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O elemento esotérico no surrealismo tardio de Remedios Varo1

El elemento esotérico en el surrealismo tardio de Remedios Varo

Carlos Eduardo de Oliveira Silva Cassiano2

Resumo: O presente artigo busca analisar obras selecionadas de Remedios Varo,


tentando pensar em que medida nessa artista, vida e obra fundem-se de tal modo que é
impossível fazer uma apreciação do seu trabalho sem considerar traços pessoais.
Tenta-se ainda identificar em suas pinturas, signos e artífices mágicos de modo a
demonstrar as influências sofridas por Varo a partir das ciências ocultas, ou filosofias
herméticas, experimentada pela artista ainda em vida.
Palavras-chave: Remedios Varo; Surrealismo; Logicofobista; Esoterismo; Gurdjieff.

Resumen: Este artículo busca analizar obras seleccionadas de Remedios Varo, tratando
de pensar en qué medida en esta artista la vida y la obra se fusionan de tal manera que
es imposible hacer una apreciación de su obra sin tener en cuenta hechos personales de
su vida. También intentaremos identificar en sus pinturas, signos mágicos y artesanos,
con el fin de demostrar las influencias sufridas por Varo desde las ciencias ocultas, o
filosofías herméticas, vividas por la artista en vida.
Palabras clave: Remedios Varo; Surrealismo; Logicofobia; Esoterismo; Gurdjieff.

***

Introdução
Há dois polos nas obras de Remedios Varo que ultrapassam os métodos
artísticos da época, criando certo anacronismo3 que tenciona uma dialética de duas
perspectivas aparentemente opostas, a surreal e a renascentista. Nas obras de Varo, essa
demonstração do mundo surreal, a partir de formas criadas pela própria artista e também
por suas formas humanóides que, muitas vezes, não apresentam um gênero definido,
algo sempre trabalhado por ela, encontram também suporte em signos mágicos e
esotéricos, o que será demonstrado, ou ao menos tentado, ao longo deste artigo. Essa
demonstração, essa porta para o surreal, busca refúgio, no entanto, em métodos e
técnicas adotadas em escolas de pintura renascentistas de modo que é possível verificar
uma dialética entre uma perspectiva harmônica, buscando dar lugar às telas materiais,
linhas mais retas e um acabamento mais regrado em suas pinturas, mas sem deixar de

1
As investigações acerca deste trabalho é fruto de uma pesquisa maior: Benjamin Péret e o Brasil:
tensionamentos entre estética, antropologia e política. Onde o autor é bolsista, orientado pelo Prof. Dr.
Pedro Hussak Van Velthen Ramos.
2
E-mail: kadu.ce66@gmail.com. Instituição: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(ICHS/UFRRJ). Curso: Licenciatura plena em Filosofia Linha de pesquisa: Estética/Filosofia da Arte
Agência de Fomento: CNPq/PIBIC-UFRRJ Orientador: Pedro Hussak Van Velthen Ramos; Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (ICHS/UFRRJ)..
3
Ver: PINTO, B. M. B. “Janela para o irreal: anacronismo em Remedios Varo.” p. 1-3.

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lado o desregramento, ou até mesmo uma suspensão lógica dos sentidos, advindos da
estética surrealista. Toda a obra varoniana sofre influência direta de seu cotidiano, sendo
sempre reflexo de sua vida, seja de maneira literal ou não. Como explicitado em uma
análise feita pelo psicanalista Alejandro Martini em El labirinto de las fantasias, as
obras de um/a autor/a não podem ser entendida em sua completude, a não ser que faça
um rastreamento da sua vida para só então emitir um juízo em perfeito estado.
Inquestionavelmente, a compreensão da arte não pode ser limitada à simples
dedução iconográfica da obra. O traçado biográfico da artista, bem como as
correlações que buscam estabelecer entre a fantasia e o trabalho, permitem
compreender as motivações mais profundas que motivam o ser humano a
criar arte.4

Vida
María de los Remedios Varo Uranga (1908 – 1963)5, conhecida artisticamente
apenas como Remedios Varo, nasce em Anglés, província de Girona na Espanha em
1908, chegando na família em um momento delicado, pois sua irmã havia morrido
recentemente, o que mais tarde fez com que ela acreditasse que seus pais a enxergassem
como uma substituição dela, percepção essa infundada como se revelou mais tarde. Sua
mãe era profundamente religiosa e, quando a filha nasce, dá-lhe um nome consagrado à
Virgem dos Remédios como forma de agradecimento e proteção da tão desejada filha,
agora única mulher entre dois irmãos, e também como uma maneira de acalento à perda
da primeira. O pai de Remedios Varo era engenheiro hidráulico, circunstância que
obrigou a família a estar em constante viagem não apenas pelo país como também para
fora dele, como um período em Marrocos, África. A profissão do pai tem papel
fundamental na formação da artista, pois desde cedo ela brincava com suas ferramentas,
desenvolvendo fácil aptidão ao desenho e também à geometria, de modo que solicitou a
seu pai para que entrasse na Academia San Fernando, em Madri, cidade onde a família
instala-se posteriormente. Essa problemática de enxergar-se como uma substituição da
irmã perdida, essa exposição à cultura mundial devido às viagens que o trabalho do pai
proporcionou e a sua criação um pouco conservadora por parte da mãe graças à
educação católica recebida em sua infância, reflete diretamente na sua criação artística

4
Ver: MARTINI, Alejandro. “Remedios Varo: El laberinto de las fantasias”, p. 88.
5
Em algumas biografias consultadas para a confecção deste trabalho, foram observadas algumas
divergências com relação ao nome da artista, no entanto, neste artigo usaremos o nome disponibilizado
por Walter Gruen, companheiro de Varo, no site oficial da artista.

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de, como se fosse certa rebeldia, fluindo em toda sua obra. Observa-se que quando ela
transpõe esses sentimentos às telas, faz o uso de artifícios místicos para representar tais
sentimentos. Misticismo, ocultismo e outras palavras que façam referências às ciências
ocultas, são termos que se encontram facilmente quando falamos da artista, pois como
dito anteriormente, algumas de suas questões familiares refletem diretamente em sua
obra, buscando em “outro mundo”, em uma esfera mais imaterial, já com a influência
surrealista em sua vida, elementos que possam transpor para esse mundo, através de
suas telas, todas essas questões e angústias.
Desde cedo, Remedios Varo é apresentada ao mundo das artes e assim também
aos mundos fantásticos que foram sendo criados pelos artistas ao longo do cânone da
história da arte. O Museu do Prado, localizado na cidade de Madri, exerce papel
fundamental em sua vida e é também lá que, em sua juventude, tem contato com artistas
como Goya, Bosch e El Greco. O mundo pictórico desses artistas, que viveram no
classicismo das artes, mas que buscavam também formar a concepção de mundos
extraordinários em suas obras, é algo que marca o movimento surrealista e também lhe
marcará. Essas experiências estéticas vivenciadas por ela, como o simbolismo presente
em Bosch, o sentimentalismo melancólico em Goya, marcará presença nas suas obras,
principalmente em sua fase madura. No entanto, enquanto nesses artistas vemos uma
visão mais romântica do mundo, por assim dizer, em Varo o enfoque é a sua jornada de
descoberta de si, um aprofundamento no inconsciente.
Uma das primeiras exposições de renome que Remedios Varo faz, é com o grupo
Logicofobista, marcando também sua primeira aparição de fato no movimento, entrando
em contato com outros membros do grupo surrealista, como Dalí. Ainda que tenha
estudado na Academia de Belas-artes de San Fernando, por onde já havia passado
nomes como de Pablo Picasso (1881 – 1973) e o próprio Salvador Dalí (1904 – 1989),
Remedios Varo só assume sua posição ante a estética surrealista já fora da academia.
Assim que se muda para Barcelona com seu marido, Geraldo Lizárraga, após um
período em Paris, conhecido ainda na academia Real de Belas Artes, a artista faz
amizades do círculo artístico da cidade e dentre eles, Esteban Francés, com quem divide
estúdio e que posteriormente irá integrar com ela o grupo Logicofobista. Ainda em
1936, o relacionamento de Remedios Varo e Geraldo desmancha-se. Ela apresenta-se na

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exposição Logicofobista, e é também nessa época que ela conhece o poeta surrealista
Francês Benjamin Péret. Em 1937, eles retornam à França.6

Autorretrato, 1951 (Fig.1)

O Grupo Logicofobista
O surrealismo expande-se para além do grupo que o fundou em meados dos
anos de 1920, marcando presença também na Espanha com um grupo específico de
artistas que viria a se denominar O Grupo Logicofobista7 cuja primeira formação
contava apenas com artistas catalães, como Joan Massanet, Joan Miró, Salvador Dalí,
Esteban Francés e também Remedios Varo, que apresenta pela primeira vez na
exposição com nome homônimo ao grupo. Há também artistas que se juntam ao grupo
posteriormente, vindos de outros lugares da Espanha, como Ángel Ferrant, de Madri.
Eles reúnem-se após uma visita do poeta surrealista francês Paul Éluard, que teria ido ao
país para uma série de conferências e também para a inauguração da exposição de
Picasso em Barcelona, patrocinada pelo grupo da Amics de l’art nou, ou ADLAN
(MASET P. JOSEPH; et. al); o grupo se decompõe logo após a primeira exposição por
interferência da guerra civil já eclodindo na Espanha.
Abaixo uma das obras expostas por Remedios Varo na exposição Logicofobista:

6
Ver: <https://www.remedios-varo.com/biografia/ e
<https://www.greelane.com/pt/humanidades/artes-visuais/biography-of-remedios-varo-4773891/>.
7
Ver:
<https://museusdesitges.cat/en/exhibitions/logicofobistes-1936-el-surrealisme-com-revolucio-de-lesperit>
.

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L’AGENT DOUBLE (EL AGENTE DOBLE), 1936 (Fig.2)

Não se sabe ao certo o motivo de os artistas catalães optarem por denominar o


grupo como “Logicofobista” e não surrealistas advindos de uma segunda geração que
surge logo quando Breton publica, em 1928, Le surréalisme et lapeinture (O
surrealismo e a pintura). No trecho explicitado abaixo, está parte final do Manifesto
Logicofobista, veiculado como texto de apresentação na própria exposição e assinado
por alguns membros e apreciadores como o crítico Magí Cassyanes:
Porque o ideológico responsável por tudo isso, assim como por tantos outros,
abatimentos espirituais, era tão odiado que agora se chama Lógica, ora sonho
e bom senso. É por tudo isso que nos proclamamos furiosamente
logicofobistas.8

Ainda que não ficasse explícito os reais motivos, caso exista, da denominação do
grupo, vê-se um interesse e uma agitação real por parte dos artistas que estavam no
entorno surrealista que pairava na Espanha pouco antes da eclosão da guerra. Perto da
realização da exposição, Remedios Varo escreve a Marcel Jean, artista e escritor francês
que já integrava o grupo surrealista parisiense. Eles conheceram-se em meados de 1935,
em uma viagem que o francês fez à Barcelona. Mais tarde, é com ele que ela partirá na
empreitada de “Cadáveres esquisitos”9 que ganha agora a modalidade da colagem. A
técnica de Cadavre Exquis, usada por ela, é análoga à técnica usada nos princípios do
jogo na área da escrita. Aqui, no entanto, substitui a subversão das palavras, pela

8
Ver em: <https://www.diba.cat/web/opc/logicofobistes-presentacio>. (Tradução do autor).
9
Cadáveres esquisitos (do francês cadavreexquis, i.e., cadáver delicioso) é um jogo coletivo surrealista,
inventado por meados de 1925, ainda no contexto inicial do grupo surrealista francês. O jogo consiste em
subverter o discurso literário convencional, fazendo uma perturbação das regras ortográficas.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cad%C3%A1ver_esquisito>.

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justaposição das imagens que, a princípio, onde não há apenas uma arbitrariedade entre
os objetos, em seu resultado, um efeito de fricção imposto sobre eles, produz um sentido
por completo ou parcial, a respeito disso diz Max Ernst:
[...] a aproximação de dois (ou mais) elementos de natureza aparentemente
oposta sobre um plano de natureza oposta à deles, provoca as mais violentas
deflagrações poéticas.10

E mais adiante:
Desta forma, percebemos que quanto mais arbitrário era o encontro dos
elementos, mais certamente se produziria - através da centelha de poesia que
dali jorraria - uma mudança completa ou parcial no sentido dos objetos.11

Cadavre Exquis A, 1935 (Fig.3)

Posteriormente, no ano da exposição, Remedios Varo escreve a Marcel:


Caro Marcel, uma exposição coletiva de pintura e escultura está sendo
realizada em Barcelona com os elementos mais próximos do surrealismo que
foram encontrados. Eles pediram a mim e a Esteban [Francês] nossa
colaboração e exibimos algumas pinturas com eles, já que aqui no momento
não há elementos absolutamente surreais suficientes para formar um grupo.
Mas queremos que saibam que, por se tratar de um grupo que não é
absolutamente surreal, estamos à margem e somos totalmente independentes
dele [...] aceitamos toda a vossa disciplina e estamos dispostos a assinar os

10
Ver: ARBEX. Márcia. “Palavra de artista ou como decifrar uma obra surrealista”, p.221.
11
Idem, p. 221.

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vossos manifestos, e nós gostaríamos de continuar em contato com você e


acompanhar suas atividades.12

É em alguns meses mais tarde, ainda em 1936, que a guerra civil instala-se de
fato na Espanha, fazendo com que o grupo decomponha-se e seus integrantes tenham
que buscar auxílio e exílio em outros países. É também na cena do grupo Logicofobista
que Remedios Varo conhece seu segundo companheiro, Benjamin Péret, que também
lutou na guerra civil espanhola e juntos exilam-se em Paris. Nesse período, Varo
participou de algumas importantes exposições, agora com o grupo surrealista parisiense,
como a exposição internacional do surrealismo, em Tóquio, 1937. Além disso, expõe
também na Galeria de Belas Artes em Paris, 1938 e em 1940 na Galeria de Arte
mexicana. Nesse meio tempo, conhece Leonora Carrington, unindo-se a ela em uma
amizade que perdurará todo o período de vida da pintora no México.

México, surrealista por excelência

Você era surrealista antes de chegar ao México?


— Sim.
(Entrevista inédita de Remedios Varo)13

Toda a obra de Remedios, como já dito anteriormente, é marcada por questões


pessoais. Durante toda sua infância, muda-se com a família constantemente por conta do
trabalho do pai, na maturidade isso ainda persiste. Quando a artista foge da Espanha, em
um cenário civil caótico, a fim da busca de um lugar melhor para exercer seu ofício, a
pintura, ela instala-se na França com o pensamento de que estaria ali em um cenário
ideal para produzir. No entanto, isso muda com a invasão nazista na França, em 1940,
quando Varo se vê mais uma vez obrigada a fugir, exilando-se com Perét em 1941, para
o México, país surrealista por excelência, segundo o próprio Breton (1938), onde
Remedios Varo encontra a tão sonhada paz que a ajudará a desenvolver seus trabalhos
até o fim de sua vida.

12
Ver: KAPLAN, Janet. Viajes inesperados: el arte y la vida de Remedios Varo, p. 44.
13
Ver: CASTELLS, Isabel. Remedios Varo: cartas, sueños y otros textos, p. 68.

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Vim para o México em busca da paz que não tinha encontrado, nem mesmo
na Espanha - a da revolução - nem na Europa - a da luta terrível - para mim
era impossível pintar entre tanta inquietação. 14

É no México onde de fato Remedios Varo desabrocha profissionalmente, mesmo


que sua fase madura seja concebida, por muitos especialistas, no período parisiense, é
só nas Américas que ela encontra o sossego que procurava para produzir. A partir de
então, além da pintura, ela começa a dedicar-se a trabalhos também comerciais, como
design de móveis com Marc Chagall e passa também a fazer designs publicitários da
casa Bayer. Embora as pinturas sejam seus trabalhos mais conhecidos, a artista também
flerta com outras artes, como a escultura e a fotografia. Além disso, há também seus
escritos como cartas, receitas esotéricas e sonhos transcritos que foram publicados tanto
em vida, como postumamente. Esses sonhos e essas receitas são, talvez, o que
posteriormente veio a ser a causa do título que Remedios recebeu La bruja del
surrealismo mexicano, junto de outras duas mulheres surrealistas, a também pintora e
amiga de exílio no México, Leonora Carrington e a fotojornalista húngara e amante de
Ernest, Kati Horna. Posteriormente, Remedios Varo e Leonora Carrington chegam até a
escrever uma peça teatral15 cujo objetivo, no entanto, era apenas o divertimento de
ambas e não a publicação dessa obra que está alojada nos arquivos de Gruen. Em
Cartas, Sueños y otros textos16, a escritora Isabel Castells descreve o conteúdo da peça,
mostrando a grande complexidade presente na formação dos cenários descritos pelas
autoras e também a caracterização enigmática das personagens, atribuindo um grau
maior de autenticidade. Fica evidente que a artista não faz uma distinção de graus entre
suas modalidades artísticas, pois a escrita, assim como a pintura, constitui uma parte
importante na poética varoniana. Em uma entrevista especial transcrita17, ela relembra
que escrever para ela é como traçar um esboço.

O esotérico varoniano
A criação de Remedios Varo permitiu que ela tivesse acesso a uma educação um
tanto quanto controversa. Enquanto sua mãe e avó a fizeram estudar em um colégio de

14
Idem, p. 68.
15
Ver: BOLIO, Mendoza, Edith. “El santo cuerpo grasoso”, 2008. p. 224-243.
16
Ver: CASTELLS, Isabel. Remedios Varo: cartas, sueños y otros textos, p. 67-69.
17
CASTELLS, Isabel. Remedios Varo: cartas, sueños y otros textos, p. 68.

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freiras, seu pai, entusiasta das ciências liberais18, fazia indicações e dava à filha livros
dos mais variados assuntos e dentre eles, a filosofia. Remedios Varo inverte o gosto pela
filosofia tradicional e passa a apreciar obras de filosofias herméticas e também de
autores do esoterismo oriental, como George Ivanovich Gurdjieff, considerado mestre e
filósofo hermético, contando ainda com as influências de autores da literatura como
Edgar Allan Poe, Aldous Huxley e Julio Verne. A década mexicana19 é o que se pode
pensar como o período de afirmação da artista no mundo das artes, isso porque, é
quando ela concentra a maior produção de suas obras e é daí também que surgem as que
ganharam mais notoriedade.
George Gurdjieff é talvez um dos nomes que mais aparece junto ao nome de
Remedios Varo quando pesquisamos arte e ocultismo. Isso porque, se Gurdjieff não é o
maior mestre hermético do século XX, com certeza o seu nome encontra-se entre os
maiores e mais conhecidos. Em seus ensinamentos, o mestre propõe a existência de um
quarto caminho para o ser, traçando um caminho teórico e prático quando começa a
buscar conhecimento. Assim que adquire sua maioridade, ele parte para o extremo
oriente de modo a compreender melhor o que entende como a fonte. A partir daí o
mestre esotérico começa a fundamentar suas doutrinas e a recrutar alunos pelo caminho
de sua jornada, posteriormente, ele acabaria por se estabelecer no sul da França,
mudando posteriormente para Paris até a data de sua morte em outubro de 1949. Em sua
jornada, Gurdjieff faz amigos que depois tornaram-se seus sucessores, como Peter
Ouspensky que é quem leva créditos por espelhar a doutrina também fora da Europa.
No meio dessa dupla, surge Rodney Collin, estudante das teorias do mestre Gurdjieff,
sob os olhares de seu mestre, Ouspensky. Collin consegue, no fim de toda essa jornada,
estabelecer uma maior aproximação na cosmovisão de seu mestre e Gurdjieff, levando
as teorias para as Américas, mais especificamente ao México. Talvez seja a partir dele
que Remedios Varo e alguns outros integrantes do grupo surrealista exilado no México,
como Leonora Carrington, a entusiasta e financiadora de boa parte do grupo, Eva
Sulzer,20 tenham tido contato com a filosofia de George Gurdjieff. O que ele buscava, e

18
Neste trabalho adotaremos o entendimento por “Ciências liberais” ou “Artes liberais” herdados da
antiguidade clássica, reverberado até a idade média, culminando no triviume também no quadrivium.
Consultar: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Artes_liberais> e <https://www.remedios-varo.com/biografia/>
19
Compreendida por muitos críticos pelo período entre 1953 – 1963.
20
Segundo Gruen, Remedios nunca participou ativamente do grupo de estudos esotéricos, fazendo com
que Eva se filie ao grupo, para a partir dela obter o que se era ensinado.

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assim também seus sucessores, era sobretudo uma consciência além da que nos é
apresentada, uma espécie de consciência deliberativa, para o mestre, não era algo inato
aos seres humanos, a humanidade ainda estava em um processo de construção, tendo
assim dois trabalhos inacabados: a construção individual e em seguida, uma construção
social coletiva. Infelizmente, Gurdieff morre sem conseguir finalizar seu trabalho, mas
deixando ainda um grande legado que Ouspensky e Collin encarregar-se-iam de levar
adiante21.
O quarto caminho, apresentado pelos ensinamentos de Gurdjieff, seria um
método alternativo para conhecer a si mesmo, não precisando exatamente seguir os
métodos já pré estabelecidos, como o método físico, emocional e intelectual, mas que,
no entanto, o trabalho evolutivo desses métodos, também culminariam inevitavelmente
no quarto caminho, o conhecimento de si mesmo. Para o mestre, conhecer a si mesmo é,
antes de tudo, conhecer o universo. No trabalho pictórico de Remedios Varo, esses
temas aparecem de forma corriqueira. Um exemplo disso é a obra Encuentro, 1959 que
nos mostra uma figura sentada, encarando a caixa, onde há outra figura. Ela encara a
figura na caixa, com uma feição de indiferença, remetendo-nos ao que seria uma visita
já corriqueira. O que é interessante aqui, é que, nessa obra, a figura em questão leva-nos
claramente a enxergar a face da própria artista, olhando-lhe, como se a caixa assumisse
a posição de um espelho, ou a alusão a uma situação de autoconhecimento. O que
também acontece em Visita al pasado, de alguns anos antes, 1957, onde a pintora parece
viajar para dentro de si, mas agora não só em uma situação de autoconhecimento, como
também como rememoração de figuras da sua vida, como sua mãe e sua avó, que
exerceram papéis de força em sua vida.

21
Ver: <https://ggurdjieff.com.br/ensinamentos/>.

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Encuentro, 1959 (Fig.4). Visita al pasado, 1957 (Fig. 5).

Quando nos referimos a um esotérico varoniano, decerto fazemos assim


porque a artista parece criar uma categoria de elementos esotéricos, buscando também
aportes naturais, orgânicos, além do metafísico. Assim como ela faz com a estética
surrealista, que emprega em suas obras, a pintora, no campo do esoterismo, não se
prende somente aos conhecimentos sensoriais metafísicos, transcendendo não apenas ao
campo do surrealismo22, como também ao esoterismo23. Ora, a visualidade de Remedios
Varo busca não somente um encontro com si mesma na linha do esoterismo, como
também um plasmar do mundo físico, aportes e elementos para metamorfosear as
criações de suas pinturas fantásticas, seus mundos irreais, mundos outros. Ao chegar no
México, ela e Perét, enxergam uma necessidade de constituírem um grupo de artistas
exilados, isso porque existia certo distanciamento entre os exilados europeus e o
establishment que havia no país no momento em questão24. Talvez essa organicidade
tenha fluído melhor em seu momento de refúgio-exílio, ainda que tenha optado por não
se valer da estética das artes pré-colombianas e dos mitos e lendas mexicanas25, mesmo

22
Ver: LOUSA, MIKOSZ. “Imagens de exílio a pintura esotérica de Remedios Varo”, p.1800-1808.
23
Vale salientar que o entendimento de esoterismo presente nesse trabalho, vai de encontro com a
terminologia empregada na Europa do século XVII, como sinala o historiador e estudioso do tema,
Antoine Faivre: “A partir de dentro, interno”.
24
Ver: PINTO, B. M. B. “Janela para o irreal: anacronismo em Remedios Varo.” p.4.
25
Ver: <https://www.remedios-varo.com/biografia/>

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que as admirasse, preferindo trabalhar elementos da natureza nas suas obras. É possível
verificar esse uso também tanto na pintora mexicana Frida Kahlo, quanto na obra de
outras mulheres surrealistas, como Leonora Carrington. Pode-se concluir que o uso
destes elementos venham diretamente da influência do cenário cultural e geográfico
mexicano.
Esses aportes que Remedios Varo apropria-se, como o uso de elementos
naturais, são amplamente trabalhados por ela em toda sua criação. Vemos em sua obra
uma construção de outro mundo, um mundo metafísico, mas sempre sendo
metamorfoseado por elementos orgânicos, do mundo natural. Observa-se também, em
algumas obras, o uso de máquinas, ou algo que lhes remeta, como em Exploração das
fontes do rio onírico (1959) e também em Nave astral (1960). Faz-se necessário trazer à
luz essas duas obras por dois motivos: o primeiro é mais uma vez a presença familiar do
rosto presente nas figuras, que lembra claramente o rosto da própria artista; o segundo é
a presença dessas formas que remetem às máquinas anteriormente citadas. A junção
desses dois signos faz-nos recorrer a uma época da vida da artista em que ela sempre faz
questão de deixar claro que a incomodava muito, a transitoriedade por vários lugares.
Nessas obras, fica claro que as figuras estão indo a alguns lugares, no entanto, o lugar
para qual o meio de transporte a está levando nunca fica claro, sendo sempre um
mistério. Essas metáforas estão fortemente presentes nas obras de Remedios Varo, pois,
no início deste trabalho ficou evidente o problema que ela tinha com essas viagens,
sentindo-se sempre como se fosse uma fugitiva. Em As máquinas analógicas de
Remedios Varo26, a autora Juliana Michelli, chega à conclusão de que essas máquinas
servem como articuladoras de conhecimento entre arte, ciência e técnica, no imaginário
da artista, enxergadas além de seu sentido utilitário e passando a ser usadas como
transportadoras de conhecimento.

26
Ver: OLIVEIRA DA SILVA, Juliana Michelli. “As máquinas analógicas de Remédios Varo”, p. 70-72.

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Exploración de Las Fuentes Del Río Onírico, 1959 (Fig.6) Nave Astral, 1960 (Fig.7)

Conclusão
De fato, em seu exílio no México, Remedios encontrou a verdadeira paz que
necessitava para pintar, ainda que em todas as suas viagens, ela não deixasse de fazê-lo.
Os trabalhos de Remedios, como explicitado ao longo deste trabalho, demonstram a
busca incansável por autodescoberta, estudiosa da filosofia hermética que ela usa a seu
favor junto da estética surrealista, encontrando o seu próprio conceito de Maravilhoso e
seu próprio acesso a ele, mas não se distanciando daquele bretoniano27. Conforme a
proposta do surrealismo, um movimento cujo fim é reencantar o mundo, longe de toda e
qualquer razão engendrada na sociedade, ainda que considerada uma adepta tardia ao
movimento, Remedios Varo faz jus a essa proposta. Em constante busca pela sua paz,
por meio de elementos únicos que ela plasma em suas obras a partir de seus estudos, ela
cria outros mundos, como se fossem portas e janelas que pudessem ser abertas para
enxergarmos o irreal e deleitarmos um mundo totalmente reencantado.

Lista de figuras
Figura 1: Autorretrato, 1951. Lápis/Papel. Disponível
em:<https://www.remedios-varo.com/autorretrato-1951/>.

27
O Maravilhoso bretoniano se encontra na esfera do inconsciente. Breton nunca conceituou de fato o que
seria o Maravilhoso, no entanto, no primeiro manifesto do surrealismo ele diz que seu acesso se dá
através do inconsciente, podendo enxergá-lo no mundo exterior. Em Remedios Varo, observa-se que,
mesmo partindo de seu interior, o acesso que ela obtém ao maravilhoso se dá em um grau maior pelo
exterior, proporcionando uma ideia de devir surrealista.

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Figura 2: L’agent Double (El Agente Doble) (El Doble Agente), 1936. Óleo/Cobre.
Disponível em: <https://www.remedios-varo.com/agent-double-1936/>.

Figura 3: Cadavre Exquis A, 1935. Collage/Papel. Disponível em:


<https://www.remedios-varo.com/cadavre-exquis-a-1935/>

Figura 4: Encuentro, 1959. Óleo/Tela. Disponível em:


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Figura 5: Visita al pasado, 1957. Lápis e pó/Papel. Disponível


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Figura 6: Exploración de las Fuentes del Río Orinoco, 1959. Óleo/Tela.


Disponível em:
<https://www.remedios-varo.com/exploracion-de-las-fuentes-del-rio-orinoco-1959/>.

Figura 7: Nave Astral (Astronauta), 1960. Óleo/Cartolina.


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