Você está na página 1de 24

Raul Córdula

2019
19/03 A 18/05
OBRA DA CAPA:
Permeáveis – díptico
Tinta acrílica e grafite sobre tela de algodão
150X200cm / 2013
Raul
Córdula
Para Amélia Couto, meu amor;
para Pedro Alb Xavier, minha gratidão.
Raul

19/03 A 18/05
Raul Córdula
sobre tempo, existência e liberdade
Joana D’Arc Lima

A experiência do tempo é a própria aventura humana. Para lugar ao hábito enfadado do “especialista”. Também sendo a
falar sobre o tempo, precisamos usar metáforas, a história, imagem a mais recente e contemporânea,
a física e a arte são campos privilegiados para abordar esse
tema de maneira complexa. Indagado sobre o tempo um an- o passado também não cessa jamais de se reconfi-
cião, dizia cheio de sabedoria, “Quando não me perguntam gurar, pois esta imagem não se torna pensável senão
pelo tempo, sei o que ele é”, “quando me perguntam, não sei”. em uma construção da memória, chegando ao pon-
Então porque fazer a pergunta? (Norbert Elias). Diz Elias que to de uma obsessão. Diante de uma imagem, temos,
ao nos debruçarmos sobre os problemas ou a problemática enfim, de reconhecer humildemente: provavelmente,
do tempo, estamos nos aproximando do humano, dos seus fa- ela sobreviverá a nós, diante dela, nós somos o ele-
zeres, dos espaços, aprendemos sobre nós mesmos e nossa mento frágil, o elemento passageiro, e, diante de nós,
existência. O tempo é nossa existência, é permanência, é si- ela é o elemento do futuro, o elemento da duração.
multaneidade, é invenção da cultura para controlar a natureza. Frequentemente, a imagem tem mais memória e mais
É sobre parte dessa experiência humana que trata o con- porvir do que o ente que a olha.
junto de obras de Raul Córdula, não exatamente como um
historiador faz, mas como um artista, comprometido com Essa imagem, como as demais imagens presentes nes-
seu tempo e com as ruínas e fraturas – alegorias modernas - sa exposição, condensa muitas temporalidades. Diante das
que o projeto moderno anunciava como progresso. O tempo imagens temos que lidar com todos os tempos e camadas
se faz presente na vasta obra do artista como tema, como temporais que ela condensa.
signo mítico, como matéria, materialidade e como aconte- O artista, crítico, ensaísta, professor e ativista político
cimento vital. A meu ver tal proposição, sobre o tempo, se Raul Córdula, em sua vasta obra, seja ela a visual ou a ver-
coloca como questão latente e relevante nesse conjunto de bal, trata sobre a experiência humana e nos fala das muitas
obras selecionadas para essa exposição. Não sei objetiva- temporalidades da existência - essa aventura que nós não
mente explicar as razões disso. Tenho sido tomada por uma conseguimos apreender apenas pela razão, nem tão pouco
intuição que tem corroborado para propor essa questão dar inteligibilidade a ela pela racionalidade pura. O tempo
como fio condutor que tece a narrativa dessa mostra. Além, é matéria prima rara para o artista. O tempo é assunto dos
evidentemente, de me colocar diante das imagens presentes seus textos verbais, dos visuais, das “nossas” conversas
nessa exposição e essas serem carregadas de temporali- contemporâneas: “Tempos Difíceis”. Além, do artista e de sua
dades. Diante da imagem estamos sempre diante do tempo, obra ter se tornando uma testemunha do nosso tempo, por
como sugere Di-di Huberman, “não importa quão antiga –, o sua longa trajetória de trabalho, que se iniciou na segunda
presente não cessa jamais de se reconfigurar, mesmo que metade do breve século vinte e tem atravessando a era dos
o desapossamento do olhar tenha completamente cedido extremos. Ademais, o tempo está impregnado em sua pele.
Assim, nesses tempos difíceis, Raul Córdula nos convida o meio para o fim. Seria como a diferença entre Apolo
a refletir sobre o caminho do conhecimento e do autoconhe- e Dionísio: Apolo é a perfeição, a habilidade, o exercí-
cimento, a própria história da arte (o fazer do artista) e con- cio perene que contem em si mesmo sua finalidade,
textos políticos do campo da política e da arte. Para falar so- Dionísio são as quedas, as feridas no joelho e nas
bre esses percursos eu gostaria de abordar o mito de Sísifo, mãos de quem rola uma pedra montanha a cima, o
tal qual ele foi reelaborado na narrativa do artista, um sonho cansaço e os erros, para na chegada contemplar em-
que recentemente me foi narrado por ele. Disse Córdula bora por um segundo, a beleza da paisagem como um
(2019), que passava a noite construindo uma mesa, prêmio para seu feito. Mas a pedra rola para baixo e o
destino do artista o leva de novo a subir a montanha.
composta de um tampo com três tábuas duas com
100X30cm e uma com 100X10cm, esta pintada de Personagem da mitologia, Sísifo foi condenado pelo
amarelo, que ficava no centro, e as duas mais largas Olimpo, pelos deuses a carregar um rochedo de uma planície
de vermelho e azul profundo. Elas eram montadas até o alto de uma montanha e quando ele alcançava o cume
com parafusos através de duas tábuas de 70X70cm dessa montanha esse rochedo rolava montanha a baixo.
pintadas de preto para formarem o tampo que, por Sísifo tinha então que descer novamente até a planície e com
sua vez, era encaixada num rasgo da parede pela par- um esforço sobre-humano repetir o caminho até o cume, e
te mais fina, e tinha um pé apenas, do outro lado, com assim, infinitamente. Como nos narra Raul, nessa figuração,
70X30 também pintado de preto. Todas as cores eram o mito de Sísifo o levou a refletir sobre o trabalho do artesão
laqueadas, o que lhes dava um brilho agradável aos versus o do artista – tema e debate próprio da história da
meus olhos. Era trabalhoso e eu ficava ansioso para arte, ainda hoje. Em suas considerações, para o primeiro, o
ver este conjunto, que depois seria guarnecido por gesto da repetição é meio e fim simultaneamente, já para o
dois bancos, terminado. Mas, debalde, eu acordava artista é o meio para o fim.
antes da última parafusada. Poucos minutos depois O gesto da repetição estabelece um intervalo de tempo,
lá estava eu de novo construindo a mesa, tabua por para alguns esse espaço é pensado como o trabalho inútil,
tabua, pintura por pintura, parafuso por parafuso e nada mais tedioso e torturante que o trabalho repetitivo. Mas,
como no mito de Sísifo, tudo se perdia quando eu segundo Córdula, é na repetição, talvez na repetição do gesto,
acordava. O mito de Sísifo me leva a pensar no pro- em processo, no tempo que se perde para repetir, que se so-
cesso do artista versus o processo do artesão, se brepõe a tomada de consciência de si, do que se passa nesse
bem que para os gregos essa diferença não contava. intervalo temporal. A experiência é a possibilidade de assimi-
Para o artesão a repetição é meio e fim ao mesmo lar acontecimentos que nos transformem, que nos defrontem
tempo, para o artista não. A repetição para o artista é com dificuldades ou com realizações e digam respeito a um
saber viver, a um aprendizado de vida. Diante disso nossa ima- ria de marcas realizadas pelas civilizações atuais às mais
ginação voa e podemos indagar sobre no que pensa Sísifo remotas no tempo.
quando desce para carregar novamente o pesado rochedo? O conjunto pictórico, de grande dimensão, me pare-
Segundo Albert Camus, que escreveu um ensaio intitula- ceu ousado nesse momento em sua aventura artística.
do O Mito de Sísifo, o momento do retorno de Sísifo à planície, Primeiramente nota-se a presença, em alguns dos exempla-
ao ponto zero, se instaura um tempo de reflexão, criação e res exibidos aqui, de uma paleta cromática pouco usual em
liberdade. Já não mais pedra, Sísifo sente sua potencia de sua manufatura. Embora o azul Raul Córdula insista em invadir
criação. A criação é a atualização das forças em mais ca- nossas retinas, para minha alegria, assim como, algumas re-
pacidade de existir e afirmar: “A própria luta para chegar ao ferências sígnicas e simbologias, se fazem presentes e conti-
cume basta para encher o coração de um homem. É preciso nuam vivas e latentes nessa série, basta citarmos a Serra da
imaginar Sísifo feliz.” (Camus, 2010, 141). Borborema, por exemplo, são representações, que latejavam
Essas dimensões da existência e do tempo podem ser em outras experimentações e outros trabalhos já realizados
sutilmente reconhecidas na reunião dos trabalhos do artista, por Córdula. Mas, outros cromatismos foram adotados pelo
nessa exposição. Há um conjunto de desenhos figurativos/ artista, como o grafite em pó, o marrom e o verde óxido, sobre-
abstratos, relativos a uma ressonância magnética que o ar- maneira nos trabalhos datados em 2019, e, se lançam provo-
tista fez da sua cabeça e, segundo ele, diagnosticou falsa cando um estranhamento no nosso olhar acostumado com a
demência, “com a qual convivo e acho que ela não tem nada pintura do Raul Córdula. A pincelada larga, vasta e rápida tam-
de falsa”. São seus desenhos, vistos dentro da sua cabeça bém está lá e assume o espaço bidimensional, sem se fazer
e de certa forma isso os ligam aos outros trabalhos. São ausente, ao contrário é a marca do gesto e tempo da passa-
aquarelados e apresentam formas geométricas (quadrado, gem da mão do artista. Mas, essa série, nova, nos chama bas-
triangulo e círculo) que se repetem em meio a manchas orgâ- tante atenção por esse deslocamento provocador e inusitado.
nicas cujo controle de sua expansão sobre o papel é um dado Outra delicadeza pictórica que chama atenção, igualmente à
do acaso - como se comporta a matéria sobre seu suporte mudança da paleta de cores, é o uso de um fina e leve camada
– e, a presença de um grafismo solto, desmentido, livre: uma de tinta que o artista deixa escorrer livre sobre a tela, sobre
escritura - língua estrangeira, um caso de devir: “O gesto de outras camadas de pinceladas vastas. Uma estratégia que
escrever como um caso de devir, sempre inacabado, sempre faz com que pensemos que tudo que é sólido desmancha no
em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ar. Há esperança. Nada é fixo, perpétuo e eterno. O vermelho
ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida continua sendo a nossa cor em 2019. Há uma solidão nessa
que atravessa o vivível e o vivido.” (Deleuze,1997, p.11). Um ato exposição. Há uma melancolia também. Mas há uma mão que
amplo que envolve toda a complexidade de Ser no mundo. O nos chama para a ação e um coração que pulsa, tal qual o poe-
conjunto se assemelham à registros que remontam à memó- ma ETERNAGORA. •
série Encéfalos série Encéfalos
Nanquim e guache sobre papel de bambu Nanquim e guache sobre papel de bambu
31X24cm / 2014 31X24cm / 2014
série Encéfalos série Encéfalos
Nanquim e guache sobre papel de bambu Nanquim e guache sobre papel de bambu
31X24cm / 2014 31X24cm / 2014
série Encéfalos série Encéfalos
Nanquim e guache sobre papel de bambu Nanquim e guache sobre papel de bambu
31X24cm / 2014 31X24cm / 2014
Sem título
Tinta acrílica sobre tela de algodão
150X180cm / 2012
Sangria
Tinta acrílica sobre tela de linho
100X150cm / 2018
Bandeira escorrendo
Tinta acrílica sobre tela de linho
90X180cm / 2018
Borborema – sinal no céu
Impressão – edição 1/5
52,5X70cm / 2009
Borborema – sinal no céu Borborema – sinal no céu
Impressão – edição 1/5 Impressão – edição 1/5
30X40cm / 2009 30X40cm / 2009
João Batista e João Evangelista – díptico
Tinta acrílica sobre telas de algodão
120X160cm / 2015
João Batista e João Evangelista – díptico
Tinta acrílica sobre telas de linho
80X200cm / 2019
Rupestre – Pedra do Ingá
Estêncil e tinta acrílica sobre tela de linho
90X180cm / 2019
Rupestre
Estêncil e tinta acrílica sobre tela de linho
100X80cm / 2019
Borborema – paisagem (a montanha e a nuvem) Borborema – paisagem (a montanha e a nuvem)
Tinta acrílica sobre tela de algodão Acrílico e granito
62X119cm / 2018 60X40X35cm / 2014
ETERNAGORA
Estêncil e tinta acrílica sobre tela de algodão
150X180cm / 2019
Artista Curadoria Designer

Raul Córdula Joana D’Arc Lima Pedro Alb Xavier

Projeto Gráfico Apoio


Rua da Moeda, 140, Bairro do Recife
Recife, PE, cep. 50030 - 040, Tel 81 3424 4431

www.artepluralgaleria.com.br

Você também pode gostar