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Cul de ciel estava ainda em exposição no vida é parte integrante. Esse, talvez, seu tes-
Louvre quando Luciano Fabro morreu, em tamento e legado de profunda e constante
junho de 2007. Uma espécie de testamen- reflexão sobre arte que, sem se reduzir à
to, ao qual o texto “Háptico: o sentido da identidade do artista, visa abrir novos hori-
escultura”, apresentado nessa ocasião, no zontes perceptivos, novas sensações e cul-
programa Faces à faces, também no museu, turas no interior da sociedade – sem
se vem somar. dissociar sensível e cognitivo. Questões pre-
sentes em sua produção, textos e longa
Parte do projeto Contrepoint, que visa experiência como professor.
estabelecer relações entre a produção
contemporânea e a coleção permamente do Na homenagem a Fabro realizada no Par-
Louvre, como um laboratório de trocas e de que Lage, em dezembro passado, e que se
reflexão sobre sobre o universo museológico, desdobra neste dossiê, o comovente vídeo
o trabalho de Fabro dialogava também com de Simone Michelin, documentando sua ex-
as produções de mais 10 artistas, entre os posição no Centro de Arte Hélio Oiticica,,
quais Robert Morris, Richard Deacon, em 1997, permite aproximação de sua poé-
Giuseppe Penone e Gloria Friedmann. tica e experiência de suas obras. Experiência
que, para ele, só poderia ser “tomar posse”.
Considerada pelo artista uma de suas obras
mais complexas, “mais ricas de sentido”, Cul Por feliz coincidência, vi Cul de ciel instala-
de ciel, constituída por uma coluna com da na Cour Puget. Também por feliz acaso
pontos de ouro engastados, delineando a tive o privilégio de conhecer e trabalhar com
carta do céu, que penetra a cavidade oval Fabro, a convite de Vanda Klabin, como
de uma grande massa de mármore, evoca a curadora de sua exposição no Rio e no pro-
integração do microcosmo, do macrocosmo jeto Ecco – artistas brasileiros por artistas
e do “antrocosmo” – palavra que ele inven- brasileiros, envolvendo intercâmbio de es-
tou para designar o mundo incluindo o tudantes da pós-graduação da EBA e da
Luciano Fabro parâmetro humano. Sua presença no Casa degli artisti, em Milão, dois anos de-
Cul de Ciel Louvre, sem quaisquer maneirismos site
Projet Contrepoint III - De pois. Privilégio que me é ainda mais caro:
la sculpture, Museu do specifics, reafirmava uma poética fundada na nossa amizade.
Louvre, Paris, 2007 relação entre história e cultura em seu sen-
Foto: Glória Ferreira tido mais amplo, da qual a experiência da Glória Ferreira
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nação. A figura não é, então, o “eu” narrador e de sua curiosidade e disponibilidade para
da estátua, o tema que nela narra e dialoga, explorar a vida brasileira, sem cair nos rotei-
que abre à meditação? ros convencionais. Certo dia, por exemplo,
para meu espanto, contou que por conta
No caminho em que a múmia se desagrega- própria percorrera uma favela. Por meio de
va em pedaços, encontramos a coisa, o ob- nossas conversas, percebi que provavelmen-
jeto, a estrutura, o espaço; mas o nó da ques- te ele já teria vindo da Itália com informa-
tão fugia pelas malhas de uma linguagem li- ções sobre o Aleijadinho, o que o fez viajar
mitada ao descritivo. Podia-se esperar con- para Minas Gerais, de onde voltou vivamen-
tinuar a falar sobre isso, mas não se encon- te impressionado.
trava o meio de continuar a trabalhar, a não
ser atacando de maneira viral a concha da Em sua segunda viagem ao Brasil, em 1997,
pedra-múmia, a fim de se reapropriar do quando realizou importante exposição do
núcleo de pedra do ídolo. Centro de Artes Hélio Oiticica,3 Fabro não
hesitou em alugar uma caminhoneta para
O ídolo: com a mulher, Carla, e amigos italianos par-
tir novamente em aventura pelas difíceis es-
Eis Apolo e Dafne, de Bernini: Apolo perse-
tradas brasileiras rumo a Congonhas do
gue Dafne, mas, quando a alcança, ela já é
Campo. Evidentemente, a densidade his-
casca. No entanto, Dafne, que se vai trans-
tórica na formação de um artista italiano
formando em loureiro, jogou um ramo en-
criava vínculos entre Fabro e o Barroco.
tre as pernas de Apolo. Essa é uma repre-
Para ser mais preciso, penso que a relação
sentação sublime do querer do artista
do trabalho de Aleijadinho com seu en-
(Apolo) sobre a natureza (Dafne) que, re-
torno e em particular a paisagem foi fator
cusando a ele se submeter, se transforma e,
importante para esse seu interesse. A in-
assim, chega a germinar sobre a concupis-
cursão de Fabro ao Brasil ganha sentido
cência de Apolo. Os olhares de ambos,
mais exato se compreendida como a de
háptico o de Dafne, maravilhado o de Apolo,
um corpo exploratório. O corpo como
nos dão uma imagem do que os antigos cha-
entidade biológica, tudo aquilo que o esti-
mavam de inspiração.
mula e que com ele estabeleceu vínculos –
Edição e tradução para o francês: o que me parece central em sua obra; nes-
Marcella Lista se sentido, seu trabalho teria ficado marca-
Tradução para o português: Glória Ferreira do por essa vinda ao Brasil.
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contatada para um encontro com o artista, e, aos poucos, ordena a arquitetura com sua
dado que Fabro estava naquele momento tessitura de ritmos contínuos... Ronald Duarte
realizando uma grande exposição retrospec- e outros alunos do curso de mestrado em
tiva no Centro Pompidou. História da Arte e Linguagens Visuais EBA/
UFRJ, Fabio Adler, Mauro Belagamba, Luciano
Como tinha agendado logo em seguida a Vinhosa e Marcos Vinicius de Paula, “costu-
exposição de Richard Serra, solicitei que ela raram”, durante quatro semanas seguidas, as
fosse a curadora da mostra e que entrasse paredes do Centro de Arte Hélio Oiticica,
em contato com Fabro. Ao mesmo tempo, para realizar a obra. Essa construção era uma
enviei as fotos do prédio, que ele imediata- espécie de ordenação em diagonal. As linhas
mente aprovou, em função do estilo dos fios de lã verde para tricô comprada na
neoclássico. A partir de então foi iniciado Rua da Alfândega, esticadas e colocadas de
longo e produtivo diálogo (que Glória rela- cima para baixo, subiam na diagonal e des-
tou ter durado mais de cinco horas) para ciam na vertical, em zig-zag entre duas linhas
realizar a primeira exposição individual de horizontais formadas pelo total de quatro
Luciano Fabro no Brasil, em parceria com o mil agulhas de prata colocadas de forma bem
Instituto Italiano de Cultura. determinada, de 40 em 40 centímetros.
Fabro é um dos artistas mais influentes da A transparência e a espacialidade do traba-
Arte Povera, movimento que surgiu na Itália lho é o resultado do entrecruzamento de
nos anos 60, e já havia estado no Brasil em fios de lã e agulhas fixadas em diversas ex-
duas bienais internacionais em São Paulo, tensões das paredes, que criavam belíssima
1975 e 1995, mas jamais fora convidado a membrana de ar e fios coloridos. A realiza-
fazer aqui uma exposição individual. ção desse trabalho gerou algumas dificulda-
des, decorrentes do fato de a construção
Para a mostra de Luciano Fabro no Centro
antiga do prédio não permitir a fixação
de Arte Hélio Oiticica (1o de outubro/9 de
das agulhas em suas paredes – a solução,
novembro de 1997), que inaugurou a série
bizarra, foi a fixação de buchas feitas de pa-
de exposições internacionais na instituição,
litos de picolé da Kibon!
foram escolhidas, da constelação de traba-
lhos do artista, 11 obras de sua coleção par- Outro trabalho que Zilio mencionou, até
ticular (exceto Attaccapanni), e algumas fo- porque tem relação direta com o Brasil foi
ram concebidas especialmente para o espa- Attaccapanni, (1977), tubos metálicos e te-
ço arquitetônico do prédio. Com excelen- cidos pintados, repletos de movimento e de
tes idéias, materiais insólitos – jornal, agu- luz, que Fabro desenvolveu após sua primei-
lhas, chocolate em pó e palitos de picolé ra visita ao Brasil e que concentra seu fascí-
Kibon – Fabro construiu seu trabalho com a nio pelas cores do pôr-do-sol e pela
devida colaboração de alguns alunos de Gló- luminosidade tropical. Durante as semanas
ria, professora da Escola de Belas Artes. Um que aqui passou, Fabro percorreu as favelas
exemplo foi a execução da obra intitulada do Rio, impressionou-se com a natureza, com
Penélope (1972), mulher de Ulysses, perso- as obras de Aleijadinho em Congonhas e,
nagem da mitologia grega, que passa o tem- sobretudo, com a intensidade e a expansão
po fielmente a tecer e desfiar um pano du- da luz tropical. Em suas inúmeras entre-
rante 10 anos, período em que o marido vistas, sempre mencionava a importância
esteve na guerra. Essa obra de Luciano Fabro de sua experiência brasileira no desenvol-
foi mostrada na Bienal de Veneza em 1972 vimento de sua obra.
Na época da mostra do Fabro, estava pre- Ovários (Ovaie, 1988) remete à sexualida-
vista a colocação de várias esculturas de de e aos órgãos de reprodução femininos:
estruturas metálicas, intituladas Nude/Les 250 ovos de mármore branco de Carrara
Voyeurs (1992), na fachada da instituição. são colocados em um colar duplo de estru-
Fabro, porém, encantou-se com a idéia de turas metálica retorcidas como trompas pre-
fazer uma apropriação do cenário urba- paradas para fecundação. “Os ovos germi-
no. Conseguimos a licença, e as escultu- nam… a arte germina…”.
ras foram instaladas nas janelas da facha-
da do motel rotativo Chama Rio, prédio Olho de Deus (Occhio di Dio, 1969), escul-
em frente à instituição, criando assim ou- tura em madeira e alumínio dourado, reme-
tra dinâmica de integração da obra, de te à iconografia religiosa e é um olhar
apropriação arquitetônica e sua relação interrogativo sobre a arte. E, por último, a
com a vida urbana. obra, C’est la vie (1986).
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Ele definia seu trabalho como de pobreza Desse modo, pude contar com ele em
franciscana: “Quand je réalise une œuvre, várias situações em que seu prestígio e com-
mon ambition est de faire une chose petência fizeram a diferença.
extremement complexe, rendue d’une
manière extremement simple. Mais dans Dos lugares em que os estudantes o encon-
cette simplicité doit se voir la complexité.” travam, dois eram referenciais, distanciados
por poucas quadras um do outro. Na
Accademia de Brera aconteciam ciclos de
palestras e orientações de trabalhos e na
A atenção na leveza: Casa degli Artisti,5 reuniões temáticas e ex-
Luciano Fabro, a forma e posições. Neste último, alguns artistas eram
o outro convidados a manter estúdios. Assim como
muitos interessados, transitei entre esses dois
espaços. Esses encontros me propiciaram a
Breve relato de minha convivência com
experiência de um longo trabalho coletivo
o artista na Accademia di Brera e na Casa
durante todo o tempo em que permaneci
degli Artisti entre 1985 e 1999. na Itália. Havia, porém, uma distinção entre
Carla Vendrami esses espaços no que se refere ao tipo de
orientação que Fabro realizava. Essa distin-
... todas as novidades do pensamento ção, a meu ver, contemplava dois pontos
nascem com o diálogo. fundamentais de sua obra e de sua visão de
... arte é espelhamento da própria cons- mundo: o formal (Casa degli Artisti) e o
ciência... relacional (Accademia de Brera).
e consciência é inserir-se na trama de
Algumas iniciativas, como aquela que pro-
fios que nos ligam aos outros.
punha ao artista confrontar-se com o espa-
... eu fazendo uma obra não faço outra ço urbano e o contexto social, partiram dos
coisa senão me representar em rela- alunos da Accademia e envolveram os da
ção a você. Casa; o inverso aconteceu com as questões
Luciano Fabro teóricas sobre a forma, elaboradas na Casa.
Eram dois universos particulares, embora
Faço parte de uma geração de artistas que ambos focassem a questão ética e, por con-
estudaram ou tiveram algum contato com seqüência, relacional: atenção ao contexto
Luciano Fabro na década de 1980, sendo e aos materiais. Na década de 1990, no
influenciados de vários modos por sua obra âmbito italiano, a influência de Fabro ren-
e seu posicionamento pautado por ques- deu frutos.6
tões éticas, de responsabilidade perante a
história, de confiança na arte e no processo Luciano Fabro tinha por hábito indicar a prá-
tica do desenho partindo de algo escolhido
de trabalho dos artistas. Cheguei a Milão em
(objeto, tema, questão) e dando ênfase à
1985, sem ainda ter noção de que lá per-
repetição. Deveríamos utilizar apenas o es-
maneceria até 1999. Meu primeiro contato sencial: lápis duro e papel branco. Exercitá-
com Fabro aconteceu na Accademia di vamos a concentração e desenvolvíamos
Brera, onde me formei e fui sua aluna por a percepção das qualidades da linha. Com
quatro anos. Mais tarde essa relação se sua sensibilidade para apontar o que para
aprofundaria, tomando viés profissional. nós eram ínfimas diferenças, numa linha
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alto-mar e lançar outra bóia, ampliando o que eu não sou, ela deve fazer coexis-
espaço percorrível da arte para outros que tirem os outros, aqueles que não sou.16
vêm depois dele, mas sem que esse novo
seja motivo de ansiedade. Divergências, porém, fazem parte do pro-
cesso da alteridade. O “outro” é uma dife-
Existe algo de pacífico nessa visão, imagi- rença radical, e por isso a alteridade é pro-
nando a seqüência de uma história da qual cesso dramático – diverso da totalidade, que
todos fazemos parte, deixando de lado as é trágica – como observa Enrique Dussel.17
interpretações comumente aceitas de rup-
turas violentas. Sua percepção do proces- Retorno a Carla Lonzi, a quem Germano
so histórico atenuava a diferença entre sua Celant no seu livro Arte Povera, publica-
experiência e nossa inexperiência – um do em 1985, se refere como um “pólo
modo ético de relacionar-se com as pes- energético inigualável”, 18 para trazer o
soas e com o mundo. contexto cultural nos anos de surgimento
do movimento.
Fabro diz que arte é o espelhamento da pró-
pria consciência, e “... consciência é inserir- Para Lonzi, a dissociação entre o momento
se na trama de fios que nos ligam aos ou- criativo e aquele institucional gera um mo-
tros”13 ou ainda “eu fazendo uma obra de delo cultural em que a obra só é acessível
arte não faço outra coisa senão me repre- como “objeto de avaliação”, perigo
sentar em relação a você”.14 Tais frases re- transmutado em algo com o que se distrair,
metem à questão da alteridade pensada por no qual ela se torna inofensiva. Coerente
Emanuel Lévinas. A “alteridade ética” sub- com seu significado, a obra deve ser dada
verte uma tradição que afirma no combate como momento cognitivo. A revelação do
o princípio da realidade criando uma situa- processo, em detrimento do privilégio da
ção anterior a qualquer discurso: “o outro obra como produto final, é estratégia
enquanto alteridade real é a possibilidade do desmitificadora que modifica os modos de
rompimento de minha totalização, ou seja, fruição da obra.
de minha solidão de ser”.15 E é nesse funda-
A noção de relação é seu ponto de partida
mento ético que a racionalidade pode legiti-
para repensar o papel de crítica de arte. As-
mar-se. Em outras palavras, não destruir o
sim como Lonzi se recusa a exercer um po-
eu do outro para que dele prevaleça o que
der discriminatório sobre obras e artistas,
em mim penso que seja eu, mas deixar que
Fabro, em Autoritratto, aponta que fugir de
o eu do outro me mostre o que em mim há
uma sistematização cultural é tática possível
de possibilidade de outros eus.
para desmantelar a cultura como poder
Frente ao outro, frente a uma obra, excludente.
frente a um corpo, Lévinas nos lembra
Existe uma qualidade de alteridade nesse
que é necessário sempre não com- pensamento que une Fabro e Lonzi. Na
preender, não preender, não tomar Bienal de Veneza de 1994, quando o
para si. Enfim, fazer a experiência de organizador Jean Clair propôs o tema Iden-
alteridade radical e de complexidade tidade e Alteridade – em época de inte-
essencial; senão, passa-se de lado: o gralismos, por um lado, e conflitos étni-
frente à frente é oposto de de lado, é a cos, por outro – na sala em homenagem
reposta a este último. Pois o outrem é póstuma a Lonzi, exemplares de
“aquele que eu não sou”, a obra é isso Autoritratto foram colocados junto às
Foi exatamente o aspecto relacional da obra Outro trabalho seu que naquela época me
de Fabro que nos interessou quando ele causou grande impacto foi Prometeo, de
participou da exposição concebida por Jan 1986, obra resultante de uma crise despon-
Hoet, Chambres d’amis, em Ghent, na Bél- tada pelo evento da explosão de Chernobil.
gica, em 1986, para a qual convidou os artis- Essa crise na visão do futuro estava traduzida
tas a realizar trabalhos em casas de morado- por uma forma desmontada: fim ou impos-
res da cidade. O contato com as obras se sibilidade de geometria. Instrumentos de
dava em âmbito inusitado e propulsor de medição da terra assinalavam uma situação
diferente sociabilidade em torno da arte. Em não funcional, numa geometria desfeita. Essa
cada casa visitada, pude observar a diferen- indagação da forma, como processo históri-
ça de intensidade na interação entre artista, co, trouxe-me a compreensão de outras
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Luciano Fabro
Cul de Ciel (detalhe)
Foto: Glória Ferreira
relações entre forma e conteúdo, que, como em que plástico é conceito tanto físico quan-
sugere Jole de Sanna, são conceitos disso- to mental, um conceito que abre espaços”.22
ciados pela língua moderna. Forma, portanto, que, partindo dos sentidos,
envolve a razão23 e, desse modo, é consciên-
De Sanna, historiadora da arte e professora cia, ou seja, configuração que resulta da re-
na Accademia di Brera, em Forma, l’idea degli flexão. É o acreditar na liberdade dessa re-
artisti 1943-1997, 21 refere-se a um reencon- flexão que faz com que tanto de Sanna quan-
tro de forma e idéia. Forma agora não mais to Fabro pensem ser possível o surgimento de
concluída ou portadora do desenho interno configurações sempre novas da obra/indivíduo.
que Erwin Panovsky menciona. Trata-se de Termos censurados, como fascínio, atratividade
uma forma que se abre: “a forma se abre e e beleza, podem irromper, observa de Sanna,
sela o contato com o ser através do contro- nessa experiência em que o olhar nasce em
le físico, plástico, das sensações e reações, novo contexto.
No diálogo com o material, coloca-se uma Seu interesse era o contato com o que é ex-
relação ética. Cito a obra Piedi, 1968/72, que terior a si, em cotejamento com o mundo,
amplia essa discussão. Nela existe o contato pois o exterior é depositado na interioridade,
com fazeres característicos da cultura italia- e por meio dos sentidos surge a consciência
na – é o contato com artesãos do vidro da de algo. Uma aproximação em que é útil
Ilha de Murano e costureiras (o plissado e a certo desapego do eu, e nunca censura. Ex-
casa de abelha). O significado do valor do perimentar e esperar a manifestação dos
trabalho em si, o saber fazer de cada um, materiais era seu conselho: exercitar-se com
isso me parece preservado, sendo o aspec- a natureza, como se ela fosse uma parte de
to luxuoso da obra algo que naturalmente nosso corpo, e não sobre a natureza. Esse
disso resulta. “Estes pés não são uma idéia, era um conceito de naturalidade do fazer
mas todas as vossas idéias.”24 Segundo Fabro, artístico. A obra, pondera Fabro, não é a
a fluidez da narração poética pode mas- natureza, mas, quando feita, é como se o
carar erros; é preciso sentir as contradi- fosse. É a sensação, que se torna precisão
ções que se resolvem na obra, assim como para o artista. É nela que ele encontra a
na vida: “... Do concreto e do abstrato, medida, a proporção certa entre a pessoa e
assim! Inconciliável! Da sociedade, assim! algo. O artista não representa a imagem
Inconciliável!...”21 Uma montagem fotográfi- externa das coisas, mas, segundo Fabro, a
ca de partes da coluna de tecido da obra consciência delas.
reproduzida em Attaccapanni cujo título é
Nido d’ape, feita para aqueles que “relega- Para nós, seus alunos, ele explicava a
ram o paladar ao intelecto”,22 nos estimula consciência como o “imaterial da matéria”.
o olhar. Com essa montagem, quer distan- Manter “a matéria em perfeita coincidência
ciar-se das questões de apreciação da fatura com o imaterial”24 era sua ambição; na falta
e nos recordar: “necessito de sua presen- de contexto religioso ou filosófico, há essa
ça”,23 de sua reflexão. necessidade de amplificar e sugerir, plasmar
uma matéria como se ela fosse imaterial. O
Lembro-me da seriedade das reuniões na trajeto que o artista faz, conclui Fabro, é tor-
Casa degli artisti, típico clima italiano, em que nar o impalpável palpável e depois novamen-
por mais que um dos participantes tenha mais te impalpável. Um trajeto da consciência.
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Fídia e Prassitele, Donatello e Buo- 15 Timm de Souza, R. Sentido e Alteridade. Dez ensaios so-
narrotti, Bernini e Canova são testemu- bre o pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre:
EdipucRS, 2000: 41.
nhas. Não os trago como exemplos,
mas os considero exemplares. 16 Soulages, F. Colóquio Photographie & corps politiques,
proferido na Universidade Federal de Santa Maria, RS,
Luciano Fabro em 21.02.2007.
17 A esse respeito ver Dussel, E. Para uma ética da libertação
latino-americana. São Paulo: Loyola/Unimep, 1977.
4 Fabro, Luciano. Paris: Centre Georges Pompidou, 1996. 24 Fabro, L. Attaccapanni, op. cit.: 77.
5 Espaço fundado e gerido por Luciano Fabro, Jole de Sanna 25 Id., ibid.
e Hidetoshi Nagasawa. 26 Id., ibid.: 80.
6 Cristiana Perella indica esses frutos no livro Nuova 27 Idem.
scena artisti italiani dgli anni 90, Milão: Mondadori,
1995, nas quatro vertentes que identificou: a rela- 28 Fabro, L. Regola d’arte, op. cit.: 113.
ção com o outro (eu me inseria junto a outros da
Accademia), a pesquisa da forma (na qual figura-
vam muitos artistas da Casa degli Artisti), a imagem
de derivação Pop e a questão autobiográfica.
7 Fabro, L. Regole d’arte, IV. Milão: Per l’arte, 1980: 5.
8 Id., ibid.
9 Id., ibid.: 6.
10 Deleuze, G. Gli Intercessori. La balena bianca, n.7,
1993: 27.
11 Lonzi, C. Autoriratto. Milão: De Donato, 1969: 7.
12 Fabro, L. Attaccapanni. Torino: Einaudi, 1978: 117.
13 Fabro, L. Regole d’arte, IV, op. cit.: 8.
14 Id., ibid.: 9.