Você está na página 1de 8

UM JORNAL PARA A CULTURA PORTUGUESA

ENTREVISTA A
FERNÃO CRUZ

O LUSITANO
27 DE SETEMBRO DE 2021
(P.4)

A exposição individual de Fernão Cruz abriu


dia 24 de setembro na Fundação Gulbenkian
com mais de 500 visitantes.

“FAZER A
EXPOSIÇÃO E VÊ-
LA DEPOIS TRAZ
ALGUMA
CLARIVIDÊNCIA
SOBRE ELA”

REPORTAGEM (P.3)
"UMA VIAGEM AO SUBCONSCIENTE DO
ARTISTA", FOI COMO MUITOS DESCREVERAM
A EXPOSIÇÃO DO JOVEM ARTISTA "MORDER
O PÓ."
O LUSITANO |27 DE SETEMBRO DE 2021 | 2

Editorial Morder o 21Pó.


Lusitano, um jornal sobre e Fernão Cruz, jovem artista de Morder o pó, é, nas
para a cultura portuguesa. Este 25 anos, vencedor do Prémio palavras de Fernão
jornal tem como objetivo dar Nacional Arte Jovem em Cruz, “uma ode à vida
voz à cultura portuguesa. Num 2017, foi convidado pela que disfarça o medo”.
mundo em que a cultura é Fundação Calouste
influenciada pela globalização, Gulbenkian para expor obras
o Lusitano pretende cultivar o inéditas do seu espólio.
amor àquilo que é nacional nas Leonor Nazaré é a curadora
novas gerações. Desde de uma exposição que
Fernando Pessoa, a Amália pretende refletir a visão do
Rodrigues, e Paula Rego, este Artista sobre a Morte, a Perda
jornal não deixará de parte e a Queda.
nenhum conteúdo acerca da Em “Morder o Pó”, os
cultura do nosso país. visitantes poderão observar
10 pinturas a óleo e resina
Nesta edição dedicada à arte, alquídica e 20 esculturas
fomos à procura de novos quase todas em bronze,
talentos portugueses, pois como instaladas em dois espaços
jovens jornalistas, sucessivos, mas distintos,
reconhecemos a dificuldade que separados por um corredor
as novas gerações sentem ao escuro que o visitante é
ingressar na vida profissional. convidado a percorrer.
E por isso, esta primeira edição A exposição será
decorre em torno da primeira acompanhada por um
exposição individual de Fernão catálogo com um texto da
Cruz- “Morder o Pó”, que teve curadora da exposição, a
lugar na Fundação Calouste reprodução de todas as obras
Gulbenkian. expostas, seguindo-se uma
conversa informal com o
artista.

Cada exemplar do catálogo


inclui uma oferta especial:
um desenho único e inédito
assinado por Fernão Cruz.
Esta exposição decorrerá de
24 de Setembro a 17 Janeiro
de 2022, sendo a entrada
gratuita.

O LUSITANO
O LUSITANO |27 DE SETEMBRO DE 2021 | 3

Passagens Secretas
REPORTAGEM // MATILDE CID E KAILANY ARRULO

“A mim não me interessa O contraste entre a Uma sala escura, sombria, e


perceber muitas vezes o vivacidade e falsa alegria das até certo ponto, deprimente,
que eu estou a fazer. O cores, com as mensagens dedicada às suas esculturas.
corpo manda, faz, e depois fortes por de trás da sua arte, Foi como se tivéssemos
então penso sobre isso. É criaram um ambiente entrado para outra
uma espécie de extensão à inicialmente pesado, mas que dimensão, ou melhor,
minha existência." – Disse o foi rapidamente quebrado morrido.
artista Fernão Cruz durante a com a chegada da curadora e Na sua arte, foram abordados
sua primeira exposição do artista. diversos temas como o
individual “Morder o Pó”. A desamparo no mundo, a
visita a esta exposição A sala enche e as pessoas procura de um propósito na
superou as expectativas de ficam mais confortáveis. terra, o vazio existencial, e
qualquer um. O evento teve Num diálogo informal, até a dor do seu luto, “Cair
uma enorme afluência logo Fernão Cruz foi expondo a em Palco”, foi uma das suas
no primeiro dia, com cerca sua linha de pensamento e pinturas que mais discussão
de 500 visitantes. Depois de razão de ser da sua obra, disputou entre os visitantes.
um período de crise, dando aos visitantes a
pandemia e luto, o jovem sensação de que
artista Fernão Cruz junta-se à conversavam com um amigo. “Morder o Pó” foi uma
Fundação Calouste viagem ao subconsciente do
Gulbenkian para retratar a “Andava muito obcecado por artista. Tivemos acesso aos
vida e a morte na sua arte. passagens secretas” - disse- seus pensamentos e reflexões
À chegada, o ambiente nos o artista antes de mais íntimas, mas que não se
silencioso revelava uma entrarmos num longo e diferem muito da maioria
grande expectativa sobre o escuro corredor, que nos dos seres humanos comuns.
que estava por vir. encaminhou para a segunda
parte da exposição.
A ansiedade foi rapidamente
rompida pela abertura de
portas para uma primeira
sala onde se encontravam as
pinturas do artista.

Uma sala iluminada e com


quadros coloridos, que ao
observar-se de perto
tornavam-se bastante
sombrios.
O LUSITANO |27 DE SETEMBRO DE 2021 | 4

'Aceitação, Despedida'
ENTREVISTA // KAILANY ARRULO E MATILDE CID

ANDAVA OBCECADO POR


“NEAR DEATH
EXPERIENCES” E
PASSAGENS SECRETAS E
DECIDI TRANSPOR ESTAS
IDEIAS NA MINHA ARTE.”

Porque é que foi este o Como é que funciona o seu


momento escolhido para a processo criativo?
sua primeira exposição
individual? “Eu gosto de reaproveitar
material. Ele fica com mais
"Quando a Leonor me história, mais coesão, mais
convidou para fazer o projeto verdadeiro. A maneira como eu
foi em junho de 2019. trabalho é um apagar constante
Entretanto, já passamos por das coisas que ficam por baixo.
três salas por causa da As pinturas ficam com cicatrizes
pandemia e as renovações do do que aconteceu antes. São
campo, mas estamos felizes coisas que eu percebo depois de
porque esta sala é muito mais fazer o trabalho, eu não evoco
ampla e permite fazer esta isto. É todo um processo
espécie de divisão que vocês inconsciente.”
irão ver.“
Quais foram os materiais
Reparamos que a temática usados para as pinturas e
da exposição foi alvo de esculturas?
grande debate. Qual foi a
inspiração? “As pinturas foram feitas a óleo
e a resina alquídica, ao passo
“Na altura, andava obcecado que as esculturas foram feitas
por “near death experiences” e com cartão e passadas a bronze,
passagens secretas e decidi com exceção destas duas (ver
transpor estas ideias na imagem no canto inf. direito)
minha arte.” que foram feitas com papel
machê, gesso, e cola.“
O LUSITANO |27 DE SETEMBRO DE 2021 | 5

Reparamos que o quadro


“Cair em Palco” destacou-se
na exposição. Qual o
significado por trás? (ver
imagem no canto sup.
direito)

"Com este quadro procurei


representar uma figura que
cai na terra, desamparada.
Tal como nós, que nascemos
sem escolher e somos
forçados a viver nesta terra.
Neste quadro, também quis
destacar o tema da ribalta e
da fama, e por sua vez, tudo o
que vem com a mesma, como
podem ver as cabeças por
trás que observam a figura.”

Podemos afirmar que a Fernão, reparamos na Porquê a escolha do nome


escultura “Aceitação. presença constante de “Morder o Pó”?
Despedida” entre todas, foi elementos desproporcionais
a que causou um maior do corpo humano. Qual é o "Eu estava a ler, e andava a
impacto no público. Qual foi significado? falar com a Leonor sobre
a intenção do robe nas estas experiências de quase
garras da ave de rapina? “Para ser sincero não tenho morte, e andava à procura
uma resposta exata e de um nome que ilustrasse
“Esta escultura tem um completa. Gosto de coisas isso. Vem da tradução
grande significado, porque indefinidas, de desconstruir a inglesa "Biting the dust”.
perdi o meu avô realidade e do vazio. Gosto ”Morder o Pó” porque
recentemente e nela consegui muito de representar o vazio. ninguém morde o pó. Tem
ilustrar a minha dor, e todo o A mim não me interessa a ver com a queda, com a
processo de luto. Este robe perceber muitas vezes o que morte em si. Então o nome
pertencia ao meu avô, e pedi eu estou a fazer. O corpo vem de um lugar
à minha avó que mo manda, faz, e depois então imaginado, fechando os
emprestasse especificamente penso sobre isso. É uma olhos. Na verdade, não sei
para esta exposição. Se espécie de extensão à minha explicar.”
repararem, o cabide, a única existência.”
escultura de madeira da
exposição, também pertencia
ao meu avô. Procurei, através
da minha arte, transmitir
todos esses sentimentos.“
O LUSITANO |27 DE SETEMBRO DE 2021 | 6

Exposição sem Pó
COMENTÁRIO // LIA ANTUNES E CARLOTA SOUSA

A decisão de visitar a No que diz respeito ao Para além disso, o uso de


exposição "Morder o Pó" espaço, de um modo geral, máscara era obrigatório e
resultou da curiosidade de este estava bem organizado todas as normas higiénicas
perceber como é que um fora pequenas exceções. À estavam a ser cumpridas. O
jovem artista interpreta um entrada do museu, foi mesmo se passou na
assunto tão complexo como entregue um bilhete a cada segunda sala. Apesar de a
a morte e representa-o visitante de forma a contar lotação máxima ser de 30
através das suas obras. A o número de pessoas que a pessoas, não estavam mais
exposição de Fernão Cruz visitavam. Recorde-se que que 10 pessoas no evento,
foi, sem dúvida, uma a entrada é gratuita, mas a entre as 16 e as 17 horas da
experiência muito conversa com o artista e a tarde, pelo que todos os
interessante, imersiva, e curadora tinha um custo de presentes no mesmo
culturalmente 6 euros. Entrando na puderam desfrutar ao
enriquecidora, mas será primeira sala reservada à máximo em segurança.
que cumpriu com as exposição, versificamos Passado 10 minutos, depois
expectativas quanto à que esta é muito espaçosa das 17 da tarde, iniciou-se a
organização do evento? permitindo o conversa com o artista e a
distanciamento social. curadora.
O LUSITANO |27 DE SETEMBRO DE 2021 |7

Em termos de organização Tirando estes pequenos


do evento, penso que este problemas, a conversa foi
foi o momento de toda a bastante interessante,
experiência que mais especialmente para
deixou a desejar. apreciadores de arte.
Várias pessoas
Primeiramente, a curadora participaram ativamente e
retirou a máscara para puderam expor as suas
falar afirmando que lhe questões que, tanto o
fazia "confusão" conversar artista como a curadora,
desta forma. Disse que, se esclareceram. Foi, sem
houvesse alguém que se dúvida, uma conversa
opusesse, então que a benéfica e esclarecedora
poria, mas ninguém para quem tinha interesse
revelou ter problemas com em conhecer o artista.
esta situação.

No entanto, creio que não


foi uma boa atitude pois
alguém podia não se sentir
confortável, mas, não
querendo causar
constrangimento, não ter
levantado a questão. Outro
problema que surgiu foi o
facto de que esta conversa
ocorreu nas salas da
exposição. Esta escolha é
compreensível uma vez que
a conversa se torna mais
interessante e interativa se
os ouvintes puderem
observar as pinturas e
esculturas enquanto ouvem
os comentários.

No entanto, os visitantes da
exposição que não pagaram
para ouvir esta conversa e
que se encontravam nas
salas, puderam desfrutar
dos mesmos comentários
que os visitantes que não
pagaram.
O LUSITANO
27 DE SETEMBRO DE 2021

'ONDE ESTÁ
A CULTURA
PORTUGUESA
?'

CRÓNICA // PALOMA SANTOS E KAILANY


ARRULO

O ‘Episódio Da Corrida De A imagem que aprendemos não pela nossa identidade,


Cavalos” no clássico sobre o povo português nas mas porque nos moldamos
literário ‘Os Maias’ do aulas de história, está a eles, como crianças
século XIX apresenta-nos muito distante daquilo que desesperadas por
um comportamento típico é visto no nosso dia-a-dia. aprovação.
português da época que Portugal é um país Ouvimos as mesmas
não se difere muito do conhecido pela sua músicas que eles,
século XXI: uma tentativa hospitalidade e abertura conhecemos as mesmas
frustrada de copiar o para o estrangeiro, mas até histórias que eles,
estrangeiro e desvalorizar o que ponto esta atitude tem frequentamos as mesmas
nacional. sido benéfica para o nosso lojas que eles, e muitas
Onde está a cultura povo? vezes, colocamos a nossa
portuguesa? Onde está o Este problema social não língua materna de parte
fado, as tascas, e os nossos começou com Eça de para falar como eles.
artistas? Onde estão os Queirós nem nas Reflexões O que será da cultura
Heróis do Mar? de Camões, este problema portuguesa nas futuras
Os nossos cinemas enchem- é uma doença crónica que gerações? Felizmente, ainda
se de filmes de Hollywood e permanece no espírito há uma luz no fundo do
as rádios nacionais tocam a português geração após túnel, pois ainda existem
música internacional. As geração. A linha que institutos e iniciativas, entre
mulheres ridicularizadas separa a cultura os quais destaca-se a
no episódio da corrida de portuguesa do resto do Fundação Gulbenkian, que
cavalos, não se diferem dos mundo está cada vez mais buscam valorizar aquilo
nossos artistas, imperceptível. que é nacional.
desesperados para compor Hoje, os estrangeiros
música “portuguesa” chegam ao nosso país e
baseada numa cultura maravilham-se,
americana.

Você também pode gostar