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O Sentimento dum Ocidental: poema longo de 44 estrofes. Nele encontramos o pulsar da cidade quando entra a noite.

Um observador acidental, habitante da


cidade e comprometido com ela, poeta do quotidiano e da prosa diária, nela deambula numa atitude de observação e análise do real, ponto de partida para
toda a sua produção literária: ”A mim o que rodeia é o que me preocupa”: preocupa-o sobretudo quem vive na cidade e as condições de vida e de trabalho
que ela proporciona. Poeta pintor, Cesário deixa as suas impressões registadas em versos longos (decassílabos e alexandrinos), numa linguagem onde
abundam adjectivos, verbos e advérbios que sugerem cores, matizes, cheiros, ruídos e silêncios, movimento e forma: Sensacionismo

ANOITECER CIDADE EMBRENHO-ME


Avé- Marias: Noite Fechada: Ao Gás: Horas Mortas:
BOQUEIRÕES RUAS TURBA CARROS DE
ALUGUER PROFESSOR de LATIM VARINAS o poeta descreve o suj.poético vagueia na
movimento da cidade ao 2ª etapa do roteiro citadino: Cidade que se vai escuridão da cidade, na
HONESTO PÃO DE FORNO BURGUESINHAS do poeta percorre as ruas fechando; espaço
CATOLICISMO ÉPICO D’OUTRORA anoitecer, o que desencadeia noite profunda; expressa
no suj poético a reflexão e a reparando no movimento, na doentio e corrupto. desejos para o futuro; mas
RATONEIRO IMBERBE VENTRES DAS luminosidade; o tempo “Tudo cansa”.
TABERNAS TEJO DOR HUMANA CRÓNICAS introspeção. rapidamente se apercebe
Contrastes: infelicidade dos presente opõe-se ao tempo A vida dos de que está numa cidade
NAVAIS passado da época dos burgueses contrasta
que ficam opõe-se à felicidade doente e asfixiante. No
dos que partem; há Descobrimentos; intensificam- com o trabalho fim, conclui que a “Dor
trabalhadores e gente ociosa. se as sensações negativas; honesto do forjador humana” é afinal o
desejo de evasão. e de quem produz o “sentimento” de toda a
“honesto pão”. civilização ocidental,
Encontro com o prof aprisionada em cidades
de latim. modernas, mas
opressoras.
Representação da cidade: Nas ruas da cidade, ao Cidade escura onde se Novamente na rua, Cidade “às escuras”,
cidade moderna, mas espaço opressivo onde anoitecer, a atmosfera acumulam “corpos enfezados” a cidade e as ruas caminha-se de lanterna;
não há condições de vida saudável e digna. carregada, “enjoa”: cheiro a e as construções “Muram “ o aparecem espaço fechado, “massa
Ao revelar as condições em que o povo vive maresia mistura-se com o sujeito poético que sente o transfiguradas pela irregular de prédios
(contraste com a burguesia), denunciam-se as cheiro a gás; o céu de neblina, espaço “mais reduzido”, mais imaginação do suj sepulcrais com dimensões
injustiças sociais do mundo moderno. a turba que se movimenta dão fechado, mais claustrofóbico. poético ( eu penso de montes”; cidade
à cidade uma cor “monótona A exclamação “Triste Cidade!”, ver…), que se sente dorme num silêncio
e londrina”. O suj. Poético sugere a deceção, a descrença, “cercado”. Cidade profundo e assustador; o
inicia o seu percurso e o seu o desencanto, a estagnação, a quase deserta, de mínimo ruído é percetível;
olhar, qual máquina de morte. Às escuras, a cidade é “longas descidas”, cidade representativa do
repórter, vai fotografando os percecionada como um espaço pálida, romântica confinamento, da solidão
carros de aluguer que levam coberto por um manto de lunar; cidade mais e da morte. Vive-se
os “Felizes” até à estação de escuridão. O léxico ajuda: “…a escura “Apagam-se “emparedados, sem
comboio; as edificações nódoa negra do clero”; nas frentes/ Os árvores, no vale escuro
emadeiradas parecem gaiolas “sombrios, espetrais”; “a candelabros…”; das muralhas”. A cidade
onde saltam os carpinteiros capital, que esfria”; “Enlutam- “Mas tudo cansa! transfigura-se : os faróis
como morcegos; me”, etc. Nesta “Triste de uma carruagem são
etc., até que surgem as varinas cidade”. percecionados como olhos
que tanto interesse geram no sangrentos; a imaginação
suj poético: embora de negro solta-se e as reflexões
e vivendo em bairros subjetivas também: “Se eu
degradados, elas são a não morresse nunca…” e o
imagem da alegria, da vida, da desejo de fuga, de
força, do trabalho. Ao transmigrar, acentua-se.
anoitecer, a cidade é um
formigueiro de agitação.
“Saio”: o sujeito “ E eu sigo (…)a dupla
Deambulação: solitária e Pelas “nossas” ruas ao O sujeito poético encontra-se poético, andando, correnteza augusta das
crítica anoitecer; “E o fim da tarde agora no “saudoso largo” das cruza-se com os fachadas”. O sujeito
inspira-me”. A “viagem” ao duas igrejas – Chiado; recinto habitantes da noite; poético vai-se
coração da noite de Lisboa público e vulgar(…) um épico as ruas confrontando com
começa junto ao Tejo: de outrora ascende num pilar, transfiguram-se, há diferentes situações e
“Embrenho-me, a cismar, por clara referência ao largo de ainda algum, personagens o que
boqueirões, por becos/ ou Camões. embora escasso mostra que a “viagem”
erro pelos cais…” Terminará a deambulação, escasso movimento evolui.
entrando numa “brasserie” de gentes, até
onde se joga o dominó. encontrar o seu
velho professor de
latim que pede
esmola a altas horas
da noite(pobreza
envergonhada???)
Espaços captados pelo Edifícios, as edificações os O suj poético detém o seu olhar Longas descidas, Arruamentos, portões,
“observador acidental” boqueirões, os becos, as em espaços fechados: a Passeios de lajedos, fachadas, “nebulosos
varandas, os arsenais, as referência à cadeia do aljube, à Lojas transfiguradas corredores”, “ventres das
oficinas e os hotéis de moda velha Sé; às duas igrejas; aos pela imaginação tabernas”, escadas=
quartéis que já foram parecem “catedrais espaços fechados,
conventos na Idade Média e de um escuros
até um palácio que contrasta comprimento
com o casebre vizinho. São imenso”; cutileiro;
espaços mórbidos, escuros, a padaria, casas de
sugerir o enclausuramento e a confeções e modas.
solidão
Indicadores de que a noite Ao anoitecer; fim da tarde, “ao acender das luzes”; “ A “Apagam-se nas “astros com olheiras”-
avança “ao cair das badaladas” espaços iluminam-se os frentes/Os brilho intenso sugere
andares”, expressões que candelabros…” noite muito escura.
sugerem a ideia de que a “A noite pesa,
escuridão se vai esmaga”
intensificando. Os soldados
regressam aos quartéis.
Transfiguração poética do As edificações emadeiradas “As tascas, os cafés, as tendas, A expressão “Eu “prédios sepulcrais, com
real: atitude subjetiva e transfiguradora; lembram gaiolas e os os estancos/ alastram em penso ver (círios dimensões de montes”:
fuga imaginativa no espaço e no tempo; carpinteiros que saltam de lençol os seus reflexos brancos laterais, ver filas de imaginação
imaginação quase surrealista; perceção viga em viga parecem / E a lua lembra o circo e os capelas…) indica transformadora do suj
subjetiva da realidade objetiva. morcegos jogos malabares.” essa capacidade de poético.
transformação, pelo
pensamento e pela
imaginação, do real
que o suj. Poético
observa.
“As burguesinhas do
Catolicismo (…)
lembram-me (…) as
freiras que os jejuns
matavam de
histerismo”;
“Tornam-se
mausoléus as
armações
fulgentes”.

Passado / presente: Evocação das “crónicas A referência à influência O passado ESTROFE 6: projeção para
navais”; passado ressuscitado; negativa do clero e da simbolicamente o futuro como estratégia
O suj.poético não se limita a deambular no “soberbas naus associadas a Inquisição contrasta com o representado na de fuga que contradiga um
espaço físico; pela memória revisita o passado um passado glorioso “épico de outrora” brônzeo e figura do professor presente claustrofóbico,
glorioso de Portugal para o contrastar com o CONTRASTA com um presente monumental”(passado); de latim que no sem horizontes: “Nós
presente decadente e mórbido. que “incomoda”; que desperta presente disfórico, parado, presente se vamos explorar…”
o desejo de fuga, não só do estagnado; a cidade como transformou num
espaço cidade , mas também espaço onde a doença se pode mendigo. Professor, MAS…
do tempo em que se vive. propagar e desenvolver. Cidade símbolo do O futuro está fechado
onde o peso da religião se faz conhecimento e do …”se vivemos
sentir negativamente. saber, é descartado emparedados, sem
e desvalorizado no árvores..”; sem
presente. esperança!!
Imaginário épico: Associado à evocação da Associado à figura do “épico de Associado à figura “Como a raça do porvir; a
figura de Camões, de Os outrora que ascende num do professor que frota dos avós, os
poema longo de pendor narrativo; viagem Lusíadas; das “crónicas navais” pilar”, sugerindo a ideia de fuga representa o nómadas ardentes, NÓS
individual(física, mental e sentimental), mas e das “soberbas naus”; mas de um espaço que em nada conhecimento, mas vamos…” a lembrar o
também coletiva: suj. Poético é representante também às varinas condiz com quem foi esse nesta cidade de entusiasmo da
da civilização ocidental no final do século XIX; “hercúleas” de “troncos homem, de “proporções contrastes, ele é descoberta, da partida, tal
reflexão sobre o passado, presente e futuro de varonis”. guerreiras”. marginalizado, como no passado esses
um povo; faceta antiépica. inútil.
Associado aos desejos foram motores de
trabalhadores que ação….
fabricam o “honesto
pão”. Celebra-se o
trabalho, o esforço,
e lamenta-se a MAS…
indiferença perante
os agentes do saber,
o professor de
latim.
Subversão da matéria Viagem que conduz à O suj poético cumpre mais uma “Mas tudo cansa!” –
épica: descoberta de uma cidade- etapa da sua viagem e Não há que …tal já não é
prisão, habitada por gente descobre que no presente não celebrar!!
pobre, miserável. A glória do há nada na cidade que mereça possível!!!
Portugal presente não é celebrado; é uma passado deu lugar a um o canto de louvor que Camões
realidade decadente e sem brilho; há presente disfórico, eternizou: a a cidade, a
pessimismo, desânimo, sentimentos disfóricos deprimente, doentio: a realidade é triste, sombria,
e negativos. ociosidade dos lojistas, por sinistra.
exemplo. Não há que louvar!!!
Tipos sociais/atividades Operários: mestres Clero negro e sinistro; os As impuras, as Criminosos, bêbedos,
socioprofissionais carpinteiros, calafates soldados sombrios e espetrais; burguesinhas do ladrões, os guardas, as
enfarruscados; dentistas, um as “elegantes”, as costureiras, Catolicismo, um imorais: a noite mais
trôpego arlequim, os as floristas, comparsas e forjador, caixeiros, escura é toda dos
querubins do lar, lojistas, coristas, emigrados. cauteleiro, marginais, símbolo da
obreiras, varinas. professor de latim e corrupção moral.
um “ratoneiro
imberbe”.
Representação da figura As obreiras e as varinas. Estas A simpatia do sujeito poético Desfile de As imorais: doentes,
feminina associadas ao herói épico, vai para as “costureiras” a personagens fumam à varanda, talvez à
desde logo pelo adjetivo quem custa levantar o pescoço femininas: as espera de algum cliente…
“hercúleas”, as “ancas por causa das muitas horas que impuras- corrupção
opulentas” ; surgem em passaram a trabalhar, e ainda moral; Oposição em relação às
“cardume” transportando à outras que acumulam dois As burguesinhas – varinas, obreiras,
cabeça os filhos, o futuro, mas empregos, sugerindo a luta lazer, religião costureiras, floristas,
já com o destino marcado… pela sobrevivência. sentimental coristas.
A cobra, lúbrica
pessoa- mulher
sensual, que se
insinua;
A velha de bandós-
mulher rica e
solitária.
Mulheres que se
passeiam à noite
pela cidade.
Perceção sensorial “apinham-se num bairro onde “Sombrios, espetrais recolhem Sensações visuais e “E sujos, sem ladrar,
miam gatas/ E o peixe podre os soldados”: anteposição dos auditivas “Da ósseos, febris, errantes/
gera focos de infeção”.: visual, adjetivos ao nome; sugere-se a solidão regouga um Amareladamente,
auditiva, olfativa. sensação visual negra, cauteleiro rouco”
os cães parecem lobos”.
negativa, disfórica dos
Sensações auditivas
soldados.
destacam-se no silêncio
da cidade.
Dimensão crítica A atmosfera citadina Crítica ao passado em que as Contraste entre as É notório o desejo de
envolta no cheiro a gás referências à religião profissões evasão pela imaginação
“enjoa-me”; a felicidade superabundam: Inquisição, honestas do que se verifica pela
está fora da cidade; desejo o clero , a Igreja, os forjador e do transfiguração poética
de fuga; simpatia pelas conventos, o tanger dos padeiro que do real e pelas inúmeras
“Descalças!” que trabalham sinos monásticos e devotos, fabrica o “honesto reflexões do sujeito
de manhã à noite e depois a velha Sé, a Idade Média – pão” e as impuras poético: estrofes 4,5 e
vivem num bairro visão muito negativa; que se arrastam; 6; reflexões que o
miserável. Crítica a uma sociedade que Crítica às projetam para o sonho,
CRÍTICA às condições de pede às mulheres esforços mulheres católicas para o desejo de
vida dos mais grandes: trabalham até tarde burguesas eternidade, para um
desfavorecidos que, por e sentem no corpo as depreciativamente futuro glorioso
sinal, são os que mais consequências das muitas percecionadas associado à exploração
trabalham. horas a realizar a mesma pelo suj poético, da terra e do mar como
tarefa. uma vez que aconteceu outrora.
Crítica à “Triste Cidade” parecem freiras
como espaço murado, de sem A última estrofe do poema é um
grito de dor aguda: o sofrimento
doença onde se acumulam espiritualidade humano, emparedado agora, clama
corpos enfezados, crítica à verdadeira; por outro tempo, por outro espaço,
“amplos horizontes”, da liberdade,
fome; Crítica a uma da alegria, do equilíbrio, da paz,
Crítica às desigualdades cidade que embora as dificuldades sempre
existam.
sociais, simbolizada nas desvaloriza o
elegantes que olham para as saber e quem o
montras dos ourives e no transmite ao atirar
palácio que contrasta com o o professor para a
casebre do lado. situação de
mendigo.
Dicotomia cidade /campo: as referências ao campo, símbolo de vida, força, saúde, embora diminutas, aparecem associadas às “notas pastoris de uma
longínqua flauta”- natureza, espaço bucólico. Este espaço contrasta fortemente com a cidade, espaço do “Cólera e da Febre” onde se amontoam “corpos
enfezados” e, por isso, “A Dor humana busca os amplos horizontes”. É, de novo, a necessidade de fuga, de sair, de respirar em liberdade.

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