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Desenhado para aquele Momento1

John Berger

Recentemente, quando meu pai faleceu eu fiz vários desenhos dele em seu
caixão. Desenhos de seu rosto e cabeça.
Existe uma história a respeito de Kokoschka ensinando numa aula de modelo
vivo. Os estudantes não estavam inspirados. Ele então falou ao modelo e o instruiu a
simular um desmaio. Quando este desmaiou, Kokoschka correu até ele, escutou seu
coração e anunciou aos estudantes chocados que ele estava morto. Pouco depois o
modelo ficou em pé e retomou a pose. “Agora desenhem-no”, disse Kokoschka,
“como se soubessem que ele está vivo e não morto!”
Podemos imaginar que os estudantes, após essa experiência teatral, desenharam
com muito mais vigor. Contudo, desenhar a morte de fato envolve um senso de urgência
ainda maior. O que você está desenhando nunca mais será visto por você ou por
qualquer outro. No curso do tempo transcorrido e no que está por vir, esse momento é
único: a última oportunidade de desenhar o que nunca será visível de novo, o que
aconteceu uma vez e nunca mais acontecerá.
Tendo em vista que a faculdade da visão é contínua e as categorias visuais
(vermelho, amarelo, escuro, espesso, fino), permanecem imutáveis, e que tantas coisas
parecem permanecer em seus lugares, nós tendemos a esquecer que o visual é sempre o
resultado de um encontro momentâneo que não se repete. As aparências, num dado
momento, são como uma construção que emerge dos destroços de tudo que
anteriormente aparecera. É assim que eu entendo essas palavras de Cézanne que tão
freqüentemente retornam a mim: “Um minuto na vida do mundo está passando. Pinte-o
como ele é.”
Ao lado do caixão de meu pai, eu convoquei todo a habilidade que pude como
desenhista para aplicar diretamente a tarefa que tinha diante de mim. Eu digo
diretamente, pois a habilidade em desenho se expressa freqüentemente como uma
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Drawn to that Moment, in Berger on Drawing. Occasional Press, 2nd Edição, Irlanda, 2007. Primeira
publicação New Society Magazine, 1976. [Tradução para a disciplina O desenho e seus percursos,
PPGAV/UFRGS, prof. Flávio Gonçalves. Os números entre colchetes ao longo do texto se referem à
numeração das páginas na publicação original].
maneira, e, assim, sua aplicação ao que está sendo desenhado é indireta.
O Maneirismo – num sentido geral, mais do que no sentido que a história da arte
lhe dá – vem da necessidade de inventar a urgência, de produzir um desenho ‘urgente’,
ao invés de se submeter à urgência que se apresenta. Aqui, eu estava usando minha
pouca habilidade para salvar uma aparência, como um salva-vidas usa
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sua habilidade muito maior de nadador para salvar uma vida. As pessoas falam do
frescor da visão, da intensidade de ver algo pela primeira vez, mas a intensidade de ver
pela última vez é, creio eu, muito maior. De tudo o que eu vejo, apenas o desenho
permanecerá. Eu fui o último a olhar para o rosto que eu estava desenhando. E eu chorei
enquanto me esforçava para desenhar com completa objetividade.
Enquanto eu desenhava sua boca, suas sobrancelhas, seus cílios, e enquanto suas
formas específicas emergiam com as linhas da brancura do papel, eu senti a história e a
experiência que as fizeram como elas eram. Sua vida era agora tão finita quanto o
retângulo de papel em que eu desenhava, mas dentro dele, de um modo infinitamente
mais misterioso que qualquer desenho, seu caráter e destino emergiram. Eu não estava
fazendo mais que um registro, mas seu rosto já era um registro de sua vida. Cada desenho
nada mais era, então, que o local de uma partida.
Esses desenhos perduraram. Eu olhei para eles e descobri que eles se pareciam
com meu pai. Ou, mais precisamente, eles se pareciam com meu pai como quando ele
estava morto. Ninguém poderia confundir esses desenhos com os de um velho
dormindo. Porque não?, eu pergunto a mim mesmo. E a resposta, penso eu, está no
modo como foram desenhados. Ninguém desenharia um homem dormindo com tal
objetividade. Nessa qualidade há também finalidade. A objetividade é o que resta
quando algo está acabado.
Eu escolhi um desenho para emoldurar e o pendurei na parede em frente a mesa na
qual trabalho. De forma gradual e consistente, a relação do desenho com meu pai mudou
– ou mudou ao menos para mim.
Existem muitas formas de descrever essa mudança. O conteúdo do desenho
cresceu. O desenho, ao invés de marcar o local de uma partida, começou a marcar o
local de uma chegada. As formas desenhadas foram preenchidas. O desenho tornou-se
o locus imediato de minhas memórias de meu pai. O desenho não era mais deserto,
mas habitado. Para cada forma, entre as marcas do lápis e o branco do papel que elas
marcam, existia agora uma porta através da qual momentos de uma vida poderiam
entrar: o desenho ao invés de ser simplesmente um objeto de percepção com
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uma rosto, projetara-se para tornar-se uma dupla face e funcionar como um filtro:
por de trás ele perpetuou minhas memórias do passado, enquanto pela frente ele
projetou uma imagem que, de modo imutável, estava tornando-se cada vez mais
familiar. Meu pai retornou para dar à imagem de sua máscara mortuária um pouco de
vida.
Se eu olho para o desenho agora, mal posso ver o rosto de um homem morto; ao
invés disso, eu vejo aspectos da vida de meu pai. Contudo se alguém do povoado chega,
o que vê é apenas a máscara de um homem morto. O que de forma inequívoca o
desenho é. A mudança que se operou é subjetiva. Contudo, de modo geral, se tal
processo subjetivo não existisse, os desenhos também não existiriam.
O advento do cinema e da televisão faz com que agora definamos desenhos (ou
pinturas) como imagens estáticas. O que esquecemos freqüentemente é que essa é a sua
virtude, a sua verdadeira função depende disso. A necessidade de descobrir a câmera, o
instantâneo ou a imagem em movimento surgiu por diferentes motivos, mas não para
aprimorar a imagem estática; se isso foi colocado em tais termos, foi apenas porque o
significado da imagem estática se perdera. No século dezenove, quando o tempo social
tornou-se não-linear, vetorial e regularmente intercambiável, o instante tornou-se o
máximo que se poderia apreender ou preservar. A câmera para filme em chapa e o relógio
de bolso, a câmera reflex e o relógio de pulso eram invenções de sucesso. Um desenho ou
pintura pressupõem uma outra visão do tempo.
Qualquer imagem – como a imagem lida na retina – registra uma aparência que
irá desaparecer. A faculdade da visão desenvolveu-se como uma resposta ativa às
contingências que continuamente se modificam. Quanto mais ela se desenvolve mais
complexo é o conjunto de aparências que ela pode construir a partir dos eventos. (Um
evento em si não possui aparência). O reconhecimento é uma parte essencial desta
construção. Ele baseia-se no fenômeno da reaparição que ocorre, por vezes, no fluxo
incessante da desaparição. Assim, se as aparências, em qualquer momento, são
construções que emergem dos escombros de tudo que aparecera previamente, é
compreensível que essa
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construção possa gerar a ideia de que tudo será reconhecível um dia, e o fluxo da
desaparição cessará. Tal idéia é mais do que um sonho pessoal; ela tem fornecido
energia para uma grande parte da cultura humana. Por exemplo: a história triunfa sobre
o esquecimento; a música oferece um centro; o desenho desafia a desaparição.
Qual é a natureza desse desafio? Um fóssil também “desafia” a desaparição, mas o
desafio é sem sentido. Uma fotografia desafia a desaparição mas seu desafio é diferente
daquele do fóssil ou do desenho.
O fóssil é o resultado do acaso. A imagem fotografada foi selecionada para
preservação. A imagem desenhada contém a experiência do olhar. Uma fotografia é a
evidência de um encontro entre o evento e o fotógrafo. Um desenho questiona
lentamente a aparência de um evento e, ao fazer isso, nos lembra que as aparências são
sempre uma construção com uma história. (Nossa aspiração rumo a objetividade apenas
pode progredir da admissão da subjetividade) Nós usamos as fotografias, nós as levamos
conosco, em nossas vidas, em nossas discussões, em nossas memórias. Trata-se mais de nós
do que delas. Considerando que um desenho ou uma pintura nos forçam a parar e a
penetrar em seu tempo, uma fotografia é estática porque ela parou o tempo. Um
desenho ou pintura são estáticos porque eles abrangem o tempo.
Eu deveria, talvez, explicar aqui porque faço uma certa distinção entre desenhos e
pinturas. Os desenhos revelam o processo de seu próprio fazer, seu aspecto de forma mais
clara. A facilidade de mimese de uma pintura freqüentemente atua como um disfarce, isto é,
aquilo ao qual ela se refere torna-se mais impressionante do que a razão mesmo de referir-se.
Grandes pinturas não são disfarçadas desse modo. Mas mesmo um desenho de quinta
categoria revela o processo de sua própria criação.
Como um desenho ou pintura abrange o tempo? O que ele encerra em sua placidez?
Um desenho é mais que um memento – um dispositivo para trazer de volta as memórias do
passado. O “espaço” que meu desenho oferece para o retorno de meu pai é diferente
daquele oferecido por uma carta sua, um objeto
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que tenha pertencido a ele, ou, como tentei explicar, por uma fotografia sua. E, nesse
caso, é incidental que eu esteja olhando para um desenho que eu mesmo tenha feito. Um
desenho equivalente feito por qualquer outro ofereceria o mesmo “espaço”.
Desenhar é olhar, examinando a estrutura das aparências. Um desenho de uma árvore
não mostra uma árvore, mas uma árvore-sendo-olhada. Assim que o olhar sobre uma árvore
é registrado, quase que instantaneamente o exame desse olhar sobre uma árvore (uma
árvore-sendo-olhada) toma não apenas uma fração de segundos, mas minutos ou horas; o
que envolve, deriva e se refere a muitas experiências prévias do olhar. Dentro do instante da
visão de uma árvore se estabelece uma experiência de vida. É desse modo que o ato do
desenho refuta o processo de desaparição e propõe a simultaneidade da multiplicidade de
momentos.
A partir de cada relance, um desenho reúne uma pequena evidência, pois ele consiste
da evidência de muitos olhares os quais podem ser vistos em conjunto. Por um lado, não há
visão na natureza mais imutável do que a de um desenho ou pintura. Por outro, o que é
imutável num desenho consiste de muitos momentos agregados que constituem uma
totalidade mais do que um fragmento. A imagem estática de um desenho ou pintura é o
resultado da oposição de dois processos dinâmicos. Desaparecimentos opostos por
agregação. Se, por conveniência diagramática, aceitamos a metáfora do tempo como um
fluxo, um rio, então o ato de desenhar, por dirigir-se corrente acima, atinge o estacionário.
A visão de Vermeer da cidade de Delft através do canal, mostra isso como nenhuma
explanação teórica seria capaz de fazer. O momento pintado permanecera (quase) imutável
por três séculos. Os reflexos na água não se moveram. Contudo este momento pintado,
como o olhamos, possui uma plenitude e realidade que raramente experimentamos na vida.
Nós experimentamos tudo o que vemos naquela pintura como absolutamente momentâneo.
Ao mesmo tempo, a experiência é repetível no dia seguinte ou em dez anos. Seria ingênuo
supor que isso tenha a ver com precisão: Delft em
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momento algum jamais se pareceu com aquela pintura. Isso tem a ver com a
densidade, por milímetro quadrado, do olhar de Vermeer; com a densidade, por milímetro
quadrado, de momentos agregados.
Como desenho, o desenho sobre minha mesa é absolutamente normal. Mas ele
funciona com as mesmas esperanças e princípios que nos levam a desenhar por centenas de
anos. Ele funciona porque, sendo um local de partida, ele tornou-se um local de chegada.
A cada dia, mais da vida de meu pai retorna para o desenho diante de mim.
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