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PEQUENO ENSAIO SOBRE BISPO DO ROSÁRIO

Por Luis Claudio Moutinho Rocha

Negro, nordestino, pobre, louco. Bispo do Rosário. Michael Foucault, um dos mais
importantes filósofos do século XX enfatizou: a loucura é ausência de obra. Um artista,
quando cria, cria primeiro a si mesmo, num processo de outra ordem, num devir artista.
Já para Nietzsche, o artista pertence a uma espécie mais forte, o que seria prejudicial em
todos nós, nele seria uma natureza. A obra de Bispo do Rosário, diagnosticado pela
psiquiatria como esquizofrênico e paranoico, corrobora em tudo a sentença do pensador
alemão. A obra de Bispo não advém de uma resposta à falta do tratamento que ele se
recusava a receber. Suas criações emergem de uma necessidade de outro âmbito, de
uma potência anterior, não domesticada pelos remédios, de uma resistência bruta aos
dispositivos de poder. Era uma criação fundada numa dinâmica que, para além da
espiritualidade, se processava num espaço de pura força estética. Durante o tempo
obscuro em que andou trancafiado na colônia Juliano Moreira, lugar das lobotomias e
eletrochoques, através da potência de sua arte, conseguiu não só evadir-se desse sistema
violento, como também criou toda sorte de objetos, de bordados e camas, até estandartes
e barcos, guiado pela visão de um mundo paralelo do qual ele havia sido enviado.

No dia 22 de dezembro de 1938. Eu vim.

Bispo do Rosário marca assim, bordando, grafando em um dos seus mantos, o dia em
que vem a luz o seu devir artista. Para ele esse era o momento de seu verdadeiro
nascimento, a data em que se dedicaria aos processos criativos que se estenderiam por
toda sua vida: afora isso, nada mais o interessaria. Neste dia, aos 29 anos, durante seu
retorno de Saturno, Arthur Bispo do Rosário teve uma epifania: acordou e se viu
cercado por uma legião de anjos que o impeliram a peregrinar pelas ruas do Rio com o
objetivo de chegar a Igreja da Candelária, para lá anunciar que havia sido incumbido de
julgar os mortos e os vivos. Esta ocasião marcaria o início de seus quase 50 anos,
alternados, vividos na colônia Juliano Moreira. Mas triunfando sobre a patologia,
erguendo-se acima do patologizante, lá estava Rosário recurvado em sua cela, tecendo
obsessivamente o manto de deus. Como poderia aquele homem mirrado, execrado,
separado dos “sãos e conscientes”, ser o porta-voz de um demiurgo, ser digno da sua
mensagem? Bispo do Rosário, primeiro nome Arthur, era profeta: o artista-profeta do
mundo romântico, visionário e contemporâneo, no sentido mesmo que Agamben dá a
esse termo: aquele que vê no escuro de seu tempo, para dali extrair a luz. Bispo viveu o
escuro. Conheceu a sombra. Seja dos recônditos das celas da colônia psiquiátrica, seja o
da noite pela qual perambulava, e deambulava. E foi pelas ruas ermas, ali, no que é
tenebroso, que ele comungou com os seus anjos. Por isso a recusa aos tratamentos, por
isso os cabelos intocados (e não raspados como a de seus companheiros de internação).
Bispo do Rosário não vestia uniformes, seus paramentos eram os mantos, extremamente
preciosos e imponentes, com os quais ele se tornava digno de, no dia do juízo final, se
apresentar diante da divindade.

- O senhor acredita em Jesus Cristo?

- A senhora está falando com ele.

Bispo do Rosário era um entusiasmado portanto, um oráculo, um cavalo, aquele que


empresta o corpo, a boca, aos espíritos. Mas se reconhecia um homem, um andarilho
desta terra que um dia seria consumida em chamas. Era o canal para o divino, seu
avatar, mas ao mesmo tempo indigno de estar perante esse deus senão vestido com seu
Manto de Apresentação, senão no dia escolhido por Ele. E Bispo, às vezes se
transformava em rei. Nestes momentos, pedia a seus algozes da colônia para ser
trancafiado. Era o momento em que as vozes eram mais fortes. Era o momento em que
se sentia perturbado. Nestas horas, num ato de nobreza digno do que se autoproclamava,
iria se dedicar a seus trabalhos de rei, se exilar do restante dos homens menores,
entronizar-se na solidão. Nestes instantes, que poderiam durar dias a fio de jejum,
oração e criação, pois tudo era da mesma ordem para ele, submergia na confecção de
seus objetos, que como ele mesmo anunciava era um ato de “entrar em guerra”. E nisso
também consistia sua missão, que em muito me faz pensar, a grosso modo, no Aleph de
Borges: era preciso reunir todas as coisas do universo, para assim salvá-las do
esquecimento. Sua criação quase toda se firma neste trabalho que, em parte, se
assemelha ao de Noé. Um trabalho infinito, de memória, de resgaste de algo que ainda
se perderá, de abarcar um mundo inteiro, toda a criação, nesta obra que é a antítese do
coração drummondiano, onde tudo cabe. Havia o “mapa do tamanho do mundo”, havia
a necessidade de se inventariar a existência, uma poética mesma do registro.

II

O conceito de assemblagem, termo francês que quer dizer “reunião”, e cuja estreia na
arte foi feita por Jean Dubuffet no início da década de 50 e que significa, a grosso
modo, inserir uma série de objetos tridimensionais colados, ou unidos de outras formas,
em um mesmo suporte, se tornou um procedimento bastante caro e recorrente na
História da Arte. Regidas pela poética do acúmulo, as assemblagens geralmente se
valem de objetos díspares que, uma vez reunidos, são ressignificados pelos processos
transformadores da obra de arte. Como não pensar que, na Alemanha da década de 10,
Kurt Schwitters, estava empenhado em suas Merz? Num país ainda se reerguendo da
primeira Grande Guerra, o artista recolhia fragmentos das ruínas e os reorganizava,
numa poética da devastação e do detrito. Bilhetes de trem, botões, latas, invólucros,
pedaços de brinquedos, pentes, restos de engrenagens, tudo era inserido nas suas
superfícies pictóricas. Aqui no Brasil, já na década de 70, temos o notório Farnese de
Andrade, artista mineiro, que ao se mudar para o Rio, recolhe em suas caminhadas por
praias e antiquários, restos de embarcações, detritos, bonecas antigas e\ou mutiladas, e
com elas compunha suas caixas e oratórios. E, a semelhança dos artistas citados, há o
gesto de Bispo sobre os objetos, há o ímpeto de criação. Recolhendo sucatas, restos de
lixo, e objetos abandonados, se propunha a recompô-los numa organização toda própria
e de impacto estético absolutamente sugestivo e poderoso. Mas há um dado que
diferencia o fazer de Bispo ao de Schiwtters e Farnese: a invenção. Mais de que uma
reorganização, Bispo do Rosário se preocupava em, utilizando estes materiais
ordinários, trazer a baila toda uma miríade de objetos facilmente reconhecíveis ou não,
de montá-los e reconfigurá-los, para assim criar um outro objeto, em vez de apenas
dispô-los sistematicamente. Rosário nunca se preocupou com as linguagens tradicionais
da arte: nunca pintou, desenhou, ou esculpiu: ao menos não no sentido mais estrito das
expressões citadas. E mesmo assim, guiado pelas vozes que o habitavam, Bispo do
Rosário, realizou uma obra de caráter único na história da arte, talvez justamente por
estar à margem de qualquer academicismo, ou influência intelectual hegemônica. Sua
contemporaneidade é indiscutível e, no entanto, talvez não nos seja possível rastrear
algo similar que pudesse ter vindo antes dele, ou algum nítido legado formal ou poético
deixado por sua obra. Afinal, Bispo não se considerava um artista e nem o poderia
desejar: considerava sua criação uma tarefa divina. Seu projeto o lançava acima do
“mundo da arte”, não era destinado a exposições, galerias, leilões. Era o árduo labor
ético-estético de quem se atarefava em salvar a existência das coisas, que se
consumiriam todas num apoteótico dia derradeiro. Enquanto na América desenvolvida,
Andy Warhol expunha e problematizava a arte e sociedade de seu tempo expondo suas
latas de sopa Campbell, aqui no Brasil, quase que ao mesmo tempo, com distintas
intenções, Bispo do Rosário criava verdadeiras assemblagens com embalagens de
desodorante, latinhas de cerveja, e com os tênis de seus colegas de internato. Era como
se, sem nenhuma intenção de diminuir a criação de Rosário, mas antes elevá-la ao
território do mistério, ele estivesse a par das tendências estéticas que aconteciam no
mundo a sua volta. Alheio ao sistema de arte que vigorava a sua volta, ressignificava
esses objetos e lhes retirava da condição do espúrio, para fixa-los numa dimensão que é
própria, senão do mágico, ao da própria beleza. Bispo do Rosário não datou, ou assinou
qualquer uma de suas obras, reafirmando assim sua despretensão de seguir o rigor da
apresentação de um objeto de arte. Seu trajeto criativo segue um fio autobiográfico e
autoficcional, onde a escrita tem um papel de suma importância. Há bordado em suas
bandeiras, vestes e estandartes, mensagens, nomes, fragmentos poéticos, oriundos de
seu imaginário afetivo de sua história pessoal. A palavra, tal qual o Verbo, adquire o
estatuto de cerne da criação, pois como ele mesmo bordou em um dos seus mantos “Eu
preciso destas palavras escritas”. Posto isso, é interessante lembrar que os antigos
egípcios acreditavam num conceito mágico que eles chamavam de Ren: o nome
verdadeiro das coisas. Ptah, o deus da magia, no instante da criação, pronunciou o nome
de todos os seres e assim os fez existir. Para se obliterar uma pessoa da existência
bastava conhecer seu nome verdadeiro (que não era o de batismo) e apagá-lo num ritual
hermético. Num de seus mantos, Bispo do Rosário bordava o nome de quem iria se
salvar no dia do Juízo Final. Bispo, o mensageiro, o louco, o visionário, sabia, ou
escolhia, os que mereceriam. Era uma inversão da questão do hermetismo egípcio:
Bispo dava a vida aqueles que fossem, no seu paramento divino, gravados, nomeados.

III

Misto de mortalha e pálio, o Manto da Apresentação, cuja função era ser a “roupa” com
a qual Bispo entregaria o mundo em miniatura nas mãos do Senhor, foi um trabalho
realizado ao longo de sua vida quase inteira. Ali Bispo do Rosário não só bordou uma
imensa quantidade de representações de objetos, como também gravou o nome, em sua
grande maioria femininos, dos que mereceriam a ascese. A peça principal era de um tom
avermelhado, um cobertor comum utilizado pelos internos. A linha que bordava não por
acaso era azul: desfiava os uniformes da colônia e utilizava a linha para fazer surgir um
tabuleiro de xadrez, um avião, uma mesa de sinuca, dados, números e palavras. Neste
singular paradoxo, Bispo do Rosário desfaz as vestes que identificam o louco, aquele
que aos olhos da sociedade merece o exílio, para refazê-la numa vestimenta sagrada
onde ele é quem ditaria aqueles deveria acompanha-lo ou não, quem seria digno de
sobreviver à fúria de Deus. Ali Bispo do Rosário mais uma vez, e desta vez com toda
potência, reafirma essa poética de transformar o abjeto no mais digno, e divino, dos
objetos. Há ainda o excesso de inscrições ali, de bordados. Esta profusão de escritos e
representações era comum em seus objetos: Rosário parece ter um horror ao vazio. É
um sistema complexo de símbolos sincréticos, pois surge da interpenetração de
elementos católicos, afro-religiosos, e do paganismo carnavalesco, herdados das
próprias vivências de Bispo. Nota-se o flagrante caráter performático inerente ao Manto.
Impossível não nos remeter, pelo menos formalmente, aos Parangolés de Hélio Oiticica.
Ambas as obras, que só se completam quando vestidas, carregam a possibilidade do
impacto e da curiosidade que podem causar quando em aparições públicas. Mas mesmo
aí, Bispo do Rosário caminha na contramão. Os Parangolés de Oiticica, seguindo seu
trajeto de pesquisa que era coerente a tendência da arte em seu período, eram obras de
experimentação sensorial e de reafirmação do corpo, do corpo que dança, do samba, da
poética da alegria. O manto de Bispo do Rosário tinha mais a ver com morte do que
com a vida: era um paramento para o além, para uma sagração e uma solenidade, cuja
importância definiu a sua própria existência.
IV

Contra todas as adversidades, se ergue Arthur Bispo do Rosário como o dono de uma
das mais enigmáticas, belas e potentes obras da arte contemporânea no Brasil, e quiçá
no mundo. Negro pobre, vindo do Nordeste tentar a sorte no Rio de Janeiro, talvez não
pudesse nunca, aquela época, intuir seu destino. Do dia em que acorda “enlouquecido”
em diante, passa não só a ser um profeta em delírio (e não o seriam todos?), mas o
criador de vestes e assemblagens que de tão inventivas, garantiriam um lugar de
destaque no cenário da arte, tanto que representou o Brasil na Bienal de Veneza de
2013. Ainda que recusando veementemente o rótulo de “artista” (como fariam Hélio
Oiticica e Lygia Clark ao se autoproclamarem, na década de 60, como “propositores”),
sua criação estava tão imbricada com sua vida, era de um caráter não só biográfico, mas
autoficcional de tamanho vigor estético, que aquele interno, por vezes agressivo e dado
a isolamentos, da Colônia Juliano Moreira, logo foi “absorvido” pelo mundo da arte,
que não se demorou a legitimar sua produção. Reza a lenda que o crítico de arte Mário
Pedrosa, em ocasião de uma exposição do MAM das obras de Bispo, ofereceu a este
uma sala no próprio museu onde ele pudesse se instalar com conforto. Rosário, sem
pensar duas vezes, recusa a proposta e prefere voltar a sua cela na colônia, como se só
ali, no escuro, no que é precário e difícil, sua obra pudesse vir à luz. Bispo do Rosário,
através de sua criação, além de triunfar sobre a psiquiatria, se evadiu dos mecanismos
de poder que, em sua condição de quádrupla desvantagem social (negro, nordestino,
pobre, louco), o tornavam alvo favorito da maré que faz sumir as vidas invisíveis,
engolidas por este sistema. Sua obra, profundamente alicerçada em eixos paradoxais: a
ordenação e a desmedida, a imanência e a espiritualidade, se espraiava pelas celas onde
viveu, permeando sua vida e mudando a rotina do entorno, adquirindo uma voz,
bradando para além dos limites da colônia, e impondo a quem a contempla um outro
modo de ver, uma outra razão que desconstrói preconceitos seculares: a arte, na sua
suposta condição de fruto da razão ocidental, cai por terra diante da vida-obra de Arthur
Bispo do Rosário.

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