrto no Duque de Luxemburgo, Embaixador da Áus-
instrumental, e nas vozes; não contribui pou- tria, um piánista e compositor austríaco, Si-
co a satisfazer também o contentamento do gismundo Neuckomm, que fôra discípulo de
pUblico, que em qualquer lugar, onde se exe- Haydn. Aqui chegado, viu-se logo nomeado,
cute aparece, apinhado". por D. João VI, para a Capela Real na qua-
Na Côrte, é natural, o ambiente criara lidade de mestre de contra-ponto. Um de
campo mais propício para a expansão das seus alunos prediletos foi o jovem Francisco
artes musicais. Já em 1759 --- muito antes, Manuel, adolescente ainda, naquêle tempo.
portanto, da chegada de D. João VI - os Neuckomm sofreu também a perseguição mo-
jesuítas haviam fundado, no Rio de Janeiro, vida pelo despeito e pela inveja de Marcos
o Seminário dos Órfãos' em terrenos conti- Portugal, tendo, ao fim, regressado a Lisboa,
guos à igrej a de S. Pedro. Ali se ensinavam desgostoso em ver o panorama da música no
a gramática latina, música e cantochão. Brasil entregue ao império das intrigas e das
Com isso teve a arte natural desenvolvi- malquerenças. Tendo-se ligado ao padre José
mento, dando ° Seminário não poucos artis- Maurício, de quem se confessava admirador
tas de mérito, tais como o padre Antônio, entusiasta, lamentou a sorte dêsse gênio mu-
franciscano e pianista; Manuel Joaquim, vio- sical, tão mal compreendido e tão hostilizado
linista que, mais tarde, ocupou o lugar de pela mediocridade dos dominantes portuguê-
spa/a no Teatro São João e na Capela Real; ses. De regresso à Europa chegou ainda a

-156 -
editar um álbum de modinhas brasileiras, de
autoria de Joaquim Manuel, seresteiro mes-
tiço, a quem o violinista austriaco atribuía a
invenç'ão do cavaquinho, cuja origem é, to-
davia, contestada por Luis da Câmara Cas-
cudo, que o situa como instrumento portu-
guês, oriundo da ilha da Madeira.
Outras figuras surgem nos tons crepus-
culares do século dezenove, como cantores,
organistas e compositores. São, em sua: maio-
ria, discípulos da Igrej a. Citam-se, portanto,
varias frades e jesuítas como autores de mis-
sas, matinas, requiens, etc. Seus nomes, por·
certo, devem apresentar valores relativos, de
acôrdo com o ambiente cultural da colônia,
cujos cronistas, à falta de coisa melhor, de-
senrolavam elogios faceis a qualquer exe-
cutor, medíocre que fôsse.
Fala-se, por exemplo, do talento do pa-
dre Manuel da Silya Rosa, de frei Santa Clara
Pinto, de frei Antônio de Santo Elias, de frei
Francisco de Santa Eulalia, como autores
festej ados de música religiosa. No terreno da
profanidade, saltam os nomes de Bernardo
José de Sousa Queiroz, Salvador José, Silva
Alvarenga c mais alguns outros.
D. João VI, retratado pelo pintor Jean Baptiste Debret.
Como executores, cita-se também a fa- (~Iuseu Nacional de Belas Artes - Rio)
mosa familia Leal, cuj os membros eram
"exímios virtuosi", além dos seguintes apon- Pinto, Antônio da Silva Alcântara, Máximo
tados por Balbi: Manuel Rodrigues da Silva, Pereira Garros, etc.
clarinetista da Capela Real; Manuel Joaquim, Como se vê, repontavam pelos domínios
primeiro violino; padre Antônio, pianista da corôa as primeiras manifestações da mú-
português; e Policarpo, violoncelista. sica cultivada de acôrdo com os requisitos'
Compositores eram ainda Damião Bar- das escolas de além-mar. Surgiam como os
bosa de Araújo e José Rebouças, ambos primeiros surtos elevados das boas qualida-
baianos, tendo o último estudado na Europa, des music~is do povo que aqui habitava. E
completando cursos de contraponto, hanno.- dêle saía também, assumindo vulto extraor-
nia, composição e violino. dinario e dominando inteiramente a sua
época, a figura do primeira gênio que a mú-
Em Pernambuco e no Maranhão também sica produziu em terras brasileiras: o mulato
aparecêm alguns nomes, tais como Luiz Alves padre José Maurício.

/S11arco8 Ç}ortllJa[ e g08é Sflaurício


1\:IARCOS ANTÔNIO DA FONSECA PORTUGAL, que das côrtes ~uropéias. Contava então quase
para aqui viera em 1811, trazia larga fama einqüenta anos de idade, pois nascera em

-157 -
Lisboa a 24 de março de 1762. Sua obra era çado por Luiz Joaquim dos Santos Marrocos,
das mais. copios-as; 'basta dizer que o compo- oficial de Secretaria da Côrte, em cartas en-
sitor luso escrevera quarenta óperas! Sim, dereç'adas a seu velho pai, em Lisboa.
senhor; quarenta óperas e tôdafi' elas -repre- E' verdade que Marrocos sofria, por sua
sentadas! Nos teatros da Itália, de Lisboa, na vez, de sério despeito pela repulsa que o
Alemanha, em Paris, na Rússia, em Londres maestro mostrara por suas atividades. Daí os
e,.finalinente, no Rio de Janeiro, suas obras sentimentos hostis que ditaram os termos
- ao que dizem noticiaristas da epocà - fo- acrimoniosos das epístolas. Dizia êle que
ram aplaudidas "pelas platéias mais exigen- Marcos Portugal "está feito um lord com
tes" . fumos mui subidos".
Aqui, montaram a "Demofoonte",, no ":Êsse barão d' Alamiré tem ganhado u
Teatro S. João, a ,17 de dezembro de 1811, aversão de todos pela sua fanfarronice. " E'
aniversário da rainha D. Maria I; a "L'ôro tão grande a sua impostura e soberba por
nom compra amore", em 1817, e a "Mérope", estar acolhido à graça de S. A. Pt. (lue tem
no mesmo ano. levantado contra si a maior parte dos llles~
l\'ão se deve acolhêr no entanto êsse en- mos que o obsequiaram: é notá"cl a sua cir-
tusiasmo sem grandes reservas. A músicâde cunspecção, olhos carregados, cortejos de ~ll­
:\Iarcos Portugal era filiada à velha escola perioridade, enfim aparências ridículas e de
italiana, convencional e repleta de fórmulas charlatão" .
banais, escola já em decadência na época, "Como cstú constituido dirclol' do tcatro
embora ainda encontrasse, nos centros -do e funções musicais, quanto à música tem for-
velho mundo, arraigados e teimosos adeptos. mado grandes intrigas entre músicos e alo-
Como tal, sua obra fraca e vacilante nada res, do que se lem originado enormes desor-
mais era do que simples imitação dos Mon- dens".
teverdi e Cia ... Não perdurou, não fez con- E procurava dar "azas ao seu complexo,
tinuadores. Votada logo ao esquecimento, ridicularizando o compositor com estas pa-
não contribuíu, é certo, para firmar quais- lavras:
quer características no ambiente musical do "E' riso vê-lo à janela e em público, todo
reino. empoado e emproado, como quem está go-
Além das partituras de óperas, Marcos vernando o mundo; mas enfim tem UlU gran-
Portugal escreveu ainda muitas obras sacras, de padrinho e por ser êste quem é, vê-se afa-
dentre as quais citam-se, como as mais no- gado por todos. Bem dizia o desembargador
táveis, a "Missa à grande orquestra" canta- Domingos Monteiro de Albuquerque e Ama-
da na Capela Real em 1814 e o "Te-Deum", ral, chamando-lhe o rapsodista Marcos".
executado em 1820. A fecundidade do com- Aparados os excessos do despeito do mis-
positor era, como se vê, pasmosa. Tido e sivista, sente-se, no entanto, através de suas
havido como menino prodígio, começara a palavras, a atuação do compositor e o papel
produzir aos 14 anos, não cessando de tra- por êle exercido no meio daquêles fidalgotes
halhar até os últimos anos de vida. decadentes.
Vindo para o Brasil, aqui se portou, a Em resposta a uma pergunta que eu lhe
princípio, com a empáfia de um ser supe,· fizera, sôbre Marcos Portugal, Villa Lobos
rior em uma colônia de gente atrasada, como me disse secaÚlente: "Não vale nada! Pensou
um "civilizado" em terra de botocudos. Aqui despertar admiração, vindo para a colônia
encontrou a figura humilde e genial de José mas, aqui encontrou a figura de José Mau-
Maurício, cujo talento foi obrigado a reco'- rício. :Êste sim, era um verdadeiro gênio.
llhecer, embora com a alma cheia de des- Considero músicabóa apenas a que é etel'l1a.
peito, que deixou e:;travazal' em uma serie de A de Jose Mauricio está nesse caso ... "
torpes perseguições e indignas picuÍnhas. E' A mesma opinião pertence a Lorenzo
que Marcos era português e desfrutava a pro- Fel'l1â.ndez: "A influência de Marcos Portu-
teção do monarca. Seu retrato moral foi tra- gal parece ter sido muito passageira em con-

-158 -
lruposição com a genial figura do nosso José
:\Iaurício" .
:\ o ano em que. _~hegou ao Hio, :\Iurcos
Portugal foi vitima de um primeiro ameaço
de apoplexia "espécie -de estupor, de cujo
ataque ficou leso de um braço"; o segundo
sobreveio em 1817 e finalmente o terceiro, a
que êle não pôde resistir, lllutou-O no dia 7
de fevereiro do ano romàlltico de 1830. Já
estava bastante idoso com quase setenta anos
de idade.
Com a yolta de D. João VI para Lisboa,
Marcos preferiu permanecer no Brasil. Sua
estrêla, no entanto, sofreu serio declínio com
a regência de D. Pedro I, que não lhe dis-
pensou a mesma proleção de seu augusto pai.
Sem o manto acobertador da benevolênCia
imperial, :Marcos sofreu desgostos serissimos,
curtindo até dias de misel'ia, a ponto de ser
obrigado, velho e desamparado, a procurar
acolhida em casa da marquêsa de Aguiar.
Seu irmão, Simão Portugal, bom flautis-
ta, ao que dizem., chegou a ser nomeado or-
ganista da Capela Real. José MaurIcio (De uma máscara em gêsso existente no
Museu Histórico). Desenho de Marques Junior

Não sei se tais afirmações merecem cré-


José Mauricio Nunes Garcia nasceu na dito, de-vez-que naquele tempo eram raros,
antiga rua da Vala, hoje Uruguaiana. Seu pai no Brasil, os instrumentos acima citados, e
chamava-se Apolinário Nunes Garcia, natu- aqueles que os possuíam deviam ser mais
ruI da ilha do Governador e descendente de ou menos abastados. José Maurício, tímido
uma familia estabelecida em Irajá. Sua mãe e de classe inferior, não poderia, por certo,
Vitória Maria do Carmo, vinha "em linha freqüentar meios que não fôssem os seus,
reta" de escravos da Guiné. Ambos de côr, plebeus e miseráveis. De qualquer forma,a
mestiços de condição humilde e parcos ha- vocaç'ão do pequeno ficou patenteada muito
veres. cedo, pois sua mãe inscreveu-o como aluno
O menino viu a luz do dia em 22 de se- em um curso despretensioso, mantido por um
tembro de 1767. Tinha ainda seis anos de pardo, de nome Salvador José. Em pouco
idade quando lhe faltou o pai. Sua mãe, ao tempo, o aprendiz passou a ocupar o primei-
lado de uma irmã, viu-se a braços com a mi- ro lugar entre os seus condiscípulos.
séria; mesmo assim, mulher de ânimo inque-
Ninguém sabe, ao certo, se José Mauricio
brantável, tipo de lutadora enérgica, conse-
fez estudos musicais no tal "conservatório"
guiu levar adiante a educação do filho, em-
penhando-se em mandaI' ensinar-lhe as pri- de Santa Cruz. Hã quem aceite a sua passa-
meiras letras, além das quatro operações. gem por aquêle núcleo jesuítico; outros, po-
Dizem que, muito cedo ainda, patenteou inÍ- rém, contestam, sem contudo o comprovarem
• ludiveis inclinações para a música, chegan- devidamente. Mesmo assim o que se pode afir-
do a tocar de ouvido viola de cordas metáli- mar é que, em Santa Cruz ou no centro da
cas, violão e até mesmo o cravo. cídade, José Maurício aprendeu música com

-159 -
os jesuítas, UnICOS mestres aceitáveis que' cono, em 1792. Pouco depois, cantava a sua
então existiam. primeira missa, solene, como padre.
Mocinho ainda conheC.eu os primeiros
embates da. vida, vendo-se obrigado a traba-
lhar para colaborar com sua mãe e sua tia Foi, mais ou menos nesse tempo, que José
na subsistência doméstica. Louvem-se, de Mauricio, aproveitando a casinha da rua das
passagem, as qualidades de .sentimento' e ca- Marrecas, abriu ali uma aula gratuita, onde
ráter do jovem aprendiz de música, que nmi- ensinava música a quem demonstrasse ver-
ca o fizeram esquecer o muito que devia dadeira vocação artística. Não havia ainda
àquelas duas criaturas. Em seu necrológio,' pianos, no Rio de Janeiro, nem tampouco
acentuou o cônego Januário da Cunha Bar- poderia o mestre adquirir um cravo, instru-
bosa "que o seu primeiro e mais ardente em- mento que custava relativamente caro, na
penho fôra mostrar eficaz gratidão às duas época. Suas aulas eram ministradas com a
pessoas que por êle tanto haviam feito, mãe ajuda de violas de cordas metálicas.
e tia". Enquanto a êle, exercitava-se, por certo,
nos cravos ou nas espinhetas que encontrava
Trabalhava, tocando instrumentos de
nas casas de suas discípulas. Suas atividades
corda ou de sôpro, em bandas de música e
tiveram então grande amplitude, pois a con-
pequenas orquestras de igreja. Não raro,
dição de sacerdote garantia-lhe o respeito
cantava ainda em saraus familiares, aCOlll-
necessário para ser recebido no seio das fa-
panhando-se ao violão ...
mílias mais importantes da colônia.
Inscreveu-se, em seguida, em uma aula A cultura musical do padre acumulava
pública de latim, dirigida pelo padre Elias, acêrvo cada vez mais precioso. O Visconde
onde estudou três anos a fio. Aprendeu tam- de Taunay dizia dêle: "Com 'quem aprendeu
bém História e Geografia, francês, inglês, ita- tão a fundo José Maurício harmonia e con-
liano, grego e hebraico. Mais tarde, ouviu traponto? Consigo mesmo. Mestre abalizado
lições de Filosofia com o Dr. Goulão, mestre em cantochão, conhecendo todos os segredos
formado pela Universidade de Coimbra. De do ritual gregoriano, arroubado entusiasta
tal forma foram os progressos alcançados das imensas belezas que êle encerra, como
que o mestre o propôs para seu substituto inexcedível expressão da fé e unção reli-
na cadeira régia . José Maurício recusou. giosas, na contínua e absorvente meditação
Em 1790, com vinte e poucos anos de dos modelos que estudava e interpretava,
idade, viu morrer sua tia, a quem êle· idola- assentava as seguras bases do mais sólido
trava como à sua própria mãe. Começou' daí, saber musical".
talvez,. o ensombramento místico de sua alma, Essas aulas de José Maurício, êle as man-
que o levou à decisão de abraçar a carreíra teve durante o largo período de trinta e oito
eclesiástica. Além do mais, como mulato que anos, isto é, até 1830, ano em que sua alma
era, o rapaz lobrigou, com tal decisão, opor- se desprendeu em ascellção para o seio de
tunidade de compensar a inferioridade social Deus.
que lhe advinha da desigualdade de seu Dentre os díscípulos dêsse curso salien-
nascimento. Como clérigo, seria naturalmente taram-se alguns nomes de notável projeção no:
visto com bons olhos, pela sociedade precon- panorama. musical do nosso pais .. São~ êles:
cei tual daquela época. padre Manuel Alves Carneiro, Francisco da
Entre os seus amigos, ha"ia um nego- Mota, Cândido Inácio da Silva, Francisco da
ciante, abastado e generoso, que muito lhe Luz e o grande Francisco Manuel da Silva; .
valeu nesse período. Era o Snr. Tomaz Gon- autor, mais tarde, do hino nacional do Brasil. •
ça]ves, que chegou· a doar ao rapaz uma de . Enquanto isso o. padre compunha.Sua~
suas- casas, na rua das lVlarrecas. Foi êle "Sinfonia fúnebre", bem como alguma~
também que o ajudou a fim de que José "Missas de grande orquestra" trazem a data
Mauricio pudesse receber as ordens de diá- de 1790.

-160-
"D ..João VI ouvindo o padre José
MaurIcio" - Tela de Henrique
BernardelU

Em 1798, em têrmo lavrado no dia 2 de N'êsse período áureo, José Maurício COlll-
junho, José Maurício foi nomeado para o pôs uma série notável de peças para a Ca-
cargo de mestre de Capela da Catedral e Sé pela Real. Estudando continuamente a mú-
(hoje igreja do Rosário) com o ordenado sica alemã, pois mandava vir da Europa ál-
anual de 600$000. Com a licença que obti- buns e tratados sôbre a matéria, seu gênio
elevou-se às culminâncias de um verdadeiro
vera de poder pregar, o padre passou a de-
Mozart, como o julgou Neukomm, após ter
senvolver sua oratória sacra, recebendo, por
ouvido o "Requiem", do padre mestiço.
sermão, a quantia de 5$000 ou 10$000.
Não seria exagêro calcular em quase
Dessa época em diante, no decorrer de
quatrocentas o número de composições de
uma década, José Mauricio teve a sua fase
José Mauricio, sendo de notar que a maioria
de notável fecundidade; compôs, de fato, de
foi elaborada na década que precedeu a che-
1798 a 1808, a parte mais apreciável de suas
gada da côrte de D. João VI.
obras. Suas atividades desdobraram-se tam-
bém no setor do ensino. "Tinha, com efeito Na coleção Gabriela de Souza, sobrinha
- escreve Taunay - sob as suas ordens e do castrado Bento das Mercês, a quem êsse
inspeção a melhor e mais completa orques- regente de orquetra e cantor deixara um
tra, que então existia na capital da grande acêrvo de 112composiç'Ões de José Maurício,
colônia portuguêsa; dirigia, na qualidade de aparecem inúmeras composições sacras, cujos
respeitado mestre, o côro da catedral que re- nomes seria fastidioso enumerar. Salicntam-
forçou com instrumentistas e cantores cuida- se, dentre elas, a "Missa dos Defuntos", a
dosamente escolhidos; via' freqüentada com quatro vozes; a "Missa em si bemol", redu-
assiduidade a sua aula gratuita da rua das zida para piano por Alberto Nepomuceno; o
Marrecas, a que consagrou, conforme já dis- "Conf't1 eor " ; o "L au d ate Domlllum";
. a "Ma-
semos, 38 anos de ininterrompida e zelosa gnífica"; o "Tantum ergo"; etc., etc.
atividade, e contava com boa cópia de licões . Nêsse período, em 1808, nasceu ainda um
particulares, ministradas a filhos e filhas 'das fIlho de José Maurício, tornado, mais tarde,
melhores famílias, que o recebiam com tôda o Dr. José Maurício Nunes Garcia, médico e
a confiança e carinho em seu seio e intimi- catedrático da Faculdade de Medicina, além
dade" . de poeta, pintor e compositor de modinhas.

- 161 --
Com a chegada do principe regente, José Marcos Portugal, a principio desdenhoso
Maurício caíu, logo de início, nas graças de e seguro do insucesso do padre, foi aos pou-
D. João, que procurou prestigiá-lo, a despeito cos transformando seu juízo, sob a impressão
da repulsa dos nobres e cortesãos que não profunda da virtuosidade do rival. Final-
podiam tolerar "aquêle padre n~ulato" osten- mente, entusiasmado, não pôde conter lillla
tando, nos salões, a sua figura fúnebre .. , exclama~ão sincera: -- Belíssimo! E's meu

Em 1808, foi êle nomeado Illspetor da irmão na arte!, ..


Capela Real; pôde então manejar o órgão, Mas os seus sentimentos de fraternidade
com tôda a segurança e maestria, sob a ori- não perduraram. Foram fruto de um mo-
entação do organista Antônio José, mento de exaltação e nada mais. Porque a
As intrigas fervilhavam em tôrno da pes- batalha apenas iniciada iria recrudescer ani-
soa de José Maurício que cada vez mais avul- mada pelos intrigantes da Côrte. A animo-
tava na estima e admiração do Rei. :E:ste sidade de Marcos Portugal crescia à medida
chegou a ponto de tirar da farda do visconde que reconhecia a superioridade do músico
brasileiro. Ademais, fervia dentro dêle o es-
de Vila Nova da Raínha o hábito de Cristo
para colocá-lo, pessoalmente, no peito do mú- pírito que dava vida às velhas tertúlias entre
os cultores da música italiana e os da música
sico. Passou-se esta cena no paço de São
alemã. :E:le próprio, adepto da escola penin-
Cristóvão, no decorrer de grande festa que
sular, melódica e flácida, contrapunha-se
ali se realizava e em seguida à execução, por
José Maurício, de algumas composições de sua com a sua personalidade às "inovações" da
grande escola harmónica dos mestres ger-
lavra.
mânicos. Daí o embate, os despeitos e a so-
Impressionados com tais demonstrações berba do compositor europeu, que muito
do monarca, os despeitados decidiram então contribuíram para tornar repulsivo o seu
providenciar para a vinda de Marcos Portu- papel na história.
gal, o mais famoso compositor das terras
Em 1816, um golpe profundo abateu o
lusas, Sem ânimo e sem coragem para con-
ânimo de José Maurício: sua extremosa mãe,
trariar o Rei, passaram a exercer suas falsi-
minada por moléstia tenaz, entregou a alma
dades longe das vistas do monarca,
ao Criador, no dia 20 de março. Nêsse mes-
A prova do que o padre sofreu, a com- mo dia, por curiosa coincidência, falecia
provação de suas vicissitudes, está nestas pa- também a Rainha D. Maria I.
lavras: "O que tenho sofrido daquela gente,
Para as comemorações fúnebi'es de tão
só Deus sabe; se não tivera EI-Rei por meu
augusta pessoa, D. João pediu a José Maurí-
lado, mil vêzes estalaria de dor!"
cio que compusesse uma Missa de Requiem.
Em 1811, finalmente, chegou ao Rio o
Essa peça famosa foi como que um grito
compositor Marcos Portugal, Mal desembar-
de dôr e de saudade do compositor, pois é
cou ouviu logo dos lábios de D. Carlota Joa-
de crer que êle a tivesse composto, compun-
quina a nova de que havia aqui um homem
gido pela perda do ente que mais idolatrava.
de côr, notável na música. E, já no dia se-
Mais tarde, como já anotamos, foi ela redu-
guinte, em São Cristóvão, nos aposentos par-
zida para piano ou órgão por Alberto Nepo-
ticulares da Princesa, o maestro luso foi obri-
muceno e é, mui justamente considerada co-
gado a ouvir o padre mulato. Na intenç'ão de
o atrapalhar desdobrou-lhe diante dos olhos mo a obra-prima de Jose Maurício, sendo
uma das mais difíceis sonatas de Haydn. executada sob louvores gerais nos centros
Humildemente, José Maurício declarou que musicais de Paris e B,ruxelas.
conhecia grande parte do repertório dêsse
mestre r embora aquela sonata não lhe fôsse
familiar. Mesmo assim, executou-a à pri-
meira vista, com tôda a facilidade, empres- No dia 26 de março de 1821, D. João VI
tando-lhe notável interpretação. embarcou para Lisboa, deixando para sem-

-'=- 162 -
,pre o Brasil e, sentado no trono, seu filho gemidos, ou o ganir dos cães que me incomo-
D. Pedro. dam e me entristecem ... ".
José Mauricio, que já se sentia doente e D. Pedro, fogoso e com pouco tempo para
alquebrado, preferiu ficar em sua terra, re- preocupações outras que não fôssem as da
sistindo aos convites do monarca para que politica, chegou a estranhar que o padre
o acompanhasse à Europa. Ficou e enclau- nunca mais tivesse aparecido em São Cris-
surou-se em retraimento profundo, Sua vida tóvão. E' que quem o "apreciava deveras"
interior tornou-se turva. O coração deu os estava longe, muito longe!
primeiros sinais de extrema canseira. l\ pró- D. João o apreciava na realidade, em-
pria memória começou a falhar ... bora não o tivesse poupado, especialmente
:Êsse estado de perturbaç'ões orgânicas do nos últimos anos de sua permanência no
padre encontrava similitude perfeita com o Brasil. Incumbia-o de tarefas esfalfantes.
ambiente, pleno de apreensões, que sufocava Não lhe dava descanso. Concorreu, portanto,
o novo Reino. Decorria, então, o ano que para o seu alquebramento, esgotando-o em
precedeu ao movimento da Independência, e afanoso lidar.
a insurreição latente fervia nos subsolos da O cônego Januário dá o seu testemunho:
conciência popular. "J osé Maurício começou a sofrer enfermida-
Preocupado com a absorção que lhe tra- des, que muito se agravaram pelo trabalho
ziam as dificuldades e conseqüentes agita- a que se dava no desempenho das suas obri-
ções do populacho, o Príncipe Dom Pedro gações, perdendo muitas vêzes noites inteiras
não encontrava tempo para dedicar-se a pro- em longas composições que o Snr. D. João VI
blemas culturais ou artísticos. A política queria ver concluídas com a maior presteza;
apresentava-se em primeiro plano e domina- a sua vida se foi gradualmente enfraquecen-
va a atenção dos dirigentes do país. do, até que em um ataque mais forte, e quase
José Maurício percebeu desde logo que repentino, teve o seu têrmo".
os tempos eram outros. Assistiu à decadên-
Em seus últimos anos chegou a escrever
cia das festas que outrora se realizavam na
para o real Teatro São João uma ópera
Capela Real. Já não se fazia ali aquela mú-
intitulada "Le due gemelle", "cujas partitu-
sica tão elevada e que tanto concorria para
ras - como assevera Taunay - se perderam,
aprimorar o espirito da Côrte.
uma no incêndio do mesmo teatro e a outra,
O próprio orçamento, exigido pela ne- o original, nos papéis de Marcos Portugal,
cessidade de sua manutenção, sofreu cortes
qUe foram vendidos a pêso aos fogueteiros e
profundos, chegando quase a ser suprimido.
taverneiros, pois que em uma nota escrita
Um véu de tristeza e de amargura infinita
pelo próprio punho de Jose Maurício, feita
desceu sôbre o espírito do padre compositor,
no inventário da música do real teatro, em
fazendo-o retrair-se cada vez mais, forçan-
1821, se acha o seguinte: "Le due gemelle",
do-o a um ensimesmamento doloroso e iní-
drama em música por José Mauricio: um ins-
quo. Pressentiu que jâ. não mai1!.,·poderia
trumental e partes cantantes: a partitura se
tornar a ser o que fôra, nos tempos áureos
acha em casa do Snr, Marcos Portugal",
de D. João; prognosticou seus derradeiros
dias. A memória diluíu-se-Ihe a ponto dêle Mesmo no período de depressão, mergu-
mesmo não reconhecer suas próprias compo- lhado em amnésia irreparável, ainda escreveu
sições, como sucedeu, certa vez, em que ouviu José Maurício várias peças de inegável valor.
um discípulo executar, na capela imperial, Entre elas citam-se a "Grande Missa Festi-
uina de suas famosas peças. va", executada na festa inaugural da Cande-
Passou a lamentar constantemente os lária, e a "Missa de Santa Cecília", infeliz·
bons velhos tempos quando "tinha ilOS olhos mente desaparecida.
el-rei, e nos ouvidos uma orquestra imen- Por fim, na manhã do dia 18 de abril de
sa e prodigiosa". E completava, suspiroso: 1830, Jose Mauricio expirou, em uma peque-
"Hoje, só ouç'o o cantar dos grilos, os meus na alcôva na casa da rua do Núncio, número

- 163-,
dezoito. Dizem que morreu cantando um, hin., as vêzes que se tratava de cantar, cedia o
à Nossa Senhora. piano ao padre-mestre, porque melhor do que
Pôrto Alegre, que visitou o corpo, assim êle nunca vi acompanhar. Entre várias fan-
descreve as últimas homenagens prestadas tasias, Fasciotti cantou uma barcarola que
por dois ou três amigos ao primeiro músico foi freneticamente aplaudida e repetida. José
genial que o Brasil possuiu:, "Chamado pOl' Maurício, que estava no piano como para des-
seu filho, o Dr. José Maurício Nunes Garcia, cansar, 'começou a variar sôbre o motivo e
atual lente de anatomia na escola médica com os. nossos aplausos a crescer e multipli-
desta côrte, e então meu, companheiro de e,j- car-se em formosas IJ,ovidades. Suspensos, e
tudos, fiz tirar-lhe uma máscara em gêsso das interrompendo a nossa admiração com ova-
suas feições, a ,qual me acompanhou à Eu- çõescontínua~, ali ficamos até que o toque
ropa, e se acha hoje depositada no Museu da alvorada nos viesse surpreender. Ah! os
:\'acional com as máscaras de Dante, Tasso, Brasileiros· nunca souberam o valor do ho-
José Bonifácio, Antônio Carlos e J anuário mem que tinham, valor tanto mais precioso
An'el08. Quando o cônego Luiz Gonçalves pois que era todo fruto dos seus próprios re-
nio para vestir o cadáver, já o achou pronto, cursos! E como o saberiam? Eu, o discípulo
porque a êsse ato piedoso se prestara seu favorito de Haydn, o que completou por or-
filho. Ainda me lembra, como se estivera dem sua as obras que deixara incompletas,
presente, de o ver no leito da morte com as escrevi no Rio de Janeiro uma missa, que foi
vestes de que usava no interior de sua casa, entregue à censura de uma comissão com-
que eram umas calças e jaqueta de sêda roxa; posta daquêle pobre Mazziotti e do irmão de
ainda estou vendo a sua mesa, onde se achava Marcos Portugal, música que nunca se exe-
o tratado de contraponto e harmonia que cutou porque não era dêles".
havia terminado poucos di as all tes de mor- O trecho acima retrata bem as facetas
rer; e sôbre uma fôlha de papel em círculo condenáveis do caráter do maestro luso, ví-
movediço no qual estavam marcados todos os tima do despeito que lhe despertavam os su-
tons, e que movido, em qualquer sentido que cessos alheios. Mesmo assim, é de justiça re-
fosse, apresentava em roda UIIl sistema com- conhecer que, após a independência,· Marcos
pleto de harmonia. Êste tratado e êste enge- Portugal, já relegado ao ostracismo, houve
nhoso invento desapareceram da mesa no por bem reconhecer "o belo e nobre caráter
mesmo dia". de. José Maurício, e tanto o admirou que mor-
Seu entêrro foi realizado pela irmandade reu seu grande defensor e amigo".
de Santa Cecí-lia, sendo o corpo depositado Vale a pena conhecer ainda o p~nsa­
na Ordem de São Pedro, de onde mais tarde, mento de Lorel1zo Fernández sôbre o grande
foram os ossos transferidos para a igreja do musicista patrício:
SS. Sacramento, na Avenida Passos. "José Mauricio, um verdadeiro milagre
artístico no nosso então primário meio cul-
tural. Chega a parecer incrível que um mo-
desto mestiço, nascido nesta tão primitiva
Sôbre o valor de José Maurício, como mú- cidade do Rio de Janeiro, pudesse, apenas
sico e executor, vale a pena citar o fato nar- com o seu talento, criar uma obra tão pro-
rado pelo célebre Neuckomn, em Paris, após funda e rica de emoção. Ainda hoj e, ouvin-
haver regressado do Brasil. Com êle, encer- clo-a, sentimos, por vêzes, a sua grandeza pe-
raremos, condignamente, êste capítulo em netrar-nos intensamente; Fôsse outro' o nosso
tôrno do genial artista: "Em uma daquelas meio, naquêle tempo, ,}úsé Maurício teria,
reuniões que se faziam em casa do marquês estou certo, renome universal e teria realiza-
de Santo-Amaro, fizemos prova de algumas do obra digna de um Haydn ou de um
músicas que me chegaram da Europa. Tôdas Mozart" .

• • • •
164 -
"
~USIC~
HD
. BRASIL·
"
o f\M5IENTE MUSICf\L I

NO PRIMEIRO IMPERIO
() prfncipe-compositor

. OM PEDRO, príncipe bragan- O príncipe estava talhado à feição para


tino, desenvôlto e fogoso, exercer papel saliente naquêle período tuI'-
com aquêle espírito irre- bilhonante que caracterizou os tempos imedia-
quieto e rebelde que os tamente anteriores e posteriores ao grito da
historiadores estão fartos independência. Sôlto de costumes, desabrido
de registrar, viveu, en- e violento, colérico e despótico em suas ati-
quanto permaneceu no Brasil, um período de tudes, ninguém melhor do que êle poderia
agitações irreprimiveis, fecundo em atribula- ter sido escolhido pela História para desem-
ções de tôda a espécie tanto para governantes penhar o papel que lhe estava destinado. Re-
como para governados. presentou-o a contento, ganhando relêvo ex-
O ambiente, francamente revolucionário cepcional em contraste chocante com o que o
em que se envolveu o país, após a partida de antecedera, o seu augusto pai, moleirão e sem
D. João VI, no qual os acontecimentos se pre- vontade, infiltrado, até os ossos, de seiva j e-
cipitavam continuamente, não poderia favo- suítica, untuosa e désfibradora. D. Pedro pos-
recer, é claro, o cultivo sistemático das artes suia fibra amorosa, temperamento sensual,
e das ciências. A política absorvia os espíri- perdendo dias e noites em alcovas de corte-
tos não dando vagar a cogitações de ordem sãs, tramando questiúnculas apaixonadas e
cultural por parte dos dirigentes. A época correndo pelas bodegas atrás do rabo de saias
plácida e pacata do nécio rezador que era o das "brasileirinhas trigueiras e lúbricas ... ".
pai de D. Pedro foi violentamente substituíàa Seus ímpetos, estouvados e irrefletidos,
por um novo estado de coisas, onde a panela em questão de amor, obliteravam-lhe por vê-
ela politica fervia, em seu bôjo, o caldo grosso zes a razão. Melo Morais Filho, por exemplo.
das vacilações, das intrigas, dos desejos de °
conta episódio seguinte, que bem ilustra os
rebeldia ... arroubos insensatos do Príncipe: "O ingresso
-·167 -
Era assim a Quinta Imperial
nu tempo em que se proclalnou a
Independência

110 Teatro S, João so era permitido a pes- que se represcntavam, prorrompcram em


soas conhecidas pela sua qualidade; os sócios vaias e assuadas. tremendas, assim que avis-
fiscalizavam a assistencia porquanto o te a- taram os meirinhos que iam executar o des-
trinho era freqüentado pelas melhores famÍ- pejo, e antes mesmo que êles penetrassem no
lias da cidade, Diz-se que certa vez o pri- teatrinho, para fazer o arrolamento da lei, os
meiro imperador mandara alugar dois cama- próprios artistas e pessoal da casa se encar-
rotes para um espetaculo que aí se realizava. regaram de atirar pelas j anelas afora, lan-
Um camarote D. Pedro reservara para si e o çando à rua espelhos, moveis, utensilios, ade-
outro enviara a Domitila de Castro, sua fa- reços, pertences de cena, vestimentas, Os quais
vorita, a qual ao chegar à porta do teatrinho levados ao Campo de Santana, foram quei-
não logrou entrar nêle, por se opor a isso a mados em uma fogueira sob uns cajueiros que
comissão de recepção ... havia ao lado da igreja".
Envergonhada com essa recusa a conhe- Como se depreende do relato acima, as
cida dama foi para a sua casa lacrimosa e artes pouco podiam esperar dêsse príncipe,
cheia de despeito. D. Pedro ao chegar ao tea- não obstante a proclamada inclinação pela
tro e não vendo a sua favorita no camarote música que os Braganças sempre revelaram.
que lhe enviara, estranhou o fato, e entran- D. Pedro chegou a ter estudos de teoria
do em indagações veio a saber de quanto musical, ministrados por Marcos Portugal, e
ocorrera. Retirou-se D. Pedro sumamente noções de composição, contraponto e harmo-
contrariado e foi à casa de Domitila para nia, ensinados por Neuckomm. Aprendeu
consolá-la do vexame sofrido, o que não lhe também qualquer coisa de fagote, trombone,
seria difícil. Para desagravá-la da afronta, o clarinete, violoncelo, flauta e rabeca ...
imperador encarregou Plácido Antônio Pe- Tudo isso fazia parte da educação artis-
reira de Abreu, antigo barbeiro e criado do tica de qualquer príncipe europeu. Sensivel-
paço, de adquirir sem demora o teatro e de mente lúbrico, é natural que gostasse de mú-
pôr imediatamente para fora os artistas que sica, dando até preferência à feição mais po-
lá trabalhavam! ... pular, das modinhas e dos lundus, cujos ver-
As ordens foram executadas com todo o sos êle os compunha e cantava com boa voz,
rigor e presteza. Um mandado de despêjo in- ao que dizem alguns cronistas.
continenti expedido e executado, desalojou Há uma carta de D. Leopoldina, datada
os membros da associação e seus artistas. de. 1821 e dirigida a seu pai, o Imperador
Êsses, indignados com o procedimento vio- Francisco I, da Austria, na qual ela faz refe-
lento de quem devia de ser o primeiro a dar rência a um Te-Deul11 e uma sinfonia com-
os exemplos de moral que buscava nas peç'as postos por seu marido e remetidos ao velho

-168 -
sôgro. A fim de que não houvesse dúvidas,
a princesa diz textualmente: " .... o que -vos
posso assegurar é que êle próprio os compôs
sem auxílio de ninguém ... ".
Villa Lobos acha certa originalidade nas
composições do imperador, não obstante o
seu caráter de indisfarçável amadorismo ..
Para Lorenzo Fernândez, no entanto, a
figura do imperador Pedro I, "como compo-
sitor e como influência no meio artístico, não
interessa absolutamente" ...
Os Ímpetos de D. Pedro incidentalmente
resultavam em atos de justiça. E' o caso, por
exemplo, do epÍsódio citado por Cernicchia-
1'0, quando o príncipe deu ordem para desa-
loj ar certos nobres do palácio imperial a fim
de poder acomodar ali os músicos dos con-
cêrtos. Diante da surprêsa do mordomo, o
Imperador retrucou: "Não tem importância:
com uma penada faço um marquês, um con-
de, um barão, mas nunca um músico ou um
cantor". Dessa feita, êle acertou ...

o primeiro imperador do Brasil surge


em nossa história musical como figura obri-
gatória e de certo relêvo, em virtude de ter
Retrato dfo Pf'ctro !, f'xE'cut::\do por SimpHcin d~" Si\,
sido o autor do hino da Independência, a O'lnseu Xac·iollü! de Belas Artes . - Rio)
cujo feito glorioso ligou seu próprio nome.
Em tôrno des,c;a página marcial e ovante há Paulo, era o da Independência ou o das Cêr-
uma série de controvérsias entre historiado- les Constituintes portuguêsas, ou ainda o Hino
res e cronistas. Constitucional, de sua autoria, composto um
Ninguém, por exemplo, será capaz de pôr ano antes.
em dúvida que a letra do hino seja de auto- Para maior confusão houve até quem
ria de Evaristo da Veiga, letra que por algum apontasse Marcos Portugal como autor do
tempo foi atribuída ao próprio D. Pedro. O mesmo; o certo, porém, é que êste escreveu
original, que se encontra nos arquivos da Bi- um outro Hino da Independência, sôbre u
blioteca Nacional, foi escrito a 16 de agôsto mesma letra de Evaristo da Veiga. A "Au-
de 1822 e remetido pelo autor ao soberano. rora Fluminense", referindo-se àcoinposição
Outra dúvida é sôbre se D. Pedro compôs a de Marcos comenta: "E' a esta última que
partitura na própria tarde de 7 de setembro, temos ouvido fazer elogios: quanto à do Prín-
após a façanha às margens do Ipiranga, ou cipe, com a ajuda de vizinhos, não sabemos
se já a havia composto mentalmente ou mes- que seja tão apreciada".
mo manuscrita. Para finalizar esta exposição em tôrllo
Entrechocam-se as opiniões mais abali- de questões duvidosas pode-se ler no " Jornal
zadas, na afanosa tarefa de esclarecer o fato. do Comércio" o se,!l'uinte: "Eram já quase 8
Não se sabe ao certo se o hino que foi en- horas, ia subir o nano. a música não tocou o
toado pelo próprio príncipe, às 9 horas da hino nacional, motivo então de estranhos sen-
noite, no camarim da Casa da Opera de São timen tos ... ".

-169 -
bração de suas segundas
núpcias; uma "Sinfonia"
para grande orquestra;
um "Te-Deum"; algumas
"Variações" sôbre frases
de m ú s i c a popular; a
abertura de uma ópera,
executada em Paris, em
1832, e o famoso "Hino
da Carta", de Portugal,
transformado mais tarde
no Hino Nacional Portu-
guês, que subsistiu até a
proclamação da Repúbli-
ca, naquêle país. A julgar
pelas apreciações da im-
prensa da época, as com-
posições imperiais logra-
vam êxitos retumbantes.
Veja-se, por exemplo, o
que dizia o "J ornai do
Comércio", em 1857, ao
noticiar a festa de N. S.
da Piedade: "Vai s e r
cantada a célebre Missa
composta pelo Sr. D. Pe-
dro I". E comentava pito-
rescamente: "Esta idéia
de um Príncipe cultivan-
do as artes, e compondo
como artista, há de tal-
vez fazer ferver muito
sangue azul, e arripiar
muitos fidalgos de nariz,
que olham para os polí-
Prinwira págIna do Hino da Independência, de P/ldro I.
ticos por cima dos om-
bros, e para os músicos,
Refere-se a nota, é claro, ao hino nacio- pintores e outros artistas por baixo dos joe-
nal português; mas, não diz, por outro lado, lhos; mas o que há de ser: os tempos vão
se cantaram qualquer hino de autoria do mudando e até já se faz mais caso de um
senhor D. Pedro I ... artista de mérito do que de um fidalgo tôlo ...
bem entendido, se há fidalgos toios".
Estamos fartos de saber que os tempos
Além da partitura do Hino' da Indepen- não haviam mudado absolutamente; e que
dência, pertencente aos arquivos do Instituto nunca se fêz, em todo o período do Brasil
Histórico e Geográfico, citam-se ainda ou-' imperial, mais caso de um artista do que de
tras composições do principe, quais sej am qualquer fidalgo, por mais tôlo que fôsse ...
uma "Missa", cantada na Capela Imperial, a Em todo o caso, certa consideração já come-
;) de dezembro de 1829, por ocasião da cele- çava a ser dispensada aos eleitos dos deuses.

-- 170 -
r

~
I
1
I
I

Cena da. peç" "Marquesa de Santos", Interpretada pela. Companhia Dl1Jcina-Oc1i1on, em cuja montagem foram
rigorosamente obseryac1os os costumes da época do primeiro imperador do Brasil

o próprio imperador não trepidava em des- Imperial, apagaram com as esponjas esquáli-
cer do seu alto coturno para ocupar, às vê- das dos vândalos o painel de José Leandro".
zes, o lugar de primeiro clarinetista na or~ O velho Teatro S, João, incendiado em
questra da Capela Imperial, segundo teste- 1824, passou a funcionar novamente, após
munho de músicos da dita orquestra, a reconstrução, com o nome de Imperial Tea-
Tais gestos de D, Pedro, no entanto, tra- tro S. Pedro de Alcântara, No dia da inaugu-
duziam apenas sentimentos de puro exibicio- ração (22 de janeiro de 1826), foi cantada a
nismo. Porque êle, longe de dispensar sua real ópera "Tancredo".
atenç'ão ao desenvolvimento das artes no país, Seis anos mais tarde já aquela casa de
concorreu com a sua desídia para o amorte- espetáculos passara a ter novo nome: "Tea-
cimento das mesmas. A própria Capela Im- tro Constitucional Fluminense", cuja duração
perial, que contava cêrca de cem executantes, foi de um lustro, mais ou menos, pois voltou
ficou reduzida, mais tarde, a vinte cantores ao nome anterior.
e três instrumentistas. No seu palco apresentaram-se as primei-
Moreira de Azevedo escrevia: "Em 1831 ras companhias líricas, na exibição de peças
foram despedidos todos os músicos da Capela italianas, é claro,
Imperial e reuniram-se no turbilhão. da polí- O velho repertório dos Donizetti, Rossini
tica que os arredou consigo e derruiu. A pa- e Cia, encheram de doces melodias o ambi-
°
lheta, a lira, o escopro, compasso tornaram- ente canhest.ro do teatro, aclarado pelas gam-
se instrumentos degradantes, e os inococlastas biarras de acetileno. Em 1829, um jornal do
da arte, subindo ao primeiro altar da Capela Rio publicou uma nota: "Aos amantes do

-171 -
cipar aos senhores assinantes que quinta-feira
próxima não é possível haver espetáculo; em
razão dos ensaios, armação da casa, e mais
preparativos para se solehizar o Faustíssimo
Dia 31 do corrente, aproveitando esta ocasião
para anunciar ao respeitável público que na-
quêle. dia, depois do Hino, terá lugar um
novo Elogio Dramático executado pela Com-
panhia Nacional, seguindo-se logo a excelen-
te ópera do maestro Rossini "La Gazza La-
dra". Na divisão de seus atos haverá um
novo e aparatoso Baile Alegórico à Feliz che-
gada de S. M. a Imperatriz, intitulado "A
Espôsa européia".
Nêsse mesmo ailo, no dia 9 de outubro,
o público ouvia, pela primeira vez, outra
6pera de Rossini: "L'Italiana in Algeri". Nüo
~Ó os italiullos como tamLém alguns bi' asilei-
ros surgiam então no terreno Erico. Do~ pri-
meiros merecem citação os tenoref' Fazziolí e
Isota, bem como o baixo Salvador Salvatori;
dos segundos o baixo profundo João dos Reis
e o regente Pedro Teixeira.
E a vida artística decorria assim, sem
grande luzimento, na capital do novo impé-
ERtátua de Pedro I, no Largo do Rodo (hoje "Pra,;"
Tirndrnt",). Tmhalho do e,cultor Paul Hieh~t rio. J a havia procura de professores de de-
senho, pintura e música, como complemento
tcatro italiano dalllos a satisfatúria llolícin. de educação das "sinhá-moças".
que chegou a esta cidade, vindo de Pel'l1am- Os jornais traziam anúncios como este:
lmco, um Baixo Cantor, que dizcm ser de "Chegou a esta Corte Ulll professor de piano
bastante merecimento". que se oferece ao público para dar lições do
Era êle o baixo-comico Fabl'izio Piacen- dito, e canta em italiano pelo método que se
Hni, integrante de uma companhia lírica. usa em Paris". Ou então, assim: "A Senhora
Infortunadamente, o artista morreu naquêle Bertolini de Nápoles, maestra de música, en··
mesmo ano, contando já 63 anos de idade. sinando piano forte, guitarra, e cantar em
quatro línguas diferentes a saber: Italiano,
O "Jornal do Comércio" noticiou com
Espanhol, Francês, e Inglês, achando-se de
gravidade: "A companhia lírica italiana so-
passagem nesta capital, aonde se vê obrigada
freu uma perda dolorosa: Morreu o primeiro
a demorar-se algum tempo, tem a honra de
Baixo Cômico Fabrízio Piacentini, sem dú-
anunciar ao respeitável público, que ela dará
vida o melhor artista que pisou no teatro do
lições das sobreditas prendas a qualquer se-
Rio de Janeiro".
nhora que a pretender". E mais êste: "Uma
Seus colegas e admil'adores puseram lulo, Senhora Brasileira, professora de piano, mú-
por algum tempo ... sica, e cantoria, possuindo estas prendas na
Em 1830, a fim de comemorar condig- última perfeição, deseja transmitir aquelas
namente a chegada de S. M. a Imperatriz, de suas jovens patrícias, que delas se quise-
houve "serata d'onore" no teatro S. Pedro. rem aproveitar. A anunciante se lisongeia,
O "Jornal do Comércio" avisava aos leitores, que, além de teoria, que com desvêlo se pro-
no dia 26 de junho: "A direção do Imperial põe ensinar-lhes, a prática, com que pretende
Teatro S. Pedro de AIc.àntara manda parti- entreter-se entre suas discípulas, sem dúvida,

172 -
muito coadjuvará, a excitar-lhes o seu exem- Tudo isso demonstra o interêsse que ja
pIo ... ". principiava ·a liascer em tórno do estudo do
Havia também "reparadores e constru- piano, especialmente no elemento feminino,
lores de órgãos", bem como afinadores de interêsse que se desenvolveu de tal forma a
piano forte. Bem conhecido erD um tal Eu- ponto de se tornar, mais tarde, em verdadei-
rico :Maurer, cujo anúncio o dava como mo- ra pianolatria, abrandada com o advento da
rador na rua da Cadeia (hoje Assembléia) . música mecanizada, de nossos dias ...
Um outro anúncio, não menos interes- X as provincias o panorama era ainda
sante, era o "aviso aos Rabequistas: Cordas desolador. Em todo o primeiro império, a
para violino (mi) 60 reis; Segunda (lá) 100 linha sempre em declínio marcou um pe-
réis; Terceira (ré) 200 reis; Quarta (sol) 300 dado de franca decadência, nas atividades
réis; Cavaletes de ôsso brunido, recomendá- artísticas do Brasil. Vej amos em que se cons-
veis pela delicada invenção e cômodo preço; tituíram elas na Regência e no segundo Im-
na rua das Yiolas N.o 104". pério.

flrancisco S'rlanue{ e o II rffino :Naciona{ II

EMBoRA nascido no período colonial, Fran- nome, em se tratando de grandes composi-


cisco Manuel deve ser situado como músico tores.
do tempo da Regência e do segundo Império.
A página que traduz o canto épico de
Quando se verificou a abdicação do se· nossa pátria é, sem falso patriotismo, obra
nhor D. Pedro I, o compositor contava trinta gadia, inspirada e ovante, cOllsideradfl, com
e seis anos de idade e sua obra estava ainda tôda justiç'a, uma das mais vibrantes de quan-
ensaiando seus primeiros esbôços, como que tas se tenham feito, no gênero, em todos os
a concretizar as primeiras aspirações do ar- países. Nada, com efeito, poderia traduzir
tista. melhor a exaltação cívica de um povo do
Francisco Manuel é uma das mais curio- que aquêles acordes quentes e marciais que
sas figuras da nossa história musical. Nin- Prancisco Manuel conjugou, com tão rara fe-·
guém poderá afirmar, em Rã consciência, que licídade, nas pautas do Hino Nacional.
as suas produções estej um à altura de um Com êle, o artista projetou-se na história
caso de genialidade ou mesmo de um talento da nossa musica, avultando sua figura de for-
capaz de afirmações edificantes, traduzidas ma indisfarçável e concreta, até fixar-se como
cm obras imortais. Nada disso. Sua obra não um dos têrmos do trinômio musical do Brasil-
resistiu ao tempo, diluindo-se no olvido geral, Império: José Maurício, Francisco Manuel e
de-vez-que não possui a a rijeza nem a subli- Carlos Gomes. O Hino Nacional colocou-o,
mação alcandorada das obras de cunho eter- de fato, como conseqüência histórica entre os
nizável. dois geniais compositores dos tempos impe-
Francisco Manuel é, contudo, o autor do riais. Sem possuir, de forma alguma, a po-
Hino Nacional Brasileiro. Só isto seria o tencialidade nem a fecunda inspiração do
bastante para imortalizá-lo, como, de fato, o músico sacro ou do arroubado compositor de
imortalizou. Sem o Hino: Nacional, Francisco dramas líricos, Francisco Manuel impõe-se.
Manuel estaria relegado ao esquecimento, e contudo, como um guia, um organizador, um
muita gente, certamente, não lhe citaria o técnico do ensino musi.cal em nosso país.

- 173-
Esta é uma outra feição - e das mais impor- Joaquim Mariano da Silva e D. Joaquina
tantes -- de sua individualidade. Rosa da Silva.
Mário de Andrade, em seu entusiasmo, Seu primeiro professor de música foi o
nem sempre comedido, - pois estravaza dos padre José Maurício. O segundo, Segismundo
limites normais - chegou a escrever em sua Neuckomm, com que~estudou composição c
"Música no Brasil": HE' então (na época im- contraponto.
perial) que surge a maior figura musical que Os instrumentos que mereceram sua aten-
() Brasil produziu até agora; e que com o seu ção e conseqüente aplicação foram o violino,
fecundo gênio vinha dar bases mais sólidas o violoncelo, o piano e o harmonium.
a todo êsse castelo fundado na corrediça areia Compôs, pela primeira vez, um "Te-
do litoral, Francisco Manuel da Silva. E' êste Deum" e, cheio de esperanças, levou-o ao
o grande nome que a música brasileira apre- príncipe D. Pedro, o qual, cedendo aos im-
senta em suas vicissitudes sociais. Dotado de pulsos do seu temperamento, mostrou-se en-
uma visão prática genial que o levava a agir tusiasmado e cumulou de promessas o jovem
contra quaisquer impedimentos, êste é o cria- compositor. Comprometeu-se, entre outras
dor que funda a nossa técnica musical defi- coisas, a mandá-lo à Itália, a fim de ap~r­
nitivamente. Viola o dominio da epidêmica feiçoar seus estudos.
iniciativa particular em que todo () 110SS0 en- Infelizmente, tudo ficou em promessa ...
sino musical se dispersara até então, concen- Francisco Manuel, tal como José Maurício,
h'ando nas mãos permanentes do Govêrno a nunca saiu de seu país, circunstância que o
educação técnica do músico brasileiro. E' o torna mais merecedor de nossa apreciação.
Conservatório. E ainda define o paroxismo Ambos não tiveram, como Carlos Gomes, ba-
melodramático da monarquia, criando a Aca- fejo dos fados que lhes permitisse cómple-
demia Imperial de Úpera. E a fortuna lhe tar sua educação artística em meios mais
foi tão fiel que coroou tôda essa fecundidade, amplos e em ambientes mais propiciatórios.
tornando-o sem querer o autor do Hino Na- Logrando nomeação para a orquestra da
cional Brasileiro. Francisco l\lanuel da Silva Capela Real, ao tempo de D. João VI, esbar-
exerce em nossa música a finalidade que Gui- rou ali com a figura do seu famoso diretor,
da D'Arezzo teve na teoria e prática da mo- Marcos Poi,tugal.
nodia européia. E' um coordenador, UIll sis- Já se viu o caráter dêsse turbulento mú-
tematizador genialíssimo. Da mesma forma sico português; ainda no caso de Francisco
com que Guida D'Al'ez2o fixa a teoria, faci- Manuel teve êle oportunidade de revelar suas
litando a prática musical, Francisco Manuel péssimas qualidades. Reconhecendo o talen-
fixa a teoria, fixa a escola, e facilita e nacio- to do joven executante, Marcos Portugal dei-
naliza a ópera imperial, dando-lhe organiza- xou perceber, desde logo, acrimonioso des-
ção permanente e sem aventuras". peito. Procurando evitar que êle compusesse,
Tôda a glória do compositor decorre por- ou melhor, como assevera Moreira de Aze-
tanto destas duas realizações: o Hino Nacio- vedo, "para roubar ao jovem artista o tempo
nal e o Conservatório de Música. Mais orga- de compor, passou-o do violoncelo para o
nizador do que artista, muito ficou a lhe de- estudo do violino, ameaçando despedi-lo, se
ver o meio artístico hrasileiro pela tenacida- não mostrasse muita aplicação". Tal fato,
de e ardor patriótico que sempre demonstrou como é natural, encheu a alma de Francisco
no sentido de tornar metódica e sistemática Manuel de profunda indignação. Não serviu,
a orientação do ensino musical em nosso contudo, para abater-lhe o ânimo. Pelo con-
país, tão fecundo em verdadeiras vocações. trário: reavivou-lhe o espirito de luta, robus-
tecendo nêle a d~cisão inabalável de lanç'ar-
se à porfia, no sentido de 'construir alguma
Francisco Manuel da Silva era carioca, coisa de fundamentalmente concreto para o
nascido no dia 21 de fevereiro de 1795 e ba- soerguimento da arte nacional. Surgiu, en-
tis ado no dia 2 de março. Seus pais foram: tão, a idéia da sua primeira iniciativa em

-174 -
Francisco Manuel da Silva, segundo uma
l!tografia desenhada em 1844 por
Aleixo Boulanger

Jl~produ~:;10 (ln avulso onde apareciam os


\'('rfOS a tl'ibuldo~
ao magistrado Ovídio Sa"
;'alv" dê Carvalho parlt () Hino
e!a Abol1çüo de r~c1J'(.. 'i

favor da organização do ensino musical no A maior, a mais remarcada glória de


Brasil que, por sua vez, iria elevar tão alto o Francisco Manuel é a de ter sido - como já
nome de Francisco Manuel, foi dito - o autor do Hino Nacional de sua
Em 1833, no dia 16 de dezembro, era pátria.
fundada a "Sociedade Beneficente Musical". Quatldo compôs êle essa página vibran-
Seu primeiro diretor, é claro, não poderia temente marcial? Em que circunstâncias?
ser outro' senão seu próprio fundador. A nova Qual a solenidade que o induziu a inspirar-
entidade, além de se propor a pugnar por um se de forma tão eloqüente?
programa de ampla vulgari:zação da música, Chegamos aqui, não há dúvida, a uma
no Brasil, possuía também um carater de das mais intrincadas encruzilhadas da nossa
beneficência (como seu nome denunciava) história. O assunto foi de tal maneira con-
r. destinado a amparar os sóéios e suas famí- trovertido que chegou a atrair a atenção de
lias, após o falecimento dos mesmos. estudiosos e pesquisadores dos mais repu-
A Sociedade Beneficente Musical mante- tados . Chovera~ opiniões, cada qual afir-
ve-se ativa e reconhecidamente proficiente ate mando coisa diversa.
i890, quando foi dissolvida, por meios judi- A procura de documentos esclarecedores
ciais, obrigou os garimpeiros das bibliotecas a fo-
lhear e a catar tudo quanto fôsse jornal, re-

- l'i~ -
I
1
vista, livro ou avulso publicado na época, em da "Sociedade dos Admiradores de Francisco
íi
tôrno do assunto. Cada vez que surgia, cla- Manuel". Ninguém, de fato, poderia ultra-
quêle imenso papelório, um elemento eluci- passá-lo no carinho, na dedicação com que 1
dador, vinha logo seu feliz descobridor para pesquisava, em todos os setores, documentos I1
a publicidade, julgando ter lanç"ado luz de- vários, no desejo crescente de trazer raios de
finitivamente, sôbre a questão. Não tardava,
porém, que um outro docuIllento invalidasse
claridade às dúvidas em questão.
No arquivo bem orientado de Agostinho
j
o anterior.

I
de Almeida repousa todo um documentário
As opiniões se debatiam em tôrno de uma precioso, fruto de longos anos de trabalho
questão única: a data da composiçuo do Hino. patrioticamente consciente. Foi ali, manu-
Havia os que julgavam ter sido êle composto seando livros e jornais, e trocando idéias com
para a Independência (1822); outros opina- o admirador número um de Francisco Ma-
vam pela abdicação em i de abril (1831); nuel, que tomei conhecimento da porfiada
por fim, não faltavam os que acreditavam controvérsia.
na data da coroação (1841). Ninguém sustenta mais a hipótese de ter
Não vale a pena alinhar aqui o acêrvo sido o hino escrito para a cerimônia da Co-
de opiniões contrárias, em exposição desne- roação de D. Pedro II, tais são as provas em
cessária e sem encantos. Basta que se con- contrário. Sem citar outras, bastam-nos ape-
signe o consenso, quase geral, de que o hino nas duas: uma que é o manuscrito do próprio
tenha sido composto na época da abdicação. Francisco Manuel, existente na Escola Nacio-
Digo quase geral porque, mesmo assim, ain- nal de Música, contendo a parte vocal do Hino
da existem documentos comprobatórios de Nacional, junto à letra atribuída ao magis- ;I

que êle tenha sido escrito em época anterior. trado Ovídio Saraiva de Carvalho - "Ao ·1
Ninguém poderá falar no Hino Nacional Heróico Dia i de Abril (1831)" - composta 'I
i
'"
~
Brasileiro, hoje em dia, sem uma referência por ocasião da abdicação de D. Pedro I; ou-
sincera e justa a um esforçado patricio nosso: tra, a narrativa feita pelo "Jornal do Comér- I
Agostinho Dias Nunes de Almeida, fundador cio" em 21 de fevereiro de 1838, onde se lê: 1
"A banda de música da nau tocou lindíssi- 1
mas peças de música e entre elas o hino na-
cional, composto pelo sr. Francisco Manuel
da Silva; que foi executado com o maior
primor" .
Escragnole Dória, referindo-se üs ativi-
elades de Agostinho de Almeida, escreve:
"Suas pesquisas, os seus achados autográfi-
cos ou não, as suas doas'ões ao. Museu da
Cidade, vão levando de vencida a idéia por
vários e por tanto tempo esposada de ser o
Hino Nacional composto por Francisco Ma-
nuel para Hino da Coroação de D. Pedro II,
em julho de 1841". Excluída essa hipótese
ficou a questão restringida ao seguinte: teria
sido êle composto para a Abdicação olJ já
existia, naquela ocasião '1
Há os que afirmam ter sido inspirado no
momento da Independência. Ouça-se, por
exemplo, o que diz Ernesto Vieira, 110 seu
"Dicionário Biográfico de Músicas Portugue-
sas ", a respeito do nosso musico: "Por oca-
o Sr. Agostinho d'Almelda, notável zelador sião de se proclamar a independência brasi-
da memória e elas obras de Francisco Manuel

-176 -
R<!produçil.o do manuscrito de
Francisco Manuel. único original, até
hoje encontrado, do Hino Nnclonnl
Brasileiro

leira compôs Francisco Manuel um hino que trumentado, estudado e executado no espaço
ficou sendo, e ainda' é, o hino nacional do de algumas horas apenas... No mesmo dia
Brasil". Sem querer afirmar que a música 7 de abril seria impossível realizar tôdas es~
tenha sido composta na hora da independên- tas coisas. Depreende-se portanto que êle já
cia, cumpre-nos, todavia, o dever de acredi- existia, antes da Abdicacão
" . ".
tar que ela já existia, antes da abdicação. Não foi escrito para solenizar tal episó-
Pelo menos é· o que se pode deduzir do dio, como observa, entre outros, o sr. Gui-
relato feito por um representante da nação lherme de Melo. O próprio sr. Max Fleiuss,"
ao ato de 7 de abril. Em um opúsculo, pu- que foi secretário perpetuo do Instituto His-
blica"do no lnesmo ano (1831), intitulado tórico, nada assegura de positivo, ;nêsse sen-
"História da Revolução do Brasil, com peças tido, quando exclama, em uma conferência :
,oficiais e Fac-simile da própria mão de Dom "O que está indiscutivelmente provado pelos
Pedro, por Hum Membro da Câmara' dos documentos que compulsamos, depoimentos
Deputados - Rio de Janeiro" está escrito: dos historiógrafos e crônicas mais aceitáveis,
"Das· sete para as oito horas da manhã o c que êsse hino foi cantado pela pri~eira vez
General acompanhado do seu Estado Maior, no dia "13 de abril. quando D. Pedro seguiu
appareceo no Campo onde dêpois das conti- para a Europa a bordo da fragata inglêsa
nencias do estilo lêo na frente de cada hum Volage". Notem bem: foi cantado, pela pri-
Corpo o Decreto, pelo qual D. Pedro decla- meira vez e não executado apenas. E' de su-
rava haver abdicado na Pessôa de seu Au- pôr que lhe tivessem encaixado a letra, após
gusto Filho; repetidos vivas ressoArão á· N a- ,a abdicação.
ção Brasileira - á Constituição - ao Senhor . Do exposto pode qualquer um deduzir
D. Pedro II, Imperador Constitucional etc., que o Hino Nacional, de Francisco Manuel,
que forão respondidos pelas Muzicas com os se teve a inspiração de algum feito memorá-
hármorifosos, e' pati:ioticos sons do Hvmno vel, como é decrer,êste só poderia ter sido
Nacional". • o da Independência. Militam a favor desta
, Ora, nãó há quem póssa' acreditar, em su~o~ição os, documentos que provam ter êle
bôa .fé, que o hino tenha" sidô compbsto; ins- eXIstIdo antes do ato da Abdicação.

-177 -
Em tôrno do Hino Nacional, - como, Espanha. Confraternizam todos daí em di-
de resto, em tôrno das peças marciais de ante" .
todos os países - há uma série considerável O segundo episódio é contado por Geor-
de episódios edificantes e que muito tocam ges Raeders em seu livro "D. Pedro II e o
a sensibilidade dos patriotas. Citemos ape- Conde de Gobineau". Ei-Io, pitorescamente
nas dois casos: um passado em Espanha, narrado pelo atol':
outro em França. - .,. "Paris conhecia apenas o Brasil
O primeiro refere-se à chegada do "Ben- nessa época pelo "Brasileiro", de "La Vie
jamim Constant" às águas da Gasconha. Des- Parisienne" de Offenbach. Na véspera do dia
cidos à terra, oficiais e marinheiros foram em que D. Pedro devia ser recebido no pa-
alvo de amplas manifestaç'ões de agrado por lácio do Elysée, o Snr. Thiers apercebe-se
parte da população. "No dia seguinte ao da ansioso de que não tinha idéia alguma do
nossa chegada - conta o capitão de Mar e que fôsse o hino nacional brasileiro. A tôM
Guerra, Didio Costa - o maestro Brana, que pressa, chamou Gobineau em seu ,auxílio. O
era regente da orquestra de um café, travou hino brasileiro? Diabo! Certamente existia,
relações com um dos nossos guardas-mari- um hino brasileiro, mas qual seria? provà-'
nha nas proximidades do hotel em que êste velmente Artur conhecê-lo-ia; mas não si
se hospedara. Manifestou-lhe o maestro o de- lembrava mais. Thiers fica desolado; é prê~
sejo de executar o nosso Hino Nacional à ciso um hino, custe o que custar. Não se pode
noite, no café, quando êste regorgitasse; não l'eceber o Imperador sem o seu hino. Artur,
o conhecia, porem, e nem o possuía impresso; acompanhado por Mme. de Thiers, pôs-se à
não havia tempo, ainda, para buscar a bordo procura. E' uma caminhada louca pelas ruas
um exemplar. O maestro Brana e o guarda- de Paris, em tôdas as casas de música. "Tem
marinha atalharam a dificuldade: foram o senhor o hino brasileiro?" Que infelicida-
para o salão do hotel; o maestro sentou-se ao de! Ninguém sabe o que seja. Enfim. um
piano e o guarda-marinha cantou à meia-voz, raio de esperança: em casa de Durand, des-
escrevendo aquêle, em papel próprio, o que cobre-se em uma estante algumas músicl;ls
ia apanhando. Isso durou cêrca de vinte mi- que vêm de lá. Artur aprecia muito a mú-
nutos. Separou-se o maestro do guarda-ma- sica, mas não a pode ler. Como saber se essas
rinha, indo à casa, onde escreveu as partes pequenas notas pretas escritas em papel bran-
para as figuras da sua orquestra. co representam o hino brasileiro? Leva-se a
Às 10 horas da noite, no grande café, música para a casa de uma amiga, senhorita
repleto da melhor gente de Ferrol e de ofi- Blunt, sobrinha de Byron, que é excelente
ciais brasileiros, a orquestra do maestro Bra- musicista. A senhorita Blunt põe-se ao piano,
na executa o nosso hino. Todos se levantam e toca à primeira vista. Alegria! Gobineau
e ouvem atentos. Acabada a execução, os reconhece a música. E' certamente o hino
espanhóis batem palmas ruidosas e dão vi- brasileiro. Êste é levado triunfalmente para
vas entusiásticos ao Brasil. E' executado em o Elysée. E os músicos da guarda republi-
seguida o hino espanhol. Os brasileiros pre- cana passam a noite a orquestrá-lo e estudá-
sentes aplaudem calorosamente e vivam a lo. A honra da presidência está salva". " -

() Gonservatório oe 5Ylúsiea

J Á estávamos no segundo império quando Nêsse mesmo ano, vi!l êle concretizado
Francisco Manuel foi nomeado, a 26 de ju- um sonho que, havia muito, acalentava cari-
lho de 1841, mestre compositor da Imperial nhosamente: a fundação .do Conserv.atórÍo de
Câmara MúsÍea, Orientador seguro, com largo descor-,

178
tino pedagógico, o compositor assistia, com
verdadeira desolaç'ão, ao estiolamento de au-
tênticas vocações, que, se fôssem bem incen-
tivadas, muito poderiam concorrer para a ele-
vação do padrão artístico do Brasil.
Seus esforços não sofreram desfaleci-
mentos até a ocasião em que viu atendidas
as suas solicitações.
Por sua própria iniciativa, fundou a "So-
ciedade de Musica do Rio de Janeiro", cujo
objetivo era proteger e incentivar os musicos,
proporcionando-lhes métodos de ensino con-
dizentes com as variadas tendências apresen-
tadas. Para conseguir êsse desideratum, Fran-
cisco Manuel mostrou-se incansável. Procurou
autoridades, peregrinou por gabinetes ofi-
ciais, apresentando projetos, sugerindo pro-
pOSlçoes. " Finalmen te, após um trabalho
insano no sentido de convencer a mentali-
dade do oficialismo, conseguiu que fôsse pe-
dido às Câmaras um projeto de lei autori-
zando o Govêrno a conceder uma subvenção
à Sociedade de Musica, por meio de duas
loterias anuais, por espaço de oito anos. O Francisco Manuel da Silva e suas enteadas (Senhoras
Decreto, datado de 1841, vale como certidão conselheiro Andrade Pertence e Henriqueta Arêas (Vis-
condessa de Ourem). Tela de José Corrêa de Lima.
de nascimento do Conservatório de Musica existente no Museu de Belas Artes - Rio

do Rio de Janeiro.
A Sociedade Musical submeteu-se, por Excusado é dizer que os mestres seriam
como o foram, realmente - escolhidos
seu turno, a cumprir certos itens, condicio-
dentre os mais hábeis artistas, nacionais ou
nados ao auxílio do Govêrno. Entre êles es~
estrangeiros.
tavam os que a obrigavam a atrair para as
artes da música "as pessoas de um e outro A Sociedade planejava até contratar, na
sexo. nas quais se conheça disposição e ta- Europa, os professores que não pudesse en-
lento, a fim de as instruir e formar artistas contrar no país. Pretendia ainda fazer via-
abalizados que possam satisfazer às exigên- jar os alunos que mais se distinguissem, es-
cias do culto, às necessidades do teatro e aos tabelecendo, dest'arte, a instituição do prê-
encantos da cena italiana". mio-de-viagem, à Europa.
Propunha-se também o Conservatório or- Com a fundação do Conservatório, de
ganizar um corpo docente composto de seis onde se originou a atuaI Escola Nacional de
lentes: um de princípios de musica, um de Musica, viu Francisco Manuel satisfeitos seus
canto, um de instrumentos de corda, um de desejos, pelo menos em um período inicial de
instrumentos de sôpro, um de contraponto, grandes realizações. A luta que o esperava
além de um outro :para lecionar ep-l qualquer deveria exigir, no entanto, grandes sacrifícios,
lugar ou estabelecimento público "àquelas jo- notável ~ispêndio de energias, disposição in-
vens que se quiserem dedicar à música, uma transigente para a completa consecução ele
vez que possam preencher o fim do Conser- seus desígnios.
vatório". ~ste último era a primeira encar- () primeiro decênio do Conservatório
nação do velho professor doméstico, minis- marcou, logo de inicio, um período desalen-
trando aulas a domicílio. tador. Francisco Manuel lutava, procurando

179 -
vencer os óbices que, continuamente, se apre- se a Lei da subvenção para o teatro passar
sentavam. O Govêrno, por intermédio das Câ- . como veio do Senado, então êste util estabe-
mar as, tomava providências. " por decretos. j lecimento, que deve ser um viveiro de artis-
Nomeava comissões administrativas, indicava· tas para o teatro, poderá progredir e fazer
di retores, etc. Sete anos após a sua fundação alguns engajamentos para ensinar aquêles
o Conservatório ainda não possuía unia sede, instrumentos para os quais hajam no País
onde pudesse organizar-se convenientemente. artistas habilitados. E' o que posso por agora
Só no 13 de agôsto de 1848 é que lhe conce- informar a V. Exa.". Isto no dia 10 de janeiro
deram licença para instalar-se no rés do chão de 1852, quase onze anos após o decreto de
do edifício do Museu Nacional, no Campoda fundação do Conservatório!
Aclamação. A solenidade foi presidida pelo E' preciso notar que Francisco Manuel,
Conselheiro José Pedro Dias de Carvalho, embora se dedicasse intensamente à nova ins-
então ministro do Império. tituição, ainda encontrava tempo para com-
As dificuldades, no entanto, persistiam. pôr e atender a outras imposições de sua car-
Chegaram a ponto de obrigar Francisco Ma~ reira. Deu seu prestígio à fundação da "So-
nuel, diante do fracasso das loterias, a diri- ciedade Filarmônica", fundada em 1835, e
gir-se ao ministro, nos seguintes têrmos: "O promoveu concêrtos, além de dirigir compa-
Conservatório de Musica se acha estagnado nhias de óperas, ensinar piano e canto e or-
por falta de meios, porque, devendo correr ganizar festividades religiosas, onde se fazia
16 loterias, duas em cada ano, para ser de- ouvir excelente musica sacra. Chegou mes-
finitivamente consolidado, desde 1847 até o mo a escrever um compêndio de musica que
presente só se pôde extrair uma das loterias ofereceu a D. Pedro II, em agradecimento
concedidas e por isso ficou únicamente um pela fundação do Conservatório.
lente, o que· ensina rudimentos de: solfêjo; Quando se inaugurou o monumento de
Pedro I, no largo dó Rocio, Francisco Ma-
nuel teve oportunidade de reger um "Te-
Deum" ao ar livre, executado por 240 pro-
fessores e entoado por um CÔl'O de 653 can-
tores, em sua maioria alunos do Colégio Pe-
dro II.
Em 1851, ao passo que lutava tenazmente
para impedir a estagnação do Conservatório,
dirigia as companhias Lírica e de Baile, no
"Teatro Lírico Fluminense", no Campo da
Aclamação, onde chegou a apresentar, mais
tarde, seu drama lírico "O Prestígio da Lc~"
e, em primeira audiç'ão, "A Noite no Cas-
telo", de Carlos Gomes. Vê-se, pelo exposto,
fluanto foi profícua e admiravel a ação dêsse
notável compositor, em favor da arte musical
no Brasil.
O Conservatório, em 1855, foi colocado
sob a fiscalização di.reta do Ministro do Im-,
pério. Melhorou, portanto. Chegou mesmo a
ter organização definitiya. Muitas aulas fo-
ram reestruturadas e novos cursos inaugu-
rados ..
Em maio dêsse mesmo ano foi êle agre-
gado à. Escola de Belas~Artes, sendo nomea-
Osório Duque Estrada. autor da letra do
Hino Nacional Brasileiro dos os seguintes professores: Francisco. Ma-

-180 -
nuel da Silva, para rudimentos, solfêjo e no-
ções gerais decanto (sexo feminino); Dio-
nísio Vega, para as mesmas disciplinas (sexo
masculino); Joaquim Gianini, para regras de
acompanhar, de órgão e contraponto; João
Scaramelli, para flauta e outros instrumentos
de sôpro; Antônio Luiz de Moura, para cla-
rinete e outros instrumentos de sôpro; De-
métrio Rivera, para rabeca e outros instru-
mentos de corda; finalmente, José Martini,
para contrabaixo.
Em 1857 apresentava o Conservatório
seus alunos, em solene primeira audição, di-
ante de Suas Majestades. Foi executado um
programa atraente onde havia uma "Canta-
ta", oferecida às augustas pessoas pelo maes-
tro J. Puccini.
Francisco Manuel, satisfeito com êstes
primeiros frutos, deitou falação, agradecen-
do tudo que o govêrno fizera pelo Conserva-
tório. Daí por diante, foi o mesmo seguindo
sua vida, ora em ascenção, ora em alternati-
vas de ligeiros declínios.
No dia 15 de março de 1863 teve lugar o
Túmulo de Francisco Manuel no cemitério de Catuml>i
lançamento da pedra fundamental do edifí- _ Rio - Trabalho do escultor Corrêa Lima
cio do novo Conservatório, à rua da Lampa-
dosa, esquina da rua Leopoldina. Nessa oca-
siao, Francisco Manuel falou novamente, de- A obra deixada por Francisco Manuel
monstrando, mais uma vez, seus sentimentos inclui, além de meia dúzia de hinos (da Co-
de gratidã", e respeito pela obra conseguida. roação, das Artes, da Guerrl\, etc.), três ro-
O edifício, no entanto, só foi inaugurado no mances para canto e piano, uma ópera ("O
dia 9 de janeiro de 1872 - Francisco Manuel Prestígio da Lei"), algumas peças profanas,
já havia falecido sete anos antes ... Todos inclusive lundus e modinhas, mais de uma
reconheceram, porém, que aquilo que ali es- quinzena de músicas sacras. Nessas últimas
tava era devido ao esfôrço e à tenacidade do incluem-se Missas, "Te-Deuns", Matinas, La-
autor do Hino Nacional, e constitui a uma de dainhas e Cânticos vários, tôdas seguindo a
suas maiores glórias. Tento assim que, recen- inspiração das obras de José Maurício, cujo
temente, Alberto Nepomuceno, então diretor predomínio na época era indiscutível.
do "Instituto Nacional de Música", promoveu O compositor viveu até aos setenta anos,
a colocaç'ão de uma placa, que lá está, com No dia 18 de dezembro de 1865, deixou de
os seguintes dizeres: existir, vitimado por uma tísica da laringe,
entrando para o panteon de glórias edificado
no coração de todos os brasileiros.
A FRANCISCO MANUEL DA SIl.VA
Mestre na sua Arte O "Correio Mercantil" traçou, em nota
Autor do Hino de sua Piltria especial, os últimos momentos do artista, e
Fundador do Conservatório de M'(\sica descreveu as derradeiras homenagens que lhe
Os Protessores do Instituto Nacional de Mllslcll
foram tributadas, nas linhas seguintes:
25 de AgOsto de 1907 - "Palleceu ante .. ÍlOntem á tarde e se-
pultou-se hontem no cemiterio de S. Fran-

-_o 181 -
cisco de Paula o sr. Francisco Manuel da co assistiu ao enterramento, proferiu um bello
Silva. discurso, mostrando a perda que soffriam a
"Geralmente estimado como homem, por Arte e o paiz, com a morte do distincto
seu tracto delicado e por sua honradez, era mestre.
altamente respeitado como artista. " A SOCIEDADE DE MUSICA entoou,
"Varias composições e de vulto contam em seguida, a simples vozes, um sentido e
a sua historia como professor de Musica: o plangente psalmo de David, intitulado "O
HYMNO NACIONAL, diversas missas e Te- uI timo adeus".
Deum, o hymno de guerra ultimamente exe- "Grande número de pessoas, em que eram
cutado na Eschola Central, cantatas e muitas representadas todas as classes da sociedade,
outras composições, revelam o seu profundo acompanharam os restos do illustre morto ao
talento e os grandes conhecimentos que pos- seu jazigo.
suia da arte, a que se dedicara durante toda "Os alumnos do CONSERVATORIO, bem
a vida. como a corporação musical, deliberaram to-
"O' Methodo de Musica, por elle escripto lUal' luto por oito dias, em demonstração de
para o ensino de seus discipulos,e adoptado pesar.
por grande número de professores extrangei- "O edificio do CONSERVATORIO, cuja
ros, é de incontestavel excellencia. terminação parecia alimentar a vida do seu
"Francisco Manuel deixa numerosos dis- director, ahi fica para testimunhar o zêlo e
cipulos, que attestam sua proficiencia. interesse com que velava pelo progresso da
"Até poucas horas antes de morrer, o il- bella arte de Haydn, Donizetti e Verdi".
lustre professor trabalhou, com a pertinacia, Moreira de Azevedo completa as notas
com a dedicação, com o desinteresse, proprios acima com as últimas impressões recebidas
do artista que o é sómente pela arte. do trespasse. Relata êle que, naquêle dia
"A sua morte foi placida e serena, que "via-se prostrado em um leito, um velho com
outra não pudera ser a do homem justo, n o rôsto pálido e descarnado, olhos empana-
do pae de família honrado, a do cidadão pres- dos e membros lívidos e inteiriçados; obser-
tante, a do artista nobre e modesto que elle vavam-no os filhos e amigos ocultando lágri-
foi. mas e abafando gemidos; estava o ancião
"Francisco Manuel morreu aos 70 annos calmo, resignado e como enlevado em medi-
de edade e era natural do Rio de Janeiro. tação profunda, quando repentinamente agi-
Exercia os cargos de mestre da Capella Im- tado pelo sôpro álgido da morte estremeceu,
perial, director do CONSERVATORIO DE agonizou e sucumbiu. Acabavam os filhos e
MUSICA e musico da imperial camara. Era amigos de Francisco Manuel de perder seu
condecorado com o officialato da Ordem da pai e amigo e a corporação musical do Rio
Rosa. de Janeiro, seu chefe".
"O seu cadave!', que foi levado á mão, da Chaves Pinheiro, um dos mais afamados
casa da sua residencia até á igreja matriz de escultores da época, tirou-lhe a máscara, em
SANTO ANTONIO DOS POBRES, ahi rece- gêsso.
beu a encommendação, executando a parte Expressando suas últimas vontades, em
musical a SOCIEDADE DE MUSICA, da qual testamento, Francisco Manuel deixou demons-
foi elle um dos fundadores ha 34 annos. Al- tradas, mais uma vez, as qualidades invejá-
gumas alumnas do CONSERVATORIO, que veis do seu caráter e de sua alma, tão justa-
do fallecido mestre haviam recebido licções, mente pranteada. Por êste derradeiro do-
acompanharam tambem o saimento cio ea- cumento verifica-se que o artista consorciou-
claveI'. se por duas vêzes. A primeira, com D. Môni-
"N o ecmi terio, an les de ser dado o corpo ca Rosa do Bom Sucesso, que lhe deu três
li sepultura, o SI'. Mafra, secrelario da ACA- filhas: Joaquina, Guilhermina e Maria. A se-
DEMIA DAS BELLAS-ARTES e relator da gunda, com D. Tereza Joaquina de Jesus,
commissão que em nome do corpo academi- viúva e mãe de cinco filhos.

182 -
.
Tão bem viveu êle com todos os mem- Hino Naciona1. Seu principal incentivador
bros da família, que chegou a declarar: foi o sr. Agostinho de Almeida.
" ... como sempre vivi em muito bóa harmo- Ouvindo Lorenzo Fernândez, colhi êste
nia com o meu enteado e enteadas, se em pensamento seu, acêrca do autor do hino
algum alcance eu estiver para com êles, lhes nacional:
peço e rogo me perdoem atendendo aos bons
serviços que lhes prestei, antes de Pai, que de . "A importância de Francisco Manuel é
Padrasto" . mais social do que artística, o têrmo social
Até no último periodo de sua vida (o aplicado aqui no melhor sentido. A criaç'ão
testamento foi escrito no ano de seu faleci- artística de F. Manuel, excluindo o "Hino
mento), Francisco Manuel pedia desculpas Nacional", cujo valor é também social-cole-
pelo mal que, porventura, pudesse ter cau- tivo, se apresenta desprovida de qualquer
sado às pessoas que o cercavam. Nêle ainda significação marcante. A influência exercida
solicitou que deixassem liberto o seu escravo por êsse ilustre músico foi principalmente de
Manuel "com a condição de servir o primeiro caráter pedagógico e pelo entusiasmo e de-
ano subseqüente à minha morte à minha fi- dicação com que devotou tôda a sua vida à
lha Adelaide". arte, coroada pela fundação do Conservató-
Em 1926, ergueu-se sôbre o seu túmulo, rio de Música do Rio de Janeiro. Nos meios
no cemitério de Catumbi, uma pequena obra- artisticamente atrasados, homens como Fran-
prima de escultura, devida ao talento de José cisco Manuel são verdadeiramente preciosos,
Otávio Corrêa Lima. Já um outro artista (por pois graças à sua atividade conseguem evitar
coincidência, José Corrêa de Lima), fizera- o completo abastardamento cultural do meio
lhe ótimo retrato, ao lado de suas enteadas. ambiente.
Recentemente, foi fundada a "Sociedade Se hoje é isso que vemos por ai, calculo
de Admiradores de Francisco Manuel", des- o que teria sofrido o pobre Francisco Ma-
tinada a preservar a glória do feliz autor do nuel ... ".

fleatros e Jocieoaoes Slfusicais

DURANTE a existência de Francisco Manuel O tempo marcava, pode-se dizer, Ulll pe-
poucos, pouquíssimos acontecimentos de mar- ríodo de estagnação mais ou menos maras-
cante relevância pontilharam o ambiente mu- mático, como que a preparar-se para a eclo-
sical da época. são formidável do gênio de Carlos Gomes.
A Regência, que terminara em, 1840 com f:ste representou, de fato, a segunda grande
a proclamação da maioridade de D. Pedro II, expressão da arte musical no Brasil, se colo-
não forneceu nenhum evento musical digno carmos José Maurício no marco inicial.
de nota; e, até o ano em que o autor do Hino O maior cultor do drama liricoem nos-
Nacional entregou sua alma a Deus, a agita- sa terra eclipsou, realmente, com sua obra,
ção artística não era tumultuária nem tam- tôdas as glórias do seu tempo, colocando um
pouco digna de largos louvores. Afora a ten- fêcho de ouro puríssimo no panorama do
tativa brilhante de José Amat, pela instau- segundo império.
ração da ópera nacional, surgiram apenas, Carlos Gomes surgiu como fruto da sua
no cenário musical, algumas figuras esporá- era, quando tôdas as atenç'ões se norteavam
dicfis de artistas, cheios de boas in lençõcs no sentidp da ópera italiana, apurando o
mas p~uco dotados para os largos l'cmigios gósto popular no rumo das realizações do
da inspiração. teatro lírico. O entusiasmo contagiante que

-183 -
Veio Clara Delmastro e veio Augusta
Candiani. Foi isto em 1844.. Em tôrno dessas
duas divas - cantoras famosas, aliás - for-
maram-se partidos, espoucaram discussões
e. " mais algumas cabeças rachadas deixa-
ram escorrer sangue pelas calçadas dos te a-
tros ..
"tstes, por sua vez, começavam a repon-
tar, no Rio e na provincia. Na Côrte novas
casas de espetáculos acolhiam as companhias.
tais como o "Teatro São Januário" (ex-Tea-
tro da Praia de D. Manuel), o "São Francis-
co" e o "Teatro Lírico Fluminense", que
desde o primeiro dia ficou conhecido pelo
Teatro São Pedro. transformado mais tarde em Teatro nome de Teatro Provisório,
João Caetano E' bem verdade que deixara de existir o
velho São Pedro de Alcântara. Na noite de
o gênero despertou no espírito público foi 8 de agôsto de 1851, após o espetáculo, tendo
dos mais avassaladores. Tal como em Milão, o pessoal deixado o recinto, por volta das
ao tempo de Verdi e de Wagner, quando os três horas da madrugada, pavoroso incêndio
estudantes chegavam a ponto de se baterem irrompeu na caixa, envolvendo todo o edi-
pela superioridade de seus ídolos, aqui tam- fício, Embalde soaram, desesperadamente, os
bém a mocidade se entregava a excessivas sinos da igreja de Santana e dos demais tem-
exaltações em tôrno da arte de suas divas. Vlos, tocando a rebate; foi em vão também
Poetas perpetravam versos ~nelosos em lou- a chuva copiosa que caía, encharcando o lo-
vor das figuras mais evidentes das cantoras
italianas que para aqui vinham, contratadas
cal do sinistro; nem mesmo ° auxílio dos
oficiais e marinheiros da corvêta francesa
pela avidez industrializada de certos empre- "Brilhante" que acorreram com bombas por-
sários, para gáudio e encantamento das pla- táteis, conseguiram sustar o poder destruidoL'
téias. Críticos severos engalfinhavam-se atra- das chamas. Ruiu, em pouco tempo, tôda a
vés de crônicas candentes; e nas ruas, à grande cobertura do teatro, ficando apenas
porta dos templos líricos, não raro, chovia de pé as quatro paredes. , ,
pancadaria rija, com suas inevitáveis conse-
Foram ali destruídos os arquivos da com-
qüências de cabeças rachadas pelo argumen- panhia, integrados de dramas, comédias c
to pesado dos bengalões encastoados ...
músicas dos elencos líricos .e dramáticos,
Já vimos como a ópera se introduzira nos (vestimentas, cenários, instrumentos de mú-
hábitos da côrte, na antiga casa de Manuel sica) , tudo avaliado em mais de réis ... ,.,
Luiz e no Teatro S. João. O velho mundo 12:000$0001
vivia um dos períodos brilhantes do drama Um ano depois, no entanto, graças aos
lírico; os jornais e revistas enchiam colunas esforç'os do atol' João Caetano, que conse-
com elogios e ataques aos vocalises e gorjeios guira auxilio do govêrno imperial, o teatro
dos intérpretes canoros de tudo o que fôsse S, Pedro, já reconstruído, abria suas portas
tragédia musicada. ao público, com um dramalhão pesado: "O
"Tentar a América" era coisa que entra- Livro Negro", Em seguida, cinco dansarinos
va nas cogitações dos adiposos cantores e dos contratados na Europa dansavam "As Hama-
empresários não menos adiposos. O Brasil dryadas", bailado de Toussaint, terminando
começou pois a travar conhecimento com a função com o Hino da Independência, exe-
tôda essa fauna gorgolejante, vinda do Scala cutado pela orquestra sob insistentes pedidos,
e de outros teatros inferiores. As companhias Mas a sprte dessa casa de espetáculos era
liricas sucediam-se uma às outras. a mais· iníqua possível. Quatro anos depois,

-.184 -
Teatro S.Jo[o (12 de outubro de
1813-1824 i; depois Imperial Tea-
tro S. Pedro de Alca.ntara, por
decreto de 15 de setembro de
1824: mais tarde Teatro Consti-
tucional Fluminense, 7 de abril
de 1831; e, por ültimo, Teatro São
Pedro de Alcllntara, em 1839.

na noite de 26 de janeiro de 1856, novo in- Em 1856, trabalhou ali uma companhil'l
cêndio, manifestado no alto do arco do pros- da qual faziam parte o soprano Charton De-
cênio, reduziu outra vez a um montão de meur, o tenor Arturo Gentile, o barítono Gia-
brasas o velho edifício do teatro. Novamen- como Arnaud e o baixo Bouché.
te, de nada adiantaram os sinais de rebate Nas .provincias, o aparecimento de casaii
da igreja da Lampadosa, nem a marinhagem de espetáculo atestava, por sua vez, o inte-
dos navios francêses e inglêses surtos no rêsse crescente do povo pelo teatro musicado.
pôrto, nem a massa popular q·ue acudiu ao Em Niterói surgiu o "Teatro Vila Real
local, com baldes e latas dágua. João Cae- da Praia Grande", em 1827; na Bahia, o "São
tano apareceu em robe de chambre e chine- Pedro de Alcântara", o "Santa Teresa" e o
las e, diante daquêle espetaculo que se repe- "São Salvador"; o "São Francisco", o "Ncl-
lia pela terceira vez, no espaço de 32 anos, donal" e o "Santa Isabel", em 1850, em Re-
assegurou ao marquês do Paraná: "Não se cife; em Pôrto Alegre, o "São Pedro", em
incomode, meu caro marquês, no lugar da·· 1858; e no Paraná. o "Teatro de Curitiba",
quela fogueira levantaremos outro teatro". em 1867.
O prejuízo, como das outras vêzes, foi Várias companhias líricas itineravam pOI'
lotaI. Arderam cenários, guarda-roupa, adôl'- todos êsses palcos, exibindo repertórios so-
nos, objetos de cena e até o fardamento com- friveis, enquanto as companhias dramáticas
pleto de uma banda de música que a Socie- - em maior número - não os ocupavam.
dade Sumidades Carnavalescas mandara bus- O público aumentava e procurava pres-
car na Europa ... tigiar o movimento. Tanto assim que come-
O ânimo do grande ator patrício era, po- çaram a brotar também - a exemplo das
rém, inquebrantavel e fêz com que êle cum- arcádias literárias - várias sociedades de
prisse sua promessa. Um ano depois, justa- música, em tôdas as principais cidades do
mente. em janeiro de 1857, o invicto S. Pedro Brasil.
de Alcântara reabria ao público suas portas
Nessas entidades fazia-se mÓ.sica e dan-
para um espetáculo de variedades ...
savam constantemente seus associados ao som
de orquestras bem organizadas. A invasão
O "Teatro Lírico Fluminense'" como Hl das músicas populares européias, tais como
ficou dito, era mais conhecido pelo nome de a quadrilha, a polca, a valsa, etc., empres-
"Teatro Provisório", pois que teria de ~xistir tava aos salões um certo espiri to de cosmo-
apenas por três anos. Erguia-se no Campo politismo ...
da Aclamação. Na noite de sua inauguração Para não fazer citações longas, basta-nos
(25 de março de 1852), foi cantada nêle a aqui referência a algumas delas, tais como
ópera "Macbeth", de Verdi. O público aman- a "Defensora", a "Fil'Harmônica", a "Socie-
te de música prestigiou sempre os espetá- dade Plêiade Musical", a "Eut~rpe Comer-
culos líricos do Provisório. cial", o "Cassin~ Fil'Orfeônico", a "Campe:

- 185-
sina", a"S.ociedade.União dos Artistas", .o :\fas pr.ovincias vale anotar a "S.ociedade
"Clube Fluminense", a "Música, União e Musical", n.o Maranhã.o; .outra em Saquare-
"C.onstância", a "Sociedade Filarmônica do ma,,{)utra em Recife ("S.ociedade Harmônico-
Catete ", etc. Tôdas essas eram sediadas n.o Teatral"), a "S.ociedade Port.oalegrense", no
~Ri.o e em Niterói. Ri.o Grande do Sul, etc.

II flmperia( flIcaoemia de !JI!úsica


e Opera :Naciona(' ,

o SEGUNDO imperad.or do Brasil era tid.o


e havido com.o um tipo magnânimo, pr.otetor
tos anos depois, iriam .orientar .os pass.os da
verdadeira música brasileira?
das artes e, conseqüentemente, verdadeiro E' o que vamos ver.
Mecenas para os artistas. Sua bôlsa estava
sempre aberta como autêntica cornucópia de
onde escorria auxílio pecuniário indispensá-
Aí pelas alturas de 1848 chegava a.o Ri.o
vel para que pintores, músicos e poetas· pu-
de J aneir.o um fidalgo espanhol, c.or.onel do
dessem itinerar pelo velho mundo, em tour-
estad.o-maior insurret.o da Espanha: D. J.osé
nées de estudo. De sua munificência vale-
Amat.
ram-se, realmente, vários artistas que se tor-
Tend.o tomad.o parte ativa na rev.olução
naram, mais tarde, verdadeiras glóriás na-
Carlista que, por tanto tempo, ensanguentou
cionais: Pedro Américo, Vito r Meireles, Car-
as terras de Cid, o jovem revolucionári.o con"
los Gomes .. ,
seguiu evadir-se d.o cárcere, onde .o levara a
Tudo aquilo que apresentasse espírit.o de derrota do moviment.o que esp.osara, ard.oro-
movimentaçã.o artística .ou mesm.o cultural samente. Era um fidalgo, na acepção da pa-
merecia a augusta consideraçã.o de sua ma- lavra: inteligente, culto, maneiros.o e fino,
jestade e o ampar.o material indispensável às s.obretud.o dotad.o de invencível fôrça de v.on-
subseqüentes realizações. F.oi ist.o, pel.o me- tade, ousad.o e batalhad.or.
n.os, .o que se verific.ou p.or .ocasiã.o de um Chegando ao Brasil, foi f.orçad.o a ganhar
m.oviment.o destinad.o a instituir a "ópera para a própria subsistência e decidiu empre-
brasileira", integrand.o na mesma a son.ori- gar no "strugle for !ife" .os seus conhecimen-
dadenatural do idioma vernácul.o. Tal mo- t.os musicais. Suas atividades foram c.or.oadas
vimento, que c.onstituiu inegàvelmente um de êxit.o e, graças a.os seus d.otes intelectuais,
período dos mais alentadores para o teatro às suas maneiras cativantes e à própria sim-
lírico brasileiro, foi devid.o à iniciativa pes- patia que pessoalmente irradiava, conseguiu
soal de um artista espanh.ol, D. J.osé Amat penetrar no c.onvívi.o da alta s.ociedade, ven-
que, por essa época, fêz sua aparição no cc- d.o-se festejado pela fidalguia da côrte, .onde
nari.o musical de nossa pátria. adquiriu larga reputaçã.o. Inicialmente delei-
Quem era, porém, êsse h.omem que che- tou-se na comp.osição de modinhas, musican-
g.ou a s.onhar e a batalhar, com denôd.o in- d.o p.oesias de aut.ores brasileir.os. Fund.ou um
vulgar, p.or uma iniciativa digna dos mais curs.o particular e.os alun.os afluíram em nú-
irrestrit.os l.ouvores, de vez que se destinava mer.o c.onsiderável. Dilataram-se os c.onheci-
il implantaçã.o d.os primeiros marcos da nossa mentos do artista, 110S circul.os sociais da no-
f.ormação artística, autôn.oma e essencialmen- breza, chegand.o por fim a contraü' núpcias
te nacional? Quais .os rumos ditad.os àquêles c.om uma j.ovem brasileira, pertencente a ilus-
precurs.ores remotos das diretrizes que, mui- tre família.

-186 -
E' verdade que a mUSIca que D. José
Amat compunha, calcada em versos dos nos-
sos poetas, não era lá o que se diga "música
brasileira". Nada disso. A despeito da inten-
ção delicada do artista espanhol, as "roman-
zas" não poderiam, de forma alguma, trazer
o caráter, ainda não estruturado, da música
brasileira. Resultavam, por isso mesmo, em
simples arremêdos de árias italianas ou espa-
nholas.
Reunindo mais tarde essas "modinhas ",
publicou dois álbuns sob os títulos de ":\lelo-
dies brésiliennes" e "Les Nuits Bl'ésiliennes".
Por essa época, fazia furor, nos paIc.os espa-
nhóis, a revivescência da zarzuela, e isso ins-
pirou a D. José Amat a idéia de promover
amplo movimento, no Brasil, destinado a
tentar a representação de peças musicadas e
interpretadas no idioma vernáculo. Seu es-
pírito de iniciativa, sempre disposto a abar-
car empreendimentos arrojados, aduptou-se
convenientemente ao assunto. E D. José AmaI
decidiu transformar-se em empresário.
Seu intuito, como acentua Llliz Heitor,
"era a criação de uma Ópera Nacional, que
se opusesse à Ópera Italiana, tal como, em.
Paris, a Grande Ópera (cultuando as h'adi-
ções francesas), se opunha ao Teatro dos ita- o Imperado,. Perl,.o 1 r CI11 um c108 seus últimos re.tratos

lianos" .
Não lhe foi difícil conseguir o apoio mo-
o ex-revolucionário espanhol figurava
como encarregado da gerência e administra-
ral c material do govêrno imperial, de vez
ção da Academia, cujo conselho artístico era
que no número dos que se resolveram a pug-
constituído por Francisco Manuel da Silva,
nar pela nova idéia, encontravam-se figuras
Joaquim Giamini, Manuel de Araújo Pôrto
politicas de relêvo indiscutível, tais como o
Alegre, Dionísio Vega e Isidoro Bevilaqua.
Marquês de Abrantes, o Visconde do Uruguai
Tudo, como se vê, escolhido dentre as me-
e o Barão do Pilar. :E:stes integravam até o
lhores figuras da época. Para a manutenção
Conselho Diretor da "Imperial Academia de
de tão louvável empreendimento, o:; recursos
Música e Ópera Nacional", criada por decreto
eram extraídos da mesma fonte de onde
do imperador, sob inspiração de D. José Amat,
saíam os do Conservatório: as loterias.
no dia 25 de març0 de 1857, data em que se
celebrava a promulgação da Constituição de o govêrno fez a concessão de 16 extra-
1824. ções anuais, cujos proventos serviriam tanto
o novo estabelecimento de ensino artís- para a construção do futuro Teatro da Ópera
tico e cultural propunha-se a preparar artis- Nacional como para a manutenção dos espe-
tas nacionais e .melodramáticos e promover táculos e dos cursos em geral.
a realização de concêrtos e representações de Inicialmente foi concedida ii Academia
canto em Unglla nacional "levando à cena o uso do Teatro Provisório, em dias e horas
óperas líricas nacionais ou estrangeiras ver- que não coincidissem com as récitas ordiná-
tidas para o portugu~s". rias da companhia de óperas líricas, contra-

-187 -
ladapelo govêrno. Isto só foi possível, 'po- ohras literárias, artísticas. científicas de de-
rém, em 1861. terminado país.

* Fundada à nova instituição, iniciaram-se


atividades didáticas. "Tôdas as facilida-
des - comenta Luiz Heitor - eram criadas
Ainda não havia amadurecido o espírito
dos brasileiros para tais realizações. Além de
tudo, José Amai era espanhol. .. Seu esfôrç'o,
para a freqüência a êsses cursos, comprome- digno de aplausos e grandemente desvanece-
tendo-se o govêrno a manter, como pensio- dor para todos nós não poderia, infelizmente,
rfistas, em casa de reconhecida' moralidade, servir como marco construtor daquilo que so-
4e quatro a oito discípulos, de ambos os se- mente os brasileiros poderiam realizar, tal
~s. Para os restantes o ensino era gratuito, como o iniciaram mais tarde Alexandre Levi
~rbitrando-se-lhes uma gratificação mensal e Alberto NepomucenQ.
progressiva, desde que estivessem em estado A atuação de José Amat serviu, contudo,
de tomar a seu cargo pequenas partes, na para tornar evidentes os rumos que deveriam
representação das óperas". tomar futuramente os patriotas sinceros. O
próprio" J ornaI do Comércio ", daquela época
O interêsse de D. José-Arriat em desen- (1857), comentando a fundação da Academia,
v'?lver êsses cursos era tão grande que Cer- refletia na nota seguinte a compreensão que
~icchiaro cita a seguinte comunicação por êle
as classes cultas já possuíam em tôrno dos
ehviada aos jornais: "As senhoras brasilei-
problemas da arte musical brasileira: " A
rasque por qualquer motivo não possam fre-
música não é absolutamente a mesma em
qÜentar as mencionadas aulas e queiram, no
tôdas as nações; sujeitas às grandes regras da
e'~!anto, dedicar-se à cena lirica dramática,
arte ela se modifica no estilo e no gôsto em
s~rão lecionadas em suas casas,gratuitamen-
cada nação, segundo as inspirações da natu-
té, pelos respectivos mestres".
reza do país, os costumes, a índole e as ten-
D. José Amat era sobretudo um idealis- dências do povo. O Brasil tem a sua música.
tá; seus sonhos iam muito além da criação As imitações do canto italiano vão pouco' a
de simples cursos didáticos. O ideal que lhe pouco destruindo a sua originalidade; o tea-
servia de escôpo era a criação de um autên- tro lírico nacional deve regenerá-las, apro-
tico teatro nacional de ópera, de onde se ori- veitando, com os conselhos da arte, essa ori-
ginariam, sem dúvida, os primeiros surtos de ginalidade e dando ao Brasil a sua música
qualquer coisa inteiramente nossa no setor pr6pria, cultivada e digna do grau de civi-
da música e do drama lírico brasileiros. Não lização a que já tem chegado o nosso povo".
há negar a grandeza de tais objetivos. Era
como que um sôpro renovador no velho pro-
cesso de inspiração alienígena e a instaura-
ção de fontes nativistas, iniludivelmente dis- Foi na noite de 17 de julho de 1857 que
tintas. Por infelicidade tal desideratum não se abriram as portas do teatro Ginásio Dra-
pôde ser atingido. mático para o espetáculo de estréia, organi-
A arte de um povo, caracteristicamente zado pela Imperial Academia de Música e
nacional, não pode ser implantada ou conse- Opera Nacional.
guida por meio de decretos, de academias Constituíu ela uma autêntica "serata
fundadas para êsse fim ou pela simples von- d'onore", como se costumava dizer. O pe-
tade de um grupo. E' fruto de contribuições queno mundo de cortesãos, cercando as au-
sedimentares, verificadas no decorrer de mui- gustas figuras dos monarcas, instalou-se nos
to tempo, de muitos séculos de desenvolvi- camarotes do teatro, exibindo casacas impe-
mento cultural e artístico. São as gerações cáveis e amplas saias rodadas de onde emer-
de cada povo que lançam, regularmente, suas giam as cinturinhas de vespas, conveniente-
contribuições para a futura estruturação da- mente espartilhadas.
quêle caráter estritamente nacional e que se A peça escolhida era uma zarzuela espa-
infiltra, penetra e se impregna em tôdas as nhola, coincidentemente intitulada" A estréia

.:..=- ~188 '--


de uma artista", pois na mesma estreava, na
protagonista, a própria espôsa de D. José:
D. Luiza Amat. O ex-revolucionário - que
enfrentava então o movimento revoluciona-
dor da ópera nacional - também tomava
parte no espetáculo, ao lado de Eduardo Me-
dina Ribas, conhecido barítono português. A
orquestra encontrava-se sob a batut!il. de Joa-
quim Giannini, um regente italiano que para
aqui viera, em 1855, fixando residência no
Rio de Janeiro, sendo nomeado, mais tarde,
professor de composição no Imperial Conser-
vatório de Música.
f:sse espetáculo de estréia foi o marco
inicial de uma série de êxitos, cuja reper-
cussão indicava bem o agrado que desperta-
vam. O dinâmico empresário mostrou-se in- D. José Amat
cansável na organização dessas récitas, apre-
sentadas ora num teatro, ora noutro, depen-
substituída por uma Emprêsa de Ópera N a-
dendo da disposição encontrada nos proprie-
cional.
tários dos mesmos, até que, a partir de 1861,
Nas mesmas condições está a apresenta-
pôde finalmente instalar-se no' Teatro Provi-
ção de "As bodas de Joaninha", levada à
sório, onde se exibiam as companhias ita-
cena na noite de 8 de julho de 1861. A mú-
lianas.
sica era de um compositor espanhol de nome
Seguindo o seu programa, D. José Amal l.\1artin Allú, sôbre um libreto de Machado de
apresentou, a principio, zarzuelas ligeiras, Assis.
bem como pequenas óperas cômicas. Entre A peça tinha um aspecto monótono, sem
elas apontam-se as seguintes: "Brincar com interêsse. Havia, no entanto, no final da
fôgo", "O Beijo", "Boas ;\1'oites, D. Simão", partitura uma ária que despertou calorosos
e algumas outras. aplausos do público, pelo caráter diferente
Em 1857, foi encenada a ópera bufa ita- que apresentava. Infelizmente ela não era de
liana a "Volta de Columella de Padlla", de autoria de Martin Allú, mas de um moço es-
Fioravanti. Já o gênero tendia para um ca- tudante do Imperial Conservatório de Mú-
ráter mais sério. Animado pela forma com sica, chamado Antônio Carlos Gomes.
que a sociedade prestigiava os seus espetá- Essa primeira consagração de um peque~
culos, Amat animou-se a vôos mais altos. E nino trecho de música do futuro compositor
apresentou, em 1858, a "Norma", de Bellini, deve ficar assinalada como um verdadeiro
traduzida em vernáculo pelo dr. Luiz Vi- despertar do genial campineiro, aquêle que,
cente de Simoni e cantada no Teatro São no decorrer de sua vida estaria destinado a
Pedro de Alcântara por Carlota Milliet e arrastar, após si, o delírio de tôdas as pla-
Julia Milans. Em 1862, a primeira dessas can- téias.
toras interpretou ainda a "Traviata ", tradu·· Outros trabalhos do jovem compositor
zida como "A Transviada", no Teatro Provi- seriam levados à cena, ao tempo dêsse mo-
sório, ao lado do tenor Andrea Marchetti e vimento nacionalizador da ópera brasileira.
do baritono brasileiro Heliodoro Maria da Contam-se, entre êles, a "Noite no Castelo"
Trindade. Convém salientar que êss~ espetá- e " Joana de Flandres".
culo não foi pôsto em cena pela Imperial Seguindo, porém, a ordem cronológica,
Academia de Música e Ópera Nacional, pois temos primeiramente, em 1860, a apresenta-
esta deixara de existir em fins de 1858, sendo ção de "A noite de S. 'João", citada como a

'- 189-
primeira ópera brasileira em teatro. O li- gento de Milícias", obra marcante na litera-
breto era de José de Alencar e a música de tura brasileira. A música era de autoria da
Elias Álvares Lôbo, jovem paulista que mui- Condessa Rafaela Rozwadowska e dedicada
lo prometia. Nascido em Hu, ~m 1834, fale- à Imperatriz D. Teresa Cristina. Não foi bem
ceu quase aos setenta anos, em 1901. Quem recebida pela crítica. O "Jornal do Comér-
o amparou, em plena orfandade foi o padre cio" chegou mesmo a dizer que aquilo nada
Diogo Antônio Feijó, que· promoveu sua mais era do que "uma enfiada de toadas que
educação. se sucedem sem nexo nem ordem, pedaços
O êxito alcanç'ado pela partitura de sua soltos e infelizmente todos mais ou menos
primeira ópera foi tal que a própria admi- triviais". Os intrépretes foram os mesmos de
nistração da Ópera Nacional chegou a querer sempre.
enviá-lo à Europa a fim de que pudesse com- No ano seguinte, tiveram os amantes do
pletar seus estudos. Infelizmente, Elias Lôbo teatro lírico a ópera cómica" A Côrte de Mó-
não pôde aceitar a oferta, pois era chefe de naco", estreada· no dia 6 de outubro, libreto
numerosa família e não possuia recursos de Francisco Gonçalves Braga e música de
para sustentá-la, durante sua ausência. Domingos José Ferreira. f:ste jovem compo-
A noitada menloravel da "A Noite de sitor tinha, de fato, algum talento. Era filho
São João" verificou-se a 14 de dezembro, no de um clarinetista e nascera em 1837. Fêz
Teatro S. Pedro de Alcântara. A ópera teve seus primeiros estudos no Conservatório, de-
u interpretação de Eduardo Ribas, Marchetti, monstrando, desde logo, manifesta vocação
Luiza Amat e Carlota Milliet. O sucesso foi pela arte, especialmente pela música sacra.
bastante promissor. No ano seguinte, outra De tal forma· que um grande pregador da
"novidade absoluta" era apresentada no Tea- época, frei Francisco de Montalverne, lamen-
tro Provisório, na noite de.29 de julho, justa- tou estar cego, pois "não podia ver o autol'
mente no aniversário da Princesa Isabel. de tantas e tão formosas harmonias, que lhE;
Tratava-se da ópera "Moema c Paraguassú", tinham povoado de místicas visões as 2oli-
inspirada no episódio de Caramurú de Santa dões do claustro".
Rita Durão. O libreto era do dr. Francisco D. José Amat também se entusiasmou
Bonifácio de Abreu (futuro Barão de Vila com as primícias do talento de Domingos
da Barra), e a partitura do maestro italiano José Ferreira, tendo-lhe encomendado, não
Sangiorgio. As protagonistas foram ainda in- só a partitura de "A Côrte de Mônaco", como
terpretadas por Carlota Milliet e Luiza Amat, da ópera "Colombo". Esta, infelizmente, não
secundadas por José Amat, Ribas e Trindade. chegou a ser levada à cena, pois estava ainda
Nêsse mesmo ano, 1861, na noite de 4 de em ensaios quando fi companhia foi dissol-
setembro, deu-se a estréia, no palco do Pro- vida.
visório, da "Noite no Castelo", de Carlos Go- No ano seguinte, 1863, apresentou-se, no
mes, a primeira ópera do compositor cam- Provisório, nova ópera de Carlos Gomes, sô-
pineiro. bre libreto de Salvador de Mendonça" Joana
Dedicada ao Imperador, êstc compare- de Flandres". f:sse trabalho não foi bem rece-
ceu, dando imponente solenidade ao espetá- bido pelos criticos da ópera, embora sej a su-
<:ulo. O libreto era de Antônio Jose Fernan- perior ao que o antecedera, isto é, a "Noite no
des dos Heis. Os intérpretes, Luiza Amai, Castelo". Registraram-se mesmo lamentaveis
Andréa l\1archetti, Luigi Marina c Medina ocorrências na época da apresentação. Seus
Hibas alcançm'am êxito memorável, sendo intérpretes eram: Terezilla Bayetti, Luizfi
llnànimcs os elogios dos periódicos. Amat, Giuseppc Mazzi, Luizi vValter c Achille
Em 2 de dezembro de 1861, foi montada Hossi. Dirigiu-a, naquela noite. o maestro
a ópera "Os dois amores ", cujo libreto, de Bosoni.
Piave, era ·inspirado no hCol'slll'io", de Byron Por último, islo é, COlllo última pal'tilll1'u
e fóra escrito por Manuel Antônio de Almei- de autor brasileiro a subir ii cena, nesse me-
da, autor das famosas "Memórias dt'_um Sat- morável movimento E'm prol da criaç80 da

- 190. ---
,
,

ópera nacional, assinalou-se a estréia de "O movimento em declive pronunciado, até sua
vagabundo", libreto de Francisco Gumirato, completa extinção.
traduzido pelo dr. Luiz Vicente De Simon i A representação da "J oana de Flandres ,.
e música de Henrique Alves de Mesquita, marcou, pode-se dizer, o encerramento da-
nascido no Rio de Janeiro em 1836 e falecido- quêle periodo brilhante, "o único da nossa
na mesma cidade em 1906. Estudou no Con- história musical em que, sistemàticamente, o
servatório, seguindo depois para a capital idioma vernáculo ocupara o lugar a que tinha
francesa, distinguindo-se entre os alunos de incontestável direito, nos espetáculos de ópe-
Basin. Quando escreveu a partitura de "O ra, cuja plenitude artística deve supor uma
Vagabundo" era ainda estudante. Regres- generalizada compreensão da ficção dramá-
sando da Europa, perambulou por várias or- lica" .
questras, ora tocando piston, ora em trabalhos
1

de regência. Escreveu também partituras
para peças ligeiras .
As irregularidades verificadas quando da
estréia daquela segunda partitura de Carlos
Gomes foram tomadas como pretexto, dp- wz
"O Vagabundo" - canto de cisnc do tra-
balho empreendido por D. José Amat --- foi
que °público, no final do espetáculo, havia
vaiado estrepitosamente os no"os empresá-
levado à cena no Teatro Provisório, lJa noite
rios.
de 24 de outubro de 1863, com os seguintes
intérpretes: Luiza Amat, Dejianni Vives, Dai por diante a derrocada mais se acen-
Achille Rossi, Luigi Walter, Giuseppe Mazzi, tuou. Foi em vão que D. José Amat pro-
Trindade e Celestino. O "Jornal do Comér- curou retornar à direção do movimento, num
cio" comentava, pela pena dos seus críticos: último esfôrço para que a ópera nacional
"Ouvindo esta bela produção do gênio bra- pudesse reerguer-se do marasmo cm que
sileiro não podemos deixar de pensar com jazia.
alguma ufania: alguns anos mais, e no num- Disposto, como' sempre, voltou ao velho
do não se falará somente de compositores mundo, com o intuito de contratar figuras
italianos, alemães e franceses". novas, a fim de reanimar a chama vacilante
Tal prognóstico não foi ---- hoje o sabe- que ameaç'ava extinguir-se. Tudo em vão.
mos - tão auspicioso como esperava o ani- O fim era chegado... Em 1865 expirou o
mado escl'iba. A ópera nacional entrou em prazo do contrato. O govêrno, por intermé-
declínio. O eclipse se acentuou principal- dio do Ministro do Império, publicou um
mente pelo desinterêsse, ou melhor, pela longo Relatório no qual expunha o pensa-
frieza com que os homens de influência na mento da Côrte: não promover a prorrogação
esfera governamental entraram a encarar o do mesmo. Alegava que as coisas pela Fa-
problema. Não houve mais estímulo. Não zenda Nacional, estavam más; que a manu-
houve mais incentivo ao movinlento reno- tenção da Academia de Ópera Nacional iria
vador. exigir sangrias no Tesouro; que os recursos
Em 1862, com a terminação do contrato, pecuniários não poderiam ser mais concedi-
D. José Amat deixou a direção da Ópera dos, e mais isto e mais aquilo... Com êsse
Nacional. O Govêrno, longe de demonstrar Relatório o govêrno fêz o entêrro do empre-
interêsse em sua renovação, aproveitou-se da endimento de José Amat, pôs-lhe Ullla pedra
caducidade para firmar um outro com em- tUlllular em cima e. " ninguém mais ouviu
presários diversos, deixando no ostracismo falar no pobrezinho.
aquêle que se mostrara sempre um lutador, Sua memória, uo entanto, uão foi esque-
sem desfalecimen los, em prol da arte brasi- cida pelos póstel'os. A prova é que, no de ..
leira. correr da história da música brasileira, o mo-
A falta de espirito de organização, a au- vimento inovador daquêle revolucionário es-
sencia de verdadeiro senso artislico e, sobre- panhol que para aqui veio exilado, merece
tudo, o indiferentismo quase criminoso dos LlIll lugar de destaque, luzindo como um c!fI'i
novos contratantes. foi fazendo resvalar o capitulos. dE' -maior t' mais merecido fulgor.

-- 1DI ,-
Vinculado a' êle, está, além de tudo, o apare- Castro, Antônio Ricardo' Martins; Amadio'
cimento da figura incontestável do maior Gonçalves Cruz e alguns outros.
gênio do drama lírico que já surgiu no Na Bahia, aparece' o pitoresco Mussurull-
Brasil: Antônio Carlos Gomes. ga (Domingos da Rocha 'Mussurunga), fale-
Sua. figura encheu,. de fato, a segunda cido em 1856, revolucionário ardoroso da In-
metade do século dezenove, extravazando dependência e de outros movimentos, com-
além fronteiras para projetar-se no velho positor ora de músicas sacras, ora de modi-
mundo, com o valor irrecusável do seu gran:: nhas sentimentais e profanas, ora' de valsas,é
de talento de compositor. minuetos, hinos, etc.
Ao tempo em que viveu, seu vulto mais Em São PílUlo fixam"se nomes como os
assomava, pois os artistas que aqui se movi- do padre Fortunato Gonçalves Pereira de An-
mentavam, acotovelavam-se num plano mui- drade e do Dr. Mamede Gomes da Silva: em
to abaixo daquêle em que pairava o seu gê- Minas, o do padre José Maria Xavier; em
nio. Realmente, as poucas figuras que se Santa Catarina, o de João Francisco de Souza
agitavam, aqui e ali, no Rio e nas províncias, Coutinho; no Maranhão, o de Sérgio Mari-
não lograram larga notoriedade, conseguin- nho: em Alago as, os dos irmãos Efigênio do
do apenas o simples registro de seus nomes Rosário (Luiz e Afonso), e o de Joaquim An-
na enumeração dos musicistas patrícios. tônio de Almeida Crispim: em Sergipe, o de
Fala-se, por exemplo, em Cândido Inácio José de Araújo Ribeiro.
da Silva, discípulo de José Maurício, fale- Tôdo êste amontoado de nomes, é claro,
cido em 1839 e compositor de obras ligeiras: figura aqui como registro, não direi indis-
fala-se ainda em Pedro Teixeira, ,compositor pensável, mas, de certo modo, satisfatório, e
sacro, e em Tomás da Cunha Lima Cantuá-, que dá bem uma idéia da frágil movimenta-
ria, que viveu em Pernambuco e também se ção, no mundo musical do Brasil, naquêle
comprazia nas composições religiosas. Ali- período indeciso do primeiro e do segundo
nham-se nomes como os de José de Souza, impérios.
Teodoro Orestes, João Policarpo Soares Rosa Nenhum dêles vale estudos especiais, nem'
e Hipólito José de Lima, todos do norte do o acêrvo de suas obras merece análises pe-
pais, enquanto no Sul surgiam os de Domin- nosas. Não passavam de simples batráquios,
gos da Costa, Joaquim José Mendanha, Joa- olhando para o alto, onde reluzia estranha- ,
quim Rocha, Francisco Augusto, Pedro de mente o brilho de um astro: Carlos Gomes.'

• • •

- 192--
o GENIO Cf\MPI NEI ~O
, .
ensaza os primeiros lJÔOS

IS-NOS, por fim, frente a merecer uma reparação, após quase três sé-
uma das maiores glórias culos de ignomínia, Assim entenderam os ar-
da arte musical brasileira, tistas, nos meados do século dezenove, pre-
a mais pujante afirmação cursores que foram do movimento dos cien-
do drama lírico em nossa tistas que, mais tarde, através de estudos an-
terra, tropológicos, etnográficos e culturais recolo-
Carlos Gomes representa, com efeito, uma cariam o problema da miscegenação e da
figura excepcional, um dos mais lídimos ex- aculturação em seus verdadeiros têrmos, apre-
poentes do lirismo musical no século passado, sentando para êles soluções justas, O movi-
Sua atuação se fêz sentir exatamente no pe- mento indianista foi iniciado na poesia pelo
ríodo romântico de nossa história, quando os estro magistral de Gonçalves Dias e, no ro-
beletrístas erguiam as primeiras reivindica- mance, pela pena, não menos magistral, de
ções das raças escravizadas ao jugo e aos José de Alencar, Como é natural, chegaram
desmandos dos brancos europeus, a exagerar de puro idealismo, , ,
Callsados das imitações de poemas e de No anseio de exalç'ar a figura do indíge-
ensaios estrangeiros, poetas e romancistas en- na, sublimaram de tal forma suas atitudes,
ti'aram a esboçar o primeiro movimento rei- seus gestos, sua própria mentalidade, até
vindicatório que se operou em nossas letras tJ'ansformá-los em heróis ridiculamente pie-
em prol do índio e do negro, Espeeialmente gas, Verdadeiros símbolos da nobreza cava-
dopl'im-eiro, Como o autêntico, o ,único e lheiresca expressa nas baladas ,e nas redon-
\,:ernadeiro filho da terra, dono espoliado da dilhas da época medieval,
mesma, éombatido e caçado pelo clavinote O "Peri':, de José de Alencar, e o "l-Juca-
dos aventureiros 'intr.usos. o indígena devia Pirama". d(' Gonçalyes Dias, são indisfarçá-
veis D' Artagnans das selvas, espadachins de leh'os, que as compuseram, repontados, aqUi
tacape, fidalgos de cocar e escudos de pe- e ali, nos painéis, nas músicas, nos poemas ...
nas ... N as telas dos mestres do Brasil imperial
Tôda essa literatura, é cl?ro, assinalava notam-se sem dúvida, dentro das escolas uni-
arremêdos, imitações do que se fazia lá fora, versais que lhes ditaram o caráter geral, as
não obstante a louvável intenção dos seus notas características da vida brasileira, como
autores em fazer obra nacional. Transpu- os primei,ros vagidos de um ente que se quer
nham simplesmente para cenários e tipos, libertar do envoltório incômodo que o en-
fal,samente brasileiros, o espírito de uma li- leia ...
teratura que, na Europa, voltava os olhos Na .obra de Carlos Gomes dá-se o mesmo
para as terras da América, capitaneada pelos fenômeno. Dentro da orientação italiana
Chateaubriand, os Byron, os Gustavo Aimard. que êle sempre seguiu, surge de vez em quan-
etc. E' bem verdade que, dêste el;fôl'ço, Slll'- do o grito da raça, ovante e glorioso, em no-
giam, por vêzes, modulações e surtos nati- tas características e distintas. Nêsses lllomen··
.
vistas, ora na descricâo de um. cenário, ora tos, sua música quase que adquire um espí-
rito autônomo, diferente dos Verdi, dos Wag-
na fabulação, ou na própria concepção do::;
personagens. Vez por outra, o ego recalcado ner e dos Ponchielli. Mas êsses surtos dura-
do brasileiro vinha à tona e procurava exi- vam pouco. Eram abafados logo pela cor·
bir-se em tôda a sua pujança, em tàda a sua rente convencionalista que impunha diretri-
esplêndida plenitude. zes, traçando-lhes rumos de caráter universal.
MaIo conseguia, porém. O pêso da "cul- Tais impulsos nativistas são, porém, re-
tura universal" era tamanho, o acúmulo de conhecidos na sua obra, embora desvirtuados
convenç'ões artísticas era tão considerável quc pelas escolas estrangeiras. São os primeiros
os artistas se encontravam na impossibili- remigios, fracos e vacilantes ainda, db pro-
dade de dar plena expansão às suas tendên- fundo e avassalador espírito nacionalista da
cias nacionalistas. música brasileira, cujos vôos largos e segu-
ros iriam traçar, mais tarde, com Levy, Ne-
E' que o espírito de brasilidade, a con- pomuceno e Villa Lobos, nos céus do Brasil,
ciência intrinsecamente brasileira não havia as estradas luminosas da nossa arte, própria
ainda atingido o seu clímax. Mesmo assim, e inconfundível.
nêsse primeiro movimento das nossas letras
e das nossas artes sente-se, indisfarçável (;
profunda, a sedimentação da nossa cultura,
Quem escreveu, com j.ustificado carinho,
através de um ou outro ponto sensível, na
a vida de Carlos Gomes, foi sua filha, D.
estruturação geral das obras produzidas.
HaIa Gomes Vaz de Carvalho.
Carlos Gomes exemplifica, como poncos, A contribuição dêsse único rebento vivo
a substância de tal assertiva. Acusam-no de da progênie do maestro campineiro para as
ter sido um músico italiano, como acusam comemorações do centenario do seu nasci-
igualmente Pedro Américo e VitOl' Meireles mento, em 1936, constitui, não há dúvida, o
de terem sido pintores florentinos ou francê- mais vivo repositório de dados biográficos e
ses. Nada mais justificável, até certo ponto. de passagens emotivas do genial compositor.
~enhum dêles poderia, de fato, surgir como Rodrigo Otávio, prefaciando o livro em
um personalíssimo artista brasileiro, vivendo questão, acentuou: "Por vêzes a narradora
na época em que viveram, <Iuando a educa- deixa entrever o amargor de sua mágoa pelo
ção estética estava condicionada aos eànone:-i que a falta oportuna de auxílio e, mesmo, de
dos movimentos do renascimento europeu. A simples estímulo, fizeram sofrer o maestro
agitação nacionalista apenas se esboçava, es· desamparado. E' preciso, porém, não esque-
triando as fímbrias do horizonte. cer que a narradora é sua filha e, contando
Suas obras, no entanto, apresentam, vez a vida de Carlos Gomes, seu coração não se
por outra, os estigmas iniludíveis dos brasi- podia deixar ficar insensível ".
Seja como fôr, ninguém poderá mais fa-
lar em Carlos Gomes sem recorrer às páginas
emotivas de sua filha. E foi o que fiz.

Os ascendentes de Carlos Gomes eram


tipos de características fortemente tempes-
tuosas, exuberantes em suas atitudes, tais
como o próprio biografado.
Seu bisavô, Dom Antônio Gomez, era
bandeirante ousado, espanhol de origem, des-
bravador de sertões invios à cata das eternas
esmeraldas. Acabou os dias vivendo, em ple-
na mata, com uma índia guarani, como bom
burguês, cercado de uma porção de filhos ...
Manuel José Gomes, pai do artista, era
um tipo sisudo, que viveu modestamente, na
cidade de Campinas, rígido de princípios e
de uma domesticidade raras vêzes igualada.
Basta que se diga que casou quatro vêzes,
dando ao mundo, a beleza de vinte e seis
filhos!
Seu terceiro matrimônio foi com D. Fa-
biana Maria Jaguary Cardoso, mãe do futuro
gênio, morta de maneira trágica, muito moça
ainda. Seu corpo foi encontrado, na manhã
de 26 de julho de 1844, cosido a facadas e
com sinais de balas em um brejo, "onde ha- :Manuel José Gon1es, pai de Carlo~ G01l1éH

via enorme quantidade de rosas brancas, ro-


sas silvestres ... ". O móvel do crime jamais
Em pouco tempo, já crescidinho, lá esta-
foi apurado.
va também o "Nhô Tonico", apelido com que
Viu-se, destarte, o pequenino, que nas-
era conhecido o jovem Carlos Gomes.
cera a 11 de julho de 1836, órfão dos cuidados
maternos, aos oito anos, quando "mal entran- Fora da Banda, freqüentàva a oficina de
do na existência vinha". uma alfaiataria, onde aprendia o ofício. "Ma-
Não tardou o velho, fogoso como era, em neco Músico" animava o meio acanhado de
contrair novas núpcias, desta vez com D. Campinas com a sua Banda. De tal forma
Francisca Leite, que foi quem criou, desve- que o próprio imperador, quando lá esteve,
ladamente, o pequeno Carlos e seus outros em 1846, ordenou que lhe dessem a quantia
irmãos, como sempre, numerosos ... de 200$000 "pela sua cooperação nos quatro
O chefe da família era um autêntico pa- dias de festas que na ocasião se realizaram" .
triarca. Gostava de música, tocava alguns Carlos Gomes tinha especial predileção
instrumentos e era professor e chefe da Ban- por um de seus irmãos: o José Pedro, o "ma-
da de Campinas. Para essa filarmônica le- no Juca", mais velho dois anos e que, como
vava êle tôda a filharada. Era de vê-lo en- êle, tocava na filarmônica desde os dez anos
saiando as suas- obras diante de um punhado de idade. Aprendeu vários instrumentos, in-
de músicos, onde se contavam quase duas clusive piano. E sua veia de compositor tor-
·dezenas de rebentos seus! Chamavam-lhe de nou-se evidente desde logo, em uma série de
"Maneco Músico". modinhas, valsas, polcas e romances, chegan··

-- 195 -
do até a escrever Ullla "Missa", dedicada au Não deixa de ser pitoresco aquêle"pa-
pai. gos adiantados" com que o professor, pru-
Em 1859, deu sua primeira audh:ão. em dentemente, encerrava o aviso ... Mesmo ba-
Campinas, ao lado do "mano Juca" e do cla- rato como. era, havia ainda o risco de não
rinetista Henrique Luiz Lev)' .. efetuarem o pagamento.
Com seu pai - que não pudera dar-lhe Tal situação afigurava-se desoladora pa-
instrução sólida e metodizada ._- aprendeu ra o irrequieto temperamento do artista. Sua
rudimentos de fuga e contraponto. N êsse índole, tormentosa e incerta, impelia-o para
mesmo ano de 1859 decidiu fazer uma peque- o ensaio dos primeiros vôos. E, abrindo as
na tournée à capital de São Paulo, para se asas ... veio parar na Côrte. Fugiu de casa,
exibir, acompanhando José Pedro, tido e ha- é certo, sem se despedir de ninguém. Na
vido como exímio rabequista. Foi ali, em capital de São Paulo, com o mano Juca, en-
uma república de estudantes, onde se hospe- controu como sempre o estímulo dos estu-
daram, que Carlos Gomes compôs o seu dantes, recebendo até auxílio pecuniário de
"Hino Acadêmico", bem como a formosíssi- alguns amigos. Pouco, é verdade, mas o su-
ma modinha "Tão longe, de mim distante", ficiente para as despesas de viagem.
ambos com letra de Biteneourt Sampaio; a Fêz a travessia da serra, até Santos, no
primeira é hoje cantada quase diàriamente lombo de um bucéfalo; naquêle pôrto tomou
nas emissoras radiofônicas. passagem a bordo do "Piratininga" e, quan-
O hino agradou em cheio. O músico re- do desembarcou na Côrte verificou que, no
cebeu calorosa consagração dos componentes fundo da algibeira, restavam-lhe apenas du-
da república e de todos os meios estudantis. zentos e quarenta ré is !
Não faltou quem lobrigasse nêle o traç'o Trazia, em compensação, algumas cartas
do gênio e lhe aconselhasse a ir para a Côrte, de recomendação. Logo que chegou escreveu
único meio propício ao estudo e à ascenção ao pai, que devia estar desolado, lá naquela
de verdadeiros artistas. Hipotecaram-lhe distante Campinas, onde os bandos de ando-
apoio irrestrito, no cenáculo. E Carlos Go- rinhas faziam nuvens, pela madrugada e nas
mes regressou a Campinas com essa idéia horas do crepúsculo. Pediu-lhe perdão da
aparafusada no cérebro. atitude que tivera; da falta de coragem para
Mesmo porque o ambiente ali já lhe pa- lhe declarar seus intentos; dos sonhos que
recia acanhado, como de fato o era. Se per- lhe povoavam a mente; da glória que êle via
manecesse, fatalmente se estiolaria sua ins- acenar-lhe com um futuro grandioso ...
piração nascente. O velho, comovido, enviou-lhe a pênção
Suas ativídades cingiam-se então a uma pa ternal e. .. uma pensão de trinta mil réis
pequena escola noturna de canto e piano, mensais. Sua earta, terminava assim: "Que
que dirigia de sociedade com um tal Ernest Deus te abençôe e te conduza próspero avante
Maneílle. Em 1858, resolvendo ficar sozinho, l>elo árduo caminho da Glória. Trabalha e sê
publicou o anúncio que se segue, nos jorna- feliz! - Teu pai".
lecos da província: A Glória atendeu à solicitação contida
"O Abaixo assinado declara ter dissol- naquêle apêlo paterno: tomou pela mão o
vido a sociedade que tinha com o lImo. Sr. jovem compositor e o conduziu, de fato, por
Ernest Maneille em sua aula de música e que caminho árduo porém compensador.
continua a lecionar na mesma casa e nas
mesmas condições:
Lições de canlu ......... . ;1\}iOOO
Canto e música .......... . G$OOO Hospedou-se inicialmente em casa do sr.
Piano e canto ......... . I()~OO()
Azarias Botelho, negociante (lue morava à
rua Direita !l." U3, em cuja sala havia um
Pagos adi antados. magnífico pianu. ~ão tardoLL- com o au-
,\lItóllio Carlos Gomes" x íl io das enftas de apl'eSPlltaçtlO 11 mel'{"

W(i
ceI' as atenções da eondessa de BarraI, qu~ \'cr o imperador pregado ao peito de Carlos
foi quem levou o rapaz pessoalmente ao Gomes a insígnia de cavaleiro da "Ordem da
Imperador. Rosa" .
D. Pedro recomendou-o ao maestro Fran- Muitas dádivas recebeu ainda o feliz au-
cisco Manuel da Silva, diretor do Conserva- tor não só do Rio como de Campinas. Dali
tório de Música, onde foi admitido nas aulas viera seu pai "Maneco Músico", que assistiu,
de composição, sob a orientação do professor comovido, a êsse primeiro grandioso êxito
italiano Gioachino Giannini. do filho. Infelizmente, resta-nos hoje apenas
um exemplar do primeiro ato da partitura
de "A Noite 110 Castelo", de-vez-que o resto
se perdeu, de maneira inexplicável.
A primeira opera de Carlos Gomes inti-
O segundo triunfo foi assinalado dois
tula-se "A Noite no Castelo" e foi levada à anos mais tarde, com a apresentação de ou-
cena no Teatro da Opera Nacional do Rio de
tra ópera, a " Joana de Flandres"; esta obra
.T aneiro, a 4 de setembro de 1861.
lhe valeu a ventura de ser comissionado pelo
Fazia vinte meses que o compositor ha-
imperador, para uma viagem de estudos u
via chegado à Côrte. Nêsse pequeno espaço
Europa. A estréia teve lugar na noite de 15
de tempo não só compusera a ópera como
de setembro de 1863 e constituíu autêntico
ainda duas cantatas, executadas, uma na
sucesso para o jovem campineiro.
Igreja da Cruz dos Militares, em 1860, e a
outra no Conservatório, com a presença do " Joana de Flandres" fôra composta so-
próprio imperador. bre um libreto de Salvador de Mendonça.
A noite da estréia da "A Noite no Cas- Impressionado com o gênio nascente de
telo" foi, em verdade, a i)rimeira consagra- Carlos Gomes, o monarca brasileiro não he-
ção· de Carlos Gomes. sitou em enviá-lo às capitais do velho-mundo,
O libreto do sr. Fel'l1alldes dos Reis era a fim de completar sua educação artística.
calcado em um poema de Feliciano de Cas- Destarte, foi-lhe concedida uma pensão
tilho. A execução esteve. sob a batuta de anual de Rs. 1 :800$000 durante quatro anos.
Francisco Manuel; a platéia exibia a fina flor O ofício, firmado por Francisco Manuel, de-
social da Côrte, inclusive o próprio D. Pe" signava-lhe a cidade de Milão para um está-
dro II. gio indispensavel nas aulas de composição.
Os jornais exaltaram o triunfo do jovem Além disso, mereceu ainda o favor da 110-
artista, salientando o detalhe honroso de ha- meação de seu pai, para a Capela Imperial.

/I [Jf guarani I/

No DIA 8 de dezembro de 1863, o paquete mente, matricular-se no Conservatório, por


ser estrangeiro. Mas Lauro Rossi tomon-o
inglês "Paraná" levantava ferros, rumando
para a Itália. Nele seguia o jovem e espe- como seu aluno particular, prometendo-lhe
rançoso músico brasileiro. No Mlso levava envidar os melhores esforços em seu apren-
uma carta de D. Pedro para o rei de Por- dizado artístico.
tugal, pedindo que êste o recomendasse ao
maestro Laura Rossi, dil'etor do Conservató-
rio dc )t'Iilão. Na cabeça levava os planos Três anos e tau to estudou Carlos Gomes
mais ousados refervendo no caldo grosso de em Milão, centro dos mais afamados no pa-
uma inspiração candente. Não pôde, infeliz- 1100"ama musical daquela época. O ambiente

- 1m--
tumultuoso Qa grande cidade era dos mais vas, os indígenas, os conquistadores portu-
propícios à inquietadora índole do músico gueses, aventureiros e fidalgos, tudo, enfim,
brasileiro. a movimentar-se estranhamente no extenso
Em meados de 1866, Laura Rossi conce- palco do Scala! E a inspiração sugeria-lhe
deu-lhe o titulo de "Maestro Compositore", trechos magnificos de árias, de romanças, de
em seguida ao resultado brilhante verificado coros, ,de descrições sinfônicas, dentro da
nos exames, que constaram' de uma fuga a grande orquestração que no seu crânio ha-
quatro partes, escrita de portas fechadas, num via ... E foi impelido, impetuosamente, para
limitado número de horas. a obra.
Terminada essa primeira etapa, Carlos Procurou Scalvini para a confecção do
Gomes lança-se à vida. libreto, completado, todavia, pelo poeta Car-
Logo no ano seguinte dedica-se à parti- los d'Ormenville.
tura de uma revista, "Se sá minga". (Não se Carlos Gomes afundou-se no trabalho.
sabe) cujo libreto, do poeta Antônio Scalvi- Seus dias eram consumidos nu grande parti-
ni, era escrito em puro dialeto milanês. No tura. Do fundo dos abismos da sua sensibi-
dia de Ano Bom, em 1867, subiu ela à cena lidade subia, como tênue volatilização, a ima-
do Teatro Fossati, merecendo desde logo a gem de sua terra distante, daquêle mundo
mais calorosa acolhida. Algumas canções da de florestas ínvias, por onde reboava o canto
revista caíram no agrado geral, popularizan- guerreiro dos seus avós indígenas e as bala-
do-se ràpidamente. das saudosas dos ascendentes lusos.
O nome de Carlos Gomes girou pela Há- A formação musical de Carlos Gomes
lia inteira. Tal consagração animou-o a es- era, sem dúvida alguma, fOl'mulisticamentc
crever nova partitura, desta vez para a re- italiana. Mas no fundo de sua alma, recal-
vista "NeHa Luna", também de autoria de cado pelo convencionalismo da educação eu-
Scalvini. Nela destacam-se as canções: "La ropéia, repousava o verdadeiro ego, o bra-
:\-loda", "La BoHetta" e o coro dos "Bambini sileiro inconfundível. Esse continuamente
Lattanti", que se espalharam pelos salões e rompia as camadas pl'econceituais e procura-
pelas ruas, concorrendo para maior popula- va exibir-se afoitamente, com o direito que
ridade do seu autor. a raça lhe concedia.
O caminho estava aberto. A ascellção co- A própria partitura do "Guarani" atesta
meçara sob bons auspícios. Dentro em pouco, êstes momentos de raro esplendor. Lá estão,
a primeira grande obra de Carlos Gomes iria na célebre protofonia, no bailado dos aimo-
estarrecer o público de Milão. rés, nos duetos de Peri e Ceci e na famosa
Foi o caso de estar, certa vez, o nosso balada da filha de D. Antônio de Mariz, os
músico tomando plàcidamente o seu refresco, acentos irrecusáveis de sua emoção nativa,
na terrace de um café, na "Piazza Duomo", os traços inegáveis. de seu fÍno espírito de
quando um garoto passou apregoando, a ple- brasilidade.
nos pulmões, um folheto que acabara de ser A própria preocupação de exibir instru-
editado: "11 Guarany"! II Guarany! Storia dei mentos indígenas, no meio da orquestra, de-
sel,vaggi deI Brazile!" monstra a intenção do artista de emprestar
Aquilo para Carlos Gomes foi como que cunho nativista à obra empreendida. Andou
uma revelação. Uma história de selvagens êle, de fato, à procura de "bores", "tembis",
brasileiros! Era o canto saudoso da pátria "maracás" e "inúbias", tentando adaptar o
que lhe gritava aos ouvidos. Não teve dú- que fôsse possível para a imitação de tais
vidas. Adquiriu o livrinho que nada mais instrumentos.
era do que a tradução do romance de José A cenurização também o preocupou.
de Alencar. Queria o maestro que as selvas brasileiras
Empolgou-se pela história; e, enquanto ficassem veramente representadas na monta-
lia, crescia em sua imaginação a idéia de le- gem, a fim de que o público pudesse ter
var aquela gente tôda para o palco. As sel- idéia exata do que elas eram, na realidade.

- 198-
A caracterização dos personagens cons-
tituiu, por seu turno, trabalho insano para o
autor, cujo desvêlo obrigava-o a presidir a
todos êsses setores. Finalmente, no dia 19 de
março de 1870, descerrou-se o velario do
Teatro Scala, de Milão, para a apresentação
de "II Guarany", do maestro brasileiro Car-
los Gomes.
Não vamos repetir aqui as descrições
feitas por vários criticos e escritores dessa
noite de estréia, relatando os incidentes ha-
vidos, a acolhida calorosa e a primeira COIl-
sagração, realmente notável, do músico cam-
pineiro. As crônicas do tempo são unânimes
na afirmação do entusiasmo que cercou o () f::llnoeo Scala, de Milão, onde Re consagra \'um
compositor. O poeta Luiz Guimarães Junior, as celebridades mundiais

que era então secretário da legação brasileira


em Roma, e que seguiu para Milão a fim de o procuraram na. agitação confusa de UIll
assistir à estréia do "Guarani", deixou-nos a entreato~ Incapaz de raciocinar claramente,
melhor descrição do sucesso inconfundível em um momento como aqllêle de pleno alUl'-
de Carlos Gomes. dimento, Carlos Gomes assinou o têrmo de
O delírio, êste, sim, é que foi realmente venda dos seus direitos sôbre o "Guarani",
indescritível! O próprio Rei da Itália, asso- pela miserável quantia de três mil liras! ...
ciando-se ao entusiasmo circundante, no- Êsse ato criminoso de editores organizados
meou-o Cavalheiro da Orclem ela Coróa da para a contínua exploração do património
Itália. mtelcctual de artistas e escritores foí um
Giuseppe Verdi pronunciou então suas golpe traiçoeiro, armado contra a boa-fé e a
memoráveis palavras: "Questo giovane co- ingenuidade do maestro brasileiro, Em vir-
mincia da dove finisco io". No final do es- tude dêsse gesto iníquo sofreu êle a desdita
petáculo abraçou o jovem maestro, dizendo- de se encontrar, futuramente, em situaç'ões
lhe: "Andate ragazzo, io sono contento!" difíceis, quase na miséria, enquanto a sua
A nota mais expressiva do alto mérito ópera corria mundo - Rússia, Austria, Itá-
de Carlos Gomes reside no entanto na carta lia, Portugal, Dinamarca, Holanda - cana-
que lhe foi endereçada pelo seu velho pro- lizando rios de dinheiro para a satisfação da
fessor Lauro Rossi. Dizia ela: ganância de um grupo de capitalistas vo-
"Meu caro discípulo já mestre. razes.
Dizer-te o orgulho de que estou pos- A eterna história ...
suído me é impossível e é inútil! Asseguro-te
que não consta que mestre algum colhesse
em circunstâncias idênticas vitória igual' à
do "Guarani". Encho-me também de glória Dedicada a sua majestade D. Pedro II,
estreitando-te em meus braços, feliz de te Imperador do Brasil, como "homenagem de
considerar meu colega". gratidão do súdito Carlos Gomes", devia a
Carlos Gomes desfrutou as delícias da nova ópera ser levada à cena no Rio de J a-
consagração; não soube, porém, desfrutar os neiro. E o foi realmente, no Teatro Provi-
lucros de sua obra ... sório, nesse m:eSll10 ano de 1870; no dia 2 de
Na mesma noite do espetáculo, diante dezembro, aniversário natalício do monarca.
do êxito obtido, a visão dos proventos mag- Carlos Gomes viera para o Brasil sau-
nificos que a mesma iria acarretar alertou doso da pátria e desejoso de exibir ao impe-
a cupidez dos editores da "Casa Lucca", que rador o fruto do seu trabalho, como decidida

- 199-
prestação de contas do auxílio que lhe fôra nobreza, o espetáculo constituíu uma 110":1
dispensado. consagração para o compositor brasileiro,
Aproveitando os elementos de uma com-
panhia lírica do Rio da Prata," que dava es- Seus conterrâneos de Campinas oferece-
petáculos na Côrte, o "Guarani" foi montado ram-lhe uma grande medalha de ouro com
e apresentado condignamente, merecendo os um brilhante engastado, de subido valor, O
aplausos de um público que chegou mesmo Imperador concedeu-lhe, pela terceira vez, a
ao delírio. Ordem da Rosa, E o POYO, entusiasmado,
Assistido pelo Imperador, por José de carregou Carlos Gomes em triunfo até à sua
Alencar e pelas mais altas personalidades da residência,

II Çfosca "Jafóator 0'tosa" e II SJl(aria fluaor"

N Ão demorou, todavia, no Brasil. Em mar- de prevêr as vissicitudes que o esperavam


ço do ano seguinte Carlos Gomes retornava também, toldando a sua vida com o sofri-
à Europa, já agora com a certeza dos êxitos mento oriundo da incompreensão e da ma
que iria colhêr na extensa estrada que se lhe fé de seus coetâneos.
abria em frente.
Chegando à Itália, casou-se com a moça
Como que previa os triunfos que o espe-
que lã deixara, como sua noiva, em' 16 de
ravam nos dias futuros; estava longe, porém,
dezembro de 1871: Adelina deI Conte Peri,
pertencente a uma família distinta de Bo-
logna, embora pobre, e exímia pianista,lau-
reada pelos Conservatórios de Roma e Milão.
A cerimônia teve lugar na Chiesa di San
Carlo, no Corso Vittorio Emmanuele, na ca-
pital milanêsa,
Foi d. Adelina a espôsa exemplar, a com-
panheira ideal para o artista, capaz de o
compreender plenamente. O casal teve cinco
filhos: Carlota Maria, Carlos André, Manuel
José, Mário e HaIa Maria.
Prosseguindo em seu trabalho nunca in-
terrompido, Carlos Gomes terminou sua se-
gunda ópera, a "Fosca", considerada, por
êle mesmo, o seu melhor trabalho.
A noite de estréia, no Teatro Scala, de
Milão, foi a 16 de fevereiro de 1873 e não
logrou o êxito da estréia do "Guarani".
Acusaram-no, injustamente, de usar os pro-
cessos wagnerianos, com o intuito de promo-
verem o desagrado do público italiano que,
na época, não tolerava o genial compositor
germânico, Além disso, as lutas vorazes en-
tre os editores RieOl'di c Lucca trouxeram
certo retardamento na carreira da "Fosca".

200 -
· ~Ias cm 187R. foi ela cantada, nO"mncn-
te,' no mesmo Scala, quinze vezes cOllseculi-
vas, interpretada pelo tenor Tamogno, can-
sando sucessos raras vêzes consignado~ no
grande teatl'o. )í o ano seguinte, uma outra
ópera de Carlos Gomes subia ü cena, desta
vez no Teatro Carlos Felice: "Salvador Rosa".
Estreada no dia 21 de março, a obra mere-
ceu entusiástica acolhida, pois estava ao sa-
llór do espírito popular, crjvada de fáceis c
encantadoras melodias.
O libreto cra de Antonio Ghisl(\n7.(~n i; e
as adas mais sugestivas, como a de "Massa-
niello" e a famosa "Mia piccirella", alcança-
ram ampla vulgarização nas camadas afic-
cionadas do teatro lírico. Foram locadas e
cantadas de tódas as maneiras.
Durante os anos que abrangeram as es-
tréias de "Fosca" e "Salvador Rosa", sofreu
o compositor golpes severos cm sua sensibi-
lidade. Perdeu dois filhos: Carlota ;'daria, a
pril110gênita do casal, e Manuel .Jos<\ muito
pequenino ainda, com 18 meses apenas. Duas
óperas novas e dois rebentos mol'Íos. " Aba-
lido moralmente pelos golpes da fatalidade
e pelas adversidades da fortuna, Carlos (;0- CArlos GOl11E'~ C SPU filho Curtos An(lr~", E'1ll 18.7·1

mes não cessou, porém, de trabalhar.


De 1875 a 1878 compôs a partitura de nhada de gaitas. assubios, s((n/ol/as, (' ... mio
"Maria Tudor", calcada sôbre o famoso dra- faltou o famoso cri-cri!
ma de Vitor Hugo, levada à cena na noite de Voltei para casa filmando lral/qiiilamen-
27 de março do ano seguinte, no Teatro Scala, te em companhia do Celc[fa e do Paulo Le-
de Milão. cour, meus ínlim os (1m 19os, III1l i fali ano e
A respeito da estréia dêsse novo ti'aba- outro francês.
lho de Carlos Gomes, vale a pena ouvir o Você há de (icar de boca aberta saben-
que êle próprio relatou, em carta íntima, ao do que na segunda noite (l ÓpPl"(l obteve llm
visconde de Taunay: sucesso completo e (ai afé bisado o Dueto do
segundo ato "colui che lwn canta", desapa-
"111 eu amigo TC/llnay. receram as gaitas e assobios e só se aplaudill,
A Maria está desmaiada! Isso mesmo ell mas o caipira não estava /lO Teatro,' o pú-
escrevi ao Chico, Rebouças e mano Juca. blico que me balizoll em 1870 com o "Gua-
A ópera foi ii cena a 27 de março e ,29 rani" foi grosseiro /la noite de 27 ou, paI"
do mesmo mês. Na primeira noite a ópera outra, estava bêbado! Na segllnda noite já
principiou aplaudida, mas sentia-se /lma cor- lhe tinha passado a ('(ll"l'a.~pan(l mas não era
rente contrária, especial, .vinda ao Teatro merecedol' de ver (l cara do paulista, e iem
para fazer rumor! de esperar muito para ter êsse gás/o!
Logo no princípio do segundo a/o arre- A imprensa Mela (oi contra mim, e ain-
bentou a "trevoada", calmou-se 11m pouco da mais, mio quis ronfessar o SllcesSO da se-
no terceiro e ... deu o estollro 110 quarto (o gunda Iloite,' era necessário que eu lósse uma
melhor da ópera!) Nesta primeira noite esperança da Itália, um maestro italiano de
(verdadeira noite) a ópera acabou acompa- sangue e... compositor que compra artigos

- 201-
de jornais, coisa q/le .IlUl!Ca fiz e mio farei Em mujo dcscmbarcava êle lla haía de
Jlunca, ainda que arrebente". São Salvador, tendo inÍl'io aí as grandes ma-
No transcurso destas linhas pode qual- nifestações de que foi alvo, em sua pátria,
quer um sentir o clima inseguro e tumul- Trouxe uma companhia lírica, que levou ~l
tuário que reinava em Milão, nos meios ar- cena, na capital baiana, o "Guarani" e o
tísticos. "Salvàdor Rosa". O delírio chegou ao auge!
Compositores viam suas obras pateadas Ainda ali, antes de partir para o Rio de
num dia e aplaudidas em outro. No caso de Janeiro, compôs um "Hino a Cumões".
Carlos Gomes, assegura-se que a pateada era Na Côrte, onde chegou a bordo do "Gua-
coisa de encomenda, prêsa às contendas en- diana", no dia 17 de junho de 1880, o júbilo
tre os editores, dos seus patrícios extravazou em memorú-
veis demonstrações de entusiasmo. O povo
exultou, recebendo-o ao som das bandas de
Em 1880, obedecendo a inúmeros conse- música, de vivas entusiásticos, carregando-o
lhos de amigos dedicados, tais como André em triunfo como um dos mais autênticos
Rebouças, Salvador de Mendonça, Francisco orgulhos da pátria gloriosa.
Castelões e o Visconde de Taunay, Carlos
Um mês depois de haver chegado, o ma-
Gomes decidiu-se a espairecer no Brasil u
estro brasileiro regeu o "Salvador Rosa ", sob
fim de dar tréguas à luta tenaz que empre-
extraordinárias ovações.
endeu. Veio em companhia de um filho,
Carlos André, pois os recursos de que dis- Seguiu depois para São Paulo, seu Es-
punha não lhe permitiam viajar com tôda a tado natal, reembarcando para a Europa, em
família. novembro.

II Po Je8ialJo '

C HEGOl! então a vez de "Lo Schiavo",


novo grande trabalho de Carlos Gomes, ópe-
ves porque ficaram nele gravadas inexatidões
e anacronismos chocantes,
ra que deveria refletir, çomo o "Guarani", O maestro atirou-se ao trabalho, com fú-
iniludíveis características de brasilidade, O ria balsaqueana.
entrecho, de espírito abolicionista, era do Desafortunadamente, o artista iria viver
Visconde de Taunay e merecia as atenç'ões um período cruel, de duras vissicitudes, an-
de quem fósse capaz de sentir o drama eter- tes de sua viagem ao Brasil. A pior de tôdas
no dos oprimidos. foi o falec.Ímento de seu terceiro filho, Mário,
Seu amigo André Hehouças, escreveu- aquêle a quem êle se referia constantemente,
lhe, a respeito: cobrindo-o de beijos: "Só mesmo êste meu
"Trabalha llO "Escravo"; faz uma pre- Mário conhece bem o papai". O golpe foi
(fhiera no estilo da do Nabucodonosol' de duro, duríssimo para o seu coração, Seu so-
Verdi. Trabalha pelos infelizes para que frimento foi ime;lso, arrasador, Ouçamos
Deus te faça feliz!" como fala dêle, sua filha, ltala Gomes:
Incumbido de orgunizar o poema, ex- "A sorte devia torturar sempre o cora-
truido da novela, o poeta ParD.vicini, desco- ção meigo e boníssimo do infeliz maestro em
nhecendo em absoluto os costumes e a his- suas maiores afeições, Quando Mário adoe-
till'ia do Brasil, intl'oduzÍll por sua conta gl'U- ceu gravemente, Carlos Gomes abandonou
"es transformaçôes no assunto. Dizemos gra- todos os seus intel'êsses e levou o filhinho, a

- 202-
Cenário do 3.' ato do "Guarani", tal como foi apresentnoo 1)(, Teatro Scalt\. de '[iJ'i.(,

conselho médico, para um lugarejo nas mOll- o falecim(,lllo de Mário foi um gulpe murtal
tanhas, a mais de cem ·léguas de Gênova, para a sensibilidade doentia, jú tão experi-
onde esperava que os bons ares restituíssem mentada, de Carlos Gomes, Lembro-me de
a saúde ao menino, mas em vão. Mário fa- um grande quadro com o retrato de Mário,
lecera, apesar de todo o desvêlo e carinho sob vidro, colocado sempre ao lado do piano,
dos pais, a 3 de março de 1878. Tinha qua- no seu "studio", que meu Pai beijava, reli-
tro anos de idade. giosamente, com os olhos rasos de lágrimas,
Naquela aldeiazinha, perdida entre os tôdas as manhãs, ao levantar, e à noite, ao
montes do litoral da Ligúria, não havia quase recolher-se, eomo se se tratasse de uma ima.
recursos. Tudo era grosseiro e muito primi- gem san ta!"
tivo, repugnando ao maestro colocar o ido- Alanceado pelo golpe brutal, decidiu o
latrado filhinho no tôsco caixão de madeira, artista abandonar a casa, plena de recorda-
que lhe haviam fabricado os campônios, as- Çiões do ente querido, Deixou Milão e foi
sim como não admitia a idéia de abandonar residir em Maggial1ico, aldeia próxima ao
o seu Mário no cemitério daquela longínqu8 lago de Lecco, onde êle havia adquirido um
região montanhosa", Era um desespêro! pequeno sítio, a que dera o nome de Villa
Sem querer esperar a diligência, a custo con- Brasílea , Nela, Carlos Gomes pl'OCUl'OU criar
seguira um carro e veio assim o pobre maes- um ambiente brasileiro, enchendo as suas
tro do Monte Ligure até Gênova, estreitando dependências com elementos da fauna e da
de encontro ao seu coração amargurado o flora de sua terra: papagaios, araras, saguís, .
cadaverzinho do filho durante todo o tempo de mistura com palmaceas e tinhorões di-
que durou o trágico fi interminável trajeto, versos, Mesmo aí, todavia, não pôde êle en-
do alto da serra até o cemitério de Staglieno, contrar paz' e h'anqüilidade, As dificuldades
em Gênova, onde está sepultado meu irmão, financeiras que o cercavam e que nunca dei-

- 203-
xaram de o acompanha\'; forçaram-no n aban- bl'oso.-quenão pel'doa suas vitimas. ('ol'Toin-
dunar, em pouco tempo, aquêle recanto apra- lhe a garganta, de maneira atroz.
zível e que tanto lhe fala\'a à sensibilidade. Vindo para sua terra natal, hospedou-se
Yenoeu tudo, pois a falência cru quase total. na Côrte, no Grande Hotel, na rua Marquês
Voltou a Milão, com os manusc.ritos de de Abrantes, onde hoje se encontra a Casa
"O Escravo ", e foi residir em um velho dos Expostos. Quando intentou montar a
quarto andar, da Galeria Vitorio Emanuele. nova ópera, esbarrou em sérias dificuldades.
Trabalhou nêles continuamente, tendo produ- A emprêsa Musella, que explorava o Teatro
zido paginas belíssimas, no ambiente acolhe- Lírico, não possuía recursos suficientes para
dor da Vila Brasilea. Talvez tenham sido o empreendimento. O Govêrno, por sua vez,
compostas lá a famosa "Alvorada", o "Ciel não estava lá muito folgado e não poderia
deI Paraiba", o "Sogni <1'amore" e o magní- arcar sozinho com as suas despesas.
fico bailado dos "Tamoios". Foi então que um gl'UpO de amigos e ad-
O ano de 1889 foi um dos mais assi- miradores, tendo à frente a figura do critico
naladamente desditosos na vida de Carlos Oscar Guanabarino, decidiu fazer uma subs-
Gomes. crição popular inic.iada pela Princesa Isabel,
De passagem por Milão, pouco antes do com a quantia de um conto de réis. :E:sse
raiar daquêle ano, último da monarquia, o gesto principesco mereceu a gratidão do ma·
imperador D. Pedro II adoecera de maneira estro, que lhe dedicou o "Escravo", em uma
inquietadora. O maestro, seu admirador e carta digna e cheia de reconhecimento. Ter-
amigo gratíssimo, muito se deixou abalar, minava assim: "Hoje, 29 de julho, dia em
desvelando-se, com a exuberância que reve- que o Brasil saúda o aniversário da Augusta
lava em todos os transes sentimentais, pela Regente, levo aos pés de Vossa Alteza êste
saúde do monarca. "Escravo ", talvez tão pobre como os milha-
Em janeiro, d. Adelina, a esposa aman- res de outros que abençoam a Vossa Alteza
lissima e dedicada, adoeeia, por sua vez, na mesma efusão do reconhecimento com
para morrer dentro de POUc.os dias. Carlos que sou de Vossa Alteza Imperial, súdito e
Gomes entregou-se a incontido desespêro, reverente". Quase dois meses depois do ani-
pois, ainda por cima, sua filhinha HaIa guar- versário da princesa, foi o "Escravo" levado
dava também o leito. Nêsse período de lutas à cena, na noite de 27 de setembro de 1889.
intimas e de acerbos sofrimentos procurava Cantado pelo soprano Peri, pelo tenor
ele sobrepujar-se a si mesmo, trabalhando, Cardinali e pelo barítono De-Anna, o novo
de contínuo, nas paginas imortais de "Lo trabalho ele Carlos Gomes colheu os mais
Schiavo" . justificados louros, valendo como uma con-
Quando a obra jó. se encontrava pronta sagração definitiva dos seus méritos de ar-
para os ensaios - pois devia ser montada no tista-compositor. Logo na noite da estreia. o
Teatro Comunale de Bologna-- novas con- artista mereceu do imperador o gl.1au de ~ol'~n-
trariedades vieram torcer os planos do ma- de dignitário da Ordem da Rosa.
estro. Questões com o libretista Paravicini
. A critica teceu-lhe os mais largos encô-
oriundas da inserção, no segundo ato de un~
IlUOS e o público delirou em tôdas as passa-
hino à liberdade, fizeram com que' Carlos
gens da ópera.
~ol11es enrolasse os cadernos de musica, 1'e-
tmllldo a ópera dos cartazes. Ainda nessa temporada, foi o "Escravo"
cantado em São Paulo, merecendo a mesma
Desgostoso com as desditas, os infortú-
en tusiástica acolhida.
Jlios e as ingratidões com que o destino lhe
eum~lava os últimos anos, resolveu voltar ao h .0 extenso movimento abolicionista que
Br~sll, onde faria estrear o "Escravo". Sua aV,la .pouco abalara o puís, encontrou res-
sau~e,. bastante abalada, fl'aqllejava. Uma sonanCIas concretas na obra de Carlos Gomes,
molesha terrível, insidiosa, já () atormentava e~lquadrand.o-s~ no espirito daquela história
de forma cruenta e incisiva. O câncer tene- SImples. do lIlcho escravizado . Os ab ol'' .
IClOlllS-
tas, alllda com a cabeça escaldando das lutas

- 204-
A "ViHa Brasiléa", casa de Car-
los Gomes em Magg!alll - Itália,
(Do llvro de Itala Gome~ Vaz de
Carvalho)

travadas, dos embates longos c acirrados, Inflando de satisfação e orgulho via ele, di-
exultaram e apontaram logo o "Escravo" co- ante de si, uma esplêndida estrada, reman-
mo a "ópera da Aboliç'ão". Carlos Gomes sos a e doce, por onde poderiam deslisar com
passou a ser o "Maestro da Abolição", como serenidade e paz, os seus últimos anos de
eonta André Rebouças, em suas memórias. vida.
Festejado, animado pelo carinho do seu Foi nessa disposiçào de espírito que re-
povo, consagrado pela crítica, o maestro calll- solveu dar Ulll pulo a Campinas, onde, em
pineiro mereceu ainda do imperador a pro- companhia do "mano Juca", pudesse descan-
messa de o nomear, naquêle ano mesmo, para sar um pouco, pois a moléstia futa] cada vez
o cargo de diretor do Conservatório do Rio. mais se agravrt\"H,

() 1m e a imortaftoaoe

I NFELIZMENTE para êle corria o ano ele provincia, soube da queda do império, dn
implantação do novo regime republicano e
1889 ...
Era o mês de novembro, aquele em que do conseqüente banimento dc D. Pedro, scu
o movimento surdo e irreprimível do repu- amigo e seu protetor.
blicanismo iria explodir, enfim, para a an n- Carlos (;'omes não era político, nem nUll-
lação da monarquia no Brasil. ca se deixara prender llas teias de nenhum
E explodiu ... Xo dia seguinte ao da sua sentimento pal,tidaristn. DedicH"tHil' ii arte,
chegada a Campinus, Carlos Gomes teve co- vivia para ela. Seu caso, no entanlo, lão es-
nhecimento de tão fatídicas no lidas que, de pedal, lão p al'tíeul ar, crêl apenas o de UIll
ccrto modo, faziaIl1 ruir completamente 05 súdilo dileto do império, amigo da familh
sCUs sonhos de eonqnisln e bcm-és ta!' . Foi imperial, tl' quem devia inúmeros favores ('
eOIll lágrimas llOS olhos que, mergulhado na 11 qut'1ll não podia Sl'r ingratu, ('H) hipMes('

205 ~..
seus escrúpulos morais, declarando-se impo-
tente para a tarefa: "Seria aceitar o eterno
castigo de me ver sempre, por dentro, a'man-
cha da ingratidão".
Não o compreenderam, porém, assim os
homens daqueles primeiros tempos da repú-
blica. Em s~~eegneira apaixonada, tudo o
que não fôsse "puramente" republicano de-
via ser ','.cOmbatido, hostilizado violentamente.
·No bojo dos movimentos revolucionários
criam-se sempre êsses sentimentos de fla-
grante injustiça que, não raro, servem para
denegrir e tornar menos brilhante o esplen-
dor da vitória.
Carlos Gomes foi relegado, expl'obado c
a.té negado! Não faltaram despeitados que se
aproveitassem da ocasião para investir eles-
Aealment~conh'll a sua glória inconfundível.
Acusaram-no de ser filiado a uma escola "de-
cadente": a arte lírica italiana! O wagneris-
mo andava em moda e o esnobismo reinante
afetava desprêzo pelas velhas fórmulas. E o
maestro foi afastado das preocupações dos
dirigentes ...
A ültima residência de Carlos Gomes, em :Milão
(Rua Morone, n." S). A nomea<;:ào paru a direçào do Conser-
vatório não se positivou; foi nomeado o ma-
alguma. Sua formação espiritual mantinha-o 'estro Leopoldo Miguez. Tal coisa alanceoü
firme na linha dessa gratidão e nada neste ,de verdade o coração do yelho lutador.
mundo poderia obrigá-lo a esquecer, de um Justamente naquela época havia êle re-
momento para outro, os obséquios de que cus ado convites para dirigir o Conservatório
fôra alvo, para aderir, na undécima hora, aos de Música de Yeneza e de Pesaro, só para
inimigos dos seus protetores. não perder a nacionalidade brasileira ..
Tais sentimentos, ditando-lhe a única 3,ti- Agora, desprezado e sem recursos (pois
tude aconselhavel, servem para enaltecer a as representações do "Schiavo" não lhe ha-
límpida superfície do seu caráter e a lidima viam dado quase nada) via apenas uma so-
generosidade de sua alma. lução: voltar à Itália. E foi o que fêz, em
Era um artista, um grande artista em 1890.
tôda a extensão do têrmo; como artista não Prometeram-lhe uma pensão do Govêrno
poderia cuspir na mão dadivosa, a exemplo que nunca foi votada. Residindo em Milão,
de outros que a conspurcaram depois de em uma casinha, na rua Morone n.O 8, de
"tantos beijos nela pôr outrora ... " cujas janelas êle avistava as frondes e as ra-
Tão profundo cra o reconhecimento de marias do Museu Trivulzio, Carlos Gomes
Carlos Gomes pelo scu protetor que, mais atirou-se ao trabalho, produzindo, em três
tarde, .iá em Milão, iria recusar-se a compôr \nêses, uma nova ópera: "Condor", sôbre
o Hino <la Hepública, a convite do Marechal :um libreto de Mário Canti, encomendada pelo
Deo(]ol'(), que lhe mandara doar. pelo 1mba- :Scala de i\IiIão. Trabalhou muito, não obs-
lho, a (llwnlin dc vinle conlos d(· l'éis! Pobre ~lallte () lllaldilo cúnccr que operava-sua des-
e nt:cessitad(), nem mêS!l10 assim pôde venceI' _,_ Jtruição inexorável.

. ,
o "Condor" foi estreado na noite de 21
de fevereiro de 1891, no Scala, e representou
mais um autêntico sucesso para o seu autor,
Elogiado pela critica italiana, figura, sem
dúvida, como o canto do cisne de Carlos
Gomes, Nela, o maestro como que se trans-
mudou, atIotando processos novos, O próprio
"II Secolo" iniciava assim un1a de suas apre-
ciações: "O Gomes do "Côndol''' já não lem-
bra o Gomes de suas óperas anteriores, ou
apenas transitoriamente. Êle suavizou-se,
modernizando-se, e, assim, o ilustre maestro
aceita cm parte o sistema dos motivos con-
dutores (os "leit-motif" de ·Wagner) e um
dos principais temo-lo imediatamente no pre-
lúdio". Mais tarde, Carlos Gomes mudou o
título dessa ópera para "Odaléa", após haver
introduzido na mesma, uma cena de bailados,

De 1892 em diante, isto é, pelo espaço de


três anos, Carlos Gomes viveu o último pe-
ríodo amargurado de sua existência. Foi êsse
talvez o mais duro, o mais alanceador por
que passou o desditoso artista. o maestro, em seu último retrato
Custa a crêr que a inveja, a ignorância
oficializada e a intriga organizada chegas- lombo". Foi sua última composiç.ão. Desti-
sem a ponto de fazer demonstrações tão nado às comemorações do quarto centenário
cheias de torpeza e mesquinhez, capazes de da descoberta da América e composto em
causar vergonha a todos nós, brasileiros de forma de oratório, não encontrou, por parte
hoje, quando revemos tais períodos malsi- do público brasileiro, o interêsse devido. Foi
nados. até recebido com indiferença hostil.
Carlos Gomes era a maior figura da Arte E' no entanto uma peça de alta signifi-
musical no Brasil. Assim o julgavam os meios cação, sendo de notar o "Hino a Fernando
europeus. Pairava alto, em plano superior, de Espanha", a descrição da "Tempestade",
enquanto ca em baixo, as eternas figuras da e o canto final. Interpretado por massas co-
politicalha procuravam solapar-lhe a estru- rais e orquestra, era, sem dúvida, gênero
tura imensa, mordendo-lhe os alicerces na novo para o Brasil. Não o compreenderam ...
intenção, sempre vã, de derrubar o edifício ... Desiludido e já sentindo as derradeiras
Não o conseguiram, porém, porque Carlos arremetidas da moléstia, logrou, após longa
Gomes tinha larga projeção para o futuro e peregrinação pelas antecâmaras ministeriais,
hoje o seu país e os seus patrícios não per- ser designado para integral' a Delegação Bra-
dem ocasião alguma de render ao mestre as sileira à Exposiç'ão de Chicago. Disseram~lhe
homenagens de sua admiração, em um es- (quem o disse foi Serzedelo COl'rêa, então
fôrç'o sublime para redimir os CI'I'OS dc que ministro da Justiça) que seguisse para Milão,
êle foi ,'ítima. a fim de aguardar as instruções definitivas c
Naquele ano de 1892, Carlos Gomes fêz o crédito para as despesas de viagem. O
as últimas anotações em um longo poema maestro foi; ·mas, nem (li;instl'uçõ(>s nem ()
slufônico, em quatro partes, intitulado "Co- el'édito apareceram ...

- 207-
Em vão êle escreveu cartas e mais car- tadoras. Suicidara-se o seu velho amigo ma-
tas. Em vão se dirigiu aos amigos, às auto- estro Mancinelli e o Teatro Politeama fôra
ridades. Nada! Quase sem recursos, resolveu destruído por violento incêndio. Na fogueira
~ssim mesmo ir aos Estados ,Unidos, por sua arderam os cenários e o guarda-roupa da
própria conta. ópera "Condor", bem como todo o material
Foi. Lá chegando esbarrou com a indi- da orquestra. Seria necessário preparar no-
ferença revoltante dos seus patrícios, mem- vas partituras, recopiar tudo, arrostando as
hros da comissão. despesas dec:orrentes dessa imensa traba-
Com exceção de um dêles, o dr. Julio lheira.
Brandão, os demais tudo fizeram, dentro da Seu estado de ânimo, em momento tão
inutilidade hostil dos incapazes, no sentido de doloroso como aquele, está estereotipado no
d.enegrir, de subestimar o valor incontestável bilhete, remetido por êle ao amigo Salvador
do artista. A muito custo, consentiram em de Mendonça: "Conta-me entretanto o que
organizar um concêrto vocal e instrumental há, (referia-se às suas solicitações de um
para comemorar o dia da nossa Indepelldên- emprêgo no Brasil) certo de que estou proBto
eia, a 7 de setembro de 1893. Não lhe pérmi-. a qualquer desengano, vivendo de há muito
tiram sequer fi montagem de uma '9pera. tempo afeito tlS contrariedades do palco do
Mesmo assim, o concêrto foi uma consagra- teatro e do palco do mundo!... Tenho até
ção, por parte do público e da critica .~r:;'mêdo de algum golpe da fortuna, porque
O despeito das figuras apagadas da Co- o dia em que eu fôr feliz... nesse dia,
missão não ocultou seus propósitos de vin- arrebento como "porunga" cheia d'água no
gança. Chegaram a acusá-lo de haver exce- fogo!"
<lido as verbas normais, aos magros orça- Em princípios de 1895 seguiu para Lis-
mentos votados, intimando-o a pagar absur- boa, a fim de assistir à representação do
damenle aos- cofres púhlicosa quantia de-mil HGuarani". Em pleno teatro, em um dos in-
e tantos dolares!. . . tei'valos, recebeu, então, a' comenda de São
Era positivamente a mesma vi«-cl"llcis Tiago, cOlH:edida pelo rei D. Carlos.
que haviam imposto a Caxias e outras figu- Dali voltoü ao Brasil, desembarcando em
ras de nossa história. Belcm, do Pará. Lauro Sodre, goYel'l1adol' do
Desgostoso, com a alma lurvada de ne- Eslado, estudava, na ocasÍt'ib, os planos para
gros pesares e o corpo combalido pela enfer- a fundação de LlIl1Conservatól'io de Música
midade, voltou à Europa. Não podia penl1a- e yiu em Carlos Gomes a personalidade in-
necer 110 Brasil, especialmente naquele ano subslituível para dirigir o mesmo, imprimiu-
em que a revolta de Custódio de Melo con- do,lhe orientação condigna.
yulsionava a capital. X a Itália, golpe mais Couvidado }Hll'a o cargo, o maestro acei-
profundo o esperava: seu filho Carlos André , lou, com jubilo, poi~ aquilo satisfazia. sobre,
o único varão vivo (lue lhe restava, estava modo suas velhas aspirações de poder ser
condenado. Insidiosa tuberculose corroía-lhe útil ao seu pais, servindo aos seus patrícios,
os pulmões de 1110(,"0 forte, g'uapo c inteli- embora acusado pelos niesmos de ser mais
gente. i taliauo do que brasileiro ...
Seu suaifício de pai foi suhlime, a fim Lauro Sodn'~ foi lima figura de exceção,
de poder mandar o rapaz para Hill elima mais llO grupo dos primeiros dignitários da repú-
J)l'opírio, para os montes de \'nltelillH. Ven- blica. 'Viu em Cnrlos GOllles o artista excelso,
deu, empenhou, desfez-se de tndo o que po~­ o Jlleslre cOJlsagrado, o gênio incontrastável
suia. Depois. pediu dinhei ro, endividou-~e, . e soube colocar sua admiraçuo acima das
embora insolvúvel e sem perspectivas. En- [ol'lllenlas de picllinhas e despeitos, desenca-
quanto isso, o cànc('r dilacerava-lhe os teci- deadas sóhre êle.
dos da garganta. O artista, reconfortado e cheio de satis,
Naquele ano de l~I:H as nolicias que lhe façào, reembarcoll para Milão, a fim de li-
chegaram do Rio eram, p()!' s\lil "C'Z, dt'salt'll' qLtiilnr Sl'ÚS Ilegócios, pôr -H sua ".ida \'ill .. din
e voltar, em seguida, para ocupar o cargo de
diretor do Conservatório de Música do Pará.
Mas o destino, conspirando eternamente con-
tra êle, mal lhe concedeu esta última satis-
fação.
O câncer, o pavoroso câncer, em adian-
tado grau, já não lhe permitia uma alimen-
tação regular. Mal podia engolir... Seguiu
para uma estação de cura em Salso Maggio-
re. Lá permaneceu, porém, oito dias apenas.
Regressou a Milão, declarando: - "Se meu
mal é de morte, quero morrer no meu Brasil
e não há curas que me detenham aqui".
Despediu-se dos seus filhos, Carlos An-
dré e HaIa e seguiu, de via-férrea, para
Lisbôa.
Ali chegando, abateu-se-Ihe o organismo
de forma assustadora. Foi obrigado a sujei-
tar-se a uma intervenção cirúrgica, infeliz-
mente, sem grandes resultados .
. Assim que se sentiu melhor tomou pas-
sagem no vapor "Obideme" e singrou as
águas do Atlântico, rumo ao seu amado Bra-
sil, onde chegou a 14 de maio.
Entrou logo a trabalhar com o entusias-
mo e o desvêlo que ainda lhe eram permiti- Monumento de Carlos Gomes, em Campinas, obra magis-
tral do escultor Rodolfo Bernardelli
dos pelo sofrimento crucial a que chegara.
Exgotava-se dia a dia, com a organiza-
O govêrno de São Paulo vota-lhe uma
ção dos cursos do Conservatório e a preocupa-
pensão mensal de dois contos de réis. O ma-
ção constante que lhe davam os filhos, na
estro agradece essa prova do seu Estado na-
longinqua Itália. Não possuía recursos com
tal com um sorriso triste. E é, talvez, sor-
que pudesse continuar a pagar as anuidades
rindo um sorriso imáculo de perdão e de
de Carlos André, doente nas montanhas, e
esquecimento que êle expira, já aos sessenta
de HaIa, interna em colégio de Milão. Ainda
anos, na noite de 16 de setembro de 1896.
uma vez a generosidade do presidente Lauro
Seu espírito libra-se no espaço e, lá do alto,
Sodré veio em seu socorro, em uma demons-
com certeza, à vista dêsse imenso pais que
tração de verdadeira amizade.
lhe serviu de bêrço e que tão mal lhe com-
Ao raiar do ano de 1896, o estado de
pensou a obra, em vida, tenha êle sentido
Carlos Gomes era grave, gravissimo. Sua
subir a orquestração opulenta e magistral
vontade, tão experimentada, já não prevale-
de tôdas as suas óperas, doadas pela fecunda
cia; já não podia sobrepor-se à devastação'
inspiração de seu gênio à consagração da
pavorosa do câncer.
verdadeira música do Brasil.
O relato do sofrimento do grande artista
repercutiu como nota dolorosa por todo o
país. A magnitude do seu martírio fêz caIar
a bôca dos despeitados e dos inimigos. Es- Por mais adverso que lhe tenha sido o
boça-se o primeiro movimento de simpatia destino, foi-lhe assim mesmo poupado um
coletiva pela figura do genial compositor. último e irremediável desgôsto: a morte do
Começam a fazer-lhe justiça. Mas... ai! é filho, Carlos André, que o seguiu no túmulo,
tarde demais! poucos meses depois ...

- 209-
o pais inteiro,· ao ter conhecimento da grande filho daquela cidade do interior pau-
morte de Carlos Gomes, reconheceu, então, lista, no pedestal da estátua ali erguida, uma
que havia perdido o seu maior artista, Tri- das obras primas sai das do cinzel de Ber-
butaram-lhe as últimas homel!agens, Para nardelli ,
° Para foi enviado o navio "Itaipú", mais São Paulo elevou à glória de Carlos Go-
tarde rebatizado com o nome de "Carlos Go- mes um dos mais lindos e significativos mo-
mes", a fim de transportar para o sul os numentos da sua capital, no vale do Anhan-
restos mortais do compositor, gabaú, oferecido pela colônia italiana,
Sempre que o transporte mortuário to- O Centro de Ciências, Letras e Artes de
cava em algum pôrto recebia honras fúne- Campinas organizou, mais tarde, o "Museu
bres bastante significativas, Chegando ao Carlos Gomes", onde se exibem muitos au-
Rio, os despojos foram expostos à visitação tógrafos do maestro, ao lado do famoso piano
pública no Instituto Nacional de Música, en- de concêrtos, instrumento que pertencera a
quanto, na igreja de S. Francisco de Paula, sua espôsa e que foi seu companheiro, seu
realizavam-se exéquias solenes, confidente, relicario a que êle confiava os
Da Capital seguiu o ataúde para Cam- seus mais intimos sofrimentos e os seus me-
pinas, onde até hoje repousam os ossos do lhores momentos de exaItaç'ão artística,

• • • •

--210 -
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tiO BRASIL "\ .~~.


.REPU&LICAnO'" ,I
g{ inquietação oas a8e{8as

OM o final da trajetória de mente novo que bania os velhos processos de


Carlos Gomes, encerra-se inspiração européia e se embebia nas fontes
também o ciclo da mu- da própria terra, ponto de partida de sadio
sica no Brasil, ao tempo e pujante nacionalismo, daquele que procura
do nosso segundo e ulti- - çomo tão bem precisou o grande mestre
mo imperador. espanhol Manuel de FalIa, recentemente fa-
Instaura-se a era republicana ... lecido - "retirar vivos das fontes naturais a
E' verdade que alguns compositores, men- sonoridade e o ritmo e utilizá-los na sua subs-
cionados daqui por diante, nesse período de tância e não pelo que oferecem de pitoresco".
regime mais democratizado, nasceram e exer- Foi, portanto, na fase republicana que
ceram grande parte de suas atividades no se operou tal movimento. A esteira lumino-
Brasil imperial. Só firmaram, porém, as di- sa, traçada pelo maestro campineiro, deixou
retrizes definidoras de suas obras depois do larga animação no ambiente artístico da ca-
golpe de 1889. Especialmente os precursores pital e deter:r.ninou, sem duvida, maior emu-
da nova fase nacionalista. lação e estímulo nas vocações nascentes.
Porque foi na Republica que ltiberê da Seus êxitos retumbantes e a própria consa-
Cunha, Alexandre Levy e Alberto Nepomu- gração de suas obras acenderam o ânimo da-
ceno concretizaram, em obstinada luta e com queles que procuravam o caminho da perfei-
ção. O clima musical do Brasil entrou em
inspiração própria, os fundamentos daquilo
franca ebulição.
que seria mais tarde a estruturação do nosso
nacionalismo musical. Nos teatros, as companhias líricas se
No dia em que Deodoro desembainhou sucediam, apresentando novos elementos e
a espada e deu como inaugurada a fase re- nova orientaç'ão na escolha dos repertórios.
publicana, Itiberê contava quarenta e um Na côrte e nas províncias repontavam, a
anos de idade, enquanto Levy e Nepomuceno miude, numerosas sociedades musicais. Con-
andavam. aí PE:;OS vinte e cinco, cada um ... certistas notáveis procuravam aqui exibir-se,
Com· êles surgiu, de fato, a aurora da chegando mesmo a fixar residência no Bra-
nossa musica:-: Soprava um espírito inteira- sil, nele permanecendo e nele expirando.

- 213-
De forma que, quando a República se poldo Miguez e o próprio Alberto Nepo-
implantou, o ambiente musical brasileiro era muceno.
o mais promissor que se poderia desej ar. Outra agremiação de valor incontestável
Foi então que a música principiou a im- era '-a "Sociedade de Concêrtos Clássicos",
pôr suas diretivas nacionais ... fundada em 1883 por ArtUr Napoleão e o
violinista cubano José White. Desapareceu,
também, nas'çinzas do império, pois era sub-
venCionado pela bôlsa particular da princesa
Ainda nos tempos do Império, ou me- Isabel ... - <":~::.:~)'
-~ . -- ,,L: •
lhor, na segunda metade do século dezenove, .No Rio, como se vê, o ambie~(-ese agl-
intensa era a atividade de músicos e musi- tava- favoràvelmente, proporci~9.a1}'dp a cria-
cistas, isoradamente ou integrados em asso· cão de novas sociedades. 'Dentrêêstas, cite-
dações diversas. O "Clube Mozart", por ~~lOS sucintamente a "Filarmônica Fluminen-
exemplo, fundado em 1867, no Rio, realizou se", o "Grêmio Musical", o "Clube Carlos
numerosos concêrtos que contaram com o Gomes", o "Clube Ricardo Wagner", o "Con-
concurso de virtuosi e cantores diversos: John gresso Musical Flôr de São João", o "Recreio
J ene White, violinista inglês, Paulo Faulha- de Botafogo", a "Sociedade Coral Alemã",
bel' e Cernicchiaro. Êste último escreveu, o "14 de Julho", o "Clube Rossini", o "Clube
mais tarde, uma volumosa e exaustiva "Sto- Schubert", o "Clube Weber", a "So~~dade
ria della Musica nel Bt'asile", publicada em Alemã de Música" e algumas outras.
Milão.
Em sua própria nomenclatura sentem-se
Mais afamado do que o "Clube Mozart"
as tendências dos seus organizadores': uns,
foi o "Clube Beethoven ", fundado, também,
amantes da música de Beethoven, outrQs; da
no Rio de Janeiro, à rua do Castelo 102, em
de Wagner, admiradores de Rossini, ':Çarlos
1882, por um violinista, filho de inglêses:
Gomes, Weber, Schubert; aficionados cÍãi)11ú-
Kinsman Benj amin. Mais tarde instalou-se,
sica ita Uana ou da alemã.
na Glória, em uma bela sala de concertos.
Êsse Kinsman Benj amÍn era, de fato, pro- O progresso era portanto evidente, con-
pugnador emérito da sociedade, exercendo substanciado, especialmente, nas atividades
múltiplas atividades. Dirigia o clube, orga- do Conservatório de Música, de-vez-que a
nizava os concêrtos, exibia-se em recitais Í;1- antiga Capela Imperial já havia perdido sua
dividuais ou no quarteto, organizado por êle expressão inicial e seu indiscutível prestígio
mesmo, cujos demais integrantes eram, em dos áureos tempos de D. João VI e Pedro L
períodos sucessivos, Cernicchiaro, Gravestein, Isto quanto ao Rio de Janeiro. Nas pro-
J. Cerrolle, B. Niederbuger, Otto Bech, F. vincias, a atividade também não era peque"
Bernardelli e C. Noli. Como se vê, todo êsse na. Para que se tenha uma ligeira idéia dessa
amontoado de nomes traía as respectivas efervescência até nos mais recuados recantos
origens italianas ou alemães. do império, leia-se a enumeração de Renato
Muitos brasileiros surgiram e se exibiram de Almeida:
também 110 "Clube Beethoven ", cujos pro- "Nas províncias, diversas associações
gramas eram organizados com as melhores musicais surgiam. Em São Paulo, em 1883,
obras, não só do patrono espiritual da asso- Alexandre Levy fundava o "Clube Haydn",
ciação, como de Mendelsohn, Wagner, Mo- que durou até 1887, realizIDíà6'nuinerosos
zart, Bach, etc. concertos de câmara e sinfônicos, muito con-
O clube existiu enquanto existiu o im- correndo para despertar naquela cidade o
pério, dissolvendo-se logo após a proclama- gôsto pela música clássica, tendo executado
ção da República. Pelo seu salão de concêr- obras de Haydn, Schumann, Schubert, Men~
tos passaram nomes como os de Cardoso de delsohn, Saint-Saens e outros. Possuía o
Menezes, Artur Napoleão, Bevilaqua, Frede- "Club Haydn" um quarteto, no qual se fize-
rico Nascimento, Carlos de Mesquita, Leo- ram ouvir, alternativamente, Julio Bastiani,

- 214 --
Santana Gomes, G. Zuch, Antonio Leal J u- nessa provincia, um ambiente artístico digno
nior, Francisco Régis, Charles Hildebrand e de nota, tanto que Castro Alves, em 1867,
H. Supakoff. Depois o violinista Julio Bas- escrevia: "Vive-se aqui de poeSia,1l111Sicu,
tiani, que viera a São Paulo, como spala da teatro, discussões literarias ... " Em Pernam-
Companhia lírica ·P. Musella, em 1884, orga- íbúco, os Clubes: "Carlos Gomes", que man-
nizou o "Quarteto Paulista", com G. Bastiani, i teve orquestra e cursos, a "Charanga de Re-

1.0 violino, A. Martini, viola, Guido Rocchi, cife" e o "Ateneu Musical",. No Rio Grande
violoncelo e A. Pasquale, 2.° violino, que deu do -Sul; as Sociedades Musicais "Sete de Se-
um grande número de concêrtos sempre com tembro", "União Brasileira" e "Rio-Gran-
o melhor êxito. Outra sociedade paulista se" que, continuando o e~fôrs'o da "Socieda-
digna de menção, que substituiu o "Club de Musical Pôrto Alegre",fimdada em 1856,
Haydn"-, foi a "Sociedade C~ralC-lube Men- por Joaquim José Mendanha, tiveram uma
delsohn ", fundada pelo violoncelista H. Stu- ponderável ação cultural nessa província.
pakoff, que deu o "Freischutz", de Weber, e Mais tarde, já na República, fundou-se o
"Alexandre Stradella", de Flotow, dirigidas "Clube Haydn", ainda existente. E, na pro-
por Alexandre Levy, em 1887 e 1889. Ainda vincia do Rio de Janeiro, surgiram a "Socie-
em S. Paulo, houve os "Clube Mozart" e o dade Campesina", de Nova Friburgo, a "Re-
"Musical 24 de Maio", além dos "Clubes Men- creio Magéense", em Magé e a "Sociedade
delsohn", em Taubaté e Capivari. Em várias Fil'Harmônica Niteroiense", fundada em
cidades do interior se criavam filarmônicas 1879, cujos diretores de harmonia eram Vi-
e orquestras e ficaram famosas, em Campi- riato Figueiredo da Silva e Jerônimo Emi-
nas, a banda de Manuel José Gomes, em liano de Queiroz, e que realizou excelentes
Tietê, a de Eduardo Lôbo, e em França, a concêrtos; sem falar nos do Hotel Bragança,
"Orquestra Tristão", organizada por Joa- em Petrópolis, e nas audições que, em seu
quim Tristão de Almeida e dirigida pelo vio- palácio nessa cidade, promovia a Princesa
linista e compositor Isauro Bozoni, diploma- Isabel, nos quais tomou parte por vêzes Ar-
do pelo Real Conservatório de Roma. Em tur Napoleão. Além disso, os centros de ini-
Santos, tenho notícia das seguintes socieda- ciativa particular se multiplicavam e, em
des musicais, por volta de 1875: "Luso-Bra- Curitiba, por exemplo, o compositor e vio-
sileira", "Recreio Musical", "União de Ar- linista paranaense João Manuel da Cunha
tistas" e "Eco Nacional". Na Baía, funda- promovia a audição de música de câmara
va-se a "Sociedade Euterpe" e as "Socieda- de Haydn, Mozart e Beethoven e, em Per-
des Filarmônicas "Terpsicore", "Minerva", nambuco, Vítor Nepomuceno era um grande
"Orfesina" e "Minemósina", havendo, então, divulgador da música clássica".

Çjfauco Vefasquez e g{rtur :Jfapofeão

C OMO se vê, o ambiente musical dos úl- A corrente dêsses mestres que para aqui
timos decênios do império era dos mais fa- derivava trouxe, sem dúvida, uma notável
voráveis. Seu impulso crescente e' animador contribuição ao desenvolvimento do ensino
trazia constantes revelações de artistas bra- artistico entre nós. As sociedades musicais, as
sileiros, educados e orientados pelos que vi- filarmônicas na Côrte e nas províncias eram,
nham de centros estrangeiros mais adiantados. não raro, fundadas e dirigidas pelos violi-

--- 21Cl --
Paris, Madrid, etc. Tanto Berlioz como o
próprio Chopin fizeram-lhe elogios francos,
prognosticando-lhe futuro radioso como vir-
tuose do piano. 111

De volta de Nova York exibiu-se em uma


série gloriosa de concêrtos, tanto em sua pá-
tria como em algumas repúblicas da América
Central e do Sul.
Vindo para o Brasil aqui também reali-
zou concêrtos, sendo anotado pelas crônicas
como o de maior relevância o de 1869, no
tea tro Provisóri o, com 650 execu tan tes !
Entre as várias peças apresentadas in-
cluiu a "Marcha Solene", na qual intercalou
o hino nacional brasileiro, executado ante-
riormente em Valparàíso, com o hino do
Chile.
Infelizmente, Gottschalk não pôde re-
petir êsse festival, a despeito dos pedidos
com que o cumularam. Um destruidorab-
cesso no estômago corroía-lhe o organismo.
o compositor americano L. M.· Gottschalk Certa vez, do teatro, onde assistia a uma re-
presentação, foi carregado nos braços de al-
r.istas inglêses, pianistas alemães ou càntores guns amigos para a sua residência.
italianos. Entre êsses estrangeiros, algumas Compôs em nosso país várias peças de
figuras de relêvo aqui se radicaram e per-. valor, além das referidas "Variações". Uma
maneceram até os ultimos dias de sua vida, delas era" A Morte ", por estranha coincidên-
emprestando brilho e luzimento à história da cia, a última de Gottschalk. Ficou inacaba-
musica no Brasil. da, pois o desditoso musicista faleceu no dia
Basta, realmente, a citação de nomes co- 18 de dezembro de 1869, em uma casinha da
mo os de Gottschalk, Glauco Velasquez, Ar- Tijuca, sendo o seu corpo transportado para
tur Napoleão, os irmãos Whitte e o pianista a sede da Filarmônica Fluminense, à rua da
francês Teodoro Ritter, para que se tenha Constituição.
uma idéia da dignificação que certos ele-
mentos estrangeiros trouxeram para a nossa Glauco Yelasquez era um moç'oitaliano,
arte musical naquele bruxolear final do im- nascido em Nápoles em 1884, e moço ficou
pério. sempre pois faleceu aos trinta anos, no dia
O primeiro dêles, Louis Moreau Gotts- 21 de junho de 1913. Seu organismo fraco
chalk, é por demais conhecido pelas exe- desde a meninice, minado por atroz tuber-
cutadíssimas "Vadações sôbre o Hino Nacio- culose, determinou-lhe, sem dúvida, os com-
nal", peça de um brilhantismo raro, fator de plexos de profunda melancolia, de quase
sucesso indiscutível nos recitais de piano. "marasmo intelectual ", como diria Baude-
Guiomar Novais tornou-se notável executora laire ...
- e com justificada razão - dessa obra, vi- Filho de artistas cantores veio para o
br'ante c enaltecedora. Brasil com oito anos de idade, revelando logo
Gottschalk era pianista americano, nas- os seus extraordinários pendores para as ar-
cido em 1829. Atravessando o Atlântico, foi tes em geral: música, pintura e escultura.
para o velho mundo onde estudou, desper- Freqüentou o Instituto, merecendo o carinho
tando a admiração de grandes mestres e os e a atenção de mestres como Francisco Bra-
aplausos calorosos dos auditórios cultos de ga, Frederico Nascimento e outros.

- 216-
numerosa assistência, no teatro São João, pe-
ças de reconhecida dificuldade para piano e
orquestra. Nesse mesmo ano, 1850, realizou
seu primeiro concêrto individual, no teatro
S. Carlos. O entusiasmo chegou ao auge.
O próprio rei D. Fernando fez-se acompanhar
pelo pequeno Artur, cantando a romanza da
ópera "I due Foscari".
No ano seguinte, exibiu-se em Lisbôa,
embarcando em 1852 para Londres, em com-
panhia de seu pai, obrigado a tentar a vida
no estrangeiro. Na capital inglêsa fez-se ou-
vir na embaixada portuguêsa, com relativo
sucesso. Alguns mêses depois seguia para
Paris.
Na cidade luz encontrou o jovem pia-
nista ambiente mais propiciatório, pois não
lhe faltou o interêsse de mestres como o afa-
mado Thalberg Maisart, Henri Hers e outros.
De todos êstes recebeu lições e conselhos pro-
veitosos. A 10 de março de 1853 tomou parte
Glauco Velasquez, em seu üItlmo retrato

Compôs pouca coisa, pois a trajetória de


sua vida foi pequena demais; e o que com-
pôs além de ter cunho exclusivamente fran-
cês, está impregnado daquela tristeza infi-
nita que o abatia e o devorava cada vez mais,
. '

à medida que a enfermidade chegava ao seu


"clímax" .
A presença de Glauco Velasquez no am-
biente musical do Rio deu motivo a grandes
demonstrações de solidariedade e de admi-
ração por parte de mestres, colegas e amigos.

Artur Napoleão era filho de um italiano,


Alexandre Napoleão, nome imposto no batis-
tério em sinal de admiração pelo imperador
côrso.
Emigrando para Portugal, em virtude da
queda do usurpador, ali cresceu o jovem Ale-
xandre, casando-se com D. Joaquina Amália
dos Santos, mãe de Artur. Este nasceu no
Pôrto, a 6 de março de 1843, na rua de Cima
do Muro.
Iniciando, muito cedo ainda, seus estu- " ... i

Artur Napoleao, aos 11 anos de Idade, (Retrato tirado


dos de piano, executou, aos sete anos, perante em DublJn)

- 217-
tad, Ems, Coblentz e Mannheim. Como êstes,
tôda uma série de recitais coroou a carreira
Artur Napoleão,
aos 23 anos (lS66) de Artur Napoleão.- Chegou a apresentar-se
em Varsóvia, em Cracóvià, em Leipzig, em
Viena ...
Tinha ainda ·14 anos quando embarcou
em Southampt~n, no paquete inglês "Cal-
cutá ", no dia 4 de julho de 1857, com destino
ao Brasil. Chegou a 1 de agôsto, hospedan-
do-se no hotel da senhora· Guichard, na rua
dos Inválidos, e realizando, nesse mesmo mês,
no dia 25, o seu primeiro concêrto no Teatro
Provisório. Outros se lhe seguiram no Sâo
Pedro.
Não tardou a partir para o Sul, apresen-
tando-se em Pelo tas e Pôrto Alegre, e esten-
dendo suas digressões às capitais do Uruguai
e Argentina.
No Rio novamente, decidiu voltar á pá-
em um concêrto nas Tulherias, dirigido por
tria, o que fêz a bordo de um veleiro, che-
Auber. No final da sessão, Napoleão III veio
gando após quarenta e um dias de estafante
cumprimentá-lo, dando-lhe doces, enquanto
viagem. Apresentou-se em um concêrto no
n imperatriz Eugênia dava-lhe beijos ...
Pôrto e seguiu, pela sétima vez, para Lon-
Poucos dias depois outro concêrto no dres.
Hers atraía as aten~ões da crítica que o cris- Já a América do Norte se impunha como
mou de "menino prodígio". Logo em segui- o futuro sorvedouro de sumidades. Artur
da, retornou a Londres, onde foi introduzido Napoleão foi atraído, como tantas outras ma-
na sociedade aristocrÂtica, caindo nas graças riposas, pelo fulgor das suas chamas; e no
do mestre Thorold '.Vood, de quem recebeu dia 21 de outubro de 1858 desembarcou em
licões
, , iniciando-se nas partituras de Bach, terras americanas. Dois anos passou êle nos
'.Veber e outros. Sua apresentação aos audi- Estados Unidos, exibindo-se continuamente.
tórios da Inglaterra e Irlanda continuou, sem Em 1860, seguiu para Havana. Diga-se de
interrupção, orçando os recitais pelo número passagem que dificilmente se- encontram ar-
de quarenta. tistas que mais tenham viajado do que Artur
Em dezembro de 1854 ficou decidida uma Napoleão. Era um itinerante íncorrigível,
pequepa tournée pelo continente. Exibiu-se verdadeiro judeu errante da arte pianística.
então em Bruxelas, no teatro'''La Monaie", De Cuba seguiu para Pôrto Rico. Dai,
:j
viajando, em seguida, para a Alemanha, onde pela oitava vez, para a Inglaterra, depois .1
em Berlim deu uma série de concêrtos no Paris, depois Londres, novamente.
"Kroll's Theatre". O mesmo verificou-se em Em 1862, contando ainda 19 anos de ida-
Bonn, bêrço de Beethoven, e en~· Colônia. de, Artur Napoleão aportou, outra vez, no
No ano seguinte já se encontrava de volta Rio de Janeiro, sempre em companhia do pai,
a Londres, apresentando-se no palácio de cris- velho ganancioso e cúpido, responsável por
tal de Sydenham, suntuoso edifício que aca- vários fracassos do filho. Mesmo assim, ao
bava de ser inaugurado. Deu um pulo a completar o rapaz 'a sua maioridade, em 1864,
Paris, por ocasião da exposição de 1855, re- entregou-lhe a metade dos bens adquiridos
tornando à Inglaterra, Escócia e Irlanda, para em comum: mil e tantas libras em jóias.
voltar, ainda uma vez, à cidade luz em 1856. Sozinho e livre para sempre da tutela
Nova série de concêrtos foi organizada paterna regressou a Portugal. Na Europa
na Alemanha, em Metz, Strasburgo e Darms- peregrinou ainda pela Espanha, França e II1-

- 218-
glalcl'1'a, rctornando ao Brasil. l\Ias já cm
1867 achava-se novamente em Portugal.e na·
França, para empreender em seguida sua
quarta viagem ao Brasil. .
Dois anos depois fundava a famosa "Casa
Artur Napoleão", que no gênero passou a
fazer parte integrante da crônica da cidade.
Aos 28 anos de idade casou-se com D. Lívia
Avelar, filha de seu sócio. Em companhia da
espôsa fêz longa viagem de núpcias à Eu-
ropa, visitando vários países.
Não pararam aí, todavia as eternas pe-
regrinações do pianista. Sua vida nada mais
é, como se vê, do que uma extensa cadeia de
tournées, só encerrada com o término da
própria existência.
Em 1900, morreu-lhe a espôsa. Três allOS
depois, porém, Artur Napoleão contraía se-
gundas núpcias com D. Rita Carneiro Leão.
A carreira do notilVel virtuose prosse-
guiu gloriosa e movimentada até os últimos
anos.
Em 26 de agôsto de 1907, o Instituto Ka-
cional de Música consagrou-lhe um festival, '('!timo retr~to ele Artur Napoleão
em comemoraç'ão ao quinquagésimo aniver-
sário do seu primeiro concêrto no Rio de yorita, Um baIlo in maschera, II Trovatore,
Janeiro, sendo homenageado pelo diretol' Al- etc.); outras sôbre operetas, numerosas val-
berto Nepomuceno. sas, fantasias para piano, mazurcas, estudos
Artur Napoleão, que aqui viveu até 1925, e romances. Entre êstes últimos estão os
ano em que expirou, pode ser considerado "Études pOUl' virtuoses" e o famosíssimo
como um dos mais notáveis pianistas. que "Romance em mi bemol". Êste adquiriu tal
perlustraram a história da música brasileira. popularidade que o autor chegou a fazer um
Foi realmente um dos maiores intérpret~s dos arranjo para canto em francês "Adieu, je
mestres do piano (dos nossos inclusive), mui- pars". O tema da letra traduz bem a síntese
to concorrendo para o desenvolvimento da da vida do grande pianista: mal chegava a
cultura musical dos brasileiros. um pôrto e logo vinha o "Adieu, je pars"
Nervoso e atrabiliário, parecia um bone- para outro pôrto distante. Tudo que compôs,
co de engonço quando tocava, tais as maca- no entanto, está enquadrado no espírito da
quices que fazia com o corpo. Possuía, po- música francesa.
rém, uma tendência invejável, brilhantemen- Villa Lobos considera-o, a despeito de
te enérgica. Como compositor, deixou quase ser Artur Napoleão português de nascimento,
uma centena de peças, incluindo fantasias o maior virtuose do piano que o :Brasil pode
sôbre óperas (Lucia de Lamermoor, La Fa- contar em sua história musical.


I:
Ic

• •

- 219-

I
1
movimentação 00 amCiente musicar nos
úftimos quartéis 00 sécufo oezenove

ALÉM dêsses animadores estrangeiros, vi- mes; aproveitando-se da munificência do se-


cejava uma promissora fauna artística. no gundo imperador. Morreu moço, em um
Brasil dos últimos decênios do século deze- naufrágio quando de regresso ao Brasil. Es-
nove. Todos êles, é claro, vieram morrer no creveu várias peças ligeiras.
século atual; suas atividades e o próprio es- Henrique Braga era de Campos, onde
pírito de suas obras situam-nos, porém, no pasceu em 1845. Estudou na Europa e, de
anterior, época em que apenas alguns pre- volta, dedicou-se ao magistério até falecer,
cursores da música brasileira ensaiavam a em 1917.
aurora da nossa emancipação artística. Manuel Joaquim de Macedo, nascido em
Afora êstes, realmente, os demais faziam Cantagalo, no Estado do Rio, seguiu para
música européia. Embebiam-se nas melodias Bruxelas, onde se dedicou aos estudos de
e pr-ocessos dos compositores do velho mun- violino. Em 1871, tornou ao Brasil, sendo
do; filiando-se às escolas dominantes do ou- nomeado para a Capela Imperial. Faleceu
tro lado do Atlântico. Trabalhavam continua- em 1925, sem ter produzido obra de relêvo.
mente e não se apercebiam, sequer, de que Outro que estudou na Europa foi J.
em volta dêles, estava o Brasil, virgem e Araujo -Viana, nascido em Pôrto Alegre, em
desconhecido, pronto a oferecer àqueles que 1870, quando findava a guerra do Paraguai.
para êle se voltassem as primícias de seu Compôs duas óperas: "Carmela" e "O Rei.
ternário, fecundo em ritmos e melodias quen- Galaor", que não revelam absolutamente o
tes e inspiradores. talento do. seu autor. Morreu em 1916.
Esses, portanto, pertencem a um século Henrique Alves de Mesquita, de quem já
que se findou, enquanto os outros, iniciado- falamos por ocasião da ópera nacional, nas-
res de um novo mundo artístico, devem ne- ceu no Rio em 1838. Também estudou na
cessàriamente figurar em plena atualidade Europa, como seus coetanos. Escreveu ópe-
musical. ras e operetas como "Noivado em Paquetá",
"O Vagabundo", "Trunfo às avessas", ·"Gata
Borralheira", "Noite no Castelo", "Ali-Babá",
etc. Morreu como professor aposentado do
Não foram poucos. Anotemos-lhes os Conservatório em 1906.
nomes, sem preocupações de classificação. Dois irmãos maranhenses, Leocadio e
Delgado de Carvalho, nascido no Rio, Antonio Raiol, respectivamente violinista e
em 1872, tinha preferência notória pela ópe- cantor, eram ainda compositores. Havia um
ra. Escreveu "Moema", representada em 1894 terceiro, Alexandre, violoncelista e barítono
e, mais tarde, escolhida para a inauguração que não compunha coisa alguma. Os dois,
do Teatro Municipal, em 1910, e "Hóstia", por seu turno, fizeram apenas músicas ligei-
cantada en'l 1898, além de peças para piano ras. Faleceram em 1909 e 1905, respectiva-
e orquestra. Faleceu em 1921. mente.
Outro compositor de óperas foi Domin- Francisco Libanio Colás era maranhense,
gos José Ferreira, nascido em 1837. Estupou pertencente a uma famiIia de músicos. Dd-
no Conservatório do Rio e escreveu" A Córte xou algumas obras sinfónicas e óutras de
de Mónaco" e "Colombo". Faleceu em 1916. caráter religioso. Compôs ainda música paro
José Uno de Almeida Fleming era de operetas, com libretos de Artur Azevedo.
Minas e estudou na Europa, como Carlos Go- Faleceu no Recife, em 1885.

- 220-
Outros que escreveram operetas foram maior luzimento do ambiente musical do seu
Carlos Severino CalJalier Derbelly, carioca tempo.
que estudou em Paris, e Antonio Cardoso de
Vejamo-los:
;1lenezes, virtuoso do piano.
Emílio Eutiquiano Corrêa do Lago, fa-
LuÍz Levy, irmão do grande Alexandre
lecido em 1871; Alberto Costa, autor dêsse
Levy, escreveu uma Rapsódia Brasileira para
romancezinho delicado que é "Canto da Sau-
piano.
dade", gravado por Bidú Sayão e continua-
José Candido da Gama Malclzer era do mente irradiado pelas nossas estações. Alber-
Pará, onde nasceu em 1853. Estudou em Mi- to Costa nasceu em 1879 e expirou em 1923;
lão e fêz vida em seu Estado natal, ensi- LÚcÍoCorreia de Melo Brasil, de Garanhuns
nando em estabelecimentos oficiais. Compôs (Pernambuco), nascido em 1841. Autor de
~'" várias óperas, tais como "Iara", "Bug-Jar- várias "Missas", orquestradol' e regente. Fa-
gal", etc. Faleceu em 1921. leceu em 1927; Francisco Nunes, mineiro,
José Pedro de Santana Gomes era o fa- nascido em 1875, diretor do Conservatór;o
moso "mano Juca", do grande Carlos Gomes. Mineiro de Música. Compôs especialmente
Nascido em 1834, seu maior mérito foi, sem música sinfônica. Faleceu em 1934; José
dúvida, ser irmão do gênio criador do "Gua- Maurício Braga, paulista, nascido em Lorena
rani" . Sua extrema dedicação à glória do em 1885 e falecido em 1937. Escreveu, de
mano é coisa que merece louvores irrestri- preferência, música religiosa; Antonio Carlos
tos. Compôs, também, algumas óperas sem Ribeiro de r1nclrade Machado e Silva dedi-
ter obtido com elas êxitos apreciáveis. Fa- cou-se ao magistério em S. Paulo; Augusto
leceu em 1908. Strene, paranaense, natural d~uritiba, onde
Francisco Alfredo Bevilacqua, nascido nasceu em 1871. Pintava e fazia versos, além
em 1846, estudou na Europa e revelou-se ele- de compôr suas peças musicais. Faleceu em
mento de primeiro plano, no magistério, nele 1918; Carlos ele Campos, nascido em 1886,
tendo empregado o melhor de suas ativida- foi presidente do Estado de São Paulo, tendo
des. Ensinou piano a uma geraç'ão. Como composto a famosissima ópera "A Bela Ador-
compositor, deixou pouca coisa: _ no turnos, mecida", que a tantas sátiras politicas se pres-
burcarolas, romances, etc. Faleceu em 1927. tou, na época. Faleceu em 1927; Alípio Cesar
Pinto da Silva, nasceu no Pará em 1871, es-
Assis Pacheco, nascido em 1865, foi o
crevendo uma ópera, após estudos realizados
autor das faladas óperas "Moema" e "Jaci".
em Milão. Faleceu em 1923; Jeronimo Quei-
Faleceu em 1915, deixando ainda numerosas
roz, do Estado do Rio, onde nasceu em 1859,
operetas e revistas.
dedicando-se ao magistério, expirando em
1936; Ezeqlliel Ramos Juniol', paulista de
nascimento (1874), estudou em Genebra e
morreu em seu Estado em 1928. Escreveu
Outros nomes surgiram no crepúsculo do poemas e músicas de câmara; Marcelino
século dezenove e no dealbar do vinte. Sur-
Clelo, de Pernambuco, onde nasceu em 1942.
giam, brilhavam com oscilante intensidade e
Compôs dramas sacros e sinfonias, além de
submergiam nas trevas, quase sem deixar
uma opereta. Faleceu em 1922, tendo traba-
rastros de suas trajetórias. No tumulto da
lhado com assiduidade pela arte musical em
época, eram vocações que procuravam im-
seu Estado; Antônio Miguel de Souza, minei-
por-se, sem possuírem, contudo, a marca
ro, nascido ell1 1868 e falecido em 1915, com-

I acendrada do talento que imortaliza e leva


aos páramos da glória.
São figuras, todavia, que merecem des-
pôs pouca coisa; Alberto MaylaeJ't, de Cam-
pos, nascido em 1866, empregou suas ativi-
dades no magisterio da Baía, onde faleceu
tacada citação pelo muito que concorreram em 192,1; Antônio de Assis Oslernolel, (185!1-
em UIll esfôrço honesto e probo _.-- para 1877); Adolfo de Melo, de Santa Catarina

- 221 _.
(1861-1926); José Brasilício de Souza, per- sua vigorosa partitura de "O Escravo ", em
nambucano; José Martins de Santa Rósa, que a alma da raç'a domina e fecunda sua
autor de bôas modinhas; Luciu! Lambert, soberba inspiração. Com Leopoldo Miguez,
carioca, nascido em 1857. Menino ainda, foi Henrique Oswald e Glauco Velasquez, cami-
para a Europa e la morreu; Homero Barreto nha a música nacional pára um sentido que,
(1854-1924), autor de ópera; Enrique Eulalio parecendo universal, foi, antes, internacio-
Gurgão, paraense (1834-1884); Júlio Reis, nal, pois para aquele caminham as obras que
também autor de óperas (1863-1933); Roberto trazem todos os elementos do meio e da época
J. Kinsman Benjamin, fluminense (1853- em que vive o artista, cristalizados em sua
1934); Miguel Cardoso, mineiro (1850-1912); livre inspiração e refletindo profundamente
lnacio Francisco de Araujo Porto Alegre a alma e os anseios do seu povo".
(1854-1900); José Pereira da Silva (1830- O Instituto Nacional de Música era uma
1910); Adelmo Francisco do Nascimento, forja consideravel onde se temperavam e
b':liano (1848-1898); Vicente Procópio; Edu- amoldavam. os talentos nascentes e promis-
ardo Lôbo; Benedito Flora, Benedito de Ar- sores. Ali "nascem, derivam ou nele se
ruda Paes, e outros, e outros muitos ... agrupam os numerosos compositores nacio-
nais da República recém-nascida", segundo
Mario de Andrade.
Outros e muitos outros que gravitavam, O Instituto orientava e instruía, não resta
é certo, em tôrno de certas figuras. exponen- dúvida; mas, a tutela do velho mundo sub-
ciais. sistia com seu caráter irremovivelmente in-
Nascia, com a República, uma espécie ternacionalista.
de sentimento.; coletivo, tendendo ao nacio- Não é de admirar, portanto, que muitos
nalismo musical. Vez por outra, os compo- dos noines da época pertençam a composito-
sitores, rompendo a casca espêssa das con- res de cará ter europeu.
venções artísticas que enclausurava os surtos Alguns, no entanto, já procuravam, na-
de inspiração independente, enveredavam quele tempo, ensaiar certos vôos de liberta-
pelo caminho sadio elo sentimento pura- ção, surtos que, infelizmente, resultavam
mente brasileiro. imIteis pela forte imposição da atmosfera
No despontar do novo regime nossa mú- espiritual da Europa. E foi pena; porque
sica erudita possuia ainda, é certo, espírito organizações artísticas como as de Leopoldo
internacionalista, não obstante a obstinada Miguez e Henrique Oswald muito poderiam
porfia de Francisco Manuel e Carlos Gomes ter contribuído para a estruturação da mú-
contra as formas conceituais, puramente dog- sica brasileira se tanto não se houvessem
maticas, da composição e da própria inspi- apegado ao filão sentimental das escolas ale-
ração. mã, francêsa ou italiana. São duas figuras,
"Tal sentimento persiste - COInO judi- no entanto, de grande representação na fase
ciosamente afirma Lorenzo Ferl1ândez _ inicial republicana, senhores de técnica im-
mesmo quando o artista busca motivos fora pecável revelada em seus' processos de com-
do ambiente brasileiro, como se pode obser- posicão.
var ein muitas obras de Carlos Gomes, Mi- Fixemos-lhes os perfís, antes de darmos
guez e outros, marcando o triunfo de Carlos início ao último estágio da arte musical em
Gomes, na Itália, o despertar da con~iência nosso país, aquele em que ela se transmlldou
musical brasileira, principalmente atraves da em arte fundamen talmen te brasileira .

• • • •

- 222-
Peopo(êJo SfliJuez e r;Jrenrique ()swa(êJ

LEOPOLDO MIGUEZ foi o primeiro diretor 1877, muito influiu na carreira artística de
do Conservatório Brasileiro de Música, na Leopoldo Miguez.
fase republicana. Nomeado a 12 de janeiro No ano seguinte, entrou como SoClO na
de 1890 para êsse cargo pelo chefe do Govêr- Casa Artur Napoleão, já então famosa no
no Brasileiro - cargo que, como já vimos, comércio de músicas e pianos. Só em 1882
deveria ter cabido a Carlos Gomes, caso não é que decidiu entregar-se de corpo e alma às
houvesse tombado a monarquia - Leopoldo atividades musicais. Partiu, então, para a
Miguez soube dignificá-lo, envidando todos capital francêsa, a fim de prosseguir nos es-
os esforços possíveis, no sentido de engran- tudos, o que fêz com acendrado amor.
decer e tornar realmente eficiente o ensino De regresso ao Brasil, aqui empregou o
ali dispensado. rcsto de sua vida perlustrando, de qualquer
Oito dias depois de assumir a dire~ão modo, a senda da história musical do seu
daquela casa, vencêra o concurso estabele- pais.
cido para a escolha do Hino da República, Muito se esforçou pela dignificação do
com letra de Medeiros e Albuquerque. Instituto, a cuja dil'eção empregou sua ori-
O prêmio concedido pelo govêrno do Gene- entação de professor probo e honesto.
ralíssimo Deodo.ro era de vinte contos de réis. Conta-se ainda, no acêrvo de suas ativi-
Leopoldo Miguez, porém, em um gesto de des- dades culturais, a fundação do "Centro Ar-
prendimento e de alta elevação artística, não
quis recebê-lo; pediu que o mesmo fôsse
empregado na aquisição de um órgão para
o Instituto. Adquirido, lá está êle ainda hoje
como atestado concreto da nobreza de senti-
mentos do músico brasileiro. Filho do espa-
nhol João Manuel Miguez e de D. Firmina
"ieil:a Miguez, brasileira, nasceu Leopoldo
na Côrte a 9 de setembro de 1850. Sua inh
ciação na vida e na educação artística foi
realizada na Europa, para onde o levaram
os pais, quando êle era pequenino.
Esteve na Espanha e em Portugal. Nesse
último país, na cidade do Pôrto, estudou com
Nicolau Ribas e outros professores, revelan-
do logo acentuados pendores para a música.
Desde os oito anos já executava sofrivelmente
ao violino.
Aos vinte e mn anos de idade voltou
para o Rio, sendo obrigado a trabalhar no
comércio - como, aliás, já o fizera em
Portugal - para sua própria subsistência.
Empregou-se na "Casa Dantas" cujo chefe
possuia uma filha, dedicada à música e aos
estudos de piano: Alice Dantas.
Não tardou o indefectível romance ell-
lretecido pelos jovens, cujo consórcio, em Leopoldo MigllCZ, primeiro dirctor do Conservat6rio Nit-
donal d'" l\fú~ica, no veríoclo repuhlicano

-223 -
lístico", em 1893, em tôrno do qual gravita- tísticos europeus. Seguiu para lá aos dezes-
ram músicos de valor e aficcionadós de mé- seis anos de idade e só regressou quando
rito. contava quarenta e dois. Lá estudou, fazen-
Dois anos depois, seguia ainda uma vez do cursos de harmonia e contraponto em
lHll~a o velho mundo, incumbido pelo Govêr- Florença, sob a orientação dos maestros Graz-
no "de estudar a organização dos conserva- zini e Buonamici. Esteve depois em França.
tórios, a fim de indicar os melhoramentos a
Nada, portanto, será de admirar que Hen-
serem introduzidos no Í1osso Instituto". Foi
rique Oswald haj a sido um compositor das
e voltou, de tudo dando plena desincum-
debatidas escolas européias. Junte-se ainda
hência.
aos fatores que concorreram para o desna-
Mas poucos anos de vida lhe restavam;
cionalizar o fato de possuir nas veias o velho
cm um domingo frio e húmido de julho, de
sangue helvético, pois seu pai era um bur-
1902, 110 dia 6, seu organismo, de cincoenta
guês suíço, chamado João Jacques Oschwald,
e dois anos de idade, combalia, imobilizan- nome abreviado mais tarde para João Jacques
do-se para sempre ...
Oswald.
A aproximação da Jllorte, seu último la-
mento traduz plenamente o desencanto do Henrique, nascido na capital brasileira,
artista por tudo o que fizera em vida: "Que em um sobrado da antiga rua dos Ourives,
pena! Agora que eu estava começando! ... " foi logo aos dois anos levado para São Paulo,
onde viu decorrer tôda sua infância, rece-
Villa Lobos deu-me, certa vez, uma im- bendo seus primeiros rudimentos musicais
pressão sôbre Leopoldo Miguez: até 1870, quando seguiu para a Itália.
- "Uma grande cultura. Um grande Na pátria das artes permaneceu não
compositor, mas. '. compositor alemão. Sua poucos anos, trabalhando e lutando ora em
tendência é lamentàvelmente wagneriana ... " uma cidade ora em outra ...
Não há quem não esteja de acôrdo com Em Arno, por exemplo, mereceu a honra
tal opinião. Não falta até quem diga que se de ser procurado pelo imperador Pedro II
Wagner não houvesse existido, Miguez não que prometeu ajudá-lo, na medida do pos-
seria capaz de escrever as partiuras que es- sivel. E cumpriu sua real promessa. O jo-
creveu. " De fato; sua obra capital é um vem musicista passou a receber uma pensão
drama lírico em três atos intitulado "Saldu- de cem francos "enquanto durassem as pre-
nes", sôbre um libreto de Coelho Neto, da cárias circunstâncias" em que se achava.
qual Luiz Heitor disse que" é como uma edi-
Para que as mesmas fôssem atenuadas,
ção resumida e vulgarizada da "Tetralogia",
pois teimavam em perdurar, o Govêrno de-
em que se pode apontar, página por página"
cidiu, mais tarde, nomeá-lo vice-cônsul. Nesse
a correlação com a obra monumental que lhe
cargo serviu no Havre e, em seguida, em
serviu de modêlo.
Gênova. Excusado é dizer que, na carreira
Além dêsse drama musical, conta ainda
consular, o fracasso do artista foi completo ...
o acêrvo de Leopoldo Miguez com as seguin-
tes peças, de maior importância: "Sinfonia Seu gênio, envolvido em .uma aura sim-
em si bemol", "Ode a Vítor Hugo", o poema pática de modéstia, sincera e expontânea, seu
sinfônico "Parisina", sem dúvida a melhor espírito fino e educado fizeram com que êle
de tôdas, e um outro intitulado "Prometeu". conquistasse fàcilmente largo círculo de ami-
Deixou mais: "Ave Libertas!", poema repu- gos, contando-se entre êles altas personalida-
blicano, "Ode fúnebre a Benjamin Constant", des artísticas como Liszt, Brahms, Saint Saens,
"Pelo Amor!" (trechos de ópera) e a "Suite Massenet, etc.
à l'Antique", para grande orquestra. Sua maneira de compôr, suave e delicio-
samente lirica, sofria a influência direta das
Henrique Oswald passou a parte mais escolas francesa e alemã. :f:le próprio não
considerável de sua existência nos meios ar- procurava ocultar a filiação dos seus proces-

- 224-
sos e da sua inspiração às diretrizes daquelas
duas correntes, lamentando ainda não poder
compor - como bem o quisera - no espí-
rito puro da escola alemã ...
Chegou mesmo a reconhecer, em palestra
com um dos nossos críticos, que não havia
lugar para êle na história da música brasi-
leira ...
Sua música não e descritiva nem apre-
~enta outras intenções alem da de fazer arte
mo tão condenavel hoje em dia, quando as
artes tendem para o esfôrço de reproduzir,
em essência, o meio ambiente.
pela arte. Formalismo puro, desse formalis-
Mesmo o famosíssimo "II Neige", pagina
que mereceu o primeiro prêmio em um con-
curso instituido pelo "Figaro", em Paris, não
é, como o título parece indicar, de intento
descritivo. Nada disso. Não revela espírito
realista. O próprio título veio, mais tarde,
por sugestão de sua espôsa ...

Com quarenta e dois anos, - como fi-


cou dito - o já então maestro Henrique
Oswald enfrentava, pela primeira vez, o pú- ' Henrique Oswald
blico brasileiro, em um concerto que ficou
memorável. Entre outras peças, apresentou
o "Quinteto, op. 18" para piano, dois violi- êle mC"lllO solicitou sua exoneração, regres-
nos, viola e violoncelo, e o "Trio, op. 9" para sando à Europa.
piano, violino e violoncedo. A critica foi De lá retornou em 1911, vivendo ainda
francamente favorável ao compositor, pois, no Brasil pelo espaço de vinte anos, até o dia
na epoca (1896) o snobismo da música fran- 10 de junho de 1931, quando faleceu quase
cêsa andava em voga. octogenário.
Em seus dois últimos decênios, viu-se cer-
~m 1903, Henrique Oswald recebeu con- cado do carinho, do respeito e da admiração
vite para assumir a direção do Instituto Na-
dos seus patrícios. E Henrique Oswald bem
cional de Música, cargo que se encontrava mereceu tal acúmulo de considerações em
vago pelo falecimento de Leopoldo Miguez, virtude da repercussão de sua arte, nos meios
no ano anterior. Aceitou; antes, porem, não europeus e da hondade e limpidez de seu
'0 houvesse feito ...
caráter.
A panelinha que fervia lá dentro, bor- Sna obra, emhora cstl'itamen te exótica,
bulhando as ambições c os despeitos mal so- é, no entanto, fecunda na inspiração e nos
pitados, encheu de desgostos os poucos ano.s meios de expressão. Além das já citadas, con-
que o maestro ali passou, tentundo, inútil- vém assinalar a "Serrana", os "Três estu-
mente, imprimir diretivas próprias àquele dos", o "Tema e Variações" para piano e
estabelecimento de ensino. De tal fmIna que orquestra, o "Bébt'> s'endorl", () "Pierrot se

- 2:25--
lneurt", o "Chauve-Souris", o "Impromptu", Como se vê, até nos títulos que dava às
os "Noturnos", os "Romances", etc. suas músicas, predominava o espírito fran-
No gênero lírico escreveu três obras, que cês ou, com raras exceç:ões, o italiano. Mui-
nunca foram levadas à cena: "Croce d'Oro", tas delas são incluídas, até hoje, nos progra-
"Le Fate" e "II N6o". mas dos concertistas de todos os paises.

[Jtt8erê oa eun8a e fJIferxanore .PelJ!}

I daqui por diante, um novo c re-


NICIA-SE, sem penetrar IIU compreensão superior de
fulgente período na história da música bra- qualquer iniciado.
sileira. E' que ela irá merecer, finalmente, o O problema era êste, apenas.
titulo de. "brasileira" ... }~stc "apcnas", contudo, traduz llluita
Porque a volta à inspiração nativa, a ('oisa. Era tudo ...
rebusca do nosso "folc-song", o dessedenta- Para que se efetivasse êsse esfôrço artís-
mento em suas fontes mais puras tornam, de tko, seria necessário - como o foi, realmen-
fato, êsse último período de nossa música te - a marcha do tempo, único fator ca-
elevada no mais dignificante de todos os pe- paz de conduzir illexoràvelmente, ao ama-
ríodos. Seguindo o espirita das correntes durecimento de uma mentalidade naciona-
nacionalistas, isto é, daqueles que, despre- lista. E nacionalista, no bom sentido ... All-
zando a inspiração e os processos das escolas tes disso, seria em vão tentar tal esfôrço.
européias doininantes, procuravam abebe- Carlos Gomes, com tôda a expressão de sua
rar-se nas fontes puras do scu povo e de seus genialidade, não poderia ter conseguido tal
costumes, nossos musicistas inauguraram no desiteratull1, embora o quisesse. Em sua
Brasil o mesmo movimento que havia sido obra repontam, por vêzes, "anotações" curio·
iniciado, na Rússia, pelo famoso grupo dos sissimas que revelam o fundo recalcado do
cinco e, na França, pelos chamados impres- amor à sua terra e às suas coisas. Explodem,
sionistas. aqui e ali, sonoridades e frases musicais que
Três nomes, dentre os demais, deslacam- nada mais são do que tentativas para o soer-
se, nesse período, como autênticos precurso- guimento do ego artistico do autor, vogando
res da música brasileira: Brasílio ltiberê da nas lembranças, uas recordações do seu
Cunha, Alexandre Levy e Alberto Nepomu- país ...
cena. Surgem êles, de fato, como os iniciado- lVIas o tempo não facultava ainda ao
res, os desbravadores, os bandeirantes da autor do "Guarani" os processos para a re-
selva musical brasileira, onde foram buscar volução nacionalista, iniciada eom as figuras
as pepitas aurifulgentes dos temas intrinse- de Brasília Itiberê da Cunha, Alexandre Levy
camente nacionais. Lá, repontavam, com far- e Alberto Nepomucello e concretizada, de
tura, os motivos encantadores c multi-faceta- forma superior, pelo gênio moderno de Villa
dos do nosso extenso folclore. Lobos e todos os que o acompanham nessas
O problema consistia, apenas, C~ll reco· novas diretivas do nosso nuno artístico.
lhê-Ios, adaptá-los, vesti-los de novas roupa- Vej amos, pois, as atividades dêsses pri-
gens, ricas e opulentas, trazê-los, em suma, meiros bateadores do nosso gR~impo folcló-
para o terreno elevado de processos al'tisti- rico - se me permitem a comparação ...
cos, tornando-os compreensíveis à sensibili-
dade de todos os povos. Dar-lhes, enfim, uma A rcspei to de Brusílio Itiberê da CUl1lJ a
linguagem llniYel'sal, atl'avés da qllal Pllde;- ]lOllCO, ell]verdade, sc po!lcrú dizer, para o

- 226 --
interêsse dos leitores de uma história da dizer o que Verdi dissera de Carlos Gomes,
música. Sua própria vida é despida de atra- após a apresentação do "Guarani": "Êste
ções, singularmente meticulosa e decorrida, rapaz começou por onde deveria ter aca-
em sua parte mais intensiva, em cena es- bado ... "
tranha .. De fato, as obras que se seguiram àquela,
Esse pouco, no entanto, maior vulto as- embora de alta elevação artística, não reve-
sume à admiração dos póstel'os se conside- lam o pendor meritório da primeira arran-
rarmos que, o que êle produziu foi, indis- cada do cerne da nacionalidade. Os próprios
cutivelmente, o primeiro marco da tendência títulos quase que a definem: "Nuits Orienta-
nacionalista em nossa música. les", "Sous les Tropiques", "Poême d'Amour",
De ·tôda a sua bagagem artística vale "Sérenade", "Mazurka-Caprice", "Étude de
destacar a página magnificamente brasilci I'a Concert", "Soirée à Venise", "Tarantelle",
I da "Sertanej a" . "Messe de Noel", e outras mais.
;.
Ficou essa obra marcante como o início
Tódas elas, em sua nomenclatura, reve-
da longa jornada que iria ser empreendida,
lam o sentido de sua inspiração e o motivo
pelos músicos de nossa terra, para o esplen-
exótico de suas diretivas ...
dor de uma Arte embebida exclusivamente
nas fontes da nacionalidade. "Sertaneja", no entanto, é a própria al-
BrasilioItiberê da Cunha era de terras ma do Brasil, "tão feliz na verdadeira am-
do sul,pois nasceu emParanaguá, em 1848, bientação da nossa música", como observou
cidade no município do mesmo nome, per- Lorenzo Fernândez. Êste sentido brasileiro
tencente com que o compositor impregnou sua obra
, . ao Estado do Paraná. O amontoado
do seu casario, pintalgando de telhadilhos passou, e certo, despercebido" ate ao próprio
avermelhados o solo barrento e as manchas Brasílio ltiberê, que não se ateve àquela ten-
verdes do arvoredo, é cortado pelo rio Itiberê, tativa". A observação e de Andrade Muricy
remansoso e rumorej ante, e que emprestou, e nos parece justa. A prova é que o compo-
sem dúvida, o seu nome tão brasileiro à fa- sitor não prosseguiu na senda apenas tri-
mília do compositor. lhada, nada mais nos tendo ofertado, dentro
Suas atividades, no "strugle .for life", do espírito magnifico que anunciara. Nela, °
foram empregadas na carreira diplomática. que mais a associa ao ambiente brasileiro é,
Ingressando como adido de legação, foi ser- sem dúvida, o aproveitamento do "Balaio,
vir, inicialmente, em Berlim. Na capital ger- meu bem, balaio ... ", canção folclórica, po-
mânica permaneceu, com raros intervalos até pularíssima no Brasil. Em todos os seus
às vésperas da declaração de guerra, pois lá tempos, no entanto, sente-se que a rapsódia
mesmo, entregou a alma a Deus, em 1913. se desenvolve continuamente, "dentro do
mesmo ambiente evocador de temas e ritmos
E' justo salientar o esfôrco contínuo do
diplomata na difusão das ati~idades artísti- brasileiros ", na apreciação de João ltiberê da
cas e intelectuais do seu país, procurando es- Cunha, escritor e musicista, que usava o
tabelecer, incessantemente, a vulgarização de nome literário de 1rvan d'Hunac, anagrama
obras nacionais em terras teu tas . de Cunha.
Contava ainda dezessete anos de idade Ouvindo Villa Lobos, dele colhemos, a
quando compôs a sua célebre "Serhinej a" . respeito de Brasílio· Itibere, as seguintes im-
Forçoso é convir que, escrita naquela pressões:
idade, a famosa rapsódia representa o fruto - Itiberê era um amador de grande cul-
de uma inspiração sadia e fecunda, marco tura; o primeiro, talvez, que tenha pugnado,
promissor de uma série de obras mestras de sinceramente, pelo interêsse das coisas do seu
opulência imprevisível. Tal não· sucedeu, país. Como compositor soube aproveitar-se
porém. Tudo o que lhe saiu mais tarde da do ambiente brasileiro. Apenas isto. Mas
veia artística não vale a pureza brasílica de isto não e .0 bastante. Itiberê não tinha ca-
"Se\'tanej a". De Itibel'ê da Cunha pode-se pacidade para criar uma técnica brasileira.

- 227-

Daí não ter realízado obra definitiva, coisa
que só o decorrer do tempo poderia favore-
cer a outros artistas, como se verifka atual-
mente".
A verdadeira critica da obra de Brasília
Itiberê, está incontestàvelmente, nestas pala-
vras do mestre das "Baquianas Brasileiras".
De qualquer forma, êle deve figurar no
período inicial de "nossa" música, como uma
das pontas do triângulo - Itibere, Levy, Ne-
pomuceno -- dentro do qual, embrionària-
mente, começou a agitar-se o sentido nacio-
n alista da arte musical brasileira.

Em outro ângulo está Alexandre Levy.


Êste compôs tres peças de sabor ambiental-
mente nacional. Foram elas: "Variações sà-
bre um tema brasileiro" (O tema era lima
Írase popularíssima do "Vem cá Bitú"); ()
"Tango Brasileiro", onde o autor "começQu
a fixar momentos da alma musical da raça",
como observa Lorenzo Fernândez, e a famosa
sinfonia em quatro partes: Prelúdio, Dansa
rústica (canção triste), A beira do regato e
Samba.
Nêsse último movimento, aproveitou-se
Alexandre Levy de duas toadas populares: Alexandre Levy que, ao lado de Nepomuceno, traçou
novas diretrizes à J11(\sica brasileira
uma, que é ainda o mesmo "Balaio, meu bem,
balaio", já utilizado por Brasílio ltiberê da
uma autentica revelaç:ão. Tendo iniciado
Cunha; a outra é "Si eu te amei", canç:ão
seus estudos de piano aos sete anos, já aos
paulista de José d'Almeida Cabral.
doze tomava parte em concêrtos, compondo
A produção "brasileira" de Alexandre
mesmo algumas peças.
Levy está nessa trilogia. Tudo o mais que
êle compôs, acha-se impregnado de inspira- Entusiasmado com o prodigioso avanço
ção européia, subordinado ao espirito e aos do menino, seu mestre de harmonia, Gus-
processos dos compositores do velho mundo, tavo Wertheimer advertiu-o de que devia se-
espeCialmente Schumann e Chopin. guir para o velho mundo em busca de cen-
O primeiro, notadamente, exerceu largo tros mais adiantados, onde as suas faculda-
dominio sôbre a sua obra. O espirito morbi- des pudessem encontrar meio propício a
damente melancólico do jovem artista, pos- expansões mais amplas.
suía, de fato, semelhança inegável com a tris- Levy, que havia fundado o Club Haydn
teza, não menos morbida de Schumann. Era onde, durante quase um lustro, realizara con-
um romântico e romântica foi sua existencia, certos sinfônicos e de câmara, não trepidou.
tão cedo encerrada, quando muito seria ain- Arranjou sua vida e, aos vinte e tres anos,
da justo esperar de sua fecunda inspiração. rumou para Paris.
Alexandre Levy faleceu aos vinte e oito N a capital frallce~a aperfeiçoou os estu-
anos. Nascera em São Paulo, a 10 de novem- dos, apresentando-se com absoluto êxito em
bro de 1864, filho de lllll clarinetisla, ani· uma recepção ([ue o diplomata brasileiro
bado ao Brasil quase vinte allOS antes. Foi Barão (le Arinos ofereceu a D. Pedro II.

--- 228 ---


\',

Regressando da Europa, onde teve tra- Como se vê, muita coisa para uma vida
jetória brilhante, pouco mais viveu em sua tão curta'. Não começasse êle a compôr cedo,
terra, falecendo a 17 de janeiro de 1892. como menino prodígio que foi e, certamente,
Sua bagagem artística consta das seguin- não teria tido tempo material para fazer
tes peças, além das jã citadas: "Trio em si tanto.
bemol", "Primeiro quarteto de cordas", "Rê- Da sua "Suite Brasileira" o "Samba" é
verie", "Fantasia sôbre motivos do Guarani", sobejamente conhecido e freqüentemente exe-
para dois pianos, "Alegro apassionato", "Três cutado, em concêrtos orquestrais. E' uma
improvisos", "Valsa", "Capricho", "Mazur- pagina quente, vibrante e que bem traduz os
ka", "Segundo Improviso", "Trois mor- rumos da sensibilidade do seu autor, tão
ceaux", "Doute", "Creur blessé" e "Amour marcantemente assinalados e tão lamentàvel-
Passé", para piano, "Tarantela''.. "De mãos mente desviados, mais tarde, pela imposição
dadas", "Aimons", para canto e piano, de influências estranhas.· Mesmo assim, Ale-
"Hymne au 14 Juillet", "Comala", poema xandre Levy teve o seu lugar gàrantido entre
sinfônico, as conhecidas "Schumanianas", a os iniciadores do movimento nacionalista em
"Sinfonia em Mi", e algumas outras. nossa música.

[J/(8erto :Nepomuceno

ALBERTO NEPOMUCENO era também exte- Nepomuceno. Estudou com o velho em Per-
riormente uma figura impressionante de ar- nambuco, para onde a família se transladara.
tista. Os que o conheceram pessoalmente Revelou-se muito cedo, 'tanto que aos de-
lembravam-se, quando o viam, da imagem zoito anos já dirigia concêrtos locais no clube
do Nazareno, tanto êle se assemelhava ao Carlos Gomes.
tipo do messiânico judeu.
Quando o pai lhe faltou o rapaz, sem
A fisionomia doce, irradiando bondade, nada de seu, quis rever o seu Ceará, lumi-
emoldurada por uma cabeleira revôlta e gri- noso e límpido, ant~s de vir para o Rio ten-
salha e uma barba desalinhada e farta, em- tar a vida.
prestava-lhe, de fato, a impressão sugestiva Suas atividades iniciais, conhecidas aqui
de Jesus,. caminhando pelas ruas do Rio, en- foram os concêrtos de piano realizados no
farpei;d-;; em amplo jaquetão negro, com a Clube Beethoven, onde constantemente apa-
cabeça emergindo de uma larga gravata "ã recia ao lado de Artur Napoleão e José
la Lavaliêre". Por dentro - é coisa que todos White, notável violinista.
sabem - Nepomuceno era artista de verdade.
Artista autêntico, dotado de sensibilida-
E foi essa organização integral de artista que de impressionante, volvia seu espírito para
o fêz suportar as vicissitudes de uma vida todos os setores do Belo. Fêz amigos e ad-
ingrata, mas gloriosa.
miradores entre os eleitos dos deuses. " Um
Quando êle veio para a Côrte deixou dêles, que lhe dispensou amizade desinteres-
atrás de si seu Estado natal, o Ceará, com °
sada e valiosa, foi Rodolfo Bernardeli, ad-
as praias batidas de sol intenso, o azul do mirável cinzelador do "Cristo e a Adúltera".
céu pontilhado pelas velas das jangadas, cor- A tal ponto o escultor mexicano se mos-
tando céleres os verdes mares bravios ... La trou amigo· do jovem pianista que chegou
êle nascera, naquela Fortaleza amável, no até a custear, deE:eu próprio bôlso, uma via-
dia 6 de julho de 1864, filho do maestro Vítor gem à Europa para que o mesmo pudesse

--- 229-
Sua cultura musical já estava conside-
ràvelmente enriquecida com os conhecimen-
tos profundos da música alemã, especialmen-
te a wagneriana, dos mestres franceses e dos
esplendores da música russa e sua escola,
fundada pelo famoso grupo dos cinco, cuja
difusão em todos os países constituiu, na
época, um mundo de revelações.
Nomeado para o lugar de professor de
órgão no Instituto Nacional de Música, assu-
miu logo a cátedra, realizando lIm grande
concêrto, em agôsto de 1895, onde se mostrou
completo organista, pianista c compositor.
Suas primeiras obras foram então co-
nhecidas: "Anhelo", "Valsa", "Diálogo", "Ga-
lhofeira", "Sonata", "Mater Dolorosa", "Tu
és o sol" e trechos da "Elcctra", composta
cm Paris e executada no salão de espelúculos
de Saint Barbe des Champs.
No ano seguinte, escolhido para dirigir
a orquestra da Sociedade de Concêrtos Po-
.i\l~~('l't() Xt'POl111.H'lJllO,um clo~ pioneiros da lnúsica
pulares, recém-fundada, realizou uma série
brasileira hrilhante de audições sillfonicas com exce-
lentes programaç'ões de clássicos e romànti~
desenvolver mais alllplamentc os SClIS estudo:> cos. Novas obras suas foram apresentadas
de aperfeiçoamento. ao público brasileiro, tais como "Epitalâmio"
Antes de segll~', no entanto, Nepomuceno, (para canto), as "Uyáras" (lenda do Rio Ne-
ao lado de outro amigo sincero, o grande gro), "Suite Antiga" (Minuêto, Ária e Rigau-
violoncelista Frederico Nascimento, realizou don), "Sinfonia em sol menor" e a consa-
lima tournée pelas províncias do Norte. Foi gradora "Suite Brasileira".
então que compôs sua "Romanza em mi Dizemos consagradOl:a-porque foi ela
hemol" . que afirmou as tendências do artista no
Atravessou, em seguida, o Atlântico, rumo de uma arte nacionalista. O 3utor
I,~
rumando para a Itália, onde iniciou seus es- dividiu-a em quatro partes: "Alvorada na .!
..~
tudos na Academia de Santa Cecília, em serra", "Intermédio", "A Sesta na rêde" e ~
Roma, com o maestro Terziani e o professor "Batuque". Nela há o aproveitamento de
.,
De Sanctis. motivos populares, tais como o "Sapo Juru- ·1·,··,·1

Sem recursos, viu-se obrigado a pleitear rú" e a cantiga de "A Sesta na rêde". Onde,
lima pensão junto ao Govêrno Provisório que porém, explode em tôda a sua pujança o es-
a concedeu, em atenção aos seus méritos. pírito brasílico, calcado nos fundamentos da
Partiu, então, para a Alemanha, onde pros- contribuição do negro, é no Batuque, quente
seguiu nos estudos de piano com o Prof. e vibrante, cujo ritmo vai em crescendo, forte
Ehrlich e iniciou os de órgão com Arno de sonoridade e de harmonia. Com a apre-
Kleffel. Nêsse instrumento, aliás, tornou-se sentação da "Suite Brasileira", Nepollluceno
exímio, pois antes de regressar à sua pátria enfileirou-se entre os precursores.
ainda se aperfeiçoou em Paris com o célebre Lorenzo Fernândez chega mesmo a afir-
organista Guihnant. Finalmente, após sete mar que a "Suite Brasileira" para orquestra
anos de permanência no velho mundo, de- "já é uma grande realização da arte nacio-
sembarcou no Rio, de bordo do paquete nal", embora ache que é nas canções onde
"Orellana", a 11 de julho de 1895. ~epomuceno se impõe como verdadeiro es-
,
./
- 230-
tilista e criador, "pois o lied brasileil'oafir-
mou a sua maioridade na obra do mestre
cearense",
O autor de "Imbapára" considera que no
terreno das canções "a contribuição de Nc-
pomuceno avulta extraordinariamente, quer
como (unção social, na campanha tenaz que
empreende para a divulgação do canto em
língua nacional, quer como função estética,
orientando, em belíssimas melodias, felizes
soluc:ões para o lied brasileiro",
Nepomuceno bateu-se, de fato, pela ado-
ção, no canto, da nossa língua vernácula,
convencido de que" não tem pátria, o povo
que não canta na sua língua",
Bateu-se, enriquecendo sua tese de ar-
gUlllentos robustos e escrevendo uma precio-
síssima coleção de canções, levando de "en-
chIa os que procuravam negá-la, Nepomu-
ceno representou, na opinião de Villa Lobos,
"o mesmo caso de Alexandre Levy, mais
apurado, no entanto, em suas tendências na-
cionalistas" ,
Em 1898, o público recebeu com certa
frieza um episódio lírico, em um ato, sôbre Berma de Alberto Nepomuceno, erguida no:,
jardins do ;, Passeio Público" - Rio ,h·
um libreto de Coelho Neto, "Artemis", A .Taneiro ele autoria do es~u1tol'
f

TIodolfo Bernardelli
música é delicada e plena de sensibilidade
ingênua; o tema do libreto, no entretanto,
deve ter sido responsável pela falta de Chegou a ponto do mestre ver-se obrigado li
êxito, , , solicitar sua demissão, pois o próprio minis-
Dois anos depois, j ú no dealbar do século h'o o havia desautorado, anulando o con-
atual, realizou Nepomuceno nova viagem à curso,
Europa, onde permaneceu por espaço de vinte Sensível e intrinsecamente reto em suas
e poucos meses, enfermado e incapaz de tra- decisões, muito sofreu Nepomuceno com êste
balhar, golpe que o abalou profundamente,
Voltou para assumir a direção do Insti- Em 1906, apresentava êle, no entanto,
tuto Nacional de Música, vaga com a remiu- outras composições: "Valsas Humoristas",
da de Henrique Oswald, Sua atuação foi "Alnor indeciso", "Turquesa", "Trovas", vá-
fecunda e brilhante, tendo envidado esforcos rios trechos da ópera" Abul" e o prelúdio de
para a construção do edifício' da ruâ do P~s~' uma outra, "O Garatuja", calcada sôbre um
seio que até hoje serve à Escola Nacional de romance de José de Alencar. Página de agra-
Música, dável sabor nacionalista, foi esta última a])l'e-
Não concluiu, infelizmente, como merc- )é~ntada em um concêrto, por Artur Napoleão,
cia, a sua passagem pdo nos~o mais alto es- Em 1908, durante a Exposição Nacional,
tabelecimento de ensino mundial, Um inci- na Praia Vermelha, teve Nepomuceno ocasião
dente desagradável provocado pelo julga- de realizar brilhantes concêrtos sinfônicos,
mento de certo concurso de ~olfêjo, a qne ê~e apresentando produções dos nossos compo-
presidira, deu causa a Ullla onda de injusti- sitores além de páginas da mais moderna
ças, a uma campanha insidiosa de seus ini- literatura musical estrangeira, Foram vinte
migos, movida pela inveja ou despeito, e seis audições que marcaram época.

231 -
No ano seguinte compôs ainda quatro
páginas sôbre o poema de Jaques d'Avray
"Le miracle de la Sémence". Restaurou tam-
bém trabalhos de José Maurício, tendo pu-
blicado a grande "Missa de Requiem", do
genial mestiço.
Em 1920, precisamente no dia 16 de ou-
tubro, deixou de existir, em c.asa de seu ami-
go Frederico Nascimento.
Sôbre a morte do extraordinário músico
brasileiro ficou o relato emocionante de Otá-
vio Bevilaqua, a cuj a transcrição ninguém se
poderá furtar, tão ligada ela se acha aos
últimos momentos de Alberto Nepomuceno.
Ei-Ia:
"Havia dias já, as coisas caminhando de
mal a pior, viram os amigos aproximar-se a
hora do desenlace.
Certa tarde, voltava eu a Santa Tereza,
à moradia de Frederico Nascimento, o caro
mestre, compadre de Nepomuceno, onde êste
estava hospedado, quando, galgada a escada
de pedra de acesso ao jardim, ouvi uma voz
a cantar. Era a de um barítono, de certo, mas
não a de Nascimento Filho, tão nossa fami-
liar em casa de seu pai. A porta da casa me
foi aberta por Frederico Nascimento que,
EdiffC'Ío do Instituto Nacional de Mú.sica. (Hoje Escola. diante do meu espanto, declarou: - É, é
Naciollal de Mú.sica)
êle. .. Desde a hora do almôço que assim
c.anta.
Em 1910, nova viagem à Europa, desta Aproximei-me. Estirado no leito, o busto
vez, comissionado pelo govêrno para reger ligeiramente elevado, sem dar mais sinal de
concêrtos sinfônicos na Exposição de Bru- interêsse pelos que se aproximavam, Alberto
xelas. Apresentou peças brasileiras, inclusive Nepomuceno cantava! ...
o seu "Concêrto em sol maior". Após outros
recitais em Genebra e Paris, voltou ao Brasil. Ouvia-o cantar um "Gloria in exelsis Deo
Em 1913, regeu grande concêrto sinfônico et in terra pax hominibus bonae voluntatis",
em São Paulo, sendo sua ópera" Abul" apre- versículo integral, em bom estilo gregoriano,
C.OI11 voz firme, mais do que firme, forte.
sentada, nêsse ano, em Buenos Aires. No ano
seguinte foi a mesma levada à cena no Tea- Bem poucas vêzes, talvez, na minha vida,
tro Municipal do Rio de Janeiro. Não logrou fui tomado de tanta estupefaç'ão.
o êxito esperado, sendo recebida com reser- Após as cantorias, vinham palavras sol-
vas pelo público. tas, sôbre obsedantes efeitos de notas. Fa-
Continuando a compôr, apresentou ain- lava num "fá sustenido".
da, em 1916, o "Trio em f.á sustenido menor",
esplêndida página de música de câmara, - Olha, compadre, - dizia - o efeito
"Jangada", sôbre versos de Juvenal Galeno, destas terceiras maiores ...
linda evocação de seu Estado natal, e a cena tste caso ficou registrado na imprensa
da sedução do terceiro ato de "Iriel". de então ..

- 232-
Assim foi todo o transcorrer da tarde. Como se vê, Alberto Nepollluceno mor-
Noite a dentro os cantos foram enfraquecen- reu cantando, como que a querer encerrar
do e sumindo as palavras. Permaneci em o ciclo de sua vida com uma suave expressão
Santa Tereza e testemunhei o"diminuendo" sonora; aquela vida de onde haviam ema-
e o "rallentando" até madrugada. A "cadên- nado continuamente ricas sonoridades im-
cia" final foi realizada já em pleno dia, na pressas em páginas opulentas, orgulho legí-
manhã de 16 de outubro de 1920". timo da música brasileira.

Vare, @arr080 :Netto e g',anci8CO

OS THÊS iniciadores foram seguidos de quer como documentação quer como inspi-
perto por alguns outros que contribuíram, ração, no folclore. O que a gente deve mais
por sua vez, com páginas preciosas para o é aproveitar todos os elenientos que concor'
arquivo fundamental .da nossa música. Todos rem para a formação permanente da nossa
êles. serviram, é claro, em um período de musicalidade étnica".
transição, de pura .experimentação,períod'Ü De acÔrdo. Para mim, no entanto, tor-
que surge como os alicerces da futura edifi- na-se necessário o ambiente propício a tais
cação do Brasil musical, cuj a cumieira seria atividades; e o tempo é o único fatorpara
lançada pelos mestres da atualidade. a criação dêsse ambiente.
O esfórço desse primeiro grupo é, toda-
via, de notável relevância, de-vez-que pro-
curava romper os cordões umbelicais que
prendiam os artistas às escolas européias,
para a liberdade que lhes poderia assegurar
a prática de processos novos e de inspiração
nativista.
Que conseguiram êsse desideratull1 já não
resta dúvida; a prova foi o rumo que, após
eles, tomaram os novos compositores no sen-
tido de uma musicalidade calcada sôbre o
riquíssimo, o opulento folclore brasileiro.
Como todos os movimentos inovadores,
êsse contou também com os seus iniciadores,
incapazes de concretizarem obra definitiva
que só o tempo poderia proporcionar, tra-
zendoa "ambiência" indispensável dentro
do qual os artistas pudessem compôr livre-
mente, sem a preocupação de fugir a regras
já automàticamente suprimidas.
Para que o compositor seja realmente
"nacional" só há um caminho: beber nas
fontes que o povo lhe oferece, impregnar-se
do espírito folclórico do seu país.
Mário de Andrade escreveu, certa vez:
"O compositor brasileiro tem de se basear, BRrrnso Nptto

- 233-
"As grandes manifestações lllusicais na Europa, tendo a ven(ura de ser discípulo
disse-me Lorenzo Fernândez - dentro da do grande Cesar Frank, em Paris.
criação nacional, não são mero capricho de Em 1891 regressou ao Brasil, sem ter vin-
artistas e sim resultantes lógicas das fôrças tém nas algibeiras. Mesmo assim, após tra-
latentes da nossa pujante nacionalidade. balhar afincadamente na capital da Republi-
Cabe aos artistas trabalharem com afinco e ca, compondo e executando, conseguiu fazer
entusiasmo para que a nossa arte, expressão nova viagem a Paris.
definida do nosso povo, se afirme cada vez Em 1895 já estava novamente de volta ao
mais original". seu país, onde se internou, em estado de pleno
Honra, pois, aos iniciadores e aos que os delirio neurastênico, na sua província, até o
acompanharam na implantação dos primeiros desfêcho trágico de sua vida,
marcos, em uma estrada que, ao tempo, es- Deixou larga bagagem: "Sona(a em dó
tava ainda por desbravar. menor ", para piano; "Suite (Prelúdio, Fuga
Entre eles, inscrevem-se os nomes de e Final) ", para sexteto; "Octetto", "Telema-
Francisco Vale, Barroso Neto' e Francisco co", poema sinfônico, etc. De tôda a sua
Braga. A este grupo pode-se ainda juntar o obra vale, no entanto, ressaltar apenas o que
nome de Sebastião Barroso, que representa, êle produziu, denh'o de um certo espírito
na opinião de Villa Lobos "um caso idêntico nativista, isto é, aquilo que êle impregnou do
ao de Itiberê da Cunha, impondo-se como suave olór de temas populares de sua terra,
um dos precursores no estudo e aproveita- filão que devia ter explorado com mais assi-
men to da música negra". duidade. '
São duas peças apenas: "Depois da Guer-
Outro que merece lugar de destaque é
ra ", poema sinfónico, dividido em h'ês par-
El'llesto N azareth, cuj a obra o situa acima
tes: "Trecho funebre ", "Cena coreografica"
dos compositores populares e abaixo dos au-
e "Motivo heróico", e o famoso "Bailado da
(ores de música 'erudita. EstuderilO-los todos,
mais detalhadamente. Roça", suite orquestral em quatro partes:
"Os pequenos fardados", "Os camponeses",
"As caipiras" e "Samba". Esta última, espe-
Francisco Vale era bisonho e de certa cialmente, reputada como a obra mestra de
maneira, inculto. Al~m disso, minado P01' Francisco Vale, possui sabor nativista bem
estranha psicastenia que nunca lhe permitiu pronunciado, revelando toadas e modas de
a orientação segura e indispensável a um viola do interim mineiro, N êsses lllomentos
bom compositor. Retraído, cheio de comple- é que assume valor incontrastável a obra de
xos de inferioridade, sentia-se incapaz de do- Francisco Vale porque "figuras como êle,
minar os processos de COlliposição, bem como Francisco Braga, Barroso Neto e outros -
os temas que elegia. como afirma Lorenzo Fernândez - oscilan-
Sua obra é vacilante como a de um ar- do entre as duas tendências, realizam talvez
tista que atravessou a vida sem "encontrar- as suas melhores obras quando nelas predo-
se a si mesmo ... " mina o sentido brasileiro. Mas é, indiscuti-
Viveu pouco; trinta e seis anos apenas. velmente, entre os compositores de hoje que
A neurastenia, que' não o largava, levou-o à irrompe, de forma irreprimível, o sonho de
prática do suicídio. Francísco Vale, no dia uma grande arte brasileira. Forma, proces-
10' de outubro ele 1906, lançou-se desesperado sos, temática, enfim, matéria e espírito, tudo
às águas do rio Paraibuna, em Juiz de Fora, se procura modificar para a criação de uma
sendo levado no roldão da correnteza ... Seu arte livre, forte e original, inspirada nas mais
corpo apareceu depois, enredado nas rama- puras fOIl (es da nossa terra".
rias de uma ilha flutuante.
Mineiro, nascido no mesmo lllunicípio de Joaquim Antônio Barroso Neto era ca-
.T uiz de Fora, a 20 de março de 1869, filho de rioca, nascido a 30 de janeiro de 1881 e fa-
um flautista, foi mandado pelo pai estudar lecido aqui llJesmo a 1 de setembro de lD11,

- 234-
Sessenta anos de existência dedicados à prá-
tica da música.
Suas tendências para o piano revelaram-
se logo que começou a estudar com o maes-
tro Francisco Malio. E as de compositor
também.
Passou, em seguida, a estudar no Insti-
tuto de Música, onde concluíu o curso de
..
,
piano com grande distinção. Não erraram
os mestres, pois Barroso Neto foi, em tôda
a sua vida, um esplêndido virtuoso do piano.
Como compositor, não menos brilhante
foi a Sll fl atuação. Escreveu páginas inesque-
cíveis, verdadeiras filigranas de delicadeza
artística, impregnadas da sensibilidade sutil
do seu autor. Basta a evocação dessa admi-
rável "Canção da Felicidade", gravada por
Bidú Saião e cantada constantemente por to-
dos os sopranos brasileiros.
Como êsse, inúmeros outros romances
brotaram da inspiração fina e fecunda do
Jl111sicista patrício.
Sua obra para piano é numerosa, em-
bora não mereça citações extensas, pois
não possuía sentido de brasilidade. No fim
da vida, porem, Barroso Neto foi se aperce- Maestro Frnncisco Braga nos últimos mlOS de "lHl
bendo dêsse sentido e procurou, por isso mes- exlstênci:l

mo, integrar suas composições nas tendências


nacionalistas. Infelizmente, êsse período foi Joã(; Batista da Costa, o maio!' paisagista
curto, pois a ,morte o cortou abrutamente. brasileiro.
São dessa fase o "Cachimbando ", o Aos dezessete anos matriculou-se no eon-
"Chôro", a "Minha Terra" e-outras tantas servatório de Música, dado o pendor que des-
canções. de pequeno demonstrara pela música. De tal
"As poucas obras instrumentais que nos forma que, dois anos depois, em 1887, já
legou - como observa Villa Lobos - reve- regia orquestra na Sociedade de Concêrtos
lam tendências de um futuro sinfonista, se Populares, onde apresentou seu primeiro tra-
não nlorresse tão cedo. Porque Barroso Neto balho, Ullla "Fantasia-Ouverture".
não nos deu nenhuma obra instrumental até Quando veio a República, o jovem com-
o seu período de transição pal'a as composi- positor concorreu ao certame do Hino ela
... ç'ões nacionalistas. E êsse período foi, infe- Proclamação, ao lado de Leopoldo Miguez e
lizmente, no final de sua existência". Alberto Nepollluceno. Não conquistou o pri-
meiro lugar, mas conseguiu um prêmio de
viagem à Europa, concedido pelo Govêrno
Provisório, tanto a êle COlUO a Nepomuceno,
Francisco Braga era carioca, nascido a tendo em vista o valM das obras apresen-
15 de abril de 1868. Seus pais foram pauper- tadas.
rimos. Aos oito anos, órfão, teve que ser in- Matriculou-se logo no Conservatório ele
ternado no Asilo de Meninos Desvalidos, mais Música ele l?aris, após brilhante concurso ves-
tarde, Instituto Profissional João Alfredo, tibular, no qual obteve o primeiro lugar. Seu
onde foi companheiro e colega de outro órfão, granele mestre foi :\lassellet, de quem êle

- 235-
sofreu iniludível influência em tôda a sua se êle é ou não operista. A ópera de teatro
carreira. ,Mestre e amigo sincero, pois a afei- não é só feita de música ... "
ção que o notável compositor de "Thais" de- Desejoso de apresentar ao público a "Ju-
dicou ao 'seu discípulo foi das 'mais desvane- pira", Francisco Braga, de volta ao Brasil,
cedOras.~A prova é que, quando se extinguiu conseguiu montá-la após mil dificuldades,
o prazo', de dois anos do prêmio de viágéin, vencidas graç'as à aj uda de amigos dedica-
com a conseqüente suspensão do auxílio go- dos. Levada à cena do Teatro Lírico pela
vernamental, foi o próprio Massenet quem Emprêsa Sanzone, na noite de 7 de outubro
tomoll a liberdade de se dirigir às autorida- de 1900, não logrou o êxito esperado. Desde
des cbrasileiras,::sugerindo-Ihes uma dilatação então o artista empregou suas atividades em
do prêmio', por luais dois anos. Ninguém vários setores: ensinava no Instituto João
deixaria de atender a tal solicitação; e Fran- Alfredo e no próprio Instituto Nacional de
cisco Braga permaneceu na Europa. Con- Música, para onde fôra nomeado professor
duziu, nessa época, um concêrto de músicas de composição.
brasileiras, em Paris, onde incluíu um poema Sua atuação no magistério foi a mais
sinfônico de sua autoria: "Cauchemar",. eficiente, tendo passado por seu curso uma
Em i895 atravessou a fronteira e foi à geração de artistas.
Alemanha, onde estudou, com denodado in- Enquanto isso, compunha. Suas obras
terêsse, as óperas de vVagner,pesquisando- surgiam constantemente, numerosas e cada
lhes os processos, bem como as variantes vez com maiores tendências para o nativis-
temperamentais do gênio de BaYl'euth. Com mo. Destacam-se entre elas o "Trio em sol
o estágio na Gel'mània, Francisco Braga co- menor", "Tango caprichoso", "Virgens Mor-
meçou a sofrer outra influência marcante, a tas", "Toada", "Insônia", "Crepúsculo",
da música alemã, revelada em numerosas "Chant d'AutOl1l11e". Escrevendo para o tea-
páginas de suas composições, especialmente tro, apresentou no "Contratador de Diaman-
no famoso "Episódio Sinfônico". tes ", de Afonso Arincis, duas belas peças:
Outra impressão não menos jnfluent~ foi "Variações sôbre um tema brasileiro" e "Ga-
a doverismo italiano, adquirida na viagem vião de Penacho". Compôs ainda um "Hino
de repouso que realizou na ilha de Capri, à Bandeira" e uma ópera" Anita Garibaldi",
em companhia de seu antigo colega do Asilo em quatro atos, que nunca foi montada.
dos Meninos Desvalidos, o então famoso pin- Seu Trio .para piano foi publicado pela
tor Batista da Costa. Universidade do Rio de Janeiro, em 1937, e
Já havia composto o seu "Marabá", poe- algumas de suas canções incluídas na "Flei-
ma sinfônico calcado sôbre temas brasileiros sher ColIection" de Filadélfia.
e inspirado nos verSOs magistrais de Gonçal- "Jupira" voltou à cena, no Municipal, na
ves Dias, quando se atirou arrojadamente à temporada lírica de 1923 e, mais tarde, em
composição de uma ópera "Jupira", calcada 1937.
sôbre um libreto de Escragnole Dória, extraí- Trabalhador infatigável, Francisco Braga
do, por sua vez, de uma' lenda de Bernardo dirigia, além de tudo, conjuntos musicais de
Guimarães. nossa marinha de guerra e regia na Socie-
Justo é consignar que a obra é banal e dade de Concêrtos Sinfônicos do Rio de J a-
sem ressonância na realidade brasileira . neiro.
Francisco Braga não se adaptou ao gênero E assim viveu, quase até aos oitenta anos,
de ópera. O próprio Carlos Gomes, referin- quando expirou, após tenaz enfermidade, no
do-se a êle, escrevia a um amigo, em 1893: dia 4 de março de 1945. Seu esquife, armado
"Não conheço senão de nome o artista de no vestibulo da Escola Nacional de Música,
quem me falas. Gostei porém do preludio mereceu a visitação de considerável massa
Paysage executado no Rio ultimamente. E' de povo, em uma última homenagem ao
uma composição genial, no gênero. Não sei mestre.

- 236-
Srnesto :Jfazaret8 e os tanJos

ERNESTO NAZARETH constitui o caso mais danças: "Chaine de dames! . " Balancé
singular da nossa música. Difícil é situá-lo Tous! ... " Os ademanes se sucediam, em re-
convenientemente pois sua obra paira muito verências gentis e deslizes majestosos.
acima da música popular existente no Rio Foi nesse ambiente que o nome de Er-
e não chega a alcançar plenamente a música nesto N azareth começou a ser pronunciado
eruditu. sob o titulo dos seus primeiros tangos. A
Sua própria formação revelava o estôfo principio os trabalhos do nóvel compositor
de um compositor inspiradíssimo e fatahnen- eram executados sob aplausos de uns e re-
te o teria sido se não fôsse a precariedade de servas de outros. A mocidade, áyida de no-
seus conhecimentos, ou melhor, a falta de vidades, vibrava com a alegria ebquêles com-
profundidade nos estudos. Por não poder passos sacolej antes; a velhice, porém, olhava
aperfeiç'oar-se convenientemente, tornou-se desconfiada para "aquêle fim de mundo ",
um caso típico de auto-didata. Era notório suspirando saudosa pelos bons velhos tem-
o seu anseio para se aproximar de Chopin, pos ...
mestre que êle venerava e cuj a obra foi o Não raras vezes, quando a menina-pro-
seu tormento. digio, a mocinha pianista da família acabava
Villa Lobos assim me falou a respeito de de executar peças clássicas, nos serões em
Nazareth: "Era autor de música popular mas que se bocejava à espera do chá com torra-
de certa elevação, a despeito de sua cultura das, ouvia-se alguém pedir baixinho, como se
primária. Suas tendências eram francamen- estivesse a conspii'ar: "Toque, agora, um tan-
te para a composição romântica, pois Naza- guinho do K azareth ... " Logo () ambiente fi-
reth era um fervoroso entusiasta de Chopin.
Querendo compôr à maneira do mestre po-
lonês, e não possuindo capacidade necess:hia
para uma perfeita assimilação técnica, fêz,
sem o querer, coisa bem diferente e que nada
mais é do que o incontestável padrão rítmico
da música social brasileira. Aliás, o seu caso
melódico é mais ou menos o mesmo que o
seu caso rítmico. De qualquer forma, N aza-
reth é uma das mais notáveis figuras da nossa

~
música" .
Aulor de inúmeras peças pianisticas foi
êle que nos deu o clima característico de uma

I
!
I
época, no Rio de J aneÍl'o, criando ritmos no-
vos para o encantamento dos nossos salões.
Ao tempo em que os seus tangos apare-
ceram, nas casas austeras de nossos avós a
sociedade rodopiava ao som de quadrilhas
francesas, schottishs e valsas vienenses. Nos
solares do segundo império, cuj as janelas
abriam, alinhadas, para os pomares das La-
ranjeiras, de S. Cristóvão ou de Botafogo, os
pares encasacados ou de saias rodadas, es-
corregavam pelos soalhos encerados esfusi-
ando gl'H~olas Hlllllycis no som rins contra- F.rnesto Na~arE'th, n1Oço ainda, quando €mpolgaxa a.
ddndt, ('0)1) n:::; :-:ell:-:, .. tallg'()~ " • , .

- 237-
cava cheio de um cascatear alegrc de notas dando-lhe as primeiras aulas de plano. In-
esfllsiantes, de UIll ritmo quente e lânguido, felizmente, ela se foi, quando o filho contava
como que a dissipar e varrer a modorra ainda dez anos.
acumulada entre as tapeçarias, os móveis de Órfão de mãe, mais se acentuou a pai-
mogno e j acarandá. A alegria· tomava conta xão do menino pelo instrumento. Obstinou-
da casa ...
se no estudo, embora sozinho.
Foi assim que ?\azareth conquistou o es-
O pai, lutando tenazmente, conseguiu as-
pírito de sua época, daquêle prinCÍpio de sé-
sim mesmo arranjar-lhe antro orientador: o
culo onde a vida decorria plácida e despreo-
cupada. sr. Eduardo Madeira, empregado no Banco
do Brasil e professor nas horas de lazer que
X ote-se que o seu tango nada tinha de
lhe deixavam os trabaJhos bancários. Infe-
comum com o tango argentino., tão conhecido
lizmente êsse período de aprendizagem du-
hoje em dia. Era, como confessava o próprio
rou pouco. A escassez de recursos e a conse-
X azal'eth, uma "adaptação nacional da ha-
qüente necessidade de conquistar a vida ma-
hanera ", que, na época, estava em voga, no
Hio. terial, obrigaram o jovem pianista a nova
interrupção, após UIll ano e pouco de estudo.
A designação de tango só lhe ocorreu
para evitar confusões cntre suas composições Desde então não poude mais obter oulro
e o famoso maxixe, do agrado dos compo- professor. Conseguiu, todavia, nesse primei-
sitores populares. Suas páginas eram pes- ro curso, os rudimentos primaciais indispen-
soais e inconfundíveis. sáveis à compreensão da música. Lucrou
com isso. E, em sinal de reconhecimento ao
gesto generoso de seu pai, que superara sa-
crifícios para lhe arranj ar um mestre, com-
El'lles to N azareth nasceu no mOlTO do pôs N azareth a sua primeira polca: "Você
Nheco, aos 20 de março de 1863. Seus pais, bem sabe ... ". Dedicou-a ao velho ...
Vasco Lourenço da Silva Nazareth e Caro-
Nessa ocasião contava Ernesto catorze
lina da Cunha Nazareth arrastavam as difi-
anos de idade e cursava o Colégio Belmonte,
culdades de uma vida pobre, mas honrada.
na praca Tiradentes. Sentava-se em aula ao
O morro do Nheco, situado nos flancos do
lado (le um outro rapazinho, seu amigo:
mOlTO do Pinto, era, naquêle tempo, quase
Olavo Bilac. Sua primeira composição agra-
desabitado. Apenas umas cinco ou seis casi-
dou a quantos a ouviram; e o próprio Edu-
nhas modestas alvej ayam as caliças ao sol,
ardo Madeira, seu ex-professor, encantado
emprestando a alegl'ia de notas claras ao
com o seu ritmo novo e interessante, levou-a
verde espêsso das encostas.
à Casa Artur Napoleão, onde o velho mestre
Como os sambas cariocas que até hoje
consagrou Nazareth com o seu aplauso, edi-
nascem nos li1orros e descem para a cidade,
tando-o em seguida. E a polca, girando pelos
o tango de N azareth teve as mesmas origens.
teclados da cidade, levou a todos os ouvidos
N as elevações que cercavam a Cidade
o nome do autor ... N azareth ficou conhecido
Nova a existência era. arrastada sem con-
e principiou a ganhar fama. Ao "Você bem
fôrto mas de forma pitoresca e poética.
sabe ... " sucederam-se outras produções.
Criou-se o pequeno no morro; sua infân-
cia decorreu ali entre o carinho dos pais e os O ritmo original dos seus tangos, que
brincos improyisados. Ernesto ::\f azareth gos- Izmbrava as habaneras cubanas começ'ou en-
tava do seu morro e a êle se referia constan- tão a encantar não só o compositor como o
temente, em recordações suaves. Mas D. Ca- próprio público.
rolina, em seus extremos de mãe, achava que Nazareth, bafejado pelo sopro de anima-
aquilo não era meio para se educar um filho. ção que o cercava, sentava-se ao piano e
E a família desceu para a cidade. eompunha. " Aos vinte e três anos, em 14
Yendo as aptidões do mellillo para a mú- de julho de 1886, contt:aiu matrimônio com
sica, dccidill-sc li glliú-]o cOll\'clliclltcllIcntc D. Teodol'a dc l\[eil'elcs Nazarcth. Morava

- 238 --
então o artista no pitoresco bairro de São
J anuário, Xazal'eth em seu
último retrato
Superava as dificuldades de Ullla vida
pobre, com a resignação e a probidade que
é o estOfo de tôdas as almas beias, Foi sem-
pl'C alegre, Até os últimos dias de sua vida,
aquele sorriso franco e jovial que sempre o
acompanhou era bem o reflexo do seu cará-
ter franco, de sua bondade indisfarçável,
Quando constituiu família, Nazareth era
jú Ulll profissional do piano, Sua execução
sc aprilllorava, de ano para ano; e suas com-
posições traziam, cada vez mais, o cunho
pessoal de sua inspiração. Sua fama dila-
tou-se. Entrou a lecionar; em pouco tempo
\'ill-se cercado de considerável número de
alunos, A família aumentava. Do matrimó-
nio vieram-lhe quatro rebentos. Cresciam as
responsabilidades. Acumulavam-se os en-
dendo a. instâncias de amigos, exibiu-se pela
cargos,
primeira vez, cm um concerto, no antigo
N azareth trabalhava, incansàvelmente, Clube de São Cristóvão, centro de reuniões
Em 1890 editou o tango "Cruz .. , perigo l" , elegantes, no bairro que era um dos mais
.Era uma frase muito popular, na época. Um fl'eqüentados pelo "set" carioca. O concêrto
dito do povo. de N azareth impôs-se em tôdas as camadas.
"Cruz ... perigo l" que fez sucesso estron- E sua música também.
doso, foi lançado pela Casa Viúva Canogia, Miercio Orsowspk, pianista russo, quan-
estabelecida à rua do Ouvidor. O estabele-
do aqui esteve, deliciou-se como ritmo do-
cimento exibia um mostruário comerciai elos
len te das composições de N azareth. Schel-
mais pitorescos: vendia músicas, águas mi-
ling, pianista vindo dos Estados Unidos, con-
nerais e leite condensado .. ,
fessou-se entusiasmado com as mesmas, che ..
Tres anos mais tarde inaugurava-se,
gando a incluir algumas delas em seu reper-
tambem, na rua do Ouvidor, a casa Vieira
tório. Mais tarde exibiu-as em Paris e outras
Machado, que editou logo o "Brejeiro", de
N azareth. Os direitos amplos desse tango fo- capitais da Europa. Finalmente, Antonieta
ram adquiridos pela quantia de cinqüenta Rudge MuleI', notabilíssima pianista ln'asilei-
mil réis! Fêz sucesso, Foi mesmo o maior ra, obrigou-o a dar uma audiç'ão íntima, no
exito, na época, Vendiam-se os exemplares !lOtel em que se achava hospedada.
às centenas, aos milhares, Tão grande foi o Nazareth foi, e Antonieta dispensou-lhe
triunfo, e tão rendoso o negócio para a casa os mais calorosos elogios.
editora que esta, como reconhecimento pelos
Em 1907, conseguiu o artista um lugar-
resultados colhidos, ofereceu ao autor um
zinho no Tesouro Nacional, o de terceiro eg-
magnifico.guarda-chuvas com castão de ouro,
critmário, percebendo um vencimento de
Infelizmente os frutos de suas edições
de nada valiam para o compositor. Os di- 83$333 mensais! Excusado é dizer-se que Na-
reitos Ínfimos da venda de suas músicas não zareth permaneceu pouco tempo no emprêgo,
davam para suprir as necessidades mais co- Foi esta, aliás, .H única vez que êle deixou de
mezinhas. . viver exclusivamente do teclado.
As aulas, por sua vez, não lhe bastavam. Quando se instalou o Cinema Odeon, na
PI'OClll'Oll novas o('.lI11ações. Em 1898, alen- Avenida Cenlral, Nazal'elh foi conlralado

- 239-
para tocar na sala de espera. ~Iudou-se en- positor Ernesto Nazareth, seus admiradores
tão de São J anuário para um sobrado, na de São Paulo. Julho de 1926".
rua Sete dOe Setembro, Mal se iniciavam as Quando regressou ao Rio um novo golpe
sessões, à 1 hora da tarde e já se ouvia, da o esperava: o passamento de sua espôsa, a
rua, a revoada cascateante (las notas do te- companheira dócil de tantos anos.
clado, dedilhado magistralmente pelo artista.
Juntava povo na calçada, .. Lá dentro,
na ampla sala de espera, eram também nu-
merosos os grupos; gente que comprava en- Ernesto Nazareth viveu os últimos tem-
trada para ficar, horas sem conta, repoltrea- pos de sua vida, no bairro das Laranjeiras,
da nos canapés, ouvindo Nazareth. cercado pelos carinhos de seus filhos e pela
Chegavam a aplaudir com eiltusiaslllo. atenção bondosa de seu velho pai, despa-
N azareth lançou, por essa época, o chante da Alfândega.
"Odeon", tango que fêz furor. E compôs Um golpe da .fatalidade repetiu nele o
ainda: "Tur bilhüo de beij os", " Chave de drama de Beethoven: os ouvidos se lhe cer-
Ouro", "Banlbino", "Turuna", "Soberano", raram em surdez profunda.
"Tenebroso", "Apanhei~te, cavaquinho", etc. ,Foram inúteis os esforços dos clínicos.
Durante' quatro anos vivell um período Ninguém sabia a que atribuir o fenômeno.
feliz, pelo estimulo que a populal'idi-l.de lhe Lembrava-se, contudo, o artista de que
trazia. aos dez anos de idade sofrera uma queda,
Chegou o ano de 1918. Ano da "gripe". em uma traquinada qualquer. Seus ouvidos
Sua terceira filhinha, Maria de Lourdes, fon- sangraram muito. Provàvelmente a rutura
te de alegria no lar do artista, contraiu a de algum vaso, naquela ocasião, tivesse ori-
enfermidade e não poude resistir a ela ... ginado a surdez, anos mais tarde.
Foi um golpe tremendo para o pai. Tão Sofria com isto; muitas vezes deixava
profundo que a mente se lhe turbou a ponto o piano, com lágrimas nos olhos ...
de inspirar cuidados ... N azareth, em seus últimos tempos, em
Não poude mais trabalhar, Sua sensibi- 1932, fêz ainda uma viagem ao sul onde teve
lidade fina e delicada mal podia suportar a oportunidade de se exibir, com o êxito de
lembranca dileta da filha que lhe forrava a sempre.
alma de melancolia. Quando voltou já as suas faculdades
Foi nesse estado de desànimo profundo mentais acusavam forte depressão.
que alguns amigos o encontraram em prin- Em vista disso a família decidiu inter-
cípios de 1926. Intentaram levá-lo à São ná-lo na Colônia de Psicopatas, em .Tâca-
Paulo. Insistiram; e l\ azareth acedendo dei- repaguá.
xou o Rio, pela primeira vez, em abril da- Ali viveu o artista seus derradeiros dias
quêle auo. até a madrugada de 1 de fevereiro de 1934.
N a vizinha capital suas composições eram Nessa ocasião deram por falta dele, na Co-
muito procuradas e o seu nome bastante po- lônia, e não o acharam em parte alguma.
pular. O sucesso previsto excedeu porém a Encontrando facilidades para uma sortida,
espeetatiya, Os paulistas receheram N azarcth <llwndo mal raiava o dia, desaparecera,
carinhosamente. Eram visitas, convites para Andou, com certeza, peralllbulando pelas es-
festas, etc. tradas, no meio do matagal, internando-se
Deu concertos no Teatro Municipal e no nos bosques cerrados. Os enfermeiros pro-
COllsenatório. Da l'api tal seguiu para Cam- curaram-no ativamenle, pelas redondezas,
pinas onde realizou duas alldi~ões. Finalmente, no dia ,1 foram dar com o seu
Yollall<lo, J'cccbell dos paulistas a oferta eadúvel', debaixo de UIlla pequena caehoeil'a,
de um lllagnifico piano de catl<ln, onde se por onde êle llutllL'almcnte se precipitara,
lia, ('111 UIll cart:lo de prata: "Ao ilustre COIll- (llWudo C'aminlHlya <lesol'ielltado pela Illata.

- 240 --
A postura em que se encontrava era im- mãos como se estivesse tocando em um te-
pressionante. Sentado, com as águas a lhe clado invisível estranhos acordes, cujo sen-
correrem por cima, mantinha os braços e as tido só êle poderia conhecer ...

(Js tempos sao os tempos ...

MUITO se tem dito e escrito a respeito de grande guel'ra,é de franca decadência para
as artes e para a cultma, é porque julgo,
"arte modernista", em um esfôrço comum
para fixar suas diretrizes e explicar seu es- como Yan Loon, que o pensamento humano
pírito intrínseco. Não pretendo oferecer, não segue uma linha de ascenção contínua
nestas páginas, arena condigna para entre- mas sim de marcante sinuosidade. A um
veros' de criticos e cOIÍlentaristas. período de depressüo sucede invariàvelmente
O fenômeno modernista que, dentro em um outro de elevação ...
breve, será um passadismo de triste memó- Para mim, a depressão que se vem veri-
ria nada mais é, para mim, do que o reflexo ficando desde a primeira década do século
de uma época de profunda depressão. Convém atuaI é das mais profundas em que a huma-
notar que estou falando na primeira pessoa. nidade tem caído.
Faç'o essa advertência, talqualmente Brilat- A pintura, a arquitetura, a música, a
Savarin, no momento em que procurava jus- poesia, as letras, tudo enfim tem apresentado
tificar-se: "Quando escrevo e falo em mim no feições tão deprimentes que se torna lícito
singular, suponho uma confabulação com o pensar assim. Época de transição para uma
leitor; por isso mesmo, pode ele examinar, outra que está p'ra vir e cujos primeiros cla-
discutir, duvidar e até rir; quando me armo, rões já começaram a tingir o horizonte.
porém, com o temível "Nós", falo como mes- Os artistas, sobretudo, são os que mais
tre, e então é necessário que êle se submeta". sofrem as influências do meio-ambiente. São
Que os fados me livrem da pretensão de êles os que lhe absorvem o ar de elevação
falar de maneira formalística, de me armar ou de depressão mental; absorvem-no e,
com o temível "Nós", como a querer impô!' conseqüentemente, o refletem em suas obras
concei tos dogmáticos, verdadeiros silogismos, de arte.
cuj a solução não admite o menor exame, a
Se o meío ambiente está saturado de ele-
mais simples discussão. Nada disso. Depois,
mentos altamente inspiradores é claro que ()
então, que entraram em moda as formas dia-
mundo pode contar com uma renascença; se,
léticas, usadas por Platão e sistematizadas
ao contrário, êle nada apresenta capaz de
pelo gênio de Engels, ninguém mais supor-
elevar o pensamento artísti<:o, os eleitos dos
taria o· empirismo das idéias em uma tenta-
deuses chafurdam em plena mediocridade.
tiva .de levar a crença implícita a todos os
setores do pensamento. Elevar con~eitos à O certo é que ninguém foge ao seu tem-
intolerância de tabús é coisa inaceitável, hoje po, salvo raríssimas exeec;ôes: os verdadeiros
em dia. gênios que se antecipam ii. sua época.
Dentro dessa ordein de idéias é que ex- • E' impossível Ilegal' o valor relativo das
ponho as minhas. Quem quiser que as refute mallifestaçôes de ade sllrgidasnesses últimos
ou as aceite, concorde com elas ou não, ache- trinta anos se as compararlllOS às ele outras
as edificantes ou ridículas. '. Dialeticamente, epocas, de pleno renascimento. " Sem clil'e-
isto é que está certo. trizes seguras, no intuito de criar coisas novas,
Quando digo, que o momento atuaI, isto "novas obje.tividades", perdem-se os artistas,
é, aquêle que decorreu entre uma e outra em um tumulto de idéias e de processos hi-

- 241 --
zarros, em experimentações isoladas, indivi- que criar outros tantos convencionalismos,
dualistas, sem qualquer ligação a uma cor- mais perigosos talvez do que os já estatuidos
rente dominante, a um espírito generalizado. e canonizados.
Cada um dêles torna-se um messias anun- Mesmo assim "le monde marche ... "
ciando mundos :novos no domínio da sensi- Tudo isto está ficando para trás e, em breve,
bilidade. Daí a multiplicidade de "escolas" sera puro passadismo. Uma coisa permane-
e o surgimento dos ismos de tôda esp~cie ... cerá no entanto, como idéia central, como
Em pouco já ningu~m mais se entenderá, corolario espiritual, como rumo caracteristi-
c o pandemônio será completo. camente iniludível do pensamento moderno:
a rebusca das fontes nacionalistas nas artes
de cada povo.
~o reino da música os tempos modernos Dentro dêsse espírito constrói-se '.' algo
trouxeram convulsões inquietadoras. de nuevo" .
. Houve o atonalismo de Schoenberg, a Músicos e pintores, romancistas e poetas
condenação dos velhos processos harmônicos, voltam-se todos para os seus povos, rebus:'
a subversão da polifonia e a imposição da cam-lhes o sentimento nativo, estudam-lhes
politonalidade. Houve a procura incessante o folclore, a vida, os costumes. .. Desprezam
de novos timbres, introdução de novos ruí- os velhos processos de fazer arte pela arte,
dos, o domínio avassalador do jazz, disso- destruindo o puro formalismo para penetra-
nante e estridulo, novas regras, nova técnica, rem na essência da alma popular.
novos rumos ... E uma arte sincera, honesta, sem pre-
Tentando fugir aos convencionalismos da conceitos e sem fórmulas deverá surgir de
Arte, pregando uma liberdade ampla, irres- todo êsse esfôrço contínuo dos artistas atuais.
trita, os artistas· nada mais conseguiram do Disto estou certo .

.:Puciano e Çjuarnieri

A S TENDÊNCIAS da mUSIca moderna já fo- Vejamos, em primeiro lugar, Luciano


ram amplamente caracterizadas na primeira Gallet e Camargo Guarnieri.
parte desta obra através das palestras que
mantive com os três grandes: Villa-Lobos,
Lorenzo Fernândez e Francisco Mignone.
Achava desnecessário voltar a falar nelas; Luciano Gallet foi, no bom sentido, um
meus entrevistados no entanto, não pensaram dos maiores animadores do meio musical
assim; julgaram interessante adjudicar algu· brasileiro. Sua a'tuação, como orientador e
ma coisa mais, especialmente quanto às di- como pesquisador, tem sido elogiada por
retrizes que, a juízo de cada um, deverá se- todos,
guir a música em nosso pais. Nascido no Rio de Janeiro, a 28 de junho
Realmente, como fêcho da obra, nada de 1893, filho de franceses, pai e mãe, estu-
seria mais proveitoso do que tais opiniões, de dou com Henrique Oswald, o nosso "músico
real influência, sôbre o oscilante futuro da francês ... " Isso talvez explique o que muita
arte musical no Brasil. Antes, porem, impõe- gente diz: que a obra de Luciano Gallet não
se-me anotar as atividades dos compositores trai o puro sentimento de brasilidade que êle
de nossos dias, todos êles colaboradores do tanto se esforçou por imprimir nela.
nacionalismo musical llO Brasil cOlltempo- Há outras razões, no entanto, Por exem-
râneo. pIo: a grande preocupação que o absorvia,

- 242 --
de "criar" coisas nacionalistas, tirava-lhe a
expontaneidade com que estas mesmas coisas
deveriam ser criadas. Suas páginas são mais
pensadas, do que sentidas, se me permitem a
objeção.
Sua sensibilidade era mais sistematizada,
mais metodizada do que fantasista, livre e
independente. Preocupou-se muito com a téc-
nica e os processos brasileiros, sem possuir,
contudo, a inspiração nativa ilustradora dos
remígios do sentimento. Estudava a manei-
ra de fazer música; mas não a realizava.
Culto e sincero na sua porfia, deixou uma
obra preciosa de pesquisas, tanto no popu-
lário nacional como na harmonizacão de
canto folclórico. A prova está nos se~s "Ca-
dernos de Melodias Populares", em duas sé-
ries, publicados em 1924, e nos "Doze exer-
CÍcios brasileiros", em 1928.
Sua vida foi curta, pois não chegou aos
quarenta anos.
Fêz seus primeiros estudos no colégio
Santa Rosa, em Niterói. Seu pendor para as
artes, em geral, obrigou-o a andar vacilante
entre o Instituto de Música e a Escola de
Belas Artes, onde pretendia cursar arquite- Luciano Gallet em uma de suas raras fotografias

tura. Mesmo no seu tempo de estudante tanto


tocava em orquestras de bailes e cinemas e quase cego. Quatro meses depois, a 29 de
como trabalhava em escritórios de arqui- outubro de 1931, expirava, de maneira dolo-
tetos. rosa, cercado de amigos e admiradores.
Em 1914 matriculou-se na Escola de Be- Escreveu páginas de real interêsse tais
las Artes e no Instituto de Música, onde, dois como: "Suite Bucólica", para orquestra,
anos mais tarde, conquistava a medalha de apresentada ao público, sob a regência de
ouro, em piano. \Tílla-Lobos, em janeiro de 1926, e "Dansa
Decidiu-se então definitivamente pela Brasileira", também para orquestra, regida
música. Em 1919 entrou como livre-docente por Otorino Respighi, no Rio, em 1928. Há
,e em 1930 foi nomeado Diretor do Instituto. ainda a suite "Turuna" e uma outra sôbre
Suas atividades como professor e ani- temas afro-brasileiros, além de numerosas
mador do meio musical foram as mais lou- canções.
váveis. Andou fundando associações que pou- Mário de Andrade que lhe escreveu a
ca duração tinham; procurava estabelecer biografia acha o trio "Nhô Chico" o mais
conferências e conclaves para o soerguimento notável trabalho de Luciano Gallet. Seus
da música nacional e maior congraçamento "Estudos de Folclore" apareceram em publi-
dos musicistas. Na direção do Instituto ficou cação póstuma.
apenas pelo espaço de um semestre.
Incompatibilizou-se desde logo C0111 o "Música brasileira. Sim, de qualquer
mundo oficial, em virtude de uma reforma forma e _por tôdas as formas temos que tra-
que pl:etendia levar a efeito no ensino então balhar uma música de cm·átel' nacional. E'
existente. Exoneron-se, fatigado e já grave- lima questão de honestidade, é sobretudo uma
men te enfermo, com uma forle afecção renal questão de- integridade. () músico não é um

- 2-13 --
~l;r diletante que cria pelo prazer de brincar nome que Guarnieri nunca usou por conSI-
Oll inventa pelo egoísmo de se representar a derá-lo presunçoso",
~i mesmo, Há uma escravização maravilhosa Como o velho tocasse flauta em uma
do artista a tudo quanto o rodeia e que, pelas . banda local e o pequeno mostrasse inclina-
f.Ínteses e confissões benfazejas da arte, ele ções precoces pela arte dos sons, justo seria
deve transportar para um mundo mais real receber logo os primeiros rudimentos musi-
e eterno que a fugidia realidade, Sem essa cais, no próprio lar,
correlação íntima do artista e do mundo que De Tietê veio êle para S, Paulo, onde
o fez, em que ele vive, o criador não está estudou com Ernani Braga, Sá Pereira e o
completo, Poderá ser um eco de visagens maestro Baldi. No Conservatório Dramático
distantes e desgarradas, não será jamais Ullla e Musical de São Paulo, foi regente do Coral
voz viva e necessária", Paulistano, obtendo do govêrno estadual, em
Essa tirada que aí está, crivada de COll- 1938, um prêmio de viagem à Europa,
siderações dignas de meditação, perten,ce a No velho mundo estudou harmonia, COIl-
Camargo Guarnieri, um dos maiores compo- h'aponto e orquestração com Charles Koech-
sitores do Brasil de nossos dias, Sua obra tal lin e fêz CUl'50S de regência e coros com Fran-
vulto assume, frente ao nosso deslumbl'alllen- çois Ruhhnann,
to, que até concede ao autor o direito de se Voltou ao Brasil, em 1940, quando a guer-
emparelhar aos três grandes da música bra- ra já talava os campos europeus, Dois anos
sileira, Camargo Guarnieri é, de fato, um mais tarde visitou os Estados Unidos, onde
artista. situado em plano equivalente a Yilla- apresentou seus próprios trabalhos, regendo
Lobos, Lorenzo Fernàndez e Francisco Mi- a. Orquestra Sinfônica de Boston e outras,
gnone, N a terra de Tio Sam, Guarnieri é mui
Se, no presente livro, não estabeleci a justamente considerado o compositor mais
fórmula dos quatro grandes, completando-a brilhante da nova geração brasileira, Lá
com Camargo Guarnieri, foi simplesmente mesmo êle já obteve láureas honrosÍssimas
por falta de contacto mais íntimo com o mú- em competição com os mais destacados com-
sico paulistano, fato que me impediria de positores das três Américas, Uma delas foi
consultá-lo continuamente, conforme procedi o primeiro prêmio de 750 dólares em um
com os outros, concurso havido na América Latina e patro-
Suas obras incluem-no, porém de manei- cinado por Samuel FeIo elll 1942: A compo-
ra automática, no primeiro plano dos autores siç'iío que mereceu essa recompensa foi o
brasileiros, aqueles a quem a nova expressão "Concêrto para violino", executado em 1944
nativista em nossa arte tudo fica a dever, na União Panamericana, pela banda (la Ma-
Francisco Mignone disse-me, certa vez, rinha dos Estados Unidos, ocasião essa em
que Camargo Gual'llieri fôru mais feliz do que Milton \Vohl se incumbiu da parte ele
que êle e os seus colegas, pois já havia en- violino,
contrado o campo desbravado, os rumos in- Outra vitória de Guarnieri foi o primeiro
dicados e nada mais teve que fazer senão prêmio, de mil dólares, concedido à melhor
produzir dentro dêles, sem a preocupação de composição para quartetos de cordas na Amé-
se tornar um experimentalista, rica Latina,concllrso sob o patrocínio da
Camargo Guarnieri pertence à moder- Washington Chamber Music Guild e organi-
nissima geração, pois conta apenas quatro zado pela Hadio COl'poration of America,
decênios, atmvés de sua divisão HCA Victor, Essa yi-
Seu pai era siciliano e \'Pio para o Bra- tól'Ía é tanto mais preeÍosa se considerarmos
si[ ainda llluito criança, Aqui casou-se com que a composição de Gual'llieri obteve o pri-
uma btasileira, filha de lima antiga família meiro lugar entre h'ezentas outras, das quais
patriarcal. O pequeno nasceu em 1H07, na vinte brasileü'as (nessas últimas inclui a-se
cidade de Tietê (Estado de Súo Paulo), e uma de Cláudio Santoro, premiada eom men-
receheu na ]lia batismal () llOllle de Mozart, çao hOl11'osa) ,
A obra de Camargo Guul'l1ieri está fode-
mente integl'Uda no espírito nativista e im- o cOIl1)Jo,itor Ca-
margo Guarnieri,
buída de fortes acentos do folclore brasileiro. uma das mais l~­
Sentimentalmente lírico, extrai e aproveita, gItimas g16rias da
mú~.;i('a brafolildra
com expontaneidade incrível· os motivos mu- atual

sicais das três raças tristes ...


Quanto aos processos de tccnica, ele
mesmo já expressou sua cren~a de que a
"música brasileira deve ser tratada polifoni-
camente". E conclui: "A qualidàde de nossa
rítmica, a sua força dinâmica, nos aconselha
a evitar as harmonizações por acordes.,,"
Dentro dês te traçado está todo o rumo dos
processos de Guarnieri, onde sua inspira~ão
cam~nha livre e sem tropeços,

Sua obra, não obstante a idade do artista,


já é profusa e variada,
Para orquestra escreveu um poema sin-
fônico, "Curuç'á", nome indígena da cidade Possui ainda concêrtos para piano, vio-
natal de Guarnieri; uma dansa sinfónica" Pe- lino e violoncelo com acompanhamento de
rereca"; dez "Ponteiros"; trts "Toadas"; orquestra,
"Dansa Brasileira"; "Dansa Selvagem"; "En- Suas cuncôes sào inúmeras (mais de se-
cantamento" e "Abertura Concertante", Para tenta) além ;ie quase uma vintena de peças
orquestra de cúmara produziu uma página corais,
"Flor de Tt'emembé", para quinze instrumen- A obl'a pianístiea de Gual'1lieri (' também
tos nos quais estão incluidos o chocalho, o cOllsidel'uvel, Nela apontam-se, entre outras,
reco-reco e a cuíca, Além dessa há uma lista as seguintes: uma Tocata, três sonatinas,
de peças pam instrumentos de sôpro, duas cinco composições infantis, três valsas, dez
sonatas para violino, uma para violoncelo e "Ponteios", além de "Dansa Brasileira" e
"Dansa Selvagem", As três últimas são trans-
um grupo de quatro trabalhos sob o título de
"Chôro", crições para piano das peças orquestrais, Com
tôda essa bagagem, composta nos seus pri-
Para o teatro compôs uma ópera cômica meiros quarenta anos de existência, é justo
em um ato "Pedro Malazarte" e uma cantata esperar-se um futuro brilhante para Camargo
trágica "A Morte do Aviador", Para canto e Guarniel'i; futuro que será mais brilhante
orquestra, escreveu "Três Dausas" (Samba, ainda para a música do seu pais, pois o sen-
Cateretê, Maxixe), "Desesperança" e "Três tido nacionalista de sua arte serve como ga-
Poemas" , rantia de notáveis realizações,

oe
HEI{EL TAVARES nasceu em SatuLa, eni 189G, mentais de llIuitas delas a fim de ()ferec·~-Jas
filho de um rico plantador do Norte, ao público, devidamente harmonizadas, na
Suas tendências para a música cedo se beleza singela de sua própria espon taneidade,
denun~iaral11. Encantado pelas canções de ::-..rão se preocupou em estilizá-las ncm tam-
sua terra, andou catando os motivos senti- pouco em deformá-las; pelo contrúrio, embe-
pais italianos. Recebeu elementar instrução
de música de sua própria mãe. Mais tarde
ingressou no Instituto de Belas Artes da ca-
pital gaúcha, onde se tornou o discípulo pr e-
dileto do professor Guilherme Fontaínha, a
ponto de terminar brilhantemente o curso,
em 1924, distinguido com a medalha de ouro
do primeiro prêmio.
Veio em seguida para o Rio de Janeiro
onde completou estudos de harmonia com
Agnelo França.
Começou a com pôr. Apresentou ao pú-
blico sua primeira obra, "Rapsódia Brasilei-
ra", que continua a ser a sua "primeira" obra.
Reckel Tayares ensinando ao filho os primeiros rudi-
mentos da arte musical· Pelo menos assim a julga muita gente boa.
Nela surgem, tratados com carinhoso sabor
lezava-as, através de sua sensibilidade aguda de espontaneidade, certos temas populares e
e extremamente artistica. Durante algum folclóricos.
tempo Hekel Tavares percorreu regiões do Não falta ainda quem diga - e nesse
Brasil na pesquisa de temas populares, tanto número estão Villa Lobos e Francisco Mi-
dos negros, como dos caboclos. Suas canções gnone - que a influência dominadora do jazz
conhecidíssimas espalharam-se por todos os muito haja concorrido para desvirtuar as rea-
recantos do país, cantadas nos salões, nas lizações nacionalistas do jovem compositor.
ruas ... "Casa de Caboclo", "Sussuarana" e Aliás, na Rapsódia Brasileira nota-se o espí-
outras fariam o renome de qualquer com- rito da música de Gerschwin surpreendendo
positor. o ouvinte.
Os entendidos frizam que o compositor
se ressente de certa falta de técnica por não
ter em tempo se beneficiado com uma edu-
cação musical sistemática. Mesmo assim é
inegável o valor de tudo o que intenta reali-
zar, pelo sentimento profundamente inato do
folclore brasileiro.
Suas composições mais conhecidas são:
uma suite sinfônica, "André de Leão e o De-
mônio de Cabelo Encarnado", e um "concêr-
to" para piano e orquestra, dividido em três
movimentos: Modinha, Ponteio e Maracatu.
Em ambas respira-se fortemente o clima fol-
clórico brasileiro, especialmente no "concêr-
to", onde o autor fixa, em suas três partes,
temas urbanos, rurais e africanos.
Hekel Tavares foi recentemente contra-
tado para ir a Londres compôr a partitura
especial de uma película inglêsa, filmada no
Brasil, viagem que não chegou a realizar.

Radamés Gllatalli, nascido em Porto Ale-


lladamés Gnatalli, ao piano, executando uma de suas
gre, Rio Grande do Sul, em 1906, é filho de composições

- 246
Seu instrumento é o piano e isso explica
a predileção de Gnatalli pelas peças pianís-
ticas, embora componha muito para orques-
tra.
Escreveu dois "Concêrtos" e um "Con-
certino", para piano e orquestra, um "Poe-
ma", para violino e orquestra, uma "Suite"
em cinco movimentos e três "Miniaturas",
para orquestra de câmara.
Na "Fantasia Brasileira", Gnatalli utili-
zou-se com habilidade pasmosa da melodia
tão popular da "Casinha pequenina". Sua
obra conta ainda com um "Trio", para piano,
violino e cela, um "Quarteto ", para cordas,
"Valsas", para piano, "Canção e Dansa",
para contrabaixo e piano, etc.
Tôda a obra do compositor riograndense
do' sul é calcada em formas nativas, quer pelo
aproveitamento do folclore brasileiro, quer
pela criaç'ão vivaz de seus processos rítmicos.
Radamés Gnatalli integrou-se no movi-
mento radiofônico do Rio, dignificando-o
com a sua arte de largas perspectivas para
a música. E' um dos mais talentosos artistas
da nova geração. :liaestro Burle Marx

José Vieira Brandão é mineiro, da ci- Walter Burle Marx nasceu no Rio de Ja-
dade de Cambuquira, onde nasceu em 1911. neiro, em 1902, filho de judeu alemão e de
Sua atividade é tôda ela essencialmente pia- mãe brasileira.
nística. Começ-ou a estudar piano com sua mãe,
Veio para o Rio de Janeiro, onde estudou quando tinha ainda sete anos. Aos doze exi-
na Escola Nacional de Música sob a orien- bia-se num concêrto de piano, apresentado
tação do professor Custódio Fernandes Góis, por Artur Napoleão. Aperfeiçoou-se ainda
obtendo a medalha de ouro em 1929, Em 1932 com Henrique Oswald, seguindo em 1921 para
mostrou-se um precioso coadjutor de VilIa Berlim, onde tomou liçpes de composição
Lobos no plano de organização orfeônica das
com Reznicek e de regência com Weingart-
escolas públicas da Capital.
ner. Nos anos de 1925 e 1926 deu recitais
Começou a compôr em 1935 e, até hoje,
de piano em Viena, Berlim, Paris e Milão.
não tem cessado sua produ,ç'ão, integrada de
numerosas canções, calcadas sôbre temas fol- Sua primeira composição para orquestra,
clóricos, além de algumas peças para piano. "Tema, Variações e Fuga", foi apresentada
Dentre 'elas destacam-se:'" Prequeté", "Uia- em Rostock, em 1926. Dois anos depois,
ra", "Iaraporanga". Para violino escreveu: Burle Marx voltou ao Brasil, dedicando-se à
"Romance", "Canto Sertanejo"j' etc. Para regência. Fundou uma orquestra, a Filar-
piano: "Suite Vesperal", "C apricho Impro- mônica do Rio de Janeiro.
viso", "Serestas", etc. Viajando para os Estados, teve oportu-
Em 1940, Vieira Brandão visitou o Uru- nidade de apresentar, na Feira Mundial de
guai, acompanhando VilIa Lobos em sua em- Nova York, em 1939, o "Episódio Fantástico",
baixada artística. terceiro movimento de sua "Sinfonia", que
mereceu largos elogios da imprensa.

'- 217 --
Dêle, apontam-se ainda "Variações sôbre Compõe continuamente todos os gêneros
o Hino :laciona!", "Ave Maria", "ln Memo- de música, sendo de destacar o "Trio" em
riam", etc. mi bemol; a "Cheia do Paraíba ", além de
Sua obra não reflete as tendencias da dois quartetos.
atual música brasileira. Joanidia Sodré dedica-se também à re-
gência. E' diretora da Escola Nacional de
Música, no Rio.

o mesmo não :-;ucedeu a Agü:-;tinho Can-


tú, embora e:-;t.rangei)'o, nascido em Milão, em Eleazar de Carvalho veio, como Nepo-
1880, em cujo Conservatório es[udou. Viu sua muceno, das praias ensolaradas do Ceará,
ópera "II Poeta" premiada no concurso de onde nasceu em 1012.
Sonzügno, em 1H02 . ~o Hio engajou-se úa banda do Batalhão
Veio para o Brasil, UlIlIi se radicou, re- ~ uval, onde tocaya tuba. Conseguiu, final-
velando-se Mimo pl;ofes~or. Ocupou uma mente, ingressar nu Escola Nacional de Mú-
cátedra de piano no Conservatório Nacional sica, dedicando-se especialmente aos cursos
de Süo Paulo e, encantado pelos ritmos e de cOlüposlção e regência. Dai, seu pendor
melodias hrasileiras, começou a compôr, pro- para o gênero operístico.
duzindo "Tres Rapsódias Brasileiras ", "Três
Sua primeira obra, "A Descoberta do
Lendas Brasileiras" e "Impressões Brasilei-
Brasil ", destinada a inauglll'ar um pequeno
ras".
ciclo de óperas de caráter CÍvico, foi levada
No espírito da velha música européia, à cena em lH39, sàbre um libreto, em portu-
Cantú apresentou "Kennesse", "Scherzetto", guês, de Paula Barros.
"Cavaliere Arabo", "Polonaise Fantastique",
etc.

Dinorá de Carvalho nasceu em Ubel'aba,


Estado de Minas Gerais, em 1H05. Estudou
piano no Conservatório Musical de São Paulo,
indo aperfeiçoar-se em França, com Isidor
Philipps.
\Toltando ao Brasil, deu numerosos con-
certos. Comecou a compôr em 1922 e já apre-
senta uma li~ta considerável de peç'as, sendo
justo destacar: "Fantasia Brasileira", para
piano e orquestra; o poema sinfônico "Festa
na Vila", premiado em 1936 pelo Departa-
lllento de Cultura de São Paulo; "Três Dan-
sas Brasileiras"; "E' Bambo-bambuê"; "Pau-
Pia", etc.
Escreveu ainda peças para piano, espe-
eialmen te para crianças, como' os " Jogos no
jardim" .

Joanidia Sodn\ é professora de harmo-


nia na Escola Nacional de Música. Os cursos
que ali seguiu foram brilhantíssimos, obten-
do prêmio de viagem ao estrangeiro no de
composição. l\1ae~tro Eleazar ele Carvalho

-' '248 -
No dia 7 de setembro de 1941, no Teatro Estudou violino em sua cidade natal,
Municipal, Eleazar regia ,a segunda da série, partindo em i 927 "para os Estados Unidos.
"Tiradentes".
. Em . ambas, há momentos
. de Lã, em Cineinati, tomou lições de composi-
real interêsse, embora em seu conjunto apre- ç:~o. Regressando ao Brasil, devotou-se ao
sentem determinado convencionalismo, a que ensino e à composição.
o compositor não poderia ter fugido, em vir- Sua obra é de intenso saboi' sulino na
tude dos processos que dominam o gênero. parte emocional, enquanto que seu estilo har-
COIl19 regente, Eleazar de Carvalho vem mÓnico e contrapontística é de considerável
se, afirmando como a esperança lie um mes·· complexidade.
tre, causando entusiasmo não só em seu país Escreveu um bailado, inspirado em uma
como no estrangeiro, especialmente nos Es- lenda gaúcha, "Salamanca do Girau" .. Sua
tados Unidos, onde esteve recentemente. "Canção do Tio Barnabé" foi publicada em
Montevidéu, em 1943, pela Editorial Coope-
rativa Interamericalla de Compositores.
Francisco Casabona, nascldo em S. Paulo, . Além dessas, é justo assinalar: "Balada
em 1894, foi muito jovem ainda para a Itália, para os Carreteiros", "Colonial", "Mãe dágua
onde estudou no Conservatório' de Nápoles. canta", para violinó e piano, "Oração à Tei-
Lá, escreveu dmis óperas cô~nicas: "Godiamo niagua", etc.
la Vita", em Roma (1917) e "Principessa déll'-
Atelier", em Nápoles (1918).
Regressando ao Brasil, foi nomeado di- João Itiberê da Cunha exerce suas ati-
retor do Conservatório Musical de S. Paulo. vidades como poeta, jornalista e compositor.
Em .1924 apresento"u, na capital bandei- Irmão do precursor Brasílio Itiber·ê da Cunha,
rante, seu poema sinfóni'co "Nero" e, em nasceu no Paranú, em 1870.
1937, uma "Sinfonia". Escreveu ainda: "Cre- Culto e inteligente, é mais conhecido co-
púsculo Sertanejo", "Noite de São Juão" mo comentarista de assuntos musicais, na
(ambos para orquestra), Ulll qual'teto para imprensa brasileiro, onde usa () pseudônimo
cordas, alguns trabalhos para canJo e COl'OS, de Jjc.
um álbum de peças para piano, "Sugestõe:;", Escreve poesias COlll ou!L'o pseudónimo,
uma Sonata e uma suite brasiléira, intitu- o de lwan d'Unac (anagrama de Cunha) .
lada: "Pindorama". Como compositor produziu: "Série Bra-
sileira", em três partes, para grande orques-
tra; "Danse Plaisante et Sentimentale" e
Francisco Chiaffitelli é talvez o mais co- "Marcha Humorística". Escreveu também al-
nhecido violinista e professor de São Paulo, gumas dansas sóbre temas afro-brasileiros.
pois começou a dar concêrtos muito criança
ainda. Agnelo França, nascido em 1R75, é ma-
. Estudou na Bélgica, obtendo o primeiro gnífico professor além de cOlllpositor. Autor
prêmio de violino no Conservatório de Bru- de uma "Arte de Modular", suas atividades
xelas. Itinerou pela Europa e alguns paises COlllO pedagogo têm sido das mais profícuas.
da América, em tournées artísticas. E' professor de harmonia na Escola Nacional
Escreveu numerosas paginas para violino, de Música. Compôs vadas obras corais, pe-
piauo e cauto. Dentre elas destacam-se: "Fan- ças para piano e uma ópera, "As Parasitas".
tasia Brasileira", "Caução Sertanej a", "Dan-
sa Regional Brasileira", "Cismas de Matuto",
etc.
Artur lberê de Lemos, nascido em Belém
do Pará, em,1901, foi para Londres em 1915,
Luiz Cosme é riograndense do sul; nas- onde estudou violoncelo com John Barbirolli
ceu em Pôrto Alegre, em 1908. e cursou harmoni a na Royal Academy of

- 249-
Music. Completou, em seguida, seus estudos Antes, após haver completado estudos de
em Berlim, rumando finalmente para Milão. flauta e composição, deu concertos em quase
Sua obra compõe-se de peças para piano, tôda a Europa. Exerce, em nosso país, suas
violino, canto e orquestra, aléin da partitura atividades como professor, compositor e flau-
da "Ceia dos Cardiais", calcada sôbre a fa- tista.
mosa peça de Júlio Dantas. Sua obra ja é imensa, a despeito de ser
Nas canções reside, no entanto, o maior Hans Joachim muito moço ainda. Escreveu
mérito de Iberê de Lemos, especialmente em uma sonata para piano, duas para violino,
"Momentos Líricos", "Desejo" e "Canção uma para flauta, além de "Inventions", para
Arabe" . instrumento de SÔpI'O, "Poemas brasileiros",
"Música 1941 ", para orquestra, etc.

Brasília Iliberê, nascido no Paraná. em


1896, é mais um representante da família Iti-
João de Souza Líma nasceu em S. Paulo,
bere, que ja nos dera o precursor Brasília
em 1898, tendo realizado seus estudos de pia-
Itiberê e o João Itibere da Cunha, tios do
no e composição no Estado natal, com Chia-
atual compositor.
farelli e Agostinho Cantú. Revelou-se desde
Estudioso incansável da nossa música
logo um magnífico pianista, razão pelo qual
típica, colhe nela os elementos para os seus
o govêrno de São Paulo decidiu enviá-lo à
trabalhos, muitos de real valor como "Cor-
Europa para completar seus estudos.
dão de Prata", "Ponteio de São João" e a
Ingressou no Conservatório de Paris,
série negra: "O Protetor Exu", "Xangô, Exu
onde obteve, em 1922, o primeiro prêmio.
e Ogum". Estilizou ainda peças de música
Aperfeiçoou-se ainda no piano com os me-
popular, enfeixando-as em um álbum; sob o
lhores virtuosi da época: Philipy, Marguerite
li tulo: "Seis Estudos".
Long e Brailowsky.
Depois de graduado visitou, em tournée,
alguns países da Europa e da América, sem-
João Batista Julião, nascido em 1886, é pre vivamente aplaudido.
compositor de música coral e de peças edu- De regresso ao Brasil, dedicou-se à re-
cacionais para escolas. E' professor em São gência e à composição.
Paulo. Conduziu concêrtos orquestrais e com-
pôs grande número de peças para piano e
canto.
Carlos de Mesquita, nascido no Rio de No gênero sinfônico, escreveu "Rei Ma-
J aneil'o, em 1864, exerceu suas atividades nos meluco" e o "Bailado das Lendas Brasilei-
últimos decênios do século dezenove. Estu- ras ", plenos de características nativistas.
dou em Paris com os mais reputados mes- Muito é de esperar ainda da capacidade cria-
tres: Cesar Frank, Massenet, Emile Durant dora de Souza Lima, pois enorme é o seu
e outros, tendo sido laureado, em 1885, com merecimento como compositor.
os primeiros prêmios em quase todos os cur-
sos. Em 1887 fundou os "Concêrtos Popula-
res ", exibindo obras de autores franceses. Radal1lés Mosca, nascido em 1908, cursou
Seus trabalhos não apresentam a menor li- também o Conservatório de São Paulo, se-
gação com o movimento nacionalista da mú- guindo o curso de piano. Como pianista via-
sica brasileira. jou pelo Brasil dando concertos.
Escreveu bom número de peças para
piano, sendo de notar particularmente, as de
Hans Joachim Koellreuttel', compositor caráter infantil, tais como "As Cinco Bone-
alemão, nascido em 1915, veio residir no cas", "Cererê", etc.
Brasil em 1937.

- 250 -
João Otaviano Gonçalves nasceu em 1896
e estudou piano e composição no Instituto
Nacional de Música, do Rio de Janeiro.
Em 1914, após um curso brilhantíssimo,
com uma "Cantata" obteve o prêmio de
viagem.
No ano seguinte apresentava seu primei-
ro concêrtocolll obras para vários instru-
mentos.
Em 1919 regeu, no Rio, seu poema sin-
fúnico "Vitória", inspirado na terminação da
primeira grande guerra. No ano seguinte
exibia sua "Primeira Sinfonia", e, em 1923,
"Poema da Vida".
Em abril de 1937 foi levada à cena sua
ópera em um ato "Iracema", calcada sôbre
o tema da lenda imortal de José de Alencar.
Uma outra, "Sonho de Uma Noite de Luar",
J. Otaviano, executando ao piano, em .sua residência
ainda não foi montada.
Nêsse mesmo ano J. Otaviano apresen- nomeado adido à Embaixada Brasileira, em
tou, no Te~tro Municipal do Rio de Janeiro, Londres, para onde seguia, em 1933.
seu ballet "Ondianas". Quatro anos depois voltou para o seu
E' numerosa e das mais encantadoras a pais indo ocupar o lugar de inspetor alfan-
obra de J. Otaviano. degário.
Além de uma centena de peças para Como compositor Ovalle escreveu inicial-
piano e canto e de muitas transcrições popu- mente peças para piano e canto, baseadas
lares do Brasil - sendo de notar a da "Ca- no folclore afro-brasileiro.
sinha Pequenina" - o maestro apresenta Levou para o piano a melancolia plan-
"Fernão Dias", ópera em três atas, "Cenas gente dos violões, que êle ouvia e tocava nas
Brasileiras", "Os Sonhos de Bebê" e, para serenatas e que tanto ambiente emprestou às
orquestra, "Batuque-Fantasia", baseada em composições nacionais. Seus melhores tra-
ritmos afro-brasileiros. "Seu estilo - como balhos são as canções, especialmente as três
escreve Nicolas Slonimsky - é tecnicamente "Lendas" e as modinhas de puro sabor po-
brilhante enquanto sua linguagem harmôni- pular.
ca é acadêmica".
Compôs ainda "Pedro Alvares Cabral",
J. Otaviano é um dos mais competentes poema sinfônico em quatro Illovimentos e
professores da Escola Nacional de Música, "Berimbau ", de singular efeito africanista.
tendo publicado vários manuais de teoria e
harmonia.

Newton de Menezes Pádua, nascido em


Jayme Ovalle nasceu em 1894 e, tardia- 1894, é um dos mais hrilhantes artistas do
mente, intentou estudar música. Em sua mo- Brasil atual.
cidade foi inveterado boêmio, vivendo nas Fez cursos completos na Escola N acio-
estúrdias e serenatas do Rio e de outras ci- nal de Música, inclusive o de composição eom
dades do Brasil. Seresteiro incorí'Ígível, to- Francisco Braga.
cava violão e cantava pelas noites claras de Violoncelista l'enomado, um dos mais
luar. apurados em técnica de nossos tempos, New-
Dedicando-se ainda às finanças - por ton Pádua esteve em Roma onde estudou,
estranho que pareça - Jayme Ovalle foi particularmente, música sacra. Como com-

2;;1 -
jlositor tem usado el1l seus tral)alhos os mais
variados temas brasileiros.
Tanto nas canções como nas peç'as para
orquestra ou música de câmal:a seu talento
tem demonstrado longa independência e in-
finitas qualidades de compositor honesto e
probo.
. Em sua obra assinalam-se; "Branca
Dias", episódio lírico levado à cena em 1931,
"Prelúdios", "Suite Sinfónica", "CmÍção e
Dansa", o poema sinfónico-coral "Anchieta",
G "Trio em dó menor", etc.

António de Assis Republicano, nascido


em Porto Alegre, em 1897, é, sem favor al-
guni, un1 dos mais talentosos compositores
brasileiros equipado de "fartos recursos téc-
nicos e de um fraseado espontâneo e agra-
dável" como afirmou Yil1a-Lobos.
Sua obra é pujante, rica de efeitos e de
intenções puramente nacionalistas.
Tendo estudado no Instituto, concluiu o
curso de fagote com medalha de ouro e co- suas óperas o maestro não se haj a libertado
meçou a compor muito cedo. Terminou o de velha tradição italiana.
curso de LOlllposição, lcyan(]o à cena lírica
"A cheia do Paraíha".
Em 1\120 apresentou •. Concerto" .
::\To ano seguinte, regeu UIll poema sin- Cláudio San toro viu a luz do dia no Ama-
fónico, "Vbirajara", na Sociedade de Con- zonas, em 23 de noyembro de 1919.
Lertos Sinfônicos. Aos treze anos recebia um prêmio em
Suas predileções têm sido para a música seu Estado natal, vindo para o Rio de Janeiro
orquestral e a maioria dos seus temas nati- onde se dedicou inteiramente à música.
vos são calcados no folclore afro-brasileiro. Matriculou-se no Instituto, tendo estuda-
Esúeveu quatro óperas. A primeira, "O do violino com Edgardo Guerra.
Bandeirante", foi apresentada em 1925 no Dedicando-se à composição, tornou-se
Teatro Municipal do Hio de Janeiro; a se- discípulo de Hans J oachim Koellreutter, que
gunda, "A Natividade de Jesus", em 4 atos, o iniciou nos meandros da música moderna.
foi exibida no mesmo teatro em 1937; a ter- Suas obras demonstram a inquietaç'ão de
ceira, "Amazonas", e a quarta, "O Ermitão um espírito, dentro das correntes de arte
da Glória", ambas ainda não representadas. modernista e pouca referência fazem ao fol-
Entre os demais trabalhos de fôlego de clore hrasileiro. Escreveu uma "Sinfonia"
Assis Republicano contam-se a "Sinfonia das para duas orquestras de cordas, outra para
Multidões", para orquestra, coros e banda dois pianos e orquestra de câmara, duas so-
militar, peça de impressionante efeito, e "Im- natas para violino, uma para violino-solo, um
proviso ", para violoncelo e orquestra. trio e "Divertimento" para sete instrumentos.
Suas composições revestem-se de um es- Em 1945, Cláudio Santoro obteve men-
pírito de franca espontaneidade, embora em ção hOi11'osa num concurso de composições

- 232-
para quartetos de cordas, em Town Hall, na
cidade de Nova York.

José de Lima Siqueira, nascido em Con-


ceição, na Paraíba do ~orte, em 1907, estu-
dou princípios de música com seu pai, maes-
tro da banda militm' local; veio para o Rio
de Janeiro em 1927.
Estudou na Escola Nacional de Música,
fazendo cursos de composição com Francisco
Braga e de regência cóm Burle Marx.
Em 19-10, foi nomeado diretOl' adminis-
trativo da "Orquestra Sinfónica Brasileira"
com a qual realizou notáveis audições radio-
fónicas.
Antes, em HJ36, obtivera menção honrosa
com sua "Alvorada Brasileira" em concurso
de peças sinfónicas, realizado pelo Departa-
mento Cultural do Estado de São Paulo.
Em 194-1, José Si queira visitou a Amé-
rica do Norte. Sua obra, profnsa e de mérito
incontestável, conta com peças para orques-
tra, música de càmara, piano e canto.
:Maestro José Siqueira
Para orquestrà compus duas ouvedures:
"A Musa em Festa", "Yisúo", tres poemas
em sua cidade natal, completou-os, cm se-
sinfónicos: "Os Pescadores", a já citada "Al-
guida, no Rio de Jalleiro, com I1enrique Os-
vorada" e o "Despertar de Ariel", três Prc-
wald, Agnelo França e Armando (louvêa.
lúdios sinfónicos, uma suite "Cenas do Nor-
Em Hl2:1 foi à Europa, aperfeiçoando-se em
deste Brasileiro", cinco páginas para orques-
tra de cordas, quatro "Dallsas Brasileiras", Paris.
"Frêvo", "Elegia" e algulls trabalhos para De regresso ao Brasil realizou uma série
canto e orquestra. notável de concertos. Foi nOllleado professor
Para, música de càmara, José Siqueira no Conservatório de São Paulo.
produziu um Trio, uma sonata para violino Sua ohra compõe-se quase exclusivamen-
e um Quarteto de cordas. Compós ainda te de pequenas peças para piano e canto. Seus
nove pequenas peças para violino e dezesseis recursos musicais fundam-se, com freqüência,
para piano, além de canções várias. Seus nos elementos folclóricos brasileiros que êle
temas, às vêzes, são tomados uas fontes na- conhece profundamente.
tivas, e sua orquestração brilhante. Além de Suas "Sete Miniaturas sôbre temas bra-
compositor, José Siqueira tem-se revelado um
sileiros", sua "Dama de Negros", seu "Corta-
grande animador dos nossos meios musicais,
J aca ", e mesmo sua suite para piano sôbre
crítico conciencioso e educador dedicado.
Nessa última feição escreveu "Regras de Har- motivos infantis, atestam o valor inegável do
compositor.
... monia Elementar" e "Canto dado em XVI
Lições" .

António de Sá Pereira compôs "Tango


Frutuoso Viana nasceu em Itajubá, Mi- Brasileiro''", "Berceuse" e outras peças de
!l as Gerais, em 189G. Iniciando seus estudos grande beleza. Dedicou-se ao magistério,

- 253-
onde se tem revelado um pedagogo notável. Suas óperas são: "Foscarina", cantada em
Publicou "Ensino moderno para piano". São Paulo, em 1926, "La Boscainola", "Yugo-
mar", "Anita Garibaldi" e "D. Casmurro",
representada no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro em 1922.
Elpidio Pereira veio do Maranhão, onde
nasceu, n!J. cidade de Caxias. Iniciou lá mes-
mo os seus estudos de música e violino. Moço Nicolino Milano nascido em São Paulo é
ainda foi para Paris, onde prosseguiu seus professor da Escola Nacional de Musica. Vio-
aperfeiçoamentos 'no Conservatório. Volven- linista de mérito, suas atividades, como com-
do ao norte do Brasil, realizou vários concêr- positor, não saíram do campo da musica li-
tos no Pará, Maranhão e Amazonas. :Este geira, especialmente para operetas e revistas.
ultimo Estado concedeu-lhe uma pensão para
regressar a Paris. No velho continente, Elpi-
dio Pereira exibiu-se em França e Portugal.
Regressando ao Brasil, veio para o Rio, em: Pedro Jatobá é baiano e na Baía fêz os
1903, onde apresentou obras suas no Instituto. seus estudos de musica e órgão, indo aperfei·
Dez anos depois voltou a Paris, desta vez co-
çoar-se na Alemanha.
mo pensionista do govêrno.
Em seu Estado natal dedicou-se ao ma-
Compôs musica sacra, peças populares,
gistério fundando escolas de musica. Escre-
a ópera "Calabar", o ballet "Les Pommes du
voisin", "Scherzo", para gran de orquestra, e veu, de preferência para o gênero sacro,
outras. tendo também harmonizado motivos popula-
res brasileiros.

Ernani Braga é carioea e no Rio fêz seus


estudos na Escola Nacional de Musica. Outro baiano de notável relêvo é Silvio
Pianista de raro mérito, suas composi- Deolnido Fróis. Estudou na França e na Ale-
~ões integram variada obra pianística. Es- manha. Voltando, empregou seus esforços na
creveu "Trio ", para piano, violino e ceIo, um organização do Conservatório de Musica da
poema sinfônico a Carlos Gomes, o bailado Baía, dedicando-se ao ensino. Compôs "Poe-
"Na Floresta encantada", além de numerosas ma Sinfônico ", "Sinfonia", "A queda de Ba-
canções, conhecidíssimas em todo o país, co- bilônia", romances e sonatas várias.
mo "Prenda minha", "Moreninha", etc.

Nadile de Barros Marcarían é uma das


João Gomes de Araujo era paulista, nas- discípulas prediletas de Lorenzo Fernândez.
cido em 1849, e autor de óperas, gênero que Compositora e pianista de largos recursos.
cultivava com verdadeira predileção. Com- Compôs "Toada e Dansa", para violoncelo,
pôs "Edméa", "Carmosina", representada em "Lamento e Dansa ", para orque'stra, "Can-
Milão, em 1888, "Maria Petrona", levada à tata", "Trio", para piano, violino e ceIo, além
cena em 1929, em São Paulo, "Helena". Dei- de numerosas canções.
xou também peças sacras.

Ainda compositores a citar são Zuleika


Outro compositor de óperas foi .Toão Go- Margarida Nissa, Clorinda Rosato, Helza Car-
mes Júnior, também paulista, como seu pai. men e Hilda Reis, tôdas elas donas de bôas

- 254-
qualidades para o virtuosismo e a compo- seus estudos. Escreveu uma ópera, "A Mar-
sição. quesa de Santos", além de inúmeras peças
Outros nomes integram com brilho o qua- para piano, canto e orquestra; Hostilio SO((-
dro dos nossos compositores atuais. Vej amo- res, mineiro, autor de uma ópera" A Vida",
los: 1Valdemar de Oliveira, pernambucano, uma "Suite Brasileira" e uma sinfonia "Amie
compositor de música ligeira; Waldemar de Bensante"; Guilherme Leanza, compositor de
Almeida, do Rio Grande do Norte, onde es- tendências nacionalistas, autor de peças ligei-
tudou e dirige o Instituto de Música, de Natal. ras; Gabriel Migliori, paulista, autor de "Va-
Compôs de preferência para piano; Vítor riações Sinfônicas", sôbre um tema popular,
Ribeiro Neves, do Rio Grande do Sul, pro- "Impressões Brasileiras", etc.; Flausino Ro-
fessor conhecido em seu Estado. Compôs drigues Vale, mineiro, ótimo violinista. Como
peças sinfônicas e aproveita, com talento e compositor já possui numerosa bagagem de
habilidade, temas do folclore gaúcho; outro caráter nativista. E' professor do Conserya-
das plagas sulinas é Roberto Eggers autor da tório Mineiro de Música; Felix Otero, rio-
ópera "Farrapos" e de trabalhos sinfónicos; grandense do sul, estudou em São Paulo, onde
Paulo Florence, de São Paulo, professor do fixou residência. Esteve também na Europa,
Instituto Musical do Estado. Campineiro, co- . .
aperfeicoando-se em Berlim. Compôs . lindas
mo Carlos Gomes, estudou na Alemanha. canções e destaca-se como professor; Fallsto
Compôs obras para piano, canto e música de Assunção, mineiro; flautista e compositor de
câmara. Dedicou-se ao magistério, em São músicas sacras e profanas; Enio de Freitas
Paulo; Paulino Luis de Vasconcelos ChaveS Castro, de Pôrto Alegre, tendo estudado lá
é compositor de músicas sinfônicas e profes- e no Rio de Janeiro. Escreyeu "Quarteto",
sor na Escola Nacional de Música; Paulilo "Sonata", "Pequena suite", etc.; Elviro do
Barroso, cearense, fundou o Conservatório de Nascimento, de Minas Gerais, mestre-de-ban-
Música de Fortaleza e a êle se dedica, com- da em seu Estado e professor do Conserva-
pondo pe~as para piano, canto e para ope- tório. Escreve de preferência peças sacras;
retas; Otávio Pinto, compositor paulista, au- Edgardo Gllerra, violinista consagrado e com-
tor de obras para canto e piano; Orestes Fa- IJositor de mérito; Custódio Fernandes Góes,
rinelo, riograndense do sul, estudou em seu professor de piano na Escora Nacional de
Est.ado e na Europa, tendo composto nume- Música e autor de obras pianisticas; Bento
rosa e variada obra; Mário Camerini, pau- Mussurunga, paranaense, autor de musica li-
lista. Violoncelista de mérito, compôs "Dansa geira; Benedito Nicolau dos Santos, também
do Saci" e outras peças; Luiz Melgaço, com- do Paraná e, como o seu antecessor, compo-
positor mineiro, é professor do Conservatório sitor de música para operetas e revistas; Be-
do seu Estado; Luzas Tavares de Lacerda, nedito Chagas Junior, pianista e compositor,
também de Minas Gerais, compôs música de autor de dansas brasileiras, como "Bate-pé",
câmara, poemas líricos, etc.; João Sépe, pau- etc.; Assllel'o Guartiano de São Paulo, tem-
lista e professor no Conservatório Dramático se distinguido mais como pedagogo do que
e Musical de São Paulo. Compôs "Carnaval pràpriamente como compositor; Antonio Me-
Carioca", "Cascata", etc.; João Nunes, ma- filo, paranaense, é ótimo pianista, autor de
ranhense, foi estudar na Europa à custa do "Fandango" e outras peças de merecimento;
govêrno de seu Estado. Compôs para piano Aloísio de Castro, conhecido poeta, da Aca-
peças de caráter impressionista; João Lam- demia Brasileira de Letras, e tambem com-
bert Ribeiro, de Minas Gerais, estudou no Con- positor de pequenas rómanzas, ao gôsto fran-
servatório de Música de S. Paulo. Violinista, cês; Aloísio de Alencar Pinto, ceal'ense. Es-
realizou muitos concertos. Como compositor teve em França e escreveu algumas peças
possui obras para violino e piano, afora outras para piano, tais como "Romance antigo",
de caráter didático; João Batista Siqlleira, "Noturno", etc. Como pianista realizou nu-
pal'aibano que veio para o Rio aperfeiçoar merosos concertos .

._- 255 -
(~rl.lpo "d,: 'pr()f(>t:~t)ref: ,i:t
faleddos, cujOf-l
n()me~ hOnralTl a 1111H. i~
coJog4a no Brasil.
(Da direita par?- a E'~­
qUE'rda) :

!'cito r eloso. profe~sur


honorRrio do Jnstituto:
Ro(h';r;nC8 Bm'boSff.,
ntmheC'ido crítico e UIll
elos grnnd(-"s trahalhü"-
d()re~ para a. CriHç~()
do InBtituto:
11""1'080 Neto:· AI'·
m,anclo d~ GO"1f,v6.i«,..
professor catedrático do
harmonia. no Instituto
Nadonal de :.\Hí"ka

Certaménte muitos outros valores pode- recimellto desta ou daquela figura, () ([ue se-
riam ainda integrar essa lista, já de si tão .ria, de resto, imperdoável deselegância.
longa, friamente apresentada, sem outros co- A músiea, em nossa terra, vem se .canlC"
mentiu'ios, além do estritamente indispensayel lerizanclo. últilllamenle, ]lor memorúveis sur-
para a acentuação marcante de cada um deles. tos llacionalistas; neles surgem alguns nomes
Todo aquele que. em determinada oca- de notória relevúnda ao lado de muitos ou-
sião, exerceu, em nosso paíS, atividades d(' Iras, incipientes ainda, Illas já integrados no
lIlusicista, compondo mesmo incidel1temente. esfôrço comum (le atingir !Is wlminâncias.
sob qualquer inspira~ão fortuita, um "tropo" Deixando de inscrever UJll ou outro 1'en-
musical deyeria figurar. necessàriamellte 110 <lo-lhes contudo a homenagem da .l1linha ad-
registro de um livro como êste. que se lH-oPÕ(' miração pela ('ota u]ll'eciável com que hajam
a historial'. em detalhes, o penoso dcst'nvol- con tribuídO' para a elevação da al'te, no Brasil.
vimento da arte lllusical, no Brasil. Estendo as mesmas homenagens à plêia(le
Tal coisa, !lO entanto, importaria nn im- brilhante de críticos c comentadores do nosso
posição dc notas fastidiosas, onde se desenro- movi men to musical lLue, nos .i Ol'!l ais, Il as re-
lasse, rigidamente alinhados, limA longa lem'ia vistas, nos livros e nos lllicl'Ofones têm sahj{lo
de Ilomes· e de dalas. manter. () fogosagl'uclo de Eulerpe. alimen-
As omissôl's. \leSSe "aso, IIÜO importam lando-o com as primÍl'ias da sua culll1rn (' (ln
ell) llC'nhum desprillloroso selltido de <lesme- sua erudição.

. ..
• • •
8!afam nOlJamente os três Jranoes sô8re o futuro ...

E AGORA a mUSIca do futuro... Chegamos dera sua carreira em função de Ulll ob}etivo
ao ponto talvez mais interessante da longa a alcançar em lugar de considerá-la como
jornada. um ideal; e uma compreensão genuína da
Repassadas e estudadas as etapas da música não penetrou nas organizações sociais
nossa história musical, desde os tempos obs- tão profundamente como seri a de desej ar .
curos do pre-cabralismo até à meridiana cla- Agora, todos êsses fenômenos podem ser
ridade dos nossos dias, nada mais natural do derivados de uma só causa: os nossos mé-
que desejarmos olhar para o futuro, em uma todos de ensino. Quando digo que os nossos
tentativa de penetrar os arcanos dos dias que métodos são defeituosos não me refiro a ne-
hão de vir, sacando conclusões sôbre a mú- nhum professor, método ou escola. Tenho em
sica do porvir, ou melhor sôbre as diretrizes mente todo o sistema de ensino, um sistema
que irá tomar a arte, em nosso pais, entre a que permite a confusão não só dos têrmos
segunda e - quem sabe? - a terceira guer- mas dos ideais musicais e, por isso mesmo,
ra mundial ... incapaz de levar a música à grande massa
Êsse entretenimento, tão peculiar aos ar- do povo.
tistas e intelectuais, de perscrutar o insondá- Veja, por exemplo, o problema da com-
vel é, de resto, o único traço que os aproxima preensão fundamental dos têrmos que em-
dos hierofantes. Embalam-se na delícia so- pregamos ao lidar com música. O simples
nhadora de prescrever os rumos ou antemos- amante da música usa freqüentemente de
trar os caminhos a seguir por esta ou aquela têrmos como clássico, romântico,. popular,
arte. folclórico, mas se se lhe pedir a significação
E' doce, todavia, consignar as conclusões exata do que tem em mente, torna-se emba-
que êles nos apresentam, tanto mais quanto raçado. O primeiro passo a fazer, pois, é
sabemos que os artistas de real talento são esclarecer o valor dos têrmos musicais co-
homens que se antecipam à sua época. muns, de modo que o significado musical
Dentro desta ordem de idéias, ouvi mais que contém seja escoimado da confusão exis-
uma vez os "três grandes", que tantas e tan- tente.
tas coisas me disseram e tantas e tantas vêzes Lembro-me ainda quando, estando em
tiveram de me aturar. Paris, Manuel De Falla foi saudado como um
Fui, inicialmente, a Villa-Lobos. Pro- folclorista. Sendo um, gentleman, amável e
curei-o no Conservatório Nacional de Canto modesto, De Falla não fêz nenhuma objeção;
Orfeônico, onde o maestro se encontrava as- mas deu de ombros, e podia-se ver que isso
soberbado de trabalho, pois dava os últimos não lhe agradara. Naturalmente que não
aprestos para uma viagem à Argentina e se- estava satisfeito! Chamando-o de folclorista,
guidamente, outra aos Estados Unidos. seus críticos mostravam não ter a menor
Por isso mesmo teve pouco tempo para compreensão de sua obra. Tornemos, pois,
falar. Atendeu-me contudo, com a gentileza bem claro que música popular significa ape-
e o interêsse que toma por tudo o que con- nas essa espécie de música que o público
cerne à sua arte. Disse-me, como princípio tanto aprecia, independente de seu valor, sua
esclarecedor: origem e seu tipo. Um número de revista que
- Se considerarlllos o desenvolvimento esteja atualmente no cartaz, a Reverie de
da música no mundo atual, somos forçados a Schumann e a Tosca de Puccini são tôdas
admitir que ela se acha, antes, num nível bas- músicas populares porque o povo as conhe-
tante baixo. Em sua maioria, as composições ce, as aprecia e canta. Música folclórica, no
são acadêmicamell[e experimentais ao invés entanto, é coisa inteiramente diferente. A
de cdadol'amen te robustas. O artista consi- música folclórica t~ a expansão. o desenvol-

- 257 --
vimento livre do próprio povo, expresso pelo terras, o folclore do seu pais, tanto sob um
50111. Mesmo se tal música não é popular, aspecto literário e poético como musical. Só
continua a ser folclore. Música popular, dessa maneira pode êle chegar à compreen-
pois, é uma expressão psicológica de um são da alma do povo (da alma folclórica).
povo. Música folclórica é a' sua expressão Devemos, primeiro, velar para que a nossa
biológica. A arte da música (que pode ser rotina pedagógica seja antes de mais nada
folclórica e popular ou nem uma coisa nem baseada em uma distinção ou compreensão
outra) representa a mais aita expressão cria- mais clara possível dos têrmos, palavras e
dora de um povo. A grande música, a mais expressões a serem usados durante todo o
alta é a que, originando-se numa dessas três curso da educação musical. Devemos lutar
fontes, alcança, no entanto, uma expressão para extirpar do ensino musical todos os va-
humana universal. lores falsos, insistindo principalmente na edu-
- Cabe, pois, aos compositores atuais, caçãodo ouvido e da alma e pondo resoluta-
-- arrisquei - os que verdadeiramente in- mente de lado todo o fútil academismo da
tegram o pensamento musieal Iúoderno, o "música-papel" puramente intelectual. Deve-
grande papel de emprestar à sua Arte êsse mos educar os nossos artistas e compositores
sentido de expressividade humana, de cará- de nlodo a que acabem apreciando devida-
ter universalista. Têm êles cumprido o seu mente o seu dever de servidores da humani-
mandato? dade. Só assim a música florescerá como um
- Como o artista executante - respon- elemento vital na nossa estrutura social.
deu-me, convicto, Villa Lobos - o composi- - E a música do futuro, meu caro Villa?
tor muitas vêzes é culpado de uma filosofia Quais as tendências que deverão norteá-la,
que se expressa assim: vivo para a minha em sua experimentada opinião?
arte, o resto não me interessa. Mas que é O autor das Bachianas estacou um mo-
esta arte senão a expressão da humanidade mento, olhou pelas vidraç'as o oscilante azul
e de tudo que interessa à humanidade? .f:ste do mar, tão oscilante talvez como o futuro
negócio sério, prático, realista, que é de viver que êle procurava encarar... Depois, reve-
no mundo, nos obriga a todos nós a usar lou-se:
máscaras. Raramente nos apresentamos tal - A música do futuro? Não tenho ne-
qual somos realmente. O compositor, no en- nhuma previsão a oferecer. Contento-me em
tanto, não pode permitir que nenhuma mis- viver no presente. Aventuro-me a pensar,
tificação venha se interpor entre êle e a re- entretanto, que os dolorosos sofrimentos dês-
velação verdadeira da sua alma. A música tes últimos anos resultarão num maior des-
das modas e escolas passa, - a da sinceri- pertar espiritual. Pelo sofrimento, os povos
dade vive . Na realidade, há três espécies de acabarão por compreender que têm necessi-
compositores: os que escrevem música-papel, dade da alma, que nunca poderão ser satis-
segundo regras ou modas; os que escrevem feitos com a música-papel acadêmica. E pe-
para ser originais e realizar algo que outros dirão uma nota do coração que sej a a ex-
não realizaram, e finalmente, os que escre- pressão sincera da humanidade. Então tal-
vem música porque não podem viver sem ela. vez venha uma reação. salutar contra êsse
Só a terceira categoria tem valor . .f:sses com- "modernismo" de mau gôsto e feios sons, e
positores trabalham por um ideal, e nunca o mundo torne a ouvir música que é bela
por um objetivo prático. E a conciência ar- porque sôa belamente.
tistica, que é um requisito da liberdade artís-
tica, impõe-lhes o dever de se esforçarem por
encontrar uma expressão sincera tanto de si
mesmos como da humanidade. Para chegar Lorenzo Fernândez devia ter, por sua
a tal expressão o compositor sério deverá es- vez, muita coisa interessante a declarar em
tudar a herança musical do seu país, a geo- tor110 da movimentação moderna dos nossos
grafia e etnografia da sua como das outras meios artísticos.

--- 258
Acabava eu de lêr uma entrevista que Vê? A luta é a mesma de sempre. Não
o autor de "Imbapara" havia concedido, há há remédio. O público continuará sempre
tempos, a um jornal literário do Rio, creio resistindo, e os verdadeiros artistas inovando.
que "D. Casmurro". Nela surgem conceitos Já se viu que o "modernismo" não exis-
curiosíssimos sôbre o que se convencionou te. Isto não quer dizer que se possam fazer
chamar de arte "modernista". Respondendo todos os cabotinismos e tôdas as maluquices
a uma indagação do jornalista que pretendia em nome da Arte atual. Os que as fazem não
colhêr suas impressões a respeito do valor são artistas - são "profiteurs" da hora que
dessa tão debatida corrente, Lorenzo Fel" passa. E' preciso muita seriedade. Não se
nândez, prontamente, as expôs: deve brincar com a Arte. E:sses tolos que
- "Modernismo" não existe. Dizer que fazem umas coisas sem técnica, nem método,
somos "modernistas" é bobagem. O que so- nem forma, e dizem que é modernismo, são
mos; na realidade, é atuais. Isto sim. Existe tudo o que quiserem, menos artistas. A pri-
simplesmente atualismo. Vivemos a nossa meira necessidade do al'tista atua! é ser UIll
época. No mundo de hoje, mundo de ação perfeito mestre da técnica, conhecer tudo o
intensa, de ritmos vertiginosos, de guerl'as que se fêz. Só então poderá da!', verdadei-
totais, menos que nunca se admite gente fora ramente, um passo adiante ...
de sua época. Os "saudosistas" e os "passa-
distas" estão fadados à morte, por definha-
mento. Fazer finca-pé, em qualquer terreno, Pensava ainda nesses conceitos, tão cla-
é um perfeito absurdo. E' inadmissível. So- ros e tão decisivos, enquanto subia, dentro
bretudo no terreno da Arte. De resto ... do elevador, os doze andares do edifício onde
veja: Bach foi moderno e incompreendido funciona o Conservatório que Lorenzo Fer-
em sua época; Beethoven um inovador; Wa· nândez dirige. Uma vez em seu gabinete,
gner um revolucionário; Debussy passou pOI não encontrei dificuldades em conseguir o
maluco e Strawinsky ainda passa. '. E o mais que pretendia. Pedi-lhe inicialmente, que me
curioso é que os argumentos empregados con- dissesse o que pensa da arte moderna. (Não
tra êles, por uns pobres diabos, de quem nin- confundir com arte "modernista") .
guém se lembra depois, são profundamente - "Que posso dizer eu da arte moderna,
semelhantes aos usados contra os nossos mo- vivendo dentro dela e, portanto, sem sufi-
dernos ... ciente perspectiva para pesar-lhe os valores?
O artista tem obrigação de viver na sua Penso, apenas, que a arte deve viver
época e, se é verdadeiramente criador, está sempre o momento presente. O artista, ho-
sempre tentando ir além do que se fêz, apro- mem profundamente sensível, deve refletir,
ximar-se mais da perfeição, isto é, tentando com tôda a intensidade, as emoç'ões do meio
inovar. Vejamos na música: ela é incontes- ambiente, não sendo a sua arte mais do que
tàvelmente, de tôdas as artes, a de técnica uma reação a essas emoções. Por isso, não
mais difícil, mais séria e menos acessível. acredito na sinceridade da célebre "Tôrre de
Por isso, muitíssimas inovações são de natu- Marfim" com que alguns pseudo-artistas,
reza particular, quase impossíveis de ser per- cheios de vaidade e de egocentrismo, pro-
cebidas pelos leigos. Outras são muito sutis. curam esconder a falta de conteúdo humano
Só os grandes passos são sentidós, - e surge de suas obras.
logo uma terrível reação. Na moderna música brasileira, o surto
E dura, até que o público, evoluindo, renovador é profunda e significativamente
compreenda a beleza da obra e a aceita. marcado pela influência do folclore.
Lembro-me, por exemplo, de uma caricatura Muito se tem escrito e muito se há de
de um jornal americano dos fins do século escrever ainda sôbre êsse palpitante assunto
passado, onde se viam partituras de "Vagner sem que se lhe esgote o interêsse e embora
tendo escrito: "para serem executadas em ainda muitos dos nossos artistas lhe neguem
1995" ... a influência, não sei se por comodismo, indi-

- 259-
ferença ou ignorância, ou então por exclu- o rádio, a televisão e o avião tornaram
sivismo de cultura européia, a verdade é que o mundo de hoje muito pequeno. Será um
essa influência tem sido tão marcante que já bem? Não terá essa fulminante aproximação
podemos sentir na nossa música característi- entre os povos, apesar de suas inúmeras van-
cas que lhe emprestam sabor original e que tagens, contribuído para uma futura perda
estão fazendo com que a mesma se imponha de originalidade nacional? Para uma rápida
além das nossas fronteiras. internacionalização em que se destruirão tô-
A universalização da música de acentua- das as deliciosas tradições populares? Não
das características nacionais, como a russa, a trará essa aproximação, agravada por uma
espanhola e, agora, a brasileira, vem confir- intensa industrialização de caráter interna-
mar o acêrto dos compositores que, como Ne- cional, a tendência de uma arte cada vez
pomuceno, Villa-Lobos e outros, vêm com- mais cerebral e também industrializada, ni-
batendo tenazmente para a criação de uma veladora e medíocre?
arte que reflita tôdas as tendências, aspira- A horrorosa deformação dos mais belos
ções e sofrimentos do nosso povo. temas musicais, aproveitados em detestáveis
Fazer arte internacional é fazer arte in- foxes e swings, a exemplo do que vêm fa-
sincera, sem relação com o meio ambiente e zendo impunemente os norte-americanos, num
que ràpidamente se torna amorfa e destituída dos mais deprimentes exemplos de falta de
de qualquer significado humano. E' arte que respeito às obras-de-arte, destruindo, pela sua
envelhece ràpidamente, como envelhecem as ânsia de lucros e sucessos fáceis, todo o tra-
modas. balho de elevação cultural das massas, não
Só na seiva popular, depurada e crista- contribuirá também para um nivelamento
lizada, encontram os artistas o verdadeiro ca- tendendo para baixo?
minho de sua inspiração. E' um não sei quê Fora dessas cogitações, um tanto pessi-
de misterioso, uma espécie de "ação de pre- mistas, julgo que a arte brasileira acompa-
sença" que faz com que aquéles que sabem nhará as boas tendências da música contem-
verdadeiramente ouvir as vozes da terra e do porânea. Caminhamos, ao que tudo parece
povo se projetem, pela sua originalidade sa- prevêr, para uma volta à música pura, se
borosa e comunhão com o meio em que vi- bem que não creia que essa volta seja abso-
vem, através do tempo e das fronteiras". luta, pelo menos aqui no Brasil em que,
Lorenzo Fernândez fala com desemba- penso, se fará sentir sempre um pouco a
raç'o e entusiasmo. Conversamos algum tem- nossa tendência para um certo individualis-
po ainda, debatendo aspectos do problema mo de cunho romântico. Não será a música
artístico atual. Finalmente, lancei-lhe a úl- pura (no exato sentido de não ter a mesma
tima proposição, a única que realmente me nenhuma influência estranha à própria mú-
levara até êle, naquela ocasião. sica)um pouco contra a nossa índole um
- Quais as diretrizes futuras da música tanto rebelde à disciplina?
brasileira?
Vê meu caro amigo que a resposta é
E êle me respondeu, sorrindo: muito complexa.
- E' muito dificil falar sôbre o futuro
Provàvelmente caminharemos para as
(não sou feiticeiro). A música brasileira não
formas da música pura, porém, talvez, com
pode fugir, porém, às tendências estéticas
bastantes impurezas.
universais, pois embora a expressão original
de cada povo se manifeste livremente, vive- Serão essas impurezas benéficas? S6 o
mos, todos os povos, cada vez mais, ligados tempo poderá responder ...
a interêsses e emoções comuns, e assim os
acontecimentos tendem a ser, à proporção
que aumentam os meios de intercomunicação,
ràpidamente sentidos e refletidos por toda a Decidi, finalmente, colhêl' as últimas im-
hlllnanidafle. pressões de Ft'ancisco Mignone.

-- 260 ---
o mestre de "Jara", ao contrario do que não conseguira definir bem o que queria em
muita gente pensa, não se tem na conta de arte, Hoje sei o que desejo, Como pude
um romântico. Nada disso. A julgar pelo consegui-lo?
conteúdo de certas declarações suas à im- Ao retomar contacto com as coisas da
prensa, em épocas diferentes, seu aplauso terra, verifiquei que o "modernismo" era
irrestrito ao movimento "modernista" bem uma realidade, Senti necessidade de escre-
poderia situá-lo dentro desta corrente. Sua ver música à nova feição, Achei que havia
obra, no entanto, distancia-se (é opinião in- uma sensibilidade moderna, Procurei mar-
teiramente minha) do espírito da música car com ela tôdas as minhas obras,
modernista. Quis saber de Mignone como encara êle
A interpretação "romântica", que se po- a agitação no atuaI panorama musical, do
deria dar aos trabalhos de Mignone, também Brasil e do mundo,
não é justa; e, se o fósse, aplicar-se-ia apenas Como resposta, apresentou-me o final de
às da primeira fase do artista. uma entrevista, concedida a um periódÍ.co do
Depois de "Jara", da "Sinfonia do Tra- Rio, Passei os olhos por ela:
balho" e da "Festa das Igrejas", já não será - Creio que a mais imediata conseqüên-
mais ponderável julgar dêsse modo. No en- cia da guerra, no terreno das artes será a
tanto, o compositor considera o movimento transferência do movimento artístico euro-
modernista - cuja origem está na famosa peu para a América, especialmente para os
"Semana" de 1922, em São Paulo - como Estados Unidos, Aqui, os artistas encontra-
um marco avançado, um inegável impulso rão o que a Europa devastada não lhes po-
para a frente ... derá oferecer. Que clima espiritual terá a
- Não se pode nem se deve regressar Franç'a, mesmo depois de restituída à sua dig-
- diz êle. Devemos prosseguir. Beethoven nidade soberana? E a Alemanha, a Itália, a
não foi, por acaso, um inovador? E Debussy, própria Inglaterra, atarefada com urgentes
e outros ?Só se deve voltar atrás para in- problemas de reconstrucão?
vestigar e prosseguir na marcha encetada. Essa transposição da arte é esperada,
Certa vez, Mignone fêz as seguintes de- mormente porque nos Estados Unidos já
clarações a um jornalista que lhe pedira para vivem os maiores músicos da atualidade,
falar sôbre o modernismo!' Outros elementos humanizantes procuram o
- O modernismo não pode morrer. Não seio acolhedor do povo norte-americano, A
morreu, mesmo. E' impossível negar o tra- guerra passada (a primeira grande guerra)
balho que o movimento modernista realizou quase não registou saltos no campo musical,
em benefício da cultura nacional. Mas alguns Debussy morreu em 1918, Stravinsky já era
insinceros resolveram negá-lo, e puseram-se conhecido, Ravel já tinha ficado.
a combater a fonte onde colheram os ele- A nova guerra, mal terminada ainda, de-
mentos com que mais se recomendam à esté- verá trazer grandes modificações, Uma guer-
tica do século. ra de continentes determina fatalmente emi-
A contribuição do modernismo foi mui- grações de cultura e outros acontecimentos
to importante. Conseguimos a independência que não podem ser previstos com segurança,
da nossa música. Antigamente, quando o mas que não deixarão de sobrevir,
compositor encontrava um bom tema no fol- - E a respeito dos nossos músicos
clore ou na tradição popular, logo buscava atuais? Quais os rumos que suas tendências
a moldura das velhas formas onde melhor deverão determinar, no futuro?
se ajustasse, Hoje, alcançamos uma liberdade - Já lhe disse que, na atualidade, só-
tão completa, que os motivos são aproveita- mente 111e interessam as personalidades de
dos na essência, em seu todo, até o cerne, Villa Lobos e Camargo Guarnieri.
Não será isso uma grande conquista? Quan- Começarei, é lógico, pelo primeiro: Villa
do regressei da Europa, em 1929, eu ainda Lobos, o rei do acaso, cujo destino foi pre-

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fixado por suas próprias qualidades, Villa Guarnieri. :t:ste teve sua eclosão num am-
Lobos é um bárbaro! E será genial? Não se biente já purificado. Encontrou a música
sabe. Sentimo-lo genial pela sua música que nacional livre e desimpedida para todos os
nos ilumina ... Não temos, na realidade, ne- surtos. Nós outros abrimos o caminho e Ca-
nhum elemento para decidir que Villa Lobos margo Guarnieri pôde realizar a obra que
seja de fato um gênio e que dentro de cem se tornaria impossível aos seus antecessores.
ou duzentos anos possa ainda ser a figura E' um fruto moderníssimo, com possibi-
formidável que nos parece hoje. O que não lidades de concretizar aquilo que só pode ser
podemos negar, todavia, é que êle seja um feito depois de grandes convulsões revolucio-
bárbaro, uma fôrça magnifica, apaixonante, nárias. Além de ser de outra geração mais
sublime mesmo. O bposto do sapientíssimo nova - o que já lhe facilitou enormemente
e racionalíssimo Ravel! o destino - soube fixar-se concientemente.
A forma de Villa Lobos deve ser conce- E com isso teve o Brasil o seu primeiro e
bida, estudada, apreciada em relação ao pró- verdadeiro músico purista, em contraste com
prio Villa Lobos. Por exemplo: quando êle o oscilante Radamés Gnattali, que não soube
escreve uma "Fuga", devemos procurar com- escolher bôa companhia... A diferença de
preender, analisar, ou então gozar, repudiar "destinação" entre ambos é enorme.
ou aplaudir a forma que o Villa deu à "sua" - Fale-me agora, Mignone, das suas
fuga e não julgá-la em relação ou em con- predições sôbre o futuro da nossa música.
fronto com o espírito específico da Fuga, em E Mignone, como arremate da palestra,
geral. " Se procedemos assim no tocante às declarou:.
fugas de Frescobaldi ou de Mozart, porque - Gostaria de me expandir em concei-
não fazer o mesmo em relação ao Villa? tos sôbre um novíssimo grupo de composito-
E' certo que êle j amais se preocupou em res da atualidade que enveredaram por um
dar, a si mesmo, êste ou aquêle destino; o caminho contrário aos da corrente naciona-
seu, no entanto, historicamente forte, é tra- lista ou nacÍonalizante da música brasileira.
çado pela própria fôrça de suas obras. Honestamente, devo confessar, no entanto,
V oltando ao tema do modernismo, ob- que ainda não cheguei a uma conclusão, den-
servo ainda nas composições de Villa Lobos tro do espírito da arte e da estética, que me
uma forte contribuição a essa expressão mu- permita emitir opinião, a qual poderia ser
sical, embora êle o negue. Tão forte foi, po- taxada de apressada ou perfunctória, até por
rém, essa contribuição que não faltaram até mim mesmo ...
os que lhe seguissem as pegadas a fim de Não obstante, Guerra Peixe e Cláudio
encontrar o espírito dos tempos novos. Eu San toro são dois nomes que me parecem do-
mesmo, louvei-me em algumas das suas rea- tados de personalidades distintas e que, mes-
ções .. E todos os que fazem música moder- mo enveredando por estradas acessíveis ape-
nista encontraram em Villa Lobos o pioneiro nas a um limitado grupo de apreciadores,
genial, o que saíu da composição comum para não deixam, por isso, de viver dentro de uma
realizar de acôrdo com a época, sobrevivendo potencialidade estética, a qual não podemos
a ela. O seu "terceiro quarteto de cordas" é deixar de considerar, não digo curiosa, mas
a expressão máxima da música do período surpreendente.
atuaI. Terão êles, num amanhã bem próximo;
A meu ver, entretanto, o verdadeiro com- o dom de uma nova expressividade?
positor nacional da atualidade é Camargo "Chi lo sá? Chi vivrá, vedrá ... ··

• • •
- 262-


MUSICA
POPULAR


f1l oe8atioa questão ao nosso {ofcfore

SSA questão de. folclore, tão nálise para a adivinhação do presente, pas-
velha e selllpr~ atualizada, sado e futuro".
vive cercada de uma série E' forçoso concordar com o mestre an-
de incompreensões, origem, tropólogo. o. A verdade, infelizmente, é esta
por sua vez, de controvér- que ai está.
sias várias. Sem falar em outras expressões rigoro-
o que estabelece essa espécie de confusão samente definidoras de ramos científicos,
em tôrno do assunto é, antes de mais nada, a basta que qualquer um lance os olhos pelos
popularidade que o têrmo adquiriu. Como jornais ou apure os ouvidos para os recepto-
quase tudo o que cai em domínio público, o res radiofônicos, a fim de certificar-se da ma-
folclore passou a ser apresentado a qualqueI' neira por que é tratado o folclore, no Brasil.
propósito, e mesmo sem propósito algum ... Entre nós, com efeito, êle virou cantiga
Artur Ramos acentua de forma pitoresca de rádio. "Qualquer estrêla radiofônica é
que o folclore no Brasil "é uma expressão anunciada como "distinta intérprete do nosso
mais ou menos desmoralizada". E explica folclore". Compositor popular torna-se "fol-
de maneira satisfatória o destino trágico de clorista". Programa de músicas populares é
certas expressões de legítimos foros científi- "hora dedicada ao nosso folclore ... "
cos, e que resvalam para absoluto despres- A distinta virtuose que anda com o seu
tígio. Cita, a propósito, a psicanálise. "A instrumento em terras distantes, cantando
princípio hostilizada, virou moda depois. canções do Brasil - coisa muito interessante,
Todo o mundo, do advogado pedante ao sem dúvida - é considerada, nada mais nada
adolescente convencido, tinha forçosamente menos, "emérita embaixatriz do nosso folclo-
que citar Freud e falar em psicanálise. A re". Cronistas de rádio, críticos, literatos
pobrezinha virou panacéia. Foi parar nas attachés ao bl'Oadcasting ... falam de folclore
revistas ilustradas, onde se fundaram "con- diàriamente, referindo-se às qualidades vir-
sultórios" de psicanálise. O caminho estava tuosissimas daquêles citados "folcloristas".
traçado. Frenologia dos novos tempos, o seu O pessimismo ironico de Artur Ramos
reduto tinha que ser a banca dos quiroman- baseia-se, é ,claro, no alto espírito cientifieo
teso "Professor" Sinval, Madame Grega e que anima a sua obra. Definindo seu pen-
quantas outras madames anunciam a psica- samento, o mestre expõe, teoricamente: "Fol-

- 265-
clore é disciplina científica, Nada tem que Entre nós, Roquete Pinto andou colhen-
ver com essas contrafações, ou com essas de- do diretamente nas tribos dos Pareeis e dos
formações criadoras, O seu registro é obje- Nambiquaras as canções e os cânticos de
tivo, visto que êle é propriedade comum, o guerra indígenas, por meio de fonogramas,
seu patrimônio, um patrimônio coletivo, Os de indiscutível e inestimável valor documen-
últimos congressos, no que se refere, por tário, Outros o secundaram e, hoj e em dia,
exemplo, ao folclore musical, insistem para é comum o usado arquivamento mecânico
que a sua colela seja feita em aparelhos, gra~ .das vozes nativas, na modulação de temas
vadores do som, e não pelo ouvido, mais ou primitivos. A gravação fonográfica é método
menos preconcebido, do músico profissional", dos mais difundidos, chegando mesmo a Es-
E, após longas divagações em tÔl'l10 do cola Nacional de Música a organizar um
assunto, citando os trabalhos empreendidos Centro de Pesquisas Folclóricas, aparelhado
em várias partes do mundo, especialmente para uma série de atividades extra-escolares,
nas Américas, conclui: "O estudo científico já consideradas necessárias como auxiliares
do folclore é uma necessidade premente, a de sua organização didática, O Centro rea-
fim de que sej a reconquistado o verdadeiro liza periOdicamente excursões dedicadas às
conceito de uma expressão que anda por aí, pesquisas da arte popular, no Brasil, no Con-
coitadinha, nos cafés ,de esquina, completa- tinente e no resto do mundo.
mente desmoralizada". t:sse arquivamento, tão útil quão pre-
cioso, deve constituir fonte insuspeitável para
Tudo isso está muito certo. A coleta di-
os compositores honestos, cuja arte pretende
reta dos temas folclóricos de cada povo é
trabalho que tem sido empreendido pelos orientar-se no espírito da música naciona-
cientistas de quase todos os países. A apre- lista. Dessedentam-se nela, tanto os autores
ensão objetiva dos motivos característicos de de musica elevada, quanto os compositores
da chamada musica urbana, combatida por
cada raça permite discernir, de fato, os fe-
uns e defendida por outros,
nômenos da aculturação. Entre os povos
americanos, especialmente, essa investigaç'ão As advertências de Artur Ramos, no sen-
faculta o desentranhamento da amálgama tido de se não desvirtuar o folclore, popula-
comum, do que é de origem espanhola, do rizando-lhe a expressão e os temas originarias,
que é de origem negra ou indígena. merece aplausos do ponto-de-vista científico.
E' necessário preservar e não deturpar, . ,
O folclore sobrevive nos contos, na mú-
Convenhamos, porém, que do ponto-de-
sica, na poesia e nos cantos populares; na
vista artístico essa disseminação de musicas
dansa, nos jogos, festas e costumes; nas artes'
de tôda natureza, calcadas em desenhos fol-
menores, na medicina, nas crenças, na lin-
clóricos, concorre, sem duvida, para a sedi-
guagem, etc... ,
mentação de traç'os originais na futura estru-
Ê, por vêzes, floresta que parece inextri- turação da música nacional. Expliquemos
cável, Mas o cientista penetra-lhe o recesso mais claramente. Os temas e, mesmo, as C,an-
e regressa de lá, trazendo em seu puçá os ções colhidas diretamente em suas fontes na-
tipos selecionados da fauna folclórica .. , Já turais são, via-de-regra, supinamente monó-
dissemos que a mais constante infiltração tonas. Comprazem-se, na maior parte dos
folclórica entre nós foi talvez a hispânica, casos, em repetidas entonações, cansativa-
através dos lusos. mente longas e soporíferas. Ninguém poderá
O dr. Ralph Boggs, da Universidade da divertir-se, ouvindo-as em sua rudeza origi-
Carolina do Norte, um dos maiores especia- nária, " Cansam, saturam",
listas norte-americanos do folclore, conclui O cOl1lposilúr toma-as, contudo, como
mesmo que, apesar das dificuldades, a he- base, como princípio de um desenho temá-
rança folclórica da Espanha é considerável, tico. E desenvolve-as, enriquecendo-as com os
110 Novo :Mundo, e em muitos casos perfei- recursos de sua inspiração, Se é um artista,
tamente discernível. capaz de largos remígios, faz, com elas, mú-

- 266
sic a elevada, sinfônica ou de câmara; se é, ristas". Folclore é clencia e êles trabalham
porém, um compositor popular, produz can- dentro de normas científicas.
ções urbanas, ligeiras, melôdicamente acei- Recolhem, preservam, defendem e estu-
taveis. Em qualquer dos casos, a base folcló- dam a ciência folclórica enquanto outros a
rica subsiste em bôa 0\.1 ma partitura, mas divulgam. Seria interessante, portanto, para
sempre traindo um esfôrço para melhor. a presente obra, ouvir, em tôrno dessa ques-
Se agrada, a canção folclórica torna-se tão intrincada de folclore, duas figuras ex-
popular; daí, sua vulgarização e a conse- ponenciais da ciência e da vulgarização.
qüente saturação do gênero. Não me foi difícil encontra-las e ouvi-las
r:sse esfôrç'o, repetido por dezenas, cen- a fim de que pudesse registrar, neste capí-
tenas de compositores, tende, inegàvelmente, tulo, suas opiniões, tão valiosas quão desva-
a um movimento musical em tôrno das fon- necedoras.
tes folclóricas; e isto é, parece-me, uma for-
ma de concorrer para a sedimentação da
música, no país. Luiz Heitor Corrê a de Azevedo e Hen-
O que se torna difícil, no entanto, é o rique Feireis, (conhecidíssimo como o "Al-
trabalho de colhêr, nas fontes originarias, os mirante "), não poderiam negar-se a contri-
temas do folclore destinados a suprir a ima- buir, com o acêrvo inestimável de seus co-
ginação dos compositores. Os músicos que nhecimentos, para maior brilhantismo dã
delas se servem colocam-se, paralelamente, "História da Música Brasileira". E não se
no mesmo papel exercido pelos pintores: as negaram, de fato.
notas equivalem às tintas com que êstes tra- Autoridades indiscutíveis no assunto: um,
balham em suas composições. Ora, como os como pesquisador, outro como divulgador,
pintores não conhecem de onde elas proce- colocaram-se ambos à minha disposição. E
dem, os musicistas, por sua vez, não sabem foi confiando em sua acolhida generosa e,
quanto custa colhêr um tema folclórico ou sobretudo, no carinho com que exercem as
de onde êle procede ... suas atividades, que procurei recolher as im-
Os quimicos fazem as tintas e os pesqui- pressões de cada um dêles, como um penhor
sadores folcloristas recolhem os temas. r:stes, seguro da soma de conhecimentos que ambos
notem bem, é que são os "autênticos folclo- possuem, sôbre a debatida questão.

() que se oelJe entenoer por flléfore Crasifeiro

L UlZ HEITOR CORRÊA DE AZEVEDO, nascido Culto e criterioso, honesto em seus prin-
no Rio de Janeiro a 13 de dezembro de 1905, cipios de critica artística, não tardou em ver
foi educado no Colégio Anchieta, em Nova sua colaboraç'ão disputada pelas mais notá-
Friburgo. Seu pendor para a Illusica levou-o veis publicações especializadas, não só do
a estudar piano com Alfredo Bevilacqua e Brasil como do estrangeiro. Tornou-se assi-
Charley Lachmund, tomando ainda lições de dua sua assinatura, em ensaios da "Ilustra-
1 harmonia, contraponto e fuga com o prof.
..! Paulo Silva. Ensaiou a composição mas per-
ção Musical", "Revista Brasileira de Música",
cebeu, desde cedo, suas aptidões para os es- "Cultura Artística", "Bl'asil Musical", etc.,
tndo de musicologia e critica musical. Co- além da "Resenha Musical", de São Paulo,
meçou a escrever 110S jornais, colaborando, do "Boletim Latino Americano de Música",
inicialmente, no "O Imparcial" e na "A Or- de Montevidéu, e de "La Revue Musicale",.
dem". Isto aí pelas alturas de 1930. de Paris.

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Com o falecimento do bibliotecário do diante pois, em tÔl'I10 de musIca e, especial-
Instituto Nacional de MúsÍea, Luiz Heitor foi mente, de música folclórica, êle se compraz
nomeado para o cargo, organizando e diri- em falar a qualquer hora,
gindo, até 1942, a "Revista Brasileira de Mú- Lá estive várias vêzes e, em consecutivas
sica", publicação oficial daquêle estabeieci- palestras, consegui captar os esclarecimentos
mento, que se seguem, frutos da experiência erudita
Antes já havia publicado o "Arquivo de de um pesquisador honesto,
Música Brasileira", destinado à divulgação - Para começar - disse-me êle - con-
das obras dos velhos compositores brasileiros vém fixar bem o tênno folclore, situando-o
existentes na biblioteca do Instituto, cientificamente em suas justas proporções,
Em 1939, após ter prestado concurso, foi A designa~ão folclore (de Folk, povo, e
chamado a inaugurar a cátedra de Folclore LOl'e, ciência) aparece, pela primeira vez, na
Nacional na já então Escola Nacional de Mú- revista" Athellaeum", de Londres, em 1846,
sica da Universidade do Brasil e, mais tarde, proposta pelo arqueólogo William John
designado para lecionar História da Música,' Thoms para substituir o que até então os
no Conservatório Brasileiro, estudiosos inglêses chamavam de antiguida-
Ajudou a fundar várias associações pro- des populares ou literatura popular,
pagadoras de música, tais como: Sociedade A imprecisão, mesma, no binômio anglo-
dos Admiradores de Francisco Manuel, So- saxão - na opinião de Saintyges - lhe asse-
ciedade de Música Sinfônica e de Câmera, gurava o sucesso, permitindo adaptar-se às
Associação dos Artistas Brasileiros, etc, Faz extensões e variações de sentido que a vida
parte ainda da Academia Brasileira de Mú- impõe aos têrmos científicos bem como a
sica, da American MusÍeological Society e da qualquer palavra, O sufixo lore, para os po-
Sociedade Folclórica do México, vos de língua inglês a, tinha grande vantagem
Em 1941 foi convidado pela União Pana- de poder' juntar-se a muitas palavras, for-
mericana para exercer as funções de consul- mando têrmos cômodos e expressivos, Quem
t0r da sua Divisão de Música, em Wash- encontra livros intitulados Bird-lore ou Plant-
ington, lore compreende, imediatamente, que o autor
Nos Estados Unidos, participou de inúme- trata, em tais livros, dos passaros ou das plan-
ros congressos, Interessado em estudar e re- tas, considerados sob o ponto de vista em que
colher o folclore musical brasileiro, estabele- são mencionados pelo povo em suas tradi-
ceu um acôrdo com o "Archive of American ções, suas superstições, seus provérbios e suas
Folk Song", da Biblioteca do Congresso, de denominacões. Por outro lado, o pl:efixo folk
\Vashington, em virtude do qual empreende se presta a não menos felizes combinações,
viagens pelo Brasil, gravando em discos os Folk-song ou Folk-medicin são títulos breves
cantos e as dansas do seu povo, e expressivos para ensaios ou livros consa-
Em 1943 fundou, na Escola Nacional de grados às canções populares ou à medicina
Música, o Centro de Pesquisas Folclóricas, do povo, Enfim, a brevidade relativa dêsse
organismo que promove as citadas viagens vocábulo cQmposto permite a formação de
além de realizar sessões de estudo e manter derivados, como folclorista ou folclorismo,
publicações especializadas, Os alemães usam os têrmos equivalentes
Publicou vários ensaios, frutos de con- Volkskunde ou Volkslehre, Em outros paí-
ferências ou de artigos na imprensa, versan- ses experimentou-se o emprêgo de designa-
do assuntos de folclore, óperas, história da ções substitutivas: Laografia (Grécia), Saber
música, etc, popular (Espanha), Tradicionismo, Milogra-
Foi na Escola Nacional de Música que fia, Antropopsicologia, Demopsicologia (Fran-
procUl'ei Luiz Heitor, em uma pequena sala, ç'a) , A última designação passou a ser muito
onde êle costuma, às vêzes, trabalhar em usada pelos estudiosos italianos, Literatllra
sossêgo ou atender os amigos, Ciente dos popular, Tradição Poplllar, Demiologia, Ci-
meus propósitos, mostrou-se desde logo ra- ência dêmica (Itália), Demosofia (Brasil),

- 268-
Tôdas essas designações caíram em desuso
ou ficaram em plano secundário. O têrmo
Folclore é universalmente empregado.
"Em 1886 Sébillot se confessava incapaz
de fixar as fronteiras do Folclore que, dizia
êle, invadem as da Etnografia propriamente
dita e da Antropologia não somática. Alguns
anos mais tarde um homem de espirito tão'
penetrante como André Lang declara: "Se
me perguntarem como e porque o Folclore
difere da Antropologia, ficárei um pouco em-
baraçado para responder". E' o Folclore
uma parte da Etnografia? Raffaele Corso e
Saintyges precisam a diferença entre as duas
ciências: a Etnografia estuda os povos pri-
mitivos;!, o Folclore estuda as classes popula-
res dos povos civilizados. Só há Folclore onde
coexistem duas culturas: a popular e a eru-
dita ou oficial)
,Os limites entre o "popular" e o "não
popular" não podem ser fàcilmente assina-
lados. A tendência dos primeiros folcloristas
era para só levar em consideração as contri-
buições dos habitantes de zonas rurais. Hoj e
em dia julga-se indispensável ouvir, também,
o operariado e a pequena burguesia das ci-
dades. Há um folclore das cidades".
Quanto aos processos de pesquisa, Luiz
Heitor adiantou:
- O método de pesquisa folclórica tem
dois momentos distintos: a colheita e a classi- Luiz Heitor, professor ele música, folelórie~, na E€~ola
Naciolllll de lIJúsiefi
ficação. O segundo é o mais importante e con-
fere a essa disciplina o seu caráter cientifico.
A colheita, porém, tem suas dificuldades, PONTO emprega-se para indicar detm'-
principalmente no domínio' do folclore n1U- , minado canto, na música afro-brasileira. No
sical. O folclorista deve especializar-se em jongo paulista diz-se "amarrar o ponto"
i( certa classe de manifestações e em determi- (continuar com o mesmo canto) ou "def atar
! nada zona geografica. o ponto" (substituí-lo por outro) .
~. A uma pergunta minha em tôrno de gê- PONTEIO é "prelúdio em qualquer mé-
neros e formas na música popular brasileira, trica ou andamento", conforme definição de

I
I
Luiz Heitor esclareceu, pacientemente:
- Pode-se reconhecer em nossa música
popular diversos gêneros; seria demasiado,
entretanto, pretender descobrir formas mu-
Mário de Andrade, que ainda nos fala sôbre
CHORO e SERESTA, dizendo que "são no-
mes genéricos aplieados a tudo quanto é mú-
sica noturna de carúter popular, especial-
.I '
sicais fixas nesses documentos .
TOADA, por exemplo, é sinônimo de
,mente quando realizada ao relento".~ O CHO-
RO é um conjunto instrumental compreen-
melodia. dendo, além dos violões e cavaqllillhos, ins-
MODA é nome dado a um trecho musi- trumentos de sôproJ A SERESTA é cantada,
cal qualquer; diz-se moda de cateret(J, moda com acompanhamento de instrumentos de
da cida<!f, Jlloda de rebeca, elc .... corda.

- 269-,
ARRAZOAR é canto de trabalho, geral- Modinha e Lundu são gêneros perten-
mente alternado entre dois cantadores. centes à música culta, escrita e cantada nos
Como tendências para uma estrutura for- salões. Na música mais diretamente popular,
mal, podemos indicar: a) a disposiç'ão bi- o canto alternado entre solista e côro é cons-
nária (duas partes sem repetição da primei- tante. Quase sempre a parte do solista é im-
l'a); b) a reunião de várias peças formando provisada.
suite; c) a variação (pelas deformações que DESAFIOS - Nos Desafios dois canta-
geralmente sofre a melodia, a cada repeti- dores disputam, improvisando versos, alter-
ção). nadamente, sôbre um motivo musical previa-
MODINHA é a canç'ão de salão, brasi- mente estabelecido. "Não há acompanhamen-
leira e tradicional. Na segunda metade do sé- to musical durante a solfa. Os instrumentos
culo XVIII já a sua voga é muito grande, em executam pequeninos trechos antes e depois
Portugal e no Brasil. Tem origem culta; po- do canto", como observou Câmara Cascudo.
pulariza-se mais tarde. Gilberto Freyre in- "O trecho tocado é rápido e sempre em ritmo
siste na sensualidade das MODINHAS "im- diverso do que foi usado no canto", "No fim
pregnadas do erotismo das casas~grandes e de cada pé, findando cada linha do verso, dá
das senzalas; do el;otismo dos ioiôsnos seus um arpêjo na viola ou um acorde na rabeca.
derreios pelas lllulatinhas de cangote chei- Entre um verso e o seguinte, entoado pelo
roso ou pelas priminhas brancas" (Casa antagonista, executa-se um trecho musical,
Grande & Senzala). Apesar de musicalmente alguns compassos. Durante o canto, junto
tudo dever à Europa a nossa Modinha tem com a voz humana, nada, absolutamente
um cunho muito particular que nos pertence. nada. Em nenhuma outra parte, exceto o
"Os nossos modinheiros coloniais e imperiais, nordeste, o desafio possui essa característica
ao invés de se desnacionalizarem na erudi- singular. Em qualquer outra parte do Brasil
ção e na imitação, iam buscar na melódica o canto é acompanhado juntamente". No
européia os elementos em que ela comprazia sertão nordestino chama-se de ROJÃO ou
com a sensibilidade nacional nascente". As BAIÃO ao pequeno trecho executado entre
mais antigas modinhas são em ritmo binário; o canto de um e outro cantador. A parte de
na fase romântica elas adotam o ternário da canto é uma espécie de recitativo, em ritmo
valsa. A Schottisch influi na modinha dos muito livre, apenas determinado pelos versos.
seresteiros, suscitando uma floração mais in- cOCO - E' o gênero mais divulgado no
tensamente popular, em ritmo binário. FOR- litoral nordestino. O que caracteriza o cOCO
MA: pode ser "em duas estrofes A e B; em é o refrão; as estrofes são improvisadas no
duas estrofes e refrão A B C; em estrofe e momento ou tradicionalmente conhecidas.
refrão A C; em duas estrofes e um Stretto Sua feição rítmico-melódica é muito livre.
que faz as vêzes do refrão A BD; e mesmo EMBOLADA - E' a estrofe solista de
algumas eruditíssimas, vestindo o espartilho certos COCOS, mais rápida do que o refrão
da Ária da Capo". PLANO TONAL - mu- coral e procurando efeitos cômicos pelos con-
dança de modo, de maior para o menor; m07 ceitos e pelas assonâncias que procur~.
dulação à sub-dominante. A modulação à ABOIO - São gritos estranhamente mo-
dominante é muito rara. O Rio e a Baía dulados, para chamar o gado".
foram os principais centros de criação da E' claro que só me interessava conhecer
Modinha. a opinião de Luiz Heitor sôbre as origens
Convém notar que estou citando, conti- possiveis ou as já definidas da música popu-
nuamente, Mário de Andrade. lar brasileira e sua influência sôbre as ten-
LUNDU: foi originàriamente dansa. "Aqui dências da nossa música elevada. Não vinha
no centro do país existe especialmente uma ao caso, pois, digressões em tôrno da poesia
cantiga praceana de andamento mais vivo popular - de tão grande importâneia na
que a modinha e com texto de earáter cô- vida das soeiedades- - ou mesmo dos mitos,
mico, irânico, indiscreto". lendas e cantos populares, assunto já exuus-

- 270-
...
c:m.
AR.EA AMAZONICA-
AR.EA DA C!tMTORIA-
......

..
~
ê

~
ARtA DO COCO
ARcA DOS AUTOS
ARcA DO -SAMBA
ARcA DA MODA Dr VIOLA-
~ Pt~Ur DO f~MDMGD
~ ARcA GAVUtA-

Geografia folclórica do Brasil, organizada pelo prof. Luiz Heitor, em sua cacleira ele mÍlsica.
folél6rlca, na Escola Nacional de Ml1sic·a

tiva e eruditamente versado pela competên- tes, se é possivel distinguir em nosso folclore
cia de Artur Ramos, Sílvio Romero, Luiz da musical um ou outro elemento ameríndio, e
Câmara Cascudo, Edson Carneiro e outros. se principalmente todos êsses elementos dís-
Dentro de tal terreno, adstrito a essa ordem pares se amalgamaram e, transformados pe-
de considerações, procurei conhecer então o los imperativos da fisio-psicologia brasileira,
pensamento do catedratico da Escola N aeio- deram origem a uma música popular já por
nal de Música a respeito das raízes européias muitas partes incon.fundivelmente original:
da nossa música popular. E êle me fêz ler, não é menos certo que vamos encontrar na
inicialmente, uma página de Mário de An- música português a tudo aquilo em que a
drade, seu velho amigo e de quem êle, com nossa esta baseada".
justificada razão, se confessa admirador. Em seguida, prosseguiu:
Ei-Ia: - O FADO não é, como geralmente se
"A entidade da música popular brasi- pensa, uma canção tipicamente portuguêsa.
leira teve base direLa no canto e üa dansa Diz Ernesto Vieira que "o Fado só é popular .
português a . Se em· nossas manifestações mu- em Lisboa; para Coimbra foi levado pelos
sicais populares é Íncontestavel que a coope- estudantes e nem nos arredores destas duas
ração africana e espanhola foram ímpol'tan- cidades êle é usado pelos camponeses, que

- 271
têm suas cantigas especiais e muito diferen- em forma de recitativo, e os nomes dos prin-
tes" (Dicionário Musical). Hoje em dia está cipais instrumentos portuguêses antigos, com
provada a origem brasileira do Fado, que exceção da harpa que vinha provàvelmente
era uma dansa cantada, análoga ao L\mdu, desde o tempo dos celtas. São êles: o ALA ú-
introduzida em Portugal pelos embarcadiços DE,d~ árabe al-aúde; a GUITARRA (a que
que regressavam do Brasil e, mais especial- hoje em Portugal se chama viola francesa),
mente, pela famulagem da Côrte; quando ~ do do árabe kuiÍra; a REBECA, do árabe rebeb;
seu regresso a Lisboa eni 1821. "·Com êss~. - õ ,adufe, do ál:abe al-adofe; os AT ABALES
nome de Fado a canção de Lisboa só surgiu ou TIMBALES,· do árabe tabil".
em 1849", diz Ribeiro Fortes; "ora, nó Prl- LuizHeitordiscorreu então sôbre a ori-
meiro quartel do século XIX o Fado é men- 'gem lusitana da nossa música e dos nossos
cionado como dansa brasileira pelo geógrafo instrumentos populares:
italiano Adriano Balbi (1822) e pelo poeta - A descoberta do Brasil coincide com
português Felisberto Inácio Januário Cor- o período de maior esplendor da civilização
deiro, o Falmeno (alguns anos depois); am- portuguêsa; tanto a música popular como a
bos conheciam Portugal onde não haviam erudita encontram-se em pleno florescimen-
encontrado o Fado". to. No reino de D. João III há 77 músicos
Ainda sôbre a inúsica popular portuguê- empregados no serviço da Côrte; os Autos de
sa, ofereceu-me Luiz Heitor a seguinte pá- Gil Vicente tinham sempre acompanhamento
gina de Freitas Branco, inserta no livro "A - musical.
música em Portugal": Todo o século XVI foi de intenso pro-
"Os cantos e dansas do Norte cúacteri- selitismo religioso, reservando-se à música
zam-se pela vivacidade e simplicidade per- participação importante, na tarefa de con-
sistente do ritmo e do caráter melódico e quistar novas almas para a Igrej a. Os J e-
harmônico. Os principais cantos dansados suitas inscrevem em seu programa de ação
são a CHULA e a CANINHA VERDE, o ins- missionária espetáculos dramáticos - à guisa
trumento preferido a viola de arame. A zona dos mistérios medievais -- acompanhados de
que vai do Tejo ao Douro tem como centro música vocal e instrumental, dansas, aparato
de can~ão popular Coimbra, onde se canta a cênico, etc.
FARRAPEIRA, o ESTALADINHO, o VIRA e Vindo para o Brasil os padres valeram-
o MALHÃO. Os principais instrumentos aqui se dos mesmos processos, adaptando-os ao
são as guitarras acompanhadas a viola ou entendimento dos selvieolas. "Para mais os
violão. A região alentejana, de tão gloriosas captar e para insinuar suavemente a civiliza-
tradições musicais, parece justificar, na ten- ção cristã, imitaram os próprios Padres, no
dência polifônica do seu povo, a teoria geral- comêço, os cantares e até as dansas dos ín-
mente aceita de que a extraordinária eflo- dios. Na verdade, impor ex-abrupto os usos
rescência do estilo a cappella em volta de europeus seria afugentá-los ou protrair a
}<~vora não foi obra do acaso. As dansas prin- conversão. Mais hábil foi, realmente, come-
cipais são aqui as SAIAS, dansa de roda, e ç'ar pelo som dos maracás e taquaras, para
o FANDANGO, acompanhado e0m as guitar- acabar, como de fato se acabou, por música
ras e violas rasgueando, com o adufe, a gaita de canto, com órgão e flautas, como se em
e o tamboril. Quanto a instrumentos, a pro- Coimbra pudera fazer" segundo observação
víncia do Algarve não difere grandemente do de Serafim Leite, em sua História da Com-
vizinho Alentejo. A canção é, porém, muito panhia de Jesus no Brasil.
menos profunda de expl'essiio". A música, propagada pelos Jesuítas, en-
E mais esta, do mesmo uutor: controu boa acolhida na sociedade colonial.
"D a permullêneia dos mouros em terri- Em comêços do século XVIII Baltazar de
tório português ficaralll as NLOUnISCAS, dan- Aragão, grande senhor da Baía, possuía um
sas ou mascaradas com música, n LENGA- grupo de escravos cantores e instrumentistas,
LENGA ou LINGUI-LINGUI úl'ahe, narração dirigidos por lllll músico francês. Ontros sc-

- 272-
guiram o seu exemplo e no decorrer daquêle VIOLA é o instrumento em uso, cm Portugal,
século já eram muito comuns, no Brasil, os até fins do século XVIII, quando foi substi-
conjuntos musicais formados pelos escravos. tuida pela GUITARRA PORTUGUÊSA, tendo
A MODINHA, gênero que atingiu o apo- 12 cordas, dispostas em 5 ordens (lá 2, ré 3,
geu no século XVIII,.,e de origem portuguêsa. sol 3, si 3, mi 4); o CAVAQUINHO tem ori-
Já nessa época distinguiam-se as modinhas gem nos Açores, onde é chamado de MA-
brasileiras que "são cheias de melodia e de CHETE
sentimento, e quando são bem cantadas co- A influência da música espanhola em
movem fundamente quem lhes pode compre- nossa música popular atual ainda não foi
ender o sentido", segundo o depoimento de demonstrada objetivamente. A sugestão his·
Adriano Balbi. tórica do domínio espanhol (1580-1640) e a
Os instrumentos populares de corda usa- denominação espanhola de algumas de nos-
dos no Brasil são de procedência portugu·êsa. sas formas musicais (tiranas, falldallgos, etc,)
O VIOLÃO é o mesmo violão ou viola fran- contribuem para essa suposição. Mais fàcil-
cesa que surgiu em Portugal em comêço do mente encontraremos vestígios de influência
século XIX, com 3 bordões (mi 2, la 2, ré 3) espanhola em nossas dansas populares, mas
e 3 cordas de tripa (sol 3, si 3, I1Ü 4); a assim mesmo, recehida através de Portugal.

proBfémas 00 ritmo, oa 8armonia tipica, 00 instru-


menta( e oas oansas Brasiféiras

A RESPEITO dos problemas do ritmo na tempo dos compassos binários. Fundamen-


música popular brasileira, o conhecido pes- talmente se apresenta como colcheia entre
quisador teceu estas considerações: semicolcheias, ou em forma de antecipação.
- Inicialmente, convém acentuar que A sincopa, na música brasileira, é muito
possuímos, no Brasil, música popular; mas mais sutil do que a sua grafia habitual. As
não possuímos propriamente canções popu- notas rápidas são alongadas, subtraindo ao
lares. O processo de formação e de execução grupo sincopado a sua precisão. Muitas vê-
é que é tradicional, e .não talou tal do- zes os 3 valores se igualam, com ou sem acen-
cumento. tuação da nota central.
Quando um documento se generaliza, Uma grande parte da música popular
sofre tôda a sorte de deformações. Um dos brasileira, e especialmente no Nordeste, não
efeitos do excessivo individualismo nosso é tem ritmo musical próprio. "E' muito comum
que as variantes dum canto tradicional mais - acentua Mário de Andrade - diante de
parecem cantos novos. No Norte do país o certos cantos do Nordeste a perplexidade do
Bumba-meu-boi chega a ter melodias dife- coletor, tal a liberdade e a sutileza do laisser
rentes de uma cidade para outra, às vêzes aUer rítmico com que a gente de lá canta.
de um para outro ano. Cantam com a sutileza rítmica de quem está
O preconceito da binariedade e da sin- falando, com a máxima despreocupação. E'
copa são constâncias, porém não dis.tintivos muito possível que nessa gente do Nordeste,
obrigatórios da música brasileira. Encontra- cantando dêsse jeito, em contrasteo decidido
mos em documentos populares compassos com a rítmica isoladamente musical estabe-
ternários, quaternários e quinários. lecida pela música européia desde que criou
O que caracteriza a sincopa na música os valores ~e tempo musical e o compasso, é
brasileira é estar integrada à melodia e no 1.0 muito possível que nêsses nordestinos a gente

- 273-
cendente do 3.° grau, no modo menor, é cons-
tantemente observada.
E conclui, com abundância de conheci-
mentos técnicos, que aproveito para endere-
çar aos entendidos da m'iltéria:
- A melodia popular brasileira tem ge-
ralmente sentido descendente. As vêzes uma
simples marcha descendente basta para for-
mar um canto.
O inicio de uma melodia com uma fór-
mula consistindo no salto ascendente da do-
minante à mediante, desta descendo à tônica,
é tipico nos documentos mais influenciados
pela melódica tortuosa das zonas urbanas.
Essa caracterização ainda se torna mais
acentuada se a tônica vem precedida de du-
pla apogiatura e se a mediante é menor.
Um grande número de documentos de
música popular brasileira foge aos quadros
Velho tocador de vlol!l.o, em Bom Jesus, Rio Grande da tonalidade, movimentando-se de maneira
do Sul. (Foto Luiz Heitor)
estranha e ilógica, desprezando o valor atra-
tivo de certos graus, não resolvendo a sensÍ-
vá encontar uma reprodução contemporânea vel e repousando em graus considerados
da maneira de cantar dos rapsodos gregos ou fracos.
do canto cristão primitivo. Com efeito, dá-se Trata-se, algumas vêzes, de melodias le-
neles uma união absoluta da música e da pa- gitimamente pertencentes aos modos lídio
lavra falada, de forma a tornar impossível (escala de fá com si natural) ou mixblidio
uma fixação rítmico-musical isolada. E' a (escala de sol com fá natural). Outras vê-
maneira de falar, natural e despreocupada, zes o documento foge a qualquer tentativa
que determina às vêzes em absoluto a suces- de análise modal ou tonal.
são dos sons da melodia. Nas emboladas, Em muitos documentos a tónica é siste-
côcos, desafios, pregões e aboios é que êsse màticamente evitada para repouso terminal.
processo de ritmar discursivo é mais fre- f:ste se faz (quando a melodia é francamente
qüente. "
tonal) no 3.° ou no 5.° grau. Muito provàvel-
Quis saber qualquer coisa sóure a melodia mente essa particularidade tem origem no
em nossa música popular e Luiz Heitor expôs hábito de cantar em têrças, com o qual a me-
seu pensamento: lodia da voz superior, que tem seu repouso
-- O modo maior predomina nos do- final no 3. 0 grau, passa a ser considerada a
cumentos de origem verdadeiramente popu- principal. A insistência nêsse processo con-
lar. Nas modinhas, serestas, chôros e outras tribui, também, para uma certa incaracteri-
expressões musicais próprias das cidades é zação tonal".
que se nota preferência pelo modo menor. E' claro que Luiz Heitor, em apoio des-
Freqüentemente, em melodias populares sas considerações, apresentava-me, instan-
brasileiras encontramos o 7.° grau abaixado, temente, abundância de exemplificações.
tanto no modo menor como no maior. Algu- Deixo, no entanto, de citá-las aqui, no intuito
mas vêzes essa alteração pode determinar de não desvirtuar o espírito dêste livro. Será
modulação ao IV grau; outras há, no enlanto, fácil, todavia, aos interessados no assunto,
em que tal modulação não está na indole da procurá-las diretamente na Escola Nacional
melodia. Em compensação, a alteração as- de Música.

--- 274 -

' ..\
Indagando de Luiz Heitor sôbre as har-
monias típicas em nossa música, bem como
sôbre o instrumental popular brasileiro, ob-
tive as seguintes respostas:
- Não existe, propriamente, uma har-
monia peculiar à música brasileira: encon-
tramos, apenas, processos que, por serem em-
pregados com mais freqüência, tornaram-se
capazes de caracterizá-la.
E' especialmente no folclore urbano, em
peças de acompanhamento obrigado (portan-
to mais sujeitas à influência européia), que Violinista popular, fotografado por Lulz Heitor
podemos observar processos harmônicos que,
por sua constância, podem ser considerados O cavaquinho, segundo o depoimento de
.características da música popular brasileira. Balbi, teria sido inventado pelo mulato Joa-
De um modo geral, essa música é rebuscada, quim Manuel, que vivia no Rio de Janeiro,
empregando abusivamente retardos, apogia- em comêços do século XIX e era célebre pela
turas, alterações e cromatismo. habilidade com que tocava o violão. O mais
Quanto aos principais instrumentos usa- certo, porém, é serêsse instrumento originá-
dos no Brasil são: fora da cidade a viola, a rio dos Açores, onde é conhecido pelo nome
sanfona, o ganzá, a puíta; na cidade o violão, de machete; popularizou-se no Brasil e em
a flauta, o oficleide, a clarineta e ultimamen- Portugal (onde era chamado cavaquinho)
te o saxofone, por influência do jazz. e onde acabou caindo em desuso. E' um
violão pequeno com 4 cordas e 17 trastos. A
O violão (viola francesa, na designação
afinação das cordas é variável.
portuguêsa) tem 6 cordas (geralmente 3 bor-
O violino (chamado arcaicamente de
dões e 3 cordas de tripa), afinadas mi 1, lá
rebeca ou rabeca) pode ser incorporado aos
1, ré 2, sol 2, si 2, mi 3. Sua origem está
nossos instrumentos populares. Tocam apo-
na velha viola portuguêsa, transformada em
iando-o na altura do coração ou no ombro
principios do século XIX. No Brasil é ins-
esquerdo, sempre a voluta para baixo, com
trumento tipico das cidades, raramente em-
quatro cordas de tripa, afinadas por quintas,
pregado pelo homem do interior.
sol-ré-Iá-mi, e friccionadas com um arco de
A viola caipira, de cordas de arame, crina, passado no breu. Tem uma sonorida-
parece ser, em nossos dias, o mesmo instru- de roufenna, melancólica e quase interior. Nos
mento usado pelos portuguêses até o século agudos é estridente, como observa Câmara
XVIII, com a designação de viola. O tipo Cascudo.
chamado QUELUZ tem cinco furos na caixa O acordeon (harmônica, popularmente
de ressonância, forma aproximada do violão conhecido por sanfona ou gaita) tende a subs-
e cinco cordas de cobre duplas com a seguinte tituir, em certas partes, a viola. Tem de 10 a
afinaç'ão lá-lá 1, ré-ré 2, sol-sol 2, si-si 2, mi- 16 chaves.
mi 3. Os instrumentos de ritmo mais vulgar-
Outros tipos apresentam pequenas dife- mente usados são, além de grande variedade
renças de afinação e de número de cordas. O de tambores e tamboris, o chocalho (cha-
encordoamento é de aço nas duas primas e mado ganzá ou canzá no Norte) e o reco-
segundas; a terceira, de metal amarelo (la- reco.
tão); o bordão de ré, de aço; o de lá e de mi, -'P Falando, certa vez, a respeito dos autos
de latão ( o mi de latão, nos casos em que a populares de origem européia especialmente
viola tem 6 cordas duplas, ficando acrescida das pastoris e cheganças, Luiz Heitor concor-
de mi grave). dou que estas representam, sem dúvida, uma

- 275-
das manifestações maIS caracteristicamente que os nossos Pastoris, bem como as Reisa-
originais da nossa música popular. E con- das portuguêsas, são ainda hoje formas po-
cluíu: pulares. 3. 0 - Finalmente os brinquedos po-
Segundo Artur Ramos tôdas essas dan- pulares ibéricos, celebrando as lutas de Cris-
sas obedecem, em última análise, à técnica tãos e Mouros".
de desenvolvimento dramático dos antigos Artur Ramos reconhece nos' autos popu-
autos peninsulares. O conteúdo dramático, lares sobrevivências históricas e totêmicas.
no· entanto, pode ser de procedência ihérica, A participação exclusiva de homens em
africana ou ameríndia. Autos de néo-forma- todos êsses autos (com exceção dos Pastoris)
ção brasileira existem onde se acham amal- revela-nos o seu fundo religioso. Algumas
gamados, numa mistura quase irreconhecível, personagens femininas são representadas por
os folclores negro (de procedência africana homens em travesti.
e brasileira), ameríndio e europeu.
--.":.:y Quanto às pastoris, originam-se direta-
mente dos Vilhancicos portuguêses, destina-
Origem ibérica: dos a celebrar a Natividade do Senhor. Fo-
ram tradicionais mas nunca inteiramente
Pastoris
populares; versos e música revelam forma-
Cheganças ção erudita. Os bailes pastoris vieram ao
Brasil pelos fins do século XVI e aqui, em
Origem africana Oll afro-brasileira: pouco tempo, tomaram uma feição própria.
Podiam ter fO,rma dramática mais definida,
Congos à feição dos Vilhancicos ibéricos, ou serem
Quilombos constituidos, apenas, pelos cantos e dansas
das pastorinhas. Esta última foi a forma
Origem ameríndia: mais divulgada. O Pastoril compreendia dois
partidos ou cordões: o encarnado (chefiado
Pagés pela Mestra) e o azul (pela contra-Mestra).
Cabocolinhos Outras personagens eram: Diana (no centro,
vermelha e azul), Borboleta, o Anjo, o Fúria,
Formação brasileira: o Velho, etc. Celebrado a princípio nas casas
de família êsse brinquedo, em Recife, tor-
Reisados
nou-se público, escandaloso, dando motivo a
rixas e desordens pela rivalidade entre os
Os Bumbas, os Congos, as Cheganças,
partidos. As funções prolongavam-se por tôda
permanecem vivos e etnogràficamente valio-
a época da Festa, Setembro a Fevereiro, aos
síssimos, apesar de menos freqüentes por
sábados. Depois da última j ornada havia
ventura. O conservantismo do brasileiro do
ceia. Na noite de Reis era o queima.
Norte mantém a tradição de autos populares
que já se acham olvidados em seu país de A festa de Reis é celebrada, na Baía,
origem (Cheganças). com os Ternos e os Ranchos, cuja organiza-
Segundo Mário de Andrade, os autos po- ção se confunde, já, com os Reisados.
pulares derivam dos seguintes elementos, O Terno é um cortejo de moças e rapa-
que determinaram sua formação: "1.0 - O zes, vestidos à pastora, conduzindo lanternas
costume do cortejo mais ou menos coreo- e pandeiros. Vão às casas conhecidas onde
gráfico, em que coincidem as tradições pagãs organizam dansas.
das Janeiras e Maias, as tradições profanas O rancho é um cortejo que recebe o
cristãs das corporações proletárias e outras, nome de algum bicho, planta, ser fantástico
os cortejos reais africanos, as procissões ca- ou objeto inanimado, cujo emblema é car-
tólicas com folias de índios, de pretos e de regado i.1 cabeça de um' dansarino (caçador
brancos; 2.° ._- Os Yilhancicos religiosos, de ou pescador). Tem várias personagens t1'a-

-- 276 -
dicionais. Vai de casa em casa angariando
donativos. A dansa figura a luta entre o
dansarino que conduz o simbolo do Rancho
e o seu guia, o qual vence sempre.
"'As cheganças são autos populares repre-
sentados em Janeiro. Chegança de Mouros e
Chegança de Marujos, Muitas vêzes se en-
contram reunidos em um só auto (Fandango,
no Ceará),
A Chegança de Mouros representa com-
bates entre cristãos e mouros, para conseguir
o batismo do Rei Mouro.
A Chegança de Marujos compreende o
romance da Nau Catarinetd e episódios de
navegação.
Um dus falnosos I, zah uln!Jas" do Norte
Finalmente, discorrendo sôbre as festas
populares no Brasil, fontes vivas da nossa
idade média, deu origem às comemorações
música regional, Luiz Heitor teceu certas con-
dessa festa, que herdamos dos portuguêses:
s~derações, cujo interêsse está plenamente
justificado no conhecimento que elas trazem lapinha, bailes pastoris e outras comemora-
ções.
ao estudo do nosso populário'.
Anotei-as, para transcrevê-las aqui: / A festa dos Santos Reis (6 de Janeiro)
- Desprezando a grande variedade dê tem cunho mais acentuadamente popular,
festas tipicamente regionais, cumpre enca- ocasionando cortejos (Ranchos, Ternos, etc.)
rar, apenas, as que são celebradas em tüdo e representações (Reisados, Cheganças, etc,),
o país. De acôrdo com a sua seriação no ano O Carnaval encontra celebração mais
cristão, são as seguintes: típica no Rio de Janeiro e em Recife. Tem
evoluído constantemente, abandonando ve-
a) Natal e Reis lhos processos de folgar e adotando novos.
b) Carnaval A princípio era o Entrudo em que tomavam
c) São João parte, além da água limpa, a água de bar-
rela e de pratos sujos, a cinza, os pés de
Como exemplo de festividade desapare- chaminé e de sapato, a goma, o polvilho, a
cida examinaremos, também, a Serração da lama e tudo quanto molhasse ou suj asse.
Velha, Depois vieram os limões de cheiro e as bis-
O sentido pQpular das festas do Natal, nagas de água perfumada. No Rio de Janeiro
Ano Bom e Reis é a renovaç'ão do ano, "Nin- os disfarces preferidos são: Diabos (com
guém pode sondar sem o grande terror sa- longa cauda), Mefistófeles (de capa), Satãs
grado - diz Afonso Arinos - a profundeza (com reptis saindo da bôca), Dominós. Ve-
do sentimento universal do Homem de tôdas lhos (de calção, com luneta na mão direita;
as raças e religiões ao celebrar a festa auro- devem dansar a Chula com habilidade); al-
ral da renovação do Ano, em que o declinio gumas vêzes o Princês acompanha o Velho.
de um se afora no arrebol do outro. No es- O Zé Pereira é de origem portuguêsa, intro-
petáculo do ocaso do sol e do seu nascer, da duzido no Brasil em 1852.
queda das fôlhas e do rebentar dos brotos Em Recife o Carnaval característico é
virentes, sempre constante aos olhos do ho- constituído pelos MARACATUS e pelo FRE-
mem, viu êle a lição da sua própria eterni- VO, O MARACATU é uma espécie de cordão,
dade". em que marcham e dansam Rei, Rainha, dig-
A representação da Natividade, dentro nitários da· côrte e outras personagens tra-
do templo, por personagens vivas, durante a dicionais. O FREVO é "uma eoisa legitima-

--- 277 --
mente recifense e boa como o que há de bom Chegando ao lugar previamente escolhi-
no mundo. Mistura de arrancos, de remexi- do, terminava-se a serração, surgindo ele den-
dos, de estacadas, de reboliç'os. A compasso tro da pipa fartas comezainas e muitos bebes.
de uma música quente, buliçosa, gozada. Segundo Vieira Fazenda essa festa foi come-
Música que puxa o povo'" - como opina morada até fins do século XVIII.
Mário Sette. Quanto aos festejos de São João e as
A SERRAÇÃO DA VELHA era uma fol- fogueiras, "sábios foram buscar-lhes as ori-
gança de origem português a com que se ce- gens em período muito anterior ao cristia-
lebrava o 20. 0 dia de Quaresma. Consistia nismo, nos cultos orgíacos da. Ásia e da
em passeata na qual figurava, num carro, África antigas". "f:sses mesmos sábios con-
uma grande pipa que devia ser serrada ao sideram as fogueiras de São João como re-
meio; dentro dela supunha-se estar a velha miniscências das piras simb6licas das .festas
mais idosa da localidade. Havia música e eneanas orientais, em que no hemisfério se-
fantasias a caráter. Durante o trajeto can- tentrional se celebrava o solstício do verão",
tavam-se textos como êstes: no dizer de Afonso Arinos. Tais festejos,no
Brasil, remontam aos prim6rdios da coloni-
Serra, serra, serra a velha zação. Havia batatas, carás, mandiocas e
Puxa a serra, serrador; canas de açúcar assadas nas brasas; sortes;
Que esta velha deu na neta o banho da madrugada; cânticos e dansfls
Por lhe ouvir falas de amor. tradicionais; Ciranda, cirandinha; a Rolinha.

tenoências oa música Brasifeira contemporânea

. , . c cheguei ao final das palestras com - A expansão de certas tendências na-


Luiz Heitor, justamente no ponto culminante cionais, em determinados períodos hist6ricos,
das minhas indagações: o folclore na música subjugando a arte de outros países, é que dá
artística brasileira. a ilusão de uma linguagem musical interna-
Interessava-me, de fato, colhêl' a opinião cional, que não existe, porque, bem ao con-
do catedrático da Escola Nacional de Música trário, o que se dá, nêsses períodos, é uma
sôbre a infiltração dos temas do nosso po- congestão de fôrças nacionais expandindo-se
pulário musical nas composições dos nossos avassaladoramente.
mestres atuais. Em meados do século passado os compo-
E' iniludível a tendência da música bra- sitores de diversos países até então subordi-
sileira contemporânea para a universalização nados à primazia das escolas alemã, italiana
dos motivos folclóricos, tão ricos da nossa ou francesa, concebem o ideal de indepen-
gente e dos seus costumes. Traduzindo na dência da arte nacional pelo emprêgo do fol-
linguagem da música elevada êsses mesmos clore. O colorido nacional assim obtido é
motivos, conseguem os autores nacionais tor- mais evidente quando, como observa P. H.
ná-los compreendidos pelos demais povos Lang "o material anexado procede de civi-
cultos, capazes de sentir, em tôda sua pleni- lizações estranhas ao tronco principal da arte
tude, a beleza encantadora dos ritmos e das musical ocidental".
melodias de cada região do globo. Segundo Mário de Andrade "nos países
Luiz Heitor não se furtou a comentar o em que a cultura aparece de empréstimo que
assunto, prestando-se até prazeirosamente a nem os americanos, tanto os indivíduos como
tecer, em tôrno do mesmo, longas e precio- a Arte nacionalizada, têm de passar por três
sas considerações; aqui estão elas: fases: La) a fase da tese nacional; 2,a) a fase

- 278-
(
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j
i'

Biblioteca da E"cola Nacional de Música. onde se eneontra grande parte d~ originai" auto_
g'rafRrlo~ õ.o~ nOSSOR mnsiC'.jRÜt~

do sentimento nacional j 3. U ) a fase da illcon- autores, como das suas obras, de cal'áter in-
ciência nacional, Só nesta última a Arte culta trinsecamente brasileiro.
e o indivíduo culto sentem a sinceridade do "Nos velhos autores brasileiros - come-
hábito e a sinceridade da convicção coinci-· çou êle - até mesmo na música religiosa de
direm" . José Maurício, a voz da música popular já
A música brasileira de caráter verdadei- se faz presente, de longe em longe, muito
ramente nacional não pode ser constituída embora abafada pelos cuidados da erudição.
com a contribuição isolada de melodias ou Em Carlos Gomes o tema do dueto Sento una
ritmos de procedência indígena, africana ou forza indomita, do Guarani, coincide com a
ibérica. "Uma arte nacional não se faz com melodia infantil Eu fui no Tororó. Mário de
escolha discricionária e diletante de elemen- Andrade constata a semelhanç'a dêsse mesmo
tos, diz Mário de Andrade: uma arte nacio- trecho com uma Toada paranaense, obser-
nal já está feita na inconciência do povo. O vando que essa toada "obedece como tipo
artista tem só que dar para os elementos já melódico a um verdadeiro nomos tradicio-
existentes uma transposição erudita que faça nal, freqüentíssimo em variantes infinitas,
da música popular, música artística, isto é: dotadas sempre da mesma monotonia me-
imediatamente desinteressada". lancólica, entre os cantores brasileiros".
Nessa altura, pedi a Luiz Heitor que me O primeiro compositor brasileiro a em-
exemplificasse, na medida do possível, as in- pregar concientemente em sua música temas
h'omissões do nosso folclore na música ele- do folclore ou de sabor folclórico foi Brasílio
vada dos nossos autores. Quais os que se ltiberê em "A 'Sertaneja". O movimento toma
voltaram, seguindo o nuno de suas inspira- corpo com Alexandre Levy e Alberto Nepo-
ções, para o temário dos motivos folclóricos muceno. Levy bebera a inspiração popular
de nosso povo. E o meu entrevistado fêz UI1W diretamente, quando menino, assistindo, em
enumeração deveras apreciável. não sn de seu Estado natal, aos cantos e dansas dos ne-

- 279-
gros escravos. Em 1887, na Europa, escreve mente musical, dotado de inexaurível imagi-
as Variações sôbre um tema brasileiro (Vem nação criadora, sua obra é uma síntese ge-
cá Bitu) , para piano. Em 1890 escreve o nial das mais variegadas facetas" da mani-
Tango brasileiro, também para piano. Gran- festação musical primitiva ou popular no
des obras, com tendências nacionalistas são: Brasil. "Não se levando em conta o Brasil
o poema sinfônico Comala e a Suite Brasi- - diz M. Pedroza em "La Revue Musicale"
leira (1. Prelúdio; 2. Dansa rústica (canção (Paris) - é imposs,Ível compreender Villa-
triste); 3. A beira do regato; 4. Samba). Lobos. E' mais ou menos como se fôsse pos-
Nepomuceno, pela larga influência que exer- sível esperar que um cactus desse rosas sil-
ceu, foi chamado por Rodrigues Barbosa de vestres, em vez da sua rude flor vermelha.
Fundador da Música Brasileira. Sua princi- Porque a arte de um artista inconciente as-
pal obra de orientação nacionalista é a Suite sinalado pela maneira de sentir do seu povo,
Brasileira (1. Alvorada na serra; 2. Intel'· tão profundamente e tão fatalmente saturado
mezzo; 3. A sesta na rêde; 4. Batuque). Mais da natureza do seu' país, como Villa-Lobos,
tarde escreveu, dentro da mesma tendência, não pode ser rebuscada ou fina, mas deve
o Prelúdio para uma comédia lírica inaca- ser o que realmente é: exaltada e selvagem,
bada: O Garatuja. Em muitas peças para sensual e sentimental, frondosa e espessa".
piano ou para canto e piano Nepomuceno Sua primeira obra caracteristicamente nacio-
cultiva o rico filão do folclore nacional. nal é a série de Dansas africanas para or-
Francisco Braga incidentemente apela para questra (1. Farrapos; 2. Kankukus; 3. Kan-
a temática popular: música de cena para o kikis). Segue-se o poema sinfônÍco Amazo-
drama de Afonso Arinos O Contratador de nas e a série Prole do bebê n.O 1, para piano.
Diamantes, o Trio para piano, violino e vio- Em 1920 inicia a composição dos Choros
loncelo, cujo tempo central é um Lundu, nos quais, segundo sua própria declaração,
etc. Também em algumas das últimas obras "acham-se sintetizadas as diferentes moda-
de Francisco Vale se faz sentir o apêlo da iidades da JI.l,i3ica brasileira, indígena e po-
música nativa: poema sinfônico 'Depois da pular, tendo por principal elemento o ritmo
guerra, suite Bailado da roça". e Ulll« melodia típica qualquer de carátel' ))U'
E, abrindo um parêntesIs, Luiz HeItor pular que aparece uma vez ou outra, aciden-
comenta: ! almente, ~empre transformada "egnndü a
- "Entre os músicos populares, escre- personalidade do autor". Os Choros são em
vendo obras sem grandes ambições artísticas, número de 14, mais um Choros-Bis e uma
um' exerceu notável influência sôbre os jo- Introdução aos Choros. O N oneto, sub,-inti-
vens compositores brasileiros de 1900 a 1920: tulado "impressão rápida de todo o Brasil
Ernesto Nazareth, que consegue captar e es- sonoro" ~ uma das obras capitais de Villa
tilizar finamente para o piano quase tôdas Lobos nêsse período; sua partitura inclui 1
as características rítmicas e melódicas do chocalho e 1 reco-reco. Entre as obras mais
folclore musical urbano". típicas escritas de 1920 a 1930 convém men-
Prosseguindo, referiu-se então, aos auto- cionar a 5. a Sinfonia, com temática indígena,
res mais recentes, êsses que exercem ainda Morno Precoce, para piano e orquestra, Poe-
suas atividades entre nós, com exceção de mas indigenas, para canto e orquestra, as
Luciano Gallet. Cirandas e a Prole do bebê n. o 2, para piano.
- "Heitor Villa-Lobos levou a conse- Em 1930 inicia a composição das Bachianas
qüências extremas o aproveitamento da mú- Brasileiras, gênero, segundo o autor, "basea-
sica popular em sua obra de compositor. do não só em constante relação com a gran-
Tendo passado a juventude em convivi o com diosa obra de J. S. Bach, como também na au-
os mais afamados seresteiros do Rio, toman- têntica afinidade do ambiente harmônico-con-
do parte em seus conjuntos, de violão em trapontado-e-melódico como uma das prin-
punho; tendo viaj ado por todo o pais, ano- cipais modalidades da música popular do Bra-
tando cantos populares; inteligente, extrema- sil". Até 1938 as Bachianas se elevavam a 5,

- 280-
As canções regionais dos povos do
Norte (esquimaus), sâo reco-
lhidas fonogrMicamente
pelos músicos
soviéticos

cada uma delas disposta como suite de vá- Realmente, ninguém mais inteligentemente,
rios números, No tratamento dos' coros, es- nem mais hàbilmente que êle, já soube apro-
colares ou artísticos, Villa Lobos tem encon- , veitar as constâncias rítmico-melódicas, as
trado um dos mais efetivos veículos para a células caracterizantes da nossa produção po-
sublimação dos traços fundamentais d~ mú- pular e tirar delas as possibilidades duma
sica popular brasileira, criação livre, individualista, mas incontras-
Luciano Gallet, muito menos intuitivo e tàvelmente nadonal" no dizer de Mário de
muito mais especulativo do que Villa Lobos, Andrade.
foi um dos primeiros a estudar cientifica- Francisco Mignone, de origem italiana e
mente a música popular brasileira, a fim de tendo feito estudos musicais na Itália, era
utilizá-la em sua obra de compositor, cons- natural que, em seus primeiros ensaios, por
tante das Canções Populares Brasileiras, har- atavismo, convivência e educação, tivesse os
monizadas para canto e piano e conjuntos olhos postos na melodia capitosa e nas claras
corais diversos, da Suite sôbre temas negro- harmonias de sua pátria espiritual. A grande
brasileiros, para piano e quarteto de' instru- tragédia íntima do artista foi, desde então,
mentos de sôpro, da suite Nhô Chico para evoluir gradativamente para uma expressão
piano, dos Exercícios Brasileiros, de caráter posta sob a luz do Brasil, capaz de refletir
didático, para piano a quatro mãos, Mario essa conciência musical nova, que o seu país
de Andrade observa que se a sua obra "não natal impõe tirânicamente a todos os cria-
possui aquelas arrebatações de genialidade dores, Suas obras mais marcantes, sob o
que a gente encontra com freqüência no bra- signo do nacionalismo, são: a Congada, da
sileirismo individualista de Villa Lobos, por ópera O Contratador de Diamantes, os baila-
outro lado apresenta uma normalidade mais dos Maracatu do ehico Rei e Leilão, as Fan-
didática, mais funcional do nosso povo e por tasias Brasileiras, para piano e orquestra, o
isso mais eficiente e nacionalizadora", poema sinfônico Pesta das Igrejas, as 9 Len-
Oscar Lorenzo Fernândez aplica por sua das Sertanejas, e as 12 Valsas de Esqllina,
vez "o elemento folclórico apenas como prin- para piano, numerosas canções, etc,
cípio temático, reduzindo-o muitas vêzes a Radamés' Gnattali é um verdadeiro mú-
um mínimo de célula condutora da invenç'ão. sico, de vocação imperiosa, de um metier

- 281-
precocemente amadurecido. Concêrtos para - Brasílio Itibel'ê, professor de Folclore
piano e para violoncelo, Suite para pequena no Conservatório Nacional de Canto Orfeô-
orquestra, Quarteto, Trio, Rapsódia Brasilei- nico, é um compositor de grande sensibilida-
ra, Miniaturas, 10 Valsas. para piano, etc., de, com enorme experiência do material po-
atestam altas qualidades de compositor .. pular em que fundamenta as suas obras.
Camargo Guarnieri é um dos composi- Começou a trabalhar na composição tardia-
tores mais essencialmente nacionais que o mente. Sua bagagem é pequena: 2 suites
Brasil já produziu. Em sua obra o pitoresco (Invocação, Canto e Dansa; Xangô, O pro-
da utilização folclórica é substituído pela tetor Exu e Ogum) e 6 Estlldos para piano;
substância profundamente nacional de tôda coros; canções; etc.
a sua inspiração, que repele a mera citação Hekel Tavares, famoso pelas suas can-
ou o detalhe característico. "E' uma natu- ções de espírito popularesco, abordou, mais
reza viril e livre, com um senso superior do tarde, a música sinfônica, com o poema
caráter brasileiro próprio; a sua obra é André de Leão e o demônio de cabelo encar-
cheia de seiva magnânima", no dizer de An- nado, o Concêrto em Formas Brasileiras, para
drade Muricy. piano e orquestra, e as Variações Sinfônicas.
José Siqueira trouxe para a sua música Luiz Cosme apresenta obras baseadas no
elementos folclóricos valiosos que ainda não folclore de seu Estado natal. A mais impor-
haviam sido devídamente empregados pelos tante é o bailado Salamanca de Jarall".
nossos compositores: as melodias dos canta- Para finalizar Luiz Heitor citou ainda os
dores nordestinos. Suas 12 Dansas Brasilei- nomes de quatro dos nossos compositores con-
ras, para orquestra, o poema sinfônico Sen- temporâneos que recorrem, menos sistemàti-
zala, e o bailado Uma festa na roça, consti- camente, ao folclore. São êles:
tuem contribuição realmente importante para - João Itiberê da Cunha, com a Série
a música brasileira de orientação naciona- Brasiliense (1. Despertar de matuto; 2. Aca-
lIsta. lanto Ingênuo," 3. Canção ritual da macum-
Outros compositores de tendência nacio- ba), para piano, orquestrada por Mignone.
nalista: - João de Souza Lima, com o poema
- Ernani Braga justamente conhecido sinfônico Rei Mamellleo e o Bailado das Len-
pelas suas harmonizações de canções popu- das Brasileiras.
lares. - Assis Republicano, com 2 Dansas Bra-
- Newton Pádua, cuja música possui sileiras para orquestra, Improviso sóbre um
manifestas tendências nacionalistas. Princi- tema brasileiro, para violoncelo e orquestra,
pais obras: Suite Sinfónica, Canção e Dansa etc.
para orquestra, poema com coros, Anchieta, - Frutuoso Viana, com a Dansa de Ne-
etc. A melhor parte de sua obra são as gros e as Sete Miniaturas sôbre temas brasi-
canções. leiros.

• • •

- 282-
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1/ [J/(mirante " as canções oe


e o~ preJoes

LMIRANTE é conhecidis- cadores de sambas e emboladas, soube, mais


simo nos meios radio- tarde, conservar aquela espontaneidade tf10
fônicos do Rio. Seu brasileira, que se deve empregar sempre nos
nome é H e n r i que contatos com o povo, no trato amigo dos
Foreis. Tornou-se um simples e dos humildes.
perfeito "radioman", Nisso reside o maior mérito de "Almi-
divulgador do nosso folclore, das nossas len- rante". Os assuntos dos seus programas, es-
das, da nossa musica popular. Sua dedicação critos pelos medalhões das nossas letras, não
a êsse gênero de· programas e a orquestração despertariam por certo o interêsse que êle
criteriosa dos mesmos trouxeram-lhe o inle- sabe conservar latente e vivo, gracas à ma-
rêsse e o apoio de milhares de ouvintes, que gia de sua própria simplicidade. Ê' um au-
viram em "Almirante" um vulgarizador es- têntico idealizador de programas úteis e atra-
tudioso e honesto da alma emotiva e simples entes. Realiza, através do microfone, uma
do nosso povo, tanto dos campos como das obra louvável de educação do povo, ohrigan-
cidades. do-o ao conhecimento de tudo o que é intrIn-
"Almirante" é realmente um tipo "dife- secamente nosso. Instrui e educa.
rente" em nossos estúdios de rádio. Escolheu
uma espécie de irradiações de absoluta "no-
vidade", nas quais desfilam para os ouvintes
do Brasil e de tôda a América as maravilhas Nascido a 19 de fevereiro de 1908, cm
do folclore brasileiro, dos temas da nossa mu- uma de nossas ruazinhas suburbanas, mal
sica popular, do anedotário histórico dos nos- pode estudar, quando criança. A luta pela
sos compositores, da vida de nossas orques- vida começou cêdo. Viu-se obrigado a tra-
tras, dos usos e costumes da nossa gente, da balhar no comércio como varredor e lavador
alma popular de todos nós, em suma. .. E de vitrinas. Sua vida foi um longo e porfiado
faz isso tudo com graça, cçnn leveza, em lin- esfôrço em tôrno de si mesmo.
guagem acessível e alegre, sem demonstra- Não tardou a transformar-se em conta-
ções de falsa erudição. Vindo das camadas dor, deixando a vassoura pela escritmação
pobres, integrando conjuntos populares de to- mercantil.

- 283-
Certa vez, em uma festinha intima, co- gabinete de trabalho na emissora Tupi, onde
nheceu o compositor João de)3arro, que di- êle exerce atualmente suas atividades. Seu
rigia um pequeno conjunto: "Flor do Tem- escritório apresenta o aspecto bizarro de um
po". Brincando, pôs.-se a tocar pandeiro, ao apaixonado pelo folclore. Pelas paredes, v.êm-
lado dos músicos. Revelou-s,e... Em pouco se berimbaus, pandeiros: tambores de negros,
tempo viu"se como iJarte integrante do con- todo um instrumental, em suma, revelador
, junto, no qual iria ingressar, meses depois, do carinho com que o, radioman estuda tais
o composito,r popular Noel Rosa. assuntos.
"Almirante" -passou ei1tão a cantar em- Uma extensa livraria, alinhada em vá-
bol-adas, e, 'no gênero" obteve relativo êxito. rias prateleiras, empresta um certo àrde eru-
Em'1927, coma organização' do "Bando de c dição ao ambiente. Lendo-se as lombadas,
Tangarás", tornou-se a figura central do con- no entanto, vê-se que o dono daquêles volu-
junto, dirigindo-o com sua "maestria" incon- mes não pode ser positivamente um homem
testável ... Com o advento e conseqüente de- de gabinete ou literato-sonhador. Nada disso.
senvolvimento da radiofonia, na capital da Os livros revelam-nos o estudioso dos temas
República, o cantor de emboladas lobrigou populares, o devorador de almanaques e de
a enorme projeção que o mesmo iria ter, no crônicas folclóricas, o esvurmador de memó-
futuro; e seu interêsse pelas questões de rá- rias históricas ou de ensaios de arte musical.
dio chegou a ponto dêle mesmo atirar-se à Ali, diante de uma paisagem proletária
fabricação de aparelhos de galel1a. do morro da Conceiç'ão, que se impõe irre-
Nascia a radiomania que em breve seria vogàvelmente à vista dos visitantes, através
um verdadeiro furor. "Almirante", com o de largas janelas, "Almirante" me recebeu
seu bando, começou a cantar ao microfone com um riso franco e a fisionomia aberta dos
da Educadora. Inteligente, com largo descor- que se mostram satisfeitos quando se sentem
tino sôbl'e as finalidades daquêle extenso compreendidos. Ao saber do que eu, preten-
movimento, não tardou a vislumbrar o papel dia, exultou. Sua alegria é aliás irreprimí-
útil e proveitoso que poderia desempenhar, vel, sempre que se trate de vlllgarizar o nosso
como vulgarizador de coisas muito mais sé- folclore. Dispôs-se, com todo o prazer, a atu-
rias do que simples irradiações de embola- rar minhas visitas subseqüentes, mesmo COl!l
das e de sambas. prejuizo de suas horas de labor.
Seduziu-o o trabalho de pesquisas folcló- Foi, então, que tive oportunidade de fo-
ricas, atividade intelectual que sempre exer- lhear suas pastas de arquivo, onde se encon-
cera, como autêntico autodidata que era. O tram empilhados os frutos do seu trahalho
rádio veio facilitar-lhe a expansão dêsse tra- de intelectual e de radiolista. A relação r1 0s
ço preferencial de seus estudos. Passou, en- seus programas é, deveras, impressioll an te.
tão, a ser locutor e idealizador de progra- Nêles estão datilografadas as "aquarelas do
mas, que êle mesmo redigia. E venceu. Hoj e Brasil", com seus quilombos, velórios e rezas
é uma das figuras mais relevantes e de maior para defuntos, cantigas, festas da Penha, de
prestígio nos meios radiofônicos. A contri- São João do Bonfim, a serração da velha, o
buição por êle apresentada à divulgação do bumba-meu-boi, as lendas do Abaeté e do
folclore nacional é das mais louváveis. Ines- Chico Rei, cantigas de cegos, presepes e pas-
timável também tem sido o seu trabalho de toris, pregões, etc.. '. Lã estão os momentos
pesquisa e apresentação, da história das nos- agradáveis da vida dos nossos compositores
sas orquestras, da vida de nossos músicos e populares: Nazareth, Noel Rosa, Chiquinha
da poesia simbólica das lendas brasileiras. Gonzaga, Sinhô... Lá estão os pontos cul-
minantes da nossa história musical. Lá estão
os esplendores e a decadência dos carnavais
cariocas, legitima festa do povo.
Fui à procura de "Almirante", justamen- Pedi a "Almirante" que me falasse, ini-
te em seu posto de comando: um pequeno cialmente, a J'l'speito do nm80 folclore.

- 284 --
-:- Em primeiro lugar, devo declarar que
todo o meu esfôrço como radioman, tem sido
o de utilizar as maravilhas do rádio em favor
do desenvolvimento do tradicional ainor dos
brasileiros por tndo o que diz respeito a sua
terra. E' o progresso a serviço da tradição.
Sirvo-me do rádio para levar aos ouvintes
de todo o Brasil o que o Brasil possui de mais
visceralmente seu. Com a ajuda de cantores,
narradores, orquestras, conjuntos e ruídos
adequados consigo reproduzir quadros sono-
ros sôbre costumes, tradições, festas e canti-
gas populares do· nosso país. Temas legíti-
mos de folclore apresentado!> em suas formas
originais, em arranjos orquestrais, altamente
descritivos.
- E' um trabalho q'lle bem mereci a ser
imitado e continuado por outros espíritos
voltados sinceramente para o rádio e para
a cultura do povo.
- Merecia, não há dúvida; e creia que
isto me traria grande satisfação. Nossa mú-
sica folclórica é uma das mais belas e opu-
lentas expressões da alma brasileira. O filão Henrique Fareis, o conhecid!ssimo "Almirante"
a explorar é quase inesgotável. Em sucessi-
vos programas, cheguei a apresentar uma Em tôdas as legítimas manifestações do
variedade considerável de temas populares. nosso folclore, convém fl'Ízar, não fiz ne-
Revivi, através do microfone, quadros sono- nhuma corrigenda nos versos populares. eles
ros de engenhos e usinas com o ambiente foram conservados rudes e bárbaros como no
social originado pela monocultura e pelo sertão; como curiosidade lingüística, chamo
escravagismo nas vastas culturas de cana e até sua atenção para êstes versos finais de
da prodlwão açucareira. uma quadrinha: "E botáro e tornáro a tirá,
As cantigas de engenho, nos salões da c incolocáro no mesmo lugá ....
casa-grande e na rudeza negra das senzalas, - Louvo o respeito que você mantém,
adquirem a sua verdadeira expressão quando "Almirante", pela forma original dessas ma-
enquadradas na narração evocativa daquelas ilifestações espontâneas do nosso povo. Al-
epocas distantes. No salão senhorial, yayazi- terá-las seria fazer obra destrutiva ...
nhas e filhos de ricos senhores da terra dan- - De acôrdo. Veja, por exemplo, o des-
savam shottishs, polcas, valsas e quadrilhas, filar dos nossos pregões. Qualquer deturpa-
enquanto lá fora, no terreiro, à luz bruxo- ção aí, seria um crime. E que poesia singela
leante das fogueiras, os trabalhadores negros e encantadora êles nos revelam! -Que evoca-
entoavam alegremente o "Engenho Novo", a ções não nos trazem os tipos populares que
"Roda volante", o "Engenho moedô ... " os nossos olhos já viram ou continuam a ver,
diàriamente, pelas ruas, apregoandu: "Sor··
Apresentei as cantigas dos sertanejos que,
vete, yaiá", "Cangiquinha quente ... "
em regiões menos pródigas, padecem o fla-
Cada um se caracteriza pelo seu pregão
gelo das sêcas, recolhidas nos pontos mais
e cada pregão evoca, fatalmente, a figura co-
diversos do Brasil: "Chove, chuva. .. Chove
nhecida do pregoeiro.
chuva ... " e a "Senhora Santana, assubiu
aos monte ... " Olha a renda d'jill ...

-- 285 -
Ouvir, portanto, tais cantigas será o pipocas que vendia, anunciando-as COll1 este
mesmo que ver as personagens que as es- belíssimo pregão:
palham pelas ruas.
Olha a flor da noite ...
ú. .. mingau de mio ... Sua melodia, desenvolvida pela arte ma-
ravilhosa ,de Radamés Gnattali, prestou-se
Em todo o mundo, as melodias tristes ou para uma notável peç'a para violino e piano
alegres dos pregoeiros têm inspirado páginas cujo nome é "Flor da Noite".
célebres dos mestres da músk,a. No Brasil E' interessante notar como certos pre-
elas têm sugerido bom número de composi- gões se assemelham misteriosamente - mes-
ções de todos os estilos. Por exemplo: êste mo surgindo em terras distantes umas dH~
lindo pregão do Recife: outras. E é curioso como certos rudimenta-
res comercios de rua provam sutilmente a
Rolête de cana, igualdade dos povos pela maneira universal
De cana caiana, de sentir.' Assim é o brasileiríssimopregão
do amendoim - triste ...
De cana crioula,
Rolête, patrão ...
Amendoilll ...

que deu motivo a uma curiosa canção de 08-


... lamentoso ...
waldo Santiago e Dilú Melo.
João de Barro, conhecido compositor,
TOl'l'adim ...
com os temas de 3 populares pregões do Rio,
tirando conclusões pitorescas de suas pala-
e que corresponde exatamente ao de Cuba
vras, escreveu uma encantadora canção de
também triste ...
que aqui está um pequeno trecho:
Mani. ..
Amendoim .. .
Torradinho .. . . .. ta'mbém lamentoso ...
Tá fluentinho ...
Amendoim torrado ... Mani ...

pregão que foi o motivo inspirador de uma


Amendoim torradinho,
das músicas mais populares em todo o mun-
Tá quentinho também ... do nêstesúltimos tempos: ---- a l'lullh~ "O ven-
Também são quentinhos dedor de amendoim", de Moisés Simons, que
Os abraços de meu bem ... todos vocês conhecem.

Na Bahia, uma preta velha, alta e ma- Caserita no te acuestes a dormir·


gra, tornou-se muito querida pelas gostosas Sim comerte un cucurucho de mani

• • •

-- 286 -
[Jls festas oe Jão goão, oa Ç}en8a e aO
Jen80r aO Çjonfm

.A LMIRANTE gosta de conversar. Sua prosa, 1'0S e capiaus. Nascem dai curiosas e engra-
simples e fluente, animada freqüentemente çadas corruptelas, que não chegam a ser il'-
pela exemplificação abundante de casos pito- l'everências, pois embora resmungando um
rescos, torna-se, de fato, atraente. péssimo latim, o sertanejo põe nêle o melhor
Gosto de ouvi-lo, na exuberância de seus da sua fé e a mais pura contrição.
gestos largos, na franqueza de sua voz tonan-
te. Por isso, procurava-o continuamente. Vi o pé de cana .. .
- Uma série de razões - lamentou Stela caiu na tina .. .
"Almirante", certa vez - tem influído para Já não ha mais cco .. .
que as cerimônias típicas de antigamente se- Sal us enfim morre .. .
jam esquecidas e abandonadas cada vez mais. Hegina partiu a cara .. .
Vej a, por exemplo, as festas tradicionais
do mês de junho, no Brasil, como têm perdido E' na noite de São João que a festa che-
muito. do seu antigo esplendor. Quantas re- ga ao auge. Armam-se as clássicas fogueiras,
cordações não nos trazem o "Cai, cai balão, para as quais já se separou a bôa lenha sêca.
aqui na minha mão ... ", entoado pela garo- E' junto das fogueiras, então, que se desen-
tada. rolam os costumes mais pitorescos. Os pares
A festa de São João é a mais linda e pito- pulam o braseiro, em obediência a uma velha
toresca das festas populares brasileiras. E' superstição de que assim se tornarão COlll-
comemorada em todo o Brasil, num ciclo de padres. No fôgo se assam as batatas e estou-
festejos que se iniciam nos últimos dias de ram as pipocas. Ao lado, o cará, o milho
maio e vão até o fim de junho, culminando verde, a cana de açúcar, a pamonhn, a can-
na data de vinte e quatro - dia do Santo. gica, o melado, e o rei das comidas, que é o
A alegria popular se manifesta na beleza de bôlo de São João, dão uma nota de realidade
cantigas tradicionais, na queima de fogos, naquêle cenário de poesia... Em volta, fo-
nas fogueiras e comedorias, e especialmente gos, buscapés, pistolas, bombas, bichas, 1'0-
nos balões, que têm por cenário as mais belas dinhas, estrelinhas, rojões, foguetes e ba-
e mais frias noites do ano. Festa de origem Iões ... No terreiro, ao som de violas, violões,
essencialmente religiosa, ela começa com as sanfonas e pandeiros, cantam-se sambas ale-
flores e as ladainhas do mês de Maria, can- gres e típicos, que servem de acompanha-
tadas nas igrejas e nas casas de família, por mento musical e ambiente para as pantomi-
fiéis e crentes ... mas e os bailes em trajes roceiros ...

Mater Purissiilla .. . Iaiá não sabe o que perdeu


Virgo predicanda .. . Um amor delicado como o meu.
Tllrris eburnea .. .
Stella Matutina .. . Mangel'icão meudinho
J anua Coeli ... Salpicado de A. B. C.
Sallls infirmorulll ... Meu coração só me pede
Regina Patriarcarul1l ... Que eu me case com você.

o latim das ladainhas nem sempre sôa A quadrilha é uma 110ta cUl'acterística da
com clareza aos ollviclos bisonhos de l'ocei- noite de São João.

-- 287 _.--
No maior salão da casa se arma o cená- 'Santa de sua devoção. Religiosa por êsse
rio adequado, Os pares combinam-se, toman- aspecto, foi também motivo para folguedos,
do posiç'ões. A alegria é intensa, , . Moços se quermesses, brinquedos, canto, música e dan-
misturam com velhos; até a velha tia "Du- sa. Tudo isso desapareceu... Mas, até bem
duca" ensaia uns passinhos, relembrando com poucos anos, a Festa da Penha constituiu, no
saudade a elegância e a garridice de outrora Rio, a mais curiosa c. pitoresca comemoração
que o tempo murchou!... O marcador pi- religiosa pelo aspecto festivo que assumia. No
garreia, muito pernóstico, 'quase irreconhecí- arraial que circunda o outeiro e a igrejinha,
vel francês, marcando os passos, comandando uma legião alegre de romeiros se expandia
a quadrilha, .. em folia ruidosa, em grupos musicais espa-
lhados aqui e ali, dansando e cantando can-
Balancê! I tigas dos tipos mais variados ...
Alê van quatre!
Travesseiro! Mulher
A Penha está aí
Segurê pescocê de damê mas não enforquê! Eu lá não posso ir
Oia a cobra no caminÍlO! Um favor vou lhe pedir:
Me leve
Lá fora, no terreiro, o samba prossegue Um braço de cêra
animado e bulhento, compondo o fundo mu- A Santa Padroeira;
sical para as cenas das adivinhas, lançadas Foi o· que eu lhe prometi.
num desafio a todos os presentes, e que pro-
vocam auréolas de admiração em tôrno dos Devoção trazida de Portugal para o Bra-
felizardos que respondem com mais rapidez sil, o culto à Nossa Senhora da Penha con-
às intrincadas perguntas ou aos testes in- servou a princípio tôdas as caracteristicas
gênuos ... português as, a começar pela música. Nos do-
mingos da Penha, os portugueses apareciam
raiá não sabe o que perdeu na Festa com uma extravagante indumentá-
Um amor delicado como o meu ria de jaleco, tamancos e o melhor vinho da
terra. No pescoço, rosários de roscas que
- E a festa da Penha, "Almirante", chocalhavam curiosamente ... O parque de
aqui no Rio? Quantas sugestões não empres- relvas se assemelhava a um recanto de Por-
tou ela às cantigas populares dos cariocas ... tugal. De todos os lados a estridência das
-- Ah! As festas da Penha. " Hoje tudo guitarras e violões portugueses se mistura-
cstá diferente, modernizado, e nos domingos va aos descantes onde imperavam· os rit-
tradicionais já não se vêem mais grupos de mos dos fados e dos "viras", cujos versos
festeiros como antigamente. Não há mais por vêzes buscavam inspiraç'ão nos próprios
rodas de samba e de desafios. Para que se assuntos locais ...
perceba que Ü11portância teve a Festa da
Penha no cenário musical do Rio de Janeiro, Quem a escada subir
basta que se diga que lá eram lançadas em Trezentos e sessenta e cinco
outubro as músicas que o carioca cantaria Si o Senhor der licença
meses depois, no Carnaval. Pelo mês de ou- Há de fazer cento e cinco ...
tubro de cada ano, todos os domingos, mi-
lhares e milhares de romeiros se dirigiam Aos poucos, com o correr dos anos, a
para o outeiro famoso onde se ergue a igre- música da Penha se foi transformando. Nos
jinha da milagrosa Nossa Senhora da Penha. fins do século passado, começaram a surgir
Tradição do Brasil e do Hio de Janeiro, a naquelas festas as baianas legítimas - donas
festa da Penha ó o pretexto anHal para o ro- ou organizadoras de ranchos carnavalescos
meiro crente cumprir a promessa feita à - levando para o arraial os samhas do par-

-.288 -
As festas na igreja de N. S. do.
Bonfim, na Bahia, s1l.0 expressões
marcantes do nosso foldore

tido alto, os hmdus e as chulas de ritmo bem Além dos cordões carnavalescos, outras
picadinho. alrações musicais invadiam a Penha, ruido-
Com a presença daquelas agremiações samente: eram os "chorões ", grupos chefia-
carnavalescas foi-se processando lentamente dos por clarinetistas, pistonistas e flautistas.
lima certa fusão dos elementos musicais por- puxando violões famosos, pandeiros e cho-
e
tuguês brasileiro. calhos. Cada qual procurava executar suas
Novas cantigas surgiam, muitas delas de músicas de maior efeito visando impressio-
declarada influência português a . Alterou-se nar a assistência e superar os seus rivais em
o colorido geral nos arredores do outeiro, agilidade e bossa. Nomes inesquecíveis ocor-
pas_sando a predominar as alegres e berran- rem à lembrança daquêles que presenciaram
tes fantasias dos cordões caniavalescos. a passagem memorável dos "chorões" pela
E, numa conseqüência natural, transfor- Penha, e as façanhas de seus chefes: figuras
mou-se também o aspecto da musicá: . as lin- como Malaquias, Alfredinho, Louro, Sinhô,
das marchas do carnaval de antigamente eram Caninha, Souto, Pi'xinguinha, Bomfiglici ...
lançadas na Penha, onde iniciavam sua car- Muitos dêles se empenhavam em formidáveis
reira de sucesso que se prolongava às vêzes desafios, que os levavam às vêzes a subir os
por muitos anos - a exemplo da famosa 365 degraus da lendária escadaria tocando
"Baratinha" : sem parar os seus instrumentos, esgotando-se
em incríveis malabarismos, sob os aplausos
A baratinhà. de entusiástica e apaixonada torcida. , .
A baratinha, Os tempos correram e a Penha mudou.
A baratinha bateU asas e voou. Cerceada por medidas e proibições de tôda

- 289 -
.,ode, a música de outubro que cantava "as Fora, no adro, llldo sc cllgalana. Há cen-
alegrias da festa da Penha decaiu para quase tenas de barraquinhas de comestíveis e be-
desaparecer. ". .Já não se viam mais no ar- hidas, abarrotadas de freqüentadores, em in-
raial as baianas multicores, os portugueses cessante vai e vem ... São romeiros, devotos
de jaleco, os cordões carnavalescos ... já não e tôda sorte de curiosos e forasteiros. Assim
se ouviam os fados, os lundus, as chulas, os passa-se a quinta e também a sexta-feira. E
sambas do partido alto, as marchas de ran- chega o sábado, que é "a véspera" do grande
cho, a música dos "chorões''' ... );To parque dia. "A véspera", como dizem contentes os
da igrejinha se vêem hoje, apenas, incontá- fiéis, era pretexto, antigamente, para foguei-
veis petecas a riscar o espa~o. ras enormes. Hoje o adro e a igreja são pro-
A Penha já não atrai os compositores, fusamente iluminados com lâmpadas elétricas
e outubro já não forma entre as grandes que se vislumhram a grande distância. O
épocas musicais do ano. .. E já há muitos movimento é tremendo. Surgem os ranchos
anos não aparecem os sambas que se torna- famosos, que ali vão cantar louvores ao Se-
ram famosos com a denominação de "sam- nhor do Bonfim . ..-\ devoção se juntam notas
bas da Penha", cujos e~tribilhoslôda a gente pitorescas e mesmo carna"alescas. Os lemos
hoje lembra com saudade ... de reis constituem uma sensação: aparecem
no cenário iluminado empunhando outras
tantas lanternas, arcos floridos. estandartes,
o meu amor chorou
executando volteios graciosos. Alguns são
Porque não fui à Penha,
antiquíssimos e tradicionais. Vêm cantando
Fiquei ~'achando lenha
toadas populares que o povo fàcilmente de-
?\ o ano que passou-ó ô ...
cora, e tlue com o correr dos anos incorpo-
ram-se anônimamenle na massa folclórica ...

Sussu sossegue
Fazendo uma pausa forç"ada, para poder
V á dormir seu sono
dar atenção às pessoas que o proeuram con-
tlnuamente, ., Almirante" deixou-me por al- Tá com mêdo diga
Quer dinheiro tome
guns momentos. Quando vollou a sentar-se
na poltrona a meu lado, relomou o fio:
Em cantos mais afastados se formam
-- Outra festa popular que começa a
grupos e se faz roda para o brinquedo da
decair e a do Bonfim, na Bahia.
canoeira de angola. Ao centro, defrontam-se
Assentado pela unanimidade dos pri-
os dois lutadores, .obedientes ao ritmo e à
meiros fiéis que a comemoração do SeIlhor
cantiga que o herimbau e o côro vão produ-
do Bonfim se fizesse em janeiro, no segun- zindo ...
do domingo após o dia ele Reis, o excesso de
fervor religioso, de mistura com as crendices
de origem afro-brasileira em que o Santo No tempo que eu tinha dinheiro
correspondia a Oxalá, foi germinando ceri- No tempo que eu tinha dinheiro
mônias extravagantes, em tal número e de Todo mundo me chamava parente
tal sorte, que as festividades passaram a se Agora que eu tou sem .dinheiro
estender pelo espaço de uma semana inteira, Todo mundo me chama valente
E cada dia da semana santificada do Bonfim De Lê lê ...
é destinado a uma comemoração caracterís-
tica. Os festejos começam na quinta-feira - Adiante, outra roda se forma em tôrno
a terceira quinta-feira de janeiro -, quando dos violões, cavaquinhos, pandeiros e instru-
então tem lugar a impressionante cerimônia mentos característicos. E' o samba que se
da "lavagem da igreja", a nacionalmente fa- desenvolve nas suas modalidades mais típi-
mosa "lavagem do Bonfim", .. cas, o samba: dansado à moda primitiva --"

- - 290
dansa bárbara mas atraente, que mexe com ali. Sem conta são as J'elíqui ns do Senhor
os nervos, que arrasta todo mundo para den- do Bonfim, entre as quais a mais famosa é
tro da roda, bamboleando, rebolando, às um- a Medida do Senhor do Bonfim, conhecida
bigadas, sob os aplausos festivos da assistên- enr todo o Brasil. uma pequena fita à qual
cia, que faz càro ... Se emprestam poderes miraculosos. E cada
ano que passa, o culto do Bonfim maior con-
Eu bem dizia baiana
lribuiç'ão traz ao populário musical brasilei-
Dois metro sobrava
ro, na forma de cantigas de tôda espécie, al-
Saia de balão, babaoào
gumas verdadeiras jóias folclóricas, e inspi-
Metro e meio dava
rados cânticos e hinos religiosos, que fazem
H beleza original e singular dessa maravilho-
Apesar de todo esse aspecto aparente-
mente profano, a festa do Bonfim jamais sa fesla popular do Brasil.
perde o seu espírito oe profunda religiosi-
dade. Dia a dia os crentes e devotos aumen- Glória a ti neste dia de glória
tam. Os milagres atribuídos à santa imagem Glória a ti redentor que há cem allos
que um dia o capitão de mal' e guerra Teo- Nossos pais conduziste à vitória
dósio trouxe de Portugal, proliferam, aqui lo' Pelos mares e campos baianos

Jam8as,

PEDI a "Almirante", certa vez, que me Samba - misto de requebros, sÍllcopas, bam-
falasse a respeito do negro, no Brasil e dos boleios e molemolências ...
fenômenos da aculturação africana, observa- O samba, hoje em dia, vive com mais
dos através dos seus cantos e das suas dansas. freqüência no IUo de Janeiro. Seu grande
--- Já apresentei, !lél medida do possível valor poderá ser melhor apreciado, sabendo-
--disse-me ele-- lima idéia, em poucos tra- se que foram as "EsC'oluli de Samba" que aju-
ços, dos episódios mais marcantes da escra- daram a atrair para a Ilossa Capital milha-
vidão no Brasil, lemhrando a decisiva influ- res de turistas de todo o mundo que acorre-
ência dos negros em nossa formação racial. ram a ver o nosso famoso Carnaval.

A música dos escravos ... No gigantesco Instaladas nas colinas ou pontos elevados
laboratório de dois séculos de ritmos e dan- ou, mais freqUentemente. em subúrbios afas-
sas populares, caldeou-se com a música por- tados, as Escolas de Samha do Rio de Janeiro
criaram a lenda do samba de morro. A ver-
tuguêsa a dolência da música negra que os
dade. porém, é que () samba nasceu na cidade
escravos trouxeram de África: cadência de
e, mais positivamente ainda, llO Distrito Fe-
bárbaros, instrumentos de percussão, e bra-
~al - tanto que seu melhor qualificat;yo
vias melod_ias que emergiram das profunde-
seria : "música populal' cal·ioca". A denomi-
zas do continente negro. E dos "quimbêtes",
nação de samba para a musica popular nas-
"sarambéques", "caxambús", "sorongos", ceu em 1916. Antes disso lal nome existiu
"alujás", "jeguedês", "lundus", "batuques" e somente para indicar uma certa dansa dt, ,,,-
"jongos", ficou na música brasileira de hoje negros. Seu ritmo, porém, já andava Ilas
o impressionante ritmo do samba" cujo nome cantigas tradicfonais do povo, conhecidas
teve origem no vocábulo africano "semba". pelos nomes de polcas-tangos e das qnais n

---- 291
crônica regista exemplos bem expressivos, 'téndência natural que impele os homens às
assim: reuniões sociais, à organização de sociedades
Dengo, Dengo, Dengo, rccreativas - surgiram as primeiras agre-
O' maninha, o
miações para explorar o samba corno o me-
"Tá" chegando a hora lhor e mais fácil elemento de diversão da
Dos Carapicus, gente pohre. E nos versos das composições
O' maninha, quc' ali iam nascendo deixavam entrever as
Ganhar a vitóriao
tragédias domésticas dos que 'encontravam
alegria em divulgar nos sambas as suas tris-
o o o ou conhecidas simplesmente como polcas tezas.
assim:
Eu fui a um samba
Ai, ai, é da minha Lá no morro da Mangueira
A urucubaca da meudinha, Uma cabrocha
Ai, ai, é da nossa Me falou de tal maneira ...
A urucubaca da perna grossa.
De tais agremiações, fundadas exclusiva-
Foram as numerosas famílias baianas mente com o espírito associativo, surgiram,
que fixaram residência no velho Rio que, ao mais tarde, as Escolas de Samba. A primei-
reproduzir aqui as cerimônias tipicas com ra nasceu no-bairro do Estácio, no Rio de
que no seu Estado festejavam certas época.s Janeiro. Não teria, decerto, nos seus pri-
'do ano, os santos d,a sua devoção católica ou meiros tempos de existência, a organização
os orixás de sua crença africana - introdu- aprimorada que' depois atingiu, mas teria,
ziram na cidade o germe da nova forma sem dúvida, seus torcidas, seus partidários
musical. E em fins de 1916, uma composição intransigentes, sócios que a estimavam, glo-
famosa, trazendo pela primeira vez a desig- rificavam e defendiam na poesia singela dos
nação de SAMBA, em lugar das antigas de- sambas que lhe dedicavam.
nominações de polca, lundu ou tango - lan- Quando começaram a se fazer notadas
çavao novo gênero musical. as Escolas de Samba no Rio, já o samba -
que nascera e se difundira inicialmente no
O chefe de policia centro urbano, ou melhor, cá em baixo, na
Pelo telefone planície - tinha alcançado uma populari-
Manda me avisar dade extraordinária. Não estava, porém,
Que na Carioca ainda ligado ao vastíssimo material de ritmo
Tem uma roleta que é, na verdade, a empolgante caracterís-
p'ra gente jogar tica das Escolas de Samba. Foi naquelas
agremiações que se valorizaram, humildes e
Brilhou então na constelação dos sam- rústicos instrumel'lÍos que empunhados por.
bistas que surgiam o nome admirado de Si- legítiino-s- virtuoses do ritmo, tornavam os
nM, o verdadeiro fixador do novo gênero, desfiles das Escolas em espetitculos atraentes
inesquecível pela sua incomparável inspira- pelos singulares arabescos de som produzidos
ção que produzia obras primas explorando nas peles retezadas dos tamborins, pandeiros
os palpitantes assuntos políticos do seu e surdos ...
tempo ... Não é, entretanto, desordenadamente que
Forma de diversão ao alcance facil dos aquêle instrumental de ritmo desenvolve seus
menos afortunados, dos mais modestos, o floreados nos sambas que acompanha. E'
samba teria, forçosamente, que acompanhar curioso mesmo observar-se a rigorosa ordem
o homem aos pontos onde a moradia barata imposta no início da 'execução de cada mú-
o aglomerava, isto é, aos subúrbios distantes sica, quando cada instrumento~obedientemen­
ou aos morros. E ali, sob o impulso de uma te espera o momento exato de atácár. Cada

292 ,-o
o san1ba carioca nasce, às vêzes,
nas lnesas de botequins, e ê uti_
rado" do chapéu de palha, da
caixa de fósforos, do atrito
da faca com o prato, etc.

"Escola" possui seu "deretor de harmonia", l\Iaravilhosa -- com seus cânLicos, seus pan-
cabra entendido em sambas, de voz gritante deiros, tamborins e cuícas ...
e autoritária. Munido de um apito, é êle
quem dá inicio à batucada que precede cada
música.
Vivendo quase que exclusivamente do - Outras dansas de real interêsse para
ritmo, êsse extraordinário e ardente ritmo o estudioso do folclore afro-brasileiro são as
do samba, a música das "Escolas" se resume, congadas, os quilombos, os frêvos e os ma-
às vêzes, numa batucada que se prolonga por racatus.
uma noite inteira, sempre COril o mesmo es-
- As congadas, se me não engano, já
tribilho, interrompido somente pelos verseja-
desapareceram.
dores - um que pergunta e outro que res-
ponde - e que vão intercalando quadrinhas - Não se pode dizer que tenham desa-
conhecidas ou improvisadas, versos de mé- parecido. Não. Elas se realizam ainda em
trica variável mas que vão sendo jeitosamen- muitos lugares do interior. E' verdade que
te encaixados no ritmo e na melodia. perderam todo o esplendor dos tempos pas-
sados e se apresentam agora numa mistura
Redutos pitorescos da música popular
impenetrável em que se confundem outros
carioca - acham-se hoje espalhadas por todo
costumes populares, tais como as "Chegan-
o pais, debaixo de denominações pitorescas.
ças", os "Reisados", a "Nau Catarineta", etc.
Dêles saem, por vêzes, algumas das melodias
mais típicas e espontâneas que a cidade de- E' certo que muitos daquêles autos po-
pois canta nas proximidades dos Carnavais. pulares - ou dansas dramáticas como os
Escolas de Samba! ... Agremiações recreati- preferia chamar Mário de Andrade - têm
vas que refletem a simplicidade do homem muitos pontos de contacto, especialmente na
do povo que nelas encontra os motivos de parte das lutas e no detalhe quase infalível
alegria que o ajudam a enfrentar os difíceis da morte e da ressurreição de um dos seus
problemas da vida. .. Escolas de Samba! ... personagens; Mas aquêle que se chama coo
Já vão constituindo uma tradição da Cidade mumente Congada. ou Anto das Congadas,

- 2n~-
Uma exibiçno de frêvo, lIas rua~
do Rio de Janeiro, durante o.
fefitpjo~ carnavalescos

ou Rei do Congo, teve <:aracterísticas pró- e melodia bárbaros revelam sua origem
prias e inconfundíveis. negra:
Ogun de lê, já pelejá
Pelejá
Ogun o de lê já pelejá
"Ahllirallle" discorreu longamente sôbre Pelejá
as cerimónias das congadas, maracatus, etc. Ogun de I€-, já pelejá
=",'ão trago para este capítulo tudo o que êle Pelejú
l'ontou. Apesar do brilho dos seus relatos. Coroa de lê já pelejá
seria redundância repetir o que já foi des- Pelejá
crito em capítulos anteriores. O das conga-
das, apresentado pelos programas de "Almi- Impressionante também pela sua beleza
rante", teve relevo excepcional pela exibição melódica é a oração "malê" dos negros mus-
das cantigas, acompanhadas por conjuntos sulmanos da Bahia. Cantiga de espírito reli-
típicos. gioso, ela vem impregnada de acentos dolo-
- Os cânticos -- disse-me êle -- que rosos que revelam os sofrimentos em que se
ilustravam as cenas são realmente verdadei- originou ...
ras jóias populares, tanto o das congadas - E a respeito do frevo, "Almirante"?
como o dos quilombos e dos maracatus. Que me diz você da famosa dansa recifense?
Um dêles já bastante conhecido é o legí- -- O frevo nasceu lá por 1909, nos des-
timo estribilho originário do lendário Qui- files dos clubes carnavalescos do Recife, que
lombo dos Palmares: tr-ãzlarri ií sua frente luzidas bandas de mú-
sica, executando alegres dobrados. A.traídos
Folga nego pelos sons estridentes e empolgantes dos me-
Branco não vem CH. tais da banda, aproximavam-se e caminha-
Si vié vam na sua vanguarda os capoeiras, gingan-
Páu ha de levá. do, saracoteando, exibindo movimentos curio-
sos, combinados com o ritmo das marchas.
Outro cântico importante -- legitimo Esquecidos pela alegria do momento de sua
coro de guerra dos africanos no Brasil - é conhecida agressividade, os capoeiras pro-
o que chamaremos "Ogun de lê" cujos ritmo curavam ali, simplesmente uma diversão, re-

294--

j.i~
:~
produzindo em passo,~ que tomavam um as- do nas suas mUSIcas mais vivas, vel'SOS que
pecto coreográfico, as atitudes de ataque exigem grande agilidade do cantor naquela
e defesa de seu perigoso jôgo ... E o. povo sucessão relampagueante de notas ...
"frevia" . .. E o "frêvo" ia nascendo ...
Com o correr do tempo, o frêvo foi cha-
Música frenética, viva, arrebatadora, o
mado ao recinto limitado e mais tranqüilo
frêvo parecia eternamente destinado à exe-
dos salões de baile. Ali não era possível a
cução dos instrument os. As primeiras mar-
chas do novo estilo )~asceram somente para loucura desenfreada dos "passos" de rua ...
serem- tocadas em sohs espetaculares de pis- E a mudança de ambiente trouxe a inevitá-
tons, trombones e sa 'Ces que se esmeravam vel mudança do ritmo, que foi se amolen-
na execução cada veí: mais rápida daquêles gando, amaciando, em cadências mais lentas.
sinuosos desenhos me tódicos ... Assim nasceram os "frcvos de salão" ou "frê-
Compositores e loetas habilidosos, con- vos-canção" .. , Todos os anos êles se reno-
seguiram também "d(Jmar" o frêvo, colocan- vam no Carnaval pernambucano.

Jerenatas, CJresepes e CJastoris, eantijas


oe Ç}{ezas, 1fI8oios, lfIssom8racões
, ...

o UTROS aspectos inlc:l'essantes do nosso fol-


clore devem ainda St~r mencionados - es-
Illoda ... Houve época em que quase desapa-
l'eceram. Já não se ou\' iam mais, pelas noi-
clareceu "Almirante" - desde que haja pro- tes de lua, band.os recilando versos apaixo-
pósito de repassá-lo~. de maneira integl'al. nados ... E longe se perdia o eco das can-
ainda que pel'funtória. como estamos fazendo. tiga:;, quando, repentinamente, ao sôpro de
Veja por exempld as famosas serenata:-; novas e formosas '-'melodias surgidas de ins-
do passado que tão)em caracterizam uma pirações mais moças, a seresta ressurgia com
época do Rio. Pelo ! cito das serenatas cor- renovado vigor. "Luar de Paquetá", de Freire
riam, impetuosos, os dos do sentimentalismo Júnior, foi dessas melodias que tiveram o po-
de outrora. Nelas avareciam canções sôbre dêr de fazer voltar, em certa época, o cos-
músicas de dansa: Vfl lsas, schotlishs, quadri- tume quase desaparecido das serenatas ...
lhas, polcas ...
Contrastando COIl! os gemedores \'ocais.
bandos percorriam a~, ruas; eram os chama-
dos "chorões ", instru inentistas exímios, ([Uê o ~atal inspirou pOl' sua vez com a
extraíam seus lamenhs de alma através dos sua formosa tradição lindas melodias popu-
sons característicos de óboes, flautas, ofclides, lares, nos "Presepes" e "Pastoris" do Xorte.
clarinetes, bOffibal'diIJos, violões e cavaqui- Tradição que nos veio de Portugal, sua acli-
nhos, trombones e pidons. E nas tacatas ao matação no Brasil foi gerando, com o tempo,
luar, as melodias susJ;iravum na \'oz dos ins- uma lenta e quase radical transformação.
trumentos, em cuja (xpressão cada. apaixo- Xão sera preciso que me detenha a con-
cado procurava impri mil' o tom mais íntimo tar o que é um baile pastoril. Uma das suas
e enternecido de SE'i1 coração... "Clélia, atrações esta· na variedade de ritmos ele suas
adeus ... ", "Constelflções", "Perdão, Emí- cantigas. No palavreado pitoresco e tradicio-
lia ... " nal as cantigas se denominam "lôas" ou mais
Como tudo o mais Ila vida, as serenatas freqüentettlente "jornadas", nome êste que
também foram volú,eis. Oscilaram com a teve origem na caminhada que as pastoras

- 295-
representavam nos antigos presepes, em di- caboclo-:simples d: 'spopl,üações sertanejas,
reção ao local do nascimento de Jesus. Cada morrem e se enterrun, nos dias de hoje, como
cantiga significava uma caminhada, ou seja, a maioria _dos mar tais, E' que a morte nos
uma "jornada". E' o ritmo de marcha, es- sertões também civ ilizou-se. , ,
pecialmente- da marcha lenta, ' o que predo-
mina em tôda a representação. Mas, volta e
meia, altera-se o compasso e surgem ritmos
inesperados, como o da mazurca, do bolero, - E os aboios, "Almirante"?Que me diz
da polca ou da valsa, você do desenvolvimento musical dêsses le-
gítimos temas do ntlSSO folclore?
:-- Aqui, as nos,;as cantigas de aboio têm
o mesmo ar tristonho e pacificador das dos
As cantigas de cegos, tão diferentes nos demais países. No lendário "Far-west" exis-
pontos mais diversos do Brasil, cada uma tem hábitos que se assemelham extraordinà-
delas exemplificando u'a modalidade mar- riamente aos dos nessas vaqueiros e boiadei-
cante daquêle triste costume, caracterizam, ros. A bem dizer, a'luilo que na América do
por sua vez, aspectos do nosso folclore mu- Norte se denomina "rodeio", nada mais é do
sical, pois os cegos pedem esmolas, cantando. que a "apartaç'ão e a vaquejada" do Brasil.
Essas cantigas constituem uma de suas pá- Uma das cançõ's de lá, graças à arte de
ginas mais lindas. Ferdie Grofe, notávd compositor americano,
Assim também são as chamadas cantigas é hoje mais conhedda aqui entre nós que
do trabalho, uma das mais típicas manifes- qualquer cantiga blusileira do mesmo tipo.
tações folclóricas de nossa terra. Você a conhece bem, é aquela linda melodia
A melodia do trabalho mais popular em popularizada pela c(:nhecida "Suite do Grand
todo o mundo é, sem dúvida, a do famoso Canyon" .
"Canto dos Barqueiros do Volga". Os velhos Ouvindo o cante de aboio, como a carícia
cânticos de trabalho de nossa terra, pelo que a que não se pode f'Jgir, a boiada rebelde se
possuem de profundamente típico na beleza acomoda, caminhar do em paz, sob o jugo
estranha de suas melodias, bem que merecem de estranha fôrça, qle é o dom do boiadeiro
também Uma divulgação mais ampla pelo de transformar o ,ravo em manso. Nem
mundo todo, a fim de que os povos de ou- sempre, porém, o aboio é monossilábico.
tras terras possam sentir o espírito de nossa Inúmeras vêzes é cmtado ou com palavras
gente revelado pelas suas cantigas de tra- improvisadas pelo b,)iadeiro, ou com os, ver-
balho.
-.'>.-
sos de quadrinhas p')pulares do sertão ...
Outro aspecto folclórico interessante é o
dos velórios e rezas para defunto. Rezas can-
tadas à cabeceira do morto quando todos,
sonolentos, fazem o "quarto", entoando can- - Como os bohdeiros, nossos pescado-
tigas tradicionais. E' coisa comum, ainda res também cantam, pontilhando de cantigas
hoje, no interior. alegres ou melancóli,~as, os momentos de sua
Triste porque envolve a idéia da morte, vida aventurosa. A'é o seu compositor po-
o velório, no Brasil, é uma das fontes folcló- pular êles já possU('m: êsse admirável Do-
ricas mais puras. E' nas rezas de defunto, na rival Caymni, autor le "O Mar" e de outras
melopéia das "incelenças", no ritmo das lou- páginas notáveis.
vações, que se encontram algumas das mais Na variedade de crenças dos homens do
bonitas melodias populares, e alguns dos mais mar em divindades poderosas, destaca-se o
curiosos versos da rude poesia do sertão. Nas culto a Yemanjá, também chamada D. Ja-
noites silenciosas do interior brasileiro, quase naina ou Rainha do Mar. Para agradar a
não se ouvem mais os gritos de ~'Chega, ir- Deusa. Mãe e Raínra das Aguas, o devoto
mão das almas.,,", O negro, o matuto e o pescádorse entrega 10 impressionante ritual

- 296-
Ensaio das "Pastorinhas", para o 2." ato da ópera "<'lalazarte·', de Lorenzo Fernllndez

das festas de Yemanjá E da algazarra fes- Entoada a cantiga matinal, o garimpeiro


tiva que se forma em peno mar, surge como enfrenta o trabalho árduo e pesado do ga-
um lamento de coração que é prece e espe- rimpo. Munido de ferramentas típicas, como
rança, a voz do velh) pescador, pedindo as labancas, cavadeiras, enxadas, bateas, os
proteção para o filho .i )Vem, cujas mãos já frincheiros, cacumbus, carumbés e ralos, co-
se embrutecem ao man,~jo dos remo!'.... meç'a por sondar a terra que encobre o "cas-
calho". Esta operação de reconhecimento é
Senhora que é das águas feita com a "vara de sondar". Verificado
Tome conta do meu filho tratar-se de terra fértil, conduz então para
Que eu tambéIll já fui do mar. ali a "quicaia", isto é, o grosso das ferramen-
tas. Todos os movimentos da "quicaia" são
sincronizados com estranhas cantigas, cujo
- E os garimpeiro~? Que estranhas can- acompanhamento é feito por uma improvi-
tigas as dessa gente, Of, maiores portadores sada orquestra daquêles característicos ins-
de sonho até hoje conhecidos?! O documen- trumentos, que vão batendo e retinindo no
tário musical que dêle~ possuímos foi reco- ritmo ...
lhido por um estudioso dos garimpos: Aires
da Mata Machado Filho. que os publicou num lá tombê, iá lombê
livro magnífico: "O ne 51'0 e o garimpo em Tango, tango, gombê iá
Minas Gerais".
Os versos, as letras los cânticos são inin-
teligíveis, numa mistur!l de línguas africana - Outra feição pitoresca do nosso fol-
e brasileira. Suas melddias, além de tudo, dore é a das capoeiras da Bahia.
são esquisitas; quanto 10 seu valor folclóri- A capoéira deixou de ser uma luta de
co, não é necessário qu.~ seja exaltado. agressão tornando-se uma espécie de dansa,

297 -
tom suas músicas e canLigas próprias. ~UHl esquisllos SOIlt; n ;JOàuLe,s tIue SetO ouvidos à
largo qualquer, geralmente cercado por uma distância,
espécie de balcâo onde os assistentes se de- Um dos pane e.lros completa a orquestra
bruçam, .i unta-se () povo, atra,ido pelos anún- que executa as llúsicas que sincronizam a
dos ou pelas bundeirolas que engalanam (} luta.
recinto. ~Ulll dos pontos da imensa roda,
colocam-se os totadores -- -os músicos - pois
- E agora 'ale a pena uma referên-
a peleja é tôda eomanrlada pelas cantigas
cia às "assombraçies", que têm dado or! gem
Ilue se vão sucedendo ininterruptamente. O
a uma série de c<:llções, cujo espírito reside,
instrumento prindpal daquela orquestra tipi--
especialmente, na :gnorància e na superstição.
cu chama-se berimbau, simplesmente, ou be-
Curioso é qu __ , sendo, como são, mani-
rimbau-de-cuia, ou berimball-de-barriga. E'
festações profundclmente folclóricas, as as-
fabritado com um pau flexível a cujas pon-
sombrações nunc[ chegaram a influeneÍar a
tas prende-se um arame esticado que faz
musa sertaneja, i I~pirando cantigas típicas.
curvar exatamente como um arco de índio.
Além do acalank do "Sapo Cururu" e da
Batendo ,com um pequeno cipó no arame, o
toada da "Cabraabriola", os demais temas
tocador vai Pl'cIlllzindo os sons. Fazendo
que andam por Li são fragmentos de com-
pressão na corda com uma moeda de cobre,
posições recentes-- canções, de fato, popu-
o tocador \'fü'i<l a nota, produziJldo uma pe-
lares, mas não ce lções folclóricas.
(luena melodia pobre ...
Sào assim o "';aei-Pefere", o "Lá vem a
A mão que eUlpunha o cipó segura tam-
cobra grande", () "Tajapanema chorou no
héln uma pequena cestinha che:rt de contas
terreiro", etc.
ou pedras, chamada "xique-xique" ou "gon-
go", e que serve pam marcar o l'itmo simul-
tâneamente com a melodia, ' 0$ "eautadol'l-; e desafiadores" concor-
Presa no Ui'alm~ 1)01' um Larhante fica relU lmlllJém com ,s seus versos espontàneos,
uma jleqllf.:ôna cU1JaÇ',1 (!l[ CEia que se apoia l'epentislas, para \ enriquecimento do nosso
na barriga nua do totador. Contraindo e folclore, embora, J ~~ses desafios, () fator me-
distendendo u b8.l'i'iga, no rilmo da música, nos importunte Sl a <l música, também im-
tapando e destapando a abel'LUra da cuia, o provisada junto cc lU os versos, Algumas, no
homem do berimbau -vai conseguindo uns entanto, puderam ser fixadas .

.:Penoas

R ESTA-NOS ver agora as lendas do Brasil, Tódas as pus agens do famoso "auto"
algumas delas apresentadas em meus pro- sào comentadas pcr cantigas e músicas, ver-
gramas radiofónicos. A mais tradicionalmen- dadeiras jóias do J 'osso folclore.
te importante é a do "Bumba meu Boi", re-
Não trago par:: aqui as palavras de "Al-
presen tação tradicional das festas de ;\' ataI e
mirante" por já h,ver comentado a festa do
Reis, que ainda hoje podem ser vistas em
"Bumba meu Boi" quando fiz referências ao
muitas regiões do Brasil, sob as mais varia-
bailado "Iara", de Francisco Mignone.
das formas e os maiscliversos nomes.
E "Almirante" discorreu sóbre a conhe- Reproduzo, no entanto, o que" Almiran-
cida cerimônia que vai desde a chegada do te" me relatou at' 'rca da lenda baiana do
Yaqueiro ao rancho, tangendo °boi ate à "Abaete ", da lend! mineira do "Chico-Rei"
morte. o esquartejamento e a l'essurr~ção do e das lendas cria/ias em tórno da vida do
::mimat. Padre Cícero.
Ii
i

t
- A Lagoa dr' Abaetf: lagoa escura. _.- Libel'la llllW lribo iult'iru. Vila Hiea
n'l'cadu de areia brn Ilca, encravada perto do viu nascer, dentro da Capitania, um oulro
litoral legendário (i a Bahia. Punhado de estado, uma nação negra, forte e unida, agre-
aguas amaldiçoadas pela crença popular em gada à custa de um esfôrço épico. E funda-
cujo espêlho sombrh a ingênua fantasia do ram a secular irmandade de Nossa Senhora
pescador julga ver l<giões de duendes e fan- do Rosário e Santa Efigenia do Alto da Cruz,
tasmas, e ouvir tÓeI:i uma orquestração ma- Ouro Preto passou a conhecer, no dia ()
cabra de zumbidos, :hocalhos e rumores es- de janeiro de cada ano, o Reisado do Rosário,
4; tranhos. A lagoa lll;tl assombrada do Abae- Festa tipicamente africana, nela Chico-Hei, a
té. " lenda formosa do Brasil registrada nas Bainha, os Príncipes e as princesas eram CClll-
can tigas populares ... duzidos em procissào, yestidos a caráter at(:
ao Alto da Cruz, onde na 19reja de Santa Efi-
No Abaeté ten. uma lagoa escura,

1 Arrodeada de 1reia branca,


Oi de areia br:tl1ca,
gênia se cantaya missa solene em ação de
graças, Finda a cerimônia religiosa, ao som
e ao ritmo de instrumentos bárbaros, o mo-
f:.stes versos sâo da wnhecida canção de narca e seus súditos desfilavam pelas ruas
Dorival Caymi, insp rada 110 tema folclórico de Vila Rica, exibindo-se em dansas caracte-
baiano. rísticas da Guiné, entoando cantigas alusivas
A Lagoa do Ab, eté. " Uma das lendas ao cerimonial" .
mais bonitas do Brn;il! A despeito de tudo,
da ingénua layadeir que se benze, do sim- Alumió
plório pescador que adverte o filhinho, dos Alumio
monstl'os imaginári", dos fantasmas e da::; A eorôa do Hei.
zoadas do balucagl". a lagoa dorme lllansa- Alumil\,
mente no regaço da CITa lJOa da Bahia, cer-
cada de Breia bnlllc . sel'vjndo (te espelho ~l
lua vaidosa, inocente '_'omo as crimtcinhas que
brincam Ilas suas III l. 'gens t ralllj iii las. E e0111 J ú no Ce,ll';'l ('olllill uou "Alllli I'un-
tudo isso ou, talvez J esmo por tudo isso, tem te" a figura de Padrl' Cícem fez nascer
inspirado belas canti :as de nossa terra, .. em tÔl'l10 de si ..... n:!U só depois de sua morte
como ainda elll Yida- HIll verdadeiro ciclo
folclórico cujas l1Iuuifestaçôes aumentam dia
A lellda do "Ch I.'o-Hei", pertence a Mi- a dia. Süo rànticos populares de ex.traordi-
nas Gerais e já inspi 'ou o maestro. Francisco nária beleza, todos apresentados em meus
Mignone que compô, sobre ela uma página programas. O principal, sem dúvida, é o
magnifica: "Maraca. u do Chico-Rei"; está "CANTO DOS PEREGRINOS", cantoria legi-
Intimamente ligada á Igrejinha de Santa tima da cidade do Joazeiro e que foi regis-
Efigênia, trada pelo saudoso Mário de Andrade, sem
"Almirante" faI. H-me da Africa, onde falar na oração do "MEU PADIM CISSO
Francisco era o Rei (te uma nação de negros. RUMÃO",
.. Contou-me a caç'ada feita pelos brancos, a As inúmeras eantigas que pontilham H
captura do "monarc, ", o cativeiro, a venda história do Padre Ckero, comemorando-lhe
dêle e de seus filho·;, a um rico senhor de os feitos, brotaram dos lábios contritos dos
Ouro Preto. Relatou~0ll10 um dia pagou sua sertanejos, daquela jagunçada temível, cujo
alforria, depois a dt' seu filho, depois a de braço, armado pelo fanatismo, fêz a epopéia
um outro escravo, m~<is outro e mais outro, .. euclic1i ana dos "Sertões". , .

• • •
--- 2!Yl
, .
musIca papurar e o t?ar7alJa(

A pós a revista passada à música folcló- trumento popular vc:n para as praças e o ar
fica cheio de chocaL lar de guizos, de raspar
rica do Brasil, resta-nos uma ligeira digres-
são pelo setor da nossa música popular, re- de reco-recos, de es' ridular de clarins: são
presentada por conjuntos orquestrais, com- guinchos de gaitas, t: mtans de tambores, ron-
positores urbanos e intérpretes. Dois aspectos cos de cuícas, batida:, graves de bombos, api-
se impõem, desde logo, à atenção do pesqui- tos e assovios. " Do ninando a música infer-
sador: o rádio e o carnaval. nal, o canto intermin;lveI de copIas repetidas,
A princípio era apenas o tríduo da folia sem cansaço, sem umorecimentos, durante
() responsável pelo lançamento das músicas horas e horas, noite e dia; e pelas ruas a
populares, . nascidas nos morros, nas mesas festa esfusiante das ~ôres, em suas acentua-
dos cafés, nas esquinas suburbanas à luz dos ções primárias, berrando o estonteamento dos
combustores ... vermelhões, dos am:!relos, dos verdes e dos
azuis.
Era na alegria dos nossos carnavais que
O carnaval é po,itivamente, uma explo-
elas se espalhavam pelas ruas e penetravam
são de recalques da ,nassa.
110S teatros e nos salões. Com o advento da
radiofonia o elemento difusor, é claro, tor- A princípio, era 1 época - única no ano
nou-se mais amplo. Hoje, o rádio domina; e - em que o negro ti! :.ha direito a uma diver-
a chamada música urbana, de caráter mais sãozinha, assim mesllo "dirigida". A ilusão
industrializado do que artístico, encontra de liberdade operava nêle, no entanto, a eclo-
nêle o seu vulgarizador insubstituível, não são do ego, o desejo rle expansão natural em
apenas em épocas de carnaval, mas em todos quem vivia sufocado ;)or todo um mecanismo
os meses do ano. de opressão e de ju.c{o. Por isso mesmo ('
natural que o traço (iominante nos folguedos
Vejamos, portanto, em notas sucintas
carnavalescos tenha rido sempre a lascívia e
eOl11O se tem caracterizado o desenvolvimen-
os desejos amorosos .raduzidos na langüidês
to das tradições carnavalescas entre nós, bem
lúbrica da música e ,lo canto. Até hoje isto
como as atividades, no rádio, das orquestras
se verifica, pois aind, em nossos dias o povo
e dos intérpretes da música popular no Bra-
se expande nos dias t ie carnaval, exibindo os
sil, como complemento indispensável ao es-
recalques que a sociEdade lhe impõe, especi-
pírito da presente obra.
almente no campo s,~xual, com o seu com-
Inicialmente o Carnaval. plexo de preconceito~ .
Antes do advento da radiofonia, como já Debret, o inconj undível artista francês
ficou dito, era nos seus dias áureos que se que a missão artistie;; de Lebreton trouxe ao
lançavam as músicas populares no Rio e em Brasil, fixou, em dest"nhos magníficos, aspec-
alguns Estados do Brasil. O Carnaval bra- tos do entrudo ao ten!po da côrte de D. João.
sileiro é música, dansa e canto; nada mais. Vê-se ali a folgança ,Iesabafadora dos escra-
No tríduo da folia e nos dias que o antece- vos que encontravam no carnaval a liberdade
dem o povo se entrega à ebriez dos folgue- falaz, efêmera que ° mesmo lhes proporcio-
dos, saracoteando e pulando pelas ruas e den- nava. No coração (os infelizes o grito de
tro dos salões. carnaval era um hale de luz na obscuridade
A história do carnaval em nosso país é de suas vidas, passadts entre o ergástulo e o
um dos capítulos mais interessantes da his- eito.
tória da música brasileira. Lá iam êles, felizr~s, com os rostos caia-
No Rio, o samba domina, despotic~en­ dos de branco, fitas 11:1 cabeça e as mãos car-
te; no Hecife, é o frêvo. Tudo quanto e ins- regadas de bolas de I· mão cheiroso.

- 300-
/

Apresents ão do estandarte na "SOdade do Cordão", revivescêu',ia f~i'ca por Villa Lobos em um


dos carnavais carioca~

Em 1820, o banjo forçado era motivo de nos folgue dos, emprestando-lhes os seus ele-
graça. " Sôbre o tnnseúnte incauto vareja- mentos de aculturação, mesclando pitoresca-
vam a água dos bal, (es, seguida de uma chu- mente os costumes. Acabou por dominar o
va alvacenta de cal tU de polvilho. O cidadão espírito da festa. , .
ficava imundo, com a massa branca e pas-
Em meados do século passado o carnaval
tosa a escorrer-lhe leIas vestes.
já se distinguia como festa de caraderÍsticas
Mais tarde, no Brasil independente, us iniludivelmente brasileiras. Respirava-se em
hábitos se transformaram. O balde d'água foi
ambiente mais amplo de liberdade; a Côrte
substituído pela bis) aga que esguichava água
e o próprio Pedro II sofriam os ataques da
perfumada a longa·. distâncias. Ainda ai o
sátira, que lhes trazia as mazelas paJ'a as
banho era total, poi!' os limões de cheiro com-
ruas, em longas passeatas.
pletavam a obra.
O carnaval foí tr1izido pelos pOl'tuguêses e As críticas não poupavam as altas perso-

I
se resumia, a princi pio, em uma festa, seme- nalidades do império; as alusões pessoais de-
lhante à da Penha, mas de caráter pagão. nunciavam-se nos carros das sociedades, que
Bebia-se, comia-se , as dansas eram franca- eram a verdadeira sensação do carnaval, no
mente à moda lusihna. Rio. A multidão pasmava e sacolejava o ven-
No próprio ano da Independência desfi- tre, em ris,o satisfeito assim que divisava (I
lou, no Rio, um pei[ ueno préstito com alego'- imperador e os seus ministros representados
rias e cavalhadas. em figuras de papelão pintado, baloÍ(;ando-sc
O negro porém, com o seu llotavel poder sôbre as carretas, na pouca estabilidade qUE'
de assimilação foi óe imiscuindo, aos poucos lhes davam 'as armações.

;iO\',
A rua do Ouvidor aIllanhecia ornamen- ambiente amplo de Jibe~dade restringiu-se,
tada e enguirJandada pelos negociantes que não mais sendo permitida a exposição de
se cotizavam para esse fim; a multidão se mazelas políticas. COlneç·ou, então, a época
acotovelava nas calçadas, compacta e sua- das grandes alegórias com as quais os cenó-
renta, sob esguichos das bisnagas e dos grafos se empenhavam em porfias artísticas.
limões. O asfalto das ruas era liça para os entreveros
Em 1835 houve, talvez, o primeiro baile da Arte;' e os carroci-almanjarras exibiam
de mascaras, no Hotel Itália, na rua Espírito templos egípcios, aqr,ários de cincoerita a
Santo n.O 27. cem metros, dragões dourados enormíssi-
O sucesso foi considerável, tanto que o mos ...
hoteleiro Angelo participou logo pela impren- Chegou a época <ios cordões com a. le-
sa ("Jornal do Comércio", 17-2~183G) que a gião de caboclos à fn-flte, afogados sob um
pedido de várias pessoas "daria um segundo mundo de penas e de peles de animais. Vi-
baile, sábado, 21 do corrente mês". E con- nham em seguida os ,. caraças", o "princez"
cluía "o anunciante espera satisfazer a ex- de mascara descomunal e "lorgnon" assesta-
pectação dos senhores subscritores emerecer do, dansando em passt> lerdo, o "pai João",
cada vez mais a sua aprovação. O di verti- a baiana, o morcêgo, a morte, () diabinho.
mento terá lugar na sala do lado do jardim tôda uma coorte de mascarados, páginas
e nela se achará colocada uma excelente or- vivas da tradição carn avalesca do Rio.
questra. Depois da meia noite servir-se-á um O carioca divertia-se muito na rua, incor-
chá; e haverá mesas prontas para as pe~~o:u porado aos cordões ou . 'omo máscara avulso,
que quiserem cear. O preço da entrada para troteando os conhecido.
cada homem com uma senhora é de 2$000 O tempo correu e eom ele foram-se 08
réis". No :.1110 segllintr, H cantora lírica Del- cordões que deram lug 11' aos ranchos. Mor-
mastro organizou o primeiro baile de mas- reu o famoso Zé-Pel'eh ;1, hatido em gl'ande~
l'ara:-; cm leulTO_ JlO Súo .lanuúrio. A côrt(~ hombos.
compareceu t.'OJll :;CltS lllai::> destacados diglli- Os temas dos rane', O~ tornaram-se com-
túrios, lodos 1l1'OClIl'!11H!" ., reconhecer algum plicados; 0,'-\ enredos i ,spil'ados na história
amigo, alguma doma, fiOS val'Íados e ele- e em lendas estrungei as apresentavam "O
gantes disfnl'ccs de Tur('o. Chim, Palhaço, Rap.to de Proserpillu ", c) "Tr.i unfo de Salo-
Fidalgo, Dominó,. ctt'., ete.". mé". a "Batalha d'Alj :bal'l'o\a'" ele.
O tUl'lJi1yal EO élltnn\ll. modificava-se. () conjunto desfila\' :, ao som de mal'c.ha:s
Em 1851, lia-se no velho "Jornal do Comér- e sambas apropriados, : ,~ompanhalldo a por-
cio"; "O entrudo de !iOESO p8is, () entrudo do~ ta-estandarte, sob a Ol'j( iltação eleurnmestre
limões de eêra, das sel'Íllgas, das bacias de de harmonia, outro de canto, além· do mes-
água, ess2 entrudo cujos gracejos eram tau- tre-ele-sala, para as evo llções.
tas vêzesuma provocaç5.o e um insulto, e As críticas atingian, casos da adminis-
sempre um perigo de grave enfermidade, êsse tração pública, aconteci aentos da época e os
entrudo tão pouco conciliável com a progres- "faits divers" da cidad'.
siva civilização d a nossa terra, esse entrudo Em 1900, por exemplo, o "Clube São
está morto". Cristóvão" trazia um a~ :rólogo perscrutando
O chefe de polícia proibiu, de fato, os o espaço como que a i)redizer o "Fim do
limões de' cheiro; e os carros das "Sumida- Mundo", balela que tôd, a gente repetia e a
des Carnavalescas" e da "Sociedade Vene- própria imprensa propn lava ...
ziana" cruzaram as ruas, com alegorias e Por essa época o poiléu dansava a chu-
críticas. la, o fado (inclusive o fldo-de-roda), o cho-
Trausllllldado u ('cnúrio polítieo com () radinho, a tirana, () saniba ... Em 1902 fêz
advento da Repúhlka. as festas momesca:> largo sucesso a march<1 "0' ahl'e alas! ", de
perderam, em parte, sua feição de sátira aos Chiquinha Gonzaga, esc ita para o "Cordão
poderes e de ridíeulo aosadministl'adores. (I da Hosa de Ouro".

- 302-
A propósito de cor' ões, vale recordar, sicas de maior sucesso eram: "Vem cá mu-
como nota curiosa, o fal tOSO conflito oCGrri~ lata", "Pintor que pintoll Maria", ete.
do na rua Marquês de Abranles, entre () As sacadas e janelas JW Avenida passa-
"Grupo Estrêla dos D.:s Diamantes" c n ram a ser alugadas, com anúncios no~ jor-
"Flor da Primavcra", 01 'ie pcrderam a vida nais. Em })OtlCO, jú os grupos ou eordi)es
dois denodados foliões. Hemovidos parH n Hrrc~entaYam nr.'lsÍl'as e"nitas espe,j,dm2nte
íH;crotério foram os ('o; :lOS levados i]O (:ia pelos seus eompont'ntes, cuj as letra!; eram
seguinte parü o devid(. epu][amenlo, aCUI11- puhlicadas peJa il1lj.H'clltia.
panhados pelos rcspecti' os cordões. Nunca ~T()~ roreto~~ t(j-(.·(r\'af~'i"·~~e langos e valsas.
houve no Hio UIll esrel 'Cldo como aquêle: Em 1912 houVE' 11 primeira halalha de
duas carretas morluári: .:. coherlas com as Domingo (~ôrdo, 11 a Avenida. '\' és~e ano,
bandeiras dos grupos e I :vadas para o cemi- aliás, o carioca teve dois carnavais, fafo cau-
tério por uma multidão de mascarados, ru- sado pelo falecimento do BUl'fio do Hio Bran-
fando caixas e pandeir: s e enfoando mar- co. Nêles dominou H música da "A Vassouri-
chas de rancho ... nha". ao jeito de fado c a crítica à peste dos
Em 1903, foram pn ibidas as bisnagas, fO!1ógrafos ...
substituídas logo pelos I: nça-perfumes. Em carnavais sucessivos obtiveram Jal'go
Os bailes aumentav8,n de magnificência êxito o "Dengo-dengo", a "Caboca de Ca-
e nêles se dansava ao sen de valsas, polcas, xangá", o "O' Filomena", "Pierrot e Colon1-
maxixes, cancans, ShOttiS1S e até quadrilhas. bina", "E' da minha" (urueubaca), o "Meu
Na rua surgiam criticas i; matrícula dos cães boi morreu" (de grande sucesso), o "Luar
ao "Pourquoi-pas ?", ao perigo ámarelo, ao do Sertão" e o famoso "Pelo telefone". O
"Demoiselle", aos quio~':Iues, ao cinemató- povo chegou a cantar letras com a mús.ica
grafo, etc. do Guarani.
Em 1906 apareceu o famoso grupo "Iaiá Em 1917, apareecu "Sinhô" t.:ognomilHl-
me deixa". No ano seo;uinle teve lugar a do, mais tarde, o Rei do Samba. ·Os ano"
primeira batalha de conl di, no Rio. As mú- corriam; com êles surgiam. nov1:ls músicas.; (.I.

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"B-a há", a "Baratinha", ele. Em 1922, re- Foi em vão I [ue o DIP, de tão triste me-
começaram as charges políticas, com o recru- mória, tentou illjetar-Ihe o óleo de propa-
decimento da campanha Nilo-Bernardes : "Ai, gandas turísticas no intuito de atrair incau-
~eu Mé", "Palácio das Aguias", "Tu que fala- tos. O povo, suf( 'cado e ludibriado, procura-
vas tanto", e outros. Nasceram então as va divertir-se, é ,erdade, mas não encontrava
"Escolas de Samba". Por essa época, muito o ambiente propiciatório às suas demonstra-
antes do Carnaval, já começavam a aparecer ções de alegria para e contagiante. O ar aba-
grande número de sambas e marchas para o fava, como que e~trangulando as canções e a
mesmo. Eduardo Souto caiu em moda; suas música vivaz.
composi~ões tiveram enorme popularidade.
Além- de tudo, havia ainda a influência
Em 1927, houve um concurso popular
das dansas estra ngeiras: o fox, a rumba, o
organizado pelo "Jornal do Brasil" para a
tango, a rancheila ...
seleção de músicas carnavalescas. No ano
seguinte, dezesseis mil turistas vieram assis- Dos Estados Unidos vieram os trombo-
tir aos folguedos, no Rio. nes de vara, os banjos havaianos, as cornetas
Em 1929, Sinhô dominoucolll os sambas de tímpano, etc.
".Tura" e "Gosto que me enrosco". Em 30,
O ar ficou ai'repiado de apitos. Os más-
Ari Barroso obteve o primeiro lugar com a
caras avulsos deipiam suas velhas fantasias
marcha "Dá nela", em um certame, no tea-
e procuravam d; vertir-se como marinheiros
tro Lírico.
ianques, apac.hes gigoletes. odaliscas e cm\'-
Já Noel Rósa se impunha, por seu turno,
boys.
com o samba "Eu vou p'ra Vila". Em 32
houve o primeiro torneio das Escolas de !lias o homelll do povo entrou a reagir.
Samba, na praça 11 de Junho. O autêntico cam.lvalesco, que conservou iu-
Para se avaliar a fecundidade dos COlll- cólume o seu esr [rito nativo, que não sofreu
posiíores hasta dizer-se que, em 1933, surgi- o contágio do es' .obismo exótico, êsse- conse-
ram 144 músicas entre sambas e marchas. guiu atravessar o i periodos de desfibramento
Não tardou que u Prefeitura realizasse sem se deixar I enetrar por influências de
os concursos de músicas carnavalescas que outros povos. E ( , ainda hoje, em pleno car-
tanta celeuma causaram. Com a instalação naval, que brota I linfa sonora da música po-
da infeliz experiência do Estado Novo muito pular límpida { inconfundível, verdadeiro
perdeu o carnaval do seu espírito livre e es- manancial para (·;tudo e inspiração dos com-
pontâneo tão genuinamente ·carioca. positores brasilei·os.

() 0?áoio e as Orquestras Ç}opufares


A GORA o radio. no alto do Corco, ado; chegou mesmo a trans-
Foi exatamente no ano de 1922, quando mitir concertos ;'ealizados na Exposição e
se festejava, no Brasil, o centenário de sua óperas cantadas 10 Teatro Municipal.
independência política, que se verificou a A \-Vestem t nha as suas instalações no
primeira demonstração de radiotelefonia en-
edifício dos C01'l eios e Telégrafos, na Praia
tre nós.
Vermelha, e irndiava com menos regulari-
Durante as comemorações, na Exposição
dade.
Oficial, duas companhias americanas, a Wes-
linghouse e a Western Electric, obtiveram As irradiaçõ's eram, no entanto, restri-
permissão para realizar expedências. A pri- tas ao recinto d{ Exposição. ouvidas apenas
meira irradiou os discursos inaugurais do pelo público que lá estivesse, através de alto-
~ertame, graças à estação que havia montado falantes, pois aír da não existiam receptores.

'. aO'1
Os poucos habilidosos que sabiam construir SPE, com seus estúdios instalados no largo
aparelhos de cristal e evantar antenas so- do Machado (Praça Duque de Caxias). Nêsse
friam perseguições da polícia "cujas tradi- mesmo ano de 1924, em dezembro, a Rádio
ções liberais, em nossa rátric., vêm de longe", Sociedade irradiou, pela primeira vez, uma
como chegou a afirmar um jornalista. ópera completa: "L'Amico Fritz", de Mas-
cagni.
Essas primeiras denonstrações radiofô-
nicas duraram pouco t, :mpo. Já em princí- Em 1926, outra estação entrou no ar: a
pios de 1923, a Westin~house desmontava e Mayrink Veiga, em cujo programa inaugural
remetia para os Estado'; Unidos a sua esta- apareciam, entre outros, o violinista Oscar
ção, enquanto a 'Vesterl propunha a venda Borgert e a poetisa Rosalina Coelho Lisboa,
SGb a óireção de FeHcio Mastrangelo. Em 192i
da sua ao nosso ,govêrlo, negócio que foi
realizado pouco depois, surgia a Educadora, instalada nos porões do
Silogeu. Nela apareceram Gastão Formenti
Surge então nessa ,~poca, no terreno da
e Patrício Teixeira.
radiofonia, a figura do seu verdadeiro pio-
neiro entre nós: o prof ossor Roquette Pinto, Em 1933, fundava-se a "Jornal do Bra-
membro da Academia ce Ciências. sil" e a "Guanabara"; no ano seguinte a
"Cruzeiro do Sul" e a "Transmissora". Em
No dia 14 de abril, le 1923, publicou êle,
1935, era a vez da "Ipanema" e da "Tupi".
um apêlo, na imprens ,I sob o título "Até
Vieram em seguida a "Nacionál", a "Ta-
agora esperei. .. ", no qlal consubstanciou o
moio", a "Vera Cruz" e a "Globo", sem falar
entusiasmo e o ardor ccrn que resolvera ini-
na instalaç'ão das estações oficiais da Prefei-
ciar a campanha em pl0] da rádio-difusão.
tura e do Ministério da Educação. Por tôdas
Seis dias depois fundav: ~-se, de fato, a Rádio
essas estações passaram os astros da nossa
Sociedade do Rio de Ja leiro, com o prefixo
música popular, as orquestras tipicas e os
RS, em onda de 400 n etros, com estúdios
"virtuosi" improvisados.
localizados na avenida R.io Branco, 109, sob
O rádio - como não podia deixar de
a dir~ão do ffiàestro C ianetti.
ser- criou novas profissões dentro das quais
A luta aberta que a polícia mantinha
vivem, atualmente, centenas de pessoas.
contra os receptores nãi! permitia, no entan-
Vultosos contratos têm feito a emanci-
to, maior vulgarização :lo rádio. Quem ou-
pação econômica de muitos artistas, técnicos,
visse transmissões sem J cença dos Telégrafos
agentes de publicidade, etc. A música popu-
estava sujeito até à per a de prisão.
lar, enc.ontrando nêle seu mais destacado ele-
Roquette Pinto, à '. rente da campanha, mento de difusão, tomou noyos aspectos, para
conseguiu que a próprir Academia represen- melhor ou para pior, conforme as tendências
tasse junto ao govêrno No dia l' de maio, e eircunstâncias ocasionais.
sua palavra foi ouvida através da estação Muitos artistas surgiram com o rádio,
Praia Vermelha, sendo essa a primeira vez onde permanecem alguns até hoje, enquanto
que uma transmissora fmcionava no Brasil. outros deixaram nêle apenas a memória dos
No dia 11, o govêmo recebia uma re- seus nomes.
presentação da Acadenia, na qual se fazia Pelos· estúdios perpassaram Carmen e
sentir a possível transf'll'mação da mentali- Aurora Miranda, Silvinha Melo, Petra de
dade do povo brasileiro com o aproveitamen- Barros, Cristina Maristani, Gilda de Abreu,
to das ondas hertzianas em um sentido pura- Marcell Klass, Lely MoreI, Rogério Guimarães,
mente educacional e ctdural. Francisco Alves, Mário Reis, Geny Barbosa,
Vencida a primeirl' fase da campanha, "Almirante", Geni Rebuá, Stefana de Macedo,
obteve licença para irradiar a Rádio Socieda- Ari Barroso, Lamartine Babo, os irmãos Ta-
de, cuja inauguração ~!,! verificou no dia i pajós, Mozart Bicalho, Noel Rosa e muitos
de setembro. outros.
Em outubro do an( seguinte, Elba Dias O próprio" Almirante" traçou, certa vez.
inaugúrava' o Rádio Chibe do Brasil. prefixo em pàJestra com llm jornalista. o ambiente

- 305-
r; grupo conhecido pelos "Oltn
'Batutas '~. em uma fotografia
fpit~ ~m Pari!' .. \'111 1 921

radiofônico da época em que êle mesmo com esse gênero (Í e mercadoria. Evitava-se
sllrgiu: o mais possível f;:lar, pois havia o pressu-
- Não havia, naquêle tempo, o espírito posto de que quan i o menos prosa melhor ...
profissionalista. Nos primeiros anos, canta-
va-se e tocava-se por prazer, pela satisfação
de ser ouvido, por vaidade, por tudo neste
mundo, menos visando remuneração. Esta o rádio repre~'.enta sabidamente um ele-
mesmo, quando apareceu, era mesquinha. mento inestimáve· de difusão cultural, po-
Ganhávamos uma miséria. Lembro-me bem dendo concorrer, q ,lando bem orientado, para
que, em 1933, quando o Rádio Clube contra- o aprimoramento ,ducacional das massas.
tou Francisco Alves pagando quarenta mil Mesmo a desp'ito das atividades comer-
réis por programa, a notícia ecoou como uma ciaís, necessárias ! manutenção das emisso-
bomba. Os diretores da estação acharam o ras, a radiofonia, no Brasil, tem concorrido
preço um verdadeiro escândalo ... de forma louváve! para a disseminação da
Nessa época, já se tinha progredido mui- música e do canÍ< de todos os povos.
to, diga-se de passagem. Porque no comêço, Não só os art· stas nacionais se exibem
não havia programas de uma só pessoa ou através das ondas do ar; grandes figuras do
de um só conjunto. Era uma anarquia. Che- cenário universal têm atuado nas estações
gava um e cantava um samba. Logo depois, brasileiras. Pianidas, cantores, orquestras,
um outro recitava uma poesia. Seguia-se um virtuosi de todos (5 instrumentos, em suma,
solo de violão, depois outro cantor, e assim surgem, continuar lente, em nossas estações
por diante. Só não havia em abundância em um contacto II ais direto com as grandes
anúncios. :E:stes eram escassos e não davam massas do povo, pIoporcionando horas de de-
para manter as estações que se apoiavam no leite a tôdas as cl \sses sociais. Maestros 01'-
idealismo dos seus diretores e dos afiêcio- questradores, com) Radamés Gnatalli, Lirio
nados. Panicali, Léo Pench, Guerra Peixe, Carlos
A matéria retribuída era a irradiaç'ão de de Almeida e algl: l1S outros trouxeram para
discos por conta das casas que negociavam os estúdios a contrbuição inestimável do seu

306
A Inesquec!vel "Orquestra dr';
Cegos ". crllnlca viva da cidade (11)
Rio de Janeiro

trabalho, elemento indiscutivelmente enobre- grupos que paravam nas calçadas, em frente
cedor da radiofonia mdonal. do antigo Cinema Palais, na avenida Rio
E essa é talvez a ~ la feição mais simpá- Branco, em cuja sala de espera atuaya o con-
tica c mais J:elevante e: 11 todos os países: tor- junto, em 1921.
nar a Arte acessível, el:l seus vários aspectos, Os "Oito Batutas" foram ao Norte, par-
soeializando-a, em um esfôrç'o con lín tiO para lindo no ano seguinte para a Europa, graças
livrá-la da tôrre de lll~:['firn em que vive, fa- à lllunificênda de um dos irmãos Guinle, Em
<:IlItando exibi~'ões n})( nas n <:crtn <:nsta dc Pal'Ís estrearam no "Seherazade", logrando
privilegiados ... êxito iJlYulgar, que se prolongou paI' um se-
mestre. Empreenderam, em seguida, algumas
excursões, voltando ao Brasil, onde se divi-
o movimcnto ren, ,yador II a musica po- c!iram em dois grupos: os "Oito Batutas" e
pular brasileira, movirllento que lhe deu au- "Os Batutas".
têntico caráter naciol1:llísta, verificou-se de Por essa época perambulava pelas ruas
maneira frisante após :\ primeira guerra. As do Rio de Janeiro uma orquestra famosa
orql1cstrás e cOJ1junto~ populares começarall1 constituída, em sua maioria, por músicos ce-
eu tão a incluir em seu, repertórios peças de gos e uma outra, conhecida como "Banda
sentido nativista, canhllldo e cxeeulando sam- Alemã". Essa última, prussianizada, com as
bas e outras coisas. suas figuras metidas em fardas vistosas, como
--Marcelo Tupinamhá lançou o seu "Ma- as bandas circenses, executava pelas ruas, de
tuto", em 1918, que cOllstituiu verdadeiro su- maneira espetacular, armando cavaletes es-
eesso no carnaval daq uêle ano. Formou-se palhafatosamente ('omo se estivessem em al-
então °
grupo dos "üito Batutas", do qt!al gum palco. Ganhou voga especialmente de-
fazíam parte Pixingulllha, Donga, Jacob e vido a um dis<:llrso de Rui Barbosa, 110 Se-
Raul Palmieri, Luiz, >~elson Alves, China e nado, que lhe traçou uma caricatura esplên-
Zezl'. O ll1ais notável executante era Pixin- dida, na alusão que fêz a certos figurões da
guinha, dljo virfuosi-mo embasbacava os "Banda Politica" ... A Banda Alemã dissol-

- :307 --
A orquestra de Eduardo. Souto,
em Terez6polls, por ocasião da
visita dos soberanos belgas ao
Brasil, em 1920. Certa manhã,
multo cedo ainda, quando o rei
e sua comitiva salram para um
passeio pelas matas, os m1isicos
brasileiros. ocultos na floresta.
executaram, de surprêsa, a em-
polgante página "A Alvorada",
de Carlos Gomes.
Alberto I chorou, emocionado e
confessou, mais tarde, que fôra
aquela, para êle, uma das mais
gratas recordações do Brasil.

v~.u-se quando o Brasil declarou guerra à Em 1927, o "Correio da Manhã" promo-


Alemanha, em 1917. ... _- .- . . ..--- "ve'ti"urri' movimentado concurso em tôrno de
Continuou, no entanto, pelas ruas a "Or- "O que é nosso" No Teatro Lírico exibiam-
questra dos Cegos", crônica viva da história se continuamenk conjuntos musicais popu-
do Rio de Janeiro. Era mais um conjunto lares. Apareceu, então, o famoso grupo dos
de cordas do que propriamente orquestra. "Tumnas da Ma lricéia", vindo dp Pernam-
Seus executantes, na maioria húngaros e po- buco, do qual falia parte o canÍnl' Augusto
loneses, deliciavam a população, especial- Calheiros, cogn0l1linado a "Patativa 10 Nor-
mente um famoso violinista cigano que se te". Os Turunas venceram o COnCur1'0 e fi-
comprazia na apresentação de árias de seu zeram época no Hio.
país, czardas e dansas eslavas. Em 1933, NE poleão Tavares, piste .. lsta,
organizou també n a sua orquestra que tri-
Um a um foram os músiCO's desapare-
unfou em estaçõei de radio, sob a denomina-
cendo; por último restavam o violinista e
ção de "NapoleãO) e os seus soldados musi-
um acompanhador de violão. t:sses mesmos
cais" .
pouco trabalharam, pois o "spala" retirou-se
- creio - para a Europa, encerrando assim Benedito Lacdda, flautista, foi o respon-
o último capítulo da famosa "Orquestra dos sável pelo conjUIl to regional que lhe adotou
Cegos". Outros grupos, no entanto, foram se () nome e se exil !e, até hoje, nas emislSoras
estruturando, especialmente com o. advento e nos palcos.
do radio. Romeu Silva organizou, em 1922, Outro conjur lo típico era o "Grupo da
o "Jazz-Band Sul-Americano", de ativa me- Guarda Velha", j 10 qual sobressaia ainda o
mória. Eduardo Andri?zzi, eximi o violinista, velho Pixinguinh~( (cujo verdadeiro nome e
formou, por sua vez, a "Orquestra Andrioz- Alfredo da Rocha Viana) e que gravou mui-
zi", que atuou algum tempo no restaurante tos discos na Vítlll', em 1930, sendo de notar
da Brahma, seguindo depois para a Europa, (f'it conhecido "O ku cabelo não nega".

em 1918. J. Tomas, que fêz parte dos oito A "Orquestra Tabajaras", que veio para
batutas, constituiu também uma OJ;questl'a o Rio em 1945, jâ ,'xistia na Paraíba do Norte,
com o seu nome, aí pelas alturas de 1930, no desdé 1935, e era ,onhecida como espedalista
teatro Carlos Gomes. em frêvos.

308 ._-
Bem vulgarizada, nt Capital, foi a "Or-
questra Pichmann ", fOr! ilada por um artista
russo que estudara em Paris, vindo para o
Brasil em princípios do seculo,
Eduardo Souto tambem teve a sua or-
questra, Compositor p:ulista dos mais ins-
pirados, nascido em San.os, trabalhou a prin-
cípio no comercio do li io e durante a noite
regia orquestras de te8 tro. Seus tangos (é
conhecidissimo o "Despi :rtar da Montanha"),
suas valsas e canções (" As Quatro Estações ",
"Canção da Saudade", etc,) são ate hoje
executadas com agrade. Em 1917, Eduardo
Souto abriu, na rua do)uvidor, uma loja de o "'GrUjlO do Louro'·, de Lourival Inácio de Carvalho,
música, a "Casa Carlos Gomes". :f:le mesmo .,
fazia ao piano, tôdas as tardes, a propaganda E' justo citar ainda a "Orquestra de
direta das músicas que i :nprimia, A "Orques- Fon-Fon ", sob a regência do alagoano Ota-
tra Eduardo Souto" erH das mais bem orga- viano Romeiro; o conjunto do pistonista
nizadas e foi escolhidr para o deleite dos Francisco Duarte, conhecido 1201' "Chiquinho
soberanos belgas, quan('o êstes estiveram em e o seu ritmo", que atuou no Rádio Clube
visita ao Brasil. em 1940; o "Grupo do Louro", de Lourival
Outra que fêz suce',so no Rio foi a "Or- Inácio de Carvalho, divulgador de músicas
questra Schubert", fun(ada em 1917 por um típicas, sendo de notar o famoso "Urubu Ma-
violinista e pianista C8 rioca, Artur Pinheiro landro"; o "Bando da Lua", que seguiu com
Schubert. Tocava de preferência em ban- Carmen Miranda para os Estados Unidos,
quetes, recepç'ões, etc, onde se exibiu em "night-clubs" e em pelí-
A mais curiosa, n( entanto, foi a "Or- culas cinematográficas; o cOi,junto "Anjos do
questra de Moças", di! Maria Luiza, uma Inferno", cujos êxitos marcantes foram "Ai,
violinista parisiense qu ~ viera para o Brasil Helena" e "Amelia ", sambas conheddissimos;
contratada pelo velho ~:errador para inaugu- os "Namorados da Lua", que atuam em fil-
rar o Palace Clube, Maria Luiza trouxe de mes brasileiros; "Quatro Ases e um Coringa";
França o seu pequeno conjunto, Terminada o apreciadíssimo conjunto de "Garoto";, a
a temporada, algumas :'iguras l'epl'essaram à Orquestra Afro-Brasileira de Cal'ater "sui-
Europa; a dirigente, n< entanto, resolveu fi- -generis" constituída de elementos negros;
car e aqui organizou, com outras figuras, o magnífico "Trio de Omo ", constituído por
novo grupo, que atuoumuito tempo no As- Dalva de Oliveira e a dupla "Preto e Branco",
sírio, antes da guerra, passando em seguida responsável pelos maiores êxitos dos últimos
para a sala de espen do antigo· Cinema carnavais, além de muitos outros que pulu-
Central, lam no Rio e nos Estados,

eompositores e [Intérpretes Ç}opufares


N Ão são poucos os adtores e interpretes da deil'a elevação. artística. Aproveità muÚas vê-
zes as toadas rurais, tornando-as, não raro,
nossa música popular,
interessantes, agradáveis ao ouvido. De ou-
Manifestação expoJ ltânea do caráter sen-
tras vêzes deturpa-as, de forma lamentável.
timental de cada povo. a música popular é Tudo depende, é claro, do talento do com-
um degrau entre a fol::lórica e a de verda- positor,

-- 309-
Veja-se, finalmente, o nosso samba que
lraduz, na musicl e na letra, \u alma do "ma-
landro" que vive encostado à porta, com um
lenço ao pescoç'~" dedilhando o violão, en-
quanto a cabroclla trabalha no "lesco-Ieuco"
das tinas e da hUl'rela. A música popular do
Rio diz bem do "egime de matriarcado exis-
tente nos morros. onde a mulher derranca os
ossos no trabalhe para poder sustentar o seu
"moreno", com t'spelhantes ternos brancos e
pasta gomosa na, gaforinhas ...
No norte, ne sul e no centro do país a
música popular:etrata por sua vez a alma
característica da, populações; a rancheira
gaúcha, meio espanholada pela proximidade
da fronteira, a "moda" dos sertões de Minas
Caricatura de );oEil HOSH, t't~itu pCJ!' ele m('~l1lO
e Goiás, molenwnte caipira e ingênua, as
canções do grandl~ rio, 110 extremo norte.
A musica popular reflete, talvez como A musica pO]Jular brasileira custou a vil'
nenhuma outra, a mentalidade emocional dos para os salões; permaneceu nas ruas por
povos. Veja-se, por exemplo, u valsa. Alíge- IllUitO tempo, per:tmbulando pelas senzalas e
ra, romântica e alegre. traduz bem aquêle pelas esquinas, surgindo espontânea nas fes-
espírito despreocupado (' folgazão da antign las comuns, tôda~. as yêzes que o povo tinha
Viena, com os seus bosques e as suas ando- o direito de se di ,'ertir.
rinhas, e as folganças às margens do Danúbio ~os interiore:., mais ou menos aristocrá-
azul. " Hoje em dia a velha cidade român- ticos, o domínio (hs músicas e dausas estran-
tica já. é outra, inteiramente diversa; por isso geiras era absolut(). Volteava-se pelos soalhos
mesmo a valsa deixou de existir. encerados ao som da valsa vienense, da shot-
Veja-se a canção napolitana, "apassio- tisch, do pas-de-qllatre, da polca, da quadri-
nata" e nostálgica, nascida da religiosidade lha, da habanera ,_~ da mazurca. ,
da "Santa Lucia lontana". " Vejam-se a se- Transplantadlls para aqui, com o correr
guidilha e o bolero espanhol, esfusiantes de dos tempos, ao cOlItacto com o ambiellte bra-
<lraca
tl • e de meneios ardentes, com aquêle "sa- sileiro, tais dansas foram sofrendo constantes
lero" inconfundível que é a própria essência alterações, como que se adaptando ao novo
da alma hispânica. clima; puro fenômeno de aculturação ar-
Vej a-se o fado: melancolicamente triste, tística.
da tristeza mórbida dos lusos, com a "sau- Hoje, temos a valsinha "brasileira", in-
dade" doentia que só existe em Portugal. .. confundivelmente nossa, soluçada nas har-
Veja-se o fox e o swing americanos: inex- mônicas sertanej a ... ou nos violões urbanos.
pressiyos e ôcos, ritmamente barulhentos co- Passou até a ser nnção ou 11l0dinha dolente
mo a mentalidade dos ianqnes, verdadeiras e romàntica.
el'Íançás grandes ... Veio depois o maxixe, conjugação da ha-
Veja-se o tango argelltino, que é Ulll sen- banera e da polca. cuja designação ninguém
tido grito de maldiçuo, emergindo continua- chegou a descobrir. ao certo.
mente dos "bas-fonds" de Buenos Aires, das \'eio depois o famoso "tango" brasileiro,
bôcas das hetairas, manchadas de cocaína. de N azareth, que nuda tinha a vêr com os
Gritos de escravas brancas qlle se "recuel'- tangos argentinos.
dan siempre de sus madres ... " como o ca- Veio, por fim, o samba que ai está até
rinho único que possuíram um dia na infân- hoje, dominante e forte, como expressão mais
cia distante. definida da alma popularesca do Brasil.

- 310-
Sofre tôdas as influênc as, deixando-se mes-
clar de elementos exóti :OS. Alicia caracterís-
ticas de rumbas, de fo.es·, de rancheiras, de
tangos. " Há até o sanha-de-breque nitida-
mente influenciado pt los "breaks" ameri-
canos.
Sua pureza pode '10 entanto ser obser-
vada nos ranchos e nrs cordões dos negros
dos morros, cujos elementos são ainda os
mesmos dos seus ances, rais, vindos de África
e aclimatados em nOSH solo.
Houve tempo em que a música popular
brotava apenas do yiolio o Como aliás, ainda
ficon tece em mui tos ca ,os.
O violão teve a su l febl'e; vindo da rua.
como o samba, entrou pelos salões a dentro,
tomou conta dêles e, 1'0 lado do piano, pas-
sou até a servir como complemento da edu-
cação de moças casad~iras oo.
Aprender violão pu'a o acompanhamen-
to de modinhas foi coi a que andou em voga,
fazendo parte do bom tom.
Surgiram revista, dedicadas especial-
mente à difusão do v; Jlão e dos violonistas.
Em suas páginas os bcadores apareciam so-
braçando os instrumelltos em atitudes artís-
ticas ...
Os recitais eram ! ['eqüentes e os teatros "SlnhO", o Rei do Samba
se enchiam de aficcio :1ados, Notáveis violo-
nistas visitaram o Brasil, contando-se entre Foi l1êle que Quil1cas Laranjeira (Joaquim
êles Josefina Robledcl, o paraguaio Barrios, Francisco dos Santos) se inspirou e compôs
Juan Rodriguez e Anl1res Segovia. suas apreciadas páginas. Habilíssimo na exe-
No violão, até hí 'je, muitos dos nossos cução do seu instrumento e ótimo professor,
compositores populartos realizam suas obras. Quincas nasceu em Olinda (Pernambuco),
falecendo no Rio, a 3 de fevereiro de 1935,
Outro notável cultor do violão foi o Si-
nhô (José Barbosa da Silva), o "Rei do
Samba". Compositor popularissimo das ro-
das boêmias do Rio, Sinhô tocava também
cavaquinho e flauta. Acabou pianista, vi-
vendo do piano o Faleceu tuberculoso e sufo-
cado por atroz hemoptise, em uma barca da
Cantareira, quando vinha da ilha do Gover-
nador.
Eximios no violão foram ainda Américo
J acomino, de São Paulo, conhecido como o
"Canhôto '.', também vitimado pela tuberculo-
se; Sátiro Bilhar, autor de meia dúzia de
o 'o Trio de Ouro ", const' tu!do por Dalva de Oliveira
, e oe c'oul'la ,reto e branco peças interessantíssimas, como "Gosto de ti

311 -
vale a citação d~ nomes como os de Jose
Augusto de Frei! 1S, mineiro e professor de
música; DilermaJ,do Cruz, um dos mais per-
feitos executores, atuando continuamente em
nossas emissoras Lourival Montenegro, de
Pernambuco; Ewtórgio \Vanderley, recifen-
se, autor de músi~as e letras de canções in-
fantis; Rogério Glimarães, de São Paulo, ver-
dadeiro talento atístico e virtuose de quali-
dades' quase que insuperáveis, autor de pá-
ginas violonísticas das mais apreciáveis; Hen-
rique Britto; Hen'ique Beltrão, compositor e
executante respeiLlvel; Olga Praguer Coelho,
recitalista de rep _~rtório internacional; J esy
Barbosa, cantora ,Ie folclore, filha do Estado
do Rio; Mozart Bi:alho, de Minas Gerais, um
dos mais típicos { encantadores troveiros do
nosso sertão, auto' de inúmeras composições
freqüentemente ir] adiadas pelas nossas emis-
SOl'as; Catulo da ;Jaixão Cearense, o "poeta
do sertão", muito mais poeta que musicista,
e que conseguiu popularizar inúmeras valsas,
polcas, shotishs, trias de óperas, além de
canções nacionais !' estrangeiras para as quais
escrevia letras de "modinhas". Nascido no
Catulu Cç'Cll'E-n!:i0) u "Poeta do Sertão"

porque gostO ... ", "Espalha poeira", etc. e o


notável Noel Rosa, êsse rapaz que faleceu
tão jovem e que tanto entusiasmou as cama-
das cultivadoras do samba.
Noel era, de fato, um tipo de boêmio
incorrigível, com acentuada veia poética e
um espírito personalíssimo, impregnado em
tudo o que compunha. Nasceu em 11 de de-
zembro de 1910 e faleceu em maio de 1937,
na mesma casa, uma casinha de subúrbio na
rua Teodoro da Silva, em Vila Isabel. Foi o
criador do chamado "samba conversa", que
logrou voga. Cantava especialmente o seu
bairro, em composições ligeiras e de real
encanto. "Com que roupa ?", o "X do pro-
blema ", "Palpite infeliz ", "Pierrot apaixo-
nado", "Conversa de botequim", contam-se
entre seus êxitos, sem falar na famosa "Pas-
torinha", que alcançou o primeiro prêmio
em um concurso de músicas populares rea-
lizado pela Prefeitura, em 1938.
Muitos são ainda os que se dedicam com
ardor ao virtuosismo do violão. Dentre êles A compo,ltora po -ular Chlqulnhn Gonzaga

- 312-
Maranhão veio, pequeno :Iinda, para o Rio c
nunca mais saiu daqui, al ~ morrer, em 1946.
Seu estI'O era inconfu.ldivel, originalissi-
mo, o que lhe valeu a desl gnação de "criador
da poesia sertanej a", atn' vés de poemas en-
cantadores, obras de pur 1 imaginação', sem
nenhum contacto com a "ealidade.
A embolada "Caboc], de Caxangá", que
constituiu um triunfo de,; nossos carnavais.
os vários desafios e as famosas modinhus,
que escreveu, garantem-Ih, de fato, lugar d~'
relêvo entre os nossos compositores popu-
lares.
Compôs os versos de "Luar do Sertão",
êsse canto conhecidissimo no Brasil, arranjo
de João Pernambuco ou\ l'O notável violonis-
ta, sôbre uma melodia antiga das velhas
canções de engenho, o dl Humaitá.
Sôbre uma marchinh 1 de Catulo, compos
Villa Lobos um dos se'lS mais admiráveis
"Chôros", página viva e exuberante de sen-
timento nativo, dessa atcil'doante explosão de
alegria que é o carnaval carioca.
Como compositores populares, fora do
grupo dos violonistas te ma-se indispensável
a citação de alguns nom;s, dentre os muitos
que até hoje trabalham produzindo peças de
mérito,
Quatro dêles se destacam de maneira Pattapio, o famoso flautlsta
iniludível: Chiquinha C; onzaga, Calado, Pa-
tápio e Tupinambá. l'eiro de 1935, De uma expontaneidade fácil,
Francisca Gonzagalasceu no Rio, a 17 suas composições - valsas, quadrilhas, pol-
de outubro de 1846 e Llleceu a 28 de feve- cas, maxixes, tangos, etc., faziam verdadeiro
furor, Não havia moça pianista que não to-
casse as músicas de Nazareth e Chiquinha
Gonzaga.
A compositora pertencia ao magistério,
tendo estudado música durante algum tempo.
Compôs ainda partituras para revistas, tais
como "Forrobodó", "Juriti", etc. O "Abre
Alas '" e o "Corta-j aea" obtiveram larga re-
percussão.
Joaquim Antônio da Silva Calado nasceu
no Rio em 1848 e faleceu em março de 1880
aos trinta e dois anos de idade,
Estudou piaIlo e flauta, tendo se tornado,
nêste último instrumento um virtuose dos
mais perfeÚos, o que lhe valeu ser contrata-
JU[i.quim Calladc músico PÚPllhil'
dos mais -·onl1ec'idos do para professor no Conservatório, em 1870.

- 313-
famoso tanto em seu Estado natal como cm
Minas Gerais.
Vindo para o Riu. ingressou 110 Instituto,
onde fêz curso brilhante. Chegou a tomar
parte em uma prova para professor, não 'ten-
do logrado êxito. Decidiu então ir à Europa;
como não possuísse H'cursos intentou excur-
sionar pelo Brasil, dando audições, a fim de
conseguir o numerário indispensável,

o popular!ss!mo Anacleto de Medeiros

D. Pedro II, encantado com a arte de


Calado chegou a lhe conferir a Ordem da
Rosa.
As composições de Calado eram em geral
ltmdus, valsas, polcas e quadrilhas, que (\le
executava nas boas noites de serenatas, ee\'-
cado de uma enorme roda de hoêmios.
Outro flautista de mérito foi Patápio
Silva, nascido na Vila de Itaocara (Estado do
Rio). Viveu em Cataguazes. Suas aptidões,
em alguns instrumentos de sopro, o fizeram
Enrique Vogelér, um dos 'tlais festejados compositores
de nossa 111 I~ica pOpllJfl.l'

Nestas excursões II morte o colheu, em


Florianópolis, em 24 (;e abril de 1907, não se
sabendo ao certo o ql!e o vitimou.
Marcelo TupinamJ ,á era o nome artístico
de Fernando Lôbo, Hdotado em virtude de
ser êle um engenheir(, conhecido ...
, Nascido na cidade paulista de Tietê, tor-
nou-se mestre de banda e pianista de valor.
Formou-se em engenharia em 1916 enquanto
estudava música, compundo páginas regionais.
Em sua obra, aUm de numerosas can-
Ari Barroso, em :K"oya York, ladeado pelas ;;:\f1randa
SlHers" : Carmell e Aurora) ções de sabor popular destacam-se os "Tan-

-- 3.14 -
guinhas", em (luas j):!J'les, de ]ltll'O nspccjo
iertanejo.

Anacleto de Med( iros era filho de Pa-


quetá, a "pérola da (ruanabara", onde nas-
ceu em 1866. Estudou no Conservatório tendo
se tornado exímio eXf!cutor de instrumentos
de sôpro.
Organizador conci encioso de bandas mu-
sicais, é conhecida SU:l atuaç'ão na do Corpo
de Bombeiros, institllida por êle mesmo em
1896,
Anacleto faleceu I~m 1907,
.Tollber! dt' CarulI/ho médicu e wmposi-
tor, escreveu LIma séde apreciável de can-
ções, muitas das qUl! is são pequeninas 1'0-
manzas como a "Li~'iio da Tabuada", e a
magnífica página calc:lda sobre o famoso so-
neto de Bilac: "NuI1( a morl'er assim, num
dia assim","
lTltimamente, Jou!Jel't de Carvalho estu-
da música, com dedu~ ado carinho, procuran-
do o rumo da arte ekvada, na qual se pro-
Dorlval Ca,'mi, autor de "() que ê que a hai~na tem", ..
põe a realizar obra dlradoura e séria.
Francisco Freire ,Júnior nascido em San-
Henriqlle Wugeler, também do Estado do
ta Maria Madalena, lia Estado do Rio, teve
Rio, faleceu em 1943, Compôs inúmeras can-
a sua vida de compo,itor popular ligada ao
ções, tendo alcançado larga repercussão o
teatro, para o qual c1lmpôs inúmeras parti-
"Ai Ioiô".
turas de revistas e burletas. Suas canções
mais famosas são "luar de Paquetá", "A Ari Ba/'roso é, por sua vez, um dos mais
beira mar", "Recorda!1do o Passado", "San- populares compositores dos mei< IS 1 adiofô-
ta", etc. nicas e musicais do Rio. Escreveu para tea-
Antenógenes Silve; foi autor de valsinhas tro de revistas, além de apresentar vasta ba-
do sertão, em acorde&o. gagem de peças avulsas.
Sua "Na Baixa do Sapateiro" passou as
fronteiras e se tornou popular nos Estados
Unidos, tendo sido aproveitada por Walt
Disney em um de seus desenhos animados.
f
Visitando a América do Norte, Ari Barroso
1 passou a ser figura familiar dos ianques,
vendo suas músicas recebidas com todo o
agrado.
Há também o poeta Paulo Gustavo que
escreveu poemas musicados (valsas, canções,
etc. ), gravados e largamente conhecidos, co-
mo, por exemplo, "O amor é mesmo assim".
Gastão Formenti, Dorival Caymi e Waldemar Henrique
Intérprete
român Uco das são dois nomes dos mais acatados e mere·
canções brasileiras
cedores de admiração pelo espírito de suas

- 315-
Guslão FOl'men!i, cantor de r~conhecida
probidnJc, viria da:, mais finas organizações
de artista que tem passado pelas emissoras
cariocas; Slefana Macedo, que fêz nome na
época em que atua va, desaparecendo em se-
guida; o famoso "Trio de Ouro", constituído
por Dalva de Olheira e a dupla Preto e
Branco; Francisco .4lves ou "Chico Viola",
cognominado o "Rei da Voz"; Orlando Silva,
também chamado o "Cantor das Multidões";
Carmen Miranda, :t estupenda criadora de
tantas canções quen tes e lascivas, a "baiana"
endiabrada, a "bonibshell girl" dos america-
nos, que fêz numel'oso pUblico nos "night-
clubs" de Nova YOJ'k, chegando a ser estrêla'
de cinema, em Hollywood; Aurora Miranda,
Carmen :\!irantla, divulgadora da nossa ml1sica popular
nos Estados Unidos irmã da precedentc', também intérprete de
sambas, venceu na América do Norte, onde
compoSlçoes, O primeiro é baiano e autor de posou para "Os tI'és cavaleiros", de \Valt
páginas notáveis como "O mar", "Promessa Disney; Arací de Almeida, cantora típica de
de pescador", "Lagoa de Ab~eté", "Dora" e samba-canção; Jor{/e Fernandes; Sílvio Cal-
"O que é que a baiana tem?" tão vulgarizada das, inexcedível como cantor de modinhas;
e conhecida em vários países das Américas, Augusto Calheiros, n "Patativa do Norte", voz
verdadeiro êxito consagrador de Carmen Mi- cheia de brasilidade; Carlos Galhardo, Alber-
randa, nos Estados Unidos, tinha Fortuna, Pedi o Raimundo, cantor tipi-
O outro é autor de canções da Amazônia COi Bob Nelson, o ~ow-boy do nosso radio;
popularizadas no Brasil pela interpretação de Silvino Nela; Murara; Rui Rey; Dilu Melo,
Mara, Suas páginas, "A Cobra Grande", "Tem compositora e intérprete folclórica das mais
bôto, sinhá" e outras si;lo, realmente, de sa- notáveis; Manequinúo Araújo; Estelinha Egg;
boroso espírito regionalista, as irmãs Batista (Linda e Dircinha); Emiti-
Como compositores de sambas, marchas, nha Borba; Marílill Batista, que interpreta
etc, grande é atualmente a lista de nomes, como poucos os sambas de Noel Rosa; Ma-
Mário Lago, Erivelto Martins, Lima Pesce, rilu; Laurinha Garcia e muitos e muitos
Antônio Nássara, Frazão, Lamartine Babo, outros,
Zequinha de Abreu e outros, muitos outros, Vêm, por fim, C's cantores do gênero cai-
são conhecidos e desfrutam simpatias do pú- pira. Atuam, em gl'ral, em duplas como Al-
blico, varenga e Ranchinho, Jararaca e Ratinho,
Quanto aos intérpretes, o grupo é tam- etc .. , divulgando emboladas e desafios pró-
bém numeroso, Citemos ao acaso: prios dos nossos sertanejos.

• • •

- 316'-
A
r
I
t
~

I
I,
"8(1(fet " no Sflun~o e no Ç}Jrasi(

creye é o "Diário Fluminense", quc aproveita


o registo para um engrossamento ao impe-
rador D. Pedro r, procurando salientar "o
interesse que o mesmo tomava pelo desenvol-
seus realizadores terreno yimento das artes no país".
dos mais favoráveis no Tal interesse residia, porém, nas dansa-
bom gósto do público In'asileiro para esta rin as e nos "exercícios coreograficos" ...
esplêndida manifestaç'ão de arte. A dansa é, Não só o Bragança como o próprio pu-
a rigor, congênita em i 10SSO povo. Desen- blico dava preferênc.ia às "tres gentilIes" fi-
voltura e graça não lhe faltam, como já o gurinhas de francesas; chegaram a formar
têm demonstrado as p' 'ucas figuras inteli- partidos com os adeptos das discípulas de
gentes dos escassos curf,<)S de "ballet" exis- Terpsicore.
tentes em nosso pais, (, que não existe no Quem lucrava com isto era o empresario,
entanto, é compreensão do problema e o coronel Fernando José de Almeida, pois os
conseqüente estímulo, tanto por parte do espetáculos tornaram-se concorridíssimos ...
govêrno como de empre'lários particulares, Pouco depois vinha para o Brasil, dire-
Mesmo assim é dos mab promissores o mo- lamente do São Carlos, de Lisboa, outra com-
vimento que se está esboçando, no Rio e em panhia que se apresentou no teatro do Rocio,
São Paulo, para a organ ização definitiva de tendo à frente Luiz Montani e seus filhos.
amplos cursos de dansa, Esse eru, sem dúvichi' alguma, artista eclé-
A mais recuada noticia de bailados ar- tico: dava espetáculos de dansa, de drama e
tísticos no Brasil é a de l de j unho de 1826, de comédia, além de ser ainda compositor de
data em que estreou, no ~,ão Pedro de, Alcân- música. Escreveu, de fato, partituras para
lara, uma companhia Íl':lllcesa, da qual fa- muitos bailados apresentados nas peças da
úam parte TOllssainl, SlI:1 espôsa Louisc Fla- t'olU]Jonllin, q1le era flirigida pOl' .Tono Cae-
eHUX e lVIadame Boul'doll. Quem no-la des- lano.

- 319--
a apresentar os mdefectíveis números das
óperas-bailes.
Em 1895 há notícia da bailarina Ida Ful-
ler, que esteve no Rio, tendo estreado no Lí-
rico a 9 de setem :)1'0, com a "Dansa serpen-
tina" .
Em 1904, por(m, apresentou-se ainda no
Lírico a "legitima Loe Fuller", porque, tem-
pos antes, se apre~entara aqui "outra artista
com o seu nome", conforme rezam as crô-
nicas. Devia ter ,ido a dona Ida ...
Loe Fuller exibiu-se na "Dansa dofôgo".
Era americana, nascida em Fullsburg, pró-
ximo de Chicago. Daqui seguiu para Paris,
onde residiu até falecer de gripe pneumôni-
ca, em 1928.
Foi em 1917, quando ainda os exércitos
M~,scara mortuRrla d. Dlaghllev. talavam os camr ns europeus, na primeira
Grande Guerra, q Ile o Brasil conheceu, pela
primeira vez, o autêntico bailado russo,
Esteve também no Rio o bailarino José
transportado parn o Teatro Municipal, do
de Vecchi, que aqui se casou com a atriz
Rio, por seu próp do criador, Sergio Diaghi-
dramática Gabriela da Cunha. Dêsse consór-
lev. f:sse realiza('or, de gênio incontestável,
cio nasceram dois outros artistas: Ludovina
era, 110 principio (lo século, simples secreta-
e Manuel, ambos falecidos l}lOÇOS, qnando
rio de administra.·ão dos Teatros Imperiais,
ainda muito era de esperar de suas aptidões.
da velha Rússia (' ~al'istn;
No segundo império, quase tôdas as com-
panhias líricas traziam os seus bailarinos, já
que não podiam pensar em encontrá-los aqui.
No bôjo dessas "troupes" de cantores vi- .
nham, às vêzes, bons elementos. Está claro
que todos êles eram italianos e se exibiam
nos momentos de baile, marcados no entre-
cho das óperas.
Em 1886, no entanto, aportou ao Rio uma
companhia de bailados, assim mesmo italia~
na. Nela figuravam três bailarinas famosas:
Lambati, Lunido Giovannini e E. Zambelli.
De tôdas as peças apresentadas a que mais
êxito alcançou foi o bailado "Excelsior", do
maestro Romualdo Marenco, cuja estréia, ha-
via cinco anos, constituíra um triunfo no
Scala, de Milão. Tinha seis partes c doze
quadros, exigindo grande número de exe-
cutantes. As três famosas bailarinas incum-
biam-se dos papéis: "A luz", "A civilização"
e o "O obscurantismo".
Com a pl'odumuçàu da repúbliea o inlc-
l'ésse pelo hailado diminuiu sensivelmente,
ronlinualHlo a:-; l'Ol11ptUlhias líricas italianas An:t PavlOWil. na ": arte <lo Cl~lW". ile íi!ó\lnt' Sael)~

-- 320-
Grupo de b: ilarinas do corpo de bailados do Municipal. em um momento ele ensaio.

Nobre de nascimenl,), trabalhava com o Lria uma revista artístico-literária: "O Mundo
príncipe Serge Volhonsky, diretor da orga- da Arte", agrupando nela todos os valores
nização, redigindo os ,. Anais", dos teatros .. artísticos, que iniciaram o movimento de
Decidido a reerguer o 'BaIle! Imperial" do renovação no dominio da Arte russa. A in-
marasmo em que jazia, cuidou, com todo'o fluência dêsse movimento é portentosa e in-
carinho, da criação de J lúmeros novos, obe- calculável. Diaghilev edita a sua revista lu-
decendoa um "modernv espírito estético"; xuosamente; organiza as famosas exposições
Teve, nêsse trabalho, a e,)laboração do pintor de pintura dos jovens e talentosos artistas
fora do rígido cenáculo acadêmico; atrai ao
russo Alexandre Benois: preparou, então, o
movimento músicos notáveis no domínio do
bailado "Silvia", de Deli')es.
ballet, como a síntese das várias artes
Não lhe foipossÍvr 1, porém, vencer a dansa, música, pintura, poesia".
rotina da burocracia do império nem a hos-
tilidade que o despeito armara contra êle. Com o seu gênio realizador, Diaghilev
Acabou pbr ser demitido dos Teatros Im- atraiu de fato figuras inesquecíveis, como
periais. Michel Fokin, coreógrafo dos mais inteligen-
tes, Nijinsky, o expoente máximo da dansa
O veneno da Arte estava, porém, ino- clássica e Ida Rubinstein, dama riquíssima.
culado em Diaghilev que prosseguiu ~m suas que resolv.eu amparar a emprêsa. Porque Dia-
tentativas. "Por essa épc1ca - escreve Pierre ghilev tinha. um extraordinário poder per-
Michailowsky, notável bdlarino russo - êle suasivo.

- 321
'~:mais amplas as c.lracteristicas dos seus bal-
lets aceitando a tolaboraç-ão de Massin, cre-
senhista, bem com,) a do pintorPicasso e a do
l'enovador da mú,dca, Igor Strawinsky, E,xi-
bem-se, então,' p"ças espanholas, italianas.
[checas, etc, Finnlmente, em 1921, O ballet
atingiu a uin grau de expressividade iniludl-
velmente univers~:[, Além de Nijiilska (irmll
de Nijinsky), Kanavina e Balanchin, ingressa
natroupe de Diai..:hilev, o gênio moderno da
dansa: Serge Lifr I',
Com osperkdos turbulentos das Artes,
onde as correntes se traduziam em "ismos",
especialmente em França, sofreu o ballet a
influência do mo' Ímento "modernista". Com
êle, embora oble;ldo certos triunfos, diluíu-
S(~rge Lifar, celebri<1u.d~ univer~31. nü haiJAdo
"La chiromante 'l se, de certa manei l'a, o espirita da dallsa clás-
sica. Mas as ino\ ações pouca duração tiye-
"Várias vêzes descrito - diz J, Sazonova ram e o vercladeiril hallet cIassiro voltou para
o gênio de Diaghilev continua indescrití- a satisfação das j;[aléias,
vel, f:le não era profissional em nenhuma
arte, e em tôdas êle imprimiu um profundo
sulco, Forj ava as suas obras de arte através
das almas dos outros: êstes, acreditando ser
livres, foram na realidade, guiados por êle, , ,
Dispunha os talentos ao redor de si, como um
regente disp9,e.!)s músicos de sua orquestra",
Com tais elementos, Diaghilev apresen-
tou, em 1909, os Bailados Russos, em Paris,
Serge Lifar, o grande bailarino que o
Brasil já teve a ventura de conhecer, escre-
veu, certa vez, estas palavras: "Diaghilev so-
nhava com uma renovação das cenas impe-
riais russas, f:sse sonho não foi realizado e
êle se viu obrigado a resignar o seu pôs to ,
Não obstante, em 1909, Diaghilev organiza a
primeira "saison" dos Bailados Russos no es-
trangeiro e", conquista o mundo inteiro",
Os bailados russos revelaram, na arte. da
dansa, "um mundo que ainda. ~ão . estava
'descoberto, , , "
A princípio, os baIlets apresentaram pe-
ças russas e francesas, clássicas ou românti·
cas: "Dansas Polovtzianas", "Schérazade",
"Pássaro de Fôgo", "L'apre"S~midi d'Uri fau-
ne", "Silfides", "Spedre de la' rose''.- etc.
Michel Fokin fazia as cenografias e .Ana
Pavlowa e Waslaw Nijinsky exibiam. neles
sua arte positivamente divina, Após a Gr.an- Grupo de elemento, de ballet, posanelo em uma da" '.
,-arandas do Tea!! Munieipal, do RiQ de .Janel]'o.
de Guerra, porém, Diaghilev çonsegúe tornat' Ao fundo UI11 ]O ,;nel executadü' el11 lad·]'illlos.'
o público deliruu, A apresentação era
'luxuosissima, com cenários de Alexandre Be-
llois,' Leon Bàkst e Loríonoff, notáveis pin-
lores russos. As partituras cr'am de Stl'ÍI-
wÍlIsky, Ravel, Rimsky-Korsakof, BOl'odi l1e,
Scarlatti, Schumann, Chopin, Weber e De-
bussy. Pela primeira vez a platéia brasileira
extasiou-se com o deslumbramento do "1'ai-
seau de feu", "Daphnés et Chloé", i'Schéra-
zade", "Le spectre de la rose", "Les femmes
de bonne humeur", "Cléopatre", etc.
No ano seguinte, ao findar da guerra,
,..
visitou-nos, também pela primeira vez, a fi-
gura excepcional de Ana Pavlowa, que es-
treou no Municipal a 4 de maio de 1918.
Nascida em S. Petersburgo em 1885, aos dez
anos, ingressou no Teatro Marynski, estrean-
do. em 1901., Em Londres,. criou,. certa. vez,
"A Morte do Cisne", sobre música de Saint-
Saens, verdadeiro sucesso em tôda a sua car-
reira. Faleceu em Haia, em 1931.

Maria Olenewa, orl,ent.", ra dn ERcola de Bailados, no


nio e em Silo Paulo, CI11 111" demonRtra~i\o coreográric"

o culto das antig;lsformas clássicas foi


sempre a preocupação dominante de Diaghi-
lev, que expirou em 1F29, após vinte anos de
realizações esplendenl' s.
Serge Lifar tomol' a si o encargo de re-
organizar o ballet na (}rande Ópera e o con-
seguiu de maneira br lhan te, Suas criações
são das mais notáveis, bastando a citação'de
uma única, "ícaro", v'!rdadeira obra prima,
já B:plaudida pelo nos'o público.
'Na Inglaterra, na Alemanha, em ~~onte
CarIo, nos Estados Tnidos, no Brasil,: em
tôda parte, o ballet ê ltualmente merecedor
do carinho dos continuadores da obra de
.Qiaghilev.
Quando veio ao Br:tsil, pela primeira vez,
em 1917, a companhia do genial russo trouxe
como primeira bailarina Lidia Lopokova, Leo-
nide Massin e êsse extraordinário Nijinsky,
quep'ouco depois era internado em unl sá-
Madeleine Ra_a)', tal como aparec.e no balJado h\1mor!.,
natól'io, completament, louco. tlco UChamêgo", d'e Luiz Gonzaga

- 323-
~lade!elne Rosay, notáH!
bailarina brasileira

Ana Pavlowa esteve ainda !lo Brasil em de Ana Pavlowa. J:rn nosso país exibiu sua
1919 e lH28, deixando de sua passagem lem- arte de maneira iml'ccável e, ao contacto com
branças inesquecíveis. elementos nacionaif. vislumbrou logo a ten-
Veio também até nós a grande bailarina dência iniludível d(,~; mesmos para o desen-
americana Isadora Duncan, nascida em São volvimento de uma ,'sl'o!a de dama no Bt'asil.
Francisco, em 1877, e vitimada em 1927, em
um lamentável desastre de automóvel.
Muitas outras figuras do ballet universal
fizeram temporadas gloriosas, no Rio e em
São Paulo.
Nijinsky voltou com sua companheira,
Karsavina; veio também Antonia Mercê (La
Argentina); Clotilde e Alexandre Sakaroff,
Norka Rouskaya, Sai Sh~ki, além. de dois ar-
tistas que aqui se radicaram, de incontestá-
vel merecimento e de alta relevância no
mundo coreográfico: Pierre Michailowich e
Vera Grabinska. Esta organizou e dirige até
hoje, com pleno êxito, uma escola de teatro
e bailado infantis.
O movimento do ballet, em liosso país,
encontra atualmente seu ponto culminante
nas escolas de dansa no Rio e em São Paulo.
No Teatro Municipal da capital da República
uma figura se impôs, na diréção e organiza-
ção do corpo de baile estável: Maria Olene-
wa. Nascida na Rússia, cursou a Escola lni-
perial da velha São Petersburgo, Veio para
~iade!eine Rosa}' em 'ua interpretação de
(1 Brasil como primeira bailarina do Ballet "Tico·Tico no tul: ", de Zêquinha de Abreu
Sllas alividades eU'olltraram ensejo para Vítima de contínuas injustiças, viu-se.
yúrias aplicações, Chegou mesmo a dirigir, por fim, apanhada nas malhas de um pro-
~w lado do atol' Pinto ':~ilho, uma companhia cesso irregular e iníquo, que acabou por
de grandes revistas, n., teatro Fenix, Conse- afastá-la de suas funções, De nada lhe vale-
guindo, por fim, fund!) . a sonhada escola no ram, diante da incapacidade intelectual e da
Teatro Municipal, anin ada de estranho idea- mediocridade administrativa, o seu passado
lismo, lutou tenazmenk contra os óbices que de sacrifícios e de lutas em prol da sua obra.
lhe surgiam constantt mente, frutos da in- Em 1942, foi convidada para o lugar de
compreensão e da pró )l'ia mediocridade bu- "maitre de ballet", do Teatro Municipal de
rocrática. São Paulo, vago com o afastamento de Vas-
A ela devemos, co ltudo, a vitória de ter la\' Yeltchek. que terminara o seu contrato
plasmado os elementos [ue ainda hoje ocupam justamente naquêle ano,
os primeiros postos n I cena brasileira, Os A escola de bailados do :\Iunicipal de São
frutos de seu trabalho meritório e único, en- Paulo havia sido criada em 1940, sendo a
tI e nós, aí estão concrAizados na plêiade de sua dil'eçào entregue àquêle bailarino, an-
dansarinas como Made ,eine Rosay, Leda Yu; tigo dirigente do Teatro ChateIet, de Paris,
qui, Tamara CapelIer, Vilma Lorna e tantas ~os dois anos em que Veltchek orientou os
outras. São elas o' sonI o de Olenewa tornado trabalhos, os resultados foram os melhores
realidade, possíveis, o que \'em atestar a tendência da
, O entusiasmo que a grande artista sem- juventude brasileira para a dansa clássica,
pre emprestou às ini, iativas empreendidas A estréia, logo no primeiro ano, foi das
trouxe-lhe, no entanto, inúmeros desgostos, a mais auspiciosas, realizando-se com um pro-
par de momentos de g 'ande satisfação, grama em que figuravam quatro bailados:

Cor.eografla d ~Iar!a Olenewa para o hailado "Tmbapara", de Lorenzo Fernândez, Realizaç~o


dos corpos estáveis do Teatro )Iuniclpal, em 193~, "
de Francisco Migno1,e; o "Imbapal'a" e o
"Amaya" de Lorenzo Fernálldez.
f:ste último foi aJ ,resentado em S. Paulo,
em um dos primeiros !'ecitais organizados por
Maria Olenewa, em um programa em que
figuravam "A Dans~ das Horas", de Pon-
chieHi, "No Reino (as Crianças" e outros
"divertissemen ts" .
O sucesso foi tal ilue o Departamento de
Cultura viu-se obrigl:do a repetir o espetá-
culo quatro vêzes COD iecutivas.
Atualmente, a esc ·)la de Olellewa, em São
Paulo, conta com sew trezentos alunos, sendo
contínuos os triunfo,· obtidos. Destacam-se
entre elas a jovem ba ilarina Pauline Goddar,
integrante do Ballet de MonteCarlo; Marilia
Franco, do Original Hallet Russo; Edith Pu-
deJko, primeira bailal ina; Doris Dawson, pri-
meira solista: Sonia i-Iamilton, Lia Marques,
Dorinha Costa e Marilena Medina. Do naipe
masculino salientam-oe Raul Dubois, Decio
Stuart, Bráulio Miran da e BasH Kiritchenko.
No Rio de Janeiro, a Escola de Baile do
Teatro Municipal, se não foi vítima de um

Leda Yuqul, afirmação de granae yalor artístico


em nosso "ballet"

"Chopiniana" (versão das "Silfides"), as


"Dansas Eslavas", de Dvorak, o "Espectro
da Rosa", de Weber e o "Bolero" de Ravel.
Em apresentações sucessivas novos espe-
táculos coroaram os esforços de Veltchek que,
ao lado de elementos contratados, como Ale-
xander Yolas, integrante do Ballet de -Monte
CarIo, Juliana Yanakieva e Yuco LincÍberg,
exibiu os seus alunos em números como
"Festa Galante", de Lully, "A noite das Val-
purgis", da ópera "Fausto", de Gounod e
"Uirapuru", de Villa Lobos. .'
Já vimos como os compositores brasilei-
ros, à frente dêles os "três grandes", produ-
ziram páginas de notável elevaç'ão artística,
tais como o "Uirapuru", o "Amazonas", o
"Juripari" e o "Mandu-Çarará", de Villa
Os noivos pretlnnos do J umba-meu Boi, apresentado no
Lobos; o "Maracatu dQ Chico Rei" e o "Iara" bailado "lara", le l!~l'ancisco Mlgnone

-S26 -

'.'~
cólapso com a saída di Maria Olenewa, so-
freu contudo frisante s, .lução de continuida-
de. Teve, assim mesmo dias áureos durante
a permanência de Igor Schwezoff. Olenewa
deu aos burocratas da : 'refeitura a ilusão de
que já podíamos contai com uma organiza-
ção estável, capaz de alldar por si mesma ...
Sem ela, porém, a ilus io se desfez. Outras
figuras contratadas nãi lograram manter o
clima de entusiasmo q'le sempre reinou no
Municipal, nos bons empos da dirigente
russa.
Pensou-se e pensa-s~ ainda na criação do
bailado brasileiro. QUt isto é possível, não,
resta duvida a ninguéll; falta-nos, todavia,
o senso de aproveitame Ilto das oportunidades
e a técnica da organiza(' io, pois compositores,
cenógrafos, poetas e figurantes não nos
faltam.
Uma coisa, porén, acima de tôdas, é
responsável pelo contíliuo fracasso das nos-
sas iniciativas artística~,: o falso patriotismo,
êsse sentimento inopera Jte que se ergue sem-
pre em demonstrações 'nócuas de puro "ufa-
nismo"" ,

Igor Schwezoff, tal como aparece em "Luta Eterna"


bailado de ~U!1 autoria com nl'l~i~a de Rel1umann

A exemplo do tiue Balanchine e Wladi-


miroff realizaram em New York, com o
"American Ballet", Chabelska, no Uruguai, e
Rostoff, no Peru, nós também poderíamos
apelar para fíguras do ballet internacional
que, como Maria Olenewa, viriam operar o
milagre do "Ballet Brasileiro",
Infelizmente o jacobinismo artistico a
isso se tem obstado. Oportunidades não nos
faltam, Yurek Shalelewsky, dansarino polo-
nês, aqui esteve e tentou criar uma escola de
dansa no Brasil, o próprio Vaslav Veltchek
chegou a realizar, no Rio, em 1943, uma tem-
porada oficial, apenas com dansarinos nacio-
nais; Juliana Yanakieva aqui permaneceu al-
guns anos sem que se lembrassem de a con-
tratar para cometimentos sérios; vieram tam-
bém Nini ,!'heilade, Gert Malmgrem, Ruth
Edith Pudellw, uma 11'18 mnis tentado"". figuras
do BaIle da Juventude Sorrell que, nada conseguindo, regressaram

'- 327 -
Tão not8vel er; o talento de Madeleine
Rosay que, com a idade de onze anos, foi
convidada para inkgrar a troupe de ballet,
do. Municipal; aos treze era solista e aos
quinze, primeira bai [arina.
Atualmente é cmsiderada pelos críticos
e baletomanos uma das maiores figuras in-
ternacionais da dalisa classica. Tal posição
não é devida apenlS à notavel habilidade
técnica com que ela perlustra o vasto reper-
tório de músicas dI' ballet, consagradas em
todo o mundo, mas também pela familiari-
dade como se liga à chamada folk-dansa
brasileira, cujos nt meros tem apresentado
com êxito invulgar.
Em 1939, a Prefeitura concedeu a Made-
leíne Rosay uma bô lsa de viagem para que
ela pudesse estudar [la Europa. Mas a guerra
estourou justamente nêsse ano e a artista só
veio a gozar o prêJllio em 1946, transferido
que fôra para os E:, tados Unidos.
Madeleine Rosa: incarna hoje a figura
maxima no ballet Illccional, tanto por seu ta-
Berta R08anova, Tamara Capeller, Lorna Ray, Jaq~leline
I:~)'mond e ,Vil-on :\Iorelli, em "As Silfides", ele Chopin. lento interpretativo como pela graça envol-
eBallet r1a TU\'êutllde).
vente dos seus mo :imentos. Suas criações
brasileiras são espec i almente as do "Uirapu-
aos bastidores; em 19·14 aportaram ao Rio
I'U", de Villa Lobos, do "Batuque", de Alberto
Tamara Grigorieva, Tatiana Leskova e Ana
Nepomuceno, além las peças de folk-dansa,
Yolkova, cuj as atuações em nossos palcos fo-
como "Tico-tico no f'ubá", "Frêvo", etc.
ram das mais notáveis. Como a época dos
nacionalismos estultos já passou, é possível
no entanto, agora, iniciativas louváveis nêste
sentido.
Como se não bastassem as figuras estran- Em 1942, a llnif;o Nacional dos Estudan-
geiras, temos dentro de casa essa encantado- tes tendo à frente d,J seu "Departamento de
ra artista que se chama Madeleine Rosay. Arte", o acadêmico :..,. Castelo Branco iniciou
Nascida no Rio de Janeiro, em 1923, filha um trabalho louvávd em prol da difusão da
de pais poloneses, naturalizados brasileiros, dansa, estimulando-;l nos meios universitá-
seu verdadeiro nome é Magdalena Rosenz- rios. Dois anos mai~ tarde, em dezembro de
weig. Aos nove anos de idade entrou para o 1944, foi realizado 11lll festival, no Rio, sob
curso de dansa do Municipal, revelando-se a orientação de Vasiav Veltchek com a par-
aos olhos de Maria Olenewa como uma ten- .
ticipacão de várias figuras do Ballet Russo,}

dência de fortes características. Seguiu o então entre nós. (1 amara Grigorieva, Ana
curso durante dez anos, até 1942, quando Volkova, Tatiana I eskova, Lidia Kuprina,
aquela dansarina russa se retirou da direção etc.) .
do corpo de baile. Já no ano seguir te, sob a direção de Igor
Em breves intervalos estudou ainda com Schwezoff, o "BaIlei da Juventude" (nome
Serge Lifar em 1935 e com George Balanchi- adotado definitivarr, ente) , apresentava um
ne, em 1941, quando ambos estiveram no grupo de jovens bai arinas, verdadeiras pro-
Brasil à frente de suas companhias. messas de futuras gl andes artistas. (Jacque-

~ 328-
line Raymond, Yilma L-mos Cunha, TaJ1lHl'o postos a trabalha\' ati\'amcnle para dotaI' seu
Cm'peler, Berta Rosano\ a c Adaliza Autrarg. país de uma verdadeira Escola de Baile, dig-
Mais tarde, Edith Pudelko na "Dansa de Ani- na realmente dêsse nome. Demonstrarão,
tra" e "Clair de Lune" realizou algo de ma- assim, que sozinhos, com o dinheirQ parco de
ravilhoso e definitivo, ~alientam-se ainda, no suas bolsas, poderão realizar aquilo que os
"Ballet da Juventude': Wladimir Irman, poderes públicos jamais quiseram levar a
Artur Ferreira, Hollan( t Stondemine, Adeli- cabo, não obstante os recursos inesgotaveis
na Palomanos, Lorna Ray, Maria Angela, de que dispõem, , ,
Noema Pergara, Bila Manganel, Combelo
Rios, Gabiria Sheeah, :larie Haenny Müller, Em 19-17, organizaram, 110 Teatro Fenix,
Margarida Júlia, Sue:c; Lystowsky, Gisela uma temporada sob a regência de Francisco
Gelphé, Angela Marta, Ebba Will, Marie Hei- Mignone,
ne e o bailarino Carlo~ Leite, Por outro lado, Eros VoIusia, bailarina
Os estudantes est[;o positivamente cui- de talento incontestavel, procura concretizar
dando do ballet nacion:ll; tudo é de esperar criações interessantes na folk-dansa brasilei-
dêsse punhado de jOV( ns entusiastas e dis- ra! E o tem conseguido, com brilho_

• • •

- :329-
[J! Opera e os seus intérpretes

EM r a z ã o Luiz Heitor Ghisone, Medina Ribas e o baixo Arcangelo


qual do afirma que, em- Fiorito.
bon, possuindo mlÍsica Entre as duas estrêlas houve séria riva-
brat; {leira, seria arrisca- lidade, em virtude dos admiradores· de cada
do ;;fiançar a existência uma delas terem se organizado em partidos:
da:ípera brasileira. E candianistas e delmastristas. Em 1846 a em-
isso porque, - em que !)ese a pl'edileção do prêsa contratou novos elementos que apre-
nosso público por êste g,nero de espetáculos, sentaram óperas de Bellini e Donizzetti. A
- o que se observa é UI na subordinação dos frente encontrava-se o tenor Filippo Tatti.
elementos líricos ao eSj drito dominador do
Ainda nêsse ano, em setembro, uma com-
estrangeiro. Pouco adiailtaram, como vimos,
panhia lírica francesa fazia sua apresentação
as tentativas de D. JOS(' Amat para a insti-
com a ópera de Hérold "Le Pres-aux-Clercs",
tuição da Academia de Opera Nacional. E'
cantada pela prima-dona Artemise Duval,
que o tempo ainda não nos proporcionou êsse
tenor Muliot e baixo Fréderic.
movimento de completa autonomia, de plena
emancipação dos processos operísticos ita- Em 1848, .João Caetano, que era empre-
lianos, franceses, alemãt,s... Um dia, porém, sário do teatro S. Francisco, contratou, por
o ideal se concretizará entre nós para gáudio sua vez, outra companhia francesa, que es-
dos nacionalistas "enra~:és" ... treou no mês de maio com "Les diamants de
la couronne", de Anuer. Suas figuras eram:
. A primeira ópera, t'scrita por um brasi- Preti, Harliez, Cal'l1ier, Fanny, Dubois, e ou-
leiro, foi, sem dúvida, a de José Maurício "Le tros. O público, como se vê, tomava contacto
due gemelli"; e a primeira representada a de com as escolas italiana e francesa.
Elias Álvares Lôbo "A noite de São João".
Em 1849 o soprano Ida Edelvina, à frente
Em princípios de 1~44 aportou ao Brasil de sua companhia, cantou "Os puritanos" .

uma companhia lírica que aqui vinha exi- No dia 15 de outubro de 1851 Giuseppina
bir-se. Estreou no teatro São Pedro com a Zecchini, "primadona absoluto", estreava, it
"Norma ", de Bellini. 1leIa faziam parte os fl'ente de sua companhia, no teatro São Ja-
sopranos Augusta Candi ani, Clara Delmastro Bnllrio, com a ópera "Sonàmbula". No ano
e Giuditta Ricco, os ten')res Angiolo Mazzini seguinte o Teatro Provisório abriu, pela pri-
e Giuseppe Deperini, IS barítonos Galletti, meira vez, suas portas para a récita de es-

- 331-
o '"filho _T!?atro Lírico, elo Rio .ele Janeiro, já. demolido. Pr,r t'l.f' p:\~f:Rr; 111 a~ l1laillJ'l\:-;
glórias do {'anta e ela ()!WI'<l.

tréia. Erguia-se 110 Campo de Santana, entre Novidade tambl Ul para o Rio foi o COll-
a rua dos Ciganos e a do Hospício. cêrto realizado no S Pedro de Alcântara, por
No dia 25 de març'o, aniversário do ju- Amélia Jacobson e Berta Kastrup, no dia 7
ramento da Constituição, realizou-se a inau- de outubro. O pro~:rama era de peças, clás-
guração oficial com a ópera de Verdi, "Mac- sicas: "Concêrto" di Beethoven, a "CapulIa",
beth", cantada pelo tenor De-Lauro e o so- de Kreutzer, e "Addié Cacciator", de Mendels-
prano Giuseppina Zecchini.
s11on, três romance~, de Schubert e nêle to-
Brilhou nessa temporada a notável can-
tora Rosina Stolz, que interpretou a "Favo- maram parte 30 vo!.es e 50 professores. de
rita". Ao findar o ano de 1852 deu ela por orquestra sob a regêicia de C. Stokmeyer. Em
encerrada sua tOllrnée, cantando a Rosina do 1855, outra celebridade artística esteve no
"Barbeiro de Sevilha". Regressou, em se- Provisório: a prima-dona Emmy La-Grua,
guida, à Europa, a horda do navio inglês que estreou com o "Otelo", de Verdi, can-
"Fay". tando várias outras /)peras.
Em 1854 cantaram ainda, no Rio, Amelia O entusiasmo C(I!l1 que o público recebia
J acobson, Ama Casaloni, MIlle. Charton. De-
~sdivas chegava a 1:ll1verdadeiro delírio. A
meur, Mami Stella, o barítono. G. ArnamI,
Stolz, por exemplo, ;ltirava a luva ao público
Bouché e o baixo Pietro Ferranti .~o fim.
dêsse mesmo ano cantaram êles "11 Trova- e êstelallçava ao pa ko flores, bouquets, por-
tore", de Verdi, absoluta novidade, entré nós. te-monnaie, enfim, ,. todos os galicismos que
O público delirou, especialmente no "]\'1ise- trazia sôbre si ", c"mo escrevia Carlos de
rere" ... Laet.

- 332-
Esses frémitos de altcinação alingiram o
auge com a temporada (iO grande tenor Tani-
herlick.
Henrique Tamberlkk, cujo verdadeiro
nome era ~ikita Torna (nuneno de origem),
estreou em junho de j 856, tamhém com o
"Otelo", cantando depois cêrca de doze ópe-
ras diferentes.
Em dezembro, Tal11berlick seguin para
Buenos Aires e mais Ln"de para a Europa,
onde faleceu, em Pari", a 14 de março de
1889,
r Companheira de vi<!gem do grande tenor
foi a cantora Dejean, (;ue estreou no dia 4
II de junho, com "Os Má ,'tires", de Donizetti.
~o ano seguinte, ja o P :"ovisório se chamava Tcntl'() MtJl1!eipnl (Rio de Janeiro)

I,
,
Lírico Fluminense, tendo como atração a
companhia de Rosinha Laborde, que cantou
"Barbeiro de Sevilha" "Lucia de Lamer-
Exibiu-se também no Santa Teresa, de ::\ite-
rói e foi uma das estréIas líricas mais fesle-
moor", "Puritanos", "Don Pasquale" e "Eli- jadas que aqui estiveram. Chamavam a La-
xirde amor". grange de "rainha da cena lírica fluminen-
Por essa época, talll·)ém can taram no Rio se". Os poetas compunham-lhe versos e os
Ida Etelvina e Ana Bisd10p. jornais lançavam crônicas extensas em seu
Em 1858 veio a cékbre cantora francesa louvor. Lagrange deixou o IUo, em 1859,
Ana Lagrange que eslr"ou com a "Norma", ruBlO a Buenos Aires.
Decorreu, desde então, um período assás Após alguns Hunfos colhidos na Europa
longo, no qual poucas figuras de valor podem e Buenos Aires, a linda cantora foi vítima de
ser apontadas. A guerra contra o Paraguai, atrós enfermidad{ que lhe atacou as cordas
terminada em 1870, não poderia mesmo dei- vocais, inutilizand<l-as até aos 65 anos, quan-
xar vagares para o diletantismo do público do faleceu, em 191)8. São de Artur Azevedo
nem tampouco atrair companhias estran- estas linhas de uma crônica sentida: "Pobre
geiras. Marieta Siebs! Qll em diria que te levariam
Em 1871 o teatro D. Pedro II, construído assim ao cemitériü. tão em silêncio, tão desa-
nos terrenos do antigo circo Olímpico, da companhada, sem uma flor, sem uma sauda-
Guarda ,Velha, reabriu-se ao público a 20 de de? Tinhas tão bonita voz, cantavas com tanta
junho, apresentando a ópera "Guilherme arte, provocavas t;;nto entusiasmo quando te
Tell ", de Rossini, interpretada pela La Gasc fazias ouvir no Plllco ou nos salões de con-
e pelo tenor Ballarini. cêrto, e eras tão linda, tão simpática, tão
Dias depois Amélia Pasi cantava a "Nor- honesta" .
ma"; seu porte, no dizer de um crítico "qua-
Em 1876 canlnu no Pedro II uma cele-
drava bem com a figura da grande sacerdo-
bddade espanhola. o tenor Julian Gayarre,
tisa dl'uídica".
ao lado da prima- dona Wiziack. Estrearam
Nêsse mesmo ano surgiu na cena lírica
no dia 6 de setemJ\l'o com a "Africana".
a cantora brasileira Marieta Siebs. Estreou
em outubro no "Fausto", de Gounod. Foi, a Após várias fi.:.,(uras de menor importàn-
julgar pelas crônicas da época, uma deliciosa cia que andaram r.~alizando temporadas me-
e inesquecível Margarida, tão elegante e gra- díocres, recebeu o Rio, em 1878, a visita do
ciosa era ela. grande tenor Tamagno, nascido em Turim,

~-\I·~i::;t:1~' '1~~H~"'i~~t:::;"],<l';'[lm lI~~:-.n~;;~::~·;l:;;~()~ à~l~l'aIÚ": de" (\1'~'1(j~ Gnll1t:'~, Il() 'r!" Iro 1\llIlJidpaJ
do r:'jo (le .Janeiro
em 1850 e falecido em ,905. Tamagno estreou
lia "Traviata", t'mpo.l ~alldo a assistência.
Cantou em seguida "I) (~ual'ani" e vúrias
outras óperas, inclusiv:' o "Eurico", do Jl1a-
éstro português l\Iigueí Angelo, a pedido da
colônia lusitana ...
No ano seguinte, Tumagno voltou ao
Brasil, com Marie DUl md e o tenor Dome-
nico Santinelli. Este ú:timo faleceu aqui, se-
manas após a sua cl1 egada, vitimado pela
epidemia de febre amlrela.
Ao seu lado estrr lra a atriz brasileira
Cinira Polônio, que, nmo sua patrícia Ma-
rieta Siebs, incarnava h dmiràvelmente a Mar-
garida, do "Fausto". Decaiu, porém, logo
depois, ingressando na opereta e na revista.
Em 1881, estreou no Rio nova companhia
italiana na qual, além do Tamagno, figura-
vam Borghi-Mano e C,stelmary. Êste último
faleceu em 1897, em Nova York, em cena
aberta, após haver can ado o segundo ato da
"Marta".
Em 1886 apresenku-se no Rio a cómpa-
nhia de Cláudio Rossi, j armada em São Paulo,
contando em seu elene'l figuras líricas italia-
nas. O diretor da orqu'~stra era Leopoldo Mi-
guez, contra quem fel' viam a má vontade e

Bldú Saião, notá"el cantora ;,r~,"ilell'a, glória dos palcos


de todos os palses

os sentimentos hostis dos cantores. Na noite


da estréia (25 de junho de 1886) havia um
protesto formal c coletiyo ele não se cant~l'
a "Aida" soha "\'ol1lj>l'omelr!lOJ'il clil'e~'ão de
Miguez" :
() ]llilJlico, pl'ess('lIl'illdo os ineid('nles,
C'I1II'Oll CI11 elHlliçilo c 5xplodiu CIll gl'ossa

335
Os últimos tuupos do império decorre-
ram sem nada de notável a registar no se-
tor do teatro líri:·o. As companhias se su-
cediam sem que :·eus figurantes se impuses-
sem como nomes de fama universal.
No período l'epublicano o movimento
prosseguiu, no mesmo ritmo, com a apresen-
taç:ão de obras na ('ionais e estrangeiras.
O Politeama Fluminense, reconstruído na
chácara da rua dCI Lavradio n.O 94, tornou-se
campo de ação artlstica de várias companhias,
Atuaram nêle a famosa Elenà Theodorini, a
Ema Leonardi, Gubrielesco e Cassini.
Em 1892, caD taram no Rio o "Tanhau-
ser", de \Vagner, o "Condor" e o "Cristo-
foro Colombo", d~· Carlos Gomes.
No São Pedro, em 1893, Cesira Ferrari,
Ida Ruppini e outros apresentaram "Mallon
Lescaut", de Puccmi.
Fato curioso ,~ que, na noite de 29 de
julho de 1893, o 'Falstaff", de Verdi, subiu
à cena em dois pakos diferentes: no S. Pedro
e no Lírico. Em um dêles cantavam Tetraz-

o .oprano Violeta Coerno c:\eto de Freitas

vaia quando o violino spala Superti, apon-


tado como cabeça da revolta, tomou a batuta
para reger. Aos gritos de "fora I fora I" Su-
pertiviu-se obrigado a descer.
Surgiu então no estrado do maestro um
jovem, imberbe e magrinho, que tocava vio-
loncelo na orquestra. Era desconhecido; to-
mou a batuta e sob a espectativa ansiosa da
platéia deu inicio, com calma concentrada à
majestosa Ollverture da ópera verdiana.
;\lal terminar!!, uma tempestade de aplau-
sos encheu o teatro. E u espetáculo decorreu
delirantemente até o final.
S'oube-se depois () nome do rapaz, que se
i lllj)l'OViSal'il ('111 l'egfmt(·: chnl1ulva-se Al'tl11'o
Toscanini ...
Cnrlnlano Vilaça
zini, Ferrari, Giudice (a Costa, Rappini, etc.;
no outro: Gabbi, Fab:)ri, Sottolane, etc.
A grande Tetrazzi, li, por essa época, em-
polgava o público na ua criação de Violet a.
da "Traviata".
Em 1894, uma conl panhia italiana ocupa-
"a o Politeama, que {',treou com "O Trova-
dor". ~o dia 14 de j ,dho cantava-se ali o
"Rigoleto" quando, ao subir o pano para o
terceiro ato, manifeste LI-se um incêndio nas
bambinelas do palco {' as chamas" em pouco
tempo, tomaram todo ( edifício. Gritos, atro-
pêlos, confusão ...
O PoIiteama con,,;rteu-se em pavorosa
fogueira, ardendo dUlante cinco horas. O
empresario Sansone pt rdeu lodo o material
de "mise-en-scene".
~ êsse mesmo an(" oulro cmpresado,
Mancinelli, vendo-se in ,olvável e incapaz de
enfrentar os compromi,sos assumidos com os
assinantes de sua ten por ada lírica, meteu
duas balas na cabeça,::m uma manhã dara
de setembro. Todos osu·tistas o prantearam,
velando-lhe o corpo, S Ibre o qual cada UIll
colocara uma earta de (espedida. Dias depois
realizaram um espetá, nIo, eujos proventos
foram destinados à reiatriação dos elemen-
tos mais necessitados. Gabriela Besllnzoni Lage, Ines'lueclv·el Intérprete
da "Carmen"
Em 1895, na compa 'lhia Sanzone, estreou,
no "BalIo in Maschera", o meio soprano bra- liana que trazia figuras de relêvo, sendo de
sileiro Matilde Canizal'( 's. Dotar :\laria Cavallini.
E as temporadas s( sucediam, nos vários Em 1900, veio Ema Carelii, De l\larchi e
palcos da cidade. Em 1897, um grupo de ar- outros, sob a direção do maestro Eduardo
tistas diletantes levou '1 cena a obra melo- Mascheroni; em 1901, Livia Cassandra, Stinco
dramática de Leopoldo Migue7- "Amor", so- PaIermini e o tenor Innocenti; em 1902, o
bre um libreto de Coelh o Neto. () sucesso foi grande Giovanini Zenatello e () soprano Ca-
relativo. No ano seguir te o empresário San- milla Pasini, verificando-se ainda a apreSf:'n-
zone, que se tornara UD l verdadeiro magnatn tação da cantora brasileira Nícia Silva, no
do teatro lírico, trazia ao Brasil o contralto "Rigoleto ". Em HJ0:\, aportou ao Brasil ()
Montalcini, uma ótima "Carmen". Em 1898, notável tenor Enrico earuso, glória de todo:,
nova figura patrícia faz ia sua estréia no tea- os tempos na artr do bel canto, (lue interprE'-
tro lírico: Clotilde Mar sliano, que cantou o tou "Rigoleto", "~Ianon", "Iris". "Tosca" ('
"Fausto". Voltara da i~uropa naquêle ano, "Mefistófeles"; PlI1 1!lOi'í, aqui calltou a Manci-
onde estudara no Con,ervatório de Milão. nelli e a 7 de outubro danl seu espeté'leuIn (h'
Vários sucessos assillal~iram sua carreira no estréia, com a "Sonâmbula ", um a 1l0"H ('0111-
velho mundo. A seu I ado cantou ,também panhia italiana, lendo eomo pril1leira fignru
Amália Iracema, outro ~nprano brasileiro. No a inesquecivel cantora Maria Galnni, repu-
ano seguinte visitou-um uma companhia ita- tada como l:íval da Barriel1tos,
uida Hio Branco, abrangendo lima área de
'+.220 metros quadados.
A concorrênci I para a apresentação de
projetos, aberta a .) de outubro de 1903, teye
como vencedor o :ngenheiro Francisco Oli-
veira Passos. As "lJru:i se iniciaram a 2 de
janeiro de 1905 c t construção custou a im-
portância de 10.8:; :000$000, inclusive o ter-
reno, a usina gera, íOl'a de eletricidade, a de-
coração e o moh liado, Trabalharam nos
painéis decorutiY<h os pintores Eliseo Vis-
conti e Rodolfo A.noedo. O primeiro deco-
rou os tetas du pl:.léia e dos "foyers", além
de pintar o pano de Lóca, uma das obras
mestras do urlistt; a segulldo executou os
painéis das duas r' ,tundas.
O Teatro ;'IIull tipal foi inaugurado aI!
de .iulho de l!)OU (iJlll o seguinte programa:

1." parle
a) Execução d ) Hino Nacional
b) Discurso di, Olayo Bilae
c) "Insôni a ", sinfónico. Te~~to
pot:'llla
de Escragnollc D(' da, música de Francisco
Braga.

2." parte
a) .. Condor ", ) atumo, de Carlos Gomes
L) .• A BOllUllÇ: ", peça em um ato, de
1\106 - e cantada no Teatro S. Pedro de
Coelho ~eto (Lici,. Antônio Ramos; padre
Alcântara, a ópera "Carmcla ", de Araújo
Anselmu, Nazal'é; .-1macleu, João de Dewi;
Viana.
Lenul'u, Lucília p, res; .4delaidc, Luiza de
1907 -. O empresário Milone dá uma sé- Oliveira, DamÍww. Gahriela Montani).
rie de espetáculos líricos c falece nêsse mes-
mo ano. Reabre-se o Teatro Lírico, com três :P parte
notabilidades: Ema Carelli, Zcnatello c a Tc- "lVloema", ÓpeJl em um ato, de Delgado
l razzini, j ii universalmente consagr adas. de Carvalho Ulloena, Laura lVIalta; Palllo,
1908 _.. Surgem, no Palace Teatro, (;ia- Américo Rodrigue~; Japil', Arnaldo Braga;
comelli, :M. Calvi, etc., enquanto outras se TapÍI', :VIário Pinhe 1'0) ,
apresentam no S. Pedro,
1909-- Capella e Olla\'i cantam no Tea-
tro S, Pedro.
Desde então y u'ias companhias dramá-
1910 - Cantam-se 110 Rio operas de Wa- ticas, nacionais .e ! strangeil'as, tem ocupado
gner, o "Boris Godounov", de Moussorgski e o Municipal, até qle, em 1911, Pietl'o Mas-
a "Salomé", de Richard Strauss. cagni, empunhand· a batuta, deu início a
Em 1911 ocupou o palco do MunicipaL série enorme de exi !)ições líricas que até hoje
pela primeira vez, uma companhia lirica. De vem sendo realizaI as naqllêle teatro.
propriedade da Prefeitura, 11 nossa principal A estréia verif~ou-se u 13 de julho com
caSfl de espetáculos róra c(mstl'uída na av('- a ópern "h'is ", dt'1l1torin daqut'le maestl'fI.
A temporada que l'rminou no dia 30 d)
mesmo mês, teve o })rc'ligio ele figuras como
Titta Huffo e o tenor B Illci, ~ o ano seguin te
o maestro Gino :'IIal'illll ~zi fa;r.ia também sua
estação no :\Innieipal, (OIl1 n ('olal>ora~'ã() de
Amelita GalJi Curei e miras notabilidades.

1913 -- Na tempo ada do :\Iunicipal é


apresentada a ópera ",' bul'" de Alherto ;\c-
pomueeno.
1911 lmpôl'-s(' L' llllU empresúrio o sr.
\Valter :'Ilocehi que. (: tIrante muitos anos,
trouxe para o Brasil (, i maiores vulto:- da
cena lírica européia. 1\; temporadas organí-
7.adas pelo aiivo empr, súrio contaram (',0111
nomes como os de Can 50 (de "Volta ao Bra-
sil em 1917, pela úllimfl vez, pois faleceu em
Nápoles, sua cidade ~ tal, cm lÇ)21), Titta
Ruffo, Maria Barriento~ Stol'chio, Stracdari,
Gallefi; Farnet, De Mu 0, Rosa Haisa, Titto
Schippa, Dalla Rizza, Franz, Besanzoni,
Cons tantillo, BeIlincioni Cri mi, V allin-Pardo,
Journet, (jalI, Crabé, >azareno de Angelis,
António Pauli, etc,
Em 1!J21. Tamaka ;\ iul'a. prima dona ja-
~'m(iri('o ni1~~O. 11m dos maiore-g· Rrti~ta~ (10 eRlltn,
ponesa, ealltou "'L'Orac(1 o", de Franco Leoni. flf.l Brnsil at lIal

1922 _. Ap1'esen [a<;':') do .. II pic~olo Ma-


rat", dc Mascaglli e d(J "t,ollleu c Julieta". critério de nossa história, J'efel'ênt:ias (~spe­
de Zandonai. dais.
Basta citar, por exemplo. a figura de
Bidu Saião (Balduina de Oliveira Saião).
De então para cá. I lrnu-se quase desne- llascida no Hio de Janeiro a 11 de maio de
cessaria a apre~cl1taçào ,te uma relação com- 1906. Seu extraordinário pendor para o canto
pleta das ati\'idades li'Íeas vcrificadas no revelou-se muito cêdo, ra:-;ão pm qüe foi es-
Teatro Municipal. do R o.Todas as notabi- tudar sob a orientação da çantora Helena
lidades mundiais do cal lo lírico por ali têm Teodorini .. Quando atingira () momento de
passado, deliciando, COl seu virluosismo, os fazer exibiçôes em público, parti II para il
amantes do gênero. BCIl ;:tmino GiglL Claudia Europa, onr!<' l'E'a1iwlI concertos ém vári~s
l\luzzio, J an Kiepura, I I'uno Landi, Charles capitais.
Kulmann, Grade l\Ioor, Gilda dalla Rizza. Em 1927. aos yiuh' e um an()~;, deódiu-
Vagghi, Lauro Volpi, G, Irge ThilJ, Lily Pons, se pela carreira lírica. Estreou 110 Rio, no
Solange Petit-Rénaux, René Mazela, Paul Teatro lVIullit:ipaI, cantando a parte de Ro-
CabaneJ, J énic Tourel, .Um'ia Caniglia, 1\Ia- sina, 110 "Barbeiro de Sevillla".
tilde Favero, Feodor eh aIiap~le e lllUitos ou- Casada CUlli () ellll)resál'ioW alter ?\locchí
tros dignificaram o paI, U do Municipal com (de quem jú S(' divol'('iou), Bidu Saião foí
o prestígio de sua arte lOnesta e apreciáYcJ. aos Estados rllid(J~. onde cantou ]JU Metru-
Isto sem falar, é claro, ' as glórias autentica- volitan, de Xu\' H YOl'k, cm 1\:1;)7. Desde entào
mente brasileiras. que nerecem, den tro do sua carreira ele Dl'tisl0 lírica tl'1l1 sido lIlllH
('sl1'ada de glórias, considerada 4UC é uma AgoslÍnha Braga, I ue e:;lreou no Teatro Car-
das mais perfeitas cantoras de ópera no Ias Gomes. em 1~07, no "Guarani"; Amália
lllundo inteiro. Suas últimas criações em Iracema. que can:ou "A Africana", em 1898,
"Romeu e Julieta", de Gouno.d, e no "Peléas no bírico; Bebê Lima Castro, nascida em
et Melisal1de", de Debussy, confirmam, efe- Paris, em 18i8, fi, ha de país brasileiros. Es-
tivamente, a eonsagração a que ela fa? jus. tudou no Consenatório, passando a cant~r
Outra figura de notáv.el importâneia na em cOllccrtos e 11(, salões da alta sociedade;
cena lírica é o soprano Violetá Coeiho Neto Clotilde i\Iaraglimo, paumta, que estudou na
de Freitas. Filha do apreeiado escritor ma- Itália, vindo est ear no Teatro Lírico, na
ranhense, Violeta é possuidora de uma linda l\largarida, do "M cfistófeles"; Elvira Fontes,
voz, cada vez mais aperfeiçoada por continuos que surgiu no "(rtwrani", cm 1904; Julieta
estudos. Sua criação magnífica de "Mille. Teles de Menezes, 'Iue se apresentou na "Car-
Butterfly" --' ópera que merece as preferên- men", de Bizet; :\1alvina Pereira; Matilde
cias emoeionais da cantora - concede-lhe, Callizal'es, ~icia :)ilva; esta última estreou
de fato, o direito de ser considerada uma das em 1!J02 no papf! de Gilda, do "Rigoleto",
grandes cantoras líricas do Brasil. ete., de.
Zola Amaro~ nascida no Rio Grande do Os elementos !lJasctdinos, em nosso ('enfl-
Sul, estreou em 1924, no João Caetano, can- rio operístico, sã, I, no enlanto, hem poucos
tando o papel da escrava na "Aida ", no qual ainda. Entre êles salienlarn-se o tenor Reis
obteve êxito invulgar. c Silva, que apar,ce continuamente em nos-
Carmen Gomes,' também dotada de bela sos teatros ao la lo de Carmen Gomes, em
voz, apresenta uma vida de trabalho incan- peças brasileiras; o barítono SíI"io Vieira,
sável no teatro lírico brasileiro, Em 193i, no cujas qualidades, ocais já ri lc,'ararn a tomar
Municipal, foi convidada, iIlf'speradamel1te. parte em tempondas estrallgeiras, no Muni-
para substituir o soprano incumbido de can- cipal; Asdrúbal Lima, barítono dos mais
tar a "Aida ", e o fêz com absoluto êxito, acatados em nosns meios artístieos; Corbi-
Maria Sá Earp é soprano ligeiro, tendo Iliano Vilaça, na'icido no Pará, fêz o seu
cantado o "Barbeiro de Sevilha", ao lado de curso com o pro!.'essor GaIlois, da Grande
grandeti figuras internacionais, inclusive de Úpera, após haver estudado' pintura na Aca-
~eu marido, o notável baixo Giachomo Vaghi. demia J ulien. Esi I'eou no Teatro de Angers,
E ainda: Alma Cunha Miranda, linda e em 1906; desde er,tão tem cantado em' várias
delicada voz que muito tem atuado em nossas cidades da Europ, I e em tôdas as capitais do
emissoras; Brasil; Frederico ~ascimento Filho, já fale-
Adjaldina Fontenelle, que cantou 'com cido e que era un dos mais empolgantes ba-
êxito, certa vez, no Municipal, o papel de rítonos que podeJ:los contar em nosso país;
Ilara, 110 "Escravo", de Carlos 'Gomes; tal como êle, foi (, baixo Mário Pinheiro viti-
mado prematurar lente pela tuberculose; há
Alice Ribeiro, casada com o maestro José
ainda Marcel Kla15, Adato Filho, Ge~rge Ja-
Síqueira, cuja atuação na Michaeln, da "Car-
men", foi das mais notáveis; mes; Roberto Mi"anda, João Machado deI
Xegri. José Vasgu8s, Ernesto de Marco, Per-
Cristina Maristani, ontra que atua nos
rota, Roberto VilJ, lUr, e alguns mais.
q;fúdios de radio com sua voz privilegiada;
Vera Janacopulos, cantora de mérito in~
contestável, dedicada à música de câmara, Perguntando- he eu a sua opinião sôbre a
res e intérpl'eteslo teatro lírico entre nós,
onde brilham também os nomes de Olga No-
hre, Gilda de Abreu, Nair Duarte Nünes. vale a pena trans '['e"eI' um trecho de pales-
Libel'ata Navarl'O, Carmen Bel'ttucÍ, Alltollie- lra llue, a rl'spci 'O, t'ntretiye ('.0111 LOl'elll,O
ta Fleury de Barros, J aeira de Albuquerque Fernàndez.
Costa, Alexandrina Ramalho, Edil' Aw;trege- Pergulltalldo-,I,11e eu a sua o]Jillh'lO sôbre
silo e algumas outras. H influêllLÍa exer. ida pel.n ópera, l'lll nossn
Distinguem-se ainda. llil Lenn lírica: fOl'mação artístici;, assim SE' rxpressou:
"Penso que a cont['i! lli~áo da ópera ita-
liana tenha sido mais nt civa do que útil ao
nosso desenvolvimento a·tistico. Ainda hoje
podemos observar êsse f'nômeno. Se somar-
mos as parcelas gastas pua esse luxo, geral-
mente de inferior categoria artística, veremo~
que tudo isso aplicado eL l realizações de edu-
cação popular, já atra\'! s da criação de es-
colas, já pela criaç'ão t:e bolsas de estudos
aos bem dotados para a lrle, já pelo estímulo
aos criadores por meio Je prêmios, ou pela
organização de coros e orquestras subveIl-
cionados e espalhados I 01' êste imenso Bra-
sil, teria, isso sim, contri mído eficientemente
para melhorar o nosso I,ivel intelectual.
"Infelizmente somo' um povo de facha-
da, procurando organL ar uma civilização
fictícia, de periferia, (,:lpianüo, geralmente
lllal e improvisadamenk, o que para oulros
povos representa uma :l'istalização de cul-
tura.
"Mantemos, assim, com grandes OllUS
para a nossa economia uma temporada de
arte no Teatro Municip ti da Capital da Re-
pública, com algumas ~,obras para a cidade
de São Paulo. E o resto do Bl'asil? Será
que só 2 ou 3 mil pess( ,as têm o direi to e o
privilégio (aliás bastane caro) de gozar as
A~,iS Pacheco. tenor brasileiro
grandes emoções da arte?
"Quantas centenas de contos têm sido
pagas para que algun, melomanos possam Conservatório Brasileiro de Música e o Con-
ouvir o célebre Dó de peito de tenores afa- servatório de Música do Distl'ito Federal, Há
mados (muitas vezes o tal Dó de peito não ainda a SEMA (Superintendência de Educação
passa de um Si ou me'.mo Si bemol), caca- l'rlusical e Artística) da Prefeitura, dirigida
rejados em enfadonha repetições de cace- pelo professor Sílvio Salema.
tíssimas óperas? Nos Estados temos: Conser\'at(íl'io Dra-
mático e Municipal de São Paulo, recente-
"E o pior é que (; problema parece ter
mente equiparado à Universidade do Brasil;
aumentado, pois cada vez os Dós de peito
Conservatório Mineiro de Música; Conserva-
custam mais caro (efeit.)s da inflação) e cada
tório Musical de Porto Alegre; Conservatório
vez as mesmas óperas ficam mais surradas.
:\Iusical de ~iterói; Conservatório Musical da
"O meu ilustre an ligo Villa Lobos cos-
Bahia; Conservatório Pel'l1am!JUL:ano de Mú'
tuma comparar o en tu, iasmo operístico com
sica; Instituto de :Ylúsicu do Rio Grande do
O futebol, dizendo que o Fla-Flu da ópera e
:\ortc; Conservatório Amazonense de :vrúska,
O Tra-Tro (Traviata-T!ovadol'.,.)"
recentemente extinto,
Todos os Consel'valórios eilados llaSce-
As escolas de música no Brasil são tUIll- ram nêste século, exce[o o do Purú, fundadu
bém em pequeno nÚltlel'o. Na Capital da por Carlos Gomes um ano antes de sua morte.
República existem: a Escola ~ acional de Este Conservatório possui na história dá mú-
Música, anteriormente Instituto )lacional de sica brasileira o destacado papel de tel' sido
Música, nascida com a república, em 1899, o ideado por um grupo de amigos do imortal

341 -,
autor du "Guar:JLJJ o,, puni all'IHolet üs llt:ces-
sidades financeira, cm que se rncontrava (J
genial operista na rtúlia,
Palcos de cenl.., líricas tem sido ainda:
o Teatro Amazona. em .:\Ianaus. inaugurado
em 1896; o Tealro'ianta Isahel, em Pernam-
DUCO. destruído p lI' \'iolenlo incêndio, em
] 8G9, n a ocasião el J (rUe a companhia lírica
de d . .r()s(~ Amat °nnta\'a (l "Fnusto", Em
187G. jú l'eeollstnlÍi (l. abria () "clúl'io para a
aprescn t a~'ào do "{ :I hallo i Il mascllera ", pela
eompanhia Tomal': 'assini; finalmente. () Tea-
tro :\lunieipul de S lO Paulo, cuja pedra fun-
damentaI foi lallt:a la a :W de junho de 1903,
:.\ cOllsll'uçào por 'on ta da 111UlüCÍI)alidade.
esleve a cargo do l !lgcnheiro Ramos de Aze-
vedo, Domenico r ossi e Claudio Rossi, A
inauguração dessa majestosa casa de espe-
túculos verificou-se na noite de 12 de setem-
bro de HJll, eOIl] a peça "Hamleto", de
Us('ar Gllanabarino, er1tko nlu~ical rlo:-;
m::us temid,)~ vC'Jn~ artL"Ül~ no Brasil. Amhroise Thomas, 'untadu por Titta Ruffo,
O Teatro Municip ti de São Paulo custou
4,500 contos .

• • •

0_- 342 -'


,
() lJirtuosisn1o entre n08

PIA:' foi sem p re o i ns-


i) (-'Ilultleraçào, induindo até os professores que
lento da preferência
tl'llJ exerceram atividades ua Capital e nos Esta-
d o o concertistas f' das nos. Dêle colhemos dados preciosos o
pIa. éias, nos países oci- Diz o historiador, por exemplo, que a
deli .ais. Entre nos, como "série das audiç'ões pianísticas na Capital do
já ai observado, a pia- Império iniciou-se com o pianista brasileiro
nolatria chegou a ditar rumo à educação da José Klier, jovem de helo talento artístico.
juventude. muito aplaudido pelo púhlico em seu COllCér-
AnLes do rádio. c ,m efelLo, nào havia lo. realizado no Teulro S. Pedro de Alcúntara.
llloeinha que deixasse { e estlldaL' piano. Ins- em i de junho de 184," o

trumento obrigatório fl; s salas, impunha-se o


seu estudo como comp t'mento indispensável Seguem-se depois:
p ara os "gentis Ol'lHllll ~ll tos da nossa soei {'- 1848 - Luiz Major, primeiro prêmio do
dade" ... Pululavam os professores de piano; Conservatório de Paris, no teatro S. Francisco.
em qualquer rua, da Ci ilade ou dos arrabal- 1850 - Leon Solié, pianista francês, no
des, fôsse lá a hora qu, fôssc, soavam COlltl- teatro S. Pedro. f:ste se dizia discipulo de
nuamente as escalas e ( s estudos do compên- Chopin.
dio de Artur Napoleão. :ometiam-se os maio-
1852 - Isidoro Bevilaqua, chefe de uma
res atentados contra a obra dos mestres; e,
família de pianistas ilustres, nascido em m··
era costume perguntar-o e a qualquer menina-
nova, em 1813, e 1110rto 110 Rio, em 189/.
moça: " Já está estudal do piano? Quem é o
Nêsse mesmo ano apresentaram-se ao públi-
seu professor? .. "
co da Capital 1\1111e. Brillani (Teatro São Ja-
lmário), Sarah de Geslin e Frederico Ottell o
1853 - Condessa Rozwadowska e o con-
Enormíssima é a li ta dos concertistas de certista Stockmeyer.
piano que, até hoje, 1 'm visitado o Brasil. 1855 - Achille Arnaud, napolitano, na
Dentre êles cumpre (j 'stacar apenas os de sala do Teatro Provisório; seu irmão. Gen-
maior fama, atendend, . é claro, à indispen- naro Arnaud, também esteve aqui. em 1857.
sável ordem cTonolúgi( ~t o Nêsse ano' ocupou o Teatro Provis(',rio o
Vicenzo Cernicchia '0 dá-nos em sua "Stu- grande pianista Sigismuudo Thalhcl'g. filhu
ria della musica nel 8rasile" substanciosa de um príncipe, Dietrichstein, camarista de

- 343--
Dois irmãos, ambém do Rio, impuse-
ram-se como piani: tas conceituados: Alfredo
o violoncelista
prof. Alfredo Gome" e Eugenio Bevilacq lia. Ambos estudaram em
Gênova e muito dignificaram a sua arte, no
Brasil, não só comi virtuosi mas ainda como
professores. Filha do primeiro era ainda a
pianista Julieta Be"ilacqua.
Paulo Faulhab'l', outro professor radi-
cado no Brasil foi <1iretor de orquestra no
Clube Mozart.
1876 -- Paulo ,JIalllhelland, pianista pa-
trício apresenla-st> :lO público, obtendo largo
exito.
Fralldsco l, imperador da .\uslria, O llotúVc! 1879 -- 1\1. Azc'edo executa, em um COI1-
virtuose, que faleceu em Gellebra, em 1871, certo, a cClebre f(l !ltasia de Thalberg sôbre
foi alvo de muitas homenagens da sociedade "Gli Ugonotti".
e dos professores brasileiros, Ainda cm ;")7 1882 ___ Eduardo De- Vincenzi, pianista
o

vieram Sophia e Sarah Gerlill. esta pela se- italiano toca no CJ llbe Beethoven. Antes de
gunda vez, \'oItar à Itália emILeende uma pequena tour-
E no Brasil apresentaram-se ainda: née pelas provinci as do Rio, Minas e São
1858 -'- Oscar Pfeiffer, cOllsiderado Ulll Paulo.
dos grandes pianistas do seu tempo, Visitaram-nos ainda Camillo Giucci e
1859 -- Gabriel Girondon, pianista e COlll- Antonio Ragusa. \' ascido em Pernambuco,
posi tor françês; MIlle. Remond, no teatro Gi- Emílio Lambert fi z sua educação artística
núsio Dramático e Carlo Schramm, alemão. na Europa.
1860 - Emilio Wroblewsky, polonês, Brasileiros era! il também Geraldo Ribei-
cujos concertos eram assistidos pela família ro, Artur Camilo de' Souza, Godofredo Leão
imperial, fuzilado pela comuna, em 1870, no Veloso, Luiz Franp Pereira Rebouças, João
campo de Vartol'y. Amado Coutinho Barata, Pedro Alves da
1861 - E. de Barry, conhecida pianista Silva, Sílvio Deolilldo Fróis, Maria Elisa La-
francesa. cerda Valente, Pedo Ussino Ribeiro, Alberto
1862 - Hugo Bussmeyer, virtuose e com- Muylaert e Narcise Filgueiras Filho.
positor alemão. Em 1883 cheg('L1 ao Brasil Luigi Chiaf-
farelli, pianista italiano que se radicou em
1863 - C. E. Bosoni, italiano c Lucien
São Paulo, onde f )l'mou uma geração bri-
L:mbert, francês.
lhante de discípulo;. Faleceu em 1923.
1865 - Hermenegildo Ligllori, brasileiro,
1886 - Surge eru um concerto, a pianista
natlll'al da Bahia.
brasileira Amélia d e Mesquita.
1869 - G. Kellembach, que tocou em um
1891 - Emília Canizares apresenta-se no
concêrto, ao lado de Gottschalk.
Clube Engenho Veho. Como brasileiras ci-
J 870- Concertos de CarIotta Patti, Teo- tam-se ainda: Ame Ii a Ma toso Maia, Eulália
doro Hitter e Pablo Sarazate, chegado a 19 de Saules, Elvira BelJ, I, Emília Philipaux, Ade-
junho, de Nova York, pelo "South America", lina Poznawsky, Fl ancisca Bongeau, etc..
1871 - Apresenta-se no Ginásio Dramá-
tico José Soares Pinto Cerqueira, pianista
cego, morto no Rio, em 1912. Outro brasi-
leiro surgi II nessa mesma época: Francisco No período repLlblicano mais intenso tem
Xavier Oliveira de Menezes, nascido no Rio sido, é claro, o lllmilllento pianístico no Bra-
em 1846 e falecido em 1920. sil. Grande é o Ill,mero de virtuosi, não só

344 -
nucionais como esln\1 igeil'OS que. continuA-
mente, visitam o IlOSSI país,
Dentre os primeins destacam-se:
Al~tonieta Budge ii. Jüller, nascida cm São
Paulo: aos sete anos d' idade, em 1893, apre-
sentou-se em uma audi ;ão particular na Casa
Levy, causando jusla admiração, Aluna de
Chiafarelli fêz-se ou\' ir em várias capitais
europeias com notáve brilho,
Guiomar Novais linto, tamhém da Pau-
liceia e discípula de ':hiafarelli, nasceu em
1897, tendo o seu pril1e,il'o contacto com o
público em 1908, em ~eu Estado natal, Via-
j ando para a Europa,'etol'llou em 1914, após
haver concluído um curso de apel'feiç~oalIlen­
to em Paris, Fêz em s,;guida sucessivas tour-
nees aos Estados Ullilos onde seu nome é
justamente acatado c(imo uma das maiores
pianistas da atualidad~.
Magdalena Taglia 'erro, nascida em Pe-
tl'ópolis, em 1894, filhf' do professor de canto
e piano Paolo Tagliaferro foi, pOI' sua vez,
UlU milagre de precocidade: aos dez anos de
idade tocava peças de :\ [ozart, Chopill, Raff, , .
Educou-se em Paris, o Ide residil't flté àl:i vés- J\[agc'lalenn Tng'liaferl'o, UlUa das mais nohi.vpi~ pianistas
hl'i_\~ilpil'af-'.
peras da segunda Gl1 :1'1'0. Mundial, quundo
voltou à pátria, para ,e exibil' em audiçi":e~;
memoráveis e estabe; ecer CU1'5ú~ de inter- Buxo, Dyla Jusetti, Elza Caneia, Isabel Aze-
pretação, vedo, Rita Uchôa, Maria Luiza Teixeira Cam-
Maria Antônia, nfiscida no Bio, em 1910, pos, Irene Nogueira da Gama, Maria do Car-
foi menina prodígio, Faleceu na Suíça, em mo Botelho, Edith Blllhões, Bl'unea Bilhar,
1946, após uma carrei "a das mais invejáveis, Maria de Lourdes Torres, Edith Lorena, He-
sendo citada como Ui na das maiores intér- lena Lorenzo Fernândez, Mariet::: Saules, Ma-
pretes de Villa Lobos ria de Santos Melo, Gilda de Carvalho, Alice
Ivone de Geslin, li ascida no Rio cêrca de Alves da Silva, Honorina Silva, Maria Cân-
1885, tambem estudOli em Paris, bem como dida de Morais Gomide, Ana Carolina, Altéia
Alcina Navarro de Alidrade, Alimonda, Yolanda Ferreira, Elzira Amabide,
Fanny Guimarães. nascida no Bio, em Alrina Navarro, Helena Tavares Queiroga, Iza
1887, fêz cursos no vellO mundo, obtendo, no Queiroz, Yolanda Moreaux, Vilma Graça, e
Conservatório de Vienl a grande medalha de outros, de merecido destaque.
ouro. Faleceu no Bra;il em 1920, Isso quanto ao elemento feminino, por-
Amélia de Rezend,~ Martins e outro nome que como ótimos pianistas muitos professo-
respeitável na arte pianística brasileira. res se têm revelado verdadeiros artistas,
Apresentou-se no Mun,cipal, do Rio, em 1917. Nêles incluem-se os nomes de: Custódio
Outrôs nomes plderão ser lembrados Góis, Hernani Tôrres, Barroso Neto, que fêz
tais como An tonieta >,erva, Maria. Mon teiro, parte do famoso Trio Barroso-Umberto-Go-
Maria Siqueira, SílvL \ Figueiredo, Eugênia mes, em 1916; Manuel Augusto dos Santos,
Soares de Melo, Clem'~ntina Velho, Suzana e nascido na Bahia j Bubens de Figueiredo,
Helena Figueiredo, Ju ieta Alegria, Maria Li- Charles Lachmundj Alfred Oswaldj Antônio
ma Jacobina, Ruth dE Araújo Viana, Celina Carlos da Silva Guimarães, falecido em 1905;

- 345 --
Pedro, em 1899; Harold Bauer, o ameri"
callo Ernesl SChE :ling; o grande polonês
Inacio Paderewsky Miecio Horszowsky, Lu-
da \Vurmser e 1: aUI'ice Dumesnil, ambos
franceses; Artur Rubinstein, polonês, que
aqui esteyc cm 1918; Eduardo Risler; o ho-
lundês Tommy T11u11son; o russo Jean Cher-
lliawsky; o rumenc George Boskoff; Leopol-
do Godowsky; Alfr·d Cortot; Orloff; Alexan-
dre Brailowsky, a loqueluche do público ca-
rioca; Iso Elison; ) chileno Claudio Arrau;
Bakhaus, Frieclmal ; ilfadamc Long; Simoll
Barer; Bllllllcn; M, ,isciwlsky e essa extraor-
dinár~a pianista fr:: ncesa que e Monique de
la Broucholerie.

:\Icstl'e Carlos lumcs era figura exeep-


donal cm lima num ,,'rosa família de músicos;
em yolta dêle nuo 'ião poucas as figuras (le
artistas que,. ale }lfje, honram o nome e as
glórias do grande (,nnpineiro,
Um de seus irn ií.os, José Pedro Sanl'Ana
Gomes, o "Mano Jl,~a". deixou descendência
ilustre, contaúdo-se nela executores (' com-
,\.Hl'cdo Angelo. P()l'lllgll(~s; Alfredo Sehiap- positores de mérit( indisclltiyel.
pI."; Panlillo Uns de Yaswnce!os Chaves; () Cm de seus fil 'os l' n professor Alfredo
mHl'únhenst' .I oao Hodrigul's :\ lIues; o gaúcho Gomes, violollcelis11 dos mais llotúveis no
Alcino BUl'cello; Guilherme Halfdd Fontai- panorullla musical (te !lossa pátria. Tendo
nha, nascido em Juiz de Fora, Paulo TagliH- iniciado seus cstud ,s em Suo Paulo, seguiu
ferro, irmão de Madalena; Paulo FaulhabeJ'. para a Bélgica, em !ÇJO() , fi expensas do go-
morto em 1923; J. Aleixo, nascido em Minas; vêrno estadual, OH( " se llwll'icnlou no Con-
Luiz Amabíle; João Nunes; Rossini de Frei- servatório de Bruxe:' as. Clll'SOU as classes de
las; Arnaldo Rebelo e Amaldo Estrêla, dois yioloncelo, orquesll:1 e música de câmara
dos mais notáyeis pianistas do nosso tempo; daquêle estabelecim.·nto, obtendo o primeiro
Mário de Azevedo. executor magnífico de pe- prêmio em 1908, Ii domando ao Brasil, foi
~'as ligeiras ou eruditas; TIoberto Tavares; nomeado, interinam 'nte, professor de violon-
José Yieira Brandão, o intérprete insubsti- celo do Instituto, el,1 cuja cátedra se tornou
tuível das peças de Villa Lobos; Manuel Au- efetivo, por concurso. realizado em 1920. Dez
gusto; Souza Lima; \Yaldemar de Almeida; anos depois, foi indi 'ado para dirigir o curso
Paulino Chaves; Març'al Romero; Amâncio de eOlljlll1to de câr lera, lugar que mantém
dos Santos, etc. até hoje. Exímio (ill seu instrumento foi.
Vários pianistas célebres. 110 mundo in- além disso, grande; nimador de movimentos
teiro, já visitaram o Brasil. trazendo-nos ti em prol do reerglliJ\ .ento da músic~t no Bra-
mensagem de sua arte. Dentre êles, des- sil. Tomou parte 1m diversas agremiações
tacam-se: Viana da Mota; Camilo Sainl- sinfônieas de músictJ de câmara desta cidade.
Saens, o genial autor de .. Sansão e Da- como fundador. Ent(' elas podem ser citadas
lila" e do "Carnayal dos Animais", que a antiga Sociedade (/ , Concertos Sinfônicos, H
realizou três conce.rtos de piano no São Orquestra Burle-Mar..:, Orquestra Villa Lobos.

- 346-
Or(juestra do Teatro :\runicipal, Orqueslra
Sinfónica BrHsileira, ) Trio Brasileiro t' U
famoso trio Barroso-M lano-Gomes, cuja voga
foi das mais largas n< Rio de Janeiro,
Irmã de Alfredo Q, II11(>S é Alice Santa Ana
Gomes, pianista, filh I também do "Mano
Juca". Campineira. Cimo tôda a família de
Carlos Gomes, casou-,,· com Rodolfo Grosso,
seu C()n lelTâJlC'o. 1l10Ç( de profunda sensibi-
lidade arlíslica, c C[lH' encantava a sociedade
local, em belas noites le serenata, com o seu
bandolim hoêmio... (I casal Gomes Grosso
leve vários filhos e, COl d exceção de um, todos
se tornaram nomes ]"speitáveis na música
brasileira.
Um dêles, lberê G lmes Grosso veio para
o Rio, onde estudou com seu tio, Alfredo
Gomes. Seguindo o ctt'SO de violoncelo, con-
quistou o prêmio de ,iagem à Europa. Em
Paris matriculou-se 11 I "École N'ormale de
Musique", onde tomo\; lições de Diran Ale-
xaniau e Pablo CasaIs Êste último, uma das
maiores expressões mli;icais do mundo atuaI,
assim se expressou, all)S ter ouvido o jovem
Iberê: "Vous avez de l'étoffe pour devenir
un grand violoncelliste ". De volta ao Brasil,
realizou numerosos r 'citais . Foi spala da
Orquestra do Teatro [unicipal, da Orques-
tra Sillfônica Brasileh l, faz parte do quar- diofónkas. Bacharelou-se l'111 Direito, L'Hl
teto Borgerth e é profe .sOl' de Ritmo no Con- ] 941.
servatório Nacional de Canto Orfeônico. Em AIda, sua irmã, é hoje a esposa do vio-
1940 integrou a embai ;ada artística, a Mon- linista Oscar Borgerth. Escolhendo o violino.
tevidéu, chefiada por {illa-Lobos. Em 1946 como instrumento de sua preferência já aos
esteve em Buenos Aire~, onde o quarteto Bor- doze anos conquistava o primeiro prêmio no
gerth conquistou um (xito raro, consagrado curso do prof. Luigi Chiaffarelli, em S. Paulo,
por tôda a imprensa }l ortenha . Em 1927 alcançou notável êxito na Tarde da
Criança, na capital paulista. No Rio, estudou
Duas irmãs de Ib. re, Ilara e Alda, são,
sob a orientação de Paulina d' Ambrosio, oh-
por seu turno, conheei Jas artistas.
tendo também medalha de ouro, no Instituto
A primeira, iniciOlJ seus estudos musicais Nacional de Música. ~1ais tarde, foi primeiro
em Campinas, sua cid; de natal. Vindo para violino na Orquestra Sinfônica Brasileira ('
o Rio, matriculou-se lia Escola Nacional de na Orquestra do Teatro Municipal, sendo hoje
Música, na classe do })I·of. Barroso Neto, de segunda viola do quarteto Borgerth. Seu es-
onde saiu após dois aJIOS de curso brilhante, pôso é um dos virtuoses mais completos que
com medalha de ouro, conquistada por una- o Brasil possui. Natural do Rio de Janeiro,
nimidade de votos. AI.' ~rfeiçoou seus estudos Oscar Borgerth terminou seus estudos musi-
de piano com destacatlos mestres: L. Levy, cais no antigo Instituto, obtendo o primeiro
em Paris; Tomás Tera n e Madalena Taglia- prêmio de yiolino, Realizou, em seguida, ex-
ferro, no Rio. Virtuosl das mais apreciadas cursões por várias cidades do Brasil. Fixan·
apresenta-se freqüentel lente em audições ra- do-se no Rio, ingressou como "violino-spala"

-- 347-
qllestru da Cape] 1 Imperial, Desconhecia
as dificuldades d I instrumento, chegando
mesmo a afirmar, certa vez: "Dêm:me um
[amil.llco velho ar nado com quatro cordas
que eu executarei :lêle tódas us composições
de Paganini!. ,," l\'orreu com noventa e tan-
tos anos de idade,
Agostino Robt io esteve !lO Brasil, em
1845, como "discípulo de Paganini", coisa
contestada pelos C1' mistas,
Nêsse mesmo H10 deu concertos no Rio,
() alemão Antonio Saenz, No ano seguinte
veio o belga CarIo Nynen e em 1847, Giusep-
,pe e Alessandro Droccioni,
Augusto Luiz l\loeser, da côrte de S. Ma-
jestade o Rei do Hlinnover e o violinista por-
tuguês Nicolau Medina Ribas apresentaram-
se à platéia brasile 1'a em 1848.
No ano seguink veio o llotavel virtuose
Léa Bach, ullla das Inalores ha! piSt8.S l'spallholt1~, radica.do. CamilIo Sivoni, gel10vês festejado e aclama-
no Brasil do em Paris, Viena Londres, S. Petersburgo
e nos Estados Unidl>s. Os professores de mú-
na SOeÍedade de Concel'los Sinfônicos, sob n sica do Rio de Jan,,:iro ofereceram-lhe llma
orientação de Francisco Braga. Em 1H29 se- medalha de ouro.
guiu para a Europa onde, durante dois aBOS, Luigi Elena, 01: tl'O italiano que aqui se
realizon concertos em várias capitais, De radicou, chegando :; ser diretor da Filat'mô-
regresso it pátria, integrou um trio com o nica, em 1858; toe lU, em um concêrto de
pianista Tomás Terall e o violoncelista Ibel'c
Gomes Grosso, Em 19a2 foi nomeado spala,
na orquestra do Teatro Municipal; dez anos
depois passou-se para a Orquestra Sinfônica,
onde permaneceu até 1945, Desde então, de-
dicou-se exclusivamente aos concertos de so-
lista e música de câmara, exerceildo também
o magistério na Escola ~adonal de Música,
onde é catedrático de violino.
Oscar Borgerth tem atuado como solista
em todas as ol'quesÍl'as sinfônicas do Rio,
executando concertos do repertório clássico,
moderno e de autores brasileiros. Integra há
"árias anos, com sua esposa, Francisco Co-
rujo e Iberê. o "Quarteto Borgerth", de larga
atuação no Brasil.

() priJlleiro violinista conhecido !lO Bra-


sil (segundo Cel'llicchiaro) foi José Joaquim
dos Reis, nascido na Bahia, cêrca de lí95, Era o notánl rJianh Cl Arnaldo Estrela, um
dos mais perfel' ,s executantes da arto;
habilíssimo executante, tendo integrado a 01'- oian! 'tca 110 Brasil

- R4F\ -
Gottschalk, a famos: sonata de Kreutzer,
imortalizada em um'omance de Léon Tols-
toi. Faleceu aqui me~mo em 1879, lançando~
se do alto da igreja la Candelária ao solo,
Vieram depois, : o Brasil, os seguintes
violinistas:
1852 - Gustavo Von March, holandes,
do Conservatório de 3ruxelas,
1855 .-- Mme, Fn t'y, francesa e seu com-
patriota, M, A, Labbé', que se apresentou no
S, Pedro de Alcântn o'a, aqui permanecendo
quarenta anos,
, 1858 - Paul Juli: n, também francês que,
após alguns recitais, :10 Rio, empreendeu ex-
cursões pelas províne as de Minas e S, Paulo,
1860 - Martins ~ imons, violinista do rei
da Dinamarca, Santo Paiva e Antonio Assis
Osternold, um brasilero que se revelou nesse
ano,
1862 .-- Mme, V;11deners, francesa e Vi-
tor Gusman, espanho , Por essa época assi-
nalaram-se também o nomes de Andrea Gra-
venstein, nascido em I.msterdam e seu irmão,
Luiz Gravenstein,
1863 - Oscar Bemardelli, que estreou no
Teatro Lírico Flumhense, aqui ficou com o vinliniRta OSCM Borg·erth
seus filhos, Rodolfo, lenrique e Felix, o pri-
meiro escultor e os (litros dois, pintores dos
1(JO(), após leI' estudado em Paris. como pen-
mais ilustres no Brad, Faleceu em 1881.
sionista do estado da Bahia, José ck SOUZ<1
1864 - Apl'eSenl l-se ao público o violi-
Aragão, falecido em 1904, Policarpo Cesári(J
nista brasileiro Man:lel Joaquim Maria, no
de Burros, Ludgero José de Souzn (' Edllfll'(!n
S, Pedro de AlcàntH'a, E' justo relembrar
:\-Iendes Franco,
ainda os nomes de F.'ancisco Carvalho, Gui-
:Maurício Dengrement, nascido no Rio di'
lherme de Oliveira e vIarcelino Cleto Ribeiro,
também brasiléiros, .Taneiro em também uma brilhAnte promessa.
arrancado da vida, prematuramente.
1870 - Exibe-se no Ginásio Dramático,
ao lado de sua irmã "ianista, o inglês Joseph 1872 --- Apresenta-se, no D. Pedro, o vio-
Reine, violinista cegt. ele S, M, a Raínha da linista patrício Ciriaco de Cardoso e o inglês
Inglaterra, John Jesse White, f:ste üItimo residiu no Rio
Nesse mesmo an J, deu recitais, no Rio, cêrca de dez anos,
.: o brilhante violinisb espanhol Pablo Sara- 1879 -..- Protegido pela Princesa Isabel,

I sate, virtuose predileio do rei e da rainha de


Itália.
de quem foi mestre. \'Cm ao Hio () yiolinis-
ta GiuseppcWhit<" nflsC'ido L'1lI Mattazns
;\H óp()cn, no !"1I1 dos violinistas brasi- (Cuba). Seu eonlemporàneo foi Vicenzo
leiros, ('ontavam-se IS nomes de .Tosó Pedro Cernieehial'o, \'iolinj~ta italiano, allto!' de uma
ele SantaIla Gomes (II "Muno Jllca") e de Ade- "Stol'ía delI a ;V[USiCll nd Bl'a~ile". a cu.ias pil-
JelnlO :'\Hscilllcnto, llliallo, que acabou como ginas dCY('rríos () presente registo (le vil't.l1osi.
<1i1'elo1' do COllsl'l'vu!/n'io de Música, ele Ma- \'iolillislilS ('Illól'ilos fOI'Hlll, !lu findar do
IlHllS, Outros IJaínllm tIL- lc1lento foram os viu- sl:eulo deUll()\'(' e prillcípiflS do alnal, os hrn-
linistas FI'tlll('isco ~I Illiz Barreto, morlo ('111 silt'il'l'S Nirolili(J (: Humbertu i\TilmlO, Cannil;,

-- 34!l ..-
Giulio Bastianl, taw iH~lll filho da península
itálica.
1883 -- Passa PI lo !lia o violinista han-
ces Ismael Diepedaa . que dá alguns ('.oncer-
tO:-i no Clube Beetho' en.

1886 - Johannef· Wolf, holandês, prêmio


de violino dos Consenatórios de Paris e Dres-
de, realiza um eonc( do em Petrópolis e ou-
tro, no Rio.
1889 - Giulietta Dionesi, famosa virtuo-
se italiana, conhecid , como "a diva do vio-
lino", alcança largo triunfo em alguns con-
certos realizados no :'ealro Santana. Morreu
em Ouro Preto, no a:.o de HH2, em completa
indigencia, vivendo F'US últimos anos da cu-
ridade de alguns am:gos.
Em 1890, primeir.) ano da República, lres
artistas nos visitaran : Luiza Terzi, espanho-
la; Eurico Hosa, ita i ano e o negro cubano
Brindisi di Sala.
1905 - - Surge no Rio a violinista italiana
Emília Frassinesi, cu u concêrto no Instituto
Nacional de Música, marcou êxito invulgar.
São também defia época os violinistas
o yjol(n1('Pli~t:l Jhf'rê Gomes Grosso
Hafael Diaz de Aihel tini, cuhano; Gerolamo
De Angelis, italiuno; )s hrasileiros Artur As-
Campos, Jeronirno Sií\'<I, ~()elllja de Oli- càllio e Sérgio l\IaC'ed ) de Barineourt e Luigi
\'eira ... Sal'ti, italiano.
o primeiro chegou a cOllljJor várias pú- Em 1903, teve iní 'io a sl'rie de concertos
ginas, das quais se destaca um Trio para vio- de Francisco Chiaffittli, nascido em S. Pau-
lino, viola e violoncelo. Nascido em CampÍ-
nas em 1873, esteve no Rio Grande do ~orte,
onde ocupou os lugares de diretor e professor
do Conservatório. Seguindo para a Europa,
:\'icolino tornou-se intimo do reÍ D. Carlos,
de Portugal, que o nomeou violinista da Real
Càrnura. De Lisboa transferiu-se. mais tarde,
para a capital francesa.
Seu irmão, HumbeJ;to Milal10 fez brilhan-
te carreira como vÍrtuose, chegando a ocupar
a cátedra de violino DO antigo Instituto );8-
clonaI de :Música.
Jerônimo Silva, nascido no Rio, em 18i2,
"iu-se agradado com a medalha de ouro, do
Imperial Conservatório de ~Iúsica, em 1888.
Brasileiros contam-se ainda, na época,
Serpa Júnior e Anlónio Abramo Hapõso. Em
1881 veio ao Brasil o faJllosodolinista italia-
no FI~flnce~eo Pado\'ani l". nu HHO seguint{', .'\. :Ilia.nist(L rIa!'. Gomes Gl'O~Sü
lo, em 1880, e um do~ mais destacados violi-
nistas do Brasil atua , Cursou o Conserva-
tório de Bruxelas e ",,!tou à pátria em 190~;'
Como compositor cscr 'v eu páginas inesquecí-
veis. dedicando-se co ~l ca,rinho ao magisté-
rio, Por sua mão pa~ ;ou uma distinta gera-
ção de vÍrtuoses,
Outra excepcional revelação da época foi
Leônidas Autuori, tal lbém nascido em São
Paulo, Seu primeiro concerto, no Rio, em
1920, logrou assinalad I êxito,
No ano fatídico la "gripe espanhola",
faleceu muito moço, J ,) Rio, o violinista Má-
rio Caminha, natural !o Hio Grande do Sul,
vcrdadeira promes~a , c hom executante,
Em 1910, ViSitoll-IlS () violinista uruguaio
:\Iigucl de Nicastro, F 11 1!ll2, fazia-se ouvir
no salão do ".T ornal do Comércio" o paraensc
:\lamcdc da Costa, que cursara, na Europa, o
ConscrYalório de Lil ,ia (Alemanha), Foi
lambém composi lar e professor no Conser-
vatÓrio do Pará,
Em 1914, aparccéll no Rio o famoso vio-
linista russo Misca "idill (Gorski), com H\
anos de idade, yerda, !eira JJl'ecoeidade ar-
tística.
Süo llomes de rele, ), na a!.lluliduue: Pau-
linu tf'Ambrosio, distÍl: ~llida professol'a, An-
tc'mi u Cm'doso dt' Mel1( 7,cs Filho, nascido no
Hio; Cecília Faleo, de S, Paulo; Branca de ·Hi1.,~tr(l F~t1Q";:.n Szenlrar, Idealizador da nl'(]tH:·.-.:tl'f1
Sin.rnnka nrnsikil'fI
Canalho; Corina FOI, loura; ~,Iarin :\IilollC
,'az; Edga1'do Guerra Elll'i~() :\la1'cos. de
Santos; Peri Machado; . 'rederic{) de Almeida; tUOlSi nOS visitaram, ou aqui estudaram, pro-
.\Iario Houdini; Orlan(i) Fl'ederÍl:o; Djalma porcionando recitais, protegidos pela côrt('
Hibeil'o Lessa; Carmen Lorena Boisson; Gut- rmperial,
tenberg de Morais; 1tiar os Salles; Isaac Feld- Foram éles: Casimiro Lúcio de SOUZ,)
num; Edmundo Blois; Célio ~oglleira; Yo- Pitanga, Paulo Carneiro, Werner. J, )1. Cam-
landa Peixoto; Carlos le Almeida; Ada de pos, :\Iax Bohrer, Gllido Hocchi, Criuseppl'
Araújo, etc, .Martíni, () francês Beaumont. (;ioyunlli Cnr--
O Rio de Janeiro te II tido ainda o prazer reme, Horeio Fluminense, etc,
de ouvir, constantemell e, os mais brilhantes Frederico Nascimento, nascido em Lit-,-
r artistas do arco, em Cfllcertos memoráveis, lJoa, em 1892, estudou com o prof, Casellu,
Vale recordar, por alto Flol'Ízel von Reuter, em Portugal, vindo para o Brasil, onde che-
cm 1906; .T, Kubelish, Cll 1910; Franz Vecsey; gou a ocupar a cátedra de solfejo e harmonia,
Juan :Ual1en; Michael L~vchitz; Barry Farh- no antigo Institulo Xacional de ~[úsica, do
nUIn, Ricélrdo Oduopos., off, etc, Hio,
Em 1903, y.isitou-nos o mais célebre vio-
loncelista da atualidade: Paulo CasaIs, Em
:\ ào (' grande o Illl !ler!> dos nossos VlU- 1912. yeio também ontro espanhol: Antonio
1()~H'elistns, :lo sp('ulo ,Iezf.no"e alguns vll'- Sala
Luiz Cândido de Figueiredo, brasileiro, tau-se ao público !)rasileiro a harpista espa-
natural de S, Fidélis, era também distinguido nhola Esmeralda :enantes e, em 1887, o ce-
executante, lebre Felicc Leba :0, napolitano, que causou
~ewton Pádua é, mui justamente, con~ verdadeiro frêmih de rntusiasmo em nossas
siderado como um dos mais brilhantes vio- platéias.
loncelistas dos nossos dias, Completou seu Outros nIltos de interesse, no conjunto
curso em· Bologna (Itália), sob a orientnçilO dos harpistas na ],istória da música J)l'asilei-
do maestro Faricci, De volta ao Brasil, eslu- I'a, são: Armando :\'lilano, nascido no Rio (Ir:
dou ainda com o mestre Alfredo Gomes, no Janeiro, em 1880; Carminc i\lal'sicano, CarJo
Instituto, conquistando o primeiro prêmio. DUJI1H~CO, Guido I lliza, Maria Suino, italiana,
E' hoje professor da Escola Nacional de Mú- Olímpia Catla Pr :ta, Ester Santos, e final-
sica, do Rio ele Janeiro. men te Léa Bach, [dista consumada, cuj a car-
Luiz Figueiras nasceu na Bahia, onde' ini- reira tem sido UI' la série de notáveis suces-
ciou esiudos de música. Veio depois para () sos. Nascida em harcelona, matriculou-se aos
Rio, completando °
curso no Instituto, com oito anos de idadl no' Conservatório daquela
o primeiro prêmio, Esteve em seguida na cidade, obtendo ( diploma aos treze anos.
Europa, tocando em Bologna, Roma e Ber- Em seguida, dirig u-se a Paris, onde f("z um
lim, De volta, dedicou-se ao ensino, em São curso de aperfeiço lmen to com o prof. Hassel-
Paulo. mans, Aos 15 an lS iniciou carreira concer-
Há ainda os nomes de Alfredo Batista tista, realizando n nnerosos recitais em vários
Martins, Gustavo Hesse de Mello, Eurico Cos- pnísrs da Europa ( América do Sul, O último
Ia, Carmen Gomes, etc, teve lugar, em 19 !7, na Escola Nacional de
Música.
E' uma artistE de grande mérito. dotada
de extrema sensibilidade e de notú\,pis qlla-
Para nào deixar de falar em certos ins- lidades de executa ;lte,
trumentistas, que por deficit\ncia do meio niio Veio para o R asil em 19H1, aqui se radi-
têm podido suIielltur-se, eOlllO concertistas. cando e exercend, o magistério, Suas altas
mas apenas C01110 solistas de concertos sinfó- qualidades de exeutante garantem-lhe o lu-
nicos, vale a pena citar: os clarinetistas Antão gar excepcional d, primeira eoncertista, cm
Soares, .T oão M alamute (' Fra l1k lin Carvalho; tôdas as capitais ( o mundo, eomo ficou am-
os oboistas Agostinho (~()u\'eja c Alberto Ln- plamente demonsf ado em seu último concêr-
zoli; o contrabassista Antonio Leopardi; os to, em maio de l( t7, na Escola Nacional dc
flautistas Ari Ferreira, Moacir Lizerra e Pedro Música.
de Assiz; os cornetinistas Alvibar I\' elson de
Vasconcelos, Djalma Lopes Guimarães, Artlll'
Tern e ~ apoleão Tavares. Em 1939, José Siqueira, fazendo um re-
tL'o~pecto do Brasl musical no século XX,
assin alava com ce do pessimismo:
"Em matéria de Orquestra Sinfónica o
A harpa, instrmnento Ilobilissimo, de ori- Brasil está atrazal! íssimo. Temos a Orques-
gem egipc'ia, cujo prestigio att' hoje se afirma, tra Municipa.l no r io de .T aneiro; a Orquestra
graças ;'1 dclieadE'zlt do espirito que preside ii Sinfôniea CampinlirH, em Campinas; a 01'-
sua. e:\cl'lI\·~IO, klll l'olll'l'dido ao Brasil certas <[lIt'stra Sinfimica, em São Panlo; lima 01'-
n'\'daçôes. qllestra de allla(\o:·es Clll Belo Horizonte c
O pl'Íl11l'iro IIOllIl' a l'l'gisl<ll' Ó li de l\IUll'. outra CIII S:iu Joü , d'E[ Hei.
StolT, qlll' df'lI l'OIIl'.Cl'los IlU S. Pedro de Al- "Criaram-se \I I gestúo Pedru Erlll'sto os
dllllara, efll 1840. \'('111 depois (I do italiallo CÓl'pOS Esla\'eis (o Teatro Municipal, qlle
Gi(lVHlllli Tl'ollconi. l'lll IK:í2. l' o dt' ~hl(lallll' CCnllpl'CClldcllI 01'lf Il'sll'u. Corpo de Uai]" ('
Helio\', fl'(llH'l'Sn. t~m IRRG. Em IRRO, :lrres(;'II- CÔI'O í\lislo.

- 352 ---
o "Quarteto Borgerth" (Violinos:
Oscar e Alda Borgerth; viola:
Francisco Corujo (argentino) e
ceIo: lberê Gomes Grosso

"Fundaram-se vários;indic.atosde classe, tregue à competência do grande maestro Eu-


com-enormes vantagens p:1ra os músicos pro- gen Szenkar, um dos maiores animadores do
fissionais, em São Pauk em Pôrto Alegre, pandJ.'ama musical no Brasil, hoje naturali-
no Pará, no Ceará e no :Uo . zado brasileiro.
"Tive a honra de ] residir, no Rio de A trajetória gloriosa da Orquestra Sin-
Janeiro, ao Primeiro COlqresso Musical Tra- fônica Brasileira, garante-lhe o primeiro lu-
balhista, em que se fizer 1m representar ni- gar nas iniciativas dêsse gênero, realizadas
rios Estados da Federaçâ,. no Brasil até os nossos dias. Quer no Teatro
"Realizou-se em Sã0 Paulo, ideado por Municipal, quer nas audições dominicais po-
~lário de Andrade, o Pri neiro Congresso da pulares, inestimável tem sido o serviço de
Língua Xacional Cantadr. em que tomaram difusão cultural prestado pela O. S. B. em
parte figuras destacada~ dos nossos meios um esforço louvabilissimo de elevar o níyC'l
nrlisticos e culturais". artistico do nosso povo.
Hoje. no cntanto, po, temos assinalar um Outras organizações de conjuntu mel·e-
IHo\'Ímento mais intenso na organização de cem, por seu turno, citações especiais, desta-
('onjuntos orquestrais. Sim falar cm outras cando-se dentre elas o Quarteto Borgel'th e
realizaçõcs. Yerificadas qui, e111 São Paulo o Quarteto 1acovino.
f' em algumas eapitais, basta a citação da O primeiro é constituído como ja ficou
Orquestra Sinfónica Brasi· eira, orientada pelo dito, pelos violinistas Oscar e Alda Borgerth,
próprio José Siqueira. 01 ,ra monumental df' violinista Francisco Corujo e violoncelista
cultura e idealismo, já pj ·ônamente vitoriosa. Iberé Gomes Grosso. Contando vários anos
Aproveitando () entl :.<;iasmo despertado. de. atividade 110 Rio de Janeiro e em outras
110 Rio, pelas orquestras chefiadas por Tos- cidades do Brasil. tem desenvolvido um tra-
I'anini f' Stokowsky, um :rupo de brasileiroi'o balho incessante em prol da música de cá-
resolveu fundar. a 11 de julho de 1940, datn mera executandó, além do repertório clássi·
do aniversário natalício te Carlos Gomes, li eo, inúmeras obras de compositores moderno~
Sociedade Orquestra S' nfônica Brasileira. estrangeiros e brasileiros. Colabora continua·
cuja orientaçã.o artística • irou desde logo en- mente com todos os compositol'E'S qlle visitam

- 353 ---
Os cOlnponentes do fa.mos0 Quarteto Iacovlno,
destacando-se a violinista I\larhlccia Iacovino,
que deu nome ao conjunto ..

(l nosso país apresentando suas obras de cú- Com a idad, de 16 anos venceu o con-
mera. Alguns dos mais notáveis composi[o- curso para prê nio de viagem à Europa
res aluais já lhe têm dedicado páginas me- (1930). Os sucef -.os politicos do mesmo ano
moráveis. Entre êles estão Villa-Lobos, Lo- tiveram como cc Iseqüência a suspensão dos
renzo Fernândez, Hadamés Gnatalli, Helm. créditos para êses prêmios, em virtude do
etc. Em recente tournée à Argen tina, o Quar- que não pôde ef .'tuar a yiagem a que tinhn
teto Borgerth obteve êxito invulgar rm Bue- direito.
nos Aires, conforme atestam as aprecia(;õe~ Organizou ej tão um quarteto de corda~
dos maiores críticos portenhos. com ex-alunos, ')dos primeiros prêmios da
O outro, Quarteto 1acovi1l0. apresentou- Escola oficial, 1 ~alizando concertos no Hio
se em audição de estréia em fins de 1941, n(l de Janeiro e efftuando tournées pelo país.
auditório da Associação Brasileira de Im- Como solista org;nizou concertos no Hio, São
prensa. Após se haver organizado em Socie- Paulo, Belo Ror wnte, etc. Ainda como so-
dade, "destinada a divulgar a música de cã- lista atuou com ( i'questras dirigidas por Villa
mera e estimular o gôsio do público por êss( Lobos, Eduardo ITuarnieri. Francisco Braga
gênero de músira, especialmente pelo quar- e Burle Marx.
teto de cordas", realizou u seu Pl'imcil'o con- Com Weing, !'Iner, em 1933, tocou uma
cêrto no Ministério da Educação. São seus sonata e outras ,.bras dêsse compositor, que
componentes: então visitava VI la última vez o Rio de Ja-
Mariuccia Iacovino. (1." \'iolino) que tez neiro.
os seus estudos com Paulinad'Ambl'ósio, con- Em 1U40 flLl dou LlUl 110\'0 conjunto, a
cluindo com distinção o curso oficial da Es- princípio dellom Ilado Pró-Música, e poste-
eola Nacional de Música em J927, C0111 a idade I'iormente Iaco,:ü o (Quarteto Iacovino). COlil
de 13 anos, obtendo a seguir o primeiro pré- êle atuou na Su . Pl'ó-l\oIúsit.:u e nu CUltUl'l1
mio (medalha de ouro). por unanimidadr Artística, do Rio Em 1945 (abril) inaugurou

'.
cum esse qUal'lelo H "Soe edade do Quarteto". Sanlino Parpinelli (violai, 101 laureauo
idealização sua, que arO ,ticamente dirigiu e com o 1.0 prêmio na Escola Nacional de Mú-
na qual, durante dois aIOS, realizou concer- sica, na classe de Paulina d'Ambrósio. Hea·
tos mensais. Ainda em 1 145 formou com Ar- lizou recitais e concertos com Orquestras, no
, naldo Estrela um duo. para execução de Rio e nos Estados. Tem "spallado" grandes
Sonatas para Violino e J iano. Em 1946 esse conjuntos sinfónicos e cooperado ati"amenté
\ duo voltou a apresentar-;e no Rio e realizou lla divulgaç'ão de obras modernas.
A.ldo P(ll'isot (violoncelista), naseeu em
r uma tournée ao norte, lue se estendeu até
Belém do Pará. Em Hl!7. ambos encanta- Xatal, onde estudou com Babini; veio ao Rio
ram as platéias do Rio ( de Belo Horizonte, aperfeiçoar-se com lhere Gomes Grosso. Hea-
executando especialmen e as referidas so- lizou recitais e concertos com orquestras no
natas. Rio e .em vários Estados. Em fins do ano
passado organizou um festíval em São Sal-
Mai'celo Pompeu (2.' violino) nasceu em vador.
:Ylinas Gerais, onde inici lU os estudos. Veio Na "Sociedade do Quarteto" o Quarteto
ao Rio aperfeiçoar~se COll Paulina d' Ambró- lacovino apl'esen tou Quintetos e quartetos
sio. Tem se distinguido \O meio musical do com piano, tendo a colaboração de Miecio
nio pela sua atuação n(·, grandes conjuntos Horszowsky, Tomás Terán, Arnaldo Estrêla,
sinfônicos, . :VIaria Amélia Rezende Martins, etc .

• • •

-- :-s55 .
C,~ONCLUSf\O

.. Lu masique adoucil les fTiO:>Ul'S... eis amu {FUSt'


It'pisadu sempre que se {ale de mlÍsica, em qualquer pais.
QUI' ela abranda Os costumes, disso, realmente, temus
('olwicçiio ,seguJ'a, As almas, por mais l'lIdes IJue seJam, dei-
./'1 1lll-.'5 (', por vêzes, enter-necer 011, pelo menos, cnlepa)', ul/-

nindo a harmonia dos sons,


['m l/atllralista iHglê.~ c/Wyull me;;/JIU (/ afirllwf" UjJ(ís
(,liSi'l'Uaçàes, de cel'to modo, cOllcludt'llteii" que os jJl'lÍprios
tlllimais não são illsensívei.'5 às delíciall dú. mlÍ.sl('(/, ..
,')'e assim é, nada mais /ouvlÍve[ do que aplicar-se (/ mú-
,~i('a na tentativa de refillamento da alma popular, como um
meio de tornar os homens melhores, mais sens(veis as causas
externas - princípio consagrado/' do espírito de .~olidarit'­
"ade,
Confesso que nutl'o () mlll:s sinct'/'u entllsiasmo /lO/' todus
(JS bem intencionados, que julgam ser possíveL tornar a hu-

JIIllnidadl-' mais perfeita através da (Ir te . Embora isso não


llconteça--- já que o homem é um eterno insatisfeito é
inegâvel (( contribuição que n mz'udca podr' ofererf'l' para II
I'ducação dos povos.
Em jJ(the,~ (rc[íaulw{os, IIS flJ'(rndl'H (ln/tll's/n/" 1',CI'('II(lIIJ/

(lU UI'livre, li preços íntimos, os melhores repeff()rioi.\ clás-


sicos /~ modernos, SO,ç Estados Cnídos, pOI' f,l:(~mplo. M1()
rl'eqiieJltes os concertos realizados aos domingos, pela mallhú
l' ti farde,em váriaR cidade.s I' a ('I1,ias (ocais /J popa {/CO/Tl'.

pl'azeil'osamente,
Pelo Jlississipi deslismn i'llUl'IJlt!s .. (wditório8-lluillQflle8".
I.lue atracam nas Lli!as ribeirinhas e onde notáveis conjuntos
I',rl'rufam seus reâtai,~ para a massa, espalhada na8 margens
/Iii ()/,ljuJlú<ldo" ,J$lJet'ia'Jll~llll! para li íuvellluJe
/J["OYI'WIlUS

!lOS quais, afuam StokolVsk", Kollsse/1it,~kl! (' outros regf'ntel'


di' fama universal,
Sucede o mesmo na JnglateJ'I:a, na União Souiétic([, etc,
Com isso, realizclm êsses países um grande passo no caminho
da "socialização" da AdI', traundo-a para o pOlia, ao ah:ance
das ciasses menosf(l/1ol'ecidas,
A boa músi(~a- 'f//('. é das A.rtes (l mais acessivel ao
';l'lllill1ellto I; ri comprcensrlo das mllltid(ies-- lem .sido um
jJrivilégio das camadas (Ifortlll/adas, de lima minoria l'edll-
::ida, meu'la de entendidos e de "snobs", Os mais humildes.
,~em recurso:) qlle lhes pPI'J1lif(/n! pagaI' os prazeres espiri-
mais pelo 1//'f'ÇO com que o:) JI/I'smos se aprl'u/llam, /!pelll-sl'
lH'ivado,~, via de regra, dêsse,~ momentos de pura devaçâo
cultllral, na aridez de S/las vidas,.
E' óbvio, /la enlaniu, IJU~ -rc-I~J.:istellciastÍ é Sllblimada
pelo enlêvo artístico, pois, a arte de uivl'T' consistI' em fazer
da vida llllW obra de arte.
São bemuventUT'ados todos aqueles que, - na opzmao
,II' \'an Loon ;. s/'ntem que /; possíuel prescindir do almilço
II/I do jan til/' , Illa,~ ljue, sem um pOllCO de mLÍsi('({ 011 de pin-
illm. li vida nâo vale a pena ser uivida., ,"
() cOllfôrto que o progresso tr(/z, os benefícios e o bem-
(',~lal' que os aperfeifoalllenlos da Qllímica e da Mecânicu
[iOdem proporciona/' ao homem do século vinte, nada tem
ri iiI'/' com os ]il'llZel'l'S que su a cult/lra I; rapaz de criar,

A oida, }lO}' wais ujJllleúla q/ll' seJa. é sempre I1Jl1 oaziu


Irremediável se (/ criatura humana lUIO pl'l!Cl//'(/1' preenchê-lu
('om o idealismo filosófico, artístico, religioso Oll jllrídico,
jJ u /' ISso lIle,~I/1O, ÍI t!r.'/let' precípllo de lodos os respon-
-,aveis pelo destino dos povos, deve ser (/ preocupação de
lornar os prazeres do espirita tilo fácil11lellle acessíveis, como
() são os artigos indispellsá/ICi.~ ii ]JrójJl'ia manuteJ1çlio,
:-t llllmanidadl' se ,~elltirá ('cl'lamelllc mais leli:, !lO riia
OH qlle os livros, as J1llÍsica,~, (/s [PIas (' ax estát/las, deixarem
de ser "lwvos dispendioso:)", ao alcance de llma reduzida
classe de pri/Jilegiados, para $e tor11arem de mais fácil ob-
iencão.

• • • • • • • • • •

• • • • • • • • • •
, '
INDICE DOS C A,P I T U LOS

OCYERTURE

os TRÊS GRANDES DA MÜSIC.-\ BRASILEIRA 1"


"
I - "1LL\ LOBOS "
() hOI1l('m red(' ilS Y(;zes, à~ tl'nta~'ôcs do diabCl """". 1i
Os pl'illleiros contactos (lo artista com o Brasil ,."" .. , 211
," l' os prinwiros ('onlac[os com I) mundo """"". 2,j
"E' preciso ensinar o Bnlsil a cantar !" '",., " , 2ti
Onde se verá qur () :lrtisfa já rs!à cOJllpleto "'"",.", :!!I
() "climax" artislkn de Villa Lobos nlinge (l st'\1 pnnl"
('ulminnnh' 3~

II -- LOHEI'i7.0 FEH\",\.\"JJEZ :{i

,\ rliwl'sidarl,' de npi ni.il's (' sempre prowitosa .... ",.. :1(1


P,lI'lindo da lllúsi('<t 11l1iH'I'\~lI cheg:1 " 1I1'tisl:i ii músil'~
nacionalista " ... ,.... , ....... , I:!
,\ ascensão l' snas elapas , . .!;,
A sine{~l'i<lndr lln lIrt(' . !k
m FHAXC1SCO )HG,\"(),\,,E
(;rn drallla dentl'P de um h:dl:l<l('
.-\ poesia <lns sl.lhúl'oios , ...
Ascensão ('m linhn rela , .
•\ inept'f'{'nsí 1'('1 franq[j('zH ('om qUI' " urtistn fflln
DO INTERNAClONALIS~lO AO XAClO:l'ULISMO MlSICM. f'!11

Alguma.s considrraç'ões que correm por minha ('ontr, " l'Í~c" iJ


Conceitos análogos sóbr~ duas arte~ 7;.
Tendências naci()nali,~tas d!l música atua 1 .. ifl

A MÚSICA ~O BRASIL
".Flór amorosa de ·tres raç.as tristes, , ." . 8~
Divagações que poeJem ter alguma Iltilidadl.' 9(1

""" CONTRIBUIÇÕES DO íNDIO .E DO NEGRO !li

HARBAHA POR.\CF;

.\ IIlÚSieH {jUt' l':\Íslia 1111 Bl'1Isil fl8 __

,IU'\"(;O AFHTCA,\,,()

.\ aeultl1J'Hçiíu do I1q~l't) 11<) BJ'as.il lli,


Sudanese, (' Halltl1;, 118
I:àntieos t' dansas :1f1'1I-bl'asilt'irr.' 122
(:ongu (' :\l<lracatll 12í
IIlSll'l1JlJelltlJs :1f'rú-I.!I'<isilt·il'us [:J~
I f\~
);-·MÚSICA NO BRASIL COLONIAL 13í
TRÊS SÉCCLOS DE JESUTlS:.\lO
--> Os famosos autos dos jesuí.tas
Como agiam os catequisadores
.\ PR[\!EIHA CÓRTE ~O BHASIL
D. João VI (" H Capela Real J jJ
:.\Iúsica Sacra e música profana 155
:.\farcos Portugal e JosÉ' Jf3Uricio 15í
.\ MÚSICA NO BRASIL IMPERIAL IR"
() .\JlBIE:\TE ~IrSlCAL ~n I'RDIEJRO nlPER10
O llrindpe-composit"r ....................... lfii
Francisco 1!anl1el e (J "Hino :\~,:i()naJ" ........... 17:1
O Cons(:rvatório de JIúsica .......................... I i,~
Teatros c Sociedades ~Iusicai~ .............. 18:1
.-\ "Imperial Acadcmin rir :\fúsÍC'n I' ÚjWrA :\'acional....... I Xi
II GÊ:\'IO CAMPl:\'ETRO
A águia ensaia us primeiros .\·óos 1!1;;
"II Guarani" ." ..... , ... lfJi
"Fosca", "Salvator Rosn" I.' ":\farifl Tudor" . :WU
"Lo Schiavo" .......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . .......... 202
() rim ,. ;1 iIll()rtnlidade ,.................. 20i\ '
A MÚSICA ;-10 BRASIL REPUBLICAM)
-_.- -' - -- - --._- .. __.--<_.-
:!I J

:\ inquietação das ahdhas ., ......... ,.,.... :!J:;


(~ottsehalk, GIuuco VelaSCIUl'Z I' Artll!' \apolcão ... ::1 ~l
.\ movimentação do ambicnt .. Illl[~;c;,j nns úl!illlllS 'p!'lI'li'i,
do século dezenove , .... ,... ........ 2211
Leopoldo :\Iiguez (' Henriqup O~walrJ 223
Itiberê da Cunha (' AI(,x~ll"n' IA'''.' ............ 22(1
Alberto ~epOl1HICen() ,.,........... ..... ... 22~J
Francisco Vale, Ba1T(J~() ~~I;'t() (' Francisco Bnl!.(H 23::
Ernesto ;\Hzureth (' os Inngos .................. 23i
Os tempos são ns tcm [JOS 2·11
Luciano G:dif.'1 l' C;imargo CuarniC'ri ... 2·t:!
O~ de hoi(' 24~i.
Falam noyamcntr· I)~ trés gnllld", s"bre o fnlllrn 2~7

__
,..,..'..;.FOLCLORE
..._.
E MCSICA POPl'LAR
._._._._._-_._--_._._---_.
A debatida lluestão do nossc' folclore 26~)

O que se deve entender por folelore bra~il('iru ::!Iií


- ns problemas do ritmo, da harmoniD Jipic8. do instrul1lt'Ilt;;l
e das dansas brasileiras ... , ............ .
A~ tendências da musiefJ brasílt'irilconlemporànea 27;;';
.- "Almirante". as canções d(' ~l1genho f' os pregôes .. 28::
~. As festas de Sáo João, da Penho t' no Senhor de> }\olllfilll 2~í
__ Sambas, cansadas t' frevo~ .. . ...... ' ... . . ::!9.1
Serenatas, .pre§.epe!> e P\ls1!:'I'is, Cantigas de ('\'j:(OS. 11 t'I.H,.... .
Aboios, As'!'ombraçôe~. 29~:,

Lendas do Brasil ' , ..... . :WIi


_'4 A música popular l' (I Carnaval , ..jlllt,
n Rádio c as Orquestras populares :\II,j
Comp()sit(lrt'~ (, lntêrpl'pt{'~ popul~l'''~ :11i!1

A OA!'SA E O VIRTUOSISMO :\0 BRASIL

() "ballet" no Inundu I' J)t) Brasil


A opera I' (J~ ... eus inh'l'l'l'('IC's
() \'Íl'tlw~isllJ" ('!ll r(' IIi" ...
1.:(I;,\r:LrsA(1

:ltiO.

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