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Yayoi

Kusama
Do Japão
para o mundo
Em Serralves, a artista tem a sua maior
exposição retrospectiva
europeia

Sexta-feira | 29 Março 2024 | publico.pt/culturaipsilon


ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 12.384 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Yayoi
Kusama
encheu Serralves
com os pontos
coloridos da vida
e da morte

2 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


NotíciasFlix

Da fragilidade ao universo,
passando pela cor das
redes, das plantas e dos
pontos, formou-se o
trabalho da artista
japonesa Yayoi Kusama,
que expõe no museu do
Porto a sua maior
retrospectiva europeia.

José Marmeleira
(Texto)
Nelson Garrido
(Fotografia)

N
o Museu de Serralves, são mais de 160 as obras
que, entre pinturas, desenhos, esculturas, ins-
talações e material de arquivo, formam Yayoi
Kusama 1945 — Hoje da artista japonesa Yayoi
Kusama ( Japão, 1929). Esta é a maior retrospec-
tiva da artista na Europa e, em simultâneo, a sua
primeira mostra individual entre nós. Organizada temá-
tica e cronologicamente, a exposição, que abriu ao pú-
blico no Porto na quarta-feira, inicia-se na galeria supe-
rior do museu com trabalhos dos finais dos anos 50 —
entre os quais é exemplar Infinity-net 2 (1958), pintura
seminal que assinalou a sua entrada no circuito artístico
dos EUA — e outros mais recentes, incluindo a instalação
The Moment of Regeneration (2004).
A exposição que tem curadoria de Doryun Chong e
Mika Yoshitake, com a colaboração de Isabella Tam, de-
saguará, depois, no espaço seguinte, com uma profusão
de obras realizadas pela artista em diferentes suportes
(veja-se a colorida e sinistra Self Obliteration de 1966-1974)
e prosseguirá, passando por uma ampla parede de pin-
turas, antes de se interromper vertiginosamente no de-
sorientador ambiente, composto por paredes pintadas,
balões suspensos e espelhos, que é Dots Obsession —
Aspiring to Heaven’s Love (2022) e no exterior com Nar-
cissus Garden (1996), conjunto de esferas inoxidáveis que
ocupará uma área do jardim.
Aquando da visita do Ípsilon à exposição, a montagem
de Dots Obsession — Aspiring to Heaven’s Love (com o seus
espelhos e superfícies pintadas com pontos) ainda não
estava concluída, mas isso não nos impediu de traçar
uma série de elementos que se repetiam ou reaparece-
riam ao longo das salas. Entre elas, a presençado ponto,
as ideias de repetição e acumulação, a relação entre a
cultura dos Estados Unidos e a história do Japão mo-
derno, a auto-representação ou a linguagem (ou estilo)
de uma arte global. Quem nos acompanhou pelo uni-
verso de Yayoi Kusama não foi a artista (recolhida na
fragilidade dos seus 95 anos) nem os curadores (em trân-
sito, presos noutros compromissos), mas o director do
Museu de Serralves Philippe Vergne.
“A primeira apresentação desta retrospectiva aconteceu
em 2022, em Hong Kong, no museu M+, depois seguiu
para o Museu Guggenheim, em Bilbau. E agora está aqui”,
conta Philippe Vergne assim que entrámos na primeira
sala desta exposição que ficará no Museu de Serralves até
29 de Setembro. “Yayoi Kusama 1945 — Hoje inicia-se nos
finais dos anos 50 e segue até aos trabalhos mais 

Detalhe de Self Obliteration e em fundo


a série Pumpkins (1998-2000)

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“O trabalho de Yayoi Kusama começa de facto na ideia de semente e cresce
antes de se estender ao universo”, explica o director Phillipe Vergne
Conjunto de  recentes, de 2021”, contextualiza o director. Sorri- de trabalho de Accumulation of Hands (1980), nos sapatos
algumas dente, faz uma brevíssima pausa, antes de explicar as de Golden Shoes ou de Untitled Accumulation do qual pa-
pinturas da razões por que Serralves acolheu a exposição. “Kusama recem sair formas fálicas. “A sexualidade aparece no seu
artista que se é uma das artistas mais respeitadas, conhecidas e visíveis trabalho, mas sem corpo, ou num corpo destruído, quei-
encontram do mundo. E, é verdade, tornou-se ainda mais popular mado ou transformado por uma doença ou mutação.”
nas paredes dado o carácter imersivo e espectacular do seu trabalho Diante de um prateado manequim feminino, do qual
da penúltima que podemos comprovar, por exemplo, nas séries Infinity irrompem quistos bulbosos (Phallic Girl de Kusama),
sala da Mirror Rooms. Mas a razão principal é outra. O seu traba- Phillipe Vergne comenta uma associação: com a obra
exposição em lho foi muito pouco visto em Portugal e trata-se de uma Tetsumi Kudo (1935-1999), artista japonês do pós-guerra
Serralves. exposição muito rigorosa que mostra como o trabalho da que explorou questões e formas similares. Outras asso-
Uma pintura artista foi lidando com diferentes obsessões.” ciações aparecerão ao longo da visita, mas, para já, so-
sem título, Entre elas, o director do Museu de Serralves recorta bressaem as ligações internas entre trabalhos. Por exem-
Flower (1985) algumas como a infinitude, a natureza, o facto da morte plo, entre The Moment of Regeneration (com os seus
e Moonlit e a força da vida, sublinhando o modo como se foram tentáculos) e The Sea in the Evening Glow (Facing the Immi-
Bedding desenvolvendo ao longo de quase 100 anos de produção nent Death). Ou entre os desenhos, de épocas diferentes,
(1988) artística. “Há uma responsabilidade de Serralves em e as instalações realizadas a partir dos anos 60. “O tra-
mostrar estas artistas, em fazer exposições como estas, balho não cessou de se desenvolver, Kusama continuou
como foi a da Louise Bourgeois. São artistas muito im- a trabalhar as suas obsessões de um modo intenso e so-
portantes. Haverá sempre maneira de as conceber e litário, quase sempre sem assistentes.”
mostrar. Foi muito importante conseguir organizar e A vibração da cor, os efeitos ópticos (dos pontos) na
pensar a exposição deste modo muito rigoroso consis- experiência dos espectadores, a presença de objectos do
tente. Acho que isso foi conseguido.” quotidiano permitem situar a artista japonesa no centro
das rupturas que marcaram a arte nos anos 60 e 70 do
Obsessões e associações século XX, em especial sob a influência da cultura dos
“Não é possível perceber a instalação Infinity Mirror Estados Unidos. “Há um carácter pop no seu trabalho.
Rooms sem sabermos de onde vem.” Philippe Vergne Recordo que ela viveu no país nos anos 60 e foi próxima
quer mostrar-nos as origens. Leva-nos à primeira sala e de muitos artistas norte-americanos [um dos quais, Joseph
a um trabalho onde observamos motivos florais e botâ- Cornell]. E como outros artistas japoneses da sua geração,
nicos (que regressarão mais à frente na exposição). “A foi muito inspirada pela arte e a cultura dos EUA. Teve,
noção do corpo já está aqui presente, bem como a da igualmente, a oportunidade de conhecer e de se confron-
natureza e do seu crescimento. O elemento biográfico tar com as propostas da arte pop, do minimalismo, da
também é relevante”, diz. performance. Mas quando regressou ao Japão nos anos
“O pai da artista trabalhava no campo da produção de 70, a sua posição alinhavou com uma crítica à hegemonia
sementes e no cultivo de flores. Ela cresceu com a natu- política, cultural e artística dos Estados Unidos.”
reza à sua volta e interessou-se muito pelos micro e ma- É importante mencionar que Kusama viveu, durante a
croelementos da própria natureza. Não devemos esque- infância e a adolescência, a Segunda Guerra Mundial e
cer, por outro lado, que Yayoi Kusama nasceu em 1929 enfrentou a sociedade patriarcal japonesa. Foi forçada a
no Japão. E, por isso, foi sensível à experiência de aniqui- participar no esforço de guerra japonês e em 1945 criou
lação por efeito dos átomos [o director alude à influência — tinha apenas 16 anos — uma das suas primeiras obras de
da química atómica na criação da energia nuclear], de arte, a pintura Harvest. Estava iniciado um percurso que
elementos que não podemos ver.” a levaria ao Shiritsu Bijutsu Kogei Gakko, uma escola de
Átomos, partículas, pontos, redes. Na primeira sala, preparação para a Universidade de Artes de Quioto, e a
estes elementos aparecem-nos nas pinturas The Sea in the Tóquio, onde realizará duas exposições individuais. Em
Evening Glow (Facing the Imminent Death) (1988), em Infi- 1953, candidatou-se a uma bolsa para estudar nos EUA, e
nity-net 2 (1958) ou em Sprouting (1992). “Embora possam dois anos depois participou na sua primeira exposição
ser consideradas pinturas abstractas, foram inspiradas nos Estados Unidos, a International Watercolor Exhibi-
em vistas áreas do oceano”, comenta Philippe Vergne. tion, 18th Biennial, organizada pelo Brooklyn Museum,
“Daí as ideias de repetição, serialidade que, nos anos 50, em Nova Iorque. A sua relação com o novo país construir-
chamaram a atenção de Donald Judd [naquela década, o se-ia a partir desse ano, mas só em 1958 a artista chegaria
artista norte-americano foi um entusiasta da obra de Ku- a Nova Iorque. Yayoi Kusama viverá os turbulentos e pro-
sama].” Também podemos ver, ainda no âmbito da seria- missores anos 60 nos Estados Unidos, antes de regressar
lidade, a presença dos objectos do quotidiano, nas luvas ao Japão no início dos anos 70. Neste período, a sua

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carreira enquanto artista global solidificou-se na base de lation No.14ª [datada de 1962 e feita de selos sobre papel] evidencia o que seria já uma certa percepção da natureza
um olhar complexo e indagador sobre as tradições do país que estabelece nexos com a prática de um artista como o e da vida. Em particular The Moon, Screaming Girl ou
natal e o rastro de destruição que os Estados Unidos e italiano Alighiero Boetti. Nesse sentido, ela estava muito essa inesperada pintura que tem o título A Seed. “Foi
Guerra Fria haviam deixado em várias partes do globo. informada. A informação circulava. O Andy Warhol tam- muito importante e difícil poder trazer e mostrar esses
Na segunda sala da exposição Yayoi Kusama 1945 — Hoje, bém está aqui, como estão o corpo e a performance.” trabalhos”, salienta o director do Museu de Serralves.
essa crítica à hegemonia dos Estados Unidos manifesta-se Subtil, a sombra de Hiroxima não deixa de se projectar. “Nessa pintura, encontramos uma artista em busca da
— sem prescindir da sedução das cores — nas pinturas Na repetição (dos gestos) que aniquila o corpo e a indi- sua linguagem. Quase pertence a outro século. É influen-
onde o orgânico e o sexual convivem com a experiência vidualidade (mencione-se que o trauma da guerra e da ciada por uma ideia de modernidade que vem das pri-
da alucinação. O director do museu lembra-nos que o bomba atómica e saúde mental são questões que se im- meiras vanguardas. É curioso que Yayoi Kusama nunca
consumo de psicotrópicos não era incomum entre os ar- bricam na vida de Yayoi Kusama) ou na presença deso- deixou de trabalhar. Continua e nesse sentido comparo-
tistas. Considera mesmo que este não está desligado da rientadora e implosiva dos pontos. Vejam Self Oblitera- a a uma artista como Louise Bourgeois.”
percepção que a artista formou da ideia de infinitude. E tion (1966-1974), Phallic Girl (1967), Black Flower (1986) Mais à frente, evoca-se outro nome cuja relação com
diante de Sex Obsession, uma pintura na qual os pontos ou a pintura Footprints of the Atomic Bomb (2016). Kusama revelar-se-ia tangível e frutuosa: Joseph Cornell.
ganham extensão e movimento, alude à peça que não Mas também se descobre uma obsessão com a vida, Pressente-se em Dream of The Sea (1994), Curtain Rising
pudemos ver. “Quando as pessoas entrarem em Dots Ob- com a irrupção das plantas que regressam na Primavera. (1994) ou em Butterfly (1994), peças em que Vergne tam-
session, provavelmente considerá-la-ão divertida, agradá- “É essa tensão que torna possível o seu trabalho. A sua bém descobre diálogos com o artista norte-americano
vel. Ora, também é uma experiência dos limites das per- obsessão com os pontos tem que ver com a ideia de auto- Lucas Samaras (1936-2024) e uma interpretação do sur-
cepções e da consciência. Pode não ser agradável.” aniquilação e com as forças da vida. Por isso temos aqui realismo europeu. Numa das salas mais pequenas da ex-
Mais estabilizador é conjunto de desenhos de plantas [as esculturas] Pollen, Flower ou Black Flower que nos posição, encontramos outros diálogos, desta vez com as
e sementes que encontramos num bloco de notas e que remetem para a ideia de corpos invasores ou de vírus e primeiras esculturas de Claes Oldenburg ou, num tom
Philippe Vergne faz questão de comentar. “O trabalho de uma pintura como Imagery of Human Beings que alude crítico e frio, com o minimalismo de Donald Judd (em
Yayoi Kusama começa de facto na ideia de semente e à geração da vida”, diz ao Ípsilon Philippe Vergne. Prisioner’s Door). De volta ao centro de sala, andamos à
cresce antes de se estender ao universo. E esse movimento A presença de trabalhos pictóricos dos anos 50 traz, volta da já mencionada Self Obliteration, instalação onde
também se encontra presente numa obra como Accumu- em termos de linguagens, um equilíbrio à exposição e observamos manequins femininos coloridos e 

Detalhe da
instalação The
Moment of
Regeneration
(2004)
noção de objecto de arte não corresponde, em absoluto, pinturas nas quais os pontos se reproduziam sob fundos
àquela que encontramos na cultura ocidental. Não parti- monocromáticos terríficos ou doentios. Há cor, figuração,
lham connosco, por exemplo, a ideia de exclusividade e peças com formatos diferentes, um desenho ao qual falta
unicidade da obra de arte. Por outro lado, é importante a perspectiva. “Não são obras que respeitem os códigos
lembrar algumas afinidades com o movimento Fluxo e de uma arte de vanguarda”, considera Philippe Vergne.
certos trabalhos de Robert Filliou ou George Maciunas. “Mas sempre que as vejo, penso nas obras do Willem de
Em certa medida, com as suas caixas e livros de artista, Kooning (1904-1997) mais tardio, que estão a ser redesco-
também fizeram um certo tipo de merchandising, também bertas. Há aqui uma grande liberdade. Leva-nos deste
democratizaram o objecto artístico. Concebiam objectos momento de escuridão, desta obsessão com a morte para
para os tornar acessíveis, exprimiam esse desejo.” a força da vida. Mesmo que neste trabalho possamos en-
De volta à exposição, e deixando para trás este amplo e contrar uma pintura que evoque a destruição apocalíptica
inesgotável debate, atravessamos uma sala onde observa- de Hiroxima e Nagasáqui, persiste a ligação com a vida.”
mos, enquadradas por pequenos ecrãs, imagens em mo- Olhamos para o mural de pinturas, e vêm-nos à memória
vimento. Nelas, a história individual (da artista) cruza-se Joaquim Rodrigo, Eduardo Batarda, talvez um Jean Du-
com os acontecimentos políticos e sociais que marcaram buffet menos brutal. “É fácil criticar o trabalho de Kusama
os anos 60 e 70 do século passado. É um espaço intercalar pela sua leveza e cor”, comenta o nosso cicerone, “mas
que nos levará às salas finais. Pelo caminho, outro nome, encontramos nele uma obsessão com a infinitude e uma
porventura inusitado, assoma à conversa: Agnès Varda ideia proliferação de vírus e de corpos invasores que lhes
(1928-2919). Phillipe Vergne não considera o nexo comple- retiram essa leveza”.
tamente improvável: “São duas personalidades com um Aproximamo-nos da sala final, onde se encontra em
carácter obsessivo e criaram personagens. E há temas que montagem Dots Obsession, com espelhos, cores, balões
as aproximam. A ideia de acumulação como fonte da vida a flutuar em fundos negros. Será uma experiência des-
ou de morte, a relação com a natureza, o humor.” concertante, certamente. “Espero que sim, mas não
Entramos na sala final, em cujas paredes se exibem encerrará aqui. No exterior, no jardim, estará outra ins-
Detalhe da série Pumpkins diversas pinturas. À primeira vista, estamos longe das talação, Narcissus Garden (1968), que Kusomai levou,
(1998-2000) instalações tentaculares das outras salas, distantes das clandestinamente, à 33.ª edição da Bienal de Veneza.
TORU HANAI/REUTERS

Yayoi Kusama  pintados. Encontram-se de frente para os visitan-


1945 — Hoje tes, em poses tão sedutoras quanto não-humanas. A
De Yayoi atracção da cor repele-nos com a presença obsessiva
Kusama dos pontos. Aqueles corpos estão mortos: são coisas ou
PORTO. Museu ficaram coisas.
Serralves. Rua D.
João de Castro, 210.
Até 29 de Setembro.
Mercadoria e arte
“As suas obras jogam com a sedução e o mal-estar”, ex-
plica o director do Museu de Serralves. “Quando visitei
a sua exposição em Bilbau, lembrei-me de outro artista
japonês. Takashi Murakami (Tóquio, 1962). Eles têm
muitas coisas em comum, para além de terem nascido
no Japão. A relação traumática com a história, a ideia de
apocalipse, a relação com o estilo tradicional de pintura
japonesa nihonga e um aspecto que pode parecer peri-
férico. Refiro-me, neste caso, ao facto de ambos terem
um profundo interesse pelo merchandising, não porque
querem ganhar dinheiro, mas porque manifestam um
interesse genuíno por uma ideia democrática de arte.
Kusama é uma artista que pergunta logo à instituição
que tipo de objecto pode ela fazer. Ela antecipa-se à per-
gunta, tal como Takashi Murakami, mas não a fim de
obter lucro, e sim para permitir que os visitantes levem
algo com eles.” Esta visão da arte não é consensual ou
pacífica e leva-nos com facilidade para uma das críticas
(justamente) dirigidas à arte contemporânea: a sua pro-
ximidade com o culto da mercadoria e a expulsão da
aura do espaço do museu. Dito de outro modo, a expo-
sição encontrará o seu prólogo na loja do museu.
Sobre este dilema da arte contemporânea, Philippe
Vergne tem uma perspectiva: “Tudo dependerá da moti-
vação. O modo como ambos se relacionam com o marke-
ting ou a produção comercial, em série, de objectos, deve
ser interpretado num contexto. Na cultura japonesa, a

“Não sou influenciada por


ninguém e acredito,
profundamente, que nasci
para ser artista”, diz Yayoi
Kusama ao Ípsilon
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Yayoi Kusama: “Preciso da arte para lutar
Vive, desde os anos 1970, numa instituição devido
à sua saúde mental. Vai todos os dias para o seu
estúdio trabalhar. O seu trabalho artístico é uma

contra os meus instintos de morte”


forma de terapia ou uma forma, social e cultural,
de falar de uma condição de saúde que afecta
tantas pessoas mas que a sociedade tende a
esconder e ignorar?
A pandemia obrigou-me a ficar fechada no meu quarto
Em Serralves, Yayoi Kusama: 1945 — Hoje explora a carreira da japonesa desde e desde essa altura que pinto de manhã à noite. E
preciso de pintar, preciso da arte para lutar contra os
os primeiros desenhos até às obras de arte imersivas mais recentes. “Kusama meus instintos de morte. Eu não escondo a minha
condição mental e a razão de nada ocultar é porque eu
é Kusama”, como diz a artista ao Ípsilon. Por Nuno Crespo sou quem sou, tenho a minha própria identidade:
Kusama é Kusama. E o caminho da arte de Kusama tem
a sua fonte criativa na minha filosofia de vida.

D
esde criança, Yayoi Kusama ambicionou ser que tornem este mundo melhor, mais justo e com mais Mesmo tendo na pintura a sua linguagem
uma grande artista. Por isso, contra a vontade coração. originária, a sua obra tem-se desenvolvido por
da sua família, deixou o Japão feudalista de Continua a ter ideias e mais ideias e, apesar de tudo, esculturas, instalações e vídeo. O que trazem os
1950 e rumou à pulsante Nova Iorque para se um dia renascer, quer voltar a ser exactamente a diferentes suportes para o seu trabalho? É uma
Yayoi Kusama, poder estar com outras pessoas. Vontade não artista que é hoje. É isso que conta ao Ípsilon nesta artista multidisciplinar ou pós-disciplinar, mas o
em 2017, só de popularidade e crescimento, mas entrevista feita por email a propósito da retrospectiva que a cativa em cada um dos media que utiliza?
a conversar também estratégia para abolir barreiras entre os Yayoi Kusama: 1945 — Hoje, que nesta quarta-feira se Não paro de ter ideias e cada medium que uso é
com vários diferentes habitantes deste mundo. inaugurou no Museu de Serralves, no Porto. diferente e permite coisas diferentes, mas, apesar de
jornalistas no Muito motivada pela sua intensa experiência da todas essas diferenças, são obras de arte de Kusama e
seu atelier em guerra, a japonesa, que este mês festejou os seus 95 No final dos anos de 1950, mudou-se do Japão para é-me indiferente o meio que uso. Neste momento, estou
Tóquio anos, procura através da sua arte provocar revoluções os EUA. A mudança levou-a de uma relação muito contente com a pintura e, se me fosse permitido
profunda com a herança cultural e artística renascer, gostava de renascer sendo exactamente a
japonesa, nomeadamente com a tradição da artista que sou hoje. Além de ser a artista que sou, nada
pintura Nihonga, para um confronto com a pop-art mais me interessa.
na cena artística de Nova Iorque. Como surgiu essa Muitas das suas obras usam o sexo e a nudez como
vontade? estratégia de crítica aos museus e à sociedade.
O Japão era muito feudal naquela época e a minha Porque considera a nudez um elemento crítico
família era especialmente conservadora e proibiu-me eficaz? Os corpos nus que surgem nos seus
de desenhar ou pintar. A minha mais importante happenings são obras de arte? Se o são, como se
motivação quando fui para os Estados Unidos foi poder relacionam com o resto da sua produção?
continuar a desenhar e a pintar. Jurei viver a minha vida dedicando-me a admirar e a
No entanto, naquela época já era uma artista com honrar as muitas pessoas que morreram na guerra.
reconhecimento no Japão. Senti uma grande tristeza ao ver tantos corpos humanos
Para mim, era importante que a minha arte fosse belos mortos e mutilados na guerra e tenho defendido a
partilhada com o maior número de pessoas possível e importância de remover as barreiras entre nós e os
de muitas formas diferentes. Estou muito grata por ter outros. E foi através da minha arte que me envolvi
tido essa possibilidade. activamente nos movimentos antiguerra. Esta
Nessa ida destruiu algumas das suas obras. experiência da guerra ensinou-me a viver a vida de
Recorda-se de como eram e porque o fez? maneiras diferentes e promover grandes revoluções
Destruí todos os meus desenhos e pinturas. Quando sexuais nos meus happenings, na minha música, nas
parti para Nova Iorque, a minha grande determinação roupas que fiz e na literatura que escrevi.
era fazer trabalhos não só diferentes, mas também O seu trabalho tem conhecido desde finais de 1990
melhores. Por isso, destruí tudo. uma enorme popularidade nos principais museus
O que lhe deu Nova Iorque, com a sua vida intensa de todo o mundo. Como lida com este entusiasmo?
e pop, que o Japão não podia dar? Sente que é uma forma de conseguir ligar-se às
O principal ponto foi a possibilidade de poder interagir pessoas através da partilha de um mesmo
com outros artistas e contactar com toda aquela imaginário e sensibilidade?
diversidade internacional de movimentos artísticos. E Fico muito contente e feliz por poder viver numa
foi graças a esta enorme diversidade de pessoas e de sociedade que gosta do que faço, bem como pela
possibilidades artísticas que comecei a receber imensas capacidade de as minhas obras poderem tocar essas
propostas de trabalhos. Nova Iorque era, e ainda é, um mesmas pessoas.
dos lugares mais incríveis para a criação artística e para Além da sua obra, muito icónica e forte, a sua
o desenvolvimento de projectos. figura enquanto mulher é marcante. Não só pelo
Muitos anos mais tarde, regressou ao Japão. seu activismo político, mas também pelas suas
Porquê? roupas com cores fortes, nada minimalistas e
Voltei porque, para mim, era importante que as muito expressivas. Revê-se nesta ideia de artista
mulheres e os homens japoneses lutassem em conjunto ícone? E foi por isso que achou que era boa ideia
por uma certa grandiosidade. Regressei ao Japão com a desenvolver uma marca de roupa?
ambição de ser uma grande artista. Uma artista que Esculpo e pinto desde criança. E é também desde esses
conseguisse alcançar os confins do universo através da tempos que tinha a forte convicção de que seria uma
estratégia de me desafiar permanentemente como artista. Também vem desse tempo o meu interesse em
poeta, artista e compositora. Ainda que tenha desenhar e confeccionar roupa e tudo isto, esculturas,
produzido toneladas de pinturas e esculturas nos EUA e desenhos, pinturas, roupa, me serve para eu poder
de ter sido um período muito criativo e produtivo, transmitir a minha mensagem.
precisei de voltar para o meu país. Um regresso que me E quanto ao seu activismo político?
permitiu mostrar muitas obras e fazer muitas Hoje em dia, além de o terrorismo e de as guerras
exposições tanto no Japão como na Europa. continuarem por todo o mundo, o fosso entre ricos e
A sua pintura é associada ao expressionismo pobres está a alargar-se, e muitas pessoas estão a sofrer
abstracto e a artistas como Jackson Pollock, profundamente. Nesta situação, fico muito
Rothko, ou Barnett Newman. Revê-se nesta impressionada com os jovens que, sinceramente, estão
família? Há mais quem tenha sido referência? a olhar para si mesmos e a tentar criar um mundo
Não sou influenciada por ninguém e acredito, caloroso, de paz e com coração para as pessoas mais
profundamente, que nasci para ser artista. desfavorecidas.

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 7


“A
10 de Março (de 2020)
soube que o país ia fe-
char daí a dias. A 12,
peguei nas minhas tin-
tas, nos cães e, com a
minha mulher, fui para
a casa de campo. Nessa altura, pintei
quase 200 quadros. Fiquei lá o tempo
todo em que o país esteve em confi-
namento. Íamos comer às tabernas
da serra… Foi basicamente só esse
ano. Não estive isolado durante os
dois anos. E depois continuei a pin-
tar.” Estamos no atelier de Pedro Ca-
brita Reis em Lisboa, e o artista, que
recebeu o Ípsilon, relata o processo
de construção das pinturas e objectos
que vimos na semana anterior na sua
galeria de Madrid. Antes de chegar-
mos ao espaço onde o artista nos es-
pera, passámos por um piso inferior
onde quadros se dispunham encos-
tados à parede. Todos mostravam
uma silhueta de figura humana, mais
ou menos definida; num deles, dis-
tinguia-se até o tema das Três Graças,
que recentemente foi trabalhado por
Cabrita Reis em escultura para o Jar-
dim das Tulherias em Paris. As paisa-
gens que pintou na serra algarvia
deram lugar a outra coisa.
Em finais de Fevereiro, coinci-
dindo com o ARCOmadrid, este ar-
tista inaugurou a primeira exposição
individual na sua nova galeria madri-
lena, a Albarrán-Bourdais. Intitulada
Museum, ocupa todo o espaço de
exposição disponível — praticamente
800 m2 —, em dois níveis sobrepos-
tos. No primeiro, um vestíbulo e uma
grande sala visíveis da rua; no se-
gundo, uma segunda sala, que se
combina com vários aposentos de
menores dimensões dispostos ao
longo de um corredor.
Em baixo, Cabrita apresenta uma
instalação composta por pintura, en-
quadrada pelos perfis de alumínio e
os tubos de luz que são característicos
da sua obra, e que constituem mesmo
uma marca autoral no seu trabalho.
À entrada, uma escultura feita com
os mesmos perfis quebra a uniformi-
dade branca da parede, e dialoga
subtilmente com o conteúdo deste
Museum: pintura, escultura e objectos
encontrados, dispostos em plintos e
espalhados pelo resto da galeria, que
se inserem num outro tipo de prática
Luísa Soares de Oliveira
processual do artista: a apropriação
de artefactos vindos de diferentes
A primeira individual de Pedro Cabrita Reis
universos da contemporaneidade que na Galeria Albarrán-Bourdais abriu em Madrid.
são inseridos e valorizados poetica-
mente na sua obra plástica.
Fragmentos de cerâmica, pedaços
de estafe, grelhas antigas, até uma

Para Cabrita Reis, o museu


escultura partida vinda de algum
jardim ou mesmo de cemitério: estes
restos da nossa civilização, descarta-
dos por alguém porque considerados
sem valor, adquirem aqui o estatuto
prestigiado de obra de arte. No
mesmo dia em que visitámos a expo-
sição, descobrimos, no stand desta
galeria na ARCOmadrid, que o artista é o lugar da reflexão sobre o que
ainda não somos
tinha exposto uma delicada grelha
antiga de varanda que era apresen-
tada como uma pintura ou escultura
de cavalete. No mesmo stand, uma

8 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


FOTOGRAFIAS DE JOÃO FERRAND

)
Museum
De Pedro
Cabrita Reis
MADRID. Galeria
Albarrán Bourdais.
Calle Barquillo, 13.
De 3ª a 6ª, das 10h30
às 19h30. Sábados,
das 11h às 14h. Até 20
de Abril.

Uma vista
geral da
exposição que
tem pintura,
escultura e
objectos
encontrados

interpretação do famoso quadro de


Goya, Saturno devorando um filho
ria vai acumulando; de referentes e
sintomas, cuja contaminação produz “As minhas Barquillo é um contributo para o
museu geral.”
ele cria e a tudo o que forma o seu
tempo é fundamental para a criação
— mas agora feita e assinada por Pe-
dro Cabrita Reis — completava a re-
diagnósticos, olhares, interrogações
e perplexidades, mas produz acima pinceladas Ainda falamos sobre o museu ima-
ginário de André Malraux, sobre Pi-
artística. Na obra de Pedro Cabrita
Reis há um nivelamento de todas es-
presentação do artista na galeria.
Tratava-se então, como sucede em
de tudo a sensação de pertença e de
existência”, explica ainda. têm todas as casso, que também refazia toda a
história da arte que lhe interessava,
tas referências — nas quais se incluem
os objectos encontrados, transforma-
Museum, de diferentes graus de apro-
priação artística: dos objectos en-
Cabrita Reis possui uma cultura
profunda e densa, e está à vontade pinceladas desde e sobre Goya. E terminamos com um
comentário sobre o quadro represen-
dos agora em artefactos de museu —
pelo olhar e pela inteligência de quem
contrados, como é evidente, mas
também de dois géneros diferentes
para falar dela. Falamos-lhe da dife-
rença de conceito entre o museu que os flamengos tando Saturno: “Eu devoro a história.
E estou em crer que, pese embora a
cria, e que assim, demiurgicamente,
as transforma. E Cabrita a concluir:
definidos pela história da pintura: a
paisagem (tudo na galeria é pintura
modernista (cheio de obras “mor-
tas”, segundo o futurista Marinetti, inventaram a tinta de maximização do que afirmo, todos
os artistas que o são de facto devoram
“O que deriva daqui? A pintura, que
se diz que se pinta a si mesma, pin-
de paisagem) e a história, no caso do
mito grego interpretado por Goya.
por exemplo), e o museu contempo-
râneo que, segundo o teórico Arthur
Danto, dialoga continuamente con-
óleo no século XV …” a história, não apenas dos artistas
que os precederam mas também da-
queles que os acompanham na histó-
tando-se a si mesma pinta toda a his-
tória da pintura. As minhas pincela-
das têm todas as pinceladas desde
Antecipar o futuro nosco. Vê-se que não concorda intei- ria.” Ou seja, a atenção ao mundo que que os flamengos inventaram a tinta
Quando lhe perguntamos sobre a ra- ramente com o filósofo norte-ameri- rodeia o artista, ao contexto em que de óleo no século XV …”
zão da escolha do museu como tema cano: “Não tenho a certeza, nem o
da exposição, e da opção pela palavra Arthur Danto poderia ter porque não
em latim (ou inglês), corrige, dizendo viveu nesse tempo, que o moder-
que “a origem do termo nem sequer nismo tivesse uma noção tão ríspida
é latina, é grega — museion. A cultura e tão inóspita do museu como um
grega estrutura a cultura latina, ro- cemitério. Provavelmente se fizésse-
mana, e daí passa para a nossa. Por-
quê o museu? Bom, o conceito de
mos uma investigação na literatura
encontraríamos outros olhares…”,
23.03.24 – 09.06.24
museu tem vindo a ser sujeito a aná- comenta-nos. E acrescenta que o
lises e a rupturas. Começa por ser um museu é hoje um corpo com feridas,
MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA
lugar onde se entesoura aquilo que é um corpo que foi sujeito a violências ARTE CONTEMPORÂNEA
entendido pelas sociedades como os de toda a espécie, e que por isso “é NO MUSEU DO NEO-REALISMO
sintomas, da existência civilizacional, ainda maioritariamente o lugar onde
cultural, artística, etc., com isso ali- estão coisas que estão vivas, porque
cerçando, alavancando uma noção as vemos como nossas, coisas que curadoria
de história”. Cabrita está bem cons- nos pertencem porque desenham o
ciente de que o conceito de museu sítio de onde vimos e aquilo que nós
David Santos
como o lugar onde se guardam os achamos de nós próprios. Presumi-
tesouros artísticos implode na se- velmente é capaz de ter o potencial
gunda metade do século XX, mas de desenhar uma perspectiva de fu-
para ele isso é tudo um sinal dos tem- turo, uma deriva qualquer.”
pos. “Independentemente às aproxi- Neste sentido, o museu possui a
mações que os teóricos, ou os políti- mesma função que o artista: “. É isso
cos façam sobre o museu, o museu é
o lugar da celebração do humano.
Ponto final”, conclui.
O lugar do humano: significa isto
que os artistas fazem: os artistas an-
tecipam o futuro pelo modo como
lêem o presente e o plasmam na sua
obra.” No final, os artistas, ou pelo
Quodlibet
que é no museu que guardamos, in- menos os melhores deles, aprendem
vestigamos e expomos tudo o que a reconhecer “que o mundo é uma
são sinais da nossa actividade neste manta de retalhos. As mantas de re-
planeta, e mesmo sinais do modo talhos, do ponto de vista óptico, são
como olhamos e estudamos o que frenéticas, e por isso traduzem bem
nos rodeia, no caso dos museus de aquilo que é o ritmo da vida.”
ciência. “Esse museu pode ser tudo: Para Cabrita Reis, o museu é assim
pedras, ossos, pinturas a óleo, enfim, o lugar do exercício da contempora-
o que as sociedades forem enten- neidade, e é mesmo o lugar onde
dendo como passível de constituir a somos aquilo que ainda não somos
memória. O meu trabalho em Madrid graças ao poder da arte. “Repare
chama-se Museum porque é uma que é curioso como é possível fazer
convergência de vários momentos, uma reflexão sobre o que ainda não
tal como o museu é uma convergên- se é. É isso que a arte traz ao mundo
cia de vários momentos que a histó- às pessoas. Aquele museu na Calle

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 9


N
um dos debates para as últi- Nos últimos anos, nas muitas en- Portuguesa de Bailado Contemporâ- direita e o último grito desesperado, o momento certo para fazermos este
mas eleições legislativas, em trevistas que André Amálio e a com- neo, Lisboa, a 20 de Setembro no das FP-25, que sentiu estar a perder espectáculo.”
concreto no confronto tele- panhia Hotel Europa foram reali- Teatro Cine de Pombal e a 11 de Ou- o pé e as conquistas de Abril”. Luta Armada começa com um
visivo entre os candidatos zando a protagonistas mais ou me- tubro no Centro Cultural de Paredes Foram, no fundo, estas posições olhar dirigido por Mariana Sardinha,
do Bloco de Esquerda e do nos anónimos da resistência à de Coura, seriam os únicos a revelar- extremadas que André Amálio come- Maurícia Barreira-Neves, Mbalango,
Chega, trocaram-se acusa- ditadura em Portugal, em vários mo- se infrutíferos. çou a sentir estarem de novo presen- Mara Nunes, Paulo Quedas e André
ções mútuas: nas listas de um haveria mentos as histórias acabavam por “Seria mais simples para nós”, ex- tes nos discursos políticos com o Amálio, do presente para o passado.
antigos membros das FP-25 (Forças tocar e cruzar-se com episódios da plica Amálio, “reportarmo-nos ape- surgimento de um partido da extre- Nasceram todos já em democracia e,
Populares 25 de Abril), nas do outro luta armada a que o país também nas aos movimentos que fizeram a ma-direita em Portugal, normalizado por isso, quando olham para o pas-
do MDLP (Movimento Democrático assistiu e que, por vezes, ficaram es- luta contra o fascismo. Mas acho que e de microfones sempre estendidos sado pensam quem são hoje, imagi-
de Libertação Portugal, ligado ao quecidos na História. Porque se há é importante dizer que, se falámos à sua frente. “Esta polarização nando quem teriam sido durante o
Movimento Maria da Fonte), duas orgulho nos movimentos que procu- com várias pessoas que faziam parte fez-me lembrar esse período em que Estado Novo. Quem teriam sido
organizações praticantes de acções raram desestabilizar e ferir o regime desses movimentos contra o fas- as posições eram muito extrema- numa altura em que uma mulher
terroristas e activas no pós-25 de salazarista, com recurso a acções cismo, aqueles que contactámos das”, conta. “E foi curioso que na com problemas de saúde mental só
Abril. Em espectros políticos opos- mais violentas, o mesmo não se pode pertencentes aos movimentos de entrevista que fiz ao [jornalista] Mi- poderia adquirir medicação com
tos, enquanto os primeiros queriam dizer de tudo quanto aconteceu de- extrema-direita e às FP-25 recusaram guel Carvalho, ele expressou a autorização do marido, em que uma
forçar um modelo socialista de de- pois da Revolução. De tal forma que, todos falar connosco.” Para o criador mesma ideia, de que a política era mulher artista bissexual não poderia
mocracia popular, os segundos pre- conta Amálio ao Ípsilon, os vários do Hotel Europa, companhia de tea- então vivida de uma maneira muito passear na rua com a mão enlaçando
tendiam anular as mudanças demo- contactos estabelecidos com antigos tro documental que partilha com mais intensa do que hoje e em que a da sua namorada nem ousar apre-
cráticas trazidas pelo 25 de Abril e membros dos grupos que operaram Tereza Havlícková, esse facto é sin- chegava a haver momentos de vio- sentar-se nua em palco, em que um
impedir aquilo que entendiam ser no PREC (e depois disso) com vista à tomático de como “grande parte da lência entre pessoas de diferentes homem moçambicano emigrado
avanços na direcção de um regime criação de Luta Armada, espectáculo população glorifica e olha com orgu- partidos — era mesmo uma questão para Portugal seria alistado para
comunista. Aos primeiros estava li- programado pelo Teatro Nacional D. lho para aqueles que lutaram contra de ódio. Os tempos que estamos a combater pelas forças militares por-
gado Otelo Saraiva de Carvalho, aos Maria II, no ciclo Abril Abriu, e em o fascismo e não vê da mesma ma- viver estavam a lembrar-me esse am- tuguesas e colocado a combater con-
segundos António de Spínola. cena de 4 a 14 de Abril na Companhia neira a rede bombista de extrema- biente e, por isso, decidimos que era tra o seu próprio país, em que uma
FOTOGRAFIAS DE FILIPE FERREIRA

O Hotel Europa
visita a violência
na chegada
da democracia
Com Luta Armada, a companhia
volta o seu teatro documental para
as organizações que antes e depois
da Revolução recorreram a acções
violentas para alcançar objectivos
políticos.

Gonçalo Frota

Luta Armada começa com


um olhar dirigido por
Mariana Sardinha, Maurícia
Barreira-Neves, Mbalango,
Mara Nunes, Paulo Quedas e
André Amálio, do presente
para o passado

10 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


mulher queer dificilmente poderia Dulcineia”. A bordo do paquete nismo, mas nos quais não existe um
anunciar à família, ainda nem che- Santa Maria, apinhado com 600 tu- projecto político.”
gada à adolescência, que ia deixar de ristas a fazer um cruzeiro pelas Ca- Em Luta Armada, André Amálio
frequentar a igreja por não se sentir raíbas (entre os quais 40 norte-ame- foca-se também na importância de
bem-vinda, em que uma mulher filha ricanos ainda a digerir a tomada de “percebermos quem somos e de
de um padre seria discriminada e posse de Kennedy como Presidente onde é que vem a nossa democra-
agredida por causa disso mesmo, em dos Estados Unidos da América, dois cia”, querendo contrariar a “ideia
que um homem com uma doença dias antes), tomado de assalto por 20 de que o nosso processo revolucio-
simples teria de endividar a família militares portugueses chefiados pelo nário, a nossa entrada na democra-
para poder submeter-se a um trata- capitão Henrique Galvão. Após algu- cia e o fim do fascismo foram
mento (antes da criação do Serviço mas peripécias contadas em Luta processos cor-de-rosa e super pací-
Nacional de Saúde). Armada, alguns dos membros do ficos”. “Não foram — havia movi-
São histórias pessoais que se jun- quistas fundamentais”, acredita An- quanto está ainda por cumprir e um DRIL hão-de voltar a juntar-se em mentos a digladiar-se uns com os
tam para reconhecer os ganhos da dré Amálio, “mas também reconhe- possível regresso ao autoritarismo e Paris, formando a ARD (Acção Revo- outros, chegavam ao extremo de
democracia, mas também para per- cer que existe muita matéria ainda ao restabelecimento de um clima de lucionária Democrática) e, pouco quererem a morte uns dos outros,
guntar, passados 50 anos, se “esta é para mudar.” medo e perseguição sobre os cida- depois, a LUAR (Liga de Unidade de de quererem pôr bombas, incendiar
a democracia que sonhámos”, se Depois desse primeiro momento, dãos vai um curto, inocente e quase Acção Revolucionária). e assassinar.” E só a extensa lista de
“temos a liberdade que desejámos”, o público é então convidado a seguir imperceptível passo. Baseado em entrevistas realizadas atentados levados a cabo por Ramiro
o que está, afinal, por cumprir de o elenco e, num instante, do olhar para espectáculos anteriores e na Moreira, “o maior bombista da rede
uma revolução que iniciou um pro- para o passado dirigido a partir do Instrumentos como literatura já produzida sobre alguns de extrema-direita”, seria suficiente
cesso democrático, mas que não presente, parte-se para um mergu- armas destes grupos, André Amálio partiu para o confirmar.
deveria ser celebrada como ponto de lho abrupto num período de repres- Quando ultrapassamos a introdução, para as conversas mais específicas Ao longo do espectáculo, com re-
chegada e sim como ponto de par- são. Como se o Hotel Europa esti- e somos encaminhados para a pla- da pesquisa de Luta Armada com curso a violino, teclado ou mbira,
tida. “É importante não perdermos vesse, no fundo, a dizer-nos que teia do espaço da Companhia Portu- uma ideia já muito precisa daquilo escutam-se canções reconhecíveis
nunca de vista que foram feitas con- entre estas opiniões individuais do guesa de Bailado Contemporâneo, que iria encontrar. Mas surpreendeu- ou nem por isso, imprimindo a Luta
estamos já diante de um “espectácu- se ainda com os relatos que dão Armada um ritmo que dá o tom para
lo-concerto”, como André Amálio conta de a FAL (o exército da LUAR) um rápido avanço histórico, as orga-
lhe chama, actores e actrizes agarra- ter viajado para a Checoslováquia e nizações a virem umas atrás das ou-
dos a microfones e a instrumentos ter regressado de lá “com cerca de tras até que, por fim, se extinguem
para, embalados pela música tocada uma tonelada de armas” que passou, quando a democracia portuguesa se
ao vivo, nos atirarem de imediato sem problemas, por todas as alfân- fixa no modelo que, melhor ou pior,
para a noite de 21 para 22 de Janeiro degas na viagem até Paris. Entre al- se foi encaminhando até ao presente
de 1961, quando o DRIL (Directório guma espectacularidade das acções — “democracia burguesa”, chamam-
Revolucionário Ibérico de Liberta- e o falhanço de outras, são vários os lhe os defensores de um modelo de
ção) põe em marcha a “Operação episódios que os seis vão partilhando democracia popular. “Em termos
em palco, numa sucessão de histó- dramatúrgicos”, diz Amálio, “é tam-
rias das organizações clandestinas bém como se as metralhadoras pu-
que “antes do 25 de Abril”, defende dessem ser os instrumentos, e o

“Era importante que Amálio, “têm uma ética muito mar-


cada — o que depois desaparece”.
nosso grupo pudesse ser uma banda
de música, mas que está a fazer ac-

este espectáculo Uma ética que passa por criar sobres-


salto e fazer estremecer o regime,
ção política. Gostámos dessa metá-
fora porque o teatro que fazemos é

passasse a mas sem apontar a vítimas mortais.


“E é também interessante como,
um teatro político, é um teatro que
quer ter alguma intervenção social e

mensagem de que, mais tarde, as FP-25 começam a pa-


recer-se com qualquer outro movi-
política, e as nossas vozes, os nossos
corpos e os nossos instrumentos são

se queremos ter mento terrorista daquela época — a


ETA, o IRA, as Brigadas Vermelhas
as nossas armas.”
E tal como num concerto, os seis

uma democracia, ou a RAF. Começa tudo a ficar dema-


siado parecido porque eles perdem
cantam na esperança de que outras
vozes se lhes juntem. Porque, desco-

temos de lutar por o limite e porque é um movimento


muito confuso — tal como os grupos
brimo-lo logo nos primeiros momen-
tos, Luta Armada mantém sempre

ela”, diz André Amálio de extrema-direita, que têm uma


vontade de acabar com o comu-
no seu campo de visão a ideia de que
a luta — com as armas de que cada
um se pode valer, não é preciso que
cuspam fogo ou derramem sangue
— não está terminada. Para o Hotel
Europa, “era importante que este
espectáculo apelasse às pessoas para
que não baixarem os braços e pas-
sasse a mensagem de que, se quere-
mos ter uma democracia, temos de
lutar por ela nas mais variadas fren-
tes — porque elas estão a ser ataca-
das, neste momento”.
Porque se o olhar inicial é do pre-
sente olhando para o passado, Luta
Armada acaba, com subtileza, a pe-
dir que a mirada se vire para o fu-
turo. Em busca de um amanhã em
que o discurso económico não do-
mine as campanhas e em que não se
aceite a cegueira do (insustentável)
crescimento contínuo como um
dogma e uma fatalidade.

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 11


Ryusuke
Hamaguchi
e o estranhamento
da natureza

Podia ser um Älme social e um Älme sobre o esplendor da


natureza, mas não se concretiza nenhum deles. É um Älme de
uma angústia difusa. Com um título irónico: O Mal Não Está Aqui.

Vasco Câmara (Texto) Daniel Rocha (Fotografia)


Evil Does Not
Exist — O Mal

R
yusuke Hamaguchi é um nacional dos festivais, e não só, com A verdade é que desde Happy Hour cia disso, quando nos sentamos pe- Não Está Aqui
rapaz de Tóquio de 46 anos. as cinco horas de Happy Hour — A temos tido direito, espectadores por- rante o último filme do cineasta de Aku wa sonzai
A natureza, para ele, são as Hora Feliz (2015). A partir daí o culto tugueses, a toda a obra do japonês. Roda da Fortuna e da Fantasia (2021) shinai
árvores alinhadas na ci- correu rápido, digamos assim, po- Ela chegou a tocar Hollywood em que agora se estreia comercialmente De Ryûsuke
dade, uma geometria con- dendo o fenómeno apenas ser com- 2022, quando recebeu o Óscar de entre nós. Temos de agradecer a Ha- Hamaguchi
trolada. Não esqueçamos parado, e foi acontecendo em para- Melhor Filme Internacional por Drive maguchi a sensação a) de O Mal Não Com Hitoshi
isto quando estivermos perante O lelo, à forma como a fama do cinema My Car que está longe de ser o seu Está Aqui se nos escapar permanen- Omika, Ryô
Mal Não Está Aqui/Evil Does Not de Hong Sang-soo alastrou — apesar melhor filme mas talvez o conto de temente, b) de provavelmente não Nishikawa
Exist, Prémio Especial do Júri em de tudo, o coreano permanece im- Haruki Murakami contribua para ser o que os fãs esperariam, c) de não Em sala
Veneza 2023. batível: gerou uma vassalagem que explicar essa consagração. fechar nada do que abre, narrativa e
Ryusuke Hamaguchi é um realiza- até tem pouco a ver com o discurso Somos forçosamente condiciona- formalmente, sabotando o que se 
dor que explodiu no circuito inter- crítico. dos por tudo isso, e temos consciên- arredondara em Drive my Car.

12 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


Nada disso era expectável vindo com o que encontrou e estranhou. O Aventuramo-nos junto do realiza- das águas que são centrais ao ecos-
depois de uma consagração interna- que deve servir de aviso aos que — e dor: o filme apresenta uma estrutura sistema biológico, social e comer-
cional tão declaradamente do lado foram significativos no último Festi- dialéctica. cial da aldeia. É notável a forma
da maioria como é aquela propor- val de Veneza — andam atrás de epi- como Hamaguchi, nesta sequência
c i o n a d a p e l o s p ré m i o s d e fanias do “regresso à natureza” e de Em três andamentos da reunião que é filmada como um
Hollywood. Mas tudo isso era dese- statements contributivos para o tema “Como método, nunca pensei nisso. documentário, unifica uma voz co-
jável: Hamaguchi não quis que a sua “crise climática”. O Mal Não Está Aqui Mas talvez o tenha aplicado de lectiva, o seu avanço, o seu escoa-
vida e o seu cinema mudassem tanto não está aí, o filme aliás não está forma inconsciente. Na primeira mento, a sua estratégia de descons-
por causa de um Óscar. Faz assim a nunca onde se espera, escapa-se-nos. parte não há muitos diálogos, o que trução.
síntese durante um encontro em (”Gosto disso, ‘escapar’”, confessa). não é normal nos meus filmes. Mis- “Finalmente, a terceira parte, a
Lisboa, na última edição do Leffest, “Para conseguir fazer um filme turo cenas da natureza e da vida síntese, algo que até agora nunca
Lisboa Film Festival: que adaptasse a música de Eiko apa- quotidiana” que guardam todos os tinha feito num filme meu”, com as
“Também estou a fazer este filme receu a natureza. Primeiro, a com- seus silêncios e segredos. “Quis ex- razões de todos e os comportamen-
com baixo orçamento para não mu- positora enviou dois ou três temas perimentar, filmar aquilo que tinha tos de todos mas uma espécie de
dar drasticamente ou rapidamente. da sua música e comecei a desenvol- visto fazer”: as pessoas a abastece- suspensão final: o suposto regresso
A construção social implica sempre ver a ideia. Mas ela acabou o trabalho rem-se de água, a cortarem madeira, à natureza e a (não) resolução
uma mudança, mas a minha perso- de composição depois de ver as ima- a colherem cogumelos. “Sempre do conflito.
nalidade não muda assim tão rapida- gens que eu filmara. A música defi- procurei as raízes dos meus filmes Em síntese, e é a única certeza
mente. Vou mudando consoante o nitiva foi feita posteriormente à ro- na realidade. Desta vez isso foi mais que levamos daqui: o olhar do veado
meu ritmo. Nunca quis corresponder dagem. Por isso, tudo o que a música intenso, mas procuro sempre isso, não é legendado. Volta a instalar-se
às expectativas do espectador. Tra- possa sugerir”— e sugerimos-lhe isto: tem sido sempre assim e vai ser sem- a dúvida, a natureza é incontrolável
balho de acordo com o meu estado no mínimo, inquietação — “trata-se pre assim”. Seria a tese. e não prepara epifanias. Há gotas de
pessoal, espiritual. Por isso queria da interpretação da compositora das “Só que isso não é suficiente para sangue na paisagem. Os corpos, as
fazer diferente de Drive My Car, que sequências que filmei. É verdade que um filme. Entra então a segunda personagens, que vinham à procura
era um filme com uma continuidade não é algo de sereno, é algo de in- parte”, a antítese. Com ela “vêm as de uma reconciliação são vistos em
narrativa mais fluida. O meu estado quietante. Mas ao mesmo tempo é pessoas da cidade, que trazem as peripatéticas coreografias. Deixa-
mental, o meu espírito, era já dife- bela e até graciosa. Para mim isso é palavras com elas, o que vai mudar mo-los assim.
rente e queria que os planos do filme a expressão da natureza. Não tenho a vida local”. Uma empresa simula “Agradeço ter sentido isso. Tam-
acompanhassem isso”. um vasto entendimento da música. uma comunicação interessada e bém eu como realizador não en-
O estranhamento é em O Mal Não Não posso dar indicações muito es- participativa com os habitantes de tendo a cem por cento, perfeita-
Está Aqui dimensão sensorial e mé- pecíficas sobre... Mas acho que casa uma aldeia para maquilhar a bon- mente, o princípio de acção dos ac-
todo relacional, apreensão da reali- bem com as imagens”. dade da construção do camping de tores, o que os leva a agir, diz o
dade, conhecimento. Tanto é uma “Não é um filme que fale da crise luxo, mas acaba por enfrentar a surpreendente e “ameaçado” Ryu-
pedagogia de utilização da distância climática. Não é um filme sobre o oposição da população que detecta suke Hamaguchi. O título, ele admite,
como uma filosofia. O que inclui uma problema ambiental, que é de resto uma fossa séptica como poluidora é irónico: O Mal Não Está Aqui.
sensação de ameaça — para o espec- algo central à questão humana em
tador, queremos dizer. Talvez a geral. O meu processo começou com
forma como as coisas começaram um levantamento sobre uma aldeia,
tenham contribuído para o que agora as histórias das pessoas, e daí cons-
é a experiência de quem vê. truí a narrativa do filme. É um filme
sobre como viver o dia-a-dia. ‘A na-
Ameaçado pela natureza tureza’ não é um tema com o qual
A cantora e compositora Eiko Ishiba- me sinta à vontade. Sobre a sensação
shi pedira a Hamaguchi um vídeo de algo que se nos escapa... Durante
para uma performance sua. Queria a rodagem a primeira coisa que fiz
imagens filmadas não por um cineasta foi encontrar um elemento visual. A
experimental, mas por alguém, como partir daí compus uma narrativa.
ele, que contasse histórias. Talvez o filme retenha essa sensação
Hamaguchi sentiu, por seu lado, de estar à procura de algo em todo o
que a música de Eiko se harmoni- lado para que se unifique essa narra-
zava com imagens da natureza, pen- tiva. Isso não é uma resolução pací-
sando ele que tanto uma como a fica e até certo ponto é angustiante.
outra, música e natureza, são mis- Provoca medo. Mas não me coloco
Não Está Aqui/Evil Does Not teriosas na forma de se revelarem, na posição da natureza para meter
Exist recebeu o Prémio Especial de se darem. Por outro lado, não medo ao espectador. Eu estou no
do Júri em Veneza no ano queria imagens de paisagens sem mesmo lugar do espectador. Sinto-
passado. presença humana. me, como ele, ameaçado”.
Eiko mandou-lhe exemplares do O Mal Não Existe — “até para mim
seu trabalho. Hamaguchi inspirou-se este título é curioso; era apenas um
neles para a pesquisa inicial de ima- título de trabalho e acabou por ficar
gens. Foi dar aos arredores de Tó- como título definitivo” — podia ser

“Vou mudando quio, a uma aldeia a braços com um


projecto, que vinha da cidade, de
um filme social e um filme sobre o
esplendor da natureza, mas não se

consoante o meu construção de um glamping, um


camping de luxo, que ameaçava o
concretiza nenhum deles. É desen-
cadeador de sentimentos e sensa-

ritmo. Nunca quis equilíbrio ali encontrado entre o am-


biente e os habitantes. Estes tinham-
ções contraditórios que vão do des-
lumbramento a uma angústia difusa.

corresponder às se posto já em acção, em luta.


O realizador incorporou essas ac-
A estrutura, não em tríptico como
acontecia em Roda da Fortuna e da

expectativas do ções no projecto. Começou ele pró-


prio a debater-se com a natureza —
Fantasia mas em três andamentos
(aliás, uma coincidência com Eureka

espectador. Trabalho aquele travelling inicial de quatro


minutos é algo assombrado e espan-
de Lisandro Alonso, que chegará na
próxima semana), participa dos tra-

de acordo com o tado e quando no final é repegado


com um sentido e uma emoção final-
balhos que levam a algo de cortante.
Os tortuosos caminhos do filme

meu estado pessoal” mente identificáveis diz-nos também


algo da experiência do realizador
vão-se desaguar no final não num
êxtase mas numa estase.

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 13


Neo Sora
filmou
Opus
para preservar
o mistério
do pai, Ryuichi
Sakamoto

14 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


A
quele movimento já vinha tado de saúde no momento da roda- ele confiou na minha sensibilidade
Seis meses antes de longe. Desde há cerca gem, sabemos que seria o último, estética, porque estou muito familia-
da sua morte, de duas décadas que a sua
música se encaminhava
impossível ignorá-lo ao ver-lhe as
expressões no rosto, a luta que trava
rizado com a sua música, com a sua
formação intelectual, a sua forma de
Sakamoto gravou para uma ideia de depura-
ção. Depuração de cama-
contra a debilidade física. Um con-
certo que, ao recusar informações
pensar. Acho que tudo o que me dis-
se foi que ele e a sua manager [Norika
um último das sonoras, de adiposidades, de biográficas ou quaisquer outras ex- Sora, produtora do filme, compa-
concerto. O Älho, qualquer ruído que se intrometesse
no centro emocional da música.
plicações para além das imagens a
preto e branco e do som, pretende
nheira de Sakamoto e mãe de Neo
Sora] queriam fazê-lo, mas que não
Neo Sora, fez dele Ryuichi Sakamoto queria escutar as
ressonâncias, queria menos notas e
ser não uma despedida, mas um veí-
culo através do qual se acede ao mis-
sabiam muito sobre realização. O
meu trabalho foi, basicamente, o de
um Älme. Um mais espaço para que elas vibrassem tério da criação — Ryuchi Sakamoto realizador, mas o que estava verda-
no ar. De resto, desde o final da pri- ilimitado, em vez de finito na narra- deiramente a tentar fazer era honrar
músico a lutar com meira década do século XXI que vi- tiva de vida que os obituários conta- quaisquer que fossem as suas ideias
a fragilidade do nha reenquadrando nesse sentido
vários temas da sua obra, através da
ram mundo fora. É isso que diz ao
Ípsilon, de Nova Iorque, o jovem rea-
e ser como que uma conduta para
elas. Ele tomou as decisões sobre
corpo, um homem série Playing the Piano, inaugurada
em 2009.
lizador de Opus, Neo Sora, de 33 anos
de idade.
toda a música, eu limitei-me a absor-
ver tudo e a tentar imaginar o que
enlevado pelo É assim que o ouvimos ao longo de Realizador e artista, Neo Sora é isso poderia ser em forma de filme.
poder sublime da 1h40m de concerto, dividido por 20
temas. Ryuchi Sakamoto e um piano,
filho de Ryuchi Sakamoto e da sua
última companheira, Norika Sora,
Houve obviamente algumas trocas
de ideias entre mim e ele, “talvez
música. a tocar na solidão do estúdio 509 do
edifício em Tóquio da NHK, rádio
também sua agente. Filmou o pai a
pedido deste e da mãe, deixando em
pudéssemos reorganizar certas coi-
sas para que flua melhor”, mas, de
pública japonesa, a criar, tema a pousio a sua estreia na longa-metra- resto, a música era com ele. O que
tema, um arco sobre toda a sua car- gem de ficção, Earthquake — do seu queria fazer, como queria executá-la,

Mário Lopes reira, desde a electrónica e new wave


dos Yellow Magic Orchestra iniciais
ao quase silêncio para ouvir o rumor
currículo constam curtas como Su-
gar Glass Bottle e The Chicken, insta-
lações vídeo e telediscos.
onde queria executá-la, todas essas
coisas eram do seu domínio. O meu
era concentrar-me no filme.
do mundo de 12, o seu último álbum, Durante uma semana de Setembro Mas Sakamoto tinha uma relação
passando pelas bandas sonoras que de 2022, seis meses antes da morte íntima com o cinema. Compôs
o celebrizaram (O Último Imperador, de Sakamoto, chegou manhã cedo muitas bandas sonoras, foi actor.
Um Chá no Deserto, Monte dos Venda- ao estúdio da NHK, preparou com a A relação com o cinema virá
vais, Feliz Natal, Mr. Lawrence). sua equipa a rodagem do dia, aguar- mesmo da primeira infância.
Ryuchi Sakamoto e um piano. Foi dou a chegada do pai ao início da Terá visto o primeiro filme ao
assim que tudo começou para o mú- tarde. Já muito fragilizado, sem a colo da mãe: A Estrada, de
sico nascido a 17 de Janeiro de 1952: destreza de outrora para abordar Fellini. Tendo em conta tudo
ele, criança, a descobrir as notas do alguns temas, consequência da isto, imagino que tivesse uma
piano, primeiras aulas aos seis anos, doença e da medicação para a com- ideia do ambiente que queria
a apaixonar-se por Bach e Debussy, bater, que lhe afectava as extremida- para o filme, de como gostaria
antes do jazz, antes do rock’n’roll, des do corpo, incluindo, portanto, que a sua música fosse
antes da electrónica. os dedos de pianista, Ryuchi Saka- representada...
É assim que o vemos e ouvimos, moto punha-se sob os focos de luz e Em termos de iluminação, fotografia
mas aquela solidão no estúdio 509 sob o olhar das câmaras. Depois, to- e montagem, tudo isso foram deci-
da NHK não é realmente solidão: à cava. Dois, três temas por dia, dois, sões minhas. Mas quando decidi que
volta de Sakamoto havia operadores três takes para encontrar a versão o filme devia ser a preto e branco, e
de câmara, o chão fora de campo pretendida. Era o último concerto e, quando eu e o director de fotografia
cobria-se de uma multiplicidade de nele, o Sakamoto músico é o Saka- [Bill Kirstein] tivemos a ideia de
cabos, a rodear o piano estavam moto amante de música, a ser trans- fazer com que a iluminação repre-
diversos microfones, apontados a portado por ela, enlevado por uma sentasse o ciclo de mudança de um
ele vários focos de luz. Vemo-los nas melodia, suspenso no último acorde dia, da noite para a manhã, para o
imagens que o público descobrirá a que se prolonga quando a canção se fim da tarde e, depois, de novo para
partir desta quinta-feira, dia 28 de despede. a noite, representando as mudanças
Março, um ano exacto passado “Depois [da rodagem], senti-me de luz ao longo do dia, ele reajustou
desde que a notícia correu mundo. completamente vazio e o meu estado algumas das canções no alinhamen-
Aos 71 anos, morria Sakamoto. de saúde piorou durante cerca de to para que se encaixassem melhor
Opus, assim se intitula o filme que um mês”, escreveu Ryuichi Saka- na atmosfera. A outra coisa de que
agora se estreia, é a despedida que moto em comunicado após as filma- lhe falei foi da música final. 
nos deixou. gens. “Mesmo assim, sinto-me ali-
A sofrer o avanço no corpo do can- viado por ter conseguido gravar,
cro que o vitimou, incapacitado de antes da minha morte, uma actuação
actuar em palco pela débil condição que me deixou satisfeito”.
física, o último concerto que Saka- Neo Sora fala das questões práticas
moto desejava dar fez-se filme. Um
filme-concerto, simplesmente isso,
da rodagem, das ideias que perse-
guiu, dos objectivos que tinha para “O objectivo do filme
nada mais do que isso. Um concerto
inevitavelmente marcado pelo con-
corresponder à função de que fora
encarregado. “Sinto-me privilegiado é tentar criar a
texto — vemo-lo sabendo do seu es- por ter feito este filme com ele”, dirá
ao Ípsilon, entrevista chegada ao fim. sensação de
Neo Sora fala do músico que filmou:
seu pai, Ryuichi Sakamoto. experiência
Quando acedeu a realizar Opus, subjectiva que
Ryuchi Sakamoto e um
que conversa teve com o seu pai?
Que filme imaginava ele que temos quando
piano. Um filme-concerto,
simplesmente isso, nada
Opus viesse a ser?
Ele queria fazer um filme-concerto. estamos na plateia
mais do que isso.
Eu trabalho em cinema, conheço o
processo de realização e acho que de um concerto”

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 15


Arigato,Sakamoto-san
O testamento artístico de Ryuichi
Sakamoto, mais do que um adeus
à música, é uma celebração — um
Älme-concerto ao nível de Stop Making
Sense ou Amazing Grace. Por Jorge
Mourinha

Costuma dizer-se que “a perfeição a Deus pertence”


e que, por isso, nada que o ser humano possa fazer
alguma vez será perfeito. Talvez por isso Neo Sora e
Ryuichi Sakamoto tenham deixado, mesmo no
centro de Opus, um momento em que os dedos
falham, as teclas se desarticulam, a música se
desfaz; em que a fragilidade de um músico que se
engana e que tem de recomeçar a peça se revela por
inteiro. Esse momento, colocado entre a perfeição
quase apolínea deste “falso” filme-concerto, apenas
engrandece o músico-pai e o realizador-filho, Ryuichi
tornando visível a nuvem que paira sobre Opus Sakamoto
como uma chuva de Verão que vem de súbito — Opus
refrescar o ambiente: este é o testamento artístico De Neo Sora
do músico japonês, falecido faz agora um ano, Documentário
rodado quando já era impossível a Sakamoto actuar Em sala
ao vivo, e depurando ainda mais a sua arte do piano
solo até um ponto de quase diamante. 
Dissemos “falso” filme-concerto porque, apesar
da ilusão ser quase (e o “quase” é essencial neste
filme) perfeita, Opus foi na verdade rodado ao longo
de vários dias, com a saúde de Sakamoto a impedi-lo
de tocar mais do que duas ou três peças por sessão.  Inicialmente, ele queria que peito à fotografia e montagem, mas Ao mesmo tempo, temos movimen-
Mais do que apenas captar uma performance de um fosse Happy End [1981], mas achei eu estava a pensar, sobretudo, em tos de câmara bastante dinâmicos
mestre que, apesar da doença, está em plena posse que seria uma boa ideia a canção como representar a sua música da para um filme-concerto. Como não
dos seus poderes musicais, Sora procura traduzir final do filme exprimir um senti- melhor forma possível. precisávamos de nos preocupar com
em imagens a intimidade que se estabelece entre mento desapaixonado, não-emocio- Essa passagem do tempo no uma grande plateia, pudemos incluir
Sakamoto e o seu piano em cada interpretação — o nal, de certa forma. Uma música que correr de um dia manifesta-se os fantásticos travellings que o direc-
milagre da arte a parecer construir-se à nossa frente, representasse algo sobre o carácter através da iluminação, de um tor de fotografia criou. Na verdade,
reflectido nos sorrisos, nos gestos, no abandono do repetitivo do passar dos dias. Em foco de luz que surge no plano para este tipo de filme, tem um movi-
músico às peças que ele próprio compôs e, em última análise, achou que seria em momentos específicos. Mas mento bastante dinâmico. Além dis-
alguns casos, nunca sequer tocou desta maneira. melhor terminar com Opus [1999]. são marcas subtis. O filme tem so, não queria explicar nada, só que-
Cada fotograma de Opus é em si próprio uma obra Nunca disse que deveria ser desta essa reserva de intimidade, ria mostrar. Talvez os miúdos o
de arte, tal é a perfeita adequação do preto e branco ou daquela maneira, no que diz res- como se não quisesse impor-se façam agora, mas num concerto não
contrastado e contudo acariciador da fotografia de demasiado perante aquilo que se está no telemóvel a procurar infor-
Bill Kirstein ao intangível cosmopolitismo geográfico acontecia entre o músico, seu mações sobre a música. Temos a
de uma música com tanto de delicadamente oriental pai, e o instrumento que tocava, música e a actuação à nossa frente e
como de classicamente ocidental, e ao evidente o piano... seria desrespeitoso para com o artis-
deleite que Sakamoto manifesta ao reencontrar as O objectivo do filme é tentar criar a ta estar ao telemóvel. Quisemos
suas notas e o seu instrumento. sensação de experiência subjectiva livrar-nos de todos os elementos
Mas não é preciso que as obras de arte sejam q
que temos quando estamos na pla- explicativos e mostrar-vos apenas o
perfeitas para nos tocarem, e é por isso que está ali o tteia de um concerto. Podemos estar
te que é. Talvez isso contribua para
erro de Sakamoto em Bibo no Aozora. Para nos muito longe do palco ou sentados no
m essa sensação de subtileza.
recordar que é a natureza humana que faz da arte o meio da sala, mas quando a música Como lidou com a rotina diária
que ela é. Não é apenas por aí que se recomenda é verdadeiramente emotiva e o intér- da rodagem? Trabalha em
vivamente Opus. O filme de Neo Sora, com a sua O filme de prete está a dar tudo o que tem à sua cinema e fazer filmes é o seu
AIKO MASUBUCHI

sobriedade contida e pudica e contudo de uma Neo Sora música, temos a sensação de que nos trabalho, mas este não era um
grandeza incomensurável, apagando-se com (na imagem) aproximamos mais e mais. Como filme qualquer. Era um filme
humildade por trás do talento de compositor e é um clássico não havia público, a prioridade era com o seu pai, rodado em
A

músico de mestre Sakamoto, é um clássico instantâneo deix


deixar as câmaras fazerem o que circunstâncias extraordinárias,
instantâneo do cinema sobre a música, na nobre do cinema quisessem, que vissem o que
q certamente muito emotivas...
linhagem de clássicos como Stop Making Sense, os sobre a quisessem ver. Dessa for-
q Concentrei-me nas coisas práticas.
Talking Heads filmados por Jonathan Demme, ou a,
música, ma, conseguimos che-
m De facto, tinha de o fazer, porque
Amazing Grace, o registo dos concertos gospel de g a cenários muito
gar havia muito em que pensar. Filmá-
Aretha Franklin. Mas aquele momento em que a ín
íntimos. A subtileza mos ao longo de oito ou nove dias.
fachada se desfaz para deixar apenas um homem v
vem de não querer Chegávamos às 9h e, até às 12h ou
face à sua vida (e à sua morte) atira-o para outra i
interferir demasia- 13h, preparávamos as cenas, as posi-
dimensão, a das obras-primas que dão à palavra d com o que está
do ções de câmara e a iluminação. Ele
“cinema” todas as suas cartas de nobreza. Opus não a acontecer em chegava à tarde, praticava um pouco
é um testamento, é uma celebração. frente à câmara. e começava a tocar. Em termos de

16 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


máximo de mim.” Aconteceu Experimenta um acorde e é como se que estou aqui, é essa que quero
muito essa procura de perfeição, estivesse numa floresta densa, sem ouvir. Não acredito que não estão a
essa luta consigo mesmo? rumo, a tentar encontrar uma saída. tocar You’ve Got a Friend. Não me vou
Essa canção específica [Bibo no aozo- Mesmo no fim, de uma forma ime- embora enquanto não a tocarem”.
ra, 1995] tem uma secção em que ele diata, espantosa, volta directamente Percebeu, por fim, o que sentem os
improvisa e era isso que estava a para o que resta da música, como se fãs. “Agora percebo por que é que
acontecer ali. Para todas as outras tivesse encontrado, por fim, a clarei- todos pedem Merry Christmas, Mr.
canções ele ensaiava antecipadamen- ra na floresta que procurava. Para Lawrence”. Depois disso, voltou a
te. De vez em quando, não conse- mim, isso era muito mais interessan- tocar a canção. Compreendeu e con-
guia... Por vezes, era muito difícil te do que ter todas as notas perfeitas. cedeu que é um sentimento que se
dizer o que estava errado no take, mas Além disso, dá-nos um vislumbre do deve honrar. Acho que é por isso que,
ele queria repetir. Foi ele que esco- processo de pensamento de um no filme, o clímax é Merry Christmas,
lheu todos os takes que considerou músico, como quando ele estava em Mr. Lawrence.
melhores, excepto nessa canção, a casa a explorar diferentes progres- Opus foi filmado nos NHK
que tinha um erro. Em todas as can- sões de acordes. É esse tipo de explo- Studios em Tóquio, um lugar que
ções, tocou até estar suficientemente ração que um compositor faz para o seu pai conheceu bem ao longo
bom para ele, ou suficientemente tentar encontrar o som que persegue da vida, chegando mesmo a ter
bom dentro da sua capacidade física. e, neste caso, só podia acontecer ali um programa de rádio nos
Conseguiu fazê-lo, normalmente, ao num filme. Num concerto, se come- anos 1980. Essa camada histórica
segundo ou terceiro take. tesse um pequeno erro, tentaria teve alguma importância na
Porque decidiu incluir no filme o tocar por cima do erro, disfarçá-lo e escolha?
take em que Sakamoto falha e continuar. Não, acho que o mais importante era
pára? É um momento forte, Considerando que pensou Opus mesmo a qualidade do som. Ele
comovente pelo contexto em como o seu concerto de preocupa-se muito com a acústica.
que nos deparamos com aquela despedida, Sakamoto terá Há uma razão para ele ter regressado
falibilidade e fragilidade. Pouco pensado cuidadosamente o a este estúdio muitas vezes: é o
antes, a câmara fixa o seu rosto e alinhamento. O que queria ele melhor, é aquele de que ele gostava
vemo-lo totalmente imerso na expressar, o que queria mais. Mas é um estúdio antigo e não
música, radioso enquanto toca... cristalizar, que imagem quis é bom para filmar. Não nos foi per-
Sinto que há tanto drama nesse deixar aqui preservada em mitido usar tecnologia sem fios, por-
momento... Ele está a tocar e é mui- relação à sua obra? que há muitas emissões de rádio no
to, muito bonito. Depois improvisa, Para ser sincero, não tenho bem a edifício e iria interferir. Por isso, tudo
algo não funciona e pára. Mas, na certeza. Ele nunca me falou sobre o teve de ser ligado com cabos, o que
realidade, o erro liberta-o. É o erro processo de pensamento por detrás significava muitos cabos atravessa-
que lhe permite ser livre — já não tem da escolha do alinhamento, mas lem- dos no chão. Sempre que a câmara
de pensar em fazer uma actuação bro-me de ter dito que estava muito se movia, um cabo podia fazer baru-
perfeita. Isso liberta-o para a explo- orgulhoso do alinhamento, muito lho e era preciso garantir que não o
ração caótica em que se envolve. orgulhoso de ter muitas canções que fazia. Além disso, o chão do estúdio
nunca tinha tocado em piano solo. era de madeira velha, e havia sempre
Mas acho que, na parte final, estava algum ruído quando as câmaras se
rodagem, era muito mais fácil do que estava a acompanhar a partitura. Ao concentrado na dinâmica [do concer- deslocavam. Foi sem dúvida muito
um filme de ficção, porque tudo se mesmo tempo, tinha de estar muito to]. Muita da sua famosa música épica difícil filmar.
passava no estúdio, num ambiente
muito controlado. Era apenas meta-
atento ao corpo do meu pai e certifi-
car-me de que ele tinha energia sufi- “Ele está a tocar e é surge no fim, como Sheltering Sky,
Last Emperor, Merry Christmas [Mr.
Um dos aspectos mais
interessantes do filme é a forma
de de um dia de filmagem, mas, ao
mesmo tempo, era uma actuação. E
ciente para um segundo take.
Quantos takes fizeram de cada muito, muito bonito. Lawrence], e ele pensou em intercalá-
la com canções muito serenas. Não
como a câmara segue, atenta
mas com pudor, as mãos e o
uma actuação realmente boa, a
actuação que se quer usar no filme,
música?
Dois ou três. No primeiro dia con- Depois improvisa, me lembro de ter ouvido falar de nada
mais. Mas conto-lhe uma história
rosto de Sakamoto. Nas mãos
vemos a graciosidade de um
só acontece uma vez. Depois, tam-
bém temos de gravar o som da
seguimos fazer cinco canções, mas
normalmente eram duas ou três algo não funciona e engraçada. Merry Christmas, Mr.
Lawrence é a sua canção mais famosa.
artesão, de um músico, a
exercer o seu ofício. O rosto, por
melhor forma possível. Todas estas
coisas exigiram muito esforço e prá-
por dia.
O lado perfeccionista do seu pai pára. Mas, na Mesmo no filme, é o clímax. Mas,
durante muito tempo, ele detestava
sua vez, revela, na sua
variedade de expressões, um
tica. Eu estava a concentrar-me,
principalmente, no lado técnico das
esteve ainda muito presente? Há
um momento em que o vemos realidade, o erro tocá-la. Tinha de a tocar tantas vezes…
Entretanto, houve no Japão um con-
homem a lutar contra o declínio
do seu corpo, mas também,
coisas, a certificar-me de que tudo
estava bem. Dirigia os operadores de
duvidar, procurar as notas
certas, depois uma pausa. liberta-o. É o erro que certo do James Taylor e da Carole
King a que foi assistir. Enquanto esta-
noutros momentos, um amante
de música a ser transportado
câmara enquanto seguia os três
sinais vídeo e me certificava de que
“Vamos repetir mais uma vez”,
diz. “Isto é duro. Estou a dar o lhe permite ser livre” va no concerto pensava: “Eles têm de
tocar You’ve Got a Friend, é para isso
pelas emoções que esta
desperta. Alegre, 

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 17


 apaixonado, enlevado... na montagem. Ele é muito interpre- Sakamoto chegou a ver a versão tivesse acabado, ele tivesse terminado
Para ser sincero, quando há apenas tativo e muito consciente da câmara final do filme? Que comentários e não houvesse nada no futuro.
um pianista e um piano, não há mui- a maior parte do tempo. Mas, sem- lhe motivou? Que emoções Depois disso, tive uma oportunidade
to que se possa fazer. Mas fomos pre que começa a tocar, torna-se despertou nele? de verificar o filme novamente. Ini-
muito intencionais em relação ao incontrolável e as suas emoções tor- Ele viu a montagem do filme e viu a cialmente, debatíamo-nos com a ideia
corpo dele e ao seu físico, como ao nam-se completamente presentes no versão final, não necessariamente a de explicar um pouco mais sobre a
fisico do próprio piano. O físico dele seu rosto. Umas vezes é como se mistura de som final. Não disse muito, sua vida, porque algumas pessoas
e do piano fundiram-se para criar a tivesse comido algo delicioso e esti- mas disse que tinha gostado. No final, diziam-nos que gostariam de apren-
música. As suas mãos e expressões vesse a saboreá-lo, outras é um êxta- quando o piano toca sozinho, comen- der um pouco mais sobre a pessoa.
fazem parte disso. Nesse sentido, se, mas também tristeza. São todas tou: “Ainda não morri, ainda estou Compreendo perfeitamente, mas,
pensando no preto e branco, qual é essas emoções. vivo. Não me matem.” Uma tirada para ser sincero, depois de ver o fil-
a mais pura forma de prazer visual A razão primeira para a engraçada. É realmente uma coisa me, depois de ler os obituários, senti-
que o cinema tem? No mais básico, existência deste filme reside no que diria. me muito feliz por não ter explicado
penso que o prazer do cinema são facto de Sakamoto, Agora que já tem alguma nada, por poder vê-lo sem qualquer
formas de luz e escuridão num ecrã, impossibilitado de actuar ao distância de todo o trabalho interpretação. Libertou-me verdadei-
movendo-se com o ritmo. Na altura vivo, querer dar um último prático e logístico que envolveu ramente para poder lembrar o que eu
estava a ver muitos filmes experi- concerto. Mas, a um nível mais a rodagem e montagem, agora quiser sobre ele e para projectar tudo
mentais Dada, como Ballet Mécani- profundo, porque julga que se que já não tem o seu pai consigo, o que quisesse no ecrã. É obviamente

“ Não disse muito, que [filme de 1924, co-realizado por


Fernand Léger e Dudley Murphy,
aventurou neste projecto? Fê-lo
para o público, para si mesmo,
como olha para o filme? O que
significa ele para si enquanto
uma actuação preservada em âmbar
e não mudará no futuro, mas, ao mes-

mas disse que tinha com colaboração de Man Ray; tam-


bém título de uma canção de Futu-
pela sua música e pelo legado
que ela deixa?
realizador, melómano, filho?
Tenho a certeza de que, sempre que
mo tempo, há a sensação de não se
definirem limites à pessoa. Dado que

gostado. No final, rista, álbum de 1986 de Ryuichi Saka-


moto], e a pensar na forma como
Acho que o fez para o público. Ele
editou um álbum chamado 12 mes-
voltar ao filme, terei uma nova per-
cepção dele, emoções que depende-
nada é explicado, subsiste uma espé-
cie de mistério. Vemos muito intima-

quando o piano toca aquelas pessoas faziam experiências


com a luz e as formas. Uma das
mo antes de morrer, e acredito que
esse álbum era mais para ele, como
rão do que estiver a sentir nesse
momento da minha vida. Depois da
mente as suas expressões enquanto
toca, mas, na verdade, não fazemos

sozinho, comentou: razões pelas quais nos aproximámos


tanto em grande plano em algumas
um diário que guardou só para si.
Era muito terapêutico, tocar e com-
sua morte, foram publicados muitos
obituários e muitas pessoas envia-
ideia do que está a pensar e não há
forma de compreender realmente o

‘Ainda não morri, destas cenas foi porque quanto mais


nos aproximávamos, mais abstracta
por música apenas para seu próprio
prazer. Acontece que ele reuniu 12
ram-me mensagens de condolências.
Foi muito simpático. Descobri muitos
que está a sentir. Preservar esse tipo
de mistério e viver com o mistério no

ainda estou vivo. Não a imagem se tornava. As sombras


moviam-se, mas moviam-se no ritmo
canções e lançou-as em forma de
álbum. No caso do filme, é definiti-
aspectos diferentes sobre o meu pai
que desconhecia, mas, ao mesmo
filme, mostrando simplesmente
quem ele era na altura da gravação,

me matem.’ Uma da música. Achei que era uma forma


de nos atrair para a abstracção que
vamente uma actuação elaborada
que se destina a ser vista pelo públi-
tempo, tinha a sensação de que toda
a gente estava a fechar o livro. Torna-
permite aceder a essa dimensão ilimi-
tada que estou muito contente por ter

tirada engraçada” é a música. Apercebi-me de quão


importantes eram as expressões dele
co. Obviamente, a motivação foi que-
rer legar algo.
ram a vida dele umas narrativas mui-
to concisas, e eu senti como se tudo
mantido. Sinto-me muito privilegiado
por ter feito este filme com ele.

18 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


A SORTE QUE TiVEMOS!
Um espectáculo sobre Abril
Textos: António Cabrita, Jacinto Lucas Pires, Patrícia Portela
e Rui Cardoso Martins • Música: Martim Sousa Tavares
Encenação: Teresa Gafeira

12 Abril a 5 Maio • M/14


Quinta a sábado às 21h
Quarta e domingo às 16h

A GRANDE ViAGEM DO PEQUENO Mi


Co-criação: Madalena Victorino
Com Ana Raquel e Beatriz Marques Dias
Miragem
Mirage
Mir age
ag
g m

6 e 7 Abril • Sábado às 16h • Domingo às 11h e às 15h • M/6

JÚBiLO Concepção: Ângela Silva e Francisco Sassetti


Comentários: Alexandre Delgado

20 Abril • M/6
Sábado às 21h

ctalmada.pt
Adrianne
Lenker
sem filtros
e sem rede
Fechada com alguns amigos
num estúdio rodeado de
Åoresta, a cantora dos Big Thief
gravou o magníÄco Bright
Future. E é como se estivéssemos
na mesma sala do que ela.

Gonçalo Frota

E
stamos nos minutos finais de perder a minha carreira. Ou por pen-
uma conversa com Adrianne sar que possa não ter mais nada para
Lenker. É o primeiro dia de lançar para o mundo e que toda a
promoção que a cantora nor- gente me irá esquecer. Não quero
te-americana, vocalista dos fazer álbuns vazios de sentido e que
Big Thief e autora de algumas sinta que são monótonos. Preferiria
das mais arrebatadoras canções da muito mais pousar a guitarra, ir plan-
última década, a meio de Janeiro, tar comida, entalhar colheres, diver-
dedica ao seu novo álbum a solo, tir-me a moldar barro e ir trabalhar
Bright Future. Lenker está de visita a para um diner.”
alguns parentes, interrompendo o A questão é que Adrianne Lenker
sossego familiar para uma série de adora o processo de escrever can-
entrevistas centradas neste encanta- ções e juntá-las num propósito co-
dor álbum que se ouve como se esti- mum. O que significa, no fundo, duas
véssemos na mesma sala do que ela coisas distintas: que se imagina facil-
e os seus três cúmplices, em descon- mente a fazer isto até à velhice, mas
traído ambiente montado numa ca- também que não se sente obrigada
bine algures nos Estados Unidos, nem tenciona continuar a fazê-lo se
rodeados de floresta e reunidos à sentir que não tem nada de novo a
volta de uma lareira a desfiar can- dizer ou que “as canções não têm
ções — sem outro aparente propósito uma energia em que exigem ser ati-
que não o de gozarem ao máximo radas para o mundo”. Descansem,
aqueles momentos de partilha. no entanto, os mais fiéis seguidores
A conversa vai já avançada, está de Lenker. Porque aquilo que a can-
quase a surgir o alerta por um res- tautora logo acrescenta é que duvida
ponsável da editora que excedemos poder vir a esvaziar aquilo que tem
o nosso tempo de videochamada, a dizer sob a forma de canções. “Por-
falamos deste ofício da escrita de que a minha vida é, como a de qual-
canções quando Lenker resume tudo quer outra pessoa, um caminho de
assim: “A única coisa que não quero contínuo crescimento pessoal na
mesmo fazer é construir álbuns por forma como compreendo o mundo
estar assustada a pensar que posso à minha volta. E o mundo é tão louco

20 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


GERMAINE DUNES
conjunto de canções, em que ainda falar sobre isto a propósito de Real “Gosto quando o som não fica dema-
me questiono se estão ou não termi- house em particular, porque quando siado morto”, diz Lenker, “quando
nadas, se são boas o suficiente ou se decidi que seria a canção de abertura há reverberações naturais e até se
quero mesmo partilhá-las com o do álbum havia uma outra versão, consegue escutar um pouco do vento
mundo, testá-las e gravá-las, mesmo mais upbeat e enérgica, mas optei a soprar lá fora. Também acho que o
sem saber se há um álbum ali.” Só por esta mais paciente e lenta.” ambiente mais importante para mim
que, à medida que a data da sessão Se não fosse a distância tão grande é o sistema nervoso — quanto mais
Bright Future se aproximava, mais canções com entre o momento em que o álbum relaxada estou, quanto mais confor-
Adrianne ares de estarem prontas se iam jun- ficou pronto e a sua data de edição, tável e protegida, mais o meu lado
Lenker tando à bagagem e, um escasso mês reflecte Adrianne, o arrependimento criativo se manifesta.”
4AD; distr. antes, Adrianne pensou que, mesmo teria também menos espaço de ac- Sempre num registo acústico e
Popstock querendo realizar algumas grava- ção. Mas quando esse prazo se estica pouco polido, as 12 canções de Bright
ções a solo, poderia ter graça cha- por um ano ou mais, as dúvidas co- Future — em que se inclui uma nova
 mar alguns dos seus “músicos pre- meçam a surgir sob a forma de per- versão de Vampire empire, tema que
feridos”. Sem grande fé nas agendas guntas como “Será que este é um os Big Thief haviam já lançado tam-
preenchidas dos três músicos, so- bom início? Será demasiado indul- bém como single, embora um pouco
bretudo numa altura em que o re- gente? Será demasiado confessional mais robusto e preenchido — apon-
Sempre num registo acústico gresso aos palcos pós-covid acumu- e pessoal? Poderá não ser suficiente- tam muitas vezes para sonoridades
e pouco polido, Bright Future lava concertos que tinham ficado mente universal para início de disco? mais folk e country. Lenker acredita
inclui uma nova versão de suspensos durante dois anos, ligou- Será um tema demasiado lento para que “este conjunto de músicos estará
Vampire empire (tema que os lhes e espantou-se que, por qual- abrir? Poderá desinteressar as pes- talvez mais longe do que os Big Thief
Big Thief haviam já lançado) quer milagre, todos tivessem aque- soas e levar a que não oiçam o resto? de ser uma banda country”, mas os
les dias livres. Não teria algumas canções melhores instrumentos parecem unir-se numa
Mais do que uma sessão de estú- do que estas?” São dúvidas que vêm moldura claramente folk em peque-
dio, aquele foi um período de parti- e vão, que se agigantam e calam tam- nas delícias como Sadness as a gift,
lha. “Tocámos as canções, claro, mas bém em seguida; e com os anos, ad- Already lost ou No machine, ou até
e contém tanto mistério — nos dois também estávamos juntos de uma mite a cantautora, olha para as suas numa folk de acordo com o dicioná-
extremos, não sabemos de onde vie- forma de que todos precisávamos escolhas percebendo o sentido que rio de Sufjan Stevens em Donut
mos e para onde vamos, ou até o que depois da pandemia”, recorda faziam na altura. “Até quando vejo steam, dos Bon Iver na excelente (e
estamos exactamente a fazer aqui —, Lenker. “Sem ecrãs, só a ouvirmos imensos defeitos nalguma canção”, mais livre) Fool e de Will Oldham em
comporta tanta dor, tanta crueldade discos juntos, a lermos livros, a fa- admite, “aprendi a olhar para isso Vampire empire. E depois há uma
e, ao mesmo tempo, tanta beleza zermos caminhadas, a conversarmos com ternura. Os discos acabam por Free treasure que soa a balada dos
insondável, que não me parece que e a tocarmos junto à lareira. E tocá- ser arquivos de quem eu era em de- Fleetwood Mac e duas canções maio-
vá esgotar as coisas sobre as quais vamos as músicas quase sem as en- terminado momento. E acho que é res, quase insuportavelmente belas,
pensar. Sinto que vou sempre tradu- saiarmos, os arranjos a fazerem-se até enternecedor olhar para trás e Candleflame e Evol, que parecem
zir a minha relação com isso tudo por si; o Phil carregava no botão de ver o crescimento que fiz em relação escritas depois da audição de Ex-
através de canções.” ‘gravar’, fazíamos alguns takes e nin- a alguma questão particular.” cerpts from a Love Circus, de Lisa
Este peso que Adrianne Lenker guém pedia para ouvir o resultado. Tendo decidido que deveria ser o Germano, com um bloco de notas
garante não colocar sobre si e sobre Não usámos auscultadores e não ou- instinto a mandar — e aquilo que o — acontece que, na verdade,
os álbuns que tem lançado a um vimos uma só gravação durante instinto lhe dizia era que Bright Fu- Adrianne Lenker pede-nos, curiosa,
ritmo estonteante — em dez anos, aqueles dias. Só eu é que ouvi já de- ture iria começar por Real house —, para apontar o nome de Germano,
este é o seu quinto disco a solo, a pois de eles irem embora. Foi muito todo o álbum segue pelos mesmos que também editou pela 4AD, mas
que se juntam outros cinco a bordo especial, não estávamos híper cons- trilhos de profunda intimidade lan- da qual a cantora dos Big Thief nunca
dos Big Thief e mais dois assinados cientes do que fazíamos, era apenas çados quer pela voz desprotegida de tinha ouvido falar.
com Buck Meek (guitarrista da sua uma ocasião para tocarmos juntos e Lenker, quer pela instrumentação Bright Future fecha com outro
banda) — ouve-se em cada tema de curarmo-nos de tudo aquilo por que sem rede (guitarras, piano e percus- tema majestoso. Ruined é uma ba-
Bright Future. É um álbum, como tínhamos passado”. são que os quatro dividem entre si) lada ao piano (tal como Real house),
acima escrevíamos, em que somos escolhida para estes temas. É um que Adrianne Lenker canta com a
transportados para a mesma sala Salvação pessoal ambiente sugerido também pelo pró- voz quase a desfazer-se de emoção,
onde estão Lenker, Josefin Runs- O tom intimista de Bright Future prio estúdio, “mais como uma casa, e que avança para nós num langor
teen, Nick Hakim e Mat Davidson, fixa-se logo com o tema de abertura, tal como no anterior Songs and Ins- quase celestial. É Adrianne Lenker
durante alguns dias do Outono de a espantosamente confessional e ar- trumentals”, em que a gravação per- a lidar com uma relação amorosa,
2022, quando, sem planos para que repiante Real house. Um piano pouco mite escutar o espaço, as paredes, o felicidade e mágoa sem se saber
daí viesse a resultar um álbum, perfeito, notas a escorrer nostalgia, chão a ranger, conversas em fundo. onde uma começa e a outra termina,
Bright Future foi registado no estú- acordes lentos a cair à medida que as lançando mais uma canção para
dio analógico Double Infinity, no memórias se transformam em melo- tentar descobrir sentido no mundo.
meio da floresta. Foi tão pouco pla- dias, tudo a construir um lugar de “Quando olho à minha volta e vejo
neado, na verdade, que quando os psicanálise em canção, a voz de aquilo que está a acontecer, toda a
restantes músicos fizeram as malas Adrianne Lenker frágil, a viajar até à agitação e toda a tristeza por que as
e voltaram às suas vidas, ninguém
tinha ouvido um único take daquilo
infância, uma criança de olhos postos
no céu, o desejo de vir a ser uma cien- “Quando olho à pessoas estão a passar, também as
sinto dentro de mim”, diz. “Acho
que Philip Weinrobe gravou durante
as sessões.
tista, a vontade de que a magia pu-
desse ser real, um salto até aos 14 anos minha volta e vejo que colocamos demasiados filtros e
tentamos ficar dormentes perante
“De início”, conta-nos Adrianne
Lenker, “íamos ser apenas o [enge-
e uma ida ao hospital, a morte de um
animal de estimação e, a pairar por aquilo que está a a dor alheia. Mas, para mim, as can-
ções, que já me salvaram a vida vá-
nheiro de som] Phil e eu, porque ti-
nha vontade de trabalhar alguma
cima de tudo isto, a necessidade da
confirmação do amor maternal. acontecer, toda a rias vezes, permitem-me habitar o
mundo e estar em contacto com a
coisa com ele, mas não sabia exac-
tamente o que ia acontecer. Até pen-
Não são muitas as ocasiões, reco-
nhece Lenker, em que se arrepende agitação e toda a humanidade.”
Bright Future é essa ligação, sem
sei que poderíamos gravar um ál-
bum instrumental abstracto”, diz,
de um tão escancarado grau de ex-
posição perante quem a escuta. “Até tristeza por que as filtros. E é a forma de Adrianne
Lenker nos envolver nesse mesmo
rindo-se da distância entre essa vaga
ideia e aquela que encontramos con-
porque tudo aquilo que autorizei a
sair em disco e ser impresso é algo pessoas estão a pensamento. Porque quando ouvi-
mos Ruined ou Evol, a sua dor é tam-
cretizada em Bright Future. “Gosto
de fazer isto a mim mesma, inten-
em que pensei muito”, garante. “Por
cada canção que tornei pública, ha- passar, também as bém a nossa, o seu amor virado do
avesso é também o nosso, saímos de
cionalmente. Apetece-me, por
vezes, quando tenho um novo
verá uma outra que ficou só para
mim. Mas é curioso que estejamos a sinto dentro de mim” uma canção salvos pela sua busca
de salvação.

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 21


A cantiga é uma arma, mas T

RUI GAUDÊNCIO
em o mesmo nome do tri-
savô, Luís de Freitas Branco,
e, nascendo numa família
desde sempre ligada à mú-
sica, quis seguir outros cami-

temos de renovar o armamento nhos, mas a música impôs-


se. Nascido em 1988, formado em
jornalismo, com passagem por vá-
rios jornais (PÚBLICO, Expresso/
Blitz, Observador, Diário Económico,
Luís de Freitas Branco pega num único ano, 1971, para jornal i, O Globo), hoje é consultor de
comunicação e crítico musical, en-
explicar em A Revolução antes da Revolução como a música, quanto tira um mestrado em Ciên- A Revolução
cias Musicais no mesmo lugar onde antes da
dos mais variados géneros, inÅuiu no derrube da ditadura. o bisavô deu aulas. O que o traz à ri- Revolução
balta é um livro onde, partindo do Luís de Freitas
que sucedeu no campo da música Branco

Nuno em Portugal em 1971 para falar do


que nela sucedeu antes e depois, nos
Zigurate

Pacheco
dá a entender a importância da mú- 
sica popular no posterior derrube da
ditadura, agora que se comemoram
os 50 anos do 25 de Abril de 1974.

Este é um livro que parte de um


único ano para abordar em
termos mais gerais o universo e a
força da música popular. O que
mais o motivou nesta sua busca?
Começou com uma curiosidade mui-
to simples, já de há muitos anos, de
eu perceber que alguma coisa tinha
acontecido em 1971 e não podiam ser
apenas coincidências. Sabemos dos
três álbuns gravados em Paris [ José
Mário Branco, Sérgio, Godinho, José
Afonso], mas depois vemos o Gente
de Aqui e de Agora [de Adriano Cor-
reia de Oliveira], o Festival de Vilar
de Mouros, o Jazz de Cascais, o pró-
prio Festival da Canção que foi mui-
to particular, o álbum Blackground
do Duo Ouro Negro, o Movimento
Perpétuo [de Carlos Paredes] ou o
álbum a solo do José Cid. E eu sabia
que, com este ponto de partida,
havia aqui qualquer coisa que não
estava contada.
A partir daí, lançou-se numa
pesquisa bibliográfica?
Programou entrevistas?
Antes disto, nunca achei que ia
encontrar um ano que iria conseguir
resumir, não só toda a música daque-
le período, como encontrar ainda
muitos ecos no presente. A verdade
é que nasci em 1988, não vivi aquele Luís de
período, e para mim era inevitável Freitas
abordar estas coisas com o olhar de Branco e, à
hoje. E interroguei-me, por exemplo: direita, capas
devia haver mulheres a cantar músi- de alguns
ca de intervenção. Depois, foi encon- dos mais
trá-las, as que estão vivas, e ir atrás relevantes
dessas histórias. Originalmente, a discos
minha curiosidade era explicar por- publicados
quê 1971, que mistério é este, e em 1971: de
depois foi um dique que se abriu. José Afonso,
É curioso que 1971 é também o José Mário
ano em que foi distribuído às Branco,
tropas portuguesas na guerra em Adriano
África, pelo Natal, um disco de Correia de
pendor nacionalista e Oliveira,
colonialista, Natal 71, que foi Sérgio
objecto de um filme de Godinho,
Margarida Cardoso, no ano Paulo de
2000… Carvalho,
É verdade. Mas no mesmo Natal saiu Carlos
o Cantigas de Maio, de José Afonso, e Paredes, Duo
esse disco, com uma canção chama- Ouro Negro
da Angola é nossa. Não é preciso dizer e Petrus
mais nada. Castrus
22 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024
Voltando à sua pesquisa: como gas do Maio ele foi preso duas vezes todo o episódio no Brasil, de que ele canções nos Prémios de Imprensa,
começou e como correu? e foi internado num hospício por não gosta de falar, mas, para mim, foi apupada e saiu do palco, encontrei
Foi uma loucura. Vi todas as revistas ansiedade. Ou seja, falta-nos a parte não fazia sentido nenhum falar de uma fotografia desse momento na
possíveis de 1970, 1971 e 1972 e fui à humana, a parte narrativa, as histó- 1971 e destes anos sem falar nesse Torre do Tombo; a Maria Teresa Hor-
Torre do Tombo ver todos os docu- rias. Quando lemos um livro sobre vazio de seis meses em que ele este- ta foi agredida por três pessoas e não
mentos disponíveis. Como tenho um o Bob Dylan, ou anglo-saxónico, ve preso no Brasil… tardou estava a escrever [com Maria
trabalho a tempo inteiro, fiz tudo isto isso costuma ser o centro da histó- E nesse ano há duas prisões que Velho da Costa e Maria Isabel Barre-
fora das horas de trabalho e revi-me ria. Ou quando lemos o Ruy Castro. antecedem o lançamento de dois no] as Novas Cartas.
muito na música portuguesa deste Há ali uma profunda investigação, grandes discos: uma é a de A sua ascendência pesou de
período, porque o Adriano Correia mas há histórias que nos levam para Sérgio Godinho no Brasil antes algum modo neste trabalho
de Oliveira tinha trabalho a tempo aquele tempo e nos encantam, e da edição de Os Sobreviventes; e específico?
inteiro como assessor, o Carlos Pare- achei que isso fazia muita falta à outra é a detenção de José Não sei como é que a genética funcio-
des entregava propaganda médica, música deste período. Afonso pela PIDE, antes da na, mas de facto é muito esquisito
praticamente toda a gente aqui cita- Que tem uma abordagem gravação e do lançamento do que há cinco gerações estamos de
da tinha empregos, a par da música. abrangente não se limita aos Cantigas do Maio. algum modo relacionados com músi-
E isso explica, em parte, esta nossa
história, as nossas valências e des-
nomes associados ao 25 de
Abril…
Isso também me surpreendeu mui-
to. Ele ia a caminho de Paris gravar “Não queria só falar ca. O meu trisavô, o compositor Luís
de Freitas Branco; o irmão, o maestro
vantagens.
E as entrevistas feitas para este
Nos 50 anos do 25 de Abril não que-
ria contar a mesma lengalenga de
o Cantigas do Maio, foi preso logo
no aeroporto [e impedido de embar- do José Afonso ou Pedro de Freitas Branco, que teve um
único filho, o musicólogo João de
livro, que também são muitas?
De repente, houve a pandemia e tive
sempre, não queria só falar do José
Afonso ou do José Mário Branco, que
car], depois para desanuviar um
bocadinho vai para Moçambique do José Mário Branco, Freitas Branco, que por sua vez teve
um filho que foi o meu avô, Luís de
sorte, apanhei toda esta geração res-
guardada em casa. E consegui falar
são importantíssimos, mas a minha
geração é outra; e a canção indepen-
visitar a família e o próprio ministro
do Ultramar diz: “Deixa-o, deixa-o, importantíssimos, Freitas Branco, que venceu o concur-
so do Yé-Yé no Monumental, em 1966,
praticamente com toda a gente, com
raras excepções.
dente africana, a música ligeira, o
jazz e o pop são tão importantes
que lá o prendemos”, mesmo para
o humilhar. Há uma foto, que é até mas a minha geração com Os Claves; e o meu pai, Pedro de
Freitas Branco, que foi uma estrela
Antes de ser livro, este seu
trabalho foi publicado no
como as restantes canções. E na altu-
ra não eram, era uma época politiza-
triste e humilhante de ver, que eles
o deixaram tirar com a família no é outra; e a canção de rock nos anos 90 com Pedro e os
Apóstolos. Eu tentei, de certa forma,
Observador, ao longo de 2021,
em 12 capítulos, tantos quantos
da. E as próprias pessoas que entre-
vistei, como Marco Paulo ou o Paco
aeroporto. No meio disto, há um
concerto em Paris em que ele é com- independente não seguir este caminho, e a minha
rebeldia foi não aprender nenhum
os que contém o livro, cada um
correspondendo a um mês do
Bandeira, surpreenderam-se por eu
estar a falar com elas, quando lhes
pletamente escorraçado pela extre-
ma-esquerda, tem um ataque de africana, a música instrumento, ir para o jornalismo e
afastar-me, mas a música esteve sem-
ano, de Janeiro a Dezembro. O
que o levou a esta divisão
disse que ia entrevistar o Sérgio
Godinho ou o Manuel Alegre. Com
pânico e tem de ser internado. Em
relação ao Sérgio Godinho, consegui ligeira, o jazz e o pop pre a chamar-me e dei por mim a
escrever um livro sobre música e a
cronológica?
Percebi que havia uma história que
este livro, eu quis abrir um pouco o
cânone de Abril, dizer que devemos
encontrar alguém que esteve preso
com ele, o Ilion Troya, do Living são tão importantes tirar um mestrado em Musicologia.
Se calhar, era inevitável.
devia ser contada mês a mês e quis
recuperar uma prática que me agra-
também falar de rock, que foi impor-
tantíssimo, ou da música angolana e
Theatre, que agora vive em Nova
Iorque e que me contou todos aque- como as restantes O que espera que as pessoas
tirem, em primeiro lugar, deste
da e que não é do meu tempo (o Gar-
rett e outros faziam-no), que é a
publicação em jornais de fascículos
do seu pioneirismo. A música não
deve ser um exercício nostálgico e
temos de a celebrar com um olhar
les episódios extraordinários rela-
cionados com a Brigada do Vício, no
auge da ditadura brasileira.
canções” livro?
Espero que haja uma maior amplitu-
de musical, uma maior consciência
que um dia dariam um livro. Desafiei crítico e do século XXI. Trouxe para este livro uma série do que foi este período histórico
o Observador e eles aceitaram. O que é que o surpreendeu mais de nomes muito pouco falados, através das músicas, da diversidade
A ideia da divisão em meses nestas buscas que conduziram a como Ana Maria Teodósio, José musical que o compôs, à esquerda e
surgiu-lhe antes ou depois da este livro? Almada, Deniz Cintra, Rita à direita. A música popular, hoje, em
decisão de fazer o livro? Várias coisas. Fiquei quase escanda- Olivaes, Teresa Paula Brito… grande parte, pode ser explicada
Surgiu depois. Interessa-me muito lizado com a reacção muito negativa Sobretudo a Teresa Paula Brito. O dis- pelo que ocorreu neste período, e é
a ideia de pegar numa parte para de vários músicos portugueses aos co Minha Senhora de Mim foi lançado bom que tenhamos uma visão mais
explicar um todo. E não criticando álbuns gravados em Paris, dizendo em simultâneo, no mesmo evento, holística, mais diversa, do que é a
a bibliografia que existe sobre músi- que o José Mário Branco e Sérgio com o livro de poemas da Maria Tere- nossa música. Estamos num período
ca portuguesa, que é escassa, há Godinho não sabiam cantar, tocar ou sa Horta. E foi o único caso dos que turbulento, em que vamos assistir a
nela uma falta de narrativa. Há mui- fazer arranjos, quando estes músicos vi que teve uma repercussão mediá- muitos conflitos, e por isso é impor-
tos livros enciclopédicos, com mui- estavam um passo muito mais à fren- tica forte, com jornalistas a dizerem tante que haja esta consciência de
tos dados, com muitas datas, mas te. Era uma reacção de defesa, e só “este é o disco do ano”, porque o que a música tem de ser sempre
há uma certa desumanização. assim se compreende, num pequeno rock deveria ser a música da juven- renovada, inclusive a música do pas-
Temos muitos livros sobre o José país que é Portugal e num pelouri- tude, era o natural na altura. Disco e sado. A cantiga é uma arma, mas
Afonso, mas tive de investigar a fun- nho que é Lisboa. Ainda em relação livro foram proibidos, a Teresa Paula temos de renovar o armamento. Já
do para saber que no ano do Canti- ao Sérgio Godinho, surpreendeu-me Brito cantou uma única vez estas não se vai à guerra de baionetas.

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 23


D
e Bestas e Aves, o mais re-
cente romance da poeta e
escritora espanhola Pilar
Adón (n. 1971), foi distin-
guido, em 2023, com os
mais importantes prémios
literários espanhóis. Não é um livro
daqueles que agarra o leitor logo nas
primeiras páginas. O universo literá-
rio de Pilar Adón tem algo de hermé-
tico, também de coisas insinuadas
que ficam por contar, e sobretudo de
inquietante. O leitor pode perder-se,
angustiar-se.
“Eu quis provocar essa inquieta-
ção, porque como leitora gosto que
me assustem”, confessou em con-
versa com o Ípsilon, no Instituto
Cervantes, em Lisboa, depois de ter
participado no festival Correntes
D’Escritas, na Póvoa de Varzim.
“Há agora uma tendência geral de
se dar tudo mastigado. Eu gosto que
me façam pensar. O que procuro no
meu leitor é, primeiro, que acredite
em mim, que se ponha nas minhas
mãos e que se deixe levar; e, se-
gundo, que participe na criação. A
literatura é um diálogo, não é um
monólogo. Então, o leitor tem de
dialogar com as personagens, tem de
dialogar comigo como autora. Du-
rante o processo de leitura não o Autora de prosa e de poesia,

Pilar Adón
quero parado, não quero que pre- com De Bestas e Aves recebeu
tenda ter tudo mastigado, que eu lhe o Prémio Nacional de Ficção,
diga como são as personagens, como o Prémio da Crítica e o Prémio
é o lugar... Isso não me interessa Francisco Umbral
como leitora. Mas, para isso, é im-
portante que eu conheça tudo o que
não conto, há um trabalho de depu-

Como se tudo o que escrevo


ração. E não é fácil eliminar o que já
está escrito, e bem escrito.”
Logo no começo da narrativa, há
uma mulher que conduz um carro
(depois de se esquecer do telemóvel

faça parte de uma casa


em casa) e que algum tempo depois
se perde. A gasolina quase acaba, e
ela entra por um caminho florestal
que a leva a uma casa com um portão
de ferro. A partir daí, tudo muda na
vida daquela mulher de nome Coro
— que é pintora. A casa tem o simbó-
lico nome de Betânia e nela vivem
apenas mulheres. por elementos naturais. São essen- dessa mesma linguagem. “Em poesia
“Betânia existe como um lugar fí- Criou um universo literário ciais as árvores, os rios, os animais. e prosa os meus temas são sempre os
sico, como uma casa, mas não é esta
comunidade — inventei-a assim para
inquietante, que desassossega Ela esclarece: “É como se tudo o que
escrevo, poesia, conto ou romance,
mesmos. A minha poesia é muito
narrativa e a minha prosa é poética,
o romance. Digo agora que existe
porque numa entrevista à televisão
o leitor. “Não o quero parado, faça parte de uma casa. Os temas são
sempre os mesmos: o medo, a fuga,
misturam-se. Os temas, o isolamento
e o medo, são os mesmos. Na prosa,
espanhola acabei, sem querer, por não quero que pretenda ter o desejo de estar noutro lugar. Diga- procuro uma linguagem depurada,
confessar que fica em Maiorca [ri-
sos]. Conheço a casa, a paisagem, o tudo mastigado”, diz a mos que cada livro meu é como um
quarto, uma sala, dessa casa. Deco-
com a palavra exacta. É também
muito importante a musicalidade, a
ambiente, os animais que vivem por
ali”, diz Pilar Adón. “Mas o que me
escritora espanhola a esse ro-a, organizo-a, pinto-a. De cada vez
que acabo um livro, fecho esse
cadência, o ritmo, que são elementos
de que se fala muito em relação à
interessa é que o leitor leve o territó- propósito. quarto e vou para outro. O ambiente poesia, mais do que à prosa.”
rio do romance para o seu próprio literário é sempre o mesmo. Há es- O isolamento, a separação vincada
território.” critores para quem cada livro é um entre fora e dentro da propriedade
novo mundo, mas no meu caso, ano chamada Betânia, cria neste romance
Sempre uma casa após ano, a primeira imagem que uma espécie de universo de uma ou-
A casa, a ideia de casa, é central na
obra da autora espanhola, tanto em
prosa como em poesia. Mas não uma
José Riço Direitinho (Texto) tenho é esse isolamento.”
Em De Bestas e Aves é evidente
como a linguagem poética atravessa
tra realidade. É lá que aquelas que
habitam a casa fazem, ou já fizeram,
um processo de autoconhecimento,
casa qualquer, comum, antes uma
morada isolada algures e rodeada Nuno Ferreira Santos (Fotografia) a prosa, não apenas nos assuntos mas
nos modos de escrita, na exactidão
de descoberta. O isolamento, um
pouco à maneira dos eremitas, pa-

24 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024


rece ser essencial. A este propósito,
Pilar Adón julga saber de onde lhe “A minha poesia é Por vezes, esta comunidade de
Betânia pode assemelhar-se à ideia
das nas cidades, em lugares de pesa-
delo de onde queremos fugir, e
res se juntavam para falar, mas só
até os homens chegarem. E o círculo
vem esta obsessão pelo isolamento,
sempre presente nas suas obras. muito narrativa e a de seita, mas para tal tem de haver
um lado religioso, mas que de certa
quase sempre relacionadas com as
ditaduras. No caso deste romance
rompia-se, tínhamos de ir jantar ou
de ir dormir. Não sei se será por isso
“A questão é descobrir a liberdade
interior em lugares fechados. Parece minha prosa é forma existe e que se expressa numa
forma de religião animista, divini-
queria falar de mulheres que se auto-
abastecem, que se auto-regulam,
[risos].”
Coro, a protagonista, é pintora
paradoxal. Porque fechamento e li-
berdade são quase antónimos. Mas poética,misturam-se. zando a natureza. Mas outras vezes
parece ser apenas uma comunidade
que não precisam de nada do exte-
rior e que sabem que é isso que a
miniaturista. A meio do romance,
fica-se com a sensação de que a pin-
para mim, é como se nos descobrís-
semos em momentos de isolamento Na prosa, procuro de mulheres que querem só cuidar
umas das outras. O que é, então, este
protagonista precisa. Se são mulhe-
res boas ou más és tu quem decide
tura para ela é também uma tenta-
tiva de ressuscitar a irmã, de alguma
voluntário - isso é importante, não
tem a ver com o confinamento for- uma linguagem grupo de mulheres? “As comunida-
des, de mulheres ou de homens,
[risos]. Mas eu sabia que são mulhe-
res conscientes daquilo que estão a
forma. Como se com a pintura ela
tentasse controlar tudo. “Eu queria
çado da pandemia, por exemplo - ro-
deados de natureza, e então produz- depurada, com atraem-me desde há muito tempo”,
confessa Pilar Adón.
fazer.” A escritora espanhola, referiu
ainda como exemplo, uma outra
que a protagonista fosse uma artista,
uma criadora, mas não uma escri-
se esse crescimento interior e esse
descobrimento da liberdade. Isto
acompanha-me sempre e acho que
a palavra exacta” “O meu romance anterior [Las
Efímeras, inédito em português] fa-
lava dos restos de uma comunidade,
comunidade fundada no século XIX,
nos Estados Unidos, pelo pai da es-
critora Louisa May Alcott, autora de
tora [risos]”, diz Pilar Adón. “Com a
pintura, ela vê tudo de perto e con-
trola o seu mundo, acha ela, até ao
vem de uma experiência pessoal: francesa, que existiu na realidade. As Mulherzinhas. dia em que começa a conduzir, per-
quando era pequena, sair à rua para Chamava-se A Colmeia e foi fundada Estranhamente, ou talvez nem de-se, fica sem gasolina, e dá-se
brincar com as outras crianças, era com o propósito de dar educação a tanto, nos romances de Pilar Adón conta de que não controla nada e o
para mim uma perda de tempo. Isto crianças pobres, que de outra ma- quase não há personagens masculi- mundo cai-lhe em cima. Nós temos
era uma coisa muito consciente e o neira não a teriam tido. Sempre me nas. Em De Bestas e Aves, surgem essa maneira absurda de pretender
que eu queria era ler. Então, ficava chamaram a atenção as comunida- dois homens, de um modo passa- que no nosso dia-a-dia controlamos
no meu quarto e debaixo de uma des utópicas, e como estão destina- geiro. Mas parece haver uma expli- o nosso trabalho, aquilo que faze-
mesa, que tapava em volta com uns das ao fracasso. Nós, como seres cação: “Em tudo o que escrevo há mos... De repente, a vida vai por ou-
trapos. Estava no meu mundo, cons- imperfeitos, queremos criar comu- pelo menos um homem que aparece tro lado: alguém morre, alguém vai
truía-o. Acho que vem daí essa sensa- nidades perfeitas, harmoniosas. Por como elemento disruptivo, que vem e já não volta, há uma pandemia.
ção de isolamento, de não ter relação isso, no final todas fracassam, pela romper a cadência que havia previa- Ficamos surpreendidos porque afi-
com o exterior, e ao mesmo tempo nossa imperfeição. Escrevi muito mente. Neste caso, Tobias aparece nal não controlamos nada. No ro-
viajar dentro dos livros. Descobrir a De Bestas sobre essas comunidades, não ne- a dizer que a casa é sua e a partir daí mance, Coro dá-se conta de que tem
liberdade estando fechado.” e Aves cessariamente religiosas, mas quase começa o final. Não sei porque é que de se deixar ir. Vai-se dando conta,
As personagens deste livro estão Pilar Adón sempre ambientadas num lugar re- isto acontece em tudo o que escrevo, paulatinamente, de que pertence
sempre nesse processo. A protago- (Trad. Rui lacionado com a natureza. Ao con- mas é sempre assim. Talvez porque àquele lugar e que é a vida que a leva
nista percorre esse caminho até que Elias) trário, as distopias estão ambienta- quando eu era pequena, as mulhe- e não ela.”
por fim encontra um lugar onde é Dom Quixote
reconhecida, um lugar a que per-
tence, porque antes tinha-se dado 
conta de algo que lhe estava a tirar a
liberdade interior.

A água como símbolo


Poder-se-á dizer que este romance
está atravessado por uma série de nista] muda de pele como se fosse
símbolos. Um deles, e porventura o um réptil, deixa a sua pele de antes
mais importante, é a água. A irmã da fora de Betânia, e de repente tem
protagonista morreu afogada há uma nova pele, como uma espécie
muito tempo e ela carrega ainda esse de ressurreição, de recomposição.”
luto por fazer. Ao mesmo tempo, o Acerca da intertextualidade com
afogamento aparece quase como uma as histórias da tradição popular, a
intertextualidade com outras histó- escritora espanhola reconhece muito
rias literárias, com alguns contos dos do ambiente simbólico dos contos de
irmãos Grimm, por exemplo. A água fadas: “Por exemplo, nessas histórias
como fonte de vida mas ao mesmo há muitas vezes alguém que se perde
tempo o oposto. Tem neste livro uma e vai dar a um sítio isolado, abando-
dupla função. nado, entra num caminho desconhe-
“A água é um elemento simbólico cido, chega a uma casa, dão-lhe uma
claro e clássico, que facilita a passa- bebida, uma poção, e a partir desse
gem de um estado a outro”, diz Pilar momento entra numa outra reali-
Adón. “Nesse sentido, há muita in- dade. Foi o que aconteceu à protago-
fluência bíblica neste livro. Betânia nista quando foi de fora para dentro
é o lugar onde Jesus ressuscitou Lá- de Betânia. Isto é muito caracterís-
zaro. Há assim uma espécie de res- tico dos contos de fadas, que são
surreição simbólica da protagonista muito inquietantes. Aprendi muito
mediante a água. Numa ocasião, dis- da tradição oral, que é algo que se
seram-me que Betânia fica perto do está a perder. Quando eu era pe-
rio Jordão - conscientemente, já não quena, juntávamo-nos, sobretudo as
me lembrava - que foi o lugar onde mulheres da família - os homens iam
Jesus foi baptizado. No final, aquela para o café - e elas falavam e conta-
espécie de baptismo é também a pas- vam histórias, e nós as crianças es-
sagem de um estado prévio a outro cutávamos. Essa maneira de apren-
posterior, emocional, espiritual, o der é muito interessante, aprende-
que se queira. É evidente que neste mos a relacionar-nos, a viver. Há
romance a água facilita essa passa- muito disso neste romance: as mu-
gem entre estados. Coro [a protago- lheres que se juntam e contam.”

ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 25


ISABEL WAGEMAN

de que não consegue livrar-se e precisamente numa vila de Creta


com um filho pequeno que mal (e é um tema marginal mas
reconhece, Erica, que quer fazer da também se vê no filme de Molly
casa um retiro espiritual, longe do Manning Walker: a insidiosa
frenesim da vida quotidiana, Olívia, destruição que o vírus do turismo
a médica que continua a culpar-se dos países do Norte lançou nas
pela morte do pai, e Nora, a caótica terras do sul da Europa com o azar
irmã, sempre em busca de drogas e geográfico e meteorológico de
ciente de que a “loucura” faz parte terem muito mar e muito sol).
da linha genética da família. As três raparigas parecem não
Aixa de la Cruz constrói esta conversar sobre mais nada que
célula familiar para esmiuçar não sexo, cada conversa projecta a
longamente problemas expectativa dos rapazes que vão
contemporâneos, tais como os que encontrar e das noites em que vão
estão relacionados com o consumo dormir acompanhadas. Manning
imoderado de drogas, os Walker começa por filmar os
confrontos permanentes entre corpos como pequenas máquinas
diversas camadas da sociedade, os mais ou menos descontroladas,
feminismos, as catástrofes alimentadas pelo combustível
ambientais, ou seja, as questões dessa expectativa — num tipo de
que dominam as sociedades franqueza que no actual “clima Desconhecidos é uma delicada parti t
afluentes, mas desintegradas. No cultural” talvez só seja possível, e
entanto, é principalmente a temo-lo notado em várias
demência, o envelhecimento e a ocasiões, a mulheres realizadoras. transforma em grande convenção
morte que mais se distinguem Ao mesmo tempo, há bastante (as festas, regadas a shots, música
nesta narrativa com tonalidades contenção, bastante pudor horrorosa, e àquela ordinarice que
melódicas repetitivas, (“franqueza” e “pudor” são mostra bem a influência
Aixa de la Cruz é hábil na construção de uma narrativa encantatória desenvolvidas em crescendo. O palavras diferentes), quer no olhar culturalmente “democrática” da
romance é construído sobre da realizadora quer na cabeça das pornografia grátis da Internet) são
variantes dos mesmos temas, suas personagens: uma delas até é filmadas como num documentário
irmãs, numa simetria rigorosa, mas permanentemente reiterados em virgem, sempre a ser pressionada sobre animais selvagens: há

Livros fd?????
enganadora. “Erica e Nora contra
Olivia e Lis. Primas que se preferem
uma à outra em vez de às irmãs”,
vozes diferentes, apoiando-se num
suspense muito bem articulado,
mas que se arrasta até à exaustão.
pelas outras para acabar com esse
estado, detalhe que é um eco
bastante directo de um “avô” dos
compaixão (Manning Walker
nunca está contra as
personagens), mas o gesto é o de
esclarece La Cruz. anos 90 para um filme como How dar a ver os “animais” no seu
O suicídio de Dona Carmen to Have Sex, o Kids de Larry Clark habitat.
constitui um mistério que (e Harmony Korine). Habitat que eles transportam,

Ficção
desassossega as netas. A velha
senhora escolhe cortar os pulsos
na banheira — uma forma teatral e
Cinema Mas enquanto estamos
entretidos com a exposição da
mentalidade sexual (mais disso do
claro: de Malia (o nome da vila)
vê-se pouco ou nada para além
dos apartamentos, dos
A dança dolorosa — em vez de tomar os
múltiplos fármacos que constituem
que duma “moral sexual”) da
juventude britânica,
supermercados, dos bares e das
discotecas, o campo é sempre
dos espectros um verdadeiro tesouro para quem, arriscamo-nos a passar ao lado de muito fechado, muito mais
como Nora, só sobrevive à custa de uma questão que o põe (ao sexo) interiores do que exteriores, e
Um romance construído uma ingestão frenética de Estreiam quase como um trompe l’oeil. quando o campo se abre (num
psicotrópicos, calmantes, Acima de tudo, How to Have Sex é plano que aliás se repete) é para
sobre variantes dos mesmos
temas, permanentemente
excitantes e outros produtos
viciantes.
O caos sexual um retrato de “classe” (a
sensibilidade dos realizadores
dar uma imagem da devastação
turística, uma rua matinal cheia de
reiterados em vozes A autora é muito hábil na da adolescência britânicos a este tema não muda lixo, despojos da noite anterior.
construção de uma narrativa por mais que mudem as gerações), O filme tem que dar a volta por
diferentes. Helena
Vasconcelos
repetitiva e encantatória que num Verão e aquela vila de Creta é como o isto — pela questão cultural — para
revolve em torno das protagonistas,
cada uma com intenções,
grego encontro dos subúrbios das
grandes cidades inglesas — é duma
que o regresso em força do “caos
sexual” no último terço (a
As Herdeiras
interesses e motivações distintos e cultura social, restringida por brutalidade estúpida dos rapazes,
Aixa de la Cruz How to Have Sex, de Molly
totalmente egocêntricos, mas barreiras e horizontes de classe, a fronteira difusa entre o
(Trad. Pedro Rapoula)
D. Quixote ligadas entre si, não só por essa Manning Walker é um retrato que o filme fala, e isso está está “consentimento” e a falta dele,
“herança” amaldiçoada, como de “classe” e isso está está estampado em todas as conversas sobretudo quando há muito álcool
) também pelo desejo de saberem o das personagens, nos empregos a toldar o juízo) surja enquadrado
que levou a avó a praticar um acto
estampado em todas as que projectam ter, nas roupas que por um pouco de “sociologia” (ou
A primeira vez tão avassalador. conversas das personagens. vestem, nas tatuagens, nos gostos de “zoologia”) que tem a
que Nora É este mistério incómodo que Luís Miguel Oliveira que manifestam. As cenas em que inteligência de não se transformar
aparece, neste sustém a narrativa, como se de um o encontro da subúrbia se em prelecção; não se refugiando
romance da policial se tratasse, composto por How to Have Sex — A Primeira
espanhola Aixa cenas que vão sendo narradas Vez
de la Cruz cada uma quatro vezes,
How to Have Sex
(Bilbau, 1988), correspondendo, assim, às
De Molly Manning Walker
vemo-la numa personagens principais. O cenário Com Enva Lewis, Lara Peake, Mia
grande casa a deste drama é a casa labiríntica McKenna-Bruce, Anna Antoniades
remexer em gavetas, caixas e com os seus recantos, espelhos,
Em sala
outros lugares menos visíveis, à cheiros, sombras, memórias, uma
procura e a recolher todos os construção fechada e 
comprimidos que vai encontrando, claustrofóbica que provoca
sob o olhar indiferente de Erica e o diferentes reacções, em que a Primeira obra de uma cineasta
alheamento de Lis, e às escondidas estranheza da situação e, britânica de 30 anos, notada no
de Olivia, que certamente principalmente, o choque festival de Cannes do ano passado
entregaria todo aquele arsenal na permanente entre pessoas (onde ganhou a secção Un Certain
farmácia mais próxima. A autora diferentes nos seus propósitos e Regard), é um olhar curioso, e
estabelece, desta forma e desde o obsessões são acentuados pela minimamente arrojado, sobre o
início, uma forma de “jogo”, presença fantasmagórica da avó, caos sexual do fim da
dançado por estas quatro mulheres cada vez mais intrusiva. adolescência, e ao mesmo tempo
que, como o título indica, herdam a As quatro mulheres escolhem um pouco mais do só isso, a partir
casa de uma avó que decidiu caminhos diferentes, para sempre das aventuras de três miúdas How to Have Sex: os corpos como pequenas máquinas
acabar com a vida. São primas irreconciliadas, mas para sempre inglesas durante umas férias de descontroladas
entre si, duas irmãs mais duas ligadas: Lis, carregando um trauma Verão na Grécia, mais
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ti tura de silêncios e olhares para quatro actores

também na amoralidade. E quase terror; é uma história de famílias,


não se verbaliza, como se Manning mas não é um ajuste de contas; é
Walker puxasse de uma lição do uma fantasia, mas ancorada na
cinema moderno dos anos 50 e realidade; é uma história de amor,
60, e redescobrisse o poder de mas não é um romance
interpelação contido num rosto, o convencional; é uma história de
rosto de Tara (a rapariga virgem), entrada na idade adulta, mas o seu
sempre a esconder mais do que o herói já passou a casa dos 40.
que revela. Adam (Andrew Scott, o padre de
Podemos suspeitar que alguma Fleabag e novo Tom Ripley), o
coisa mudou nela durante aquelas escritor, ficou “parado no tempo”
férias, mas num derradeiro sinal com a morte trágica dos pais
da inteligência da mise en scène, quando tinha 12 anos em 1987, e
aquele extremo último instante do essa é a cicatriz fundadora da sua
filme (a espécie de grito de guerra solidão — uma cicatriz amplificada
com que as três amigas embarcam pelo contexto inglês da altura,
no avião de regresso a casa) sugere onde ainda reinava a discriminação
que se calhar não, e que uma vez para com a homossexualidade,
em casa a vida delas todas mas onde a cultura pop e o
continuará a ser a mesma. activismo LGBTQ abriam caminhos
até então impensáveis.
Mas apesar de ser uma história
sobre crescer homossexual na
Os fantasmas Inglaterra de 1987, Desconhecidos
do passado também não é um filme queer. O
que interessa a Haigh, o que
sempre o interessou, é a empatia
Um dos mais notáveis filmes que não se explica por palavras
dos últimos meses segue mas que se sente, os laços
directamente para streaming. inquebráveis do sangue, o
arrebatamento da paixão, o
Destino ingrato para um
momento em que já não
melodrama seco e conseguimos conter mais o que
devastador na melhor sentimos. A partir de um romance
tradição britânica. Jorge do escritor japonês Taichi Yamada,
Mourinha Haigh explora o desejo de dizer
tudo aquilo que nunca se pôde
Desconhecidos dizer, de reconstruir as pontes que
All Of Us Strangers o tempo se encarregou de destruir,
De Andrew Haigh de tentar corrigir os erros que se
Com Andrew Scott, Paul Mescal, cometeram — e se esta é uma
Jamie Bell fantasia sobre finalmente dizer
adeus ao passado, é também uma
Em streaming
elegia por tudo o que se perdeu,
 cujas contenção e sobriedade estão
infundidas por uma peculiar
Nada pode preparar o espectador melancolia britânica que nos fez
para o que se passa na quinta pensar na Questão de Vida ou de
longa-metragem do inglês Andrew Morte, de Michael Powell e Emeric
Haigh, que os cinéfilos portugueses Pressburger.
recordarão do sublime 45 Anos, Acima de tudo, e confirmando
com Charlotte Rampling e Tom tudo aquilo que já sabíamos de
Courtenay. Porque esta discreta Haigh, Desconhecidos é uma
história de uma solidão delicada partitura de silêncios e
ultramoderna — a de um escritor olhares para quatro actores em
solitário debatendo-se com um estado de graça (que, aponte-se
guião autobiográfico que abre, desde já, são os únicos actores em
inexplicavelmente, um “portal” cena ao longo de todo o filme):
para o passado — recusa confinar-se não apenas Andrew Scott, mas
a uma gaveta. É uma história de também Paul Mescal, a revelação
fantasmas, mas não é um filme de de Aftersun, Jamie Bell (que 
ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 27
) bem cresceu Billy Elliot!) e invasão do Congresso dos EUA em amplamente reconhecidas pelo
Claire Foy, a primeira Isabel II de Janeiro de 2021… grande público mundial, e é aí que
The Crown. Todos impecáveis na É aí que o filme da dupla sueca entra este filme de James Hawes.
modulação emocional que sabem (produzido pelo “agente Anthony Hopkins interpreta o
dar às suas personagens, todos provocador” Ruben Östlund) velho Winton, nos anos 80, o
comoventes no modo como as soçobra: por trás da exposição do momento em que a sua história,
habitam, todos bem servidos pela modo como as imagens podem que ele durante décadas se
câmara de Jamie Ramsay. E todos mentir e do seu apelo à “literacia recusara a publicitar, vem a lume;
dirigidos com sensibilidade por mediática”, está também a e Johnny Flynn interpreta o jovem
um cineasta que se confirma um sensação de que a postura de Winton e as suas corajosas
dos mais talentosos e delicados simples observação, a confiança aventuras (essencialmente
cineastas britânicos que o espectador saiba “decidir” aventuras de organização dentro
contemporâneos. Seria muito fácil por si, é uma esquiva. Ao limitar-se duma burocracia clandestina) na
deixar Desconhecidos escorregar a reafirmar as evidências, ao Praga do final dos anos 30.
para o melodrama ou para o assumir-se como mero “ponto da Digamos que Winton merecia
lamecha; Andrew Haigh evita situação” fazendo perguntas às melhor e mais aprofundado do
todas as armadilhas e quando cai quais não pretende responder, que o filme que Hawes arranca à
nelas é para melhor as destruir, e Máquina Fantástica descamba sua história, um telefilme inerme
arrebata-nos com apenas quatro (mesmo que não fosse essa a que transforma tudo num museu
actores e meia dúzia de cenários. intenção dos seus autores) no — tanto a época antiga como,
Não é preciso mais para fazer um Máquina Fantástica: o poder da imagem para, mais do que registar, activismo performativo — o que ainda pior, a época
grande filme, um dos melhores encenar e/ou manipular a realidade não invalida que as perguntas que contemporânea. Satisfeito com
do ano. faz sejam dignas de consideração. um funcionalismo ilustrativo e
Não podemos terminar esta muito desinspirado, Hawes fica
nota sem um protesto, em tão ofuscado com a “personagem
maiúsculas, para sublinhar a nossa
indignação. VERGONHA ETERNA
As estrelas Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara O “Schindler histórica” que nem repara que não
chega a ter uma personagem de
à Disney por ter decidido que, ao
contrário de inúmeros países
britânico”, cinema (quer o jovem de Flynn
quer o velho de Hopkins são dois
europeus, Portugal não receberia em relato bonecos, este último um pouco
Desconhecidos em sala mas apenas mais colorido apenas pelos tiques
na plataforma Disney Plus.
Amor em Sangue ) —  desinspirado de “grande actor” que Hopkins
Decisão tanto mais inexplicável Desconhecidos ) —  planta na personagem).
face, por exemplo, à decisão de O Faraó Negro, o Selvagem e a Princesa ) —  Nicholas Winton merecia E o filme assim vai de princípio
estrear em sala O Último a Marcar A Flor do Buriti )   melhor e mais aprofundado a fim, como se fosse a passagem a
Ganha, de Taika Waititi (alguém How to Have Sex – A Primeira Vez )   imagens de uma entrada da
reparou? Pois), mesmo que com o do que o filme que James Wikipedia, enfileirando factos e
O Mal Não Está Aqui —)   Hawes arranca à sua história.
precedente de ter atirado Império reconstituições, rumo a um final
da Luz, de Sam Mendes, também Máquina Fantástica ) — — Uma Vida Singular é um lacrimejante (o reencontro de
directamente para o streaming. Mataram o Pianista ) — — telefilme inerme que Winton com uma das crianças que
Está aqui um dos grandes filmes Obrigado, Rapazes —)   décadas antes salvou) que é como
(isto é: objectos de cinema) dos
transforma tudo num museu. uma aplicação do livro de receitas
Ryuichi Sakamoto – Opus  )   Luís Miguel Oliveira
últimos meses, superior a 95% dos do epílogo do Cinema Paraíso, de
títulos que se estreiam Shoshana – A Terra Prometida —)   Tornatore.
Uma Vida Singular
comercialmente no nosso país. É A Terra Prometida —) —  Filmes como este colocam-nos
One Life
criminoso não o podermos ter Vermin – A Praga —)   De James Hawes sempre sob uma espécie de
visto no grande ecrã. Uma Vida Singular —)  — Com Anthony Hopkins, Jonathan chantagem, mas o óbvio é fácil de
Pryce, Helena Bonham Carter, admitir: mesmo que o panorama
 Mau  Medíocre  Razoável  Bom  Muito Bom  Excelente
Romola Garai, Lena Olin mundial não fosse o que é, mesmo
que a extrema-direita não andasse
A culpa é da foi “encenada” em Paris por vemos Leni Riefenstahl, a
Em sala
por aí a galopar a vontade de
Máquina Georges Méliès para um filme
estreado em Londres no próprio
“cineasta de Hitler”, embeiçada
pelo seu próprio trabalho de
) passar uma esponja no
anti-semitismo e nos crimes do
Fantástica dia em que o monarca foi coroado: montagem das cerimónias nazis Uma evocação de Nicholas Winton nazismo, é mais que evidente que
“Esta é verdadeiramente uma de Nuremberga em O Triunfo da (1909-2015), o “Schindler histórias como as de Winton
(ou talvez não) máquina fantástica, que até filma Vontade; ou Sidney Bernstein, britânico”, cujas acções em deviam em qualquer caso ser
aquilo que não pôde ver.” O tema produtor dos filmes realizados vésperas da Segunda Guerra contadas e, se possível, repetidas.
Produzido pelo provocador do filme — que vem, aliás, pelos Exércitos aliados sobre os Mundial puseram a salvo centenas Não há razão é para o fazer neste
Ruben Östlund, um aureolado de vários prémios em campos de concentração na de crianças judias oriundas da didactismo chocho e formulaico,
festivais internacionais — é Segunda Guerra Mundial, a Checoslováquia. Apesar da que quer tanto elogiar que acaba
documentário curioso sobre precisamente esse: o poder da explicar que o modo como as suas bravura de Winton e da magnitude por trair — era Winton, em
a história da câmara de imagem para, mais do que imagens foram rodadas foi do seu feito, trata-se de uma figura primeiro lugar, quem merecia um
filmar e o poder da imagem. registar, encenar e/ou manipular a concebido para que elas fossem e de uma história ainda não objecto mais distinto.
Jorge Mourinha realidade, desde os dias das inatacáveis. Como quem diz que a
trucagens embriónicas do mago propaganda contemporânea em
Máquina Fantástica francês até aos nossos dias de fake nada difere (a não ser na
news (e Danielson e Van Aertryck tecnologia usada e na desfaçatez
And the King Said, What a
só não vão à inteligência artificial dos propósitos) da propaganda
Fantastic Machine
porque o filme data do princípio dos últimos cem anos.
De Axel Danielson e Maximilien
de 2023). Uma vez mergulhado na toca do
Van Aertryck
Documentário Não se espere, no entanto, nada coelho que é a Internet, que ocupa
de original na abordagem: menos praticamente toda a segunda
Em sala
sobre o poder do cinema do que metade, Máquina Fantástica
 sobre o poder da imagem, torna-se num longo e cansativo
Máquina Fantástica, inventário de tudo o que de pior
O título da primeira longa da documentário de montagem com os sites de vídeo regurgitam
dupla sueca Axel Danielson/ curta estreia em sala antes de diariamente; um “ao que isto
Maximilien van Aertryck refere-se entrar na plataforma Filmin, chegou” escarninho que repisa
à câmara — quer a original, contenta-se em fazer um resumo todas as argumentações já
fotográfica, quer a sua das questões que andam a ser esgrimidas sobre a “má
descendência fílmica até aos dias discutidas à saciedade há vários influência” desta sociedade da
de hoje (ler “telemóveis”). A anos. Fá-lo certamente com imagem, às quais não faltam
expressão é também uma citação desenvoltura e inteligência, imagens do Estado Islâmico, de Uma Vida Singular: didactismo chocho e formulaico
do rei Eduardo VII, cuja coroação sobretudo na primeira parte; onde Vladimir Putin, de Kim Jong-un, da
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Câmara Escura Costa), que toca a música desse momento quase de

Vasco Câmara final de filme.


Mais ainda: pertence aos dois, o que foi já assumido
por Kéchiche e permanece cavernoso em Zaïmeche, a

É Rabat Ameur-Zaïmeche o maior possibilidade de terem continuado o cinema de alguém


“do centro”, Claude Sautet, a quem chamaram
“cineasta da burguesia” (mas foi filiado no Partido

cineasta francês em actividade?


Comunista francês). Com esse Sautet dos melancólicos
retratos de grupo de 1971, Max et les ferrailleurs, e de
1974 Vincent, François, Paul… et les autres, viu-se pela
última vez a França retratada com tanta ternura.
Le Gang des Bois du Temple segue o plano de um
Dernier Maquis em 2008, Histoire de Judas em 2015, grupo de fracassados que dão o golpe a um milionário
Sete longas-metragens políticas Terminal Sud em 2019 e em 2022, com estreia em das arábias. Com as memórias do cinema francês
França em Setembro de 2023, Le Gang des Bois du clássico, de Jules Dassin a Jean-Pierre Melville, mas
e de uma poética à espera das Temple — foram recebidas com aprovação crítica, sem que nunca se anuncie o género, encaminha-se o
notoriamente dos Cahiers du Cinéma que colocaram filme para a tragédia noir: incapazes de sobreviverem
manifestações do real. Cinema de fuga aos Dernier Maquis na lista dos melhores de 2008. Passaram ao que planearam e executaram, os membros do
inclusivamente pelas salas e festivais portugueses. Le bandovão sendo eliminados, um a um. Na órbita desse
standards a olhar para o céu. Gang des Bois du Temple chegou mesmo a ser grupo, um ex-militar na reforma que vive no bairro

L
considerado, mas falhou a selecção, para o IndieLisboa. transformar-se-á em sniper, vingador solitário dos que
Mas se só com a estreia de cada um desses títulos, foram dizimados — ele próprio, num final B que foi
e Gang des Bois du Temple (2022) progride como se dizia no podcast Microciné, nos lembrámos filmado e que concluiria Le Gang des Bois du Temple
elegante, silencioso na violência que vive nele, que Zaïmeche existia, nenhum deles foi capaz de com um desespero mais assumido, acabava
subterrânea. Nunca conseguiremos prever em ultrapassar a condição de gota no oceano e tirar toda a assassinado num atropelamento.
que filme se vai tornar, nesse movimento de obra de uma quase confidencialidade. Apesar também Só que esta escultura de “filme de género” assim
animal, ao dobrar de cada esquina de um bairro dos prémios, em Berlim, em Cannes ou em Turim. definida não dá conta do que é poético em Zaïmeche, a
que tem um nome místico, Bois du Temple, no Bégaudeau tem a teoria de que isso convém ao suspensão, a espera, a atenção às coisas do mundo.
subúrbio de Clichy sous Bois, departamento de ex-estudante de Sociologia que é “um anarquista Por exemplo, o canto de Annkrist, cantora e poetisa
Seine-Saint-Denis. É a grande Paris. É esplêndido o filme. consequente” — “Não digo que ele tenha feito tudo para bretã, numa sequência de funeral, que faz o
Clichy sous Bois é o bairro onde, em 2005, ao fugirem ficar nas margens; mas teria ele gostado que fosse de espectador perder decididamente o norte do filme; ou
de um controle policial, dois adolescentes se refugiaram outra maneira?”— e que também dessa forma faz o não saber em que filme está.
num transformador eléctrico, tendo morrido gosto dos fãs: um culto para os happy few, em suma. O plano de abertura de Le Gang des Bois du Temple é
electrocutados — um terceiro ficou gravemente E no entanto, e isto agora é apanágio dos dois, simétrico, 21 anos depois, do que abria Wesh Wesh, qu’est
queimado. A banlieue incendiou-se pouco depois. Os Kéchiche e Zaïmeche filmam personagens das margens, ce qui se passe: uma panorâmica a apresentar um bairro
motins levaram o Governo francês a impor o estado de os imigrantes, os proletários, as pessoas encerradas em social, aquele a que regressa a personagem principal
urgência durante três meses, acontecimentos que guetos de visibilidade, como se pertencessem ao centro. interpretada pelo próprio realizador. Zaïmeche tem
serviram o documentário 365 Jours à Clichy-Montfermeil A utopia do colectivo, como se o cinema preenchesse a presença regular ao longo dos seus filmes. Julgamos que
realizado por Ladj Ly, o realizador premiado com o falta das grandes narrativas políticas, é concretizada de não para trabalhar hipóteses de auto-retrato nem para
Prémio do Júri de Cannes, com Césares e com prémios forma coral tanto pelo realizador de O Segredo de um ir destilando uma persona, mas para meter as mãos na
do cinema europeu por Os Miseráveis, de novo no bairro Cuscuz (2007) como pelo cineasta nascido em Argel. obra colectiva, acto de solidariedade, gesto político.
da mais dilapidada notoriedade. Pertencem também ambos ao que Bégaudeau Por exemplo, ele era expulso de França e regressava à
Le Gang des Bois du Temple nada tem a ver com esses classificou como o grupo dos “místicos do real”. aldeia natal, na Argélia, para se dar conta da violência e
acontecimentos. Mas tem tudo a ver com as Tendendo a concordar, um exemplo, de Dernier do conservadorismo da sociedade argelina e descobrir
expectativas criadas pelo “filme de banlieue”, modelo Maquis: duas personagens falam e a passagem de um que é impossível regressar a casa (o lirismo perdedor
fixado por alturas de La Haine/Ódio (1995), violência, avião desnorteia-as e ao diálogo, que ainda assim de Wesh Wesh..., muito Nick Ray); ou era o patrão de
rap e hip hop, de que Os Miseráveis (2019) ainda continua e o plano não vai para o lixo, é aproveitado; uma empresa que oferecia aos empregados, a quem
aproveita muito juntando-lhe drones, mas é de toda outro, mirífico, em Bled Number One: quando a não pagava salários, uma mesquita para as orações,
essa exuberância que o filme de Rabah personagem principal decide abandonar a Argélia e gesto de delicadeza e de manipulação, um filme social
Ameur-Zaïmeche — é ele, aos 58 anos, o realizador de regressar a França, Zaïmeche integra no plano o e um filme poético (como os Dardenne nunca
Le Gang des Bois du Temple — se afasta. Até porque ele já compositor da banda sonora, o guitarrista Rodolphe fizeram...) juntos: Dernier Maquis. É utópico e
fez o hip hop dividir espaço com o jazz e com Ghetto Burger (acompanhou Jeanne Balibar em espectáculos, simultaneamente cercado. O que é tão emblemático
Child, de Curtis Mayfield. A fuga é, aliás, um e aparece por isso em Ne Change Rien, de Pedro deste cinema em fuga e a olhar para o céu.
movimento central e poético nos filmes do realizador.
Há um ano, no podcast Microciné, François
Bégaudeau, romancista, ensaísta, argumentista de A
Turma (de Laurent Cantet, Palma de Ouro em Cannes
2008), entusiasmava-se, naquele tom negligé de fazer
espectáculo que talvez seja francês: disse que Rabah
Ameur-Zaïmeche, nascido em Argel, é o maior, o mais
importante cineasta francês em actividade. Sobretudo
agora, acrescento nosso, que Abdellatif Kechiche,
francês de origem tunisina, se exilou e/ou foi
cancelado, depois da polémica em Cannes 2019 criada
por Mektoub, Meu Amor: Intermezzo, filme que
entretanto ficou por estrear.
As diferenças entre os dois são notórias. Em Kechiche
vinha acontecendo os filmes começarem a ser
interceptados, raptados, pelo “acontecimento”, até pelo
“escândalo”. Ora, continua a ser discreto, e não podia
sê-lo mais, o percurso de Zaïmeche. As suas sete
longas-metragens — em 2002 Wesh wesh, qu’est-ce qui se
passe?, título que parece um refrão musical a propor a
angústia para uma obra; em 2006 Bled Number One; Le Gang des Bois du Temple, sétima longa-metragem de Rabat Ameur-Zaïmeche, um noir trágico

Esta escultura de “filme de género” assim definida não dá conta do que é


poético em Zaïmeche, a suspensão, a atenção às coisas do mundo ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024 | 29
Acção Paralela Meditação na Pastelaria
António Guerreiro Ana Cristina Leonardo
A crise é o nosso destino A vida é um romanc e
Q E
ue lição nos é dada, que conclusões cidadãos algo tão inevitável que ganha a forma is uma pergunta que gostaria de poder
devemos retirar, quando um governo entra de uma política das coisas, então o que eles têm fazer a Tolstoi e não, não tem que ver
em funções sem poder evocar — e invocar de assumir como a sua principal tarefa política é com a guerra da Crimeia.
— a crise económica e financeira, quando comunicar — comunicar bem. E os cidadãos têm Teria gostado de lhe perguntar: Em
tem dinheiro para criar consenso social? o dever simétrico: escutar bem. que momento decidiu que Anna
A lição principal, aquela que devemos Esta circunstância excepcional que estamos a Karénina se suicidaria na gare de
aprender e integrar nas nossas competências de viver em Portugal faz-nos perceber que a crise é Obiralovka? Concretizando: poderá dizer-se
seres falantes do idioma político em que temos que se tornou a norma, e quando ela se ausenta que o acidente que ocorre no capítulo I do
sido alfabetizados, é a de que é muito difícil entramos no estado de excepção. O dispositivo livro logo à chegada de Karénina a Moscovo, e
governar quando falta a crise como instrumento económico da crise alimenta a política das coisas, do qual resulta a morte imprevista de um
de governo e de poder. Sem esse “dispositivo” a forma de governo de matriz exclusivamente homem esmagado pelo comboio,
(palavra presunçosa que soa sempre a administrativa, a “governamentalidade”. interpretado por ela como um mau presságio,
sofisticado conceito), a máquina governamental Nesta ocasião, em que um governo se vê era já o anúncio antecipado da morte
fica desorientada, sem saber fazer as escolhas obrigado a governar sem crise e em que falta à inevitável da protagonista?
obrigatórias, sem saber que decisões tomar. E oposição o combustível da crise, torna-se De entre os numerosos aforismos e
até a codificada dialéctica que rege as relações evidente que a governamentalidade com que máximas de Mark Twain (o que vem incluído
entre a oposição e o governo fica sujeita a estamos confrontados é, em grau eminente, a na sua Autobiografia, “Suppose you were an
inusitados desvios e inflexões e já ninguém se governamentalidade neoliberal. O neoliberalismo idiot, and suppose you were a member of
entende no meio deste tumulto “a-crítico”, isto visa a crise, regenera-se a partir da crise, é Congress; but I repeat myself”, é não só o meu
é, sem a crise para impor a ordem. Está apoiado e alimentado pela crise, não prospera de favorito, como estou em crer que a sua
instaurada a anormalidade. E o cidadão, tendo outra maneira. Quem não tinha percebido isto actualidade tem vindo a inchar vertiginosa e
entrado no estado de maioridade a partir do antes tem agora, no laboratório português perigosamente), aquele que encaixa como
momento em que aprendeu a falar o idioma da pós-eleitoral, a oportunidade de o perceber de pelica na ideia subjacente a esta crónica é a
crise, regressa à sua condição de infans, isto é, uma vez por todas. Se há dinheiro para distribuir, de que os profetas não necessitam de ter
aquele que não fala. é porque a crise, isto é, a ordem neoliberal, miolos: “A prophet doesn’t have to have any
É certo que a necessidade de consolo que esta produziu sujeitos atomizados e precários, pondo brains” (“… É bom tê-los, claro, para as
ausência de crise provoca pode sempre ser em funcionamento uma forma de controlo exigências mais comuns do dia-a-dia, mas
satisfeita com o recurso à “crise da democracia”. biopolítico. Distribui-se o dinheiro não para não possuem qualquer utilidade no que
Esta, ao menos, está sempre em crise, nunca alterar a ordem, mas para a perpetuar. respeita à vida profissional. [Profeta] É a
conheceu outro estado, e dizer “a democracia já Professores, polícias, enfermeiros e demais vocação mais repousante que existe.
está a morta” ou “a democracia ainda está viva” corporações são reconduzidos à ordem, através Quando o espírito da profecia desce sobre
tanto faz. Ambas as proposições são verdadeiras. A de carícias administradas pela mão invisível da nós, simplesmente congelamos o intelecto,
democracia, como sabemos, custa dinheiro. Logo, violência imanente. Fica reposta a harmonia. colocamo-lo num local fresco para que
se há dinheiro, menos dolorosos são os males de Do lado de grande parte dos analistas e descanse e soltamos a mandíbula deixando-a
que ela sofre e mais leves são os seus sintomas. Mas comentadores políticos, este estado de por conta dela, funcionará sozinha: o
a crise económica e/ou financeira, tendo sempre excepção, a não-crise, é visto como uma espécie resultado é a Profecia” (in A Connecticut
por trás uma mão invisível, não está sujeita a estas de insurreição ou mesmo de orgia. E reclamam: Yankee in King Arthur’s Court).
oscilações, é decretada como um facto e, como tal, é preciso impor novamente a ordem, isto é, Encontrar-se-á a morte de Anna Karénina
responsável por consequências muito governar como se houvesse crise económica e profetizada por Tolstoi logo no capítulo I,
pragmáticas. É nesse momento que a obediência financeira, porque é ela que nos faz seguir o embora ela só morra no penúltimo, o VII?
estrita à “governança pelos números” molda com o curso do mundo. Dizem: governar hoje como se Sendo a pobre mãe adúltera uma criação do
máximo rigor todo o ambiente presente e não houvesse crise é uma imprudência, só vai russo, estaria este no seu pleno direito, sem
projecta-se no horizonte futuro. tornar mais pesada a crise de manhã. Ela é o necessidade alguma de sequer dispensar os
Sem o instrumento da crise, a arte e o modo de nosso destino, o nosso horizonte insuperável. miolos. Mas mesmo ele, na sua condição de
governar ficam bloqueados ou entram num Como dizia o outro, é mais fácil imaginar o fim arquitecto da obra, saberia desde sempre o
desvario, como estamos a assistir, já que o do mundo. fim reservado à amante do conde Alexei
inevitável deixa de ser o recurso para estabelecer Outra lição que nos está a ser dada: a política Kirillovich Vronsky?
um único programa possível, aquele que usa ganhou a feição de análise política e a análise Até para o leitor mais obtuso, capaz, por
como refrão: “Não há alternativa.” O poder de política é cada vez mais a verdadeira política. O exemplo, de resumir a tragédia de Anna a um
tipo soberano é uma velharia que já ninguém que significa que toda a política se tornou caso de consumo excessivo de opióides (há
consegue ressuscitar. Faz parte da arqueologia metapolítica. Daí a dificuldade em percebermos o gente capaz de tudo…), o seu salto mortal na
política. Se os governos só podem propor aos idioma. Somos todos infantes. gare de Obiralovka, ainda que lhe repugne,
fará sempre retrospectivamente sentido à luz
da sequência de acontecimentos e
percepções descritos nas quase 800 páginas
Livro de recitações anteriores do livro.
E se a nós, leitores fascinados pela
“Excedente orçamental” Antropologia, Marcel Mauss, não pode deixar genialidade do russo, nos é impossível
Designação que conheceu nos últimos dias uma de estabelecer uma relação deste “gasto” do imaginar outro desfecho, isso fica a dever-se
inusitada ocorrência no discurso político e jornalístico. excedente orçamental com o “gasto gratuito”, apenas a nos estar interdito alterar o mundo
heterológico, irredutível à economia da da ficção, nem mais nem menos do que nos
Um “excedente” — sobretudo se “orçamental utilidade, dos actos simbólicos e religiosos está interdito alterar os acontecimentos
— não é o mesmo que um excesso. É um erro das tribos da América. Ao “gasto gratuito” passados. E sendo verdade que Anna, a
benevolente e calculado que encontra chamou Mauss potlacht. Nós, civilizados e personagem fictícia, ressuscita a cada vez
reparação numa festa grandiosa. Essa festa mortais, chegámos a um momento raro de que a lemos, o mesmo acontece a Platão
consiste em “gastar”, como se tem dito e potlacht, de festa orgíaca. Outros, mais passados mais dois mil anos, e o grego era de
escrito abundantemente nos últimos dias, a gregos e mais trágicos, fiéis a uma carne e osso.
propósito do destino a dar a esse tal compostura racional, chamar-lhe-ão outra No fim — porventura tarde de mais — tudo
“excedente”. Quem leu um clássico da coisa: embriaguez dionisíaca. fará sentido, descobrindo-se paradoxalmente
que Alberto Caeiro tinha razão e que “o único

FICHA TÉCNICA: DIRECTOR DAVID PONTES EDITOR PEDRO RIOS DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E CLÁUDIO SILVA FOTO DA CA
30 | ípsilon | Sexta-feira 29 Março 2024
Teatro do Bairro Alto

c e, mas não só
sentido oculto das coisas / é elas não terem
ficção parente da literária: com mais ou
menos sorte, mais activos ou mais passivos,
uns dias mais George Samsa, outros dias mais
Quixote, uns dias mais Oblomov, outros dias
mais Jay Gatsby.
Diana Niepce

sentido oculto nenhum”. Podemos até ir ao ponto de nos UTOPIA


Eis o que faz a grande literatura: interrogarmos se somos o imperador que
desocultar (porque não haver sentido sonhou ser uma borboleta ou a borboleta que
oculto difere, em absoluto, de não haver sonhou ser um imperador. Chega, porém, o
sentido tout court). A interpretação é só o próprio Borges e esmaga-nos com a sua 3–4 e 6–7.abr.2024
que vem depois. O que levou Anna Karénina
a pôr fim à vida continuará para sempre
clarividência: “Negar a sucessão temporal,
negar o eu, negar a ordem astronómica são (dança/performance)
sujeito a leituras múltiplas e o cenário por desesperos aparentes e consolos secretos.
onde ela se move manter-se-á complexo, Nosso destino é espantoso, porque é
carregado de luz e sombras. irreversível e de ferro. O tempo é a substância
Os grandes escritores limitam-se ao papel de que sou feito. O tempo é um rio que me
de sismógrafos da realidade — “A única moral arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me
para um escritor é o conhecimento”, afirmava destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que
o austríaco Hermann Broch — e a realidade me consome, mas eu sou o fogo. O mundo
abarca naturalmente o irracional. desgraçadamente é real; eu,
Como bem notou Milan Kundera numa desgraçadamente, sou Borges” ( “Nova
entrevista publicada em 1985 no NYT: Refutação do Tempo” in Outras Inquirições,
“[Tolstoi] é muito mais moderno do que trad. José Colaço Barreiros, Quetzal, 2020).
Dostoiévski. Tolstoi foi talvez o primeiro a Jorge Luis Borges escreveu Nova Refutação
entender o papel do irracional no do Tempo em 1946, vivia-se o rescaldo da
comportamento humano. O papel Segunda Grande Guerra. Nem o seu amado
desempenhado pela estupidez — mas Berkeley seria capaz de contestar os milhões
principalmente pela irresponsabilidade das de mortos e o oceano de destroços que o
acções humanas guiadas por um desvario da espécie acumulara.
subconsciente que é ao mesmo tempo Mas em que poderá o desvario dos homens
descontrolado e incontrolável. Releia as ir mais longe do que foi Flaubert em
12€ M/18
passagens que precedem a morte de Anna Salammbô? Boa pergunta que não nos serve
Karénina. Por que se matou ela sem que de bálsamo. O mesmo para o humor. Fosse
realmente o quisesse fazer? Como nasceu a este um bálsamo eficaz e já teríamos morrido
sua decisão? Para captar essas razões, que de riso ou, pelo menos, imitado o bravo Svejk
são irracionais e evasivas, Tolstoi fotografa e declarado obedientemente estar dispostos a
o fluxo de consciência de Anna. Anna está
numa carruagem, as imagens da rua
abraçar de imediato a vida militar. Ligia Lewis
misturam-se na cabeça dela com os seus
pensamentos ilógicos e fragmentados. O
primeiro criador do monólogo interior não Somos personagens vagabundas A PLOT/
foi Joyce, mas Tolstoi, nessas poucas
páginas de Anna Karenina.” do labirinto do tempo, largando A SCANDAL
Já nós, pobres leitores, corremos como
baratas tontas, desmiolados, sonâmbulos, migalhas na ilusão de um dia
tentando descodificar significados ocultos,
prognosticando futuros, lendo sinais a que
desejamos dar sentido único, pensando
podermos voltar a casa. 20–21.abr.2024
decifrar a “obra total”, enquanto colamos
fragmentos. Somos personagens vagabundas As teorias conspirativas multiplicam-se e o
(dança/performance)
do labirinto do tempo, largando migalhas na atentado terrorista na Rússia veio
ilusão de um dia podermos voltar a casa. E é lembrar-nos que o real salta de onde menos
tal o desnorte e tão agigantado vai o se espera. Não há profetas (ou comentadores
atrapalhamento que apetece implorar por políticos), por maior que seja a sua
compaixão, como no poema de Vinícius em pedalada, que consigam acompanhá-lo.
que se pede piedade até “dos homens Putin abandonou o eufemismo “Operação
públicos e em particular dos políticos / Pela Militar Especial na Ucrânia”. Os EUA vivem
sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos suspensos na próxima eleição presidencial
gestos de mão/ Mas tende mais piedade ainda que poderá fazer regressar Trump à Casa
dos seus criados, próximos e parentes / Fazei, Branca. A Europa fala de “economia de
Senhor, com que deles não saiam políticos guerra” e a ideia de um exército europeu, cuja
também” (in Desespero da Piedade). exequibilidade nos conduz de novo a Svejk,
A realidade não fica atrás de Tolstoi. tem em Macron um defensor generalíssimo.
Ganha-lhe no privilégio de poder persistir na No Médio Oriente, o Irão não terá ficado
constante e eterna mudança. Mas é agradado com a estratégia de confronto do
precisamente essa constante e eterna Hamas, mas são já do ano passado as notícias
mudança que a transforma numa dor de que garantiam que o país teria “capacidade
cabeça (prefiro dor de cabeça à sensaborona para fabricar bomba nuclear em menos de
“narrativa”). Nos tempos que correm, diria duas semanas”. 12€ Classificação etária: a atribuir pela CCE
mesmo mais: a realidade transformou-se E se a realidade fosse uma ficção em que a
numa valente enxaqueca. verosimilhança não constituísse critério,
É verdade que nos podemos imaginar — dar-se-ia agora um desembarque de
talvez o único consolo que nos esteja alienígenas e os próximos capítulos alguém os
disponível — personagens de uma qualquer haveria de escrever.
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