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Porto, 2022
Para o meu pai.
RESUMO
Palavras-chave:
Criação artística
Farol
Inquietação
Materialização do íntimo
Sofrimento
ABSTRACT
Art History exists, objectively, to allow the attempt to understand art through time. In this
scope, as much as it goes through different points, it works as a moderator of the present,
revealing characteristics that, according to each period, were distinct and influential. In
light of this, some of the most revered artists have based and base their art on intimate
restlessness: such as Beethoven with his troubled childhood and his deafness, Spielberg
with the anti-Semitism experienced by his family and himself, and Frida Kahlo with her
never-walled suffering exposed in vivid paints. Without the intimate, therefore, there
might not have been a Symphony No. 9 evoking joy, a Schindler's List underlining
empathy as a colossus, and what are perhaps the most visceral self-portraits possible. It
is through this perspective that, throughout this text, we will seek to detail this
materialization of the intimate. To do so, we will consider the work of the contemporary
artist Paulo César — still unknown to the art system — who has all his work centered on
the structures of lighthouses. In the light of Proust's conception about the appropriation
of life by art, the work of the mentioned artist will be conducted in parallel to
Schopenhauer's The World as Will and Representation, attesting to the role of art as the
privileged way to know and overcome suffering. Finally, by including a detailed
interview with Paulo César himself according to Schiller and the possibility of exercising
freedom through pain and moral resistance, we intend to value the look at human
complexity through what is most human in a work: the human being who created it.
Keywords:
Artistic creation
Lighthouse
Materialization of the intimate
Restlessness
Suffering
POR MEIO DA DOR E DA RESISTÊNCIA MORAL:
um olhar sobre a inquietação na arte de Paulo César1
Em 2020, o filme Horse Girl, realizado por Jeff Baena, havia me chamado a
atenção por trazer uma protagonista propositadamente distanciada da depressão e, a partir
de uma aparente normalidade, promover um mundo a desmoronar. A questão, porém, é
que tudo no universo daquela obra parece convergir para uma natureza além-física da
existência: do início, ao ver-se uma tesoura a cortar um tecido que imageticamente passa
a ser o céu — passando pelo desenvolvimento, com citações diversas a uma série de
televisão chamada Purgatório, a favorita da personagem principal, — ao fim, que carrega
uma simbologia que parece um comentário crítico sobre a realidade, esta que sempre está
disposta a arremessar pedras no desconhecido.
Proust, aliás, diz sobre do que é feita a obra de arte no volume 7, O Tempo
Redescoberto, da obra Em Busca do Tempo Perdido, afirmando (em primeira pessoa) que
a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada; que tudo
me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na ternura, na
dor, e eu acumulara como a semente os alimentos de que se nutrirá
a planta, sem adivinhar-lhe o destino nem a sobrevivência. Como a
1
Algumas de suas artes foram fotografadas pelo próprio artista e gentilmente enviadas para comporem o
Anexo II deste ensaio.
2
Exposição realizada no espaço cultural Mahalila Café durante o mês de novembro, em Natal/RN, Brasil.
semente, poderia morrer uma vez desenvolvida a planta, para qual
vivera sem o saber, sem nunca imaginar que minha vida devesse
entrar em contato com os livros que sonhara escrever e cujo assunto,
quando outrora me sentava à mesa de trabalho, buscara em vão
(PROUST, 2013, p. 76)3.
É como se Paulo César contivesse uma semente alimentada pela dor de uma
depressão e que, a partir da descoberta de um caminho, de um remédio efetivo na
manutenção de sua existência, fizesse crescer uma planta capaz de frutificar
indefinidamente. Não obstante, vem à tona a resistência moral do artista em relação à
tragédia, esta que, segundo o crítico literário Anatol Rosenfeld (1996, p.54) ao analisar
Friedrich Schiller, tem a capacidade de representar sensivelmente o suprassensível.
Assim, o artista dá sinais de que a depressão permanece como parte de si, como doença
que é, mas o trabalho desempenhado desde 2000 a transforma a seu favor, em um universo
para além do seu íntimo. Enquanto Arthur Schopenhauer (2001, p.338) diz que “a vida
de cada um de nós [...] é uma verdadeira tragédia”, sendo “a dor sempre gasta em vão” e,
assim, carrega “o sofrimento que vai aumentando”, os faróis pintados e construídos por
Paulo César podem ir de encontro ao filósofo alemão ao demonstrar que não: a dor não
precisa ser em vão; ela pode ser transformada. Como Ludwig van Beethoven, já
completamente surdo, ao compor uma ode à alegria em sua nona sinfonia, o artista dos
faróis busca por meio de sua arte uma ruptura do sofrimento. Essa ruptura surge a partir
de um trabalho que, à primeira vista, pode parecer simplório, mas, como dito, é uma
3
Obra lida em formato digital.
4
Entrevista por escrito concedida por Paulo César. [dez. 2022]. A entrevista na íntegra encontra-se no
Anexo I deste ensaio.
simplicidade ilusória. Isso porque ela carrega os sentidos de um homem comum (talvez e
novamente de maneira ilusória) que tem como maiores desejos artísticos os
reconhecimentos mais despretensiosos. Diz ele: “Que meus faróis possam ser vistos como
obras de arte e que façam comentários sobre eles” (PAULO CÉSAR, 2022).
Ainda sob essa perspectiva, Paulo César parece consciente de sua condição por
mais que o resultado de sua arte seja uma transmutação do seu íntimo e, dessa forma,
contenha muito do seu inconsciente. Friedrich Schiller (2011, p. 30), na obra Do Sublime
ao Trágico, afirma que
De tal modo, parece-me ser autêntico perceber os faróis como o “Eu não físico”
de Paulo César, pois é neles que, a princípio, o artista apoia-se por um auxílio metafísico
quando se vê abandonado de sua expressão enquanto ser. Isso posto, é de se pensar, talvez,
o conjunta da obra de Paulo César como sendo uma sequência de autorretratos, porque,
quando o eu passa a ser fisicamente invisível devido à doença da depressão, a
sensibilidade pode transformá-lo e pô-lo à distância, no ver-se. Até que, em algum
momento, perceber-se-á que o temido eu é, na verdade, quem se deve procurar.
Essa relação é provavelmente explícita quando Paulo César diz que “[o] farol é a
vida que se vê ao longe, é a salvação para quem está perdido na imensidão do mar, é a
luz que brilha infinitamente e que traz de volta a calmaria e tranquilidade” (PAULO
CÉSAR, 2022).
Ora, existe a questão de que os faróis são, precisamente, construções sem vida
própria. Para além dessa questão, as obras de Paulo César possuem, na verdade, uma
ausência completa de vida animal (seja humana ou não). Nesse âmbito, mesmo assim,
existem elementos que parecem evocar a presença — ou a existência — humana, como
uma luz acesa, uma casa ou um barco: elementos que aproximam uma estrutura concreta
e inanimada à existência de vida. O próprio mar, quando pintado, parece ter uma vida
própria, seja em seu estado turbulento ou, em outra instância, ao chocar-se violentamente
contra um farol, como se o quisesse despertar.
Há de se pensar na temeridade de um mar turbulento a chocar-se contra o farol:
Até que ponto aquela estrutura aguenta tamanha violência contra si? O quanto pode ser,
por outro lado, aquele choque a natureza da contemplação? Por outro caminho: Quanto o
artista tem consciência de que seu trabalho é virginal a ponto de, diferente de Frida Kahlo
com seus dolorosos autorretratos, ser invisível de si enquanto corpo?
O grau de completude na arte de Paulo César parece traçar um paralelo fiel entre
Proust e Schiller enquanto põe em xeque (pela subjetividade da questão, jamais xeque-
mate) parte do que é dito por Schopenhauer. Se Proust (2013, p. 73) assegura que,
deve ser plausível entender o conjunto da obra de Paulo César como uma tradução fiel de
si, do seu íntimo. Não há uma invenção em sua criação, mas a externação de um eu que
é sublime porque é temível e, ao mesmo tempo, nenhuma temeridade é despertada. Essa
condição é verdadeira, segundo Schiller (2011, p. 32), porque “o objeto sublime tem de
ser temível, mas o temor efetivo ele não pode despertar. O temor é um estado de
sofrimento e violência [...]”. Na contramão, Schopenhauer (2001, p. 338) afirma que
5
Herói da mitologia grega que mata o monstro Quimera com somente um golpe.
6
Monstro mitológico derrotado por Belerofonte.
BIBLIOGRAFIA
BAENA, Jeff (Diretor). (2020). Horse Girl. In Jeff Baena, Alison Brie, Alana Carithers
(Produtores). EUA: Duplass Brothers Productions.
PAULO CÉSAR. (2022). Entrevista sobre os faróis/Entrevistador: Pedro Henrique Felix
Barbosa (Sihan Felix).
COPPOLA, Francis Ford (Diretor). (1974). The Conversation. In Francis Ford Coppola
(Produtor). EUA: Paramount Pictures.
PROUST, Marcel. (2013). Em busca do tempo perdido 7: o tempo redescoberto (Lúcia
Miguel Pereira, Trad.). São Paulo, SP, Brasil: Editora Globo.
ROSENFELD, Anatol. (1996) O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo,
SP, Brasil: Editora Perspectiva.
SCHILLER, Friedrich. (2011). Do sublime ao trágico. (Pedro Süsseking e Vladimir
Vieira, Trad.). Belo Horizonte, MG, Brasil: Autêntica Editora.
SCHOPENHAUER, Arthur. (2001). O mundo como vontade e representação (M. F. Sá
Correia, Trad.). Lisboa, Portugal: Editora Contraponto.
ANEXO I
SIHAN FELIX: Como começou nas artes? Algum momento específico da vida?
Algo estava acontecendo? E o mundo passava por quais situações?
PAULO CÉSAR: Tive depressão profunda no início do ano 2000. Minha esposa,
que sempre esteve ao meu lado, perguntou se eu gostaria de aprender pintura. Eu disse
que sim e ela me matriculou em um curso. Frequentei durante dois meses e descobri esse
meu caminho.
S. F.: Sempre pintou faróis? Se sim, de onde veio essa, digamos, fixação? Se não,
quando começou a pintar faróis e por que decidiu por eles?
P. C.: Comecei a pintar paisagens e cavalos, que também gosto muito. Mas
sempre gostei de faróis e o que eles significam para mim. O farol é a vida que se vê ao longe,
é a salvação para quem está perdido na imensidão do mar, é a luz que brilha infinitamente e que
traz de volta a calmaria e tranquilidade
S. F.: Se o farol fossem pessoas, quem elas seriam? Como elas seriam?
P. C.: Seriam pessoas iluminadas transmitindo vida e esperança para todos. Um
exemplo, bem próximo, seria a sua mãe.
S. F.: Suas pinturas de faróis têm uma total ausência de seres humanos. Mesmo
assim, existem elementos que evocam a presença humana, como uma luz acesa do próprio
farol, uma casa, um barco... todos são elementos que aproximam a estrutura concreta e
inanimada do farol à vida. O próprio mar, quando pintado por si, tem uma espécie de vida
própria. O que pensa sobre isso?
P. C.: Basta olharmos para o farol para que ele nos transmita vida. Talvez por isso
tudo que está presente na pintura faça imaginar a presença do ser humano.
S. F.: Ainda sobre a questão anterior, essa vida expressa nos detalhes está também
nas cores das pinturas, todas coloridas, bem saturadas, distantes da frieza por mais que o
mar e as águas sejam azuis. É premeditado? Você busca essa vida também nas cores?
P. C.: Sim, claro. Cor é vida, é brilho, faz-nos sentir felizes, com esperança e
focados em um futuro promissor
S. F.: Quando começou a pintar, tinha algum desejo enquanto artista? E hoje, há
algo que lhe falta?
P. C.: Não tinha desejo como artista. Como disse antes, comecei a pintar porque
estava passando por um momento muito difícil. Depois, com a ajuda de minha esposa e
dos meus filhos, fiz exposições. A vontade de continuar pintando só cresceu. Mesmo hoje,
passado dos 70 anos.
S. F.: Como você gostaria que suas pinturas fossem vistas pelos visantes?
P. C.: Que meus faróis possam ser vistos como obras de arte e que façam
comentários sobre eles.
ANEXO II