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Kusama
Do Japão
para o mundo
Em Serralves, a artista tem a sua maior
exposição retrospectiva
europeia
Da fragilidade ao universo,
passando pela cor das
redes, das plantas e dos
pontos, formou-se o
trabalho da artista
japonesa Yayoi Kusama,
que expõe no museu do
Porto a sua maior
retrospectiva europeia.
José Marmeleira
(Texto)
Nelson Garrido
(Fotografia)
N
o Museu de Serralves, são mais de 160 as obras
que, entre pinturas, desenhos, esculturas, ins-
talações e material de arquivo, formam Yayoi
Kusama 1945 — Hoje da artista japonesa Yayoi
Kusama ( Japão, 1929). Esta é a maior retrospec-
tiva da artista na Europa e, em simultâneo, a sua
primeira mostra individual entre nós. Organizada temá-
tica e cronologicamente, a exposição, que abriu ao pú-
blico no Porto na quarta-feira, inicia-se na galeria supe-
rior do museu com trabalhos dos finais dos anos 50 —
entre os quais é exemplar Infinity-net 2 (1958), pintura
seminal que assinalou a sua entrada no circuito artístico
dos EUA — e outros mais recentes, incluindo a instalação
The Moment of Regeneration (2004).
A exposição que tem curadoria de Doryun Chong e
Mika Yoshitake, com a colaboração de Isabella Tam, de-
saguará, depois, no espaço seguinte, com uma profusão
de obras realizadas pela artista em diferentes suportes
(veja-se a colorida e sinistra Self Obliteration de 1966-1974)
e prosseguirá, passando por uma ampla parede de pin-
turas, antes de se interromper vertiginosamente no de-
sorientador ambiente, composto por paredes pintadas,
balões suspensos e espelhos, que é Dots Obsession —
Aspiring to Heaven’s Love (2022) e no exterior com Nar-
cissus Garden (1996), conjunto de esferas inoxidáveis que
ocupará uma área do jardim.
Aquando da visita do Ípsilon à exposição, a montagem
de Dots Obsession — Aspiring to Heaven’s Love (com o seus
espelhos e superfícies pintadas com pontos) ainda não
estava concluída, mas isso não nos impediu de traçar
uma série de elementos que se repetiam ou reaparece-
riam ao longo das salas. Entre elas, a presençado ponto,
as ideias de repetição e acumulação, a relação entre a
cultura dos Estados Unidos e a história do Japão mo-
derno, a auto-representação ou a linguagem (ou estilo)
de uma arte global. Quem nos acompanhou pelo uni-
verso de Yayoi Kusama não foi a artista (recolhida na
fragilidade dos seus 95 anos) nem os curadores (em trân-
sito, presos noutros compromissos), mas o director do
Museu de Serralves Philippe Vergne.
“A primeira apresentação desta retrospectiva aconteceu
em 2022, em Hong Kong, no museu M+, depois seguiu
para o Museu Guggenheim, em Bilbau. E agora está aqui”,
conta Philippe Vergne assim que entrámos na primeira
sala desta exposição que ficará no Museu de Serralves até
29 de Setembro. “Yayoi Kusama 1945 — Hoje inicia-se nos
finais dos anos 50 e segue até aos trabalhos mais
Detalhe da
instalação The
Moment of
Regeneration
(2004)
noção de objecto de arte não corresponde, em absoluto, pinturas nas quais os pontos se reproduziam sob fundos
àquela que encontramos na cultura ocidental. Não parti- monocromáticos terríficos ou doentios. Há cor, figuração,
lham connosco, por exemplo, a ideia de exclusividade e peças com formatos diferentes, um desenho ao qual falta
unicidade da obra de arte. Por outro lado, é importante a perspectiva. “Não são obras que respeitem os códigos
lembrar algumas afinidades com o movimento Fluxo e de uma arte de vanguarda”, considera Philippe Vergne.
certos trabalhos de Robert Filliou ou George Maciunas. “Mas sempre que as vejo, penso nas obras do Willem de
Em certa medida, com as suas caixas e livros de artista, Kooning (1904-1997) mais tardio, que estão a ser redesco-
também fizeram um certo tipo de merchandising, também bertas. Há aqui uma grande liberdade. Leva-nos deste
democratizaram o objecto artístico. Concebiam objectos momento de escuridão, desta obsessão com a morte para
para os tornar acessíveis, exprimiam esse desejo.” a força da vida. Mesmo que neste trabalho possamos en-
De volta à exposição, e deixando para trás este amplo e contrar uma pintura que evoque a destruição apocalíptica
inesgotável debate, atravessamos uma sala onde observa- de Hiroxima e Nagasáqui, persiste a ligação com a vida.”
mos, enquadradas por pequenos ecrãs, imagens em mo- Olhamos para o mural de pinturas, e vêm-nos à memória
vimento. Nelas, a história individual (da artista) cruza-se Joaquim Rodrigo, Eduardo Batarda, talvez um Jean Du-
com os acontecimentos políticos e sociais que marcaram buffet menos brutal. “É fácil criticar o trabalho de Kusama
os anos 60 e 70 do século passado. É um espaço intercalar pela sua leveza e cor”, comenta o nosso cicerone, “mas
que nos levará às salas finais. Pelo caminho, outro nome, encontramos nele uma obsessão com a infinitude e uma
porventura inusitado, assoma à conversa: Agnès Varda ideia proliferação de vírus e de corpos invasores que lhes
(1928-2919). Phillipe Vergne não considera o nexo comple- retiram essa leveza”.
tamente improvável: “São duas personalidades com um Aproximamo-nos da sala final, onde se encontra em
carácter obsessivo e criaram personagens. E há temas que montagem Dots Obsession, com espelhos, cores, balões
as aproximam. A ideia de acumulação como fonte da vida a flutuar em fundos negros. Será uma experiência des-
ou de morte, a relação com a natureza, o humor.” concertante, certamente. “Espero que sim, mas não
Entramos na sala final, em cujas paredes se exibem encerrará aqui. No exterior, no jardim, estará outra ins-
Detalhe da série Pumpkins diversas pinturas. À primeira vista, estamos longe das talação, Narcissus Garden (1968), que Kusomai levou,
(1998-2000) instalações tentaculares das outras salas, distantes das clandestinamente, à 33.ª edição da Bienal de Veneza.
TORU HANAI/REUTERS
D
esde criança, Yayoi Kusama ambicionou ser que tornem este mundo melhor, mais justo e com mais Mesmo tendo na pintura a sua linguagem
uma grande artista. Por isso, contra a vontade coração. originária, a sua obra tem-se desenvolvido por
da sua família, deixou o Japão feudalista de Continua a ter ideias e mais ideias e, apesar de tudo, esculturas, instalações e vídeo. O que trazem os
1950 e rumou à pulsante Nova Iorque para se um dia renascer, quer voltar a ser exactamente a diferentes suportes para o seu trabalho? É uma
Yayoi Kusama, poder estar com outras pessoas. Vontade não artista que é hoje. É isso que conta ao Ípsilon nesta artista multidisciplinar ou pós-disciplinar, mas o
em 2017, só de popularidade e crescimento, mas entrevista feita por email a propósito da retrospectiva que a cativa em cada um dos media que utiliza?
a conversar também estratégia para abolir barreiras entre os Yayoi Kusama: 1945 — Hoje, que nesta quarta-feira se Não paro de ter ideias e cada medium que uso é
com vários diferentes habitantes deste mundo. inaugurou no Museu de Serralves, no Porto. diferente e permite coisas diferentes, mas, apesar de
jornalistas no Muito motivada pela sua intensa experiência da todas essas diferenças, são obras de arte de Kusama e
seu atelier em guerra, a japonesa, que este mês festejou os seus 95 No final dos anos de 1950, mudou-se do Japão para é-me indiferente o meio que uso. Neste momento, estou
Tóquio anos, procura através da sua arte provocar revoluções os EUA. A mudança levou-a de uma relação muito contente com a pintura e, se me fosse permitido
profunda com a herança cultural e artística renascer, gostava de renascer sendo exactamente a
japonesa, nomeadamente com a tradição da artista que sou hoje. Além de ser a artista que sou, nada
pintura Nihonga, para um confronto com a pop-art mais me interessa.
na cena artística de Nova Iorque. Como surgiu essa Muitas das suas obras usam o sexo e a nudez como
vontade? estratégia de crítica aos museus e à sociedade.
O Japão era muito feudal naquela época e a minha Porque considera a nudez um elemento crítico
família era especialmente conservadora e proibiu-me eficaz? Os corpos nus que surgem nos seus
de desenhar ou pintar. A minha mais importante happenings são obras de arte? Se o são, como se
motivação quando fui para os Estados Unidos foi poder relacionam com o resto da sua produção?
continuar a desenhar e a pintar. Jurei viver a minha vida dedicando-me a admirar e a
No entanto, naquela época já era uma artista com honrar as muitas pessoas que morreram na guerra.
reconhecimento no Japão. Senti uma grande tristeza ao ver tantos corpos humanos
Para mim, era importante que a minha arte fosse belos mortos e mutilados na guerra e tenho defendido a
partilhada com o maior número de pessoas possível e importância de remover as barreiras entre nós e os
de muitas formas diferentes. Estou muito grata por ter outros. E foi através da minha arte que me envolvi
tido essa possibilidade. activamente nos movimentos antiguerra. Esta
Nessa ida destruiu algumas das suas obras. experiência da guerra ensinou-me a viver a vida de
Recorda-se de como eram e porque o fez? maneiras diferentes e promover grandes revoluções
Destruí todos os meus desenhos e pinturas. Quando sexuais nos meus happenings, na minha música, nas
parti para Nova Iorque, a minha grande determinação roupas que fiz e na literatura que escrevi.
era fazer trabalhos não só diferentes, mas também O seu trabalho tem conhecido desde finais de 1990
melhores. Por isso, destruí tudo. uma enorme popularidade nos principais museus
O que lhe deu Nova Iorque, com a sua vida intensa de todo o mundo. Como lida com este entusiasmo?
e pop, que o Japão não podia dar? Sente que é uma forma de conseguir ligar-se às
O principal ponto foi a possibilidade de poder interagir pessoas através da partilha de um mesmo
com outros artistas e contactar com toda aquela imaginário e sensibilidade?
diversidade internacional de movimentos artísticos. E Fico muito contente e feliz por poder viver numa
foi graças a esta enorme diversidade de pessoas e de sociedade que gosta do que faço, bem como pela
possibilidades artísticas que comecei a receber imensas capacidade de as minhas obras poderem tocar essas
propostas de trabalhos. Nova Iorque era, e ainda é, um mesmas pessoas.
dos lugares mais incríveis para a criação artística e para Além da sua obra, muito icónica e forte, a sua
o desenvolvimento de projectos. figura enquanto mulher é marcante. Não só pelo
Muitos anos mais tarde, regressou ao Japão. seu activismo político, mas também pelas suas
Porquê? roupas com cores fortes, nada minimalistas e
Voltei porque, para mim, era importante que as muito expressivas. Revê-se nesta ideia de artista
mulheres e os homens japoneses lutassem em conjunto ícone? E foi por isso que achou que era boa ideia
por uma certa grandiosidade. Regressei ao Japão com a desenvolver uma marca de roupa?
ambição de ser uma grande artista. Uma artista que Esculpo e pinto desde criança. E é também desde esses
conseguisse alcançar os confins do universo através da tempos que tinha a forte convicção de que seria uma
estratégia de me desafiar permanentemente como artista. Também vem desse tempo o meu interesse em
poeta, artista e compositora. Ainda que tenha desenhar e confeccionar roupa e tudo isto, esculturas,
produzido toneladas de pinturas e esculturas nos EUA e desenhos, pinturas, roupa, me serve para eu poder
de ter sido um período muito criativo e produtivo, transmitir a minha mensagem.
precisei de voltar para o meu país. Um regresso que me E quanto ao seu activismo político?
permitiu mostrar muitas obras e fazer muitas Hoje em dia, além de o terrorismo e de as guerras
exposições tanto no Japão como na Europa. continuarem por todo o mundo, o fosso entre ricos e
A sua pintura é associada ao expressionismo pobres está a alargar-se, e muitas pessoas estão a sofrer
abstracto e a artistas como Jackson Pollock, profundamente. Nesta situação, fico muito
Rothko, ou Barnett Newman. Revê-se nesta impressionada com os jovens que, sinceramente, estão
família? Há mais quem tenha sido referência? a olhar para si mesmos e a tentar criar um mundo
Não sou influenciada por ninguém e acredito, caloroso, de paz e com coração para as pessoas mais
profundamente, que nasci para ser artista. desfavorecidas.
)
Museum
De Pedro
Cabrita Reis
MADRID. Galeria
Albarrán Bourdais.
Calle Barquillo, 13.
De 3ª a 6ª, das 10h30
às 19h30. Sábados,
das 11h às 14h. Até 20
de Abril.
Uma vista
geral da
exposição que
tem pintura,
escultura e
objectos
encontrados
O Hotel Europa
visita a violência
na chegada
da democracia
Com Luta Armada, a companhia
volta o seu teatro documental para
as organizações que antes e depois
da Revolução recorreram a acções
violentas para alcançar objectivos
políticos.
Gonçalo Frota
R
yusuke Hamaguchi é um nacional dos festivais, e não só, com A verdade é que desde Happy Hour cia disso, quando nos sentamos pe- Não Está Aqui
rapaz de Tóquio de 46 anos. as cinco horas de Happy Hour — A temos tido direito, espectadores por- rante o último filme do cineasta de Aku wa sonzai
A natureza, para ele, são as Hora Feliz (2015). A partir daí o culto tugueses, a toda a obra do japonês. Roda da Fortuna e da Fantasia (2021) shinai
árvores alinhadas na ci- correu rápido, digamos assim, po- Ela chegou a tocar Hollywood em que agora se estreia comercialmente De Ryûsuke
dade, uma geometria con- dendo o fenómeno apenas ser com- 2022, quando recebeu o Óscar de entre nós. Temos de agradecer a Ha- Hamaguchi
trolada. Não esqueçamos parado, e foi acontecendo em para- Melhor Filme Internacional por Drive maguchi a sensação a) de O Mal Não Com Hitoshi
isto quando estivermos perante O lelo, à forma como a fama do cinema My Car que está longe de ser o seu Está Aqui se nos escapar permanen- Omika, Ryô
Mal Não Está Aqui/Evil Does Not de Hong Sang-soo alastrou — apesar melhor filme mas talvez o conto de temente, b) de provavelmente não Nishikawa
Exist, Prémio Especial do Júri em de tudo, o coreano permanece im- Haruki Murakami contribua para ser o que os fãs esperariam, c) de não Em sala
Veneza 2023. batível: gerou uma vassalagem que explicar essa consagração. fechar nada do que abre, narrativa e
Ryusuke Hamaguchi é um realiza- até tem pouco a ver com o discurso Somos forçosamente condiciona- formalmente, sabotando o que se
dor que explodiu no circuito inter- crítico. dos por tudo isso, e temos consciên- arredondara em Drive my Car.
sobriedade contida e pudica e contudo de uma Neo Sora música, temos a sensação de que nos trabalho, mas este não era um
grandeza incomensurável, apagando-se com (na imagem) aproximamos mais e mais. Como filme qualquer. Era um filme
humildade por trás do talento de compositor e é um clássico não havia público, a prioridade era com o seu pai, rodado em
A
20 Abril • M/6
Sábado às 21h
ctalmada.pt
Adrianne
Lenker
sem filtros
e sem rede
Fechada com alguns amigos
num estúdio rodeado de
Åoresta, a cantora dos Big Thief
gravou o magníÄco Bright
Future. E é como se estivéssemos
na mesma sala do que ela.
Gonçalo Frota
E
stamos nos minutos finais de perder a minha carreira. Ou por pen-
uma conversa com Adrianne sar que possa não ter mais nada para
Lenker. É o primeiro dia de lançar para o mundo e que toda a
promoção que a cantora nor- gente me irá esquecer. Não quero
te-americana, vocalista dos fazer álbuns vazios de sentido e que
Big Thief e autora de algumas sinta que são monótonos. Preferiria
das mais arrebatadoras canções da muito mais pousar a guitarra, ir plan-
última década, a meio de Janeiro, tar comida, entalhar colheres, diver-
dedica ao seu novo álbum a solo, tir-me a moldar barro e ir trabalhar
Bright Future. Lenker está de visita a para um diner.”
alguns parentes, interrompendo o A questão é que Adrianne Lenker
sossego familiar para uma série de adora o processo de escrever can-
entrevistas centradas neste encanta- ções e juntá-las num propósito co-
dor álbum que se ouve como se esti- mum. O que significa, no fundo, duas
véssemos na mesma sala do que ela coisas distintas: que se imagina facil-
e os seus três cúmplices, em descon- mente a fazer isto até à velhice, mas
traído ambiente montado numa ca- também que não se sente obrigada
bine algures nos Estados Unidos, nem tenciona continuar a fazê-lo se
rodeados de floresta e reunidos à sentir que não tem nada de novo a
volta de uma lareira a desfiar can- dizer ou que “as canções não têm
ções — sem outro aparente propósito uma energia em que exigem ser ati-
que não o de gozarem ao máximo radas para o mundo”. Descansem,
aqueles momentos de partilha. no entanto, os mais fiéis seguidores
A conversa vai já avançada, está de Lenker. Porque aquilo que a can-
quase a surgir o alerta por um res- tautora logo acrescenta é que duvida
ponsável da editora que excedemos poder vir a esvaziar aquilo que tem
o nosso tempo de videochamada, a dizer sob a forma de canções. “Por-
falamos deste ofício da escrita de que a minha vida é, como a de qual-
canções quando Lenker resume tudo quer outra pessoa, um caminho de
assim: “A única coisa que não quero contínuo crescimento pessoal na
mesmo fazer é construir álbuns por forma como compreendo o mundo
estar assustada a pensar que posso à minha volta. E o mundo é tão louco
RUI GAUDÊNCIO
em o mesmo nome do tri-
savô, Luís de Freitas Branco,
e, nascendo numa família
desde sempre ligada à mú-
sica, quis seguir outros cami-
Pacheco
dá a entender a importância da mú-
sica popular no posterior derrube da
ditadura, agora que se comemoram
os 50 anos do 25 de Abril de 1974.
Pilar Adón
quero parado, não quero que pre- com De Bestas e Aves recebeu
tenda ter tudo mastigado, que eu lhe o Prémio Nacional de Ficção,
diga como são as personagens, como o Prémio da Crítica e o Prémio
é o lugar... Isso não me interessa Francisco Umbral
como leitora. Mas, para isso, é im-
portante que eu conheça tudo o que
não conto, há um trabalho de depu-
Livros fd?????
enganadora. “Erica e Nora contra
Olivia e Lis. Primas que se preferem
uma à outra em vez de às irmãs”,
vozes diferentes, apoiando-se num
suspense muito bem articulado,
mas que se arrasta até à exaustão.
pelas outras para acabar com esse
estado, detalhe que é um eco
bastante directo de um “avô” dos
compaixão (Manning Walker
nunca está contra as
personagens), mas o gesto é o de
esclarece La Cruz. anos 90 para um filme como How dar a ver os “animais” no seu
O suicídio de Dona Carmen to Have Sex, o Kids de Larry Clark habitat.
constitui um mistério que (e Harmony Korine). Habitat que eles transportam,
Ficção
desassossega as netas. A velha
senhora escolhe cortar os pulsos
na banheira — uma forma teatral e
Cinema Mas enquanto estamos
entretidos com a exposição da
mentalidade sexual (mais disso do
claro: de Malia (o nome da vila)
vê-se pouco ou nada para além
dos apartamentos, dos
A dança dolorosa — em vez de tomar os
múltiplos fármacos que constituem
que duma “moral sexual”) da
juventude britânica,
supermercados, dos bares e das
discotecas, o campo é sempre
dos espectros um verdadeiro tesouro para quem, arriscamo-nos a passar ao lado de muito fechado, muito mais
como Nora, só sobrevive à custa de uma questão que o põe (ao sexo) interiores do que exteriores, e
Um romance construído uma ingestão frenética de Estreiam quase como um trompe l’oeil. quando o campo se abre (num
psicotrópicos, calmantes, Acima de tudo, How to Have Sex é plano que aliás se repete) é para
sobre variantes dos mesmos
temas, permanentemente
excitantes e outros produtos
viciantes.
O caos sexual um retrato de “classe” (a
sensibilidade dos realizadores
dar uma imagem da devastação
turística, uma rua matinal cheia de
reiterados em vozes A autora é muito hábil na da adolescência britânicos a este tema não muda lixo, despojos da noite anterior.
construção de uma narrativa por mais que mudem as gerações), O filme tem que dar a volta por
diferentes. Helena
Vasconcelos
repetitiva e encantatória que num Verão e aquela vila de Creta é como o isto — pela questão cultural — para
revolve em torno das protagonistas,
cada uma com intenções,
grego encontro dos subúrbios das
grandes cidades inglesas — é duma
que o regresso em força do “caos
sexual” no último terço (a
As Herdeiras
interesses e motivações distintos e cultura social, restringida por brutalidade estúpida dos rapazes,
Aixa de la Cruz How to Have Sex, de Molly
totalmente egocêntricos, mas barreiras e horizontes de classe, a fronteira difusa entre o
(Trad. Pedro Rapoula)
D. Quixote ligadas entre si, não só por essa Manning Walker é um retrato que o filme fala, e isso está está “consentimento” e a falta dele,
“herança” amaldiçoada, como de “classe” e isso está está estampado em todas as conversas sobretudo quando há muito álcool
) também pelo desejo de saberem o das personagens, nos empregos a toldar o juízo) surja enquadrado
que levou a avó a praticar um acto
estampado em todas as que projectam ter, nas roupas que por um pouco de “sociologia” (ou
A primeira vez tão avassalador. conversas das personagens. vestem, nas tatuagens, nos gostos de “zoologia”) que tem a
que Nora É este mistério incómodo que Luís Miguel Oliveira que manifestam. As cenas em que inteligência de não se transformar
aparece, neste sustém a narrativa, como se de um o encontro da subúrbia se em prelecção; não se refugiando
romance da policial se tratasse, composto por How to Have Sex — A Primeira
espanhola Aixa cenas que vão sendo narradas Vez
de la Cruz cada uma quatro vezes,
How to Have Sex
(Bilbau, 1988), correspondendo, assim, às
De Molly Manning Walker
vemo-la numa personagens principais. O cenário Com Enva Lewis, Lara Peake, Mia
grande casa a deste drama é a casa labiríntica McKenna-Bruce, Anna Antoniades
remexer em gavetas, caixas e com os seus recantos, espelhos,
Em sala
outros lugares menos visíveis, à cheiros, sombras, memórias, uma
procura e a recolher todos os construção fechada e
comprimidos que vai encontrando, claustrofóbica que provoca
sob o olhar indiferente de Erica e o diferentes reacções, em que a Primeira obra de uma cineasta
alheamento de Lis, e às escondidas estranheza da situação e, britânica de 30 anos, notada no
de Olivia, que certamente principalmente, o choque festival de Cannes do ano passado
entregaria todo aquele arsenal na permanente entre pessoas (onde ganhou a secção Un Certain
farmácia mais próxima. A autora diferentes nos seus propósitos e Regard), é um olhar curioso, e
estabelece, desta forma e desde o obsessões são acentuados pela minimamente arrojado, sobre o
início, uma forma de “jogo”, presença fantasmagórica da avó, caos sexual do fim da
dançado por estas quatro mulheres cada vez mais intrusiva. adolescência, e ao mesmo tempo
que, como o título indica, herdam a As quatro mulheres escolhem um pouco mais do só isso, a partir
casa de uma avó que decidiu caminhos diferentes, para sempre das aventuras de três miúdas How to Have Sex: os corpos como pequenas máquinas
acabar com a vida. São primas irreconciliadas, mas para sempre inglesas durante umas férias de descontroladas
entre si, duas irmãs mais duas ligadas: Lis, carregando um trauma Verão na Grécia, mais
26 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024
ti tura de silêncios e olhares para quatro actores
L
considerado, mas falhou a selecção, para o IndieLisboa. transformar-se-á em sniper, vingador solitário dos que
Mas se só com a estreia de cada um desses títulos, foram dizimados — ele próprio, num final B que foi
e Gang des Bois du Temple (2022) progride como se dizia no podcast Microciné, nos lembrámos filmado e que concluiria Le Gang des Bois du Temple
elegante, silencioso na violência que vive nele, que Zaïmeche existia, nenhum deles foi capaz de com um desespero mais assumido, acabava
subterrânea. Nunca conseguiremos prever em ultrapassar a condição de gota no oceano e tirar toda a assassinado num atropelamento.
que filme se vai tornar, nesse movimento de obra de uma quase confidencialidade. Apesar também Só que esta escultura de “filme de género” assim
animal, ao dobrar de cada esquina de um bairro dos prémios, em Berlim, em Cannes ou em Turim. definida não dá conta do que é poético em Zaïmeche, a
que tem um nome místico, Bois du Temple, no Bégaudeau tem a teoria de que isso convém ao suspensão, a espera, a atenção às coisas do mundo.
subúrbio de Clichy sous Bois, departamento de ex-estudante de Sociologia que é “um anarquista Por exemplo, o canto de Annkrist, cantora e poetisa
Seine-Saint-Denis. É a grande Paris. É esplêndido o filme. consequente” — “Não digo que ele tenha feito tudo para bretã, numa sequência de funeral, que faz o
Clichy sous Bois é o bairro onde, em 2005, ao fugirem ficar nas margens; mas teria ele gostado que fosse de espectador perder decididamente o norte do filme; ou
de um controle policial, dois adolescentes se refugiaram outra maneira?”— e que também dessa forma faz o não saber em que filme está.
num transformador eléctrico, tendo morrido gosto dos fãs: um culto para os happy few, em suma. O plano de abertura de Le Gang des Bois du Temple é
electrocutados — um terceiro ficou gravemente E no entanto, e isto agora é apanágio dos dois, simétrico, 21 anos depois, do que abria Wesh Wesh, qu’est
queimado. A banlieue incendiou-se pouco depois. Os Kéchiche e Zaïmeche filmam personagens das margens, ce qui se passe: uma panorâmica a apresentar um bairro
motins levaram o Governo francês a impor o estado de os imigrantes, os proletários, as pessoas encerradas em social, aquele a que regressa a personagem principal
urgência durante três meses, acontecimentos que guetos de visibilidade, como se pertencessem ao centro. interpretada pelo próprio realizador. Zaïmeche tem
serviram o documentário 365 Jours à Clichy-Montfermeil A utopia do colectivo, como se o cinema preenchesse a presença regular ao longo dos seus filmes. Julgamos que
realizado por Ladj Ly, o realizador premiado com o falta das grandes narrativas políticas, é concretizada de não para trabalhar hipóteses de auto-retrato nem para
Prémio do Júri de Cannes, com Césares e com prémios forma coral tanto pelo realizador de O Segredo de um ir destilando uma persona, mas para meter as mãos na
do cinema europeu por Os Miseráveis, de novo no bairro Cuscuz (2007) como pelo cineasta nascido em Argel. obra colectiva, acto de solidariedade, gesto político.
da mais dilapidada notoriedade. Pertencem também ambos ao que Bégaudeau Por exemplo, ele era expulso de França e regressava à
Le Gang des Bois du Temple nada tem a ver com esses classificou como o grupo dos “místicos do real”. aldeia natal, na Argélia, para se dar conta da violência e
acontecimentos. Mas tem tudo a ver com as Tendendo a concordar, um exemplo, de Dernier do conservadorismo da sociedade argelina e descobrir
expectativas criadas pelo “filme de banlieue”, modelo Maquis: duas personagens falam e a passagem de um que é impossível regressar a casa (o lirismo perdedor
fixado por alturas de La Haine/Ódio (1995), violência, avião desnorteia-as e ao diálogo, que ainda assim de Wesh Wesh..., muito Nick Ray); ou era o patrão de
rap e hip hop, de que Os Miseráveis (2019) ainda continua e o plano não vai para o lixo, é aproveitado; uma empresa que oferecia aos empregados, a quem
aproveita muito juntando-lhe drones, mas é de toda outro, mirífico, em Bled Number One: quando a não pagava salários, uma mesquita para as orações,
essa exuberância que o filme de Rabah personagem principal decide abandonar a Argélia e gesto de delicadeza e de manipulação, um filme social
Ameur-Zaïmeche — é ele, aos 58 anos, o realizador de regressar a França, Zaïmeche integra no plano o e um filme poético (como os Dardenne nunca
Le Gang des Bois du Temple — se afasta. Até porque ele já compositor da banda sonora, o guitarrista Rodolphe fizeram...) juntos: Dernier Maquis. É utópico e
fez o hip hop dividir espaço com o jazz e com Ghetto Burger (acompanhou Jeanne Balibar em espectáculos, simultaneamente cercado. O que é tão emblemático
Child, de Curtis Mayfield. A fuga é, aliás, um e aparece por isso em Ne Change Rien, de Pedro deste cinema em fuga e a olhar para o céu.
movimento central e poético nos filmes do realizador.
Há um ano, no podcast Microciné, François
Bégaudeau, romancista, ensaísta, argumentista de A
Turma (de Laurent Cantet, Palma de Ouro em Cannes
2008), entusiasmava-se, naquele tom negligé de fazer
espectáculo que talvez seja francês: disse que Rabah
Ameur-Zaïmeche, nascido em Argel, é o maior, o mais
importante cineasta francês em actividade. Sobretudo
agora, acrescento nosso, que Abdellatif Kechiche,
francês de origem tunisina, se exilou e/ou foi
cancelado, depois da polémica em Cannes 2019 criada
por Mektoub, Meu Amor: Intermezzo, filme que
entretanto ficou por estrear.
As diferenças entre os dois são notórias. Em Kechiche
vinha acontecendo os filmes começarem a ser
interceptados, raptados, pelo “acontecimento”, até pelo
“escândalo”. Ora, continua a ser discreto, e não podia
sê-lo mais, o percurso de Zaïmeche. As suas sete
longas-metragens — em 2002 Wesh wesh, qu’est-ce qui se
passe?, título que parece um refrão musical a propor a
angústia para uma obra; em 2006 Bled Number One; Le Gang des Bois du Temple, sétima longa-metragem de Rabat Ameur-Zaïmeche, um noir trágico
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR DAVID PONTES EDITOR PEDRO RIOS DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E CLÁUDIO SILVA FOTO DA CA
30 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024
Teatro do Bairro Alto
c e, mas não só
sentido oculto das coisas / é elas não terem
ficção parente da literária: com mais ou
menos sorte, mais activos ou mais passivos,
uns dias mais George Samsa, outros dias mais
Quixote, uns dias mais Oblomov, outros dias
mais Jay Gatsby.
Diana Niepce
PARCEIROS:
INSCREVA-SE AQUI:
VAGAS LIMITADAS
CERTIFICADO
DE PARTICIPAÇÃO
DA FUNDAÇÃO CUPERTINO
DE MIRANDA
4. UMªREGRESSO EM GRANDE
EDIÇÃO DOS GRANDES AUTORES.
CERIMÓNIA DE Ao fim de três edições de sucesso, o curso «O Cânone» regressa pela quarta vez
ENCERRAMENTO, CURSO para levantar novas questões sobre as maiores obras da literatura portuguesa.
NO FINAL DO CURSO,
NA PRESTIGIADA TORRE DE CRÍTICA Como é que se define um cânone e que autores o compõem? O debate e a pluralidade
de opiniões do corpo docente convidado tornam esta análise ainda mais rica e interessante.
LITERÁRIA, A CONVITE
DA FUNDAÇÃO CUPERTINO
LITERÁRIA Não perca mais um curso PÚBLICO com o selo de qualidade da Fundação Cupertino de Miranda.
DE MIRANDA
AUTORES EM ANÁLISE
E CORPO DOCENTE:
130 €* 1. D. Duarte
João Dionísio
4. Poesia contemporânea
Joana Matos Frias
90 €*
ASSINANTES PÚBLICO
2. Luís de Camões
João R. Figueiredo
5. Fernando Pessoa
António M. Feijó
3. Padre António Vieira 6. Vitorino Nemésio
Isabel Almeida Rita Patrício