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Profanações Urbanas: ficção e imagem no subjetivismo Psi

Urban Profanations: fiction and the image in Psy subjectivism


Profanaciones urbanas: ficción y imagen en el subjetivismo Psi

Luis Antonio dos Santos Baptista


Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

Resumo
A arte como representação e expressão do Sujeito, ou do Humano, é uma concepção marcante
nos discursos Psi. O cinema e a literatura são utilizados como campo expressivo do
reconhecimento do funcionamento psíquico. Deseja-se neste artigo problematizar este recurso
metodológico. À luz das análises de Walter Benjamin sobre a prosa poética de Charles
Baudelaire e sua relação com a cidade, pretende-se indagar sobre os efeitos ético-políticos
desta metodologia da representação. A categoria de aura proposta por Walter Benjamin, assim
como a da imagem como truque, utilizada por pesquisadores da história do cinema, são
ferramentas fundamentais para a argumentação do artigo. No uso destas categorias, objetiva-
se por em análise o caráter pedagógico, pastoral, da aura da arte e do artista utilizado por
profissionais Psi. O artigo aposta, à luz de Walter Benjamin, entre outros autores, na
dessacralização da experiência artística, na afirmação laica do artista e da arte. Ficção e
Imagem são utilizados como instrumentos interpeladores de categorias alheias aos paradoxos,
conflitos e invenções que habitam as cidades.
Palavras-chave: Ficção; Imagem; Cidade; Poder.

Abstract
As representation and expression of the Subject, or of the Human, Art is a striking concept
within Psy discourses. Cinema and literature are used as an expressive field for the
recognition of psychic functioning. This article problematises this methodological resource. In
light of Walter Benjamin's analysis of Charles Baudelaire's poetic prose and his relationship
with the city, we seek to inquire upon the ethical-political effects of this methodology of
representation. The category of aura proposed by Walter Benjamin, as well as that of the
image as deception, as used by researchers in the history of cinema, are fundamental tools for

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the argumentation of this article. By using these categories, we look to analyse the
pedagogical and pastoral character of the aura of Art and the artist as used by Psy
professionals. The article relies on Walter Benjamin as well as other authors to profane
artistic experience and the secular affirmation of the artist and Art. Fiction and the Image are
used as instruments which call forth other categories so as to question the paradoxes, conflicts
and inventions which inhabit cities.
Keywords: Fiction; Image; City; Power.

Resumen
El arte como representación y expresión del Sujeto, o del ser Humano, es una concepción
llamativa en los discursos Psi. El cine y la literatura se usan como materia expresiva de
reconocimiento del funcionamiento psíquico. En este artículo se busca a problematizar este
recurso metodológico. A la luz de los análisis de Walter Benjamin sobre la prosa poética de
Charles Baudelaire y su relación con la ciudad, se tiene la intención de questionar los efectos
ético-políticos de la metodología de representación. La categoría de aura propuesta por Walter
Benjamin, así como la de imagen como truco, utilizado por los investigadores en la historia
del cine, son herramientas fundamentales para la discusión del artículo. En el uso de estas
categorías, se busca en el análisis del caracter de la pedagógia y de la pastoral, el aura del arte
y del artista como la utilizan los profesionales Psi. Nuestro artículo apuesta, a la luz de Walter
Benjamin, entre otros, la profanación de la experiencia artística, la afirmación secular del
artista y el arte. La ficción y la imagen se utilizan como instrumentos que interpelan otras
categorías a las paradojas, los conflictos y las invenciones que habitan en las ciudades.
Palabras clave: ficción; imagen; ciudad; poder.

A queda do sagrado
O poeta alegrou-se após a queda do
O que os poetas dizem sobre o amor é tão objeto na lama. No salto, a auréola caiu no
enganador como quando num antiquário se
lamaçal da cidade em obras. Paris era
lê num letreiro: “Passa-se a ferro”. Não
remodelada drasticamente; demolições,
leve sua camisa para ser passada ali, o
letreiro está à venda. Carlito Azevedo.
entulhos, buracos, interferiam na
Livro das Postagens. mobilidade da urbe que iria se transformar

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na Cidade Luz dos oitocentos. Becos incidente urbano o mortalizava, arrancava-


escuros do passado medieval ganhavam o da quietude celestial onde nada acontece.
claridade; ruas ampliadas, a cidade Desprovido do ornamento sobre a cabeça,
moderna em construção promovia tornava-se passível de ser surpreendido
peculiares transtornos. Iluminação pelas surpresas cotidianas, como todos que
acentuada, movimentos velozes, circulação circulavam anonimamente nas avenidas.
de veículos, interrupção de trajetos, Agora ele seria um anônimo. A queda
incitariam os passantes às singulares profanava a imutabilidade da sua forma
experiências sensoriais. Os novos celestial, alheia aos estorvos, aos acasos e
bulevares possuíam uma pavimentação aos prazeres do dia a dia. De carne osso, o
particular. O solo revestido pelo macadame recém citadino libertava-se da missão
encharcado provocou o salto do poeta no sagrada da arte de revelar, aprimorar
intuito de evitar o atropelamento por um sensibilidades, expressar os segredos da
veículo; após o movimento brusco a alma2. O arauto da beleza, o promotor da
auréola caiu, mas ele não se transtornou, o fruição sublime, o ser especial a indicar a
episódio lhe causou contentamento. Paris verdade universal do Sujeito, ruía. Inútil,
em obras oferecia risco aos corpos do tornava-se a sua tarefa missionária. O
tempo e do espaço de outrora, apaziguados artista, após ganhar mortalidade,
pela estabilidade. A cidade freneticamente desvencilhava-se da tarefa de anunciar
1
se transformava . Gestos, corpos, mensagens redentoras. Na Paris moderna,
percepções fragmentavam-se. Na Cidade nenhuma perenidade se sustentava3. O
Luz do ritmo acelerado, a auréola do artista poeta sorria aliviado ao constatar a perda
tornava-se anacrônica. O tempo das festas do poder de educar o caráter das almas
religiosas, dos ritmos da natureza, ruía. sedentas de arte. Inútil, era sua nova
Nas fábricas e nas ruas a harmonia dos condição4. No chão a auréola misturava-se
calendários despedaçava-se. A urbe das aos detritos das ruas, aos restos do
demolições impedia o vagar contemplativo cotidiano, e ele alegrava-se ao descobrir a
pelas ruas. O homem das artes, desatento finitude de um corpo. Contentava-se
aos choques da multidão nas ruas, ao também em ser vulnerável às agruras e aos
trânsito veloz, à peculiar vida social da prazeres da cidade. O ser celestial dos
urbe, perdia o objeto sagrado. Para ele anúncios, das revelações, do cuidar, era
seria um alivio a falta da insígnia que o privado da harmonia do sagrado. Na lama
definia como um ente de outro mundo. O a auréola permanecia suja, misturada aos

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resíduos do dia a dia onde o fulgor das artista, e ele ria. Paris o seduzia para os
palavras e imagens divinas são prazeres da carne.
indiferentes, inoperantes; porém, ele sorria, No prostíbulo o poeta encontra um
liberto do destino dos entes imunes à admirador: “Mas o quê? Você por aqui,
caducidade do tempo e do espaço da nova meu caro? Você em tão mau lugar! Você, o
era. A cidade dessacralizava a sua arte5. O bebedor de quintessências! Você, o
artista das letras desinteressou-se do comedor de ambrosia! Francamente, é de
intento de recuperá-la. Torcia para que o surpreender” (Baudelaire, 1995, p.333).
objeto fosse localizado por um possível Irônico, o artista responde:
poeta aprendiz das virtudes da arte,
indiferente ao acaso e aos paradoxos das “Estou bem assim. Só você me
reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia.
cidades. Mortal, desprovido do peso da
Depois, alegra-me pensar que talvez algum
missão sagrada, regozijava-se em usufruir
mau poeta encontre a auréola e com ela
o que a vida mundana lhe ofereceria. impudentemente se adorne. Fazer alguém
Poderia admitir o desconhecimento de feliz, que prazer! e, sobretudo um feliz que
verdades, estranhar o que supunha familiar, me fará rir” (p. 333).

assombrar-se, correr riscos, dizer “não


sei”. Precário, possuidor de uma arte No bordel, o risonho cidadão torcia

inútil, contentava-se em privar-se do com desdém para que alguém, ao encontrar

poderoso ornamento que o tornava a auréola, denotasse a poesia ser o espelho

anestesiado aos acontecimentos da alma. Torcida irônica, pois sabia da

desconcertantes do mundo. Despedia-se da inutilidade daquele ornamento. Presumia

quietude do céu, onde o assombro é que o interessado, ao utilizá-la, definiria o

inexistente; no firmamento, os assombros poético como subjetivo; a arte como

permitidos seriam somente aqueles onde a bálsamo; o artista como Deus, anjo ou

glória de um Ser é louvada, ou uma Demônio. O risonho cidadão, agora,

provação é violada. A arte dos anúncios e abominava estas virtudes. Desvelou as

das revelações estaria agora na lama, à amarras do sagrado. Após o salto na

espera de um provável poeta, um aprendiz avenida enlameada, ele dizia não sei,

de anjo, um pastor em busca da harmonia arriscava-se, dizia basta, descobria a morte,

perdida. A cidade a fragmentar tempos, espantava-se, ria. O anonimato

espaços, percepções, dessacralizava o multiplicava suas forças, fazia-o atento aos


apelos do mundo a arruinar
incessantemente uma aprovável origem da

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arte, uma missão, uma forma eterna. A o ornamento é impedido de fornecer, ou


cidade não lhe dava sossego. Denunciava a reproduzir, a sombra e a luz do Sujeito
morbidez da paz. O espelho da alma, ávido em conhecer-se, mergulhar na sua
missão da poesia, estilhaçava-se em pretensa interioridade. A pureza da
inúmeros cacos, e ele os pegava, ria, verdade da insígnia é ultrajada, misturada à
montando e desmontando pedaços. O risco poeira, aos vermes, aos restos cotidianos.
de ferir-se não o intimidava, a alegria era A cidade, na sua cruel dissipação da
maior. harmonia do eterno, apresenta seus apelos
O personagem da prosa poética de descentrados, exteriores aos corações e
Charles Baudelaire interpela a aura de mentes. Walter Benjamin, na análise da
certa concepção da criação artística. obra do poeta francês, afirma:
Apresenta o poeta que escapa do destino de
ser à imagem e à semelhança de Deus, de A dessacralização e a perda da aura são
fenômenos idênticos. Baudelaire coloca a
ocupar a sua falta, reproduzir seu fulgor
seu serviço o artifício da alegoria [...] A
desvencilhando-se das entranhas de um
alegoria de Baudelaire – ao contrário da
mito não posto em cheque. Do salto na rua barroca – ostenta os rastros da concentrada
perde a potência redentora das Belas Artes. ira que era necessária para entrar à força
No bordel, torna-se um qualquer, como os nesse mundo e deixar em pedaços as
harmônicas imagens (Benjamin, 1985,
passantes vulneráveis aos choques urbanos.
p.135).
A urbe das fragmentações dos gestos, dos
ritmos, maculava a pureza da arte inspirada
A ira do poeta, fruto da passagem
por ideias onde a morte, a desacomodação
da cidade, impede à poesia ser a
cortante da história, inexistem. O poeta
representação da alma, a expressão
anônimo contenta-se com a inutilidade da
subjetiva do Humano. Ira cortante, ao
sua poesia, com o fim da missão pastoral
obscurecer o traçado nítido de um Sujeito,
na qual a dignidade o entediava. Anônimo,
ou de uma paisagem. Paris atravessa a obra
tudo poderá lhe suceder, algo por vir
do poeta francês, perpassa com seus
sucederá. A Paris de Baudelaire profana a
sonhos e fracassos da utopia da
aura dos missionários da educação do
modernidade exigindo outra lírica, outra
espírito, da fruição do sublime onde nada
forma de experiência, outra forma de
transfiguraria as bordas do Sujeito. Usurpa
ficcionar6. Inútil, seria o espírito universal
o caráter sagrado do artista. No bordel, a
expresso na arte indiferente aos escombros
arte também está à venda, ou não. No solo,
do passado e aos monumentos de louvação

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ao futuro A caducidade da arquitetura, dos abalará a admiração ou a confiança da


gestos, das coisas, abria espaço para a imagem refletida. A invenção do final dos
criação laica da literatura, para quem os oitocentos colocará em prova a grandeza
apelos do mundo são a matéria prima. Ao do espelho: o cinema. Os olhos e a
fazedor de ficções, não caberia consciências serão destituídos de serem os
heroicamente responder a estes apelos, únicos artífices. A câmera criará o impasse
efetuar a arrogância do divino. A criação entre o olho e o que é visto na tela.
laica lhe exigiria estar atento ao vazio Segundo o filósofo berlinense, “na
propiciado por destruições intermináveis apresentação do homem por meio do
do dia a dia, ou da história, e montar os aparato, a sua autoalienação experimentou
escombros de ideias vitoriosas do passado, uma utilização altamente produtiva”
fragmentos de revoltas sufocadas, pedaços (Benjamin, 2012, p. 75). Ao contrário do
de gestos, cacos de dores e alegrias espelho, o cinema forjará um corpo
fraturados. Usá-los, sensível aos perigos estranho ao reconhecível, um gesto
das palavras de ordem, das quais o desarmônico à função habitual, um rosto
encerramento de uma história é afirmado. irreconhecível à familiaridade especular,
O que pode a inutilidade da arte? O que o um tempo inclassificável. Realidade
gargalhar do personagem de Charles implodida com sua verdade inabalável.
Baudelaire tem a dizer sobre o uso da arte Autoalienação propiciadora do
nos discursos Psi? estranhamento de si mesmo do espectador,
assim como do protagonismo do olhar
O antes da Queda como autor do sentido daquilo que
vislumbra. Autoalienação, ou
Os românticos admiravam imagens autoestranhamento, a induzir o encontro
refletidas no espelho, demoravam-se ao com cárceres nunca imaginados: cárceres
vislumbrá-las, afirma Walter Benjamin miúdos, cotidianos, que “pareciam nos
(2012, p. 75). No espelho o olhar encerrar sem esperança” (Benjamin, 2012,
reconheceria a beleza e as mazelas de uma p.97). Encarceramentos encontrados na
presumível realidade ou do Sujeito a fantasia de um eu solitário de onde a
admirá-lo. Os espelhos dirão a verdade, imaginação emana, na naturalidade do
acolherão os indícios para que uma gesto banal do dia a dia, no destino traçado
afirmação, um afeto, um corpo sejam pelo tempo contínuo que segue em direção
ratificados. Porém, uma máquina peculiar ao futuro. Cárceres que, segundo

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Benjamin, poderão ser explodidos pela verdade inabalável. Segundo Fernando


dinamite do cinema: “Então, veio o cinema Furtado,
e explodiu esse mundo encarcerado com a
dinamite dos décimos de segundo, de tal Em sua forma aportuguesada, “truque” é o
conjunto de dois eixos de rodas sobre as
modo que nós, agora, entre suas ruínas
quais se apóiam as extremidades do chassi
amplamente espalhadas, empreendemos
dos vagões e locomotivas, para facilitar a
serenamente viagens de aventuras” entrada nas curvas. Dispositivo semelhante
(Benjamin, 2012, p. 97). Ruínas à espera foi empregado na construção do primeiro
de composições, de prováveis montagens estúdio cinematográfico (Furtado, 1998,
28).
onde o ato de ficcionar põe à prova
certezas inabaláveis. A montagem-ficção
Os românticos apaixonados por
deflagradora de hesitação ao familiar, ao já
espelhos desprezavam os truques quando
visto, à verdade eterna. Ação perigosa para
se diferenciavam do entretenimento. A arte
ideias das quais os encarceramentos,
não teria lugar à semelhança de um meio
citados por Benjamin, escapam aos jogos
de transporte; o truque como dispositivo
de poder, às intervenções da criação
ferroviário a deslocar, facilitar entradas,
humana.
interromper percursos, promover
O cinema como máquina produtora
passagens e atravessamentos, inspirou o
de imagens irreconhecíveis aos limites do
cinema. Artefato que ultrapassa o limite da
real propiciou ameaça aos limites entre
oposição verdadeiro e falso; dispositivo
sonho e realidade. Engendrou poder ao
que negaria à estética romântica a
sonhar e ao real, deslocando-os de uma
fidelidade da imagem em representá-los
origem, de uma oposição pacificadora.
com suas grandezas ou mistérios. Os
Criou modos de sonhar, estilhaçou a
truques destruíam a aura do olhar do
compacidade do real, multiplicando-o em
Sujeito de onde emana o significado do
inacabados sentidos. Retirou a prioridade
mundo que vislumbra. Utensílio
do sonho da filiação da consciência, ou do
profanador.
inconsciente, legando-o à materialidade
Amantes da arte como virtude
dos artifícios. O cinema destruiu a
recusavam a imagem quando esta omitisse
inocência do sonhar. Máquina dos truques
a representação e a clareza de uma ideia,
a exigir a apresentação e a decomposição
de um valor universal. Inútil, seria a arte
de uma história, desdobrando-a,
estranha aos rastros do Sujeito ou da
impedindo-a de ser encerrada por uma
grandeza da Natureza. A invenção do

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cinema engendraria o risco de dissipar a curiosidade de saber de que era feita aquela
aura de um rosto, de uma paisagem, de um imagem em movimento; vendo nela uma
gesto banal, do transcorrer contínuo do espécie de nova realidade, buscavam a
tempo. Os românticos, citados por ilusão, o truque” (Carrière, 2006, p. 16).
Benjamin, discordariam de uma das Os primeiros filmes foram exibidos em
características do cinema definida por Kiju locais particulares, onde os truques eram
Yoshida: “é por essa razão ser o cinema saudados com alegria:
uma expressão fundada em incerteza,
liberdade e ambiguidade ilimitadas” Os primeiros filmes apareceram em 1895.
Começaram a ser exibidos em feiras,
(Yoshida, 1998, p.146). Incerteza e
circos, teatros de ilusionismo, parques de
ambiguidade incômodas a realidades e
diversões, cafés e em todos os lugares
fantasias quando recusam a origem de uma onde houvesse espetáculos de variedades.
máquina, ou de um truque na confecção da Mas o principal local de exibição dos
sua trama, no desmanche de um Deus, no filmes eram os vaudeviles. Os vaudeviles
tinham surgido a partir de teatros de
desmonte de uma verdade. Quais os
variedades - com conotações
efeitos desta definição para a Psicologia?
exclusivamente eróticas - que, em geral,
O que faz o psicólogo com o cinema? funcionavam anexos aos chamados salões
Nos cinemas do passado, era difícil de curiosidades [...] que exibiam mulheres
entender o que sucedia na tela. barbadas, anões, bichos de duas cabeças
(Costa, 2005, p. 40).

“Luis Buñuel ainda conheceu esse costume


em sua infância na Espanha, em torno de Cenas desconectadas, tomadas
1908 ou 1910. De pé, com um longo únicas, narrativas sem continuidade
bastão, o homem apontava os personagens
enchiam a tela de imagens desprovidas de
na tela e explicava o que eles estavam
aura. O primeiro cinema “manteve o
fazendo. Era chamado explicador.
Desapareceu – pelo menos na Espanha – caráter anárquico do espetáculo de
por volta de 1920” (Carrière, 2006, p. 15). variedades” (Costa, 2005, p.45). Multidões
nas ruas, assassinatos, paisagens da
A plateia dos primeiros cinemas natureza, cenas cotidianas, acontecimentos
encantava-se e simultaneamente desejava marcantes da época, incêndios, guerras,
entender o que passava na tela. tomavam conta da tela nos locais
Deformações da realidade, temporalidades esfumaçados. O público, segundo Flavia
estranhas, dificultavam o entendimento. Costa, talvez não “duvidasse de que se
Segundo Carriére, “as pessoas tinham tratava realmente de uma série de truques.

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A invenção realista no cinema só viria sintonia com as questões formuladas,


muito depois, acompanhando de certa Maicon Barbosa acrescenta: “Como
forma a narrativização” (Costa, 2005, aproximar dos filmes tentando não
p.46). Gradativamente o cinema muda de domesticar as imagens e sons para rebatê-
local de exibição. Os espaços esfumaçados, los às consagradas teorias Psi?” (Barbosa,
barulhentos, são preteridos. Para a cultura 2016, p. 48). A esta questão, responde o
de massa, a ambiguidade dos personagens, autor:
a descontinuidade das cenas, a
fragmentação da narrativa são De diversas maneiras a Psicanálise se
aproxima do cinema, mas, no campo dos
características inadmissíveis. O início meio
estudos cinematográficos, é, talvez,
e fim da história, a clareza de um rosto
Christian Metz o teórico mais enfático na
impregnado de um reconhecimento moral, transposição sistemática de conceitos
o encerramento feliz de uma trama, psicanalíticos de Freud e Lacan para
invadirão as telas substituindo a magia dos explicar as imagens em movimento e as
formas de relação com elas. Articulando
truques. A aura das imagens apaziguará a
semiótica e Psicanálise, Metz empreende a
imprecisão das cenas dos bordeis do
construção de uma teoria do espectador
passado. cinematográfico baseada nas noções de
identificação inconsciente. Metz descreve
A domesticação que vai se instalando no alguns tipos de Psicanálise do cinema: a
primeiro cinema parece ter a chancela do primeira seria uma psicanálise nosográfica,
senso comum. Ela se estabelece como um que toma os filmes como sintomas das
processo de homogeneização na neuroses do cineasta ou do roteirista, e a
representação do espaço e do tempo [...] de segunda seria uma variante da primeira,
fabricação de personagens sem que ao invés de encontrar a psicopatologia
ambigüidade, de finais felizes necessários. de quem fez o filme, concentra-se nas
Ela faz uma moralização das trajetórias, tipologias metapsicologias (Barbosa, 2016,
realiza um certo encarceramento dos p.45).
movimentos histéricos e incontroláveis,
presentes nos objetos repentinamente
O cinema como ilustração dos
animados e nos personagens possuídos que
segredos da alma ganha mais um
povoam os filmes de transformações.
(Costa, 2005, p.69).
explicador. Difere-se do apresentado por
Carrière do início do século XX, através

Quais os efeitos desta das lembranças de Luis Buñuel; este é

“domesticação” para a Psicologia? O que contemporâneo:

faz o profissional Psi com o cinema? Em

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Um teórico psicanalista bem mais causas e efeitos de um fato, a cidade como


conhecido fora dos estudos
ela pretensamente é. Ficção e imagem no
cinematográficos que também faz uma
final dos oitocentos, estudados por Walter
leitura freudiana e lacaniana dos filmes é
Slavoj Zizek. Em um filme chamado O Benjamin, terão como desafio as
guia pervertido do cinema, Zizek passeia ressonâncias da aura na cristalização dos
pela história do cinema e discursa para a cárceres cotidianos, assim como nas ações
câmera, explicando conceitos freudianos, e
do terror do Estado. Na fotografia de
usa os filmes como exemplo desses
Eugène Atget, ele encontra uma aposta
conceitos (Barbosa, 2016, p.46).
ética, um truque que profana o sagrado
reproduzido nas artes da época. Das
Saber olhar as imagens na tela para
imagens de Atget, nenhuma atmosfera
encontrar os mistérios do Sujeito, as causas
conduzirá, ou fará reconhecer indícios de
das suas dores; reconhecer na ficção, na
algo consumado. São imagens que
imagem, os rastros de uma agonística do
subtraem significados, subtraem a
Sujeito, do Homem, ou da Natureza são
pretensão de reproduzir o real. São
atos inúteis para os frequentadores dos
imagens que destroem a auréola de um
bordeis esfumaçados, dos teatros de
caráter, de uma paisagem. Fotografias que
variedades, dos circos onde o riso
“desinfetam atmosferas sufocantes”, na
afirmava-se como a ira da poesia de
oferta do vazio, do espaço leve como o
Baudelaire. A ira, segundo Benjamin, “era
corpo do poeta após a perda do ornamento
necessária para entrar à força nesse mundo
na lama. Das fotos de Atget, segundo
e deixar em pedaços as harmônicas
Benjamin, algo está para acontecer, seduz,
imagens”. Qual o poder do truque para
convida, exige atenção:
profanar a luminosidade de uma aura?

Vazia a Porte d’Arcueil nas fortificações,


Profanações
vazias as escadas faustosas, vazios os
pátios, vazios os terraços dos cafés, vazia,
A literatura policial, fotos como convém, a Place du Tertre. Esses
familiares, os romances de formação para lugares não são solitários, e sim privados
de toda atmosfera; nessas imagens, a
os espíritos sensíveis, as imagens
cidade foi esvaziada, como uma casa que
retratadas nas fotografias para o controle e
ainda não encontrou moradores. Nessas
investigação de crimes procuravam obras, a fotografia surrealista prepara uma
representar com fidedignidade a essência saudável alienação do homem com relação
do caráter do retratado; representavam a seu mundo ambiente. Ela liberta para o

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olhar politicamente educado o espaço em acredita ocupar assim o lugar deixado


que toda intimidade cede lugar à
vazio pela ausência dos deuses, Ambição
iluminação dos pormenores (Benjamin,
estranhamente enganadora. Ilusão que o
1996, p. 102).
leva a crer que se tornará divino [...]
Ilusão, que, ademais, encobre o vazio sobre
Do vazio ofertado por Atget, o
o qual a arte deve fechar-se” (Blanchot,
fazedor de ficção e de imagem, assim
1987, p. 219).
como sua obra, seria radicalmente
3
Sobre a destruição da perenidade na
dessacralizado, profanado, como o poema
cidade da modernidade, ver Berman, 1986,
de Wislawa Szymborska:
p. 85.
4
Sopros e pilhas de céu.
Sobre a “inutilidade da arte”, ver
O céu é onipresente Blanchot, 1987, capítulo VII . “Poliana
Mesmo na escuridão sob a pele Cordeiro, no intuito de afirmar a potência
Devoro o céu, excreto o céu.
da “inutilidade da arte” afirma: “a arte não
Sou uma armadilha numa armadilha,
é um absoluto desinteressado. Ela não
um habitante habitado,
um abraço abraçado, cura, não sublima, não acalma
uma pergunta na resposta a uma pergunta. absolutamente nada. Porém, a arte conduz
A divisão entre o céu e a terra uma potência afirmativa do falso e, ao
não é um modo apropriado
mesmo tempo, efetua uma potência vital”
de pensar essa totalidade.
(Cordeiro, 2016, p. 44).
Permite só sobreviver
5
num endereço mais preciso, A dessacralização da arte, a
mais fácil de encontrar, complexidade da categoria de aura na obra
caso eu fosse procurada. de Benjamin inspira-se no ensaio Pequena
Meus sinais particulares
História da Fotografia (Benjamin, 1996, p.
São o encantamento e o desespero
91), especificamente as análises de
(Szymborska, 20016, p.191).
Benjamin sobre a fotografia de Atget, e no
ensaio A obra de arte na época de sua
Notas
reprodutibilidade técnica (Benjamin,
1 2012). Jeanne Marie Gagnebin, à luz da
Sobre a interferência das transformações
contribuição de Benjamin sobre este tema
de Paris na obra de Baudelaire ver
argumenta: “contra uma arte –ilusão, uma
Benjamin, 2000.
2 arte-refúgio, uma arte que “fabrica” aura
Segundo Maurice Blanchot, “criador é o
para reencantar o mundo, ele advoga a
nome que o artista reivindica, porque

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destruição dos velhos clichês da estética do Benjamin, W. (2012). A obra de arte na


belo em prol de espaços sóbrios, vazios e época de sua reprodutibilidade
esvaziados, talvez em ruínas” (Gagnebin, técnica (2a ed.). Porto Alegre: Zouk.
2014, p.163). Benjamin, W. (2000). Charles Baudelaire.
6
Sobre a cidade e as mudanças na poesia Um lírico no auge do capitalismo.
de Baudelaire, afirma Benjamin: “ O poeta São Paulo: Brasiliense.
em Baudelaire resguardava o incógnito. Benjamin, W. (1996). Magia e Técnica,
Por mais provocador que pudesse parecer Arte e Política. Ensaios sobre
no trato, tanto mais cuidadoso ele era em Literatura e História da Cultura. São
sua obra. O incógnito é a lei da sua poesia. Paulo: Brasiliense.
A sua construção dos versos é comparável Benjamin, W. (1985). Sociologia. São
ao plano de uma grande cidade, na qual se Paulo: Ática.
pode movimentar-se sem ser percebido, Berman, M. (1986). Tudo que é sólido
encoberto por blocos de casas, portões ou desmancha no ar. A aventura da
pátios. Neste mapa, as palavras têm, como modernidade. São Paulo: Companhia
conspiradores antes de estourar uma das Letras.
rebelião, os seus lugares indicados com Blanchot, M. (1987). O Espaço Literário.
toda precisão” (Benjamin, 1985, p.120). Rio de Janeiro: Rocco.
Carrière, J. (2006). A Linguagem Secreta
Referências do Cinema. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
Azevedo, C. (2016). O Livro das Cordeiro, P. S. (2016). Cartas para uma
Postagens. Rio de Janeiro: 7 letras. escrita a perigo: ensaios, arranjos e
Barbosa, M. (2016). Espectros da Imagem, ficções. Tese de doutorado não
Remontagens da História: Uma publicada, Programa de Pós-
escrita do Cinema como interlocução Graduação em Psicologia,
ao presente. Tese de doutorado não Universidade Federal Fluminense,
publicada, Programa de Pós- Niterói.
Graduação em Psicologia da Costa, F. C. (2005). O Primeiro Cinema.
Universidade Federal Fluminense, Espetáculo, Narração,
Niterói. Domesticação. Rio de Janeiro:
Baudelaire, C. (1995). Poesia e Prosa. Rio Azougue.
de Janeiro: Nova Aguilar.

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Baptista, L.

Furtado, F. F. (1998). Trem e Cinema.


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Gagnebin, J. M. (2014). Limiar, aura e
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Yoshida, K. (2003). O anticinema de
Yasujiro Ozu. São Paulo: Cosac &
Naify.
Szymborska, W. (2016). Um Amor Feliz.
São Paulo: Companhia das Letras.

Luis Antonio dos Santos Baptista:


Professor Titular do Instituto de Psicologia
e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal
Fluminense. Pesquisador CNPq (Bolsista
de Produtividade Nível 2). Psicólogo
graduado pela Universidade Gama Filho
(UGF), Mestre em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), Doutor em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano
pela Universidade de São Paulo (USP).
E-mail: baptista509@gmail.com

Enviado em: 21/10/16 – Aceito em: 27/04/17

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