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CASA DE BONECAS, CASA DA DOR:

OBJETOS TRÁGICOS E SUA NARRATIVA DE TEMPOS INSONDÁVEIS NA


OBRA DE FARNESE DE ANDRADE

Anteprojeto de pesquisa de doutorado pertinente à linha de pesquisa em História e Crítica da Arte do


Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da EBA/ UFRJ

Luis Claudio Moutinho Rocha

JUSTIFICATIVA
Morrer. Dormir. Não mais. É um sono apenas.
-Willian Shakespeare, Hamlet

Marcado por uma experiência trágica na infância (seus irmãos foram tragados por uma
enchente em Minas Gerais) e, posteriormente, chocado com o efeito das bombas que se
abateram sobre Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial, o artista brasileiro
Farnese de Andrade (1926-1996), dedicou uma vida a concretizar de forma plástica a
existência da dor e do sofrimento que é imposta a todos os seres humanos sobre a face da
Terra.
As assemblagens de Farnese beiram o inexplicável. Como na esfera dos sonhos, tão
prezada pelos surrealistas, elas não copiam a realidade, mas recriam uma inteiramente nova.
Contemplar os objetos do artista é se deparar com imagens fantásticas, oníricas, é ser invadido
por uma sensação de estranheza só comparável ao nos encontramos, face a face, com o
enigmático, com o inesperado, mas ao mesmo tempo com o obscuro, com o monstruoso da
existência. É, para o artista, a realização estética da sua visão fantástica e pessimista da vida,
essa vida que para ele, tal qual a Esfinge de Édipo, parece exigir de todos o seu “decifra-me
ou te devoro”.

“(...) imagens que não suportaríamos em sua existência original, depois de


reelaboradas pelo artista, adquirem uma nova e positiva dimensão, e
oferecem uma dimensão vizinha à da alegria, o prazer que resulta por força
da beleza.”1

1
JÚNIOR, Olívio Tavares. Vídeo Farnese. Encartado no catálogo Farnese, São Paulo: Cosac & Naify, 2002
Este projeto pretende voltar seus olhos as assemblagens do artista mineiro Farnese de
Andrade, detendo-se no que talvez sejam os componentes mais inquietantes das suas caixas,
oratórios, e resinas: as bonecas. Escolhidas pelo artista como simulacros trágicos do destino
humano, essas bonecas, que dentro do imaginário coletivo, a despeito de serem relacionadas a
certa pureza de infância, carregam uma aura sinistra e inegavelmente mórbida. Ao
conhecermos mais profundamente o processo artístico de Farnese, no qual ele alegava muitas
vezes adentrar um transe ritualístico (no qual incinerava e enxertava essas bonecas em seus
suportes, o que já confere a elas um estofo fantasmático e sobrenatural), ao nos depararmos
frente a frente com elas, caberá a pergunta: o que nos dizem os seus imóveis olhos vítreos de
cadáver?
Assim, dissecando esses objetos, este trabalho pretende trazer a luz o caráter trágico
dessa coleção de bonecas, ao mesmo tempo em que, possivelmente, relaciona essa coleção
com a de outros artistas, como Arthur Bispo do Rosário (cujas assemblagens “para o fim do
mundo”, também continham essa tragicidade), as bonecas mutiladas do artista alemão Hans
Bellmer, ou até mesmo até mesmo com a literatura, como “O Homem da Areia” de
Hoffmann, ou “Frankenstein” de Mary Shelley (seria essa “caça” as bonecas de Farnese, por
praias e antiquários, a mesma busca do Dr. Victor Frankenstein por pedaços frescos de
corpos?), dois romances notoriamente trágicos.

“Mas penso que existe em sua obra essa constante - o restabelecimento,


pelos trabalhos de arte, de sentimentos opressivos não podem encontrar
superação, já que permanecem presos a um passado que se atualiza apenas
enquanto dor.”2

Farnese, por ter uma produção que seguiu ao largo da matriz geométrica que
predominava na arte brasileira de sua época, não galgou, por muito tempo, a notoriedade
merecida a sua produção tão instigante. Minha monografia da graduação, sobre a poética
romântica em Farnese de Andrade e, posteriormente, meu mestrado em Literatura, onde
pesquisei a genealogia de narrativas, literárias e cinematográficas, onde um protagonista se
apaixona por um simulacro (incluindo aí, principalmente, bonecas), me fizeram ensejar essa

2
NAVES, Rodrigo. A Grande Tristeza, in: Farnese. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. pp.17
pretensa pesquisa. Volto-me sempre, e apaixonadamente, a produção de Farnese, tendo escrito
inclusive, um tempo atrás, um ensaio com o mesmo título desse projeto3.
Tendo sido então, Farnese, objeto desta minha pesquisa, que abraçou a questão de
como a melancolia romântica vai perpassar quase incólume todo o processo de racionalização
dos Modernismos, e conseguirá se cristalizar, conceitualmente e poeticamente, num artista
brasileiro da contemporaneidade (que ainda, em pleno auge das produções concretistas
brasileiras, estava no contrário da maré, preocupado em uma produção confessional,
enigmática, de caráter irracionalista). Devo admitir que, mais que calcado numa familiaridade,
meu critério de escolha foi feita baseada no fascínio mesmo pelas obras do artista.

No entanto, diferentemente do meu anterior escrutínio, este ensaio tem a pretensão de


se ater, de dar voz mesmo, a este objeto específico, e mais que recorrente, em sua produção
artística: bonecas abandonadas e destruídas. Utilizando, em grande parte de suas obras, estes
“brinquedos” (simulacros de criança, paradigmas da infância, ao qual a criança empresta a
fala ao brincar com elas), que o artista, muitas vezes, num ritual particular, as mutilava e
calcinava lentamente para só depois as inserir em suas caixas e redomas de resina; este texto
pretende se agarrar, sem perder de vista alguma pulsão poética, a estas bonecas: seres que não
falam, mas tem voz, não respiram e no entanto pulsam. Na poética do artista, entretanto, elas
não servem a outro propósito que não para representar a fragilidade dos corpos humanos
fadados a destruição e agonia, corpos destinados a morte súbita ou lenta, horrenda e injusta,
que a vida impõe, incondicionalmente, a toda criatura que nasce, mas que o próprio humano
potencializaria, pois é o único ser vivo que se preocupa em voltar suas energias para tornar
infeliz a existência dos outros.

3
http://lounge.obviousmag.org/no_escuro_alguma_falena/2014/07/casa-de-bonecas-casa-da-dor.html
DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA

A pesquisa parte do pressuposto que a produção de Farnese, seja por conta do


isolamento auto imposto do artista, seja porque essas obras não coadunavam com a arte
vigente do período, foi muitas vezes, se não invisibilizada, colocada em segundo plano na
época.

Essa pesquisa lhe dedica um olhar mais detido e afetivo (como eram afetivos os
próprios objetos do artista).

Assim, este projeto se vale das bonecas, como um dos objetos mais intrigantes dessas
obras, para jogar luz sobre certos conceitos do trabalho de Farnese de Andrade, e com isso
trazer à tona toda a profundidade de uma série de objetos que merecem figurar dentre as mais
potentes e instigantes produções da arte brasileira.

HIPÓTESE

Ao escolher bonecas que encontrava abandonadas em suas andanças, ou adquiridas em


antiquários, o artista, cujo discurso paradoxal transitava entre o pessimismo radical e a
compaixão quase budista4, as utilizava como símbolo, e simulacro, desse corpo humano
trágico. Mas, para além disso, essas bonecas também falam de tempo: de narrativas que se
depositaram sobre elas - como se depositam as camadas de pó - antes e depois do labor do
artista. Ao contrário do que muitos alegam, essa obra (e suas bonecas por excelência), ao
denunciar toda nossa dor, toda nossa fragilidade, falam também de nascimento, de vida
portanto. As obras de Farnese de Andrade, que passavam ao largo de determinado positivismo
dos artistas de sua época, eram tristes, mas belas em sua tristeza (como ressaltou Rodrigo
Naves), pois que carregam em si a tessitura da própria vida.

4
No documentário “Farnese” de Olívio Tavares de Araújo, em determinado momento o artista afirma que
detestava crianças, pois elas eram fonte de desassossego e perturbação na vida, para mais adiante dizer que
achava um ato crueldade colocar uma criança no mundo, e impor a esse ser, a miríade de sofrimentos de que a
vida é constituída.
OBJETIVOS

Objetivo geral
O objetivo geral desta pesquisa é empreender uma leitura dos objetos de Farnese de
Andrade sob uma ótica de tragicidade, sobretudo as bonecas que ele inseria em suas
assemblagens. Mergulhar nessa produção que inegavelmente se aferra ao sombrio, aos
recônditos da existência humana, se valendo desses simulacros de plástico com
representações deste corpo frágil e destinado à morte e ao sofrimento. Essa pesquisa pretende
refletir sobre essa mórbida coleção, para no fim, entender que a obra de Farnese de Andrade
fala mais de vida que de qualquer outra coisa.

Objetivos específicos:
 Reconhecer, e ler, as bonecas de Farnese como uma coleção melancólica e trágica;
 Adentrar no caráter mórbido e ritualístico da inserção dessas bonecas em seus objetos;
 Dar voz a essas bonecas: o que elas falam? O que presenciaram nesse tempo
insondável em que andaram abandonadas? Que saudades trazem?
 Confluir sua produção com outras, seja de artes visuais ou não, com as quais essas
bonecas, formal ou simbolicamente, possam conversar, para assim reafirmar Farnese
com um artista de seu tempo.

METODOLOGIA
Pretendo utilizar fontes escritas, livros e periódicos, já publicados sobre a obra do
artista. Além disso, almejo visitar acervos e coleções que contenham a obra do artista para
coletar impressões in loco destes objetos de estudo (fazendo fotografias, se possível). Tenho a
intenção de entrevistar teóricos e pesquisadores que em algum momento se detiveram sobre a
produção de Farnese. Recolhido esse material, selecionado e depurado, será possível dar
corpo ao projeto proposto.
Ofélia, 1985

Assemblage (resina, braço de santo de roca, imagem impressa e oratório), 87,5 x 46,5 x 35,5 cm
Museu de Arte Moderna de São Paulo
Anjo de Hiroshima, 1968-1978

Resina, bonecas de plástico, mandíbula de animal, 72 x 23,5 x 23,5 cm

Coleção particular, São Paulo


BIBLIOGRAFIA INICIAL

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Disponível em: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/c aderno09-02.html. Acesso em: 24
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• PERIÓDICOS

GOMES, Alair O. Farnese: o Espaço do Sonho. In: Revista Cultura nº 7. Brasília: Ministério
da Educação e Cultura, julho a setembro de 1972
• VÍDEO

JÚNIOR, Olívio Tavares. Farnese. Encartado no catálogo Farnese, São Paulo: Cosac & Naify,
2002

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