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Dossiê Luciano Fabro


Este dossiê foi elaborado a partir da Sessão Extraordinária 0.2,1 realizada na Escola de
Artes Visuais do Parque Lage em 02/12/2007 como homenagem em memória de
Luciano Fabro, falecido naquele ano. Participaram do evento Glória Ferreira, de quem
partiu a sugestão da homenagem, Vanda Klabin, Carlos Zilio, Carla Vendrami, Leo-
nardo Tepedino e Luis Andrade, que emprestou sua voz a Fabro, para reanimar um
dos últimos textos do artista, aqui publicado. Na ocasião foi apresentado, em estréia
nacional, o documentário Fabro no HO, de Simone Michelin, sobre a individual do
artista no Centro de Arte Hélio Oiticica.

Cul de ciel estava ainda em exposição no vida é parte integrante. Esse, talvez, seu tes-
Louvre quando Luciano Fabro morreu, em tamento e legado de profunda e constante
junho de 2007. Uma espécie de testamen- reflexão sobre arte que, sem se reduzir à
to, ao qual o texto “Háptico: o sentido da identidade do artista, visa abrir novos hori-
escultura”, apresentado nessa ocasião, no zontes perceptivos, novas sensações e cul-
programa Faces à faces, também no museu, turas no interior da sociedade – sem
se vem somar. dissociar sensível e cognitivo. Questões pre-
sentes em sua produção, textos e longa
Parte do projeto Contrepoint, que visa experiência como professor.
estabelecer relações entre a produção
contemporânea e a coleção permamente do Na homenagem a Fabro realizada no Par-
Louvre, como um laboratório de trocas e de que Lage, em dezembro passado, e que se
reflexão sobre sobre o universo museológico, desdobra neste dossiê, o comovente vídeo
o trabalho de Fabro dialogava também com de Simone Michelin, documentando sua ex-
as produções de mais 10 artistas, entre os posição no Centro de Arte Hélio Oiticica,,
quais Robert Morris, Richard Deacon, em 1997, permite aproximação de sua poé-
Giuseppe Penone e Gloria Friedmann. tica e experiência de suas obras. Experiência
que, para ele, só poderia ser “tomar posse”.
Considerada pelo artista uma de suas obras
mais complexas, “mais ricas de sentido”, Cul Por feliz coincidência, vi Cul de ciel instala-
de ciel, constituída por uma coluna com da na Cour Puget. Também por feliz acaso
pontos de ouro engastados, delineando a tive o privilégio de conhecer e trabalhar com
carta do céu, que penetra a cavidade oval Fabro, a convite de Vanda Klabin, como
de uma grande massa de mármore, evoca a curadora de sua exposição no Rio e no pro-
integração do microcosmo, do macrocosmo jeto Ecco – artistas brasileiros por artistas
e do “antrocosmo” – palavra que ele inven- brasileiros, envolvendo intercâmbio de es-
tou para designar o mundo incluindo o tudantes da pós-graduação da EBA e da
Luciano Fabro parâmetro humano. Sua presença no Casa degli artisti, em Milão, dois anos de-
Cul de Ciel Louvre, sem quaisquer maneirismos site
Projet Contrepoint III - De pois. Privilégio que me é ainda mais caro:
la sculpture, Museu do specifics, reafirmava uma poética fundada na nossa amizade.
Louvre, Paris, 2007 relação entre história e cultura em seu sen-
Foto: Glória Ferreira tido mais amplo, da qual a experiência da Glória Ferreira

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Háptico: o sentido da nos do que um lago ou, mais especialmente,
do que uma montanha? Onde se colocar
escultura para pesá-los? Porque é necessário um pon-
Notas sobre a escultura por to de vista. Arquimedes, no entanto, se apro-
Luciano Fabro2 ximou.

Um céu, por onde o pesar? A escultura for-


A escultura como mal-entendido: nece algumas sugestões ou é a sugestão que
faz a escultura?
Acontece, às vezes, encontrar-se um ponto
de acordo sobre o que é pintura. Em com- O infinito é a única escultura de paisagem
pensação, designar algo como escultura é possível.
realmente arbitrário. Não há nada que o
possa justificar, mesmo se a escultura, até os A estátua:
limites do insignificante, pressupõe em geral Miguel Ângelo interrogou seu David: “Por
algo embaraçante e pesado – aspecto não
que não falas?”. E lhe perguntaria hoje: “Por
desprezível de um ponto de vista pragmáti-
que tu pesas?”. Na época da energia, somos
co. A própria compreensão da escultura,
humilhados pelo peso surdo da pedra.
porém, é em si um mal-entendido. Não que
se trate de assunto reservado aos iniciados, Na época da máquina, o desperdício de ener-
o inverso, sobretudo: a escultura é matéria gia faz dissonância. A pedra e a energia, an-
indigesta. E a “significação” que evoquei como tes da era da múmia, constituíam uma só e
dado prévio reside mais no apetite que esti- mesma coisa. O homem, ao manuseá-la,
mula do que na substância que sacia. erigia sua própria energia com a da pedra.
A escultura como múmia: Essa massa criou o ídolo, curto-circuito en-
tre o homem e a matéria. Confesso, com
O lugar que nos acolhe permite observa- toda indiferença, correndo o risco de pare-
ção que, em outra parte, seria mais difícil cer ridículo, que meu estado de alma e o
de verificar: fantástico engajamento físico que sinto não
me parecem tão diferentes, eu os sinto, ao
Durante uma dezena de milhares de anos, a contrário, bem coerentes com os do cons-
escultura foi múmia antropomórfica, múmia trutor de ídolos. O problema que levanto é
zoomórfica, múmia litomórfica. Hoje, ela se
o de saber se uma figura, que em sua cria-
liberou dessa obsessão de simular o que alhu-
ção se torna outra coisa além do que ela
res é vivo e que, nela, é para a eternidade
representa, é ainda uma figura. A figura
cadáver.
não é a princípio uma forma laica? O ter-
A escultura como sugestão: mo escultura permanece um embaraço,
etimologicamente servil, inapto a deixar seu
Há uma definição do jardim zen que consi- casulo e, no entanto, imbuído de sua pró-
dero exemplar: pria genealogia. Procuro, então, outro ter-
Nem flor, nem sombra, onde está o homem? mo ou parafraseio de outro modo. Talvez a
No transporte das pedras, no traço do anci- estátua seja termo oportuno. Nela há o po-
nho, no trabalho da escrita. der evocador que dá aos ídolos, por dizer
O olho pesando a natureza. assim, caráter. E esse poder evocador é tam-
E vocês, podem pesar uma montanha? Quan- bém o que leva ao sagrado, ao lugar do fan-
to pesa uma planície? Ela pesa mais ou me- tástico, do fantástico como forma de ilumi-

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nação. A figura não é, então, o “eu” narrador e de sua curiosidade e disponibilidade para
da estátua, o tema que nela narra e dialoga, explorar a vida brasileira, sem cair nos rotei-
que abre à meditação? ros convencionais. Certo dia, por exemplo,
para meu espanto, contou que por conta
No caminho em que a múmia se desagrega- própria percorrera uma favela. Por meio de
va em pedaços, encontramos a coisa, o ob- nossas conversas, percebi que provavelmen-
jeto, a estrutura, o espaço; mas o nó da ques- te ele já teria vindo da Itália com informa-
tão fugia pelas malhas de uma linguagem li- ções sobre o Aleijadinho, o que o fez viajar
mitada ao descritivo. Podia-se esperar con- para Minas Gerais, de onde voltou vivamen-
tinuar a falar sobre isso, mas não se encon- te impressionado.
trava o meio de continuar a trabalhar, a não
ser atacando de maneira viral a concha da Em sua segunda viagem ao Brasil, em 1997,
pedra-múmia, a fim de se reapropriar do quando realizou importante exposição do
núcleo de pedra do ídolo. Centro de Artes Hélio Oiticica,3 Fabro não
hesitou em alugar uma caminhoneta para
O ídolo: com a mulher, Carla, e amigos italianos par-
tir novamente em aventura pelas difíceis es-
Eis Apolo e Dafne, de Bernini: Apolo perse-
tradas brasileiras rumo a Congonhas do
gue Dafne, mas, quando a alcança, ela já é
Campo. Evidentemente, a densidade his-
casca. No entanto, Dafne, que se vai trans-
tórica na formação de um artista italiano
formando em loureiro, jogou um ramo en-
criava vínculos entre Fabro e o Barroco.
tre as pernas de Apolo. Essa é uma repre-
Para ser mais preciso, penso que a relação
sentação sublime do querer do artista
do trabalho de Aleijadinho com seu en-
(Apolo) sobre a natureza (Dafne) que, re-
torno e em particular a paisagem foi fator
cusando a ele se submeter, se transforma e,
importante para esse seu interesse. A in-
assim, chega a germinar sobre a concupis-
cursão de Fabro ao Brasil ganha sentido
cência de Apolo. Os olhares de ambos,
mais exato se compreendida como a de
háptico o de Dafne, maravilhado o de Apolo,
um corpo exploratório. O corpo como
nos dão uma imagem do que os antigos cha-
entidade biológica, tudo aquilo que o esti-
mavam de inspiração.
mula e que com ele estabeleceu vínculos –
Edição e tradução para o francês: o que me parece central em sua obra; nes-
Marcella Lista se sentido, seu trabalho teria ficado marca-
Tradução para o português: Glória Ferreira do por essa vinda ao Brasil.

Recordo-me de que em sua segunda viagem


ao Rio, conversamos sobre uma indagação
Anotações sobre comum que, no entanto, havia ocorrido se-
paradamente tanto a ele quanto a mim: qual
Luciano Fabro no Brasil teria sido a reação de Manet diante da pai-
sagem brasileira. Essa questão, que para um
Carlos Zilio brasileiro poderia ser natural, havia também
se colocado para Fabro em um trabalho
Foi em 1975, no período da Bienal de São realizado em 1976/77 intitulado Attaccapanni
Paulo, que José Resende me telefonou pe- (Cabide). No texto a ele referente, Fabro
dindo para que eu recebesse Luciano Fabro revela: “percorri o Brasil, vagabundeando
aqui no Rio. Lembro-me bem de sua estada sozinho. Descobri Congonhas e as escultu-

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ras do Aleijadinho, a arquitetura barroca, a Homenagem a Luciano
natureza tropical, mas igualmente – o que
está na base dos meus Attaccapanni – reali- Fabro na Escola de Artes
zo que a estrutura do espectro das cores Visuais, dezembro de 2007
muda segundo as latitudes, as cores se di-
versificam, e as formas, elas mesmas, evo-
luem, como se a paisagem tivesse seu pró- Vanda Mangia Klabin
prio arco-íris que seria independente das ci-
vilizações que desenvolvem”.4 O Centro de Arte Hélio Oiticica está lo-
calizado na parte histórica do Centro do
Essa luz surpreendente desconhecida por Rio de Janeiro, revitalizada pelo Corredor
Fabro, com irradiação que faz as formas se Cultural. É um belo prédio de três anda-
revelarem de maneira particular, se fará pre- res, de estilo neoclássico, reformado para
sente nessa obra. A seqüência das articula- abrigar o acervo do artista plástico Hélio
ções de volumes com suas relações cromá- Oiticica, sendo diretor de projetos Luciano
ticas parece enfatizar uma geometria que Figueredo. Na qualidade de diretora-ge-
insinua e deixa sutilmente aflorar uma sen- ral da instituição, eu estava encarregada
sualidade submersa. de desenvolver diversas ações e ao mes-
mo tempo promover exposições de arte
A luz tropical é dado que problematiza de contemporânea nacional e internacional
maneira significativa a formação da arte bra- que pudessem determinar a constituição
sileira. Em síntese, procura-se buscar solu- de um pensamento cultural.
ção capaz de resolver o conflito entre uma
educação cromática dentro de padrões eu- A inauguração da instituição, em 30 de se-
ropeus e a cor local. tembro de 1996, teve como eixo principal a
obra de Hélio Oiticica, e após essa grande
O enfrentamento dessa questão gerou di- retrospectiva teve início a programação de
nâmica renovadora entre nós desde Taunay outras exposições de arte contemporânea,
a Castagneto e Guignard, para citar apenas criando um espaço de diálogo entre a arte
paisagistas de três períodos distintos. Arris- brasileira e a internacional. Na seqüência,
cando um pouco mais e adotando a hipó- foram focalizados Mira Schendel, Antonio
tese do crítico Antonio Bento, creio possí- Manuel, José Resende, Guilermo Kuitca, Mel
vel ter havido sobre o jovem Manet (como, Bochner, Luciano Fabro e Richard Serra. Um
projeto um tanto ousado para o primeiro
aliás, pode-se aferir nas cartas que ele es-
ano de implantação e para os anos subse-
creveu à mãe) forte impacto da paisagem
qüentes, com reduzida dotação orçamentá-
do Rio de Janeiro em sua breve passagem
ria e sem saber exatamente como seria o
pela cidade, curiosamente, coincidente com
funcionamento dessa nova instituição.
o Carnaval.
Meu primeiro contato com Luciano Fabro
Nos Attaccapanni esse desafio é retomado foi por intermédio de Carlos Zilio, que já o
por uma indagação contemporânea de refle- conhecia desde a época em que o artista
xão sobre a arte. Como em toda a obra de estivera em São Paulo e no Rio de Janeiro,
Fabro, a relação do corpo com seu entorno em 1975. Feito o convite para uma exposi-
leva, na verdade, ao próprio questionamento ção individual no Rio, Glória Ferreira, que
do processo criativo em si. estava nessa época morando em Paris, foi

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contatada para um encontro com o artista, e, aos poucos, ordena a arquitetura com sua
dado que Fabro estava naquele momento tessitura de ritmos contínuos... Ronald Duarte
realizando uma grande exposição retrospec- e outros alunos do curso de mestrado em
tiva no Centro Pompidou. História da Arte e Linguagens Visuais EBA/
UFRJ, Fabio Adler, Mauro Belagamba, Luciano
Como tinha agendado logo em seguida a Vinhosa e Marcos Vinicius de Paula, “costu-
exposição de Richard Serra, solicitei que ela raram”, durante quatro semanas seguidas, as
fosse a curadora da mostra e que entrasse paredes do Centro de Arte Hélio Oiticica,
em contato com Fabro. Ao mesmo tempo, para realizar a obra. Essa construção era uma
enviei as fotos do prédio, que ele imediata- espécie de ordenação em diagonal. As linhas
mente aprovou, em função do estilo dos fios de lã verde para tricô comprada na
neoclássico. A partir de então foi iniciado Rua da Alfândega, esticadas e colocadas de
longo e produtivo diálogo (que Glória rela- cima para baixo, subiam na diagonal e des-
tou ter durado mais de cinco horas) para ciam na vertical, em zig-zag entre duas linhas
realizar a primeira exposição individual de horizontais formadas pelo total de quatro
Luciano Fabro no Brasil, em parceria com o mil agulhas de prata colocadas de forma bem
Instituto Italiano de Cultura. determinada, de 40 em 40 centímetros.
Fabro é um dos artistas mais influentes da A transparência e a espacialidade do traba-
Arte Povera, movimento que surgiu na Itália lho é o resultado do entrecruzamento de
nos anos 60, e já havia estado no Brasil em fios de lã e agulhas fixadas em diversas ex-
duas bienais internacionais em São Paulo, tensões das paredes, que criavam belíssima
1975 e 1995, mas jamais fora convidado a membrana de ar e fios coloridos. A realiza-
fazer aqui uma exposição individual. ção desse trabalho gerou algumas dificulda-
des, decorrentes do fato de a construção
Para a mostra de Luciano Fabro no Centro
antiga do prédio não permitir a fixação
de Arte Hélio Oiticica (1o de outubro/9 de
das agulhas em suas paredes – a solução,
novembro de 1997), que inaugurou a série
bizarra, foi a fixação de buchas feitas de pa-
de exposições internacionais na instituição,
litos de picolé da Kibon!
foram escolhidas, da constelação de traba-
lhos do artista, 11 obras de sua coleção par- Outro trabalho que Zilio mencionou, até
ticular (exceto Attaccapanni), e algumas fo- porque tem relação direta com o Brasil foi
ram concebidas especialmente para o espa- Attaccapanni, (1977), tubos metálicos e te-
ço arquitetônico do prédio. Com excelen- cidos pintados, repletos de movimento e de
tes idéias, materiais insólitos – jornal, agu- luz, que Fabro desenvolveu após sua primei-
lhas, chocolate em pó e palitos de picolé ra visita ao Brasil e que concentra seu fascí-
Kibon – Fabro construiu seu trabalho com a nio pelas cores do pôr-do-sol e pela
devida colaboração de alguns alunos de Gló- luminosidade tropical. Durante as semanas
ria, professora da Escola de Belas Artes. Um que aqui passou, Fabro percorreu as favelas
exemplo foi a execução da obra intitulada do Rio, impressionou-se com a natureza, com
Penélope (1972), mulher de Ulysses, perso- as obras de Aleijadinho em Congonhas e,
nagem da mitologia grega, que passa o tem- sobretudo, com a intensidade e a expansão
po fielmente a tecer e desfiar um pano du- da luz tropical. Em suas inúmeras entre-
rante 10 anos, período em que o marido vistas, sempre mencionava a importância
esteve na guerra. Essa obra de Luciano Fabro de sua experiência brasileira no desenvol-
foi mostrada na Bienal de Veneza em 1972 vimento de sua obra.

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Também comentando mitos, Sísifo (1994) Outro trabalho importantíssimo que Glória
é peça cilíndrica de mármore que remete à selecionou para essa mostra no Brasil foi
mitologia grega, ao dilema, em que o rei Norte, Sul, Leste, Oeste jogam pega-varetas
corintiano, condenado por Zeus, é forçado (Nord, Sud, Est, Ouest giocano a Shangai,
a empurrar um bloco de mármore morro 1989), homenagem a Piet Mondrian e Marcel
acima e depois fazer o trabalho de volta, ta- Duchamp: imenso jogo de pega-varetas aé-
refa infinita e constante recriação… A su- reo, com estrutura geométrica de tubos de
perfície instável de uma camada de pó colo- alumínio e ferro pintados de diversas cores
cada no chão como tapete traz impresso o – verde, vermelho, azul, preto e amarelo –,
auto-retrato do artista. E ele se propõe sem- composta de forma livre, em alusão aos ris-
pre a um recomeço, que é um dilema da cos e possibilidades da política.
exposição, uma reflexão sobre o trabalho, a
frustração e a constante busca/luta do artis- Pavimento – Tautologia (1967) é obra que
ta. Esse trabalho apresenta outra adaptação percorre toda a extensão do chão do pré-
de Fabro durante a estada entre nós, pois dio. O piso é todo lustrado e depois co-
usou como matéria-prima para impressão na berto por páginas de jornais – uma espé-
camada constituída de farinha de trigo, ca- cie de proteção à limpeza, ao caminhar
cau em pó, achado de suas perambulações menos afoito, e, ao mesmo tempo, cria-
pelos arredores da Rua da Alfândega. ção de um lugar para abrigar a percepção
do espectador.
A parte urbana em que está instalado o
Centro de Arte Hélio Oiticica era então área Outro trabalho de ordem geométrica e mais
superabandonada, degradada e assim per- conceitual, intitulado Groma para Spinoza
manece até hoje. Um antigo projeto de (1997), trazia em fac-símile o texto da
ação cultural que eu tinha em mente como excomunhão de Spinoza da comunidade
diretora da instituição era revitalizar e hebraica de Amsterdam em 1656 e era cons-
ocupar aquele local como um todo. E tive tituído por quatro garrafas de vidro pendu-
muito auxílio do Corredor Cultural e do radas, contendo água no fundo e assim ser-
subprefeito Augusto Ivan: na exposição de vindo como uma espécie de lente e de ins-
Amilcar de Castro, aliás, utilizei como área trumento de acesso ao conteúdo das garra-
expositiva a Praça Tiradentes, colocando ali fas, que continham as lições dadas aos estu-
10 esculturas de grande porte. dantes pelo filósofo.

Na época da mostra do Fabro, estava pre- Ovários (Ovaie, 1988) remete à sexualida-
vista a colocação de várias esculturas de de e aos órgãos de reprodução femininos:
estruturas metálicas, intituladas Nude/Les 250 ovos de mármore branco de Carrara
Voyeurs (1992), na fachada da instituição. são colocados em um colar duplo de estru-
Fabro, porém, encantou-se com a idéia de turas metálica retorcidas como trompas pre-
fazer uma apropriação do cenário urba- paradas para fecundação. “Os ovos germi-
no. Conseguimos a licença, e as escultu- nam… a arte germina…”.
ras foram instaladas nas janelas da facha-
da do motel rotativo Chama Rio, prédio Olho de Deus (Occhio di Dio, 1969), escul-
em frente à instituição, criando assim ou- tura em madeira e alumínio dourado, reme-
tra dinâmica de integração da obra, de te à iconografia religiosa e é um olhar
apropriação arquitetônica e sua relação interrogativo sobre a arte. E, por último, a
com a vida urbana. obra, C’est la vie (1986).

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Ele definia seu trabalho como de pobreza Desse modo, pude contar com ele em
franciscana: “Quand je réalise une œuvre, várias situações em que seu prestígio e com-
mon ambition est de faire une chose petência fizeram a diferença.
extremement complexe, rendue d’une
manière extremement simple. Mais dans Dos lugares em que os estudantes o encon-
cette simplicité doit se voir la complexité.” travam, dois eram referenciais, distanciados
por poucas quadras um do outro. Na
Accademia de Brera aconteciam ciclos de
palestras e orientações de trabalhos e na
A atenção na leveza: Casa degli Artisti,5 reuniões temáticas e ex-
Luciano Fabro, a forma e posições. Neste último, alguns artistas eram
o outro convidados a manter estúdios. Assim como
muitos interessados, transitei entre esses dois
espaços. Esses encontros me propiciaram a
Breve relato de minha convivência com
experiência de um longo trabalho coletivo
o artista na Accademia di Brera e na Casa
durante todo o tempo em que permaneci
degli Artisti entre 1985 e 1999. na Itália. Havia, porém, uma distinção entre
Carla Vendrami esses espaços no que se refere ao tipo de
orientação que Fabro realizava. Essa distin-
... todas as novidades do pensamento ção, a meu ver, contemplava dois pontos
nascem com o diálogo. fundamentais de sua obra e de sua visão de
... arte é espelhamento da própria cons- mundo: o formal (Casa degli Artisti) e o
ciência... relacional (Accademia de Brera).
e consciência é inserir-se na trama de
Algumas iniciativas, como aquela que pro-
fios que nos ligam aos outros.
punha ao artista confrontar-se com o espa-
... eu fazendo uma obra não faço outra ço urbano e o contexto social, partiram dos
coisa senão me representar em rela- alunos da Accademia e envolveram os da
ção a você. Casa; o inverso aconteceu com as questões
Luciano Fabro teóricas sobre a forma, elaboradas na Casa.
Eram dois universos particulares, embora
Faço parte de uma geração de artistas que ambos focassem a questão ética e, por con-
estudaram ou tiveram algum contato com seqüência, relacional: atenção ao contexto
Luciano Fabro na década de 1980, sendo e aos materiais. Na década de 1990, no
influenciados de vários modos por sua obra âmbito italiano, a influência de Fabro ren-
e seu posicionamento pautado por ques- deu frutos.6
tões éticas, de responsabilidade perante a
história, de confiança na arte e no processo Luciano Fabro tinha por hábito indicar a prá-
tica do desenho partindo de algo escolhido
de trabalho dos artistas. Cheguei a Milão em
(objeto, tema, questão) e dando ênfase à
1985, sem ainda ter noção de que lá per-
repetição. Deveríamos utilizar apenas o es-
maneceria até 1999. Meu primeiro contato sencial: lápis duro e papel branco. Exercitá-
com Fabro aconteceu na Accademia di vamos a concentração e desenvolvíamos
Brera, onde me formei e fui sua aluna por a percepção das qualidades da linha. Com
quatro anos. Mais tarde essa relação se sua sensibilidade para apontar o que para
aprofundaria, tomando viés profissional. nós eram ínfimas diferenças, numa linha

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ou noutra, ensinava-nos o que é precisão; Lonzi, a primeira a reunir em torno de si os
precisão de uma sensação que a mão e o artistas da futura Arte Povera, com a qual
olho apreendem. Já a repetição era utilizada compartilhou a idéia de paridade entre críti-
para colocar ênfase no trabalho da arte, tra- co e artista, ambos igualmente envolvidos
balho árduo como qualquer outro. com a criação. Lonzi, ao questionar se o va-
lor da obra não seria algo passível de ser
Certa vez em que me encontrava contente intuído individualmente, observa que “o com-
pelo grau de complexidade que pensava ter portamento estético, a arte fazem parte da
atingido com uma obra – um objeto estrutura da humanidade”11 e faz uma revi-
tridimensional de parede que envolvia ques- são do seu papel de crítica, o que dá origem
tões de apresentação e representação –, ao ao livro Autoritratto em 1969. Nessa publi-
levá-la para a apreciação de Fabro, fui sur- cação reúne conversas com 14 artistas, en-
preendida. Sua primeira pergunta, que dizia tre eles Giullio Paolini, Pino Pascali, Jannis
respeito ao modo como eu a tinha fixado Kounellis e Luciano Fabro, desde 1965 até
na parede, levou-me logo ao centro da ques- 1969, em tessitura de diálogo ideal simultâ-
tão: o sentido da transparência, o reverso neo. Na “conversa”, Lonzi se afasta de um
não visto que continua participando e cons- julgamento em forma de diálogo, para per-
truindo o sentido da obra. O arranjo impro- manecer focada nos processos cognitivos,
visado que eu havia escondido atrás do tra- tanto do artista quanto do crítico.
balho apontava onde meu diálogo com os
materiais e a forma havia estacionado. A re- Uma prova do aspecto relacional, da sintonia
lação entre o artista e seus materiais, diz e do envolvimento dos sentidos no traba-
Fabro, deve ser pacífica e aberta à espera de lho de Fabro está no fato de ele ter feito a
uma manifestação geradora de consciência. obra In Cubo em dois exemplares, um para
ele, outro para Lonzi. Trata-se de uma
Em seus ensinamentos usava o diálogo para caixa de estrutura metálica recoberta de
“fazer emergir uma série de potencialidades”7 tecido branco e aberta embaixo, por onde
ao estado de realizar-se. No pequeno livro se pode entrar em um espaço com as di-
Regola d’Arte, que contém transcrições das mensões do corpo humano. Arte habitá-
conversas na Accademia di Carrara e na Casa vel, expressão utilizada por muitos artis-
degli Artisti, ele afirma: “todas as novidades tas da Arte Povera e que define um espaço
do pensamento nascem com um diálogo”8 pleno de sensibilidade vital.
e, ainda, “o interlocutor é o único dado real
sobre o qual é possível construir”,5 algo com- Fabro insistia na idéia de diferença geracional,
parável ao que apontou Gilles Deleuze: afirmando que não era possível para ele sa-
“Aquilo que é essencial são os intercessores. ber o que seria um dado de valor ou de
A criação são os intercessores. Sem eles não importância para nós; em decorrência disso,
existe obra (...).” 10 Os intercessores de um senso de responsabilidade por atuação
Deleuze podem ser animados ou inanima- mais significativa, como agentes históricos,
dos, é preciso fabricá-los. No pensamento começava a surgir entre nós. Colocar os
de Fabro uma pessoa ou um material são dados em ordem temporal ou, melhor, citá-
igualmente algo com o que dialogar, rece- los historicizando “... gera contínua renova-
bem igual atenção. ção que constituirá a seqüência da história”.12
Esse discurso significava, ainda, que algo novo
Nessa sua atenção ao diálogo, vejo o eco de poderia vir a surgir. Sobre essa questão, em
seu encontro com a crítica de arte Carla Regola d´Arte, usa a metáfora de estar em

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alto-mar e lançar outra bóia, ampliando o que eu não sou, ela deve fazer coexis-
espaço percorrível da arte para outros que tirem os outros, aqueles que não sou.16
vêm depois dele, mas sem que esse novo
seja motivo de ansiedade. Divergências, porém, fazem parte do pro-
cesso da alteridade. O “outro” é uma dife-
Existe algo de pacífico nessa visão, imagi- rença radical, e por isso a alteridade é pro-
nando a seqüência de uma história da qual cesso dramático – diverso da totalidade, que
todos fazemos parte, deixando de lado as é trágica – como observa Enrique Dussel.17
interpretações comumente aceitas de rup-
turas violentas. Sua percepção do proces- Retorno a Carla Lonzi, a quem Germano
so histórico atenuava a diferença entre sua Celant no seu livro Arte Povera, publica-
experiência e nossa inexperiência – um do em 1985, se refere como um “pólo
modo ético de relacionar-se com as pes- energético inigualável”, 18 para trazer o
soas e com o mundo. contexto cultural nos anos de surgimento
do movimento.
Fabro diz que arte é o espelhamento da pró-
pria consciência, e “... consciência é inserir- Para Lonzi, a dissociação entre o momento
se na trama de fios que nos ligam aos ou- criativo e aquele institucional gera um mo-
tros”13 ou ainda “eu fazendo uma obra de delo cultural em que a obra só é acessível
arte não faço outra coisa senão me repre- como “objeto de avaliação”, perigo
sentar em relação a você”.14 Tais frases re- transmutado em algo com o que se distrair,
metem à questão da alteridade pensada por no qual ela se torna inofensiva. Coerente
Emanuel Lévinas. A “alteridade ética” sub- com seu significado, a obra deve ser dada
verte uma tradição que afirma no combate como momento cognitivo. A revelação do
o princípio da realidade criando uma situa- processo, em detrimento do privilégio da
ção anterior a qualquer discurso: “o outro obra como produto final, é estratégia
enquanto alteridade real é a possibilidade do desmitificadora que modifica os modos de
rompimento de minha totalização, ou seja, fruição da obra.
de minha solidão de ser”.15 E é nesse funda-
A noção de relação é seu ponto de partida
mento ético que a racionalidade pode legiti-
para repensar o papel de crítica de arte. As-
mar-se. Em outras palavras, não destruir o
sim como Lonzi se recusa a exercer um po-
eu do outro para que dele prevaleça o que
der discriminatório sobre obras e artistas,
em mim penso que seja eu, mas deixar que
Fabro, em Autoritratto, aponta que fugir de
o eu do outro me mostre o que em mim há
uma sistematização cultural é tática possível
de possibilidade de outros eus.
para desmantelar a cultura como poder
Frente ao outro, frente a uma obra, excludente.
frente a um corpo, Lévinas nos lembra
Existe uma qualidade de alteridade nesse
que é necessário sempre não com- pensamento que une Fabro e Lonzi. Na
preender, não preender, não tomar Bienal de Veneza de 1994, quando o
para si. Enfim, fazer a experiência de organizador Jean Clair propôs o tema Iden-
alteridade radical e de complexidade tidade e Alteridade – em época de inte-
essencial; senão, passa-se de lado: o gralismos, por um lado, e conflitos étni-
frente à frente é oposto de de lado, é a cos, por outro – na sala em homenagem
reposta a este último. Pois o outrem é póstuma a Lonzi, exemplares de
“aquele que eu não sou”, a obra é isso Autoritratto foram colocados junto às

DOSSIÊ • LUCIANO FABRO 123


obras, reproduzidas no livro, propondo morador e aquele espaço específico. Verifi-
assim a visão daquele período. quei valores idênticos para a obra e sua qua-
lidade de inserção.
Quase uma crônica de situações vividas pe-
los artistas e por si mesma, as imagens de Fabro realizou C’est la vie, um longo tecido
Autoritratto mostram as obras e seu con- todo recortado em suas bordas com varia-
texto, retratos dos artistas, em grupo, em das formas curvas, retiradas do código da
família, imagens de infância ou de viagens. O vida desenhado por Lawrence Stern, e que
texto flui da mesma forma; Lonzi cria passa- foi presenteado à recém-nascida da casa em
gens entre o dito de um e o de outro artis- que o trabalho se encontrava. Ligada não só
ta, inventando uma unidade que corresponde ao espaço, mas também ao tempo, a obra
a sua intenção, a um desejo, suponho. As modificava-se continuamente, posto ter sido
conversas incluem, como a autora o quis e realizada para ser manipulada. Nas imagens
declarou, um divagar e a passagem livre de que a documentam, aparece dependurada
um argumento a outro. para fora da sacada da casa ou, como eu a
vi, espalhada na sala. O tecido poderia ficar
O último texto de Carla Lonzi, publicado amontoado ou estendido em todo o seu
em 1981, no catálogo Identité italienne – comprimento, envolvendo o local. Lembro-
sobre a exposição de arte italiana pós-1959, me de ter ficado perplexa com isso, com
no Centre Georges Pompidou –, continha, aquela forma, quase sem matéria e, ao mes-
porém, um desencanto: “A força do artista mo tempo, tão presente, disponível.
reside justamente no fato de que pode re-
mover as relações que não são instrumen- Motivados por esse trabalho de Fabro, em
tais a ele (…) Essa é a circunstância que o 1988, éramos 25 artistas, na maioria seus
transforma em ponto de atração para toda ex-alunos, a organizar a exposição Política
a gregarietà,19 para toda vontade de delega- em espaços públicos da cidade de Novi
ção e projeção contidas na sociedade. O Ligure. Uma mesa-redonda em praça públi-
artista é uma estrutura que tudo sustenta e ca com a participação de críticos e da po-
nada põe em crise.”20 Para alguns de nós, pulação sintetizou nossas intenções de in-
essa afirmação foi instigante, estava em verter as esferas do público e do privado a
sintonia com as vertentes do pós-feminismo fim de que a cidade possa ser vivida como
e do multiculturalismo. Além disso, fez sur- espaço de reflexão poética. Lembro-me de
gir um interesse sobre a obra de Hélio Oiticica ter observado Fabro de longe, caminhando
e Ligia Clark no âmbito da Accademia. pela exposição.

Foi exatamente o aspecto relacional da obra Outro trabalho seu que naquela época me
de Fabro que nos interessou quando ele causou grande impacto foi Prometeo, de
participou da exposição concebida por Jan 1986, obra resultante de uma crise despon-
Hoet, Chambres d’amis, em Ghent, na Bél- tada pelo evento da explosão de Chernobil.
gica, em 1986, para a qual convidou os artis- Essa crise na visão do futuro estava traduzida
tas a realizar trabalhos em casas de morado- por uma forma desmontada: fim ou impos-
res da cidade. O contato com as obras se sibilidade de geometria. Instrumentos de
dava em âmbito inusitado e propulsor de medição da terra assinalavam uma situação
diferente sociabilidade em torno da arte. Em não funcional, numa geometria desfeita. Essa
cada casa visitada, pude observar a diferen- indagação da forma, como processo históri-
ça de intensidade na interação entre artista, co, trouxe-me a compreensão de outras

124
Luciano Fabro
Cul de Ciel (detalhe)
Foto: Glória Ferreira

relações entre forma e conteúdo, que, como em que plástico é conceito tanto físico quan-
sugere Jole de Sanna, são conceitos disso- to mental, um conceito que abre espaços”.22
ciados pela língua moderna. Forma, portanto, que, partindo dos sentidos,
envolve a razão23 e, desse modo, é consciên-
De Sanna, historiadora da arte e professora cia, ou seja, configuração que resulta da re-
na Accademia di Brera, em Forma, l’idea degli flexão. É o acreditar na liberdade dessa re-
artisti 1943-1997, 21 refere-se a um reencon- flexão que faz com que tanto de Sanna quan-
tro de forma e idéia. Forma agora não mais to Fabro pensem ser possível o surgimento de
concluída ou portadora do desenho interno configurações sempre novas da obra/indivíduo.
que Erwin Panovsky menciona. Trata-se de Termos censurados, como fascínio, atratividade
uma forma que se abre: “a forma se abre e e beleza, podem irromper, observa de Sanna,
sela o contato com o ser através do contro- nessa experiência em que o olhar nasce em
le físico, plástico, das sensações e reações, novo contexto.

DOSSIÊ • LUCIANO FABRO 125


A forma é fato plástico; para Fabro, é a experiência, todos são igualmente respon-
conseqüência de uma ação que integra sáveis pela construção de um pensamento;
modos de fazer do formador e modos de têm autorevolezza, dizem. Como resultado
ser das substâncias. Olhar para o material, das discussões com Fabro, um grupo de ar-
para o modo em que é organizado nos tistas lá residentes redige o Manifesto ético,
faz superar condicionamentos, vícios e em 1985, no qual aponta a necessidade de
questões de estilo, sugerindo-nos possi- renovação não só da forma, mas da imagi-
bilidades. O material ou a natureza vem nação: “ético é o sentido das possibilidades”;
antes da forma: é o ponto de partida que essa era uma posição pensada como alter-
determina um percurso. A forma resul- nativa à citação e ao pastiche considerados
tante poderá ser abstrata, secular ou frutos de desempenho e do cinismo. Já na
iconográfica; é uma pausa no interior das Accademia, um ciclo de palestras intitulado
transformações, é transmigração da ma- Arte torna-se arte insistia na crença em no-
téria e, por isso, é sempre nova. vas formas.

No diálogo com o material, coloca-se uma Seu interesse era o contato com o que é ex-
relação ética. Cito a obra Piedi, 1968/72, que terior a si, em cotejamento com o mundo,
amplia essa discussão. Nela existe o contato pois o exterior é depositado na interioridade,
com fazeres característicos da cultura italia- e por meio dos sentidos surge a consciência
na – é o contato com artesãos do vidro da de algo. Uma aproximação em que é útil
Ilha de Murano e costureiras (o plissado e a certo desapego do eu, e nunca censura. Ex-
casa de abelha). O significado do valor do perimentar e esperar a manifestação dos
trabalho em si, o saber fazer de cada um, materiais era seu conselho: exercitar-se com
isso me parece preservado, sendo o aspec- a natureza, como se ela fosse uma parte de
to luxuoso da obra algo que naturalmente nosso corpo, e não sobre a natureza. Esse
disso resulta. “Estes pés não são uma idéia, era um conceito de naturalidade do fazer
mas todas as vossas idéias.”24 Segundo Fabro, artístico. A obra, pondera Fabro, não é a
a fluidez da narração poética pode mas- natureza, mas, quando feita, é como se o
carar erros; é preciso sentir as contradi- fosse. É a sensação, que se torna precisão
ções que se resolvem na obra, assim como para o artista. É nela que ele encontra a
na vida: “... Do concreto e do abstrato, medida, a proporção certa entre a pessoa e
assim! Inconciliável! Da sociedade, assim! algo. O artista não representa a imagem
Inconciliável!...”21 Uma montagem fotográfi- externa das coisas, mas, segundo Fabro, a
ca de partes da coluna de tecido da obra consciência delas.
reproduzida em Attaccapanni cujo título é
Nido d’ape, feita para aqueles que “relega- Para nós, seus alunos, ele explicava a
ram o paladar ao intelecto”,22 nos estimula consciência como o “imaterial da matéria”.
o olhar. Com essa montagem, quer distan- Manter “a matéria em perfeita coincidência
ciar-se das questões de apreciação da fatura com o imaterial”24 era sua ambição; na falta
e nos recordar: “necessito de sua presen- de contexto religioso ou filosófico, há essa
ça”,23 de sua reflexão. necessidade de amplificar e sugerir, plasmar
uma matéria como se ela fosse imaterial. O
Lembro-me da seriedade das reuniões na trajeto que o artista faz, conclui Fabro, é tor-
Casa degli artisti, típico clima italiano, em que nar o impalpável palpável e depois novamen-
por mais que um dos participantes tenha mais te impalpável. Um trajeto da consciência.

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Fídia e Prassitele, Donatello e Buo- 15 Timm de Souza, R. Sentido e Alteridade. Dez ensaios so-
narrotti, Bernini e Canova são testemu- bre o pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre:
EdipucRS, 2000: 41.
nhas. Não os trago como exemplos,
mas os considero exemplares. 16 Soulages, F. Colóquio Photographie & corps politiques,
proferido na Universidade Federal de Santa Maria, RS,
Luciano Fabro em 21.02.2007.
17 A esse respeito ver Dussel, E. Para uma ética da libertação
latino-americana. São Paulo: Loyola/Unimep, 1977.

Notas 18 Celant, G. Arte Povera. Milão: Electa, 1985: 14.


19 Grupo que tem comportamento gregário; executores e
1 As sessões extraordinárias são organizadas por Simone
subalternos.
Michelin e Tina Velho como parte das atividades da EAV
Parque Lage. http://www.eavparquelage.org.br/nat/nat4- 20 Lonzi, C. Identité italienne. L’art en Italie depuis 1959. Pa-
s_ext.htm ris: Ed. Centre Pompidou, 1981: 31.
2 Essas notas escritas por Luciano Fabro, com o título 21 De Sanna, J. Forma, l’idea degli artisti 1943-1997. Milão:
“Haptique: le sens de la sculpture”, são o esboço de sua Costa & Nolan, 1999.
intervenção no Auditorium do Louvre, no dia 4 de maio
de 2007, em diálogo com Daniel Soutif. O subtítulo, 22 Id. ibid.: 174.
Notes sur la sculpture, par Luciano Fabro, é nosso. Exceto 23 Essa implicação entre mental e físico está na origem
por mínimo trabalho de edição, o estilo do texto foi conceitual da Arte Povera. Segundo Ermano Migliorini,
respeitado. em Conceptual Art, Florença: Il Fiorino, 1979, diversa-
3 Ao assumir a direção do Centro de Artes Hélio Oiticica, mente da vertente analítica anglo-americana, outra ver-
em 1996, Vanda Mangia Klabin aceitou com grande en- tente reivindica um valor para o estado elementar da
tusiasmo minha sugestão de convidar Fabro para expor. poiésis, ou momento poético, aspecto vital em que se
A mostra, realizada em 1997, teve curadoria de Glória podem identificar impulso, estímulo, germinação ou, ain-
Ferreira. da, conceito ou idéia.

4 Fabro, Luciano. Paris: Centre Georges Pompidou, 1996. 24 Fabro, L. Attaccapanni, op. cit.: 77.

5 Espaço fundado e gerido por Luciano Fabro, Jole de Sanna 25 Id., ibid.
e Hidetoshi Nagasawa. 26 Id., ibid.: 80.
6 Cristiana Perella indica esses frutos no livro Nuova 27 Idem.
scena artisti italiani dgli anni 90, Milão: Mondadori,
1995, nas quatro vertentes que identificou: a rela- 28 Fabro, L. Regola d’arte, op. cit.: 113.
ção com o outro (eu me inseria junto a outros da
Accademia), a pesquisa da forma (na qual figura-
vam muitos artistas da Casa degli Artisti), a imagem
de derivação Pop e a questão autobiográfica.
7 Fabro, L. Regole d’arte, IV. Milão: Per l’arte, 1980: 5.
8 Id., ibid.
9 Id., ibid.: 6.
10 Deleuze, G. Gli Intercessori. La balena bianca, n.7,
1993: 27.
11 Lonzi, C. Autoriratto. Milão: De Donato, 1969: 7.
12 Fabro, L. Attaccapanni. Torino: Einaudi, 1978: 117.
13 Fabro, L. Regole d’arte, IV, op. cit.: 8.
14 Id., ibid.: 9.

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